Poética do confronto

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DIVULGAÇÃO

PROGRAME-SE Diogo Amorim, do Quinteto de Cordas Alagoas, que se apresenta logo mais à noite no Projeto Quinta no Arena. B3

CINEMA. Mestre na arte de provocar, o pernambucano Hilton Lacerda imprimiu uma marca ao escrever roteiros de filmes nada apaziguadores como Amarelo Manga e Febre do Rato, de Cláudio Assis, Árido Movie, de Lírio Ferreira, A Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele, e Filmefobia, de Kiko Goifman. Natural que sua estreia na direção fosse cercada de expectativas. Tatuagem, longa que entra em cartaz amanhã no Cine Arte Pajuçara, chega ao circuito com uma bagagem de prêmios e elogios da crítica para a performance do elenco. Eles interpretam membros do Chão de Estrelas, um grupo de teatro que usa o corpo como arma para enfrentar a repressão da ditadura militar na década de 1970. Em entrevista à Gazeta, o diretor fala sobre os caminhos que o levaram até Tatuagem. Confira FÁBIO NASCIMENTO/DIVULGAÇÃO

Quinta-feira 28/11/2013

RAFHAEL BARBOSA REPÓRTER

Roteirista dos mais requisitados, Hilton Lacerda, 48, é um velho conhecido no meio cinematográfico brasileiro. São de sua lavra alguns dos filmes que ajudam a contar a história recente da cinematografia nacional, e especialmente da nordestina. Escrito em co-autoria com os colegas pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Baile Perfumado (1998) foi, ao lado de Carlota Joaquina (1995), um dos responsáveis por abrir os caminhos da chamada Retomada. Nos anos seguintes, novas parcerias com o também pernambucano Cláudio Assis renderam os cultuados Amarelo Manga (2003), Baixio das Bestas (2006) e Febre do Rato (2012), todos tendo Hilton no papel de roteirista, assim como aconteceu com Árido Movie (2004), de Lírio, A Festa da Menina Morta (2008), de Matheus Nachtergaele, e Filmefobia (2009), de Kiko Goifman. Mas mesmo dedicandose ao texto em tantos trabalhos, ele não deixou de exercitar a direção, primeiro em videoclipes para os expoentes do mangue beat, a exemplo de Mundo Livre S/A, Chico Science e Nação Zumbi, e em seguida no belo documentário Cartola – Música para os Olhos, novamente em parceria com Lírio Ferreira. Para Hilton, dividir a autoria dos projetos não é um problema. “Trabalhar em parceria é fazer um acordo de cumplicidade, de compartilhamento de olhar. Não é uma prática fácil se você não acorda e afina pontos de vista anteriormente. Essa afinidade não pode estar sujeita a questões momentâneas de concordâncias. Vai além. É o tipo de acordo em que conhecer o olhar do outro e o seu vai para um caminho de soma. Não é que você abre mão. Ao contrário: o embate faz parte do processo. Mas você parte da crença de que a aproximação dessas narrativas vai nos dar uma narrativa própria, original. Ou seja: um curioso e excitado com o outro”, explica. Para o voo solo, estava reservado um projeto ambicioso e muito pessoal. Tatuagem, longa-metragem que estreia amanhã (29) no Cine Arte Pajuçara, de certa forma potencializa aspectos autorais que Hilton havia impresso nos projetos dos colegas. A disposição para implodir tabus, especialmente os sexuais, sem dúvida é o principal deles. No filme, Irandhir Santos vive Clécio Wanderley, líder do Chão de Estrelas, grupo teatral bastante subversivo para os tempos de repressão da década de 1970. Em plena ditadura militar, a aproximação do soldado Fininho (Jesuíta Barbosa) mexe com a cabeça de Clécio e com as estruturas do grupo. Recebido com muita expectativa, Tatuagem estre-

ou no Festival de Gramado deste ano, de onde saiu com os Kikitos de melhor filme, melhor ator para Irandhir Santos e melhor trilha sonora para o DJ Dolores. A consagração se repetiu no Festival do Rio, com a vitória em cinco categorias: melhor filme pelo voto popular, prêmio especial do júri, melhor ator para Jesuíta Barbosa, melhor ator coadjuvante para Rodrigo Garcia e prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema. Antes da pré-estreia alagoana, na última edição do Corujão, o diretor concedeu entrevista à Gazeta por e-mail, para falar sobre o processo de realização do filme e da expectativa para o lançamento. Confira.

Gazeta. Além do roteiro, nos filmes do Cláudio Assis você trabalhou preparando elenco, certo? Como funciona essa divisão de trabalho entre vocês? Hilton Lacerda. Não trabalho preparando elenco, mas muito próximo dele, emprestando minhas indicações onde essa “intromissão” pode ser necessária. Interessa bastante a compreensão da intenção, da inflexão das falas; acho importante os atores entenderem o ambiente e como você pode usar o personagem dentro desse ambiente. E essa proximidade se dá dentro de uma estrutura de cumplicidade na construção do filme. Se dá pelo grau de envolvimento com o projeto. Eu gosto de trabalhar assim, quando é possível. É que eu gosto bastante do set de filmagem – o que parece ser raro entre roteiristas. Tatuagem é inspirado na história do grupo Vivencial. Como foi o processo para transformá-la em roteiro de cinema? O Vivencial Diversiones, grupo teatral no qual me debruço muito livremente (o que importa é a memória afetiva, não uma reconstituição), é uma lembrança que paira sobre o Recife. Desde criança o espírito do grupo povoava um determinado ambiente da cidade. Uma marca muito forte por aqui. Então o processo de construção do projeto se utilizou dessa janela para alimentar uma coisa que me interessa bastante: a discussão sobre liberdade e o espaço da liberdade. E a possibilidade de instigar o presente a partir de uma reflexão feita no passado acerca do futuro. É um jogo narrativo. Ou seja: o roteiro nasce de questões que te estimulam a partir de uma janela que se apresenta. Ter ideia é relativamente fácil. Saber onde colocá-las e como colocá-las dá bastante trabalho. E isso faz parte da brincadeira. O desempenho do elenco é um dos pontos mais comentados do filme, em especial o trabalho dos protagonistas, vividos por Irandhir Santos e Jesuíta

POÉTICA DO CONFRONTO Para construir a narrativa do filme, Hilton buscou inspiração na história do Vivencial Diversiones, lendário grupo teatral do Recife

Lista colorida Hilton Lacerda aponta os dez filmes que melhor discutem a diversidade sexual

∫ Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues

∫ Querelle, de Rainer Werner Fassbinder

∫ Madame Satã, de Karim Aïnouz

HILTON LACERDA DIRETOR

“Tatuagem caminhava numa linha muito tênue de representação. Estamos falando de uma narrativa que, em determinados espaços do filme, se dimensiona. A interpretação vai do burlesco e do alegórico, quando se trata de uma versão teatral de um grupo debochado, ao anarquista e desbundado, até o que convencionamos chamar de naturalismo. Prefiro o termo ‘cotidiano reinventado’”

Barbosa. Que aspecto de cada um dos dois mais te chamou atenção? Tatuagem caminhava numa linha muito tênue de representação. Estamos falando de uma narrativa que, em determinados espaços do filme, se dimensiona. A interpretação vai do burlesco e do alegórico, quando se

trata de uma versão teatral de um grupo debochado, ao anarquista e desbundado, até o que convencionamos chamar de naturalismo. Prefiro o termo “cotidiano reinventado”. No fundo, interessava a verossimilhança do ambiente. E tanto Irandhir quanto Jesuíta traziam consigo, emblematicamente, a força de que os personagens necessitavam. Do primeiro, que conheço há um tempo razoável, já sabia de seu alcance dramático e de sua inteligência interpretativa – quando escrevia o personagem pensava fisicamente nele para o papel. Jesuíta foi o resultado de uma longa pesquisa, e testes... E ele foi como uma espécie de peça que se encaixou nessa montagem.

Tatuagem é a estreia do Jesuíta Barbosa ou ele já tinha feito algo antes? Como ele chegou até o filme? Tatuagem é o primeiro papel que Jesuíta protagoniza no cinema, mas é um ator de formação. Ele faz uma pequena partici-

pação no Cine Holliúdy. A chegada dele veio através de uma rede de amigos. Quando você está testando pessoas para determinado filme, não raro você constrói uma teia de comunicação em busca de um elenco que te interesse. No caso de Jesuíta, quando fomos fazer o teste em Fortaleza, meu diretor assistente, Marcelo Caetano, recebeu essa indicação de Armando Praça sobre o ator. Thomaz de Aquino já tinha chamado ele para o teste. Isso foi na última etapa dos testes. Marcelo voltou de Fortaleza muito encantado com o desempenho dele. Eu fiquei muito excitado com o desempenho dele. Brigou pelo personagem e assim Jesuíta vestiu Fininha. Ele é um ator extremamente versátil, interessante, dramaticamente muito extenso e – muito importante – bastante apaixonado pelo que faz. Tem uma gentileza e uma coragem que é bastante raro em atores com sua idade – e diria que em outras idades também. ‡ Continua na pág. B6

∫ Os Sapatos de Aristeu, de René Guerra

∫ O Diabo na Carne de Miss Jones, de Gerard Damiano

∫ Na sua Companhia, de Marcelo Caetano

∫ Mal dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul

∫ Vera, de Sérgio Toledo

∫ Felizes Juntos, de Wong Kar Wai

∫ Un Chant D’amour, de Jean Genet

Serviço ESTREIA DOS CINEMAS Filme: Tatuagem (Idem, BRA, 2013) Direção: Hilton Lacerda Onde e quando: no Cine Arte Pajuçara, a partir de amanhã (29), às 21h Classificação: 16 anos


B 6 Caderno B

GAZETA DE ALAGOAS, 28 de novembro de 2013, Quinta-feira

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Cineasta engajado, em entrevista Hilton Lacerda compartilha pensamentos sobre o embate entre liberdade e repressão pelo viés da sexualidade, conflito central de Tatuagem

“QUESTÕES DE GÊNERO FAZEM PARTE DE DETERMINADO PROJETO CIVILIZATÓRIO” FLÁVIO GUSMÃO/DIVULGAÇÃO

Para o diretor, a sociedade vive um momento delicado em relação ao tema RAFHAEL BARBOSA REPÓRTER

Gazeta. Durante o processo de preparação, a equipe morou numa casa que serviria de locação para o filme. Alguns profissionais disseram que foi um período inesquecível. De que forma esse processo contribuiu para o resultado? Hilton Lacerda. Precisávamos que nosso projeto respirasse determinada aura, certa cumplicidade de grupo. Isto foi uma preocupação em todos os núcleos de narração. Mas ele é bastante evidente no núcleo do Chão de Estrelas. Tínhamos um grupo que contava com seis semanas de pré-produção que garantisse um convívio que parecesse de mais tempo e exalasse muita intimidade. E assim foi pensada essa estratégia, que era a de agrupar as pessoas em casas dentro de um mesmo sítio (nesse caso, a parte histórica de Olinda). Os exercícios diários, a construção dos personagens, a dedicação, tanto do elenco quanto de nossa equipe – e aí Amanda Gabriel, a preparadora, teve um papel determinante –, nos ofereceu essa unidade em torno do grupo. Acredito que poderíamos traçar ou-

tro caminho, mas, em minha concepção, chegaríamos a resultados diferentes. E claro que esse exercício não é uma fórmula, mas uma forma de abraçar o projeto que estávamos colocando em andamento. Cada projeto deve ter sua própria dinâmica.

As questões de gênero se tornaram muito populares no cinema brasileiro contemporâneo, principalmente no curta-metragem. Você acredita que se trata de um despertar para o tema, um fenômeno fruto de uma abertura maior da sociedade, ou a descoberta de um nicho de ‘sucesso’? Acredito que questões de gênero passaram a fazer parte de determinado projeto civilizatório. Colocá-lo em evidência e expor suas contradições, seus embates, suas peculiaridades, suas idiossincrasias, faz parte das discussões gerais. O Brasil está muito distante dessas discussões. O próprio Estado é ferozmente conservador, uma vez que se utiliza dessa pauta para negociar “governabilidades” com os substratos mais duros dos legislativos. Nesse cenário os curta-metragistas ficam mais livres para colocar essas questões, que fazem parte de

suas vivências e experiências. Por outro lado a sociedade, em sua maioria, tem se mostrado bastante reativa em relação a essas colocações. É um momento bastante delicado para a sociedade brasileira. Momento contraditório e perigoso. O país já tem corpo suficiente para produzir uma grande merda. E falar em “nicho de sucesso” nesse quadro é quase uma piada, levando em consideração que as produções, mais graúdas, em sua grande maioria, têm se empenhado em tornar essas questões bastante rasas, colocando-as no nível da comédia de gênero. Causa-me espanto o nível de truculência das leituras que são feitas no Brasil sobre a sexualidade. Revela uma constrangedora imaturidade somada a uma aparente deficiência ética.

Enquanto o cinema tem explorado regularmente o tema da diversidade sexual, a televisão aberta se mantém à margem do assunto, dedicando a ele um tratamento ainda estereotipado e até preconceituoso. Você acredita que a televisão reflete o conservadorismo do brasileiro? A televisão brasileira é pautada por mecanismos de imobilidade. Não é instrumento de comunicação, mas um eletrodoméstico que tem por finalidade jo-

Os personagens de Irandhir Santos e Jesuíta Barbosa em cena de afeto: intérpretes viveram seis semanas nas locações para construir a cumplicidade que é vista no filme

gar com determinado tipo de ditadura do comportamento. Repare em algumas questões, como o chamado beijo gay na televisão. Que espécie de discussão é essa? Qual o projeto disso? Passei minha adolescência vendo Caetano Veloso, Gilberto Gil, Fagner, Chico Buarque e muitos outros se beijarem em frente das câmeras. Quando o tema toca a esfera da afetividade ou do desejo, isso se torna elemento de manobra, de audiência. Nos últimos quinze anos passamos por um processo violentíssimo de moralização nos meios de comunicação. Nos anos oitenta, a abertura de uma novela da Globo era um rapaz de costas, nu, com as mãos num bolso imaginário. Era um close espetacular. Tinha desejo e graça. E

o que aconteceu? E causame apreensão o mundo virtual já na mesma esteira: uma estrada aberta para o aprisionamento.

O cinema pernambucano vive um momento muito especial, fornecendo alguns dos filmes nacionais mais elogiados. Você consegue explicar como essa cena se tornou um reduto de tantos talentos? Creio que Pernambuco teve a felicidade de, em determinado momento, somar uma onda criativa, principalmente na música e no cinema, e chamar a atenção para uma produção que há muito está sendo alimentada. Não é algo novo, mas que tem, paulatinamente, se colocado em relação a novas possibilidades de construir narra-

tivas e estimular conteúdos na cinematografia contemporânea. Mas claro que não é apenas de criatividade que nos alimentamos. A conquista de editais e leis, a partir da pressão de classe, talvez seja a força-motriz para manter esse cinema atuante e livre. Essa é uma junção fundamental e que termina por retroalimentar a produção. E, talvez o mais importante, acredito que Pernambuco, por necessidade, conseguiu “inventar” uma forma de produzir seus filmes, onde as possibilidades da estrutura conversam muito diretamente com a capacidade de criação. Nossas deficiências procuram soluções inventivas. Creio que esses três tópicos dão pistas sobre a força do cinema realizado em nosso estado. ‡


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