Meu amigo estrangeiro - Gazeta de Alagoas

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MEMÓRIA. Iniciada há quase cinco décadas, a relação entre um antropólogo americano, uma jornalista nascida na China e naturalizada brasileira e um menino de seis anos filho de pescadores do Pontal de Coruripe resultou em duas publicações ainda inéditas no Brasil, mas que ajudam a compreender as transformações ocorridas naquela região nos últimos anos. Após percorrer nossa costa litorânea numa pesquisa para seu doutorado, foi na comunidade do litoral sul de Alagoas que Shepard Forman identificou costumes já abandonados no restante do País. Lá também achou Bico, garoto cuja infância seria retratada num livro escrito por sua esposa, Leona Forman, em 1969. Para recuperar as histórias por trás dessa longa amizade, a Gazeta foi ao encontro de Bico, hoje um senhor de 54 anos e pai de cinco filhos. Também conversou com o casal, que reside nos EUA, e ouviu pesquisadores que se detiveram sobre o Pontal recentemente. O resultado desse ‘resgate’ você confere nesta edição. Não perca FELIPE BRASIL

MEU AMIGO ESTRANGEIRO RAFHAEL BARBOSA

DIVULGAÇÃO

REPÓRTER

Após uma década sem se apresentar em Maceió, Gilberto Gil volta à cidade com show acústico. B8

Domingo 11/03/2012

Antônio Barnabé dos Santos, o Bico, contempla a paisagem que foi cenário de toda a sua vida

Coruripe, AL – “Como o Bico está? Ele está bem de saúde? Ainda vive com os filhos?”, quis saber o antropólogo e professor norte-americano Shepard Forman, 74, em contato via Skype com a Gazeta. Amigo que não vê desde 2000, o Bico a quem Shepard se refere é Antônio Barnabé dos Santos, morador do Pontal de Coruripe desde que nasceu, há 54 anos. O primeiro encontro entre os dois se deu em 1963, quando Bico tinha apenas seis anos, e o pesquisador, aos 27, visitava a vila de pescadores como parte de um levantamento feito na costa brasileira para sua tese de doutorado, defendida na Columbia University. “De Vitória do Espírito Santo a Porto Alegre, visitei todas as povoações de pescadores da região. E quando conheci o Pontal, lá encontrei todos os elementos que interessavam à minha pesquisa. Era o tipo de cenário que eu queria investigar, pois queria entender o que levava pescadores a manter os métodos tradicionais de pesca em vez de técnicas modernas. E além de ser uma povoação dedicada à pesca de jangada, feita artesanalmente, havia mulheres sustentando a economia com a fabricação de bolsas de palha”, explica ele. A permanência de Shepard na vila localizada a 8km do município de Coruripe e a 111km de Maceió por cerca de um ano resultaria na publicação do livro The Raft Fishermen – Tradition and Change in the Brazilian Peasant Economy (O Jangadeiro – Tradição e Mudança na Economia Camponesa Brasileira, em livre tradução). Mas além do volume, que segundo o antropólogo “teve muita repercussão nos EUA porque foi uma das primeiras análises que levaram em conta o fator ecológico, e não só o econômico”, a passagem daquele estrangeiro pelo povoado também ficaria marcada na vida do menino Bico – Shepard trabalhava em suas pesquisas quando encontrou o garoto, um dos 12 filhos de um pescador e de uma artesã, sentado embaixo de sua mesa de jantar. “Ele tinha seis anos na época, mas parecia ter três ou quatro, era uma criança muito mal-nutrida”, narra o pesquisador que vive no estado americano de Massachusetts, ao lado da esposa, Leona Forman, e mantém residência no Rio de Janeiro. “Nós começamos a dar comida, comprar roupa para ele, e insistimos que fosse para a escola. Depois a família, que era muito pobre, queria que eu ficasse com ele como filho de criação, porque eles não tinham como sustentá-lo da maneira como eu estava fazendo. Eu até tentei levar ele comigo para os Estados Unidos,

mas o cônsul americano se recusou a dar o visto, por diversos motivos. Primeiro porque eu era um jovem estudante, sem posses para sustentar uma criança. Na época os direitos civis nos EUA ainda estavam em evolução. O cônsul me falou francamente que eu, um branco, solteiro, com um menino negro, não ia dar certo”, conta. Na impossibilidade da adoção, Shepard decidiu viabilizar os estudos de Bico. “Havia um padre, um cara maravilhoso, que tinha um orfanato em Maceió. Então eu levei o Bico para lá, junto com um rapaz chamado José Bernardo dos Santos, que também era um menino muito pobre, que vendia coco para ajudar a família. O José estudou comigo, aprendeu a ler e escrever, e virou meu assistente de campo na tese. Depois ele deu continuidade aos estudos e hoje é engenheiro e professor de matemática. O mesmo não aconteceu com o Bico, porque depois de um ano o padre morreu, e o orfanato foi fechado. Quando isso aconteceu, ele foi para outra paróquia em Penedo, mas não deu certo. Daí ele voltou para o Pontal”, lembra.

PROTAGONISTA Encerradas as pesquisas para o doutorado, o antropólogo retornaria ao Pontal de Coruripe quatro aos depois, em 1967, dessa vez acompanhado de Leona, com quem acabara de se casar e viajava em luade-mel. Ao longo de três meses de um convívio bastante próximo com os nativos, Leona passou a compartilhar com o marido o fascínio pela região. Enquanto Shepard lançou sobre o Pontal sua visão de antropólogo, Leona, com seu olhar de jornalista, enxergou no cotidiano daquela vila uma história em potencial para sua primeira publicação. O protagonista já estava escolhido: em Bico – A Brazilian Raft Fisherman’s Son (Bico – O Filho de um Jangadeiro Brasileiro), o menino Antônio Barnabé descreve, num tom didático e ingênuo, a vida no bucólico Pontal de Coruripe dos anos 1960. Em meio a dados históricos e geográficos, a narrativa em primeira pessoa mostra a rotina de uma criança numa povoação com cerca de 200 casas e menos de mil habitantes, sem abastecimento de água e com energia elétrica gerada a motor. “Nós jogamos futebol na praia grande, fazemos corridas na areia ou nadamos nas piscinas de águas calmas que ficam por trás dos recifes”, diz um trecho do livro, ilustrado com dezenas de fotografias em preto e branco mostrando Bico, seus amigos e parentes em cenas do dia-a-dia. “Na época, livros fotográficos eram bem populares nas escolas norte-americanas, assim como livros que mostravam como viviam meninos e meninas em

determinados países. Então decidimos que a história do Bico seria interessante para representar as crianças em geral que viviam naquele lugar”, explica Leona, que tem pais russos mas nasceu na China e radicou-se no Brasil quando tinha 13 anos. Como a escritora esclarece, o texto não reproduz necessariamente as impressões do menino, que tinha apenas dez anos quando o livro foi elaborado. “O conteúdo foi construído por nós; ele era muito criança. Mas eu tentei explicar a vida dele, a vida da povoação, a história do Pontal e os principais eventos que aconteceram naquele ano, que seriam de interesse para mostrar como era a vida num lugar tão bonito, mas ao mesmo tempo tão longe de tudo. A chegada de um helicóptero, por exemplo, foi um grande evento para toda a população”. Na história, o pouso da aeronave na praia é o mote para a autora discorrer sobre os anseios do menino, que segundo o livro não queria ser pescador como seu pai, pois sonhava em se tornar piloto. “Um dia eu vi uma máquina voadora. Ela não se parecia com um avião. Um dia ela pousou em nossa praia e dois homens desceram dela e tomaram água de coco. Eles disseram que a máquina era um helicóptero. Eles eram homens bons e me deixaram tocar no helicóptero. Eu nunca toquei num avião”, relata o Bico personagem. Além da profissão, o garoto também tinha seu sonho de consumo. “Algum dia, quando eu crescer e trabalhar, eu comprarei um rádio também”. A obra foi publicada em 1969 nos EUA, e até hoje permanece inédita no Brasil. Enquanto as histórias de Bico dividiam espaço com clássicos da literatura infantil nas bibliotecas das escolas norte-americanas, o menino não conseguiu se alfabetizar para ler sua própria biografia, perpetuando o destino do pai e do avó, também analfabetos. Segundo o livro, o povoado até tinha escola rural, mas o funcionamento era comprometido pela falta de professores.

MUDANÇA Escrita na época em que o garoto ainda estava matriculado na Escola Católica de Penedo, sob a vigilância de Shepard, a narrativa termina de forma otimista. “Avô Barnabé está feliz que estamos estudando em uma escola. Ele nunca estudou e meu pai também não. Eu acho que isso significa que as coisas mudaram. Pensando bem, eles não tinham eletricidade nem rádio. Agora nós temos. Um dia haverá uma escola grande para todas as crianças. Vovô diz que as coisas mudam em todos os lugares, imagino que as coisas também vão mudar aqui no Pontal”. ‡ Continua nas págs. B2 e B5


B 2 Caderno B

GAZETA DE ALAGOAS, 11 de março de 2012, Domingo

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Casado pela segunda vez e pai de cinco filhos, aos 54 anos Antônio Barnabé dos Santos trabalhou numa fábrica de gelo e plantou cana antes de descobrir no coco a profissão que lhe garante o sustento

NEM PESCADOR, NEM PILOTO “Ainda pesquei uns tempos, mas depois que passei uns quatro ou cinco dias lá fora, sem nada, somente água e céu, eu não passei bem e deixei de pescar. Hoje eu trabalho no que botar, mas meu serviço mesmo é de tirador de coco”, conta Bico

Coruripe, AL – Antônio Barnabé dos Santos não herdou a profissão do pai e da maioria dos homens do Pontal de Coruripe, que parecem já ter nascido com vocação para a pesca. Tampouco Bico, aos 54 anos, realizou o desejo do menino retratado no livro, que sonhava em se tornar piloto. Ele até tentou apostar na pesca, mas não se adaptou, preferiu a terra firme. “Eu ainda pesquei uns tempos, mas depois que passei uns quatro ou cinco dias lá fora, sem nada, somente água e céu, eu não passei bem e deixei de pescar. Hoje eu trabalho no que botar, mas meu serviço mesmo é de tirador de coco”. Além da pesca, Bico tentou outras formas de ganhar a vida. Trabalhou numa fábrica de gelo e plantou cana – antes de descobrir no coco a profissão que hoje lhe garante o sustento. Ele diz ser feliz. “Graças a Deus sou, né? Tenho saúde, tenho a minha casinha, e vou vivendo com o que Jesus me der, devagarzinho”. Numa tarde de quintafeira, um dia de folga, Bico recebeu a reportagem da Gazeta em sua casa, uma residência muito simples onde também funciona um pequeno comércio – de onde ele tira uma renda extra, “vendendo um peixe, uma bebida, uma coisa ou outra para não ficar parado quando tem pouco trabalho”. Com uma edição de sua ‘fotobiografia’ em mãos, Bico nos levou a alguns dos lugares de sua infância retratados na obra. No caminho até a igreja, mostra o beco que ele e os co-

legas atravessavam “na carreira, gritando”, para brincar de bola do outro lado. “Eu era muito danado”, recorda. Apesar de não lembrar de muita coisa da época da visita de Shepard Forman, ele tem sua versão para o primeiro encontro com o estrangeiro. “Eu tava brincando aqui, quando ele saiu. Aí mandou a empregada me chamar”, diz. Um a um, ele aponta os lugares que tiveram destaque no livro, do local onde o helicóptero pousou à casa em que o antropólogo costumava ficar hospedado, na rua da igreja. Pelé e Luiz Pulga, dois dos melhores amigos que o acompanhavam nas peladas diárias, já morreram. Três de seus oito irmãos também. Enquanto aponta para a casa em que vivia com os pais, Bico fala com orgulho do livro que conta sua história. “É uma coisa que ninguém tem aqui no Pontal, né?”. Pelas ruas do povoado, os moradores conhecem muito bem aquelas páginas. Sentado na porta de casa, o pescador aposentado Luiz, de 55 anos, é convidado por Bico a lembrar a época de menino. “Tá com tanto tempo... Eu lembro de pouca coisa. A gente era tudo pequenininho, traquina”, diz ele, enquanto tenta se encontrar nas imagens do livro. Ao lado, a irmã Sara ajusta os óculos na tentativa de identificar Luiz entre as crianças jogando bola na rua. Ela se diverte com uma foto de Bico segurando um siri. “Lembra quem é essa?”, pergunta Bico aos dois. Diante da negativa, responde: “Era minha vó”. “Eita, a finada Felizinda... Eu lembro”, diz Luiz. “Óia Natalício... Essa é Marluce, o jeito dela a gente vê logo... Aquela ali é a Diná?”, empolga-se a senhora. Com a ajuda do livro, as memórias não demoram a chegar. “A cidade mudou muito. Na época o Pontal era muito pobre, só tinha casa de palha, não tinha casa de telha. Hoje tá tudo calçado. Naquele tempo, para a gente não passar fome precisava nossos pais saírem mais de meia-noite para um lugar que tem aqui, chamado de Barreira, para pescar camarão, e depois vender

ou trocar por farinha, macaxeira ou batata. Hoje tá tudo mais fácil. Aparece mais trabalho, mais emprego”, diz Bico. Ao lado, o amigo concorda. Já sobre o período que passou em Maceió e em Penedo estudando em escolas católicas, não restaram muitas lembranças. Suas maiores recordações são do trabalho precoce. “Eu me botei para trabalhar, para ajudar meus pais, que eram muito pobres”, diz ele. Começou “ajuntando coco em carroça de burra”. Observando os homens que subiam no coqueiro, ele começou a aprender seu ofício futuro.

CASÓRIO O casamento também foi precoce. “Eu me casei com 17 anos de idade, e Luciana, minha esposa, tinha 16. A gente se conheceu no serviço, na usina. Naquela época a gente trabalhava carregando madeira. Logo que se conheceu, a gente se casou em pouco tempo. O pai dela era carpinteiro. Eu comprei um terreno, arranjei a madeira e a gente armou nosso barraco, de barro e palha”, conta Bico. Luciana, que lhe deu os cinco filhos, “Antônio, José, Márcio, Rejane e Vinha”, morreu muito cedo, “quando tinha 20 e poucos anos. Morreu botando o sangue, o médico não disse o que era, parece que foi dilatação no intestino”. Bico passou um ano e meio solteiro. “Depois eu arranjei a Maria da Penha, que vivo comigo hoje. Eu conheci ela na minha casa mesmo. Morava por detrás de mim. Foi numa época de São João. Ela vinha de um baile, e eu tava em casa tomando guaraná com um pedaço de carne assada. Quando ela passou, eu ofereci um copo de cerveja. Ela disse que não bebia, mas eu falei: ‘Senta aí, rapaz, pra gente conversar’. Aí a gente foi se entrosando. Nessa época eu fazia ‘flau’ (picolés em saquinhos plásticos) em casa. Aí, por brincadeira, eu falei que quando eu começasse a trabalhar na outra semana ia chamar ela pra morar comigo. Aí ela não contou história: arrumou os panos de bunda e quando eu vi tava tudo dentro de casa”.

REPRODUÇÃO

REPÓRTER

ACERVO PESSOAL

RAFHAEL BARBOSA

FELIPE BRASIL

PRESENTE NA MEMÓRIA No alto, Bico guia a reportagem pelos lugares retratados no livro publicado quando ele era menino. Com 27 anos quando esteve no Pontal pela primeira vez, hoje, aos 74, Shepard Forman lembra do encontro com detalhes

“AQUI É BOM PORQUE É UM LUGAR DESCANSADO” Nossa caminhada na companhia de Bico continua pelo Pontal afora. Chegando à praia, um grupo de meninos aproveita a maré cheia para se refrescar. Um a um, correm pelo quebra-mar e saltam na água. “É assim o dia todo”, diz o tirador de coco que já fez muito aquilo na infância, mas segundo conta hoje quase não toma banho de mar. “Ah, as crianças de hoje são muito diferentes. Naquele tempo os pais falavam e a gente obedecia. Hoje a gente fala e é capaz de mandaram a gente ‘praquele’ lugar”, observa, diante da brincadeira dos garotos. Da praia, ele aponta para a região onde, segundo a promessa do governo do Estado, será construído o estaleiro Eisa, maior empreendimento da história de Alagoas que deve devastar uma parte considerável do mangue. “Diz o povo que vai ser ‘prali’, perto de onde fica a Barreira. Pra mim tanto faz como tanto fez, se vier bem, se não vier bem também. Mas se tiver mais movimento, mais trabalho pro povo, ficar melhor pra viver, acho bom que ele venha”, afirma. Naquele mesmo mangue foi feita uma das fotos que ilustram o livro, com Bico apanhando um siri.

ANTÔNIO BARNABÉ DOS SANTOS TIRADOR DE COCO

“Agora [no Pontal] tem quase tudo que a gente precisa, tem farmácia, tem mercado, tem feira. A gente só vai quando precisa de hospital mesmo”

“Às vezes, quando dá apetite, eu vou lá ainda hoje, pego uns quatro ou cinco uçá pra comer com feijão à noite”, conta, sorrindo. Diferentemente dos anos 1960, quando Bico acompanhava a mãe até a feira de Coruripe para vender seu artesanato e comprar itens de subsistência, hoje ele diz precisar ir muito pouco à cidade. “Agora tem quase tudo que a gente precisa, tem farmácia, tem mercado, tem feira. A gente só vai quando precisa de hospital mesmo”. Torcedor do CRB, Bico enfrenta os oito quilômetros até Coruripe para ver as partidas do time. “Quando dá vontade eu escuto no rádio; quando não, vou lá assistir à pelada”. Em toda a extensão da praia do Pontal, jangadas podem ser vistas tanto na

areia como no mar. Segundo o livro, nos anos 1960 elas eram por volta de cem, todas artesanais.

ROTINA Em sua rotina, Bico acorda por volta de quatro horas da manhã. Arruma a bolsa, onde guarda a roupa de trabalho, o facão, a peia (utensílio de corda que ajuda na subida do coqueiro) e a marmita com sua comida, preparada pela mulher na noite anterior. Geralmente leva peixe e arroz, “às vezes carne”. De bicicleta, ele segue até as plantações de coqueiro nos sítios da região, onde permanece até as 13h. “Em dois ou três minutos a gente consegue subir e descer. Por dia dá pra subir 70, 80 coqueiros, em média. Nuns quatro dias dá pra tirar até uns sete mil cocos. Numa semana eu consigo de R$ 150, R$ 180, até R$ 200, quando o coqueiro é bom”, explica. “Eu trabalho muito, tem semana que eu não paro. A gente sofre mais no inverno. Quando chove a gente não trabalha, fica parado em casa”, diz Bico, que não tem queixas do lugar onde vive. “Aqui é bom porque é um lugar descansado, você pode sair a hora que quiser que não faz medo. É calmo de se viver aqui”. RB ‡


Domingo, 11 de março de 2012, GAZETA DE ALAGOAS

Caderno B 5 B

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Das construções de taipa ao uso da palha de ouricuri no artesanato, os costumes da comunidade do Pontal de Coruripe remontam a um passado distante

O TEMPO E O LUGAR

FOTOS/IMAGEM: REPRODUÇÃO

No estudo Modos de Construir, Modos de Alimentar: Memórias da Paisagem Caeté nas Alagoas, as arquitetas Maria Angélica da Silva e Roseline Oliveira e a antropóloga Madalena Zambi tentam entender a realidade da região nos dias de hoje RAFHAEL BARBOSA REPÓRTER

Coruripe, AL – Nenhuma cultura é imune ao tempo. Cinco décadas foram suficientes para que transformações significativas pudessem ser notadas na paisagem e no modo de vida do Pontal de Coruripe. Da época em que Bico era um garoto de seis anos aos dias atuais, os moradores viram chegar alguns sinais do desenvolvimento. As casas de taipa deram lugar a edificações de cimento e tijolo. A luz elétrica e a água encanada deixaram de ser um sonho. As crianças e jovens que hoje vivem na região não mais precisam se deslocar até as cidades vizinhas para estudar. Segundo dados da Prefeitura de Coruripe, na Escola Municipal de Educação Básica Francisco Amálio Maria estão matriculados 750 alunos, da alfabe-

Título: Bico – A Brazilian Raft Fisherman’s Son Autora: Leona Shulger Forman Editora: Lothrop, Lee & Shepard Co. Fotos: Shepard e Leona Forman

Apesar das tentativas dos autores, o livro publicado nos Estados Unidos em 1969 ainda continua inédito no Brasil. Durante a entrevista, Shepard e Leona Forman se mostraram dispostos a ceder gratuitamente os diretos de suas duas obras para uma eventual publicação.

Título: The Raft Fishermen – Tradition and Change in the Brazilian Peasant Economy Autor: Shepard Forman Editora: Indiana University Press/Bloomington and London

Também inédito no Brasil, o livro foi publicado em 1970. O autor enviou um exemplar para a reportagem, que será doado à biblioteca da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) nos próximos dias.

tização ao nono ano, e também da chamada Educação de Jovens e Adultos (EJA). O avanço do turismo proporcionou o surgimento de outras atividades econômicas. Os poucos hotéis, pousadas e restaurantes do lugar utilizam mão-de-obra local e compram insumos dos fornecedores do povoado. A pesca continua a figurar como principal atividade, seguida pelo serviço público, pelo artesanato e pelo trabalho agrícola, seja no cultivo da cana-deaçúcar ou do coco. Estimase que 450 moradores do Pontal ainda tirem seu sustento do mar. Em suas esporádicas viagens de retorno ao povoado nas últimas décadas, Shepard Forman não deixou de notar tais transformações. “As mudanças que eu notei foram na economia da pesca. Quando eu estive lá, os únicos forasteiros que vinham no verão eram três ou quatros famílias. Além disso, viviam por lá pescadores e mulheres que trançavam palha. Com o decorrer do tempo, virou um lugar de atividade turística, com casas de veraneio, pousadas e restaurantes. A pesca finalmente passou, de pesca de jangada, para pesca de barco”, anota ele.

HISTÓRIA Palco do trágico desembargue de Dom Pero Fernandes Sardinha, que teria sido devorado num ritual canibalístico pelos índios caetés em 1556, a região também foi ‘desbravada’ pelos holandeses que ocuparam o território alagoano no século 17. Entre os quadros pintados por Frans Post e Albert Eckhout no período, há registros do cotidiano do lugar. A partir deles e de outras fontes da época, na pesquisa Modos de Construir, Modos de Alimentar: Memórias da Paisagem Caeté nas Alagoas, as professoras e arquitetas Maria Angélica da Silva e Roseline Oliveira e a antropóloga Madalena Zambi, que leciona no campus da Ufal em Arapiraca, cruzaram “os recortes iconográficos extraídos do material seiscentista e evidências buscadas em levantamentos de campo”. Além da análise de textos, gravuras e objetos históricos, as estudiosas também acompanharam o dia-a-dia e colheram depoimentos dos nativos do Pontal de Coruripe e do povoado vizinho do Poxim, na tentativa de entender a realidade da região nos dias de hoje. Entre as principais mudanças observadas pelas pesquisadoras está a influência das transformações ambientais na cultura da comunidade. “O consumo de certos frutos, como o da maçaranduba, está ameaçado por causa da retração das matas locais. Com a diminuição dessas matas, o consumo do fruto do ouricuri também foi reduzido. Um exemplo de longevidade dos elementos paisagísticos registra-

dos pelos holandeses é justamente a palmeira do ouricuri. Os moradores das duas localidades utilizam a palha, mas a forma de usá-la sofre variações, amplificando a importância das especificidades que dão identidade a cada povoado. No Poxim, a palha é usada para a feitura de vassouras. No Pontal, para bolsas, chapéus, cestas, porta-joias, etc. E essa atividade tem se colocado como trunfo para o fortalecimento da atividade do turismo local”, explica Madalena Zambi. Segundo ela, no passado os moradores do Pontal seguiam em grupo e a pé, pela praia, até as matas do Poxim, de onde extraíam as folhas da palmeira do ouricuri. “Hoje, com o aumento da demanda e a escassez desse recurso, é necessário comprar a palha de vendedores de Feliz Deserto”, pontua. Predominantes nos anos 1960, as casas de taipa configuram outro aspecto significativo do lugar, hoje mais presente na memória do que na paisagem. “No Pontal, as casas de taipa são construídas com as coisas que a terra dá e o processo construtivo em si possui valor para os moradores. No passado, desempenhava um importante papel na edificação de laços de sociabilidade entre as pessoas que colaboravam nas etapas da edificação da morada. A lembrança da casa de taipa na paisagem está associada a algo para além do teto que abriga e coloca-se, portanto, como uma via de acesso ao conhecimento de valores, da maneira de pensar e do modo de vida das pessoas do lugar”, analisa Zambi. Seja na pesquisa realizada pelo antropólogo norte-americano ou nas observações das estudiosas daqui de Alagoas, o Pontal de Coruripe surge como um lugar onde, acima de tudo, a tradição rege os costumes dos habitantes. Hoje, o trabalho, a alimentação, o jeito de morar e de se relacionar com a natureza ainda preservam uma forte ligação com um passado distante. A maior ameaça à preservação de memórias tão arraigadas não seria necessariamente o tempo. “As mudanças são inevitáveis, mas as que estão em curso merecem atenção, pois no caso do Pontal de Coruripe parecem colocar-se na forma de um embate desigual. O turismo, por exemplo, mesmo sob a retórica do ‘baixo impacto’, pode causar sérios danos não apenas ao mundo físico do Pontal, mas àquelas relações consideradas mais estruturantes pelos moradores do lugar. Para intervir, é preciso conhecer. E o desconhecimento da realidade do lugar expõe os próprios agentes envolvidos na promoção de certas intervenções a delírios capazes de danos irreversíveis ao valioso contexto humanizado desta parte de Alagoas”, alerta a antropóloga. ‡

O PONTAL DE ONTEM Feitas nos anos 1960, as fotos e ilustrações do livro de Shepard Forman registraram os costumes do povoado, já retratados pelos pintores holandeses Frans Post e Albert Eckhout no século 17


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