O romance e a cidade - Gazeta de Alagoas

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DOMINGO, 09 DE OUTUBRO DE 2011

Felipe Brasil

Gazeta de Alagoas

O romance e a cidade Além de tudo que pode ser dito sobre o monumental romance que Graciliano Ramos escreveu pouco antes de ser preso, em 1936, Angústia é um livro sobre Maceió. A cidade é cenário e ao mesmo tempo personagem na história de Luís da Silva, funcionário público e escritor frustrado que, do quintal de sua casa na rua do Macena, passa a desenvolver uma paixão obsessiva pela vizinha Marina. No cotidiano do protagonista, ruas, praças, prédios e paisagens contribuem para o crescente movimento de opressão que o levará a um fim trágico. Percorrer esses lugares após a leitura de Angústia é uma viagem pelos muitos sentimentos que o livro desperta. Na semana em que a reedição comemorativa dos 75 anos do romance chega às livrarias, a Gazeta tenta desvendar os teores da relação que o leitor cultiva com a obra. Além de ouvir a opinião de artistas e estudiosos, preparamos um roteiro especial com todos os endereços que aparecem na narrativa – e ainda desafiamos o ator Igor de Araújo a criar sua versão de Luís da Silva num ensaio fotográfico exclusivo. É a nossa homenagem ao livro que chega aos 75 anos com força para arrebatar várias outras gerações de leitores. Não perca

Leia nesta edição

O ator alagoano Igor de Araújo anda pela rua do Comércio em busca dos ‘sentimentos’ do personagem Luís da Silva


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A urbe de Graciliano Em Angústia, uma Maceió desconfortavelmente familiar aos olhos de hoje

| RAFHAEL BARBOSA Repórter

Maceió são duas cidades: uma para quem leu Angústia, outra para quem ainda não o fez. Nas ruas do Centro, do Bebedouro, nas praças Montepio, dos Martírios e Deodoro, há um sentimento impregnado pela presença de Luís da Silva, protagonista do romance escrito em 1936 pelo alagoano Graciliano Ramos e publicado no período em que ele esteve enclausurado como preso político. Em sua rotina, o funcionário público transitava por onde hoje circulam milhares de pessoas, igualmente anônimas. Todas carregam consigo questões comuns ao escritor frustrado que,

“Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios”. Assim começa Angústia

no trajeto de casa – na Rua do Macena – para o trabalho – na Praça Dom Pedro II –, era consumido por pensamentos recorrentes: o aluguel, as prestações vencidas, os bicos pendentes... Nesses cenários, as transformações promovidas pelo tempo são agora bem mais nítidas, mas o poder da obra, lançada há 75 anos, continua inalterado. Analista agudo da condição humana, Graciliano inventou pouco. Mesmo situada no território dos sonhos – como defendeu o crítico Otto Maria Carpeaux no artigo Visão de Graciliano –, sua prosa nos toma como matéria-prima essencial. Em meio a uma grande carga subjetiva, há um aspecto documental e bi-

ográfico capaz de provocar identificação em qualquer leitor. Em muitas passagens do romance, criador e criatura se confundem. Assim como Graciliano Ramos, Luís da Silva viveu a infância no interior. Tal e qual o autor, o ‘herói’ sobrevivia de sua habilidade com a escrita, atuando como revisor em jornais e criando obras literárias nos intervalos do expediente de servidor público. O próprio Angústia foi escrito por Graça num fluxo criativo de 27 dias, e era tido por ele como uma obra menor – o mesmo tratamento que Luís da Silva dispensava à sua produção. Na trama, os interlocutores Marina, Julião Tavares, D. Adélia, Seu Ramalho, Vitória, Seu Ivo,

Antônia e Moisés compõem uma ‘fauna’ de personagens tão reais quanto os transeuntes que caminham pelas ruas do Centro de Maceió. Reside aí sua capacidade de conduzir o leitor rumo a uma experiência para nós tão impactante quanto deve ter sido para um contemporâneo do autor, nascido em Quebrangulo. Ainda mais forte é a sensação de percorrer os trajetos de Luís da Silva. Para tanto, contudo, não precisa de muito esforço. Seus ‘vestígios’ estão ao alcance do olhar em qualquer dos endereços anotados pelo escritor. No romance, o espaço urbano é subordinado ao espaço psicológico. Ao passo que sua obsessão pela vizinha Marina caminha

NO ENCALÇO DE LUÍS DA SILVA RUA DO MACENA 1 O personagem Luís da Silva vivia na Rua do Macena, atual Rua Cincinato Pinto, onde situava-se o Colégio Diocesano e hoje funciona a Secretaria Estadual de Agricultura. Sua casa ficava perto da usina de luz elétrica.

Maceió

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RUA AUGUSTA 2 Também conhecida como Rua das Árvores, a via faz cruzamento com a Cincinato Pinto, de onde Luís da Silva avista pela primeira vez o flerte entre Julião Tavares e Marina.

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RUA DA LAMA Reduto da prostituição na Maceió dos anos 30, segundo o artigo de Enaura Quixabeira corresponde a uma “rua estreita na lateral da Igreja do Livramento, indo até a Praça dos Palmares”. A reportagem não conseguiu encontrar o local.

CENTRO INSTITUTO HISTÓRICO 5 Luís da Silva conhece Julião Tavares em uma recepção no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.

RUA DO SOL 3 Trajeto costumeiro do protagonista em suas andanças, é a rua de que desvia quando não quer encontrar Dr. Gouveia, seu credor do aluguel.

CINEMA CAPITÓLIO O protagonista acompanhava o casal Marina e Julião pelas ruas do Livramento e da Lama até chegar ao Capitólio, que ficava na esquina da Rua do Comércio com o Beco das Moedas.

RUA DO COMÉRCIO 4 Localização do café frequentado por Luís da Silva, onde se encontra com o amigo Moisés e também com a prostituta que lhe serve de ouvinte. “Naquele espaço de dez metros formam-se várias sociedades com caracteres perfeitamente definidos, muito distanciadas”, descreve o livro.

BEBEDOURO A casa da nova amante de Julião ficava em Bebedouro, onde Luís armou uma tocaia para assassiná-lo. O livro não faz menção a uma rua específica. Em busca do cenário ideal, a reportagem foi ao bairro e reproduziu a cena da morte de Julião Tavares num beco da Rua Tavares Barreto.

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LEVADA Um dos trechos percorridos por Luís da Silva no retorno após o assassinato de Julião. “Se me encaminhasse a Bebedouro, voltaria pela rodagem, entraria em casa antes de amanhecer. Apareceram luzes, as carolinas que enfeitam o canal, os eucaliptos da Levada”. PRAÇA DOM PEDRO II 6 Luís trabalhava numa repartição do prédio que atualmente é usado como sede da Assembleia Legislativa de Alagoas. PRAÇA MONTEPIO 7 Por onde Luís segue com Moisés após o encontro no café. PRAÇA DEODORO 8 Cenário de passeios de Julião Tavares e

Marina, aos olhos obsessivos de Luís da Silva. “Transformavam-se por momentos nas pessoas que vinham da Praça Deodoro, mas eu continuava a vê-los longe, em diferentes lugares”. PRAÇA DOS MARTÍRIOS 9 Refúgio do protagonista.“O inverno tinha começado, quase sempre caía uma chuvinha renitente. Ia sentarme num banco da Praça dos Martírios, e os pingos que tombavam da folhagem das árvores molhavam-me a cabeça descoberta e escaldada”. ASSOCIAÇÃO COMERCIAL É citada para comentar a família de Julião Tavares, donos do comércio Tavares & Cia. e “membros influentes da Associação Comercial”.

* Bonde da Ponta da Terra – Luís da Silva pegava um bonde para colaborar com um jornal à noite. O trajeto do bonde possuía um mapa de formato irregular com destino a Bebedouro ou ao Aterro (trecho de Jaraguá compreendido entre a Ponte dos Fonsecas até o primeiro armazém do Cais do Porto). O percurso passa pela Praça Deodoro; Rua do Macena (Cincinato Pinto); Rua Augusta (Ladislau Neto); Rua do Apolo (Melo Morais); Rua do Sol (João Pessoa); Rua do Comércio; Rua 1º de Março (Moreira Lima); Rua do Livramento (Senador Mendonça); Rua da Lama; Praça do Montepio (Bráulio Cavalcante) e Praça dos Martírios. * Colaborou Rafael Cavalcanti

para a loucura, a visão da cidade torna-se cada vez mais pessimista, degradante. Na espiral de memórias e reflexões, os pensamentos de Luís da Silva deslocam-se para o passado rural e retornam ao presente, lançandose nos ambientes habitados por Marina, pelo algoz Julião Tavares (que destrói suas ambições amorosas) e em toda sorte de personagens que o cercam. Nesse trajeto ao mesmo tempo geográfico e subjetivo, somos apresentados a uma Maceió desconfortavelmente familiar aos olhos de quem conhece a cidade, mesmo passados três quartos de século da primeira edição da obra – o manuscrito foi entregue à datilógrafa no dia 03 de março de 1936, poucas horas antes do escritor ser levado para a detenção, onde passaria dez meses, primeiro em Maceió, depois no Recife e, finalmente, no Rio de Janeiro. RELAÇÃO COM O TEMPO Em razão da efeméride, na semana passada o romance ganhou uma luxuosa reedição pela editora Record e foi tema de seminários e homenagens promovidas em cinco capitais brasileiras, inclusive em Maceió, onde os professores Wander de Melo Miranda (UFMG), Belmira Magalhães (Ufal), Ermenegildo Bastos (UFBA), Erwin Gimenez (USP) e a neta de Mestre Graça, Elizabeth Ramos (UFBA), reuniram-se para debater o texto na Universidade Federal de Alagoas, na última quinta-feira (06). No campo da análise teórica, muito já foi e ainda será dito sobre as camadas de sentidos presentes na narrativa. Além de ser tema de um sem número de trabalhos acadêmicos, o livro inspirou ensaios de gigantes como Otto Maria Carpeax (cujo texto integra o posfácio da nova edição), Antonio Candido e Álvaro Lins. Em sua homenagem, a Gazeta preferiu enveredar por outros caminhos, os caminhos do próprio Luís da Silva. Com a ajuda de pesquisadores, artistas e apreciadores do romance, traçamos o roteiro geográfico e sentimental de Angústia que você encontra nesta edição. Estudiosa que cultiva uma relação passional com o livro, Enaura Quixabeira foi uma de nossas colaboradoras na empreitada. Antes de se aposentar, a ex-professora universitária costumava levar seus alunos para sentir as cenas de Angústia nos cenários originais da trama. Com o roteiro muito fresco em sua memória, há cinco anos, quando comemorou-se o 70º aniver-

sário da publicação, ela não teve dúvidas de qual seria sua contribuição para celebrar a história. Escrito em coautoria com Lúcia Maria Vieira da Rocha, no artigo Angústia – O Romance de Maceió Enaura constrói um “mapa do itinerário do narrador-protagonista na cidade visível da geografia espacial dos anos 30”. Grande parte das visitas aos locais, ela conta, foram feitas à noite, “para elaborar a angústia do homem de manias noturnas”. O resultado foi um material rico em detalhes e descrições, que nos serviu como guia para elaborar o nosso próprio mapa. Nascida nos anos 40, Enaura passou toda a vida em Maceió, morando em diferentes bairros. Poço, Levada, Centro, Ponta Grossa, Vergel e Trapiche marcaram sua infância e juventude. Ao confrontar-se com as imagens daquela época, a professora diz ter um sentimento de perda. “A cidade da minha juventude desapareceu completamente. Eu passava de ônibus pelas ruas do Bebedouro, e era um deslumbre. Via belas casas, com suas fachadas imponentes. Era possível ouvir o som dos pianos tocados dentro delas. Hoje, vejo uma cidade sem rosto. Houve uma metamorfose. É triste quando comparamos a cidades que preservaram sua arquitetura. Ao desembarcar em Paris, a gente consegue ver todos os monumentos no mesmo lugar onde sempre estiveram. Você aprende a ter um mapa na cabeça apenas com o que aprendeu nos livros”, observa. Para além de sua elaboração estética, Angústia permanece extremamente atual, principalmente para os maceioenses, já que a capital, sete décadas e meia depois, convive com problemas da mesma ordem. Em seu diagnóstico da cidade retratada por Graciliano, o artigo identifica que “uma Maceió da feiúra, pobre e deslocada, salta desses quintais – a onipresença do lixo, dá água estagnada, das plantas maltratadas, a reiterada visão da mulher magra e do homem triste, em tarefas repetitivas e intermináveis, falam de um ambiente urbano descuidado, desorganizado. Corresponde à descrição de uma cidade que, como tantas outras, crescia de forma pouco planejada, aliando conquistas tecnológicas e enriquecimento à carência de infraestrutura bastante para o atendimento das necessidades básicas da maioria da população, que vive à margem desse progresso e desse enriquecimento”. Basta olhar para os lados e ver que pouco mudou.


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História encenada Na nossa versão de Angústia Angústia,, o roteiro é aberto: um ator, a cidade e os lances da realidade, num registro visual inédito

“Uma vez por semana eu largava o serviço antes do meio-dia, só para pegá-los. Ao dobrar a Rua Augusta, avistava Julião Tavares na prosa com ela, vermelho, soprando, derretendo-se, a roupa de brim com manchas de suor nos sovacos. Vendo-me, o canalha voltava as costas, porque estava intrigado comigo.”

“Antônia recebe o salário, entrouxa os cacarecos, beija as crianças e sai cantando, certa de que encontrou um homem. Volta faminta, com marcas novas de ferida.”

“No dia seguinte (era sábado e não havia expediente à tarde) senteime de novo à sombra da mangueira, com o romance. A coisinha loura tornou a aparecer, em companhia de uma mulherona sardenta, e começaram ambas a cortar ramos secos da roseira.”

“Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo absurdas: ar, mar, rima, arma, ira amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados, que me desprezam porque sou um pobre-diabo.”

“Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição.”

“Liquidei a minha conta no banco, estudei cuidadosamente uma vitrina de jóias, escolhi um relógiopulseira e um anel. Saí da joalheria com vinte mil-réis na carteira, algumas pratas e níqueis. Mais nada. Apenas confiança no futuro, apesar dos encontrões que tenho suportado. Os matutos acreditam na minha literatura. Vinte mil-réis para café e cigarros.”

Michel Rios

“O homem gordo era pedreiro, via-se pelas manchas de cal na roupa. Pedreiro com aquele corpo, que perigo! Um cochilo no andaime, pisada em falso na ponta da tábua, e no dia seguinte a família estaria de luto.”

“Ali era o silêncio, uma sombra que algumas lâmpadas muito distanciadas e os becos por onde espirra um pouco de luz interrompiam. A água do mangue apresentava manchas baças entre as árvores. Aproximando-me, ouvia perfeitamente os passos do homem nas folhas secas. Por que era que aquele sem-vergonha caminhava como se estivesse em casa, pisando no chão pago?”


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LEITURA AFETIVA

Por que Angústia se tornou uma obra importante para você? A Gazeta perguntou e um escritor, um dramaturgo, uma professora, um jornalista e um cineasta responderam. Confira nos depoimentos

Divulgação

“Angústia foge completamente ao Graciliano Ramos que eu estava acostumado a encontrar nas carteiras da escola. O estilo seco e pontual, os grunhidos de Fabiano e as memórias de Paulo Honório deram espaço ao caos psicológico, ao excesso de palavras e imagens dos raciocínios circulares de Luís da Silva. À época, tomado pela recente descoberta de Clarice Lispector, Angústia foi para mim uma surpresa, pois, diferente do estilo etéreo de Clarice, ali estava o sentimento de culpa, remorso e humilhação tão cruamente postos. Ainda nos rascunhos dos meus primeiros textos, aquele era o tom que gostaria de encontrar, Luís da Silva era o personagem que sintetizava a angústia que meus personagens parcamente cercavam. Não por acaso Angústia consta dentre minhas leituras constantes e recorrentes.” MAURÍCIO DE ALMEIDA Escritor Ricardo Lêdo/Arquivo GA

“Angústia é um romance sem doçuras ou alegrias, repleto de uma poesia áspera que economiza palavras e afetos. Uma literatura de um rigor formal que só poderia mesmo ter sido elaborada por um escritor que acreditava no valor da escrita apenas quando esta era duramente trabalhada. Retirou-lhe todos os adornos e excessos, criando uma obra esmeradamente lapidada, criativa e inesquecível. A adaptação de um romance desse porte para os palcos será sempre uma tarefa árdua, mas personagens como Vitória, Marina e Luís da Silva são suficientemente estimulantes para qualquer dramaturgo. O enredo e os monólogos das personagens são ricos e fascinantes. Conseguindo aliar a admiração pelo autor ao respeito pela qualidade da obra, o adaptador já terá percorrido metade do caminho até o palco. Talvez por isso a encenação de Angústia, pelo grupo Infinito Enquanto Truque, tenha sido elogiada e premiada. O grande mérito, sem dúvida, é da obra original e do seu poder de ‘contágio’. Graciliano Ramos desprezava as artimanhas do poder e das aparências. Construiu uma literatura onde as decantadas ‘belezas naturais’ de Alagoas não servem sequer como pano de fundo para a sua arte. Seus questionamentos culturais, sociais e políticos desenrolavam-se em primeiro plano e ele percebeu, como nenhum outro escritor alagoano antes dele, os engodos e as perversidades desse nosso esgarçado tecido social. Através de personagens primitivas e ingênuas como o Fabiano (Vidas Secas) ou de criaturas cultas e citadinas como o Luís da Silva (Angústia), GR nos descortinou algo bem mais significativo e denso do que belezas cenográficas – da geografia alagoana ou do texto literário. Deixou-nos uma obra magnífica e que é um permanente exercício de inteligência crítica. Lamentável é que muitos dos nossos conterrâneos ainda fiquem satisfeitos em apenas entoar loas bairristas como as de Julião Tavares: ‘Louvemos a nossa terra, os nossos coqueirais, o no nosso céu azul e as nossas praias inigualáveis!’. Pois bem, há quase 80 anos Graciliano mostrou que numa cidade ou estado (do mesmo modo que no teatro) o valor do ‘cenário’ é irrisório. As aparências enganam, sim, e costumam escamotear verdades feias como a alienação, o analfabetismo e a violência. Inegável é o fato de que desde os anos de 1936, quando Angústia começou a ganhar notoriedade até os dias que correm, a obra de GR venceu de goleada a luta contra o tempo e o espaço. Tornou-se universal e atemporal, já foi publicada em mais de trinta países e tornou-se fundamental. As ressonâncias de Angústia na atualidade são tão intensas que, ao lermos o traçado geográfico da capital alagoana descrito por Graciliano, percebemos que os lugares continuam iguais e os seus impasses estão inalterados; da praça do Montepio à praça dos Martírios, da rua da Lama à favela do Reginaldo. Sumiram os bondes e surgiram tecnologias impensáveis para o começo do século passado; mas, os problemas culturais, sociais e políticos são idênticos. Com os mesmos engodos e mesquinharias que tanto atormentaram o ‘ratofuso’ Luís da Silva, uma das personagens mais marcantes de um escritor genial – e, a isto sim, devemos entoar muitas e muitas loas.” LAEL CORREA Ator e dramaturgo

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“Dos romances de Graciliano, Angústia foi o último que li. Então eu já tinha lido Caetés, São Bernardo, Vidas Secas quando estava na adolescência e nesse momento o livro me pareceu não tão bom quanto os outros. A primeira impressão era de que havia um intimismo muito grande. Hoje, no entanto, meu projeto de pesquisa busca ver que existe em Graciliano, nos chamados três grandes romances, um projeto de discussão das relações de classe numa sociedade como a brasileira nos anos 30, num lugar mais subdesenvolvido. Então a gente está discutindo não a questão da classe em si, mas como essa classe cria sua subjetividade. Como o personagem pode ser o representante das três classes básicas da sociedade. Então você teria no primeiro momento São Bernardo como a classe dominante, com o proprietário rural, Vidas Secas, um narrador que fala sobre os personagens que como classe dominada não teriam como exercer a própria luta, e eu acho que Luís da Silva representa essa classe média tênue. A classe média está no meio das duas classes e o livro mostra bem isso. O tempo todo Luís da Silva é alguém sem uma identidade. Aí eu acho que a grande ira dele é em razão a Julião Tavares – ele quer o que Julião tem. Não acho que ele tenha matado Julião exclusivamente por conta de Marina, o ódio dele contra Julião é anterior a Marina. O fato de Julião Tavares ter ‘roubado’ Marina agrava o ódio, mas não é a base. É o lugar da classe média: vive entre os dois polos, não quer ser rebaixada, mas não tem condições de subir efetivamente.” BELMIRA MAGALHÃES Professora do curso de Letras da Ufal

“Angústia foi o último dos romances de Graciliano Ramos que tive contato, mas provavelmente o que mais me despertou interesse – tanto pessoal, como acadêmico. A paixão inicial foi incitada de várias maneiras; serviu de estímulo até mesmo o fato de parte da trama se passar em um cenário que me é familiar, o centro de Maceió. Mas notar que Graciliano coloca em xeque algumas das supostas verdades que criaram a respeito de sua obra (do escritor regionalista, ou militante, ou conservador na escrita etc.) é algo muito instigante. Até o humor, que por muito tempo foi visto como algo fora do contexto da obra do autor, podemos perceber em Angústia. É possível notar, também, uma espécie de inconformismo com o suporte, só a página não é suficiente: a gente vê, ouve, sente cheiros e até cansa com Luís da Silva. Angústia já é cinema, além das duas dimensões dos filmes convencionais.” ALLAN NOGUEIRA Jornalista e doutorando em Literatura Gilberto Farias/Arquivo GA

“A obra de Graciliano, especificamente Angústia, é a prova de que o grande artista independe de sua posição geográfica. Nesse livro ele consegue transformar uma cidade tipicamente provinciana e tipos aparentemente insignificantes em grandes personagens da literatura universal. Ruas, guetos, pessoas e hábitos tipicamente alagoanos foram imortalizados nessa obra-prima. Talvez seja essa uma das razões de sua prisão e de seu exílio: o retrato desagradavelmente agudo que ele faz da sociedade alagoana. Para mim é um privilégio poder andar nas mesmas ruas de Luís da Silva, Marina e Julião Tavares e aprender através desse livro que a arte é capaz de transcender um cotidiano de mediocridade”. WERNER SALLES BAGETTI Publicitário e documentarista


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Luís da Silva, segundo Igor de Araújo Desafiado pela reportagem, o ator fez uma imersão pelos sentimentos expressos no livro para compor o personagem | RAFHAEL BARBOSA Repórter

Não foi inesperado que, ao receber o convite da reportagem para protagonizar o ensaio fotográfico apresentado nesta edição, o ator alagoano Igor de Araújo tenha reagido com alguma resistência. O telefonema aconteceu há três semanas. No calor do insight, o repórter tentava explicar a proposta das fotos. Ele deveria ler Angústia e criar sua versão para o personagem Luís da Silva em apenas 10 dias – o ensaio estava agendado para o fim de semana seguinte, no sábado, 01. O receio inicial de Igor era que o trabalho resultasse caricatural. “O risco sempre existe”, argumentei, antes de propor: “Vamos fazer da seguinte forma: a palavra final é sua. Depois de tudo, se o resulta-

do não agradar, não usaremos o material”. Acordo fechado. No período que antecedeu o ensaio, em contatos quase diários, o ator trazia novas ideias para a elaboração das imagens, sempre comentando suas impressões sobre o livro ao tempo que a leitura avançava. Até então, São Bernardo era sua única imersão no universo de Mestre Graça. Igor de Araújo tem apenas 24 anos, mas já deu mostras de uma carreira promissora pela frente. Em O Mágico e As Muitas Últimas Coisas, montagens da Cia. Ganymedes, ele viveu com igual desenvoltura personagens completamente distintos. Seu desempenho em ambos fez dele um dos intérpretes alagoanos mais elogiados da nova safra. Em passagens recentes pelo cinema

com dois curtas-metragens, Igor também mostrou flertar muito bem com a câmera. O talento evidente, no entanto, não foi a única razão para credenciá-lo como Luís da Silva. Além das semelhanças físicas com Graciliano Ramos quando jovem (aspecto notado primeiro pelo cineasta Werner Salles, de quem ‘roubamos’ a ideia), tal qual o protagonista de Angústia, Igor é funcionário público e também trabalha no Centro de Maceió. Recém-formado em Direito, ele atua como assessor judiciário no Tribunal de Justiça de Alagoas, na Praça Deodoro. Ou seja, concilia a atividade artística com a burocrática. Era, sem dúvida, nosso homem. Muitas discussões por telefone e uma visita à redação no meio da semana para acertar os

últimos detalhes (qual seria o figurino? Usar ou não usar maquiagem? Apostar na caracterização de época ou assumir o diálogo com o contemporâneo?) e já tínhamos definições suficientes para colocar a mão na massa. A aventura teve início às 9h do sábado e envolveu outras três pessoas: além de Igor e da repórter Carla Castellotti, coautora desta reportagem, o jovem fotógrafo Felipe Brasil, a quem devemos a plasticidade das imagens, e o jornalista Allan Nogueira, estudioso da obra e nosso guia no roteiro de Angústia pelas ruas de

Maceió. Todos entorpecidos pela leitura, percorremos um a um os principais endereços citados no livro. No caminho, algumas belas surpresas e imprevistos que enriqueceram o ensaio e provaram o quanto aqueles cenários ainda representam o olhar lançado por Graciliano. O avançar das horas e o calor cada vez mais intenso a certa altura já nos exauria. Alheio à temperatura e sem demostrar qualquer sinal de cansaço, mesmo vestido com terno e gravata, Igor seguia concentrado, entregue àquela experiência.

Vieram de sua capacidade de observação algumas sacadas que não estavam previstas no nosso roteiro. Era pouco mais de 15h quando demos os trabalhos por encerrados. Mas Igor ainda não estava dispensado. Além da pendência de um novo encontro no meio da semana para a foto noturna que representaria a morte de Julião Tavares, no bairro do Bebedouro (dessa vez com fotos de Michel Rios), havia uma última provocação: relatar num texto o processo de construção de seu Luís da Silva. O depoimento você acompanha a seguir.

OBSERVAÇÃO FOI O MÉTODO, DIZ ATOR “Ao encontrar pessoas no Centro de Maceió, ao olhá-las, quis pensar em trechos de Angústia. Julguei esta a forma mais espontânea de tentar parecerme, ainda que vagamente, com Luís da Silva. Porém, de mim para mim, não sei se consegui o feito; talvez, somente pensar não baste. A mulher de cabelos castanhos e shorts me fez lembrar a seguinte passagem: “Antônia recebe o salário, entrouxa os cacarecos, beija as crianças e sai cantando, certa de que encontrou um homem. Volta faminta, com marcas novas de ferida”. O pedreiro que dava infor-

mações encaixou-se aqui: “O homem gordo era pedreiro, via-se pelas manchas de cal na roupa. Pedreiro com aquele corpo, que perigo! Um cochilo no andaime, pisada em falso na ponta da tábua, e no dia seguinte a família estaria de luto”. O fragmento para a senhora sentada no batente do portão: “Agora eu conhecia mais ou menos d. Adélia, falava com ela, parava na calçada às vezes: – ‘Bom dia, boa tarde, sim senhora, como tem passado?’. Quanto a Luís da Silva, alguém já disse ser personagem, ainda, muito atual (entenda-

se, persistente numa sociedade e época diversas daquelas nas quais fora concebido), seja pelos dilemas que enfrenta, seja pela maneira como considera aqueles que o rodeiam. Penso, entretanto, tratar-se de figura atemporal, porquanto representa aquilo que é próprio do homem em qualquer tempo e lugar – estar passível ao sofrimento. O nascimento, por exemplo, já é angustiante; do contrário, não haveria choro. E quando este não vem, melhor rezar por um tapa. Foi bom ter feito as fotos.” *Igor de Araújo


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