Moda Inviolada: Uma História da Música Caipira

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Moda Inviolada

Uma Uma Uma Uma Uma

Uma Uma Uma Uma

História História História História História

História História História História História

da da da da da Música Caipira Música Caipira Música Caipira Música Caipira

da da da da da Música Caipira Música Caipira Música Caipira Música Caipira Música Caipira

W W W W Walter de Sousa alter de Sousa alter de Sousa alter de Sousa

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Copyright® by Walter de Sousa

Copyright® by Quiron Comunicação & Conteúdo S/E Ltda.

Coordenação editorial: Ricardo O. Oliveira

Pesquisa e Redação: Walter de Sousa

Projeto gráfico e editoração: Vagner Simonetti

Assistente de Produção: Rodrigo Motta

Capa: Vagner Simonetti

Fotografia: Valdemi Silva

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

S698m

Sousa, Walter, 1963Moda inviolada : uma história da música caipira / Walter de Sousa ; coordenação Ricardo O. Oliveira. - São Paulo : Quiron, 2005 il.

Apêndice

Inclui bibliografia

ISBN 85-89204-09-X

1. Música sertaneja - Brasil - História e crítica.

2. Vida rural - Brasil. 3. Cultura popular - Brasil.

4. Folclore - Brasil. I. Oliveira, Ricardo Osório. II. Título. 05-3309. CDD 784.500981

CDU 78.067.26(81)

14.10.05 18.10.05 011988

Todos os direitos desta edição reservados a Quiron Comunicação & Conteúdo S/E Ltda. Av. Mazzei, 140 1º andar conj. 02

02310-000 São Paulo – SP

Tel/ Fax: 0 55 11 6953-4211 www.quironcomunicacao.com.br

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Uma Uma Uma Uma Uma

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História História História História História

História História História História História

da da da da da Música Música Caipira Música Caipira Música Caipira Música Caipira

da da da da da Música Caipira Música Caipira Música Caipira Música Caipira Música Caipira

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Índice Índice Índice Índice Índice

Parte Parte Parte Parte Parte I I I I I

eredas folclóricas: eredas folclóricas: eredas folclóricas: eredas folclóricas: eredas folclóricas: o caipira, a música, apoesia.. o caipira, a o caipira, a música, apoesia.. o caipira, a .....................................

1.”Caipiras”... Mas que são os caipiras?................ .......................... ............00

2.A viola, eu e Deus............................................................................................00

3.Nesses versos tão singelo ... ..................................................... .... .............................00

00 00 00 00 00
.....................................
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Parte Parte Parte Parte Parte II II II II II

Música popular: identidade, disco e rádio..... popular:

Música popular: identidade, disco e rádio..... Música popular: identidade, disco e rádio..... Música popular: identidade, disco e rádio.....

4.A

5.Rap

6.Ouvi

7.A

Parte Parte Parte Parte Parte III

9.Quem

III III III III

11.Tudo

............................... ............................... ............................... ............................... ............................... ..00 ..00 ..00 ..00
lua nasce por detrás da verde mata......................................... .................................. ..................00
aizinhos de talento.............. .................... ............... ............... ............................... .....................00
........... .............. ....................................... ............................ ................00
um gem ido perfeito...
................................................................................... ..............00
festa tava tão boa....................
de massa: sertanejo, eletrônico e romântico.................00 Música massa: sertanejo, eletrônico e romântico.................00 e
................................. .............................................................. ..00
Música
8.“Ô-lo-lê-ri-ti!”
dera
eu
uma viola... ..... ................................................................................... ....00
me
agora,
tivesse
em frente..............................................................................................................................................................................00
10. Tocando
é sertão se um violeiro toca......................................................................................................................................................00 livro viola pacote fonte9.pmd 3/11/2005, 09:29 9
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Prefácio

Prefácio Prefácio Prefácio Prefácio

No Ocidente, durante toda a Modernidade, procuramos compreender esse fluxo temporal que nos envolve e explica ao qual demos o nome de história – um fio condutor que é capaz de entrelaçar os destinos individuais tornando-os coletivos e de dar sentido aos mais efêmeros gestos e às mais persistentes situações. A história povoou a literatura, criou emocionantes narrativas, sagas inesquecíveis e epopéias protagonizadas por heróis, povos e nações. Orientou a filosofia na busca por sua lógica e fundamentos, programou a ciência na descoberta de suas etapas e implantou no mundo a crença no desenvolvimento e na evolução – a esperança de que a vida conduzisse cada ser vivo em direção a seu aperfeiçoamento.

Assim foi a Modernidade que se apoiou nessa certeza como um de seus pilares mais sólidos, inspirando até mesmo a arte, cujas obras projetavam no “amanhã” toda esperança de solução, desfecho e justificativa.

Mas eis que o amanhã parece ter chegado – a configuração do mundo é cada vez mais diferente daquilo que fora outrora tão familiar às pessoas; a rapidez do tempo parece ter queimado etapas e economizado minutos, deixando para trás as gêneses e as origens. O processo de transformação das mais diversas instâncias da vida deixa atônitos até mesmo os mais otimistas e, depois de longas e conturbadas décadas procurando transformar a sociedade, somos surpreendidos com a fragilidade dos moinhos de vento contra os quais lutávamos. Mais uma vez a mecânica da vida parece nos surpreender e, diante do futuro que finalmente se torna presente, eis que a cultura humana se volta para o passado na busca por conservar e reviver suas origens - ali onde tudo começou.

Resgatar, reviver, repensar são alguns dos movimentos mais constantes na cultura dessa Pós-modernidade, em todos os cantos e nos mais diversos campos da ação humana – na arquitetura, no urbanismo, nas artes, na religião, na política e no entretenimento. Não se trata de um conservadorismo nostálgico, nem de uma

Maria Cristina Castilho Costa

Professora Doutora da Escola de Comunica˘þes e Artes da Universidade de Sıo Paulo

desilusão frente ao presente, mas da necessidade de uma avaliação consistente desse passado que tantos esforços fizemos por deixar para trás. Trata-se da seleção daquilo que realmente foi fundamental e sem o que o presente fica destituído de qualquer sentido. Esse sentimento de resgate e de reconstrução permeia as políticas consistentes e os projetos mais ambiciosos que lutam por disciplinar o passar do tempo, submetendo-o ao tempo histórico e ao ritmo própria vida.

Nesse processo se encontra também a cultura brasileira, tão abalada pelas transformações dessa pós-modernidade, pela rapidez das modificações históricas, que tornam urgente uma avaliação criteriosa daquilo que somos, do que nos pertence e do que nos constitui. E é para esse trabalho de resgate, revisão e reconstrução de nossas heranças que o trabalho de Walter de Sousa vem contribuir. Jornalista, especialista e mestre em Ciências da Comunicação, ele vem registrar e legitimar uma das mais genuínas fontes de nossa identidade: a cultura caipira – mestiça, híbrida e polifônica cantada em verso, prosa e viola.

Nesse movimento ele não está sozinho. Também é longa a fila dos poetas, escritores, compositores, historiadores e cientistas que buscam nessa fonte as raízes de nossa história e de nossa cultura. Mário de Andrade, Alcântara Machado, Antonio Cândido, Jorge de Andrade são alguns dos parceiros desse Rio Bonito no qual navega a obra de Walter de Sousa que, como em outras artes em que andou metido, tive o prazer de acompanhar.

Repleto de informações, rico em detalhes, poético na linguagem e preciso na reconstrução histórica, o texto reaviva nossos sentidos e mergulha fundo em nossas origens, permitindo entender também o papel da produção cultural e da mídia na construção desse edifício chamado Brasil. E para não me alongar retardando a curiosidade do leitor só posso terminar com um conselho: Prepare seu coração para as coisas que ele vai contar

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AApresentação

Apesar de nascido em Mogi das Cruzes, não convivi com violeiros, embora tivessem me fascinado o batuque das Congadas, os bate-paus do Moçambique e as fitas coloridas da Marujada, tudo em plena Festa do Divino Espírito Santo, que coroava o mês de maio. No entanto, sempre ecoou em minha memória um poema solenemente recitado por meu pai durante algumas festas familiares. Dizia: “Lá no arto da montanha,/Numa casinha estranha/Toda feita de sapé,/Parei uma noite o cavalo/Pra mor de dois estalo/Que ouvi lá dentro bater./Apeei com muito jeito,/Ouvi um gemido perfeito,/Uma voz cheia de dô:/- Vancê, Tereza, descansa,/Jurei te fazer vingança/Pra mode do meu amô./Pela réstia da janela,/Por uma luzinha amarela/De um lampião quase apagando/Vi uma cabocla no chão/E o cabra tinha na mão/Uma arma alumiando./Virei meu cavalo a galope,/Risquei de espora e chicote/Sangrei a anca do tá./Desci a montanha abaixo/E galopiando meu macho/O seu dotô fui chamá./Vortemo lá pra montanha,/Naquela casinha estranha,/Eu e mais seu dotô./Topemo um cabra assustado,/ Que chamano nós prum lado/A sua história contô.”

Tudo era declamado como preâmbulo para que entrasse a toada lenta de Cabocla Tereza, um dos maiores sucessos da dupla Raul Torres e Florêncio, um clássico caipira composto por João Pacífico, que havia embalado a juventude interiorana de meu pai.

O empenho do presente trabalho, de percorrer a trajetória da chamada música caipira, talvez tenha nascido daí. O intuito aqui, entretanto, não é o de defender qualquer tipo de purismo musical, o que seria impossível num país de tamanha riqueza rítmica e de intensa mistura musical, ou de soprar as brasas de um passado distante, o do ruralismo romântico, que só estaria presente na poesia do caipira. Aliás, essa é a questão central do trabalho: averiguar como o discurso simbólico do caipira, aliado à sua peculiar musicalidade, se manteve vivo em meio às transformações sociais vividas pelo país e, conforme a tendência das últimas décadas do século 20, no mundo “globalizado”, na pós-modernidade.

A essência do caipira revela um modo de ser alheio aos acontecimentos históricos. Embora em termos sociais o mundo tenha caminhado para um cenário mundializado, em que o dinheiro é um imperativo histórico – isso quando deveria ser o ser humano – o

Apresentação
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Apresentação

espírito da simplicidade voluntária permaneceu no imaginário cultural, dentre outras, por meio da manifestação da música caipira.

Mesmo após ter passado por várias influências musicais, a música essencialmente caipira permaneceu no cenário cultural a partir de diversas manifestações: no seu formato original, dando suporte à chamada MPB (Música Popular Brasileira), através do reconhecimento da viola como instrumento de intensa harmonia, ou como base para a música “sertaneja”.

A reflexão feita aqui sobre a música caipira é dividida em três partes. A primeira delas compreende suas bases antropológicas, sociológicas e psicológicas. Optou-se por uma estrutura mais “euclidiana” (de Euclides da Cunha, claro): o caipira, a música, a poesia. Para não perder a referência literária, essa primeira parte se intitula Veredas folclóricas. Nela não houve uma preocupação histórica, isso no sentido de discorrer historicamente sobre as origens do caipira paulista, da música de viola ou da poesia dos cururus. A intenção foi localizar as bases do que seria depois, com o início das gravações fonográficas, a música caipira. Assim, a reflexão parte do mal-entendido que abre o século passado, protagonizado, infelizmente, por um dos mais prolíficos escritores do mesmo período: Monteiro Lobato e seu infeliz Jeca Tatu.

Já a musicalidade caipira é analisada a partir da miscigenação que gerou o povo brasileiro. Assim, viola, cateretê, fandango e congadas são termos que vão surgindo a partir da chegada do português, da catequese do índio, da influência ibérica e do ritmo do negro africano escravizado.

Essa primeira parte se encerra com a análise do falar caipira e sua poética simplória, suas metáforas recorrentes e seus versos dobrados.

Segue-se, então, para a história da música caipira propriamente dita, agora sobre o fio histórico iniciado propositalmente em 1922, ano de importantes semanas e sangrentos levantes. Os quatro capítulos dessa segunda parte constituem o miolo da história da música caipira, e compreendem duas décadas intensas, as de 30 e 40, embora abarquem os últimos anos da década de 20, que antecederam as primeiras gravações fonográficas do gênero musical. A música caipira, como constata-se hoje, sobreviveu às décadas seguintes e, por incrível que pareça, adentrou o novo século. A questão é que a partir dos anos 50 as influências estrangeiras ao estilo se intensificaram. O período coberto pela segunda parte, Música popular: identidade, disco e rádio, apesar de seguir a linha histórica, tenta dar uma visão geral do tipo de música feito sob a ingenuidade de tempos em que os meios de comunicação de massa ainda não eram movidos pela ideologia do consumo, embora já caminhasse para isso. É quando se dá a divisão entre música caipira e música “sertaneja”, cujo advento acontece na década seguinte, a de 50, e se torna hegemônica já no final do século.

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Apresentação

A terceira parte deste trabalho, Música de massa: sertanejo, eletrônico e romântico, se inicia com as primeiras influências latinas ao estilo rural brasileiro, dentre elas as da guarânia paraguaia e da rancheira mexicana. Tais mudanças ocorrem a partir da década de 50, assim como o aparecimento do nome “música sertaneja”, atribuída inicialmente ao bolero romântico interpretado por duplas em canto diferenciado por terças, ou seja, a configuração própria do cantar caipira.. O público da música sertaneja deixa de ser aquele que se transferia do campo para os grandes centros urbanos e buscava a nostalgia da vida rural e passa a ser a massa periférica das grandes cidades que já absorveu o modo de vida urbano. Seu foco discursivo abandona as metáforas rurais para se entregar ao romantismo rasgado.

O processo prossegue até abarcar a Música Popular Brasileira, vertente derivada do estrondo da Bossa Nova, e, enfim, o pop-rock, este o grande homogeneizador mundial da música de massa a partir da segunda metade do século 20.

A idéia de pesquisa tão intensa, que consumiu três anos de estudos e “garimpo” de fontes e referências nos sebos de livros, bibliotecas e na Internet, além das entrevistas feitas com os representantes da música caipira, foi semeada em campo fértil a partir de um show do violeiro urbano Passoca, no SESC Ipiranga, em 1998, ano em que foi lançado também o CD Violeiros do Brasil, uma iniciativa dos produtores Myriam e Benjamin Taubkin.

Mais tarde, procurando já juntar material para escrever algo sobre a música caipira, me arrisquei a consultar o acervo do Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Lá encontrei a própria voz de João Pacífico, compositor nascido em Cordeirópolis, interior de São Paulo, que fez com que me deliciasse com os sem-número de histórias sobre a música caipira. Era o final de 1999 e, quando iniciou-se o novo ano, recebi, atônito, a notícia de que ele morrera nos primeiros anos do novo milênio.

A oportunidade de tornar a pesquisa mais consistente em termos de estrutura, veio com o curso de Gestão de Processos Comunicacionais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Foi aí que o trabalho ganhou estrutura.

Agradeço, pois, em primeiro lugar, aos professores doutores daquele curso: Maria Aparecida Baccega, Maria de Lourdes Motter, Adílson Citelli, Luiz Roberto Alves, Solange Martins Couceiro de Lima, Ismar de Oliveira Soares e Maria Immacolata Vassalo de Lopes. E, em especial, à minha orientadora, Maria Cristina Castilho Costa.

Agradeço ao então diretor do MIS, Marcos Santilli, que subscreveu a idéia e abriu o acervo do museu para a pesquisa. Aos artistas, cantores e violeiros que concederam entrevistas sobre a música caipira: Inezita Barroso, bem como seu impagável empresário Synésio Júnior, que nos receberam em noite inesquecível no hoje extinto restaurante Parreirinha, no centro de São Paulo; a dupla Célia e Celma, que além da entrevista nos deu o prazer de

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degustar a “mangada”, doce de manga Ubá; Paulo Freire, que deu o incentivo inicial quando estive em seu show com Ivan Vilela e Renato Andrade, em 1998, e que nos recebeu em sua casa; o talentoso Rodrigo Mattos, voz e viola semelhantes aos de Tião Carreiro, o que não é pouco elogio, e a sua tia Maria do Carmo cuja habilidade de preparar leitões assados só não é maior que a sua hospitalidade; ao Tião do Carro, cuja sensibilidade caipira nos brindou com uma manhã de recordações, histórias e emoção. Enfim, à oportunidade também proporcionada por Maria do Carmo de presenciarmos Célia e Celma, Cacique e Pajé, Rodrigo Mattos e Téo Azevedo tocando juntos num domingo de violas na zona leste de São Paulo.

À ajuda, via Internet, de Ivan Vilela, Roberto Corrêa, Chico Lobo, Mauro Romero, professor doutor José de Souza Martins e Marlon Florian.

Aos amigos que concorriam em me mandar material, acreditando poder me ajudar na pesquisa – e que de fato ajudaram – ou simplesmente apoiavam deliberadamente a idéia de entender melhor a música caipira: os jornalistas Valmir Santos, Joaquim Ferreira, Márcia Milanésio e Regina Moldero; os fotógrafos Paulo Pepe, Valdemi Silva e Eliane Cunha; o videomaker Aleph Teruya Eichemberg, que registrou as entrevistas em vídeo, e seu pai Newton Eichemberg, grande amigo; à Carmen Lígia Torres, pelas horas avançadas na noite nas quais discutimos as mediações da comunicação; a Eduardo dos Santos, que enviou pesquisas feitas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; ao pesquisador Israel Lopes, que postou de São Borja (RS) o pequeno mas precioso volume Turma Caipira Cornélio Pires – Os Pioneiros da Moda de Viola em 1929, de sua autoria; e aos colegas do curso de gestão. Ao colecionador Antonio Mortarelli, de Limeira (SP), que abriu seu precioso acervo de discos e revistas da música caipira, que ilustram maravilhosamente este trabalho. Ao Ricardo Oliveira, da Quiron Comunicação, veterinário, violeiro, guitarrista e, fortuitamente, o editor desse livro, que acreditou e apostou no trabalho. Agradeço, enfim, à Jacqueline Pithan dos Santos, pelo apoio e paciência, e à minha filha Beatriz, que nasceu antes do término da pesquisa.

E ao meu pai, Walter de Sousa, que, lá em Mogi das Cruzes, continua recitando João Pacífico.

W.S.

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Parte

V V V V Veredas folclóricas: eredas folclóricas: eredas folclóricas: eredas folclóricas: eredas folclóricas:

o caipira, a música, a poesia o caipira, a música, a poesia o caipira, a a
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1. “Caipiras...” Mas que são os caipiras?1

“Você pode ser caipira/Não lhe custa, é só tentar” Medo de que? que? Medo de que? que? – Renato Teixeira

Antes, o caboclo, o Jeca...

Antes, o caboclo, o Jeca...

Antes, o caboclo, o Jeca...

Antes, o caboclo, o Jeca... o

Um polêmico artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 23 de dezembro de 1914, assinado por um fazendeiro da Serra da Mantiqueira, denunciava uma “estranha” movimentação humana nas encostas do Rio Paraíba. Enquanto o progresso, ideal positivista expresso no lema da bandeira republicana, era assumido pelo cidadão urbano, de modo a querer alastrá-lo da capital para o Interior paulista, tal onda ia empurrado uma singular figura humana para uma espécie de fronteira entre o moderno e o arcaico. Esse mesmo fazendeiro, no mês anterior, em 12 de novembro, enviara uma primeira carta à seção “Queixas e Reclamações”, do mesmo jornal, para denunciar aquele “funesto parasita da terra (...), espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização”, que, numa terminologia étnica, era denominado “caboclo”, fruto da miscigenação do branco e o índio.

Em seu segundo artigo, o fazendeiro piraquara tratava do mesmo fenômeno social com um tom mais literário – aliás, uma fresta que revelava aquele que seria um dos mais prolíficos escritores paulistas do século. O pobre “parasita” recebeu, então, um nome: Jeca Tatu. E era comparado a uma pequena orelha de pau podre, “o sombrio urupê a modorrar silencioso no recesso das grotas.”

Assim Monteiro Lobato o fixava no espaço-tempo daquele início de século XX:

1 Indagação de Cornélio Pires na sua “Seleta Caipira” (1929).

Lobato: “escorregão” literário sobreviveu ao reconhecimento que o jeca é “A melhor coisa nesta terra”.

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Folcloricas

“Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o país desperta estrovinhado à crise duma mudança de dono, o caboclo ergue-se, espia e acocora-se de novo.

Pelo 13 de maio, mal esvoaça o florido decreto da Princesa e o negro exausto larga num uf! o cabo da enxada, o caboclo olha, coça a cabeça, ‘magina e deixa que do velho mundo venha quem nele pegue de novo.

A 15 de novembro troca-se um trono vitalício pela cadeira quadrienal. O país bestifica-se ante o inopinado da mudança. O caboclo não dá pela coisa.

Vem Floriano; estouram as granadas de Custodio; Gumercindo bate às portas de Roma; Incitatus derranca o país (O presidente Hermes da Fonseca!). O caboclo continua de cócoras, a modorrar...

Nada o desperta. Nenhuma ferroada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se.”

A caricatura do caboclo desenhada por Lobato sintetiza uma crítica ao brasileiro genuíno, mas arcaico, o que contrastava com a efervescência européia da modernidade. Na sua opinião, o Brasil se recolhia, de cócoras, à sua incivilidade. O Jeca Tatu – nome tomado de empréstimo do neto de uma certa velha Gertrudes, que o autor conhecera vinte anos antes na estrada da Fazenda Paraíso, próximo a Taubaté, estava alheio à história do seu país. Estacado, apoiado nas próprias panturrilhas, as plantas dos pés agarradas ao chão batido, o Jeca desconstruia a imagem do “homem natural” idealizado por Jean-Jacques Russeau. O pensador francês havia erigido uma alegoria filosófica a partir dos relatos de Américo Vespúcio contidos na carta Mundus Novus, enviada a Francesco d`Medici em 1502, após sua viagem de reconhecimento ao litoral brasileiro. As descrições do selvagem tupinambá levaram Rousseau a concluir que a civilização degenerava os valores morais do ser humano. O ser primitivo, que teve a felicidade de viver antes do processo civilizatório, estava próximo das suas necessidades naturais, orientado por uma inocência inata. Esse homem ideal serviu, enfim, de parâmetro ao romancista José de Alencar para definir literariamente o seu Peri, personagem central do romance O Guarani, publicado no formato de folhetim em 1857.

Com a chegada do século XX, as locomotivas, os automóveis, a urbe e as linhas de produção aceleraram a velocidade da civilização moderna. Diante dessa dinâmica sedutora o fazendeiro da Serra da Mantiqueira acreditava que não dava mais para crer naquilo que Rousseau concluiu inspirado pelo primitivo brasileiro. Contra o que chamava de “idealismo do selvagem” Lobato contra-argumentava apontando os recentes contatos mantidos por Cândido Rondon com os indóceis índios brasileiros.

Já o seu Jeca Tatu era a versão caricatural do “homem primitivo”, pois oscilava, atônito, entre o selvagem e o civilizado. Alheio ao movimento da modernidade – aliás, o símbolo da pré-modernidade – e surdo aos fatos políticos de seu país, ele passava o tempo acocorado. E, certamente alheio a toda essa discussão político-filosófica, Jeca Tatu, o caboclo, o caipira paulistano, continuou acocorado, mais preocupado com sua roça de milho do que com as críticas levantadas pelo futuro escritor.

Se no discurso político-literário os argumentos de Monteiro Lobato eram bem estruturados, eles se apresentavam falhos sob uma análise antropológica, ou mesmo sociológica. Seria o Jeca Tatu a caracterização perfeita do caboclo paulista? No Urupês, nome do tal artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo e que mais tarde, em 1918, daria nome ao primeiro livro do escritor, os traços do caboclo eram assim delineados:

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Veredas

Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie.(...) Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforço – e nisto vai longe.

É, com o trecho, que Lobato introduz o personagem no imaginário literário popular. Recorrendo ao vocabulário garimpado por Amadeu Amaral, e que compõe parte do livro O Dialeto Caipira (1920), descobre-se que “piraquara” é o habitante das margens do rio Paraíba do Sul, que nasce na cidade serrana de Paraibuna e segue entre as serras do Mar e da Mantiqueira até a divisa entre os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Taubaté, terra natal de Monteiro Lobato, encrava-se neste vale. Portanto, o autor de Urupês é ele próprio um piraquara.

O caldeirão cultural das primeiras décadas do século acabou transformando o caipira em sinônimo da figura caricatural do Jeca Tatu. Afora a estrondosa polêmica suscitada pelo artigo Urupês, Lobato abandona a vida na fazenda do Buquira, em Taubaté, e se transfere para a capital, onde chega já reconhecido como escritor-publicista. O ano é 1917 e ele junta doze contos – suas primeiras incursões literárias – às duas cartas enviadas ao O Estado de S. Paulo, enfeixando-os em seu primeiro livro. Segundo cálculos do autor, em 1923, cinco anos após a publicação, o Urupês já havia alcançado a vendagem de 109.500 exemplares, o que fez a fama de Jeca Tatu em todo território nacional.

O “causo” do Jeca tomou vulto mesmo a partir do instante em que Lobato obteve o apoio voluntário do eminente político Rui Barbosa. O personagem servira de ilustração ao seu discurso A Questão Social e Política no Brasil, proferido no Teatro Lírico do Rio de Janeiro em março de 1919, durante sua campanha à Presidência, eleição que perderia para Epitácio Pessoa. Com isso, a polêmica suscitada pelo Jeca teve que tomar outro rumo. Do ataque direto, Lobato passou a reconhecer que o caipira não era atrasado por um determinismo atávico, mas por ser fruto do subdesenvolvimento do país. Apontou, na quarta edição do seu livro, que o Jeca era daquela mesma forma, “sem tirar uma vírgula”, mas ainda era “a melhor coisa desta terra”. O ataque, então, passou a ser endereçado a outros tipos sociais, aqueles que “falam francês, dançam o tango, fumam havanas e são senhores de tudo”. No fundo, Lobato fazia uma autocrítica, se retratando diante do próprio personagem:

Assim, é com piedade infinita que te encara hoje o ignorantão que outrora só via em ti mamparra e ruindade..

Polêmicas e discussões políticas à parte, a principal proeza de Lobato já estava consumada, que foi a de eternizar, numa penada, o coitado do Jeca. Um ano após adquirir a Revista do Brasil em 1918, e começar a empreender a sua jornada editorial, tão importante à história literária do país, Monteiro Lobato publicou Idéias de Jeca Tatu. No livro, esmiuça suas posições políticas e literárias. Naquela altura, já o sabia, se confundia com o próprio personagem Jeca Tatu.

Lobato não usa o termo “caipira” em seus artigos para se referir ao Jeca. Talvez por ser, ele próprio, um piraquara, não quis chamar seu personagem de caipira, nome mais usado nas cidades que margeiam o rio Tietê. Prefere “caboclo” para se referir ao mestiço do branco português com o índio, que constitui o paulista por excelência, aquele que ocupou o Interior desde as primeiras décadas após o descobrimento.

O termo caboclo é bem antigo. Já no final do século 16, a palavra tupi caá-boc, “procedente do mato”, era usada para designar o índio. O vocábulo chegou a ser grafado cabocolo, no século seguinte, e virou cabôco e cabouculo na linguagem do próprio.

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Não se sabe ao certo a origem da palavra caipira. Amadeu Amaral, no seu estudo sobre o dialeto caipira, “traduz” o vocábulo como “habitante da roça, rústico”. E aponta que na Portugal oitocentista era a palavra que os “realistas” usavam para chamar seus inimigos históricos, os “constitucionais”, durante o confronto que durou de 1828 a 1834. Ainda em Portugal, na região do Minho, o termo é sinônimo de sovina, avarento.

É certo que, por designar o caboclo, a palavra tem uma raiz indígena. Outros termos correlatos são apontados como originadores da palavra “caipira”: caapora ou curupira, ambos usados para designar demônio ou duende do mato; caipora (infelicidade, má sorte); ou caa-pira (arrancador de mato). Uma pesquisa mais apurada vem de Cornélio Pires, o primeiro estudioso a levar a cultura caipira ao centro urbano na sua forma genuína, folclórica. Ele vai encontrar o sinônimo em tupiguarani para o termo “aldeão”, que é capiâguara. A raiz dessa palavra, caí, significa o gesto do macaco escondendo o rosto. Ela aparece em capipiara, “o que é do mato”, e em capiã, “dentro do mato”. Enfim, aparece em caapi, “trabalhar na terra” e em caapiára, “lavrador”. Donde, enfim, redundaria em “caipira”.

Ao definir os traços caricaturais do Jeca Tatu, Lobato presenciava o romper de um tempo de intenso antagonismo, e que avançaria o século. A exemplo do que ocorreu em toda a América Latina, os ecos desenvolvimentistas vindos da Europa se chocavam com as culturas arcaicas locais. Ou seja, a história local era forjada a partir do confronto entre essa modernidade e o canto miúdo dos índios, o ritmo dos negros e a “mamparra” do caboclo.

Esse “escorregão” literário, que não pôde ser corrigido nem pelo próprio Lobato, se incorporou ao rol dos estereótipos “montados” no imaginário que buscava formalizar uma “identidade nacional”. Descalço, barriga cheia de vermes, olhar modorrento, a barbicha rala e o corpo indolente, Jeca Tatu diferia radicalmente da imagem retratada pelo pintor José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899) a partir de sua acurada observação do gestual caipira. Nas telas pintadas a partir de 1890,

Injúria imperial Injúria imperial Injúria imperial Injúria imperial Injúria imperial

Durante a colonização, o termo “caboclo” se popularizou rapidamente como sinônimo de índio. Assim foi até o final do século 18. O sentido de mameluco, descendente de branco com índio, seria relacionado ao termo somente no século seguinte. Tamanha foi a popularização do termo “caboclo” entre os gentios que o fato acabou desagradando a Corte portuguesa.

Dom José, rei de Portugal, assinou o seguinte despacho em 4 de abril de 1755: “Proíbo que os ditos meus vassalos casados com as índias ou seus descendentes sejam tratados com o nome de cabouçolos, ou outro semelhante que possa ser injurioso”. Como nem lei gramatical trava a língua do povo, o termo resistiu à determinação real.

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ele vai buscar nas cenas cotidianas do caipira a matériaprima de sua expressão plástica: seja afiando um machado (Amolação Interrompida), picando fumo (Caipira Picando Fumo, 1893) ou ponteando uma viola (Violeiro, 1899). Era, na sua experiência artística, um rompimento com o modelo europeu de pintura – antecipando em três décadas o Modernismo! – ao mesmo tempo em que buscava reproduzir a alma caipira. No entanto, a visão de Lobato prevaleceu, amparada pelo discurso político e reforçada pelo estereótipo – este ideal para o plano cultural que ia se constituindo no preâmbulo de um tempo de transformações.

A ocupação do sertão ocupação do sertão

A ocupação do sertão ocupação do sertão

Certamente, o caipira se manteve impassível, acocorado diante da polêmica iniciada por Lobato. Mas, antes de o escritor piraquara descobri-lo, por quantos caminhos não teria andado? Como se formou o caipira?

A ocupação do território brasileiro aconteceu lentamente. Desde a descoberta de Pedro Álvares Cabral, em abril de 1500, a Terra dos Papagaios pouco fora cobiçada pela Coroa. Como comprovou Américo Vespúcio em sua carta Mundus Novus, nada sobressaía aos olhos que justificasse a colonização efetiva da terra descoberta. Segundo suas próprias palavras, não havia “nada de proveito, exceto uma infinidade de árvores de pau-brasil”. Aliás, madeira eficiente no tingimento de fazendas de linho e algodão, e que garantiam ao tecido o tom carmim, muito apreciado pelos nobres europeus. A princípio, a Coroa resolveu entregar a Colônia a um consórcio privado de cristãos-novos (judeus convertidos ao Cristianismo) liderado por Fernando de Noronha, que explorou o pau-brasil durante quase dez anos, de 1502 a 1511. Até a chegada de Martim Afonso de Sousa, em fevereiro de 1531, que havia sido incumbido pelo rei D. João III de impor ordem na Colônia, o Brasil tinha como população “branca” somente degredados portugueses, alguns náufragos e vários europeus que se aventuravam à terra nova para contrabandear o valioso pau-brasil.

Ao desembarcar em São Vicente, Martim Afonso de Sousa tinha a intenção de estabelecer um posto avançado na “porta de entrada do sertão”, ou, como desconfiava-se, próximo à serra da Prata, foco de cobiça de portugueses e espanhóis,

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Moda Inviolada Caipira picando fumo: luz tropical no caipira de Almeida Jr.
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que disputavam o Eldorado de que falaram, em 1514, os índios Charrua, nativos dos pampas. Estes haviam vendido um machado de prata a dois navegadores portugueses que descobriram o estuário do rio Prata, garantindo que nas montanhas daquela região havia um povo com muito ouro e prata. Os espanhóis alcançaram a costa oeste da América do Sul, naquele mesmo 1532, com o sanguinário Francisco Pizarro esmagando o império inca, no Peru. O fato, enfim, acabou desinteressando a Coroa portuguesa de continuar investindo na conquista da costa do ouro e da prata.

Mas para concretizar suas intenções iniciais, Martim Afonso teve de negociar com um iminente traficante de índios: João Ramalho. O português, conhecido entre os índios como Caramuru, tinha nada menos que a índia Bartira, filha de Tibiriçá, chefe dos guaianazes, como uma de suas esposas. João Ramalho foi personagem misterioso, náufrago que chegou à terra brasilis antes dos colonizadores, e que acabou conquistando a confiança dos guaianazes, não se sabe de que forma. Ele não vivia em São Vicente, mas no planalto de Piratininga, serra acima, na “Borda do Campo”, para onde levou Martim Afonso. Vivia em sua vila, rodeado por parentes e filhos em cabanas avançadas na mata, um feito até então inédito a um homem branco na Colônia.

Amolação interropida. quadro de Almeida Jr.

Quando, em 1560, Mem de Sá, já o terceiro governador-geral do país, transferiu João Ramalho de Santo André para a recém-elevada vila de São Paulo, ele desferia uma manobra política para garantir a proteção dos guerreiros guaianazes ao lugar. Daí se percebe o poder de influência que Ramalho tinha sobre os índios. À época, estava por volta dos 75 anos. Morreria em 1580, aos 95 anos, cercado por um vasto rebanho de filhos, netos e bisnetos. Essa virilidade lhe renderia a alcunha de “patriarca dos mamelucos”.

São Paulo, portanto, foi um avanço pioneiro na colonização do interior. Ironicamente, esse feito coube a um aventureiro sem rei nem lei, em vez do bravo Martim Afonso, que expulsara os franceses de Pernambuco, mas que preferiu ter o traficante João Ramalho como aliado. Para isso nomeou-o guarda-mor da Borda do Campo e, em agosto de 1533, voltou a Portugal, apagando o Brasil até de seus manuscritos memoriais.

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Com o fracasso inicial do projeto das Capitanias Hereditárias, D. João III achou por bem nomear um governador-geral para as terras ultramarinas, Tomé de Sousa. Ele chegou ao país em março de 1549, acompanhado de quatrocentos soldados e seiscentos degredados. Na caravela do capitão-mor vieram cinco jesuítas da Companhia de Jesus, dentre eles Manuel da Nóbrega, com 32 anos. Foi a partir da sua insistência junto ao Rei que a Coroa decidiu nomear um bispo para a Colônia. Assim, em junho de 1552, D. Pedro Fernandes Sardinha foi nomeado bispo de Salvador. Seu nome, aliás, está mais ligado ao fato de ter sido devorado pelos índios após ter se salvado de um naufrágio – fato sublinhado por Oswald de Andrade em 1928 ao final do seu Manifesto Antropofágico – do que às obras que teria deixado na Colônia.

Quatro anos mais tarde, em 1553, mais sete jesuítas chegavam ao país. Eram Leonardo Nunes, Vicente Rodrigues, Gregório Serrão, Leonardo do Vale, Gaspar Lourenço, Manuel de Paiva e José de Anchieta. Os frades, abandonando as disputas políticas e eclesiásticas travadas em Salvador pelo bispo Sardinha com o segundo governador-geral, Duarte da Costa, partem para a capitania de São Vicente, onde, enfim, sobem até à ribeira do Rio Tietê. Em 1554, no dia da conversão de São Paulo (25 de janeiro), o jesuíta Anchieta celebra a missa em Piratininga, fundando o primeiro colégio na terra de Tibiriçá, o grande chefe dos guaianazes.

Na época a capitania de São Vicente ainda pertencia a Martim Afonso, que jamais voltou ao Brasil. Até 1557 haviam cerca de dez pequenos engenhos nas proximidades de São Vicente, Santos e Santo Amaro e o planalto paulista oferecia melhores condições de colonização. Por isso a região foi ocupada rapidamente.

Seis anos depois da fundação do colégio, o terceiro governador-geral, Mem de Sá, após ter expulsado os franceses liderados por Nicolas Durand de Villegaignon do Rio de Janeiro, transfere a vila de Santo André à missão de Piratininga, elevando o local a vila. Houve revolta dos tupiniquins, que cercaram o povoado mas foram rechaçados pelos portugueses e pelos índios que viviam sob a catequese jesuítica. Firmavase, então, na vila de São Paulo, um reduto da miscigenação mameluca incentivada pelos próprios padres jesuítas como forma de facilitar a disseminação da doutrina cristã.

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Moda Inviolada Anchieta chega em 1553 com outros seis jesuítas e sobe o planalto paulista
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No entanto, a participação do índio na formação étnica do paulista não foi um processo voluntário. Ao contrário do que aconteceu nas colônias da América, onde os índios foram expulsos dos territórios colonizados pelos imigrantes ingleses, no Brasil os esforços foram direcionados para incorporá-los ao processo de colonização. Vistos inicialmente como mercadorias traficáveis, logo foram interpretados como uma valiosa massa de mão-de-obra que poderia atuar no processo civilizatório. Por outro lado, as missões jesuíticas dirigiram seu foco catequista aos colonizadores leigos, preocupados com a propagação da fé.

Enquanto os portugueses se empenhavam em integrar o índio, tirando-o das selvas e incorporando-o como colono, as missões tratavam de segregá-lo da influência branca leiga. Por isso os padres aprendiam a língua nativa e impunham uma rígida disciplina, de modo a ajustar a população indígena à realidade daquele sistema organizativo de um modo tão pleno que, fora dela, os índios não conseguiriam aproveitar os ensinamentos da civilização.

O ataque dos tupiniquins, em 1562 se repetiu em 1590, quando os colonizadores passaram a espoliar os índios de suas terras. Ao mesmo tempo, os engenhos de açúcar começaram a render riqueza aos colonos da região Nordeste, enquanto a insubmissão dos índios na capitania vicentina não oferecia oportunidades semelhantes. Tal cenário propiciou a criação das chamadas “bandeiras”, companhias onde se agrupavam aventureiros economicamente marginalizados da Colônia, que optavam por sair em busca da oportunidade que a Coroa não lhes dava. Tinham por objetivo o apresamento de índios para conseqüente tráfico e a procura de metais preciosos. Iniciadas dentro do corpo militar, as bandeiras receberam estímulo oficial do sétimo governador geral do Brasil, D. Francisco de Sousa. Para constituir essas milícias, o governador distribuiu divisões militares e deu a ordem para que procurassem ouro e metais preciosos.

As bandeiras eram comandadas por um chefe bandeirante com poderes absolutos. Levavam em suas empreitadas a pólvora e instrumentos de trabalho, como machado, além de pouca comida, sal e sementes, sempre percorrendo os

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caminhos abertos pelos índios ou margeando os rios. Durante o século 16 as bandeiras, atuando de forma concentrada nas encostas do Tietê, praticamente dizimaram os tupiniquins. Enquanto não cumpriam a ordem da Coroa de encontrar ouro, o apresamento de índios custeava as despesas das bandeiras.

O nome “bandeira”, conforme o historiador Capistrano de Abreu, talvez provenha do costume tupiniquim de levantar uma bandeira como sinal de guerra. No entanto o nome já era utilizado desde a idade média para designar as formações militares com 36 homens.

A devastadora atuação dos bandeirantes provocou a reação dos jesuítas, que partiram em defesa dos índios. Os colonos, no entanto, já viam as missões como redutos subvertores da ordem, pois nelas os índios não podiam ser submetidos ao trabalho escravo.

No embate, prevaleceram as bandeiras, que atuaram no sertão paulista por quase dois séculos. O apresamento e a dizimação da população indígena pelo bandeirante deram lugar, já no século XVII, à caça de fortuna mineral. Novamente, a ausência de produção econômica estável, como a agricultura sustentada pela Coroa, levou novas milícias, agora paramilitares, com ação autônoma, a procurar a riqueza fácil das minas de metais preciosos. Tratava-se, pois, de uma espécie de recrudescimento do sonho de descoberta da costa do ouro e da prata, consumada pelos espanhóis, que descobriam – e massacraram – civilizações indígenas na costa do Pacífico. O novo período histórico das bandeiras se

O bandeirante na gravura de Jean-Baptiste Debret: dizimação da população indígena

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inicia em 1672, quando Fernão Dias Paes é convocado pela câmara de São Paulo para realizar pesquisas sobre a existência de minas de prata, ouro e esmeraldas na capitania. Apesar de não terem conseguido reunir a riqueza dos usineiros de açúcar, os bandeirantes consolidaram uma espécie de “nobreza” militar. Sem acumular posses, tinham o respeito da Coroa angariado com a valentia e o “caudilhismo” que representavam entre os gentios. Em suma, dispunham da autoridade necessária para exercer quaisquer cargos de governança.

As bandeiras não encontraram ouro nas terras paulistas. Mas, ao transpor as serras em direção ao território das futuras Minas Gerais descobriram, enfim, as minas fartas. As notícias de riqueza acabaram atraindo estrangeiros aos veios mineiros numa corrida do ouro pouco controlada pelas autoridades coloniais.

O esforço empreendido pelos gentios de São Paulo foi em vão. A economia paulista continuou precária, pois as riquezas das minas não ficaram para os aventureiros de São Paulo. Assim, após promover a dizimação de grandes contingentes indígenas, as bandeiras contabilizaram pouco saldo de metal precioso. Talvez, o que restou do período foi a miscigenação entre o branco e o índio, semeada pelos sertões. Ao mesmo tempo, os bandeirantes avançaram a fronteira do interior plantando mandioca, feijão e milho, vivendo em circunstâncias precárias, se defendendo com o improviso para poder sobreviver.

Restava, enfim, dos dois séculos de colonização, desde a chegada de Martim Afonso, somente uma incipiente agricultura, o que continuou relegando a região à pobreza no século e meio seguinte.

A ocupação das terras

A ocupação das terras A ocupação das terras

A ocupação das terras

A ocupação das terras

Um ano emblemático que se transforma em eixo onde é amarrada e estendida a linha histórica da formação sociológica do caipira é 1765, quando Dom Luiz Antonio de Souza Botelho é nomeado governador da capitania de São Paulo. O autor da nomeação foi o Marquês de Pombal, ministro reformador cuja obra política liberal endossava a liberdade dos índios. Com a intenção de restaurar a simpatia política daqueles que viam na tentativa de escravizar o índio uma estratégia inglória, o Marquês de Pombal convenceu o rei Dom José de que era o momento de libertar os índios das perseguições. Isso porque o bode expiatório do ministro eram os jesuítas, acusados de exercer influência maléfica na estrutura política portuguesa. Por isso perseguiu-os e apropriou-se de suas terras e instituições. A mudança proposta por Pombal era a de que os índios passassem a falar a língua portuguesa e que trabalhassem mediante o recebimento de um salário. Isso aproximou ainda mais o índio do branco colonizador enquanto descaracterizava quase que por definitivo a sua identidade cultural. Ou seja, a proposta abortava o projeto jesuíta, entregando o índio catequizado à sociedade civilizada. Assim, em 1758, foi definitivamente proibida a caça e a escravização dos indígenas, ato que encerrou uma disputa colonialista que perdurava desde a descobertas das terras brasileiras. No entanto, a decisão da Coroa não resolveu de modo eficiente a questão da etnia indígena, pois os índios continuam representando uma raça bastarda ante os colonos portugueses. Mesmo porque a legislação pombalina esvaziou o poderio econômico daqueles que tinham nos escravos índios sua única garantia de riqueza. Para apaziguar a fúria desses colonos subitamente privados de suas posses, o Marquês de Pombal resolve nomear, em 1765, um homem de confiança para proceder ao repartimento das vastas terras paulistas.

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Inicia-se, então, uma nova era na capitania. Os ricos são assentados em fazendas agrícolas ou de gado, enquanto os pobres, em sua maioria índios libertos ou caboclos dispersos, se transformam em agregados das fazendas ou posseiros de terras sem uso.

No mesmo instante em que o cidadão de São Paulo começa a se caracterizar através da mestiçagem mameluca, promovida indiretamente pela legislação pombalina, ele adota, movido por circunstâncias econômicas, um novo estilo de vida, bem diverso da rotina peregrina dos sertanistas e aventureiros bandeirantes, e mesmo dos índios em constante fuga dos perseguidores colonizadores. O índio, transformado em agregado, o branco, assentado na terra, e o caboclo, disperso no território paulista, tiveram, durante o processo, que trocar o passado de aventuras, de plantio nômade, de vida nas barracas de campanha, pelo sedentarismo

Entretanto, dois séculos de vida peregrina deixaram marcas que perduraram pelos séculos seguintes, principalmente na formação do caráter do tipo interiorano, do roceiro, do caipira.

Enquanto o português avançava com sua verve colonizadora, submetendo o selvagem e o sertão à sua força bruta, o índio resistiu até ser “libertado” pela obra jesuítica (ou definitivamente acorrentado pela catequese civilizatória). Essa luta pela posse da terra, usurpada do índio e entregue pela Coroa aos colonos mais abastados, se arraigaria a partir daí no caráter da elite rural, que dominaria o interior paulista até o fim da chamada Primeira República, quando findava a segunda década do século 20. Consolidase desde então a ideologia elitista de que o poder político do colonizador é proporcional à sua posse da terra.

A disputa social, no entanto, não impossibilitou a miscigenação das raças. A mistura de sangue entre o português e o índio deu largos passos, de modo que as camadas sociais intermediárias absorveram a economia de subsistência da coleta e da caça, originária do índio. Dessa forma, o “provisório da aventura” se impregnou na habitação, na dieta e na cultura do paulistano que ia ocupando o Interior.

Antonio Candido, em seu Os Parceiros do Rio Bonito, uma das mais lúcidas análises da vida rural paulista, assinala a transitoriedade como elemento básico do caráter do caipira. Mesmo com a sedentarização do paulista iniciada com o fim da escravidão dos índios, o mameluco, o caboclo, nascido da miscigenação e marginal à distribuição de terras promovida pela

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Moda Inviolada Anchieta e os índios do chefe Tibiriçá, no marco zero da Praça da Sé, em São Paulo
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Coroa, permaneceu sem assentamento. Somente por falta dos títulos de propriedade, é que ele continuou nômade, pulando de terra em terra. Por isso é chamado de “transitório”: permanece na terra até que alguma autoridade ou dono o expulse. Ele não é como o posseiro, que sabe não ser dono da terra enquanto ignora se a própria terra tem dono ou não. O “transitório” é consciente da sua situação ilegal e vive ao deus-dará, atrás de um quinhão de terra para morar e plantar.

Nas três condições de ocupação da terra possíveis ao caboclo – posseiro, agregado (que tem permissão do proprietário para usar a terra) ou transitório – a mais marcante herança cultural do sertanista e do índio permanece em sua alma: ele se adapta ao provisório, em que prevalece a iminência de ter de mudar e começar tudo de novo.

Quando Monteiro Lobato afirma em seu artigo que a casa de sapé do Jeca era “pura biboca de bosquímano”, sem mobília quase, com uma cama de esteira e estrutura que fariam “gargalhar o joão-de-barro”, ele não percebia o espaço improvisado de quem poderia, já na manhã seguinte, estar de partida, em busca de nova terra. Essa característica se impregnou de tal forma ao seu meio de vida, que atitudes interpretadas como a consagração da “lei do menor esforço”, como fez o criador do Jeca, representavam, na verdade, o reflexo da circunstância do viver do caipira. A certeza do transitório, a vida em constante partida, contrasta fortemente com a sanha civilizatória, que busca a previsão do amanhã para assegurar a posse presente, até que a segurança permita o acúmulo futuro.

Para Antonio Candido, boa parte das características sociais do caipira que tentava, malemal, se adaptar ao sedentarismo, permaneceram até o século 20. Dentre essas particularidades estão a cabana primitiva, o vestuário precário – calça e camisa em pano grosso tramado em tear – e a iluminação de candeeiro de barro alimentado com banha de porco ou azeite de mamona. Sua dieta também permaneceu, cópia da adotada pelo sertanista: o milho, o feijão, a mandioca e a cana, que rendia a rapadura e a garapa feitas em casa. Herdadas do índio foram as coletas de frutas, a caça e a pesca, essas últimas apreciadas de forma quase religiosa.

Lobato acusa o caboclo de ser um parasita da terra, pois não hesita em dela tirar o que precisa para sua sobrevivência, sem a previsão do dia seguinte. Enfim, por ser “nômade por força de vagos atavismos”, o caipira não guarda “afinidade” com a terra, o que o leva a atitudes imponderadas como a queimada – com que se regozija: “êta fogo bonito!” –, a caça indiscriminada e a derrubada de madeira valiosa. Como Lobato atribui tudo isso a um cidadão averso à civilização, a leitura do artigo oitenta anos depois empresta a sensação de uma avaliação feita às avessas. Pois não foi o civilizador que abateu as matas, as roças e os bosques sob o argumento “indiscutível” da colonização e do lucro?

Acostumado à agricultura itinerante, mais ecológica, o caipira teve que “reaprender” a plantar após se sedentarizar. Recorreu à queimada porque era a única “tecnologia” de que dispunha. No entanto, como a sua terra era “provisória”, a abandonava após anos de uso sem técnica, o que deixava o solo exaurido.

A ocupação das terras da província de São Paulo, enfim, não aconteceu da noite para o dia, como numa corrida do ouro em que os novos donos puderam “investir” nas suas plantações e rebanhos pecuários. A principal dificuldade era a descapitalização inicial dos donos da terra: prejudicados pelo controle dos portos, que só seriam liberados a partir da transferência da Coroa à

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Colônia, em 1807, não conseguiam escoar sua produção. Além disso, sem poder prosseguir escravizando o índio, e sem capital para adquirir escravos negros, tentavam lidar com a nova ordem social e política.

Já o caboclo, que ia substituindo o indígena puro, dizimado ou miscigenado, espalhou-se pelo território quase selvagem, alheio aos acontecimentos, ocupando-o com sua própria roça e palhoça. Antonio Candido, recorrendo a Rubens Borba de Moraes (Contribuição para a História do Povoamento de São Paulo, de 1935), aponta seis originadores de vilas e povoados no país: 1. o povoador anônimo; 2. as aldeias dos índios; 3. as sesmarias (fazendas); 4. a capela; 5. o pouso das tropas; 6. a fundação deliberada. O caipira, por sua vez, está longe desses centros “urbanos”. Como não detém a posse da terra, se encontra o mais distante possível dos povoados, não se arrogando, enfim, a fundar vilas ou arraiais. Quando muito beira uma ou outra grande propriedade. Ou se entrega ao labor do agregado, morando em propriedade alheia e trabalhando para o “dono da terra”.

Na verdade, o caipira foi se transformando numa espécie de fronteira móvel entre a civilização e o território rural. Inconscientemente, ele dava continuidade ao projeto do bandeirante. Enquanto este desbravava o sertão, o caipira ocupava a terra, derrubava o mato e plantava o roçado. Na seqüência, os proprietários da terra expulsavam o “ocupante”, apropriandose da terra pronta para o plantio. Assim, com a mesma facilidade com que o bandeirante ocupava o sertão do índio (matandoo ou escravizando-o), o civilizador expulsava o caipira para, em seguida, começar a cultivar terreno já limpo, preparado pelo caboclo. Este, por sua vez, refugiava-se em terras mais distantes, reiniciando o ciclo.

Índias e os colonos portugueses: miscigenação que deu origem ao paulista.

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Conhecedor do caudilhismo do proprietário das terras, este favorecido pelo poder político, o caipira prefere se manter à distância, alheio à “civilização”, sentado sobre os próprios calcanhares. Somente um motivo muito justificado será capaz de tirá-lo da sua palhoça para ir até alguma vila. Na maior parte das vezes esse bom motivo era o sal, fenômeno do processo de socialização da maioria dos povoados do planeta. De mais a mais, sua vida era solitária, pouco social, agravada pela distância entre os povoados num tempo de lenta ocupação territorial.

Esse modo de vida atracado, fechado em seus afazeres, permitiu-lhe apenas uma economia fechada, voltada ao seu próprio sustento e ao da sua família. As aglomerações caipiras surgiram a partir de agrupamentos familiares que tinham como vínculos a ligação sentimental ao lugar – não tão forte a ponto fazê-los criar raízes que os fixassem à terra – a possibilidade de práticas de auxílio mútuo e as chamadas atividades lúdico-religiosas.

O “muchirão”, palavra que, segundo Amadeu Amaral pode ter como raiz etimológica o guarani potyron, “por mãos à obra”, nasce de uma espécie de ímpeto inato ao auxílio mútuo, talvez herdado do sangue indígena. Antonio Candido assinala que o “muchirão”, também pronunciado mutirão, geralmente envolve pessoas dos dois sexos em atividades diversas, que vão da construção de casas e colheitas até o “ajudatório” a um vizinho “que esteja apertado”. Ele escreve:

Um velho caipira me contou que no mutirão não há obrigação para com as pessoas, e sim para com Deus, por amor de quem se serve o próximo; por isso, a ninguém é dado recusar auxílio pedido.

Assim, adaptado à sedentarização, o caboclo manteve o espírito aventureiro das bandeiras e do índio tupi, ao passo que vive com sua família e suas crenças religiosas, evitando se submeter aos desmandos de um “senhor”, de um “patrão”.

Testemunha Cornélio Pires:

Os caipiras não são vadios: ótimos trabalhadores, têm crises de desânimo quando não trabalham em suas terras e são forçados a trabalhar como camaradas, a jornal. (...) Ânimo não lhe falta, quando trabalha em suas próprias terras.

Por isso, mais uma vez, encontra no provisório a melhor forma de se adaptar às circunstâncias de exclusão.

As etnias do caipira As etnias do caipira As etnias do caipira As etnias do caipira

Leitor de Jean-Jacques Rousseau, do qual faz algumas citações no seu Viagem à Província de São Paulo, o brasilianista Auguste de Saint-Hilaire não deveria concordar muito com o ideal do homem natural construído pelo filósofo francês. Vindo no aluvião de estrangeiros aportados no Rio de Janeiro após D. João VI abrir os portos brasileiros ao comércio inglês, em 1807, o botânico francês alcançou o país através de uma “missão científica”. Chegou na comitiva do duque de Luxemburgo, embaixador extraordinário da França, em 1816, e encerrou seus estudos seis anos depois, quando retornou à Europa, consagrando o resto da sua vida na organização do material recolhido no Brasil.

Saint-Hilaire redigiu nove volumes sobre suas viagens brasileiras, dentre eles as desventuras na Província de São Paulo, que ganharam publicação em 1851, dois anos antes de sua morte.

Sua passagem por São Paulo aconteceu em 1819. Portanto, quando o paulista, fruto cada vez mais freqüente da miscigenação do índio com o branco, já estava bem arraigado à terra, absorvido nas fazendas agrícolas, nas estâncias pecuárias ou nos engenhos de cana.

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Vindo de Minas Gerais, o trecho paulista percorrido pelo pesquisador francês se iniciou em Franca, seguindo até Mogi-Mirim, Campinas e Jundiaí, na região nordeste da Província, passando pela capital e iniciando novo rumo a sul, alcançando Itu, Sorocaba, Itapetininga e Itapeva. De tantas surpresas que os trópicos lhe reservavam, dentre espécies botânicas, crenças estranhas aos ouvidos europeus e os tormentosos borrachudos, o viajante se espantou sobremaneira com os paulistas, que julgou “não pensarem”, isso “talvez por excessos venéreos prematuros”, o que os levava a vegetar “como árvores, como as ervas dos campos”. Em sua maior parte se convertiam em agregados, “indivíduos que nada possuem de seu e que se estabelecem em terreno de outrem”.

Usando como referência os hospitaleiros mineiros das comarcas de São João d’El Rey, Ouro Preto ou Sabará, “mais ativos, muito mais inteligentes, menos grosseiros”, lamentava a ascendência mameluca do paulista. Chegou mesmo a qualificar o caboclo como uma mestiçagem inferior, isso “relativamente à inteligência”.

Afora seu apurado preconceito, Saint-Hilaire também comete o erro de generalizar sua análise, estendendo um aspecto estereotipado ao caipira, chegando ao extremo de julgá-lo, por ser mameluco, “bem menos inteligente”.

A despeito das análises eugênicas do botânico francês – que teve o volume São Paulo nos Tempos Coloniais publicado pela editora de Monteiro Lobato em 1922 –, certamente o caipira, da maneira que chega ao século XX, se formou no ritmo

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lento da miscigenação, de modo que resultou não só da mistura do branco com o índio mas também a do negro com ambos. O negro foi introduzido na Colônia logo nos primeiros anos de ocupação das terras. Mas foi somente com o fim da escravidão dos índios, mais precisamente nos primórdios do século XIX, que as importações africanas se intensificaram. A proximidade do branco propiciaram igualmente intensa miscigenação, embora o negro tenha alcançado o fim daquele século respondendo por um terço da população brasileira.

Ao contrário do que Saint-Hilaire proclamou, o povoamento da Província de São Paulo não aconteceu exclusivamente pela aglomeração de mamelucos. Cornélio Pires, reunindo argumentos para desmentir o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, enumerou alguns “tipos” étnicos no artigo O Caipira como Ele É, que abre sua Seleta Caipira, publicada em 1929. A análise chega mesmo a localizar socialmente cada um deles.

O caipira nobre, explica, é o caipira branco, descendente dos colonizadores, dos ricos que perderam terras e posses com as idas e vindas da política desastrosa da Coroa portuguesa. São os que possuem melhor situação social, “os filhos freqüentam escolas a lombo de pangaré” e são sempre proprietários de terras. São devotos de São João e Santo Antônio e vestem paletó, lenço ao pescoço e calça de riscado.

No prato oposto da balança está o caipira caboclo, “descendente direto dos bugres catequizados pelos primeiros povoadores do sertão”. Seu tipo físico é aquele retratado à exaustão nas charges traçadas para dar vida ao Jeca Tatu: magro, cabelos grossos, barba rala. Durante o período de escravidão negra trabalharam nas fazendas como capitães-do-mato, o que os fizeram herdar a desconfiança dos negros. Aliás, por isso é rara a ocorrência do cafuzo ou caburé, a mistura do negro com o índio.

A indolência do caipira caboclo é que serviu de inspiração a Monteiro Lobato. Passa o tempo a caçar, a pescar, a dormir, a fumar e a beber cachaça. “Ele não tem culpa... Ele nada sabe. (...) O seu filho, atraído pela cidade e pela farda, vai passando por uma metamorfose brusca, demonstrando perfeitamente que é inteligente, fortíssimo – por natureza ou por milagre – e ágil como poucos” , ressalva Pires.

A segunda metade do século XIX e a virada do século XX trouxeram novos elementos às vilas paulistas: o negro escravo libertado, já bem misturado ao branco; e o imigrante estrangeiro, em boa parte o italiano, embora houvesse colônias portuguesa, espanhola, japonesa e turca (nome genérico para os povos do Oriente Médio). Esses novos elementos, no entanto, não modificaram o modo de vida do caipira, que se manteve alheio às mudanças, se tornando refratário aos modos da vida moderna.

Da mistura com o negro, Pires aponta dois outros tipos: o caipira “preto” (negro) e o caipira mulato. Enquanto o primeiro também é roto e esfarrapado como o caboclo, o segundo, que nasce do português com o negro, é vigoroso, altivo e independente. O caipira negro tornou-se ótimo trabalhador nas fazendas dos colonos italianos e passou a atrair “uma estranha simpatia da italiana”. Também o mulato é cortês e galanteador com as mulheres. Característica que faz a mescla crescer, transformando, enfim, o caipira no paulista indistinto de raça. Pires vai mais além. Conclui seu bem-humorado

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estudo revelando o aparecimento de um “novo” caipira que, aliás, avança os limites da colonização do país: “é o mestiço italiano com a mulata ou do preto tão estimado por algumas italianas”.

Pires sabia o que estava dizendo. Nascido em Tietê, possuía uma forte “linhagem” caipira, que se esforçou em divulgar a partir de 1910, quando encenou na Universidade Meckenzie, na capital, um típico velório caipira, com cateretês e cururus conduzidos por exímios violeiros.

No mesmo livro que definiu as etnias caipira, ele parece querer encerrar a discussão com um saboroso soneto, batizado A Origem do Caboclo:

O caipira Cornélio

Pires: “semo fio de Deus como vancêis!”

- O senhor por acaso não descende

Dos bugres que moravam por aqui?

- Hom’eu num sei dizê, vancê compreende que essa gente inté hoje nunca vi.

Mais porém o Bernardo diz-que intende

Que os moradô antigo do Brasi

Gerava de macaco!... Inté me ofende

Vê um véio cumo ele, anssim, minti.

Dôtra feita um caboclo – aí um caiçara

Diz-que nascium de dois inté de treis

Quano estralava um gomo de taquara!

Nóis num temo parente portugueis,

Nem mico, nem quati, nem capivara...

Semo fio de Deus como vanceis!

Cornélio Pires escreveu livros e livros contando “causos” de caipiras, anedotário que revela as nuanças do caráter e da perspicácia do caboclo. Embora ele se utilize da narrativa literária, pitoresca, a história em si, nasce do imaginário caipira.

Recorrendo mais uma vez ao artigo O Caipira Como ele É, Pires define da seguinte forma o caráter do caipira:

Nascidos fora das cidades, criados em plena natureza, infelizmente tolhidos pelo analfabetismo, agem mais pelo coração que pela cabeça. Tímidos e desconfiados ao entrar em contato com os habitantes da cidade, no seu meio são expansivos e alegres, folgazões e francos; mais francos e folgazões que nós outros - não vai nisto exagero - são incontestavelmente mais argutos, mais finos que os camponeses estrangeiros. (...) Dócil e amoroso é todo camponês; sincero e afetivo é o caipira.

É certo que sua docilidade e humildade advém da capacidade de ter se adaptado a viver com o pouco que tem. Talvez a proximidade da terra e a convivência com os ciclos da natureza o tenham tornado menos exigente consigo

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próprio ao mesmo tempo que o alimentou com a noção de harmonia e gentileza. Há uma espécie de moral e ética a guiálo em suas relações com parentes ou “compadres”. No estudo Populações Meridionais do Brasil , Oliveira Vianna delineia quatro qualidades fundamentais encontradas no caráter do caipira: fidelidade à palavra dada, o que denota integridade e seriedade, qualidade reforçada pela sua probidade ; respeitabilidade pelo próximo e por si próprio, suas crenças e credos; e independência moral, característica que reforça sua gênese quase isolada da comunidade. Portanto são aspectos positivos invejáveis a qualquer cidadão.

Enfim, quem é o caipira?

Enfim, quem é o caipira?

Enfim, quem é o caipira?

Enfim, quem é o caipira?

Enfim, quem é o caipira?

Com certeza não é uma única face das tantas reveladas pelos estudiosos caipiras, natos ou adotivos. Não se resume ao caipira histórico, nascido das relações de poder entre o colonizador e o índio. Aliás, o caipira é a síntese dos dois polos, é o mameluco. E também do negro e do italiano, dos colonos vindos com os ventos da virada do século 20. Também não é o caipira inculto, entrave da civilização moderna, que torce o nariz à velocidade futurista das locomotivas e aos modernos meios produtivos. Sua opção aversa à modernidade ocorre de uma atitude inata de recolhimento, não de enfrentamento, pois a caipira, comprovando sua essência para o fronteiriço, paira entre a pré-modernidade e a modernidade.

Resta, enfim, encontrar em meio às análises e interpretações, algumas pistas que revelem uma espécie de “arquétipo” do caipira. Arquétipo porque sua condição fronteiriça, tanto social quanto cultural oferecem alguns sinais que emergem não só de sua história, de seus traços psicológicos, ou de sua maneira de se relacionar socialmente, mas diretamente da sua “alma”.

Algumas dessas pistas se tornam visíveis a medida que as diversas faces começam a se espelhar. Do caráter provisório da sua realidade surge o desapego. Aprendiz da transitoriedade intrínseca da vida, são vários os fatores que reforçam a impermanência em sua rotina: as intempéries meteorológicas, o trato com a terra, a chegada à terra nova, o instante de ter de partir à procura de nova terra, as idas e vindas das tropas, boiadas e carreteiros. É quando saca de sua filosofia, o “tocar em frente”: síntese do eterno presente em que a vida, para ele, acontece.

Do seu característico isolamento rural nasce o fenômeno do auxílio-mútuo, o “muchirão”, o ajudar ao “próximo”, que, no seu caso, é o próximo-próximo mesmo, uma vez que se afasta dos aglomerados humanos. O que o move num mutirão, enfim, é a atitude de servir amparada por uma constante religiosa. Não é à toa que os eventos sociais dos caipiras são justamente as festas religiosas, a música, a dança. É quando expressa verdadeiramente a sua alma, quando risca o ponteado da viola, quando reverencia os santos e, ao mesmo tempo, se diverte, canta. Seu pendor em transformar o servir em instrumento de sociabilidade o faz amável, humilde em sua condição, íntegro em sua essência.

Por fim, por encarar o tempo e o espaço de forma particular, ele atravessa a História e o território avançando em sua própria humanidade. Ele enfeixa uma maneira de encarar a vida; por ser arquetípico, ele é atemporal. Como disse Lobato, está alheio à História. Nem à margem, nem no cimo, mas simplesmente alheio. Ao mesmo tempo, não está somente nas ribeirinhas do Tietê, nas praias caiçaras do litoral paulista ou nos vales piraquaras, entre a Mantiqueira e a Serra do Mar,

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tampouco no “lençol da cultura caipira”, bordado por Antonio Candido, que o estendeu entre São Paulo e as divisas com as Minas Gerais e o Mato Grosso, também o mapa das andanças sertanistas e exploratórias dos bandeirantes. Por ter configurado um arquétipo, ele guarda a essência de um “jeito de ser”. Ao compreender essa essência, não há mais quando nem onde “ser” caipira. “Tudo é sertão, tudo é paixão, se um violeiro toca/A viola, o violeiro e o amor se tocam”, acenam Almir Sater e Renato Teixeira, violeiros que surgiriam numa outra circunstância histórica, portanto, com o privilégio da visão ampla proporcionada por um posto de observação destacado.

Entretanto, para entender profundamente essa extensão do “ser caipira”, é preciso antes conhecer um pouco mais o outro braço da cultura cabocla: o braço da viola.

Típico Caipira Paulista fotografado por Mário de Andrade em 1936 – Acervo IEB USP

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2. A viola, eu e Deus

Mas, porém, quando o Sinhô tá triste, tá cum sodade da Santa Virge Maria, Deus Nosso Sinhô se esconde nas corda duma viola, pra chorá mêmo à vontade a sua malincunia.

E... Deus E... E... Deus E... E... – Catulo da Paixão Cearense

A contribuição do índio A contribuição do índio A contribuição do índio

A contribuição do índio

A

O lenho ereto, perfurando a terra compacta da clareira, rodeado pelas palhoças enfileiradas, era um corpo estranho no território dos índios de Piratininga. Há muito as novidades não paravam de chegar. Desde que os homens vestidos, donos da cruz, pisaram a nova terra, novos sons riscavam o terreiro dos índios. Da mesma forma, os olhos ávidos dos padres, jesuítas de Inácio de Loyola, absorviam novidades assustadoras. Aportados na Baia de Todos os Santos em 1549, juntamente com a comitiva do governador-geral Tomé de Sousa, os homens da Companhia de Jesus se dedicaram a educar os pagãos desnudos que dominavam aquelas terras que, enfim, começavam a interessar à Corte portuguesa.

A segunda comitiva jesuíta chegou em 1553, em plena crise entre o bispado brasileiro e o governador-geral. Ela contava com José de Anchieta e mais seis frades, que optaram logo por partir à capitania de São Vicente onde, na planície de Piratininga fundariam um colégio.

Foi, talvez, nessa cabana de parcos 14 pés de comprimento por dez de largura que Anchieta, um jovem com pouco mais de vinte anos, assistiu a uma dança ritual sagrado dos índios, o caateretê. Aliás, Anchieta não tardou a dominar a língua tupi dos índios. Desde a chegada a Piratininga havia alimentado a ambição de compor autos e pequenas comédias na língua dos guaianazes. Ainda em Salvador já trocava algumas palavras em tupi com os índios, língua à qual verteu o catecismo e as efemérides cristãs. No colégio de São Paulo teve chances de se aprofundar no estudo do tupi ao passo que ensinava gramática portuguesa aos índios. Chegou mesmo a compor uma Missa Solene com versos que podiam ser compreendidos pelos moradores da planície de Piratininga. Logo, adaptaria quadras da catequese ao ritmo do caateretê. E, quem sabe, esse foi o primeiro passo para que a dança nativa fosse, mais tarde, juntada à melodia de um instrumento que deve ter encantado – e muito – o índio: a viola.

Durante toda sua permanência na Colônia, de 1549 a 1759, a missão jesuítica se baseou na política da catequese, cujo alicerce era a doutrina cristã acima de todas as coisas, inclusive do poder do Rei e das políticas colonizadoras. Adotaram um

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método de relacionamento com os índios que, embora corroborasse com o etnocentrismo europeu como civilização superior às demais, não tentava impor aos índios os meios de vida “civilizados”. Em vez disso havia um sistema de “preparação do selvagem” para a vida civilizada.

O aprendizado do tupi foi, então, um primeiro passo nessa direção. O jesuíta Manuel da Nóbrega, em carta ao rei D. João, explicava a repartição do espaço social conforme o grau de aproximação dos índios às missões jesuítas. Havia um núcleo central partilhado por cristãos portugueses que viviam com seus escravos índios: eram o povoado do colonizador.

À sua margem viviam os aglomerados de índios batizados e amistosos. Enfim, num raio mais afastado, estavam os índios bárbaros, arredios, que não permitiam o batismo nem a doutrinação cristã.

O índio “aprende” a reverenciar a cruz: é a “preparação do selvagem”

Como o desafio de vencer esse universo mais largo era o próprio labor jesuítico, o domínio da língua tupi e o reconhecimento das manifestações indígenas foram essenciais para a aproximação catequista. O fascínio dos índios pela música dos padres facilitou sobremaneira tal tarefa. Um ano depois da chegada de Manuel da Nóbrega na Bahia de Todos os Santos foram solicitados quatro meninos ao Colégio dos Órfãos de Lisboa. As crianças eram versadas em canto e música e foi com essas habilidades que passaram a entusiasmar os gentios. Além disso elas dividiram os terreiros com os curumins, inclusive lançando mãos dos instrumentos dos índios para executarem a música européia. O sucesso da estratégia trouxe mais sete meninos em 1550 e outros vinte em 1551, já com alguns instrumentos musicais à tiracolo, como flautas e violas.

O cateretê ou a catira, nomes de manifestações folclóricas similares encontradas ainda hoje em diversas regiões do Estado de São Paulo, teriam sido, assim, os primeiros frutos culturais da mistura do branco com o índio. Foi, também, o pretexto para a “importação” pela Colônia de violas portuguesas.

A eficiência da mistura da dança ritual indígena e os ofícios católicos possibilitou a adoção do cateretê nos festejos do calendário jesuíta, como os louvores a Santa Cruz, a São

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Liuz Puciinelli

Gonçalo de Amarante (santo português), ao Espírito Santo (o Divino), a São João e a Nossa Senhora da Conceição.

O cateretê chegou ao século XX como uma dança de recinto fechado e não de terreiro. Ou seja, embora tenha nascido no chão batido do centro da aldeia tupi, foi transferido para o recinto do templo improvisado na palhoça. Geralmente é dançado somente por homens, característica que vem dá origem indígena. Aparece ainda hoje não só em São Paulo, mas no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Mato Grosso do Sul e em Goiás. Seus aspectos coreográficos são simples: envolvem duas fileiras paralelas com um violeiro à frente de cada uma, enquanto o restante executa o bate-mão e o bate-pé. Contam os catireiros atuais que o bom dançador procura sempre “pisar nas cordas da viola”, ou seja, deve ritmar o bater dos pés com o som da viola. Os violeiros são diferenciados em Mestre, que tira as palmas, e em Contra-mestre ou o Segunda, que tira o sapateado. O número de dançadores que ocupam a fila dupla difere de região a região. Às vezes se restringe a cinco, noutras ultrapassa a oito.

A dança é intercalada pela moda-de-viola, em que são cantados versos improvisados ao som dos acordes da viola, tocada sem o dedilhamento das cordas. Logo em seguida à moda, os versos são respondidos pelas palmas e pelo sapateado. No cateretê que resistiu ao tempo e persiste no Interior paulista, a dança obedece à “escorva”, um rápido bate-pé acompanhado do bate-mão seguido de seis pulos. Na chamada catira de Piracicaba, quando a moda é concluída, inicia-se o Serra Acima, quando os dançadores, um a um, fazem uma pequena volta sobre o seguinte e começam a caminhar em fila. Quando a volta se completa, começa o Serra Abaixo, com a fila perfazendo o movimento contrário. Para finalizar, acontece o Recortado, movimento mais complexo, em que o primeiro dançarino volteia o segundo, o terceiro, até alcançar o final da fila. Completado o movimento, ele retorna até seu lugar original. É também durante essa fase que acontece o “levante” da moda, ou seja, quando todos cantam em coro. Termina-se com novo bate-pé seguido de bate-mão e os seis pulos.

Tal seqüência, colhida em Piracicaba pelo estudioso Rossini Tavares de Lima em meados do século passado, não se trata de um padrão, podendo diferir de região a região, mantendo-se características básicas como o sapateado e as palmas amparados pela moda-de-viola.

Uma dança similar ao cateretê e à catira é o cururu, que, para Mário de Andrade, escritor modernista e pesquisador do da musicalidade brasileira, também nasceu do esforço dos jesuítas em adaptar os rituais dos índios à liturgia católica. Outros estudiosos garantem ter a dança origem em Portugal, nas regiões do Minho, Nazaré e Ribatejo, sempre acompanhada pela viola e por um pandeiro.

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Veredas Folcloricas A catira atual, já dançada por mulheres, mantém as características originais
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Reinaldo Meneguim

Não se sabe ao certo a origem do nome da dança. Cururu é a palavra do tupi-guarani para sapo. Assim, em algumas regiões, como Piracicaba, acredita-se que a denominação surgiu porque o cururu “lembra uma dança de sapos”, explicação um tanto bizarra. Outra versão se encontra na poesia de Ariovaldo Pires, o Capitão Furtado, um dos precursores da música caipira no rádio, que compôs a moda-de-viola Como Nasceu o Cururu em parceria com Laureano:

Catequistas se moviam, para provar o seu amor aos nativos que temiam o estranho invasor... Mas, ouvindo o som mavioso de uma viola a soluçar, o selvagem cauteloso espreitava, a escutar.

Espreitava, a escutar o aluno de Jesus, que em campo aberto, a cantar, plantou uma grande cruz... Cruz que o índio, a distância, entendia curuzu, que ao branco parecia a palavra cururu.

A palavra cururu, que entrou na tradição, veio, então, de curuzu, numa catequização...

A história nos ensina o ideal da religião cururu virou doutrina, na cantiga do Cristão.

A manifestação se caracteriza pela improvisação dos versos, geralmente cantados em tom de desafio, com rimas profanas ou religiosas. O encadeamento dos versos, como é comum no desafio, faz cada um deles principiar na “deixa” do último cantador. Por isso na música de Capitão Furtado e Laureano o primeiro verso de uma estrofe é a repetição do último verso da estrofe anterior. Segundo Tavares de Lima, as rimas mais comuns são as A-B-C-B (o segundo verso rimando com o quarto) e A-B-B-A (o primeiro rima com o quarto e o segundo com o terceiro), sendo este último um modelo mais recente.

Como o cateretê, o cururu não é uma dança de terreiro. Já esteve dentro da igreja, mas o mais comum é a improvisação de um altar no centro do salão para que os dançadores cumpram o louvor à sua volta. Também dançada somente por homens, mas sem sapateado ou palmas, geralmente é acompanhada de cachaça, distribuída a todos. É também comum a participação de cumpridores de promessa, que dançam com uma vela ou com uma imagem do santo nas mãos.

O grupo forma uma grande roda ao redor do altar e segue três tempos: a louvação, que é a cantoria em louvor do santo da festa; a bateção, quando os cantadores começam o desafio; e a perguntação, desafio menos direto em que um cantador lança uma pergunta à roda e aguarda a resposta de qualquer outro cantador.

A louvação é iniciada com a formação de duas filas, uma encabeçada pelo cantador principal ou Pedestre, que é quem vai puxar a roda na etapa seguinte, a de bateção, e outra pelo Segunda, que canta em terças acima ou abaixo do tom do Pedestre. A cantoria inicia-se com o “baixão”, mote musical geralmente expresso na forma “lai lai lai lai...”. Seguem-se os versos de louvor, dirigidos não só ao santo mas também ao dono da casa. A fila do violeiro sai pela direita e a do Segunda pela esquerda, formando a grande roda. A medida que os participantes vão passando diante do altar, fazem a saudação, ajoelhando-se e reverenciando o santo.

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Em seguida começa a “porfia” ou o desafio. Cada desafiante canta somente uma quadra, quando muito uma quadra e meia, e aguarda a resposta do desafiado. Na última parte, da perguntação, um cantador lança um mote à roda e é respondido com a mesma rima. Esta, é repetida por outros cantadores até que fique “cansada”. Quando isso acontece, o cantador principal lança nova rima e prossegue até o final da dança, que pode durar até o dia clarear.

Como a dança também foi adaptada ao calendário dos santos católicos, acabou convencionando-se, em certas regiões, que o Cururu é um outro nome para a dança de São Gonçalo. Rossini Tavares de Lima colheu em Piracicaba um interessante testemunho sobre a origem do Cururu, relacionado ao santo português:

“São Gonçalo era um menino pobre. Vivia descalço, por não ter dinheiro para comprar sapato. Por isso, andava triste e chorava constantemente. Certo dia, um sapateiro de mau coração deu-lhe um calçado, cujos pregos da sola se achavam à mostra. Assim mesmo o santo calçou-o e quando dava uns passos mancava. Com esse sapato, ele também dançava mancando. Surgiu desse modo a dança Cururu, que nos movimentos recorda o suplício de São Gonçalo.”

São Gonçalo sendo reverenciado por violeiros: dança sagrada

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Reinaldo Meneguim

A influência do colonizador europeu influência europeu

A influência do colonizador europeu influência europeu influência

O século 16, o da colonização do Brasil, foi também o período dourado da viola em Portugal. Talvez esse fato justifique o entusiasmo dos jesuítas pelo instrumento, que deve ter sido trazido com a diminuta bagagem clerical. Afinal, a viola compunha a orquestra básica dos jesuítas, acompanhada pela flauta e pela percussão do pandeiro e do tamboril.

A viola fazia sucesso na Corte, acompanhava a encenação dos autos, inclusive os de Gil Vicente, embora fosse ironicamente um inimigo figadal do clero. Assim, era comum ouvir uma viola durante as romarias e, ao mesmo tempo, no centro dos arraiais, em bailes e cancioneiros. A viola serviu, então, tanto à causa cristã quanto às festas laicas.

A nome viola se origina do termo espanhol vihuela . Para alguns estudiosos como Julieta de Andrade, autora de Cocho Matogrossense: um Alaúde Brasileiro , para alcançar essa grafia, o termo percorreu um tortuoso caminho. Teria se originado na Suméria a 2.000 a.C., onde pan-tur designava “pequeno arco”. Na Grécia antiga virou pandura, nome de um alaúde curto. A palavra, no entanto foi mal grafada, pois a sílaba inicial era aspirada, portanto phi , o que redundaria em phandura (pronuncia-se fandura ). A palavra evoluiu, a partir daí, da seguinte forma: fandir (Cáucaso), féandir (Taugui), fedilo (Rússia setentrional), fidlu (antigo nórdico), fidele (anglo-saxão), fele (norueguês), vièle (francês antigo), vihuela (espanhol) e viola (português).

Não só a etimologia da palavra mas o próprio instrumento seguiu o mesmo roteiro, tendo se tornado popular entre os portugueses a partir de 1500. Teria vindo da vihuela de mano espanhola, uma versão evoluída dos alaúdes, que aparece de duas formas: uma com seis cordas duplas e outra, menor, com quatro cordas duplas, chamada na Espanha de guitarrilla . Não demorou para que ambas tivessem o mesmo nome, viola, com cinco pares de cordas.

A princípio a viola concorria com a guitarra, instrumento inventado pelos espanhóis e que redundaria no atual violão. Muitas vezes elas foram confundidas. O que as diferenciava era o caráter aristocrático da viola. Afinal, ela exigia habilidade e perícia do violeiro, o que acabou ocultando-a nos palácios, ao passo que o violão se tornou popular.

A Universidade do Minho reconhece cerca de quatorze tipos de violas surgidas a partir da versão trazida da Espanha, e que foram aparecendo nos séculos seguintes. São as violas: Toeira de Coimbra, da Madeira, Campaniça Alentejana, Amarantina, Beiroa, Beiroa Requinta, da Terra, Meia Braguesa, Braguesa, Braguesa Requinta, de Fado Antiga, de Folclore, Meia e Requinta. Na Portugal de hoje predomina a viola Braguesa, também conhecida como viola de arame.

Já no século XVII, com as cinco cordas duplas, a viola ganharia a afinação lá-ré-sol-si-mi, que prevaleceu na versão caipira paulista. O padre Vicente Espinel foi o autor de tão longeva afinação. Ele dava preferência às cordas de arame por apresentar um timbre semelhante ao do cravo.

É deste século que datam inventários coloniais paulistas em que constam referências à viola. Num desses inventários, recolhido por Affonso d’Escragnolle Taunay, autor do artigo A Arte Paulistana Antiga, há a seguinte constatação:

Em 1688 surge uma certa viola avaliada em dois mil réis, preço enorme para o tempo. E, caso curioso, esta guitarra pertenceu a um dos mais notáveis bandeirantes do século XVII: Sebastião Paes de Barros.

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Um alaúde do Mato Grosso

Uma particular viola, “genuinamente” matogrossense, intriga tanto estudiosos quanto curiosos logo no primeiro contato. A Viola de Cocho possui o inconfundível formato de vespa, braço curto e tampo sem o buraco de ressonância. Escavado na madeira à moda de um comedouro de bovinos – por isso a denominação “cocho” –, o instrumento se completa com seis cordas feitas de tripas de animais, trastes do braço esticados em barbante, sendo as partes de madeira coladas com resina da batata de sumaré ou da bexiga da piranha.

Instrumento bem semelhante é o alaúde curto, originário do Irã, inventado pelos elamitas. Sabese, entretanto, que os alaúdes curtos chegaram à Europa entre os séculos V e VII Como alcançaram os alagados mato-grossenses, sendo “rasqueadas” nos cururus e nas romarias de São Gonçalo, ainda não se conseguiu descobrir.

Valdemi Silva
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No Brasil, o instrumento se difundiu rapidamente desde o século da colonização. Suas dez cordas tiveram seus nomes originais mantidos. Na ordem decrescente, de cima para baixo, são: 1. contra-canotilho (“companhêra do canutio”); 2. canotilho (“canutio”); 3. contra-toeira (“companhêra da tuêra”); 4. toeira (“tuêra”); 5. contra-turina (“companhêra da turina”); 6. turina; 7. contra-requinta (“companhêra da sobreturina”); 8. requinta (“sobreturina”); 9. contra-prima (“companhêra da prima”); e 10. prima. Tavares de Lima conseguiu reunir boa parte das afinações da viola caipira:

Qualquer que seja a afinação da viola, ela pode ser tocada de duas maneiras: ponteada, de forma melódica, com um dedo tocando uma corda de cada vez; ou rasqueada (termo originário do Centro-Oeste, com forte influência paraguaia, que ganhou popularidade somente na década de 50, no século XX), quando as unhas ferem várias cordas ao mesmo tempo, o que produz um som mais harmônico.

Enfim, a viola brasileira sofreu inúmeras modificações nos cinco séculos que se seguiram ao descobrimento. Adaptando-se aos folguedos e às danças, modificada por artesãos, aprimorada por violeiros, ela se transformou num instrumento legitimamente nacional, forjado na miscigenação entre o branco, o índio e o negro.

Na sabedoria popular São Gonçalo é o padroeiro dos violeiros. Sua festa, comemorada a 10 de janeiro, data da sua morte, foi introduzida também pelos jesuítas. No entanto, uma dança consagrada a São Gonçalo pode não necessariamente acontecer no dia do padroeiro, basta uma promessa para reunir violeiros e dançadores em louvor ao santo de Amarante, norte de Portugal. Geralmente as promessas a São Gonçalo são feitas por moças casadouras, doentes, em especial com reumatismo; ou podem se referir a questões mais gerais como o extravio de gado, o perigo de vendaval, pedidos de chuva e a compra de propriedades. Acredita-se que, para demonstrar fé ao santo é preciso dançar, em vez de rezar. Assim, há todo um ritual respeitoso para dançar, cantar e tocar viola durante o cumprimento das promessas feitas ao santo. O violeiro, por exemplo, deve tanger as cordas com o queixo colado ao corpo do instrumento: é esta a posição religiosa para tocar a viola.

Na crença popular, São Gonçalo, assim como o rei mago Melchior, foram violeiros de fato. A imagem do santo em trajes camponeses lusitanos – calças marrom, camisa branca, botas e capa azul celeste – e com uma viola ao peito, é exclusivamente brasileira, não se sabendo a sua origem. A imagem original, encontrada na igreja de Amarante, em Portugal, mostra o santo com o hábito dominicano e com um bordão na mão direita. Várias outras características e histórias do santo foram se agregando à imagem forjada no Brasil. Por exemplo, a crença de que colocava pregos pontiagudos nas solas dos sapatos enquanto dançava com as prostitutas para afastar qualquer risco de desejo carnal. E o caráter de santo da fertilidade, uma versão católica de Príapo, divindade grega que auxiliava as mulheres a procriar.

São Gonçalo teria inventado uma dança, que ora leva seu nome, ora se confunde com o Cururu, ou, ainda, com o Fandango, denominação genérica de uma série de danças de origem ibérica, diferenciadas conforme a região em que ocorrem. Tal fama de exímio dançador se deve ao fato de os casamentos coletivos que promovia serem coroados por animadas festas, em que a dança e o toque da viola iam até o raiar do dia. Afinal, o santo viveu em Amarante, terra também de uma tradicional viola portuguesa.

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Inviolada
Moda
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São Gonçalinho, São Gonçalinho, São Gonçalinho, São Gonçalinho, São dai-me um maridinho! dai-me um maridinho! dai-me um maridinho! dai-me um maridinho!

Gonçalo Pereira nasceu de uma abastada família portuguesa, em Vizella, próximo a Braga, no ano de 1187. Ainda na infância teria pousado o olhar num crucifixo e se contagiado com o amor divino. Se ordenou sacerdote e partiu numa peregrinação à Terra Santa que consumiu quatorze anos de sua vida. De volta a Portugal, procurou o único parente que lhe restava, um sobrinho, que o recebeu sob a ameaça de raivosos cães. Resolveu partir para Amarante, onde recolheu-se a uma caverna e passou a levar uma vida ermitã. Lá, teve uma visão da Virgem Maria, que lhe aconselhou entrar para uma ordem católica. Decidiu, então, se tornar um dominicano.

Finda sua busca, retornou a Amarante, onde se dedicou à comunidade. Uma das suas missões era abençoar os casais amancebados com o sacramento da Igreja. Muitos desses pares eram de idade avançada, o que acabou rendendo ao santo a fama de casamenteiro de mulheres com idade avançada. Ele também teria convertido prostitutas que, passando a noite a dançar com o santo, se “esqueciam” de exercer o ofício pecaminoso. Gonçalo de Amarante morreu em 1259, tendo sido beatificado em 16 de setembro de 1561.

A versão brasileira do santo, com a viola e vestes camponesas, e a portuguesa, com o hábito dominicano
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Vademi Silva

V V V V V iola iola iola iola Manca Manca Manca Manca Manca

Cavaco de de Cravelho Cravelho

V Viola de iola de iola de de Caipira Caipira

V V V V Viola de iola de iola Cravelho Cravelho

V V iola Requinta Requinta

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Vademi Silva

Outros folguedos populares trazidos da Europa pelos colonizadores se firmaram no Brasil durante o chamado Catolicismo Barroco, a partir do século 18. Fechadas dentro de si mesmas, as ordens religiosas não conseguiam estender sua ortodoxia aos leigos que, por sua vez, organizavam suas devoções seguindo preceitos próprios, o que incluía sobrevivências pagãs e superstições. Mesmo com a pompa emprestada pela Coroa, que via nas manifestações uma forma de ostentar poder e riqueza ante a gente miúda, a fase barroca ajudou a popularizar as festas religiosas. Os luxuosos desfiles de alegorias, herdado dos corsos presentes em toda a Europa, vinham de uma antiga tradição, talvez iniciada com os desfiles consagrados a Dionísio, deus grego do vinho (Baco, em latim).

Na passagem para o Império, em 1808, com a chegada da família Real portuguesa ao Rio de Janeiro, o aumento gradual da população citadina fez com que as grandes demonstrações de pompa fossem trocadas pelo modelo das procissões e dos cortejos, que resistiam desde o século 14 na Europa.

Dentre eles estavam as folias, fossem de Reis ou do Divino. A Folia de Reis já aparecia em Gil Vicente, no Auto da Sibila Cassandra, de 1505. Ela talvez tenha sido uma espécie de dança da fecundidade, à semelhança da coreografia de São Gonçalo.

A Folia celebra o cortejo dos três reis magos – Gaspar, Baltazar e Melchior – em visita ao recém-nascido menino Jesus. Por isso a representação ocorre normalmente na semana que sucede o 25 de dezembro, e se estende até ao 6 de janeiro, data dedicada ao trio do Oriente. Os foliões, então, partem com a bandeira, cantando à porta dos devotos pedindo esmolas e prendas que, ao final do dia, ou do período de preparação, serão consumidas numa grande festa.

Uma companhia de foliões conta com entre quinze e vinte participantes, e é dividida em figurantes, como o mestrevioleiro, ou embaixador; o contra-mestre; o alferes da bandeira; o porta-bandeira ou bandeireiro; e dois ou três palhaços mascarados. Estes são quase que a alma do cortejo, embora representem os soldados de Herodes à procura do menino Jesus para matá-lo. Mas há interpretações mais interessantes acerca desses personagens. Testemunha um folião de Ibirá (SP), ouvido por Tavares de Lima:

Os paiaço não é da companhia dos treis reis. Os treis reis passáro no reinado de Herodes, e Herodes, então, mandou os dois paiaço junto cos treis reis. Quando chegasse lá na visita do Menino Jesuis, em Belém, onde o menino estava, prá morde os dois paiaço vortá prá tráis, que é os dois mascarado, no reinado de Herodes, e contá prá ele, prá mode ele i e degolá. Mas, chegano lá, eles teve o grande remorso. Então tirô a máscara e feis um juramento, que não queria companhá os treis reis. E por isso, então, é que temo esses dois paiaço na nossa Folia de Reis.

Com suas violas, caixas e pandeiros, a companhia, vestida sem nenhum adereço em particular, segue pelas ruas, com os palhaços mascarados repetindo o refrão dos violeiros. Ao parar diante de uma casa, o alferes entrega a bandeira ao dono da casa, enquanto os cantadores entoam o pedido de licença para entrar. Dada a permissão, adentram e louvam o presépio montado. Arrecadam os donativos e partem em procissão até a próxima “morada”. Aos palhaços é vedada a visita, a menos que aceitem retirar a máscara. Dificilmente o anfitrião impede a entrada dos foliões na sua casa, pois acredita-se que os Reis Magos estejam atentos em castigar quem hostilize as suas companhias.

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Outro cuidado entre os foliões é o de impedir que duas companhias, duas bandeiras, se encontrem. Quando é inevitável, acontece o desafio entre os mestres-violeiros, cabendo ao vencedor desde os instrumentos até as roupas dos palhaços da companhia perdedora. Menos o dinheiro das esmolas e as prendas, pois esses são, na verdade, dos Santos Reis.

Da mesma forma, o cortejo do Divino tem como objetivo recolher esmolas. Criado para comemorar os festejos de Pentecostes (o 50º dia após a Páscoa, quando o Espírito Santo desce sobre os apóstolos), o Império do Divino é encontrado como principal festejo no Rio de Janeiro do século 19. A festa dedicada ao Espírito Santo teria sido criada no século 14, em Portugal, pela rainha D. Isabel (1271-1336), casada com o rei D. Diniz. Na época a nobreza era convocada a participar do cortejo, com a rainha partindo do palácio carregando sua coroa encimada por uma pombinha, que era oferecida ao Divino. A festa culminava com a coroação de um imperador simbólico pela autoridade religiosa. A vigilância eclesiástica e imperial da primeira metade do século 19 no Brasil substituiu o imperador simbólico por uma criança.

Com o tempo o imperador sumiu, dando lugar ao festeiro, responsável em organizar o folguedo. É ele também quem carrega a bandeira do Divino na peregrinação em busca das esmolas. Ao cortejo seguem as bandeiras vermelhas, características, com a pomba branca do Divino bordada e a coroa na ponta do mastro, onde também são afixadas fitas coloridas. Acompanham os violeiros, que puxam os cânticos. No final, as bandeiras são “guardadas” na Casa da Festa, ou Império, ricamente adornada e onde repousa a coroa do Divino. Lá ficarão até a procissão de alvorada do dia seguinte, que parte ao amanhecer do dia segundo costume herdado das festas pagãs açorianas. A festa alcança seu ápice no sábado que antecede o dia de Pentecostes, quando a novena dedicada ao Espírito Santo é concluída.

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Reinaldo Meneguim

Outras influências ibéricas Outras influências ibéricas

Outras influências ibéricas

Outras influências ibéricas ibéricas

O domínio espanhol de Portugal, iniciado em 1580 com o fim da dinastia de Avis e a incorporação do trono português pela casa de Habsburgo, por Felipe II da Espanha, contribuiu culturalmente ao Brasil com algumas manifestações em que prevalecem características ibéricas. À primeira vista dois pólos promissores no Brasil saltaram aos olhos dos espanhóis: o Prata, já dominado pela costa do Pacífico; e o Amazonas, fronteira virgem muito atrativa. Cananéia, no litoral paulista, foi o porto base da investida no Prata. Embora a influência dos nobres portugueses tenha sido mantida na Colônia, o período foi de disputas, com holandeses e franceses se arriscando em confrontos nas terras do Brasil. Portugal só seria restaurado em 1640, quando uma revolta colocou o duque de Bragança no poder, iniciando a guerra da independência. Somente em 1668 a Espanha reconheceria a independência de Portugal.

Acredita-se que a dança do fandango tenha sido uma dessas influências ibéricas. Tavares de Lima garante que já haviam registros da dança entre os fenícios e ela teria chegado à Península Ibérica com a invasão dos mouros. Se no país da vihuela era dançado no século 18 por apenas duas pessoas, quando chegou a Portugal, na mesma época, conquistou a simpatia do camponês, que dançava-o em grupo, demonstrando sua habilidade em números acrobáticos. No Brasil, essa característica permaneceu. O termo fandango se tornou genérico para denominar diversas danças de roda adultas. No final do século 18 o nome era usado para as festas que incluíam danças como o cateretê, o samba e a xiba. Mas o fandango característico é o que reúne exímios dançadores que executam diferentes passos acrobáticos, as “marcas”. O fandanguista, rosetas sem dentes nos botins, camisa com mangas arregaçadas, lenço no pescoço e chapéu na cabeça, se esmera em executar as mais difíceis “marcas”. Dentre elas destacam-se o “quebra-chifre”, em que o dançador bate a lateral do pé direito na lateral do pé esquerdo do parceiro; o “vira-corpo”, em que, com as mãos às costas, o dançador vai batendo alternadamente a ponta dos pés, a planta e calcanhar no chão, enquanto vai se abaixando; e o “pula-sela”, em que, como numa brincadeira infantil, um dançador se abaixa e outro, sem perder o ritmo do sapateado, pula sobre o seu corpo.

No litoral paulista, especialmente em Cananéia, onde a influência espanhola foi direta, as “marcas” do fandango chegam a enfeixar uma coleção de coreografias. Muitas delas são chamadas pelos folcloristas de “danças miúdas”, tão restritas geograficamente estão. Boa parte delas mantém o bate-mão e o bate-pé, além de envolver novos recursos coreográficos como o uso de lenços, chapéus e gestos, ou mímicas que imitam atividades agrícolas como a semeadura, a colheita e o mutirão. Só para mencionar alguns nomes dessas “danças miúdas”, são conhecidos: caranguejo; chapéu, panela de arroz e Inhá-Ninha (que ocorrem no Guarujá); marrafa e pombinha branca (em Ubatuba); sinsará e tontinha (em Cananéia). No Interior há também as “marcas” chimarrete, que tem origem na chimarrita gaúcha; a ciranda, notoriamente portuguesa da região de Alfaia; a pinheiro, em que a dança acontece ao redor de uma árvore; e a quero bem, particular à festa de Santa Cruz de Cercado Grande. Embora haja ocorrência, o fandango nem sempre é uma dança religiosa. Na maioria das vezes é dançado em festas rurais e casamentos, sempre com curta duração. Normalmente é acompanhado pela viola rasqueada e, no litoral, também pela rabeca, violino tosco de madeira maciça. Este instrumento, aliás, uma versão vulgarizada do violino erudito, chegou à boca do povo com um interessante nome, originado de Rabab, um instrumento de cordas da família do arrabil, originário do Oriente Médio e do norte da África.

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Moda Inviolada

O Fandango de Tamanco aparece ainda hoje na região de Cananéia

Sem caixa de ressonância, a rabeca chegou da península ibérica e ajustou-se à musicalidade brasileira

Teria aportado na península ibérica também via dominação moura e, incorporado à cultura local, transferiu-se ao Brasil durante a colonização portuguesa, sendo apropriada pelo povo no segundo quarto do século XIX. Da mesma forma, o nome Rabab passou por uma “aclimatação lingüística”: rabé, rabel, rebel, rabil, raben, rabec, rebec, rabeca, rebeca.

No fandango canta-se a moda-de-viola durante a execução das “marcas”, incluindo ritmos como a popular cana-verde, que se caracteriza pelas quadras improvisadas, cantadas em tom de desafio. Esse tipo peculiar de moda acompanha a “marca” de mesmo nome, em que os dançadores se dispõem em círculo e podem executar duas modalidades de dança: a valsada, com pares soltos; e marcada ou coxada, em grupo, como na quadrilha junina.

Na maior parte das “marcas” os fandangueiros podem estar tanto em círculo como em duas fileiras paralelas, uma defronte a outra. Nas duas configurações, o dançador da vez assume o centro para demonstrar suas habilidades.

A palavra fandango origina-se do latim fidicinarte, que pode ser interpretada como “tocar lira”. O folclorista Alceu Maynard Araújo acredita que a riqueza coreográfica do fandango deve tê-lo levado, no século XVIII, às festas palacianas, onde dividiu os salões com o minueto e a valsa figurada. O engraçado é que ele seria abandonado pelos fidalgos décadas mais tarde, por ser considerado pelos ordenanças reais uma “dança maliciosa”, o que constituía heresia.

Ao fugir do gosto palaciano, o fandango foi relegado aos cultos populares, local de sua origem. Se havia se tornado um tanto libidinosa nos palácios, ao voltar ao povo retomou sua respeitabilidade. Também acabou proibida dentro das igrejas. O que não impediu que os altares improvisados nos salões e abrigos roceiros continuassem sendo venerados ao som da viola e da rabeca pelos bate-pés dos fandanguistas.

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Reinaldo Meneguim
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Valdemi Silva

Impérios e ritmos negros

Impérios ritmos negros

Impérios

O tráfico de negros para fins econômicos se iniciou na Coroa, em 1441. Desde o princípio da colonização brasileira alguns negros foram trazidos como escravos para trabalhar junto com os colonos. Mas a farta mão-de-obra indígena, dominada por um crescente tráfico de escravos nativos, adiou a transferência maciça de negros ao país. O aumento da atividade açucareira no Nordeste, que já havia sido experimentada pelos portugueses nas ilhas da Madeira e dos Açores, requisitou cada vez mais a mão-de-obra negra escrava. O ciclo da cana-de-açúcar se estendeu até a descoberta das minas de ouro, a partir de 1700. O fim do escravismo indígena em 1758, através de decreto de D. José, acabou retomando o tráfico de escravos negros para o Interior de São Paulo, especialmente para trabalharem nas fazendas agrícolas que iam se formando no rastro do caboclo. Um terceiro elemento junta-se, então, à cultura caipira. Foram dois séculos e meio de escravidão negra, em que entre três e cinco milhões de negros chegaram ao país abarrotando os porões dos navios que eram enviados à costa africana pelos traficantes. Como reflexo dessa mistura étnica, surgem manifestações musicais e ritmos novos que acrescentam diversidade e enriquecem as festas populares brasileiras.

O batuque, o samba e o jongo, por exemplo, trouxeram a percussão à música caipira. Cornélio Pires, que recolheu quadras improvisadas nas rodas de samba rural paulista, publicadas no livro Sambas e Cateretês , traduz a influência negra na música caipira:

Os batuqueiros, no terreiro, cantam suas valentias e proezas, correndo a roda, dando a toada da música, ao som compassado do Tambu e dos Quijengues, tangidos por mãos calosas ou engrovinhadas de negros ou guapos rapagões. É dança dos negros não sendo raro dela participarem caboclos e até italianos...

A música e as danças negras incorporadas ao folclore caipira, normalmente são manifestadas no terreiro e não em lugares fechados, como ocorrem com as danças de origem indígena, adaptadas pelos jesuítas aos salões paroquiais. Ocorrem por meio de instrumentos como o tambu (tambor de tronco de árvore), o quijengue ou quinjenho (tambor menor), a matraca e o guaiá ou chocaio, além da puíta (depois chamada de cuíca).

O instrumento tambu acabou se transformando em sinônimo de batuque, ritmo que marca a dança de um grupo dividido em duas fileiras paralelas, geralmente homens de um lado e mulheres de outro, frente a frente. Os percusionistas participam da fila masculina. Então, um casal desprende-se de suas respectivas filas e, no centro da formação, assumem a dança da umbigada. Presente também no samba carioca, trazido da Bahia, e no samba rural paulista, esse movimento coreográfico acontece quando o dançador joga o tronco para trás e aproxima seu ventre ao da parceira. Para executar esse gesto, muitas vezes violento, o dançador pode demonstrar habilidade acrobática. Ele pode ajoelhar-se, jogar-se ao chão e, rapidamente, levantar-se para concluir a umbigada.

Semelhante ritual acontece no jongo, manifestação de origem angolana em que os dançadores formam uma grande roda com até quarenta pessoas, acompanhada pelos músicos que, ao lado, executam chocalhos, tambores e a puíta. Enquanto entoam quadras improvisadas e versos de desafio – como também ocorre no batuque –, os dançadores vão se projetando, um

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a um, ao centro da roda, onde demonstram suas habilidades. Se esmeram em apresentar bom ritmo, sapateio e duelos de dança enquanto a assistência entoa um coro amparado pelas palmas. Jongueiros ouvidos por Tavares de Lima contaram que a dança também é sagrada:

O Senhor e o Deus Menino andavam perseguidos pelo Diabo. Fugiram apavorados quando encontraram um grupo de negros dançando jongo. A convite dos negros se esconderam no meio da roda, e por obra de feiticeiros a roda se fechou de tal forma que o Diabo não conseguiu entrar nem ver os dois perseguidos. O Senhor e o Deus

Menino puderam seguir viagem, antes abençoando o jongo, tornando-o uma dança sagrada.

Enfim, ocorre o samba, também chamado de batuque de Angola, que rendeu, em São Paulo, uma versão rural, subdividida em três modalidades: samba de roda, que inclui desafio entre violeiros, com coro e sapateio dos participantes; o samba de Pirapora ou campineiro, parecido com o batuque, que começa com quadras religiosas que se tornam “sambadas”; e o samba-lenço, que incorpora a peça do vestuário como sinalizador dos pares que irão dançar no terreiro.

Em 1520, a comunidade negra escrava de Lisboa conseguiu instituir a igreja de São Domingos. O evento se constitui numa ruptura religiosa. Impedidos pelos brancos de freqüentar a Confraria de Nossa Senhora do Rosário, os negros criaram, conforme o pesquisador José Ramos Tinhorão, uma entidade paralela, a Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Tal diferenciação se transferiu ao Brasil com o reinado de D. Afonso VI, entre 1662 e 1668, com a fundação, em Recife, da igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde aconteceram as primeiras celebrações de coroação do Rei do Congo, como vinha ocorrendo em Portugal desde o século XVII.

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Veredas Folcloricas Ritmo e sensualidade coreografados na umbigada
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Reinaldo Meneguim

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