Ponta d'Areia: O Berço da Construção Naval

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Coordenação editorial: Ricardo O. Oliveira

Projeto editorial: Renata de Albuquerque e Ricardo O. Oliveira

Projeto gráfico e editoração: Vagner Simonetti

Pesquisa histórica e iconográfica: Rodrigo Motta

Capa: Vagner Simonetti

Fotografia: Valdemi Silva

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Todos os direitos desta edição reservados a Quiron Comunicação & Conteúdo S/E Ltda. Av. Mazzei, 140 1º andar conj. 02

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Ponta d’Areia

O Berço da Construção Naval

Renata de Albuquerque (Concepção e Elaboração)

Ricardo Osorio de Oliveira (Coordenação Editorial)

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Apresentação

Os primeiros raios de sol da manhã começam a empurrar para o fundo do céu o escuro da noite, e a praia de Camboinhas desponta para mais um dia de outono. O vento é forte e sopra do sul, de sorte que o mar se apresenta agitado e batido. A maré está próxima do seu ponto mais alto, e as grandes ondas que se formam quebram-se na areia enchendo a praia de espuma muito branca e muito firme.

Cada onda que encontra o seu fim nas areias da praia cobre-a com desenhos e formas, cheios de espumas e bolhas, que se arrebentam, sugerindo mil formas e contornos, que se misturam às gaivotas e aos peixes que saem dos arrastões dos pescadores da área. Cada nova onda apaga toda a criatividade exposta pela anterior, e numa sucessão interminável de arrebentação, desenhos, formas e cores, a praia transforma-se numa tela de sonhos, onde a Natureza exibe, numa profusão quase infinita, toda a sua criatividade e capacidade para criar beleza.

O relógio aproximava-se das seis da manhã, e eu caminhava pelas areias da praia, exercitando o corpo e refazendo a mente e o espírito dos embates da semana que acabara de findar. E aquela interminável sucessão de imagens sempre novas e impressionantes, acabou por gravar na minha mente uma imagem imediata daquilo que eu estava vivendo na área profissional. Sim, pois o que eu fazia outra coisa não era senão redesenhar o tempo e o espaço, recriando, em cima daquilo que havia recebido, uma nova época de trabalho e de realizações no Estaleiro da Ponta d’Areia.

Aquelas ondas que vinham, arrebentavam e criavam novas formas e cores, trazendo novas imagens e sugestões emocionais, e que se sucediam indefinidamente, sempre recriando aquilo mesmo que tinham acabado de formar, eram na verdade o paradigma perfeito para explicar o que ocorria na Ponta d’Areia, desde que o Barão de Mauá ali plantou o primeiro Estaleiro.

A Ponta d’Areia foi o palco privilegiado que testemunhou o efeito de ondas sucessivas de transformação tecnológica, econômica, social e humana, vinculadas à ação do homem sobre uma indústria específica e um tipo específico de empreendimento: a construção e reparação de navios. Além do Império e das figuras

que iniciaram todo o processo, a Ponta d’Areia viveu a Primeira República, carregando consigo todo o imobilismo de uma sociedade sem afluência social, marcada pelo pacto político entre paulistas e mineiros, que se sustentava no poderio econômico das oligarquias rurais, e pouca ou nenhuma atenção dava à indústria nascente. Nessa época a Ponta d’Areia reparava seus navios rebitados, num quase artesanato puro das tarefas da área metalúrgica.

Veio a Segunda Guerra mundial, e na sua esteira uma onda de grande transformação política e econômica, onde a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, da Petrobras, e a redemocratização, funcionam como marcos históricos. Sobre esses novos fundamentos surge a figura impar de Juscelino Kubitscheck com o seu mote de transformar o país, fazendo em apenas 5 anos aquilo que 50 não tinham realizado, colocando em prática a visão econômica de Celso Furtado e dos economistas da CEPAL.

Este país mergulhou numa das mais fantásticas aventuras da sua história, que terminou por alcançar a sua industrialização, deslocar o centro político para o interior do país, levando o desenvolvimento e o progresso a todas as regiões. O brasileiro acreditou na sua capacidade de criar e fazer, e produtos “made in Brazil” começaram a povoar as prateleiras de lojas e supermercados, e a rechear o interior de nossos lares, nossas garagens e até mesmo, nossos mares.

Nessa onda nós nos afirmamos como cultura, fazendo com que a bossa-nova, o futebol, o basquete masculino e o tênis, passassem a ser expressões reconhecidas a nível mundial do talento e da criatividade do brasileiro. Foi uma época de incrível ascensão social, mas, sobretudo de internar nos corações e mentes de todos nós a idéia de que não éramos subdesenvolvidos social e culturalmente, mas apenas um país de economia incipiente.

Na esteira desta onda de transformação radical da sociedade brasileira, a Ponta d’Areia transformou-se num moderno centro de construção naval, com a ampliação e modernização do Estaleiro Mauá, onde todas as facetas das novas tecnologias de

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Valdemi Silva

construção naval, agora centradas no processo de soldagem, encontraram plena expressão.

Assim chegamos aos regimes militares, ao mito da “ilha de prosperidade cercada de problemas por todos os lados”, ao Brasil grande que almejava ser potência nuclear. Nessa febre nacionalista-imperialista, a Ponta d’Areia encontrou o espaço ideal para se expandir, atingindo não só significativos volumes de produção, mas também qualidade naquilo que fazia, fato que engajou o Estaleiro no cenário mundial como produtor naval de capacidade comprovada. A época militar integrou de vez este país, fato que a expansão quase inacreditável das telecomunicações expressa de forma impecável. Finalmente tínhamos um país que, de fato, se estendia do Oiapoque ao Chuí!

A abertura lenta e gradual do Presidente Geisel, ao final de tudo, nos conduziu ao Presidente Collor de Mello e à desastrada abertura do mercado interno, à quebra de padrões, ao sucateamento precoce de grandes instalações industriais, e a toda uma série de conseqüências que os últimos 15 anos ainda não conseguiram sanar completamente. Mas essa mesma onda de aparente destruição, trouxe consigo o choque da qualidade, a necessária exposição do mercado interno aos padrões tecnológicos em vigor em todos os mercados. O Brasil mergulhou, sem planejamento, sem proteção adequada, sem qualquer instituição interna de mediação, na aventura da globalização, inserindo-se no contexto internacional mediante o pagamento de um preço bastante salgado.

Introduzimos uma nova moeda, que tem mantido o seu poder de compra sustentado ao peso de medidas restritivas do crédito e do desenvolvimento, com o conseqüente crescimento do desemprego e da exclusão social, da violência urbana, e da degradação da qualidade de vida, especialmente naquilo que ela está ligada aos bens e serviços de responsabilidade do Poder Público. Nesse quadro a Ponta D’Areia sofreu mais do que ninguém, pois a indústria de construção naval, fortemente protegida de Juscelino até os militares, viu-se perdida em meio aos tigres asiáticos e os leões do sistema financeiro, de tal forma que ela foi reduzindo a sua produção ano a ano, até chegar à virtual paralisação total de suas atividades.

Mas como o mar a que ela está ligada, a Ponta d’Areia ressurge hoje das cinzas na onda forte da exploração das reservas de petróleo existentes na plataforma continental brasileira, a tão conhecida Bacia de Campos e áreas similares. Com esta nova onda, a Ponta d’Areia aprendeu a surfar, ressurgindo do nada para ser a primeira grande expressão da capacidade, da tecnologia e do homem brasileiros, de construir plataformas destinadas a essas atividades de exploração e produção de petróleo nas

águas nacionais, sepultando definitivamente os malefícios da “década perdida”. Assim, a cada onda que se abateu sobre a Ponta d’Areia, e sobre ela deixou os contornos do seu conteúdo, o Estaleiro ali plantado reagiu de forma correspondente, desenvolvendo novas tecnologias, absorvendo as cores de cada nova estruturação política e econômica, atendendo às novas expectativas da sociedade e das pessoas, consolidando na Ponta d’Areia novas estruturas de produção capazes de responder a esses desafios.

Acima de tudo, essas ondas sucessivas de transformação tecnológica, econômica, política e social, acabaram por desabrochar no grande fenômeno da segunda metade da década de 90, que foi o surgimento do brasileiro como cidadão e como consumidor. Temos hoje uma população muito mais consciente e crítica, que sabe exatamente o que quer para si e para a sua terra, e que luta para obter aquilo que deseja, com garra e com consciência crítica. Somos hoje um país muito mais maduro, ainda muito sofrido, mas, sem dúvida alguma, todas estas ondas de transformação já nos trouxeram para novas praias e ajudaram a descortinar novos horizontes, garantia de que continuaremos a perseguir com tenacidade a completa inclusão social de todos os brasileiros.

Ainda caminho em Camboinhas enquanto estes pensamentos ocupam minha mente, e olho para os morros da Serra da Tiririca, e vejo o sol que agora já está por completo livre dos seus contornos, atrás de mim o mar agitado e as ondas que se quebram. Então surgem na minha mente as imagens da “Odisséia”, e relembro o velho Ulisses retornado à sua Itaca natal, andando pela praia ao entardecer com os seus amigos e parentes, quando de repente é tomado pela saudade e pelas memórias das lutas passadas, e dirige então aos seus companheiros estas palavras;

“Atrás fica o porto. O vento enfuna as velas, Acolá se estende o tenebroso mar.

- Meus companheiros, Companheiros de batalhas e vigílias ... Vinde, amigos:

Inda é tempo de buscar um mundo novo”.

Paulo J.F. Oliveira

Diretor de Assuntos Corporativos

Mauá Jurong S/A

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Agradecimentos

Agradecemos a todos os que, de alguma forma, contribuíram para que este livro se tornasse realidade, empenhando-se em buscar informações sobre a história e seus detalhes, muitas vezes escondidos, de Niterói e da construção naval. Em especial, gostaríamos de agradecer a:

Biblioteca Municipal de Niterói

Carlos Mônaco (Livraria Ideal)

CDP / FAN(Coordenação de Documentação e Pesquisa)

Centro de Memória Fluminense

Comandante Paulo Gouvea

FAN (Fundação de Artes de Niterói)

German Efromovich

Helio Paulo Ferraz

Jornal O Fluminense

Lucia Pio

Luis Antonio Pimentel

Maria Rosalina de Oliveira

Maurício Vasquez

P. Sodré

Paulo J. F. de Oliveira

Paulo Roberto Gomes (Batata)

Secretária Municipal de Cultura (SMC) de Niteroi

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16 Introdução 1ºOnda

30 Capítulo 1 A Era Mauá

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Capítulo 2

Fundação da CCN

Capítulo 3

Navios em Série

2aOnda
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3a Onda

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Capítulo 4

Novo Combustível

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Apêndice Apêndice Apêndice Apêndice Apêndice

Técnico Técnico Técnico Técnico Técnico

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Epílogo Epílogo Epílogo Epílogo Epílogo

Índice

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Introdução

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NasCostas do Atlântico

O Oceano sempre exerceu um imenso fascínio sobre os homens. Os homens sempre foram atraídos por ele, na busca da conquista do novo, do desconhecido, do inesperado. O Brasil sempre teve uma intensa relação com o mar. Para um país com mais de 8 mil quilômetros de costa, dificilmente a história poderia desenhar um curso muito diferente. Foi pelo mar que o país foi descoberto, quando aqui chegaram os portugueses à procura de riqueza; foi perto do mar onde as primeiras cidades foram construídas, para que a costa brasileira ficasse protegida de invasões estrangeiras. E este mesmo mar, que foi essencial para a formação do Brasil, é até hoje fundamental para a sobrevivência de muitas cidades que tiveram sua vida construída em função da proximidade com o Oceano Atlântico.

Niterói, no estado do Rio de Janeiro, é uma destas cidades cuja existência sempre aconteceu ao redor do Oceano. A antiga capital do Estado do Rio de Janeiro é um dos exemplos de cidade que, desde sua fundação, sempre tirou do mar seu sustento, e que deve a ele suas principais atividades econômicas desde que foi fundada. Em Niterói, a riqueza vem do mar e pelo mar ela se vai e se multiplica: muito do escoamento do que se produz ali é feito por via marítima. Em Niterói, o mar leva e traz abundância, desde o início da história do lugar. Inicialmente ligada à pesca e ao beneficiamento dos produtos oriundos do mar, a cidade gradualmente expandiu-se e aperfeiçoou sua ligação com o Oceano, abrindo um “mar” de possibilidades.

Na verdade, essa interação com o mar moldou a cidade, influenciando o seu crescimento, sua urbanização e até mesmo

sua personalidade. “A economia da região provinha do que se podia extrair da terra e do mar, diretamente, ou após beneficiamento. (...) A pesca, pela abundância e pela grande variedade de peixes que propiciava, nas lagoas de Itaipu e Piratininga, no interior da Baía de Guanabara, (...) foi sempre, desde os tempos imemoriais, um meio de sustento daquelas populações”, assinala Carlos Wehrs em seu livro Niterói, Cidade Sorriso – A História de um lugar. Como se pode ver, em Niterói, a presença do mar sempre foi marcante. E quem se aventurar pelas ruas e bairros da Niterói dos dias de hoje, poderá ver, ouvir, perceber e até mesmo sentir o cheiro da influência do oceano. E com certeza, poderá perceber como essa presença ainda continua marcante e decisiva. Áreas como a charmosa Jurujuba, ou mesmo a própria Ponta d’ Areia ainda são totalmente moldadas em suas características, em suas atividades, em sua vida cotidiana, e ainda tiram sua personalidade, sua identidade, e o que são e representam para o contexto atual da cidade, do mar.

Até mesmo o nome da cidade de Niterói tem a ver com o mar. Sua origem é da língua tupi, e uma de suas melhores traduções é “águas escondidas”. Ainda é matéria de discussão entre os estudiosos o que poderia significar isso. Uma hipótese é que este nome se refira ao próprio recorte geográfico do terreno de onde hoje é Niterói, com seus contornos sinuosos e recortados que ajudam a desenhar a Baía de Guanabara.

Se foi o encantamento que o Oceano exerce sobre os homens que encorajou os primeiros navegadores a partir da terra firme em busca de terras novas, foi o vislumbre de novas possibilidades de

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crescimento e evolução que incentivou brasileiros a lançarem-se ao mar em busca de uma nova e mais ousada aventura: a construção naval. Em determinado momento da História do país, ficou claro que, sem navios, seria impossível crescer. Porque o mar era uma alternativa viável e, mais que isso, necessária, em um país com uma costa tão grande quanto a nossa.

E foram justamente essas águas fluminenses o berço da Construção Naval no Brasil. Foi ali onde o embrião desta indústria, ainda nos tempos do Império, ajudou a dar impulso à marinha mercante deste país. A relação de Niterói com o mar, e mais precisamente da área conhecida como a Ponta d’Areia, quando

vista sob a ótica da atividade de construção naval, é antiga e remonta à época da fundação da cidade. Mas permanece atual, se considerarmos que dali saem, ainda em pleno século XXI, navios, plataformas petrolíferas e todo o tipo de equipamentos necessários para a marinha mercante e de guerra. É uma história marcada por ciclos bem definidos, que se estende dos dias do Império até o mundo globalizado de hoje. É uma história com altos e baixos, marcada por momentos de franca expansão, mas também por fases de estagnação e declínio, que, de qualquer modo, sempre pontuaram de maneira marcante e decisiva, tanto a vida da cidade de Niterói como a própria História do Brasil.

NESTA PÁGINA

“Bragança” - vista do Morro da Armação da autoria do Tte.Chamberlain.

NA PÁGINA AO LADO O Rio de Janeiro visto do Morro da Viração em Niterói

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A cidade

O nascimento da cidade de Niterói é uma das muitas histórias curiosas do lugar. E foi por causa de uma invasão, feita pelos franceses por via marítima, que Niterói nasceu. Portanto, pode-se dizer que, se não fosse o mar, essa cidade não existiria.

No século XVI a ocupação do território brasileiro pelos portugueses ainda era escassa. Atravessar o Atlântico e vir habitar as inóspitas terras brasileiras era uma aventura que poucos se dispunham a encarar. Com isso, criava-se uma fragilidade territorial, e o Brasil ficava a mercê de piratas, bandidos, corsários, contrabandistas e invasores de toda ordem; estrangeiros em busca de raridades que não se encontravam na Europa e que lá eram considerados pequenos tesouros.

Durante o governo de Duarte da Costa, entre 1555 e 1556, os franceses aportaram na baía de Guanabara, com o objetivo de instalar um núcleo colonial, que seria chamado de França Antártica. A França não reconhecia o Tratado de Tordesilhas e defendia o princípio do direito à posse da terra por quem a ocupasse. Chefiados por Nicolau Durand de Villegaignon, fundaram na região o forte de Coligny. Pretendiam garantir a exploração do pau-brasil no litoral sul e conseguir um espaço

Introdução

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onde os protestantes franceses pudessem exercer livremente sua religião. Outro objetivo dos invasores era lutar contra a escravização dos índios pelos portugueses, motivo pelo qual várias tribos indígenas uniram-se em favor dos franceses.

Mas um desses índios, catequizado pelo padre José de Anchieta, resolveu ficar ao lado dos portugueses e defender suas terras. Esse índio tupiminó chamava-se Araribóia, e foi ele quem convenceu outros índios a auxiliar os portugueses a expulsar os franceses da Baía de Guanabara, o que só aconteceu definitivamente em 1567. Em reconhecimento ao auxílio prestado, foram dadas a Araribóia as terras que hoje são conhecidas como Niterói. Araribóia (cujo nome, em português, significa “Cobra da Tempestade”) recebe, como doação, em reconhecimento ao seu trabalho de defesa do território português, as terras compreendidas entre a Praia de Boa Viagem e Gragoatá. Denominado São Lourenço dos Índios, este foi o primeiro núcleo de povoamento. Niterói passa então a ser a única cidade do Brasil fundada por um índio, por meio de uma doação de terras feita por portugueses. É como se as terras de Niterói voltassem a pertencer a quem realmente havia sido seu primeiro ocupante: o índio nativo brasileiro.

A data da posse solene das terras doadas a Araribóia, 22/11/ 1573, é hoje considerada o marco da fundação de Niterói. Outras duas datas são importantes na História da cidade: 1819 e 1835. A primeira é a data da elevação da região à condição de Vila, com o nome de Vila Real da Praia Grande; e a segunda representa a elevação da Vila à condição de Cidade.

Só em 1909 o dia 22 de novembro passa a ser considerado feriado municipal. Araribóia transforma-se em uma figura mítica na História do lugar , 320 anos após sua morte. Mas apenas no início do século XX é inaugurado uma estátua em homenagem ao fundador da cidade. Depois da morte de Araribóia, a região passa por um

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NA PÁGINA AO LADO

Estátua de Araribóia, índio Tupiminó, fundador da cidade de Niterói

período de decadência, devido à distância em relação ao Rio de Janeiro e por não oferecer condições de expansão.

Na década de 1760 acontece o processo de expulsão dos jesuítas, liderado pelo Marquês de Pombal. Ele alega, para realizar a expulsão, que os jesuítas constituem um “Estado dentro do Estado Português” e, com esse argumento, todos os jesuítas são banidos de Portugal e de todas as colônias portuguesas onde estavam presentes. Nessa época, em Niterói, aumentam o número de sesmarias e surgem povoados como Icaraí, São Gonçalo, Jurujuba e São Domingos, em uma época de franca expansão e progresso. O progresso econômico, por exemplo, se reflete nas fazendas, engenhos de açúcar e aguardente, que aumentam e produzem cada vez mais. Para escoar a produção de açúcar (que nesse período já era bastante significativa), os proprietários de terras utilizavam os portos na Enseada da Boa Viagem, de São Domingos, Praia Grande e Maruí. O mar já era então um importânte eixo para que pudesse existir a expansão do desenvolvimento na região.

Apesar da relativa importância econômica que já possuía, Niterói ainda não despontava como um pólo de desenvolvimento no cenário geral do Brasil, que era então apenas uma das muitas colônias portuguesas espalhadas pelo mundo. Em 1808, a Corte Portuguesa de D. João VI desembarca no Brasil colocando-o em um patamar mais alto do que o de outras colônias. Pode-se dizer que Niterói também se beneficia particularmente desta transferência da Coroa Portuguesa para o Rio de Janeiro, pois o Rei decide comemorar seu aniversário na Banda d’Além (como era chamada

então Niterói , por causa de sua posição geográfica em relação à Baía de Guanabara), o que aumenta consideravelmente a visibilidade do local, dando prestígio e chamando a atenção de todos para aquelas terras que, na época, ainda não tinham sua importância reconhecida devidamente.

A criação da Província do Rio de Janeiro elevou a Vila da Praia Grande (nome oficial de Niterói à época) à capital provisória em 1834. A lei Provincial n.º 6 de 1835 eleva a Vila à categoria de Cidade, recebendo a denominação de Nictheroy. O titulo imperial de “Cidade de Nictheroy” é concedido em 1841 por D. Pedro II. Durante esse período, a cidade se reestruturava gradativamente

Niterói conheceu um grande avanço nessa época, devido à passagem primeiro da condição de Vila à de Capital e, então à de Cidade. Isso permitia mais dinamismo e autonomia em relação às decisões que seriam tomadas para promover o progresso do lugar. Esse salto determinou uma série de desenvolvimentos urbanos, como a implantação de serviços básicos. Por exemplo, temos a barca a vapor (1835) implantado pela Cantareira e Viação Fluminense, a iluminação publica a óleo de baleia (1837) e os primeiros lampiões a gás (1847), abastecimento de água (1861), o surgimento da Companhia de Navegação de Nictheroy (1862), o bonde de tração animal da Companhia de Ferro-Carril Nictheroyense (1871), a Estrada de Ferro de Niterói, ligando a cidade com localidades do interior do estado (1872), os bondes elétricos (1883) entre outras melhorias.

Introdução

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Arquivo

Vida que vem do mar

As atividades que ligam o povo de Niterói ao mar são marcadas pelo ano de 1583. Foi nessa data que se construiu a primeira armação para pesca e esquartejamento de baleias na região. A renda da aldeia vinha, nessa época, basicamente da pesca e do “beneficiamento” de baleias. O ápice dessas atividades acontece durante os séculos XVII e XVIII, mas devido à matança indiscriminada que extingüe as baleias na região, as armações acabam no século XIX.

NA PÁGINA AO LADO

Antigo embarcadouro de São Domingos – c. 1900

NESTA PAGINA

Cena de pesca da baleia na enseada de Jurujuba – c. 1950

Mas nas armações não se trabalhava apenas na extração dos produtos obtidos das baleias.Havia toda uma “indústria” de apoio, com ferreiros, tanoeiros, carpinteiros, cordoeiros e calafates, a chamada “manufatura concentrada” (como escreve o estudioso Geraldo Beuclair), inclusive com setores da economia local totalmente dependentes das armações (como a iluminação pública, feita a base de óleo de baleia). Já a armação praticamente independia dos outros, chegando mesmo a fabricar suas próprias embarcações. Para comportar toda essa indústria, foram construídos galpões e armazéns nos quais a atividade florescia, abrigando desde construções para a captura de

baleias até equipamentos que permitiam o beneficiamento do óleo e toda a indústria que se formou ao redor dessa atividade. Segundo o estudioso Antônio Gil Bezerra, “no período entre 1550 e 1800, o Brasil foi o país a apresentar a mais eficiente atividade de construção naval no mundo, com uma produção de cerca de dez mil embarcações, incluindo a frota de guerra”. E completa: “todos esses fatos tiveram um papel fundamental na evolução deste setor a partir de 1920 até os dias atuais, principalmente, após a fundação do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, por volta de 1774, e de suas (da Marinha) bases de Ladário a Manaus, quando se iniciou a formação de carpinteiros, mestres calafates e construtores navais no Brasil”. Ou seja, a atividade naval sempre foi uma vocação “natural” para o Brasil, mesmo em tempos remotos, quando o país ainda não era independente. Favorecido pelo fato de que os descobridores portugueses tinham uma intensa relação com o mar, e que na época possuíam conhecimentos avançados acerca de construção naval, o Brasil mostrou, desde cedo, grande potencial para desenvolver uma indústria naval forte. Essa vocação estendia seus braços por sobre as

Introdução

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possibilidades da marinha mercante (comércio de cargas, mercadorias, transporte etc) e da marinha de guerra (arsenal militar, ponto estratégico a ser desenvolvido em um país com litoral tão imenso quanto o do Brasil). Mas, para dar conta de obter sucesso nessas empreitadas, era preciso ter bons profissionais, e a Marinha se encarregou, num primeiro momento, de formá-los. Depois, com o aumento da demanda, a iniciativa privada assumiu parte dessa responsabilidade de formar e reciclar trabalhadores para atuar na área.

O ciclo das baleias foi o primeiro de muitos que deram vida e impulso econômico a Niterói. Seu fim deve-se não apenas a escassez de matéria-prima (baleias), mas também a uma preocupação sanitária, já que o odor provocado pelo beneficiamento das baleias era extremamente desagradável e, acreditava-se, poderia ser prejudicial a quem estivesse ao redor desses locais. Terminado o “ciclo das baleias”, galpões e armazéns foram desativados, ou mudaram de função. Em 1816 serviram de quartel provisório para a “Divisão dos Voluntários Reais”, tropas que vieram de Portugal naquele ano e que depois seguiram para a Província Cisplatina (hoje Uruguai). Em 1828, os galpões são convertidos em alojamentos de quarentena para imigrantes (para prevenir o alastramento de doenças infecto-contagiosas) e elementos desordeiros. Em 1834 serviram de depósitos de negros capturados pelos ingleses em um navio que se dirigia a Montevidéu.

A atividade naval em Niterói se concentra em dois locais vizinhos do ponto de vista geográfico: a Ponta d’Areia e a Ponta da Armação. O nome desta alude à atividade de armação baleeira que ocorreu ali. Já a Ponta d’Areia foi assim batizada porque surgiu em uma região aterrada.

Com o passar do tempo, a Ponta da Armação tornou-se o local onde a Marinha Brasileira instalou-se com seu arsenal. Já a atividade civil, de marinha mercante, desenvolveu-se em estaleiros no lado oposto, na Ponta d’Areia. Vizinhas, Ponta da Armação e Ponta d’Areia desde o início demonstraram uma forte vocação industrial e foram responsáveis por uma grande parcela da atividade naval, de

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reparos a construções. A palavra estaleiro vem do castelhano “estillero”, ou “estilla”, que significa “lasca de madeira”. E foram justamente essas lascas de madeira, e depois as chapas de aço, que contribuiram para dar mais dinamismo à cidade de Niterói.

Em 1835 surge o serviço regular de navegação a vapor, oferecido pela Companhia de Navegação de Nictheroy, que ligava o Rio a Niterói, complementando a paisagem já acostumada, na época, aos botes, faluas e saveiros que, impulsionados por velas e escravos, eram os meios de transporte marítimo existentes no Rio de Janeiro do início do século XIX. No início do século XX a prefeitura propôs construir um cais da Ponta d’Areia ao Porto do Méier, a fim de fazer atracar ali embarcações de diversos calados. A obra foi realizada por Feliciano Sodré.

Mas ainda no século XIX aconteceram muitos eventos importantes para a história de Niterói que acabaram por influenciar o desenvolvimento da indústria da construção naval. Em 1893 eclode a Revolta da Armada, um dos episódios mais marcantes da História de Niterói. A revolta ocorreu porque o então Presidente da República, Floriano Peixoto, acreditava que poderia permanecer no cargo, substituindo seu antecessor, o Marechal Deodoro da Fonseca. Os revoltosos, liderados pelo contra-almirante Custódio José de Melo, com o apoio do almirante monarquista Luís Felipe Saldanha da Gama, acreditavam que deveriam ocorrer novas eleições. Carlos Werhs conta como foi o episódio: “A rebelião estourou em 6 de setembro de 1893. Neste dia, os pacíficos moradores de Niterói e do Rio de Janeiro acordaram com o troar dos canhões; Custódio de Melo, de bordo do Aquidaban – com a bandeira branca desfraldada – enviava manifestos ao povo, nos quais afirmava ser a deposição de Floriano o caminho para a salvação da Pátria. Esse foi o início da revolta de uma parte da nossa Armada, que manteve durante meio ano as duas cidades guanabarinas em sobressalto, sacrificando vidas humanas, prejudicando o comércio e o livre trânsito, com enormes prejuízos para os cofres nacionais”. Niterói, lugar pacífico, estava em guerra. E

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Fotografia da Rua Barão de Mauá, na Ponta d’Areia, da autoria de Juan Gutierrez – c. 1894

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Acervo Museu Histórico Nacional

iria resistir bravamente até que a ordem voltasse a ser estabelecida. A proximidade com o Rio de Janeiro, que muitas vezes havia sido um trunfo que impulsionara Niterói ao progresso, agora trazia um transtorno com o qual a cidade teria de conviver até que tudo se resolvesse. Niterói era um lugar estratégico: perto da capital, mas “escondida” o suficiente para que se tentasse iniciar, por ali, a tomada de poder e a mudança dos rumos do Brasil.

Armas e canhões nas ruas, tiros no ar: o mar trazia agora a guerra, chefiada por um contra-almirante que desejava tirar a legitimidade do presidente da ainda jovem República do Brasil.

Com navios adquiridos no exterior, Floriano Peixoto derrotaria os revoltosos em março de 1894. Novamente, é pelo mar que a superioridade é mostrada. Então, Niterói passa a ser conhecida como “Cidade Invicta”, em virtude dos méritos de resistir à revolta, apesar da grande pressão feita pelos revoltosos durante todo o tempo em que perdurou a Revolta da Armada.

Entretanto, os navios estrangeiros logo dariam lugar à produção nacional. Já alguns anos antes da Revolta da Armada, na época da Guerra do Paraguai, a região de Ponta d’Areia começa a ter uma atividade de construção naval mais sólida.

A Guerra do Paraguai uniu Brasil, Argentina e Uruguai contra o país que dá nome à guerra. Este ficou conhecido como o mais grave conflito do tipo na América do Sul, e foi travado por uma disputa naval, mais especificamente a disputa pela navegação na estratégica região do Rio da Prata. A princípio, a disputa era entre Argentina e Brasil, mas o Paraguai passou a reivindicar os direitos à navegação no Rio da Prata e a querer alcançar o território uruguaio. Então, sob a coordenação da Inglaterra, Brasil, Uruguai e Argentina formam a Tríplice Aliança. É nessa época que são comprados armamentos, navios e outras embarcações, a princípio para fazer frente ao poderio paraguaio e que, no futuro, representariam o fortalecimento da frota de navios desses países. Segundo o livro A Guerra

Ponta d’Areia : O Berço da Construção Naval

do Paraguai: 130 anos depois, organizado por Maria Eduarda de Castro Magalhães Marques, “os aliados, ou seja, o Brasil, possuíam uma superioridade naval absoluta. No início da guerra, o Brasil já dispunha da maior e mais poderosa marinha da região (33 embarcações a vapor e 12 a vela)”. A guerra durou cerca de cinco anos, de 1864 a 1870, culminando com a derrota paraguaia, reduzindo a população daquele país em quase dois terços. Nessa época, o Brasil já podia ser considerado uma potência em termos navais, e a indústria mostrava sinais de que, se fosse bem gerida, poderia ser uma das principais atividades do país, gerando empregos, riqueza e benefícios para toda a região. Embora a aquisição de navios tenha sido eminentemente feita na Europa, nessa mesma época algumas embarcações eram produzidas no Brasil. Um dos exemplos é o Encouraçado Tamandaré, construído em cinco meses no Brasil durante o ano de 1865. Ele foi o primeiro de uma série de encouraçados brasileiros que participaram da guerra do Paraguai no final daquele ano. O sistema de construção de navios ainda era uma novidade no país, mas o Tamandaré tinha 754t de deslocamento, 48,76m de comprimento, 9,14m de boca (largura) e 2,44m de calado, máquina a vapor de 80cv, com uma hélice, e armado com cinco canhões, instalados na casamata central. A curiosidade desta construção é que o navio parte para o Paraguai ainda incompleto: os detalhes que faltavam foram sendo feitos durante a viagem.

O Tamandaré e outros dois encouraçados, Barroso e Rio de Janeiro, foram construídos pelo engenheiro Napoleão Level no Arsenal de Marinha, na Ponta da Armação, com projeto e direção do engenheiro Carlos Braconnot. Conhecimento técnico e disponibilidade geográfica eram dois dos muitos indícios de que Niterói poderia ser um dos maiores pólos da indústria naval no país.

Mas mesmo antes da Guerra do Paraguai começar, um homem de espírito empreendedor já produzia navios brasileiros, e fazia ser realidade a vocação natural do lugar, na chamada Fábrica da Ponta d’Areia.

Boa parte da superioridade naval brasileira na Guerra do Paraguai, deveu-se aos navios produzidos nos estaleiros da Ponta d’Areia e da Ponta da Armação

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1 a Onda

Capítulo 1

A Era Mauá

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Nasce um Império

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A fábrica da Ponta d’ Areia.

Desenho de P. G Berticham c. 1856

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Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá

Já não havia baleias em Niterói. Mas as águas que vinham do mar ainda eram a mais promissora chance e a melhor possibilidade de trazer desenvolvimento à região. Fabricar os navios que atravessariam os oceanos levando e trazendo riquezas era a saída mais racional e óbvia em direção ao progresso, já que o litoral era farto, e o Brasil uma promessa para o futuro. Mas havia, no Rio de Janeiro, um homem que acreditava que a promessa de um futuro brilhante poderia se realizar no presente. Irineu Evangelista de Sousa começou muito cedo a trabalhar para ganhar a vida. Estava acostumado a fazer acontecer seus projetos, e por isso não quis deixar para depois o desenvolvimento de uma indústria naval de vanguarda – mesmo que o Brasil estivesse ainda na Era Imperial. Na visão ampla e futurista desse homem, indústria rimava com Império. E ele se empenhou enormemente para fazer essa engrenagem funcionar.

Irineu Evangelista de Sousa nasceu perto do vilarejo de Arroio Grande, Rio Grande do Sul. O segundo filho de João Evangelista de Ávila e Sousa e Mariana Batista de Carvalho, veio ao mundo no dia 28 de dezembro de 1813. Nascido no dia em que se comemora o dia de Santo Irineu, “um santo com biografia de fábula”, como escreve Jorge Caldeira, esse filho de João e Mariana herdou-lhe o nome e – de certa forma – o adjetivo em sua história

de vida: o menino nascido no interior do Rio Grande do Sul tornaria-se mais tarde Barão e, depois, Visconde de Mauá, e seria um dos homens mais importantes do Brasil Império.

Como era costume no local em que nasceu, e padrão para a sociedade em que vivia – além de necessidade naqueles tempos em que o sustento e a riqueza vinham basicamente da terra – cedo ele começou a trabalhar e a aprender a lidar com gado, peões e fazendas. A vida não tinha muitos atrativos de lazer, e o trabalho agregava os semelhantes. Mas também causava discórdia. Disputas políticas e de territórios, guerras internas entre grupos rivais, demarcação de fronteiras, impostos abusivos, gado perdido para contrabandistas e ladrões, tropas rebeldes, ocupações irregulares, descontrole e desmando de um território então longínquo onde a lei tinha pouca ou nenhuma voz. As dificuldades eram muitas e os desafios a serem vencidos, também. Essa era a lição que precisava ser aprendida por quem queria prosperar lidando com a terra. Talvez por isso Irineu gostasse tanto de desafios e tivesse tanta habilidade em superar os obstáculos que se impuseram ao longo de sua vida, mesmo

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depois de deixar o Rio Grande do Sul e a vida do campo. Talvez também por isso, cresceu no menino a vontade de aproximar as pessoas. Pode ter sido também por isso, que na idade adulta ele tenha se empenhado tanto em promover a criação e o desenvolvimento dos transportes no país. No futuro, ele construiria estradas de ferro, navios, levaria iluminação a lugares distantes. Faria muito e da melhor forma possível. Quase como fazia quando não media esforços trabalhando nas terras da família.

Mas os“desmandos” na fronteira acabavam fazendo com se disseminassem idéias republicanas no Rio Grande do Sul, gerando descontentamento e, de certa forma, se refletindo na personalidade de todos os que participavam daqueles tempos e acontecimentos.

Em 1819, João Evangelista, pai de Irineu, decidiu que participaria de uma excursão a território uruguaio para comprar mais cabeças de gado. A decisão era arriscada, pois a empreitada não dava nenhuma garantia de segurança a quem se aventurasse nessa busca de animais negociados a bons preços. Quando João voltava da viagem, foi morto com um tiro enquanto dormia em um rancho na beira do caminho.

Jorge Caldeira, em seu livro Mauá, Empresário do Império, afirma que eram duas as versões para a tragédia: que o dono do rancho onde João dormia confundiu-o com um ladrão ou que ele havia sido morto em um acidente, recebendo a bala destinada a outra pessoa.

Ponta d’Areia : O Berço da Construção Naval

Qualquer que tenha sido a causa da morte do patriarca dos Sousa, o saldo foi uma viúva de 24 anos com dois filhos – uma menina de oito e um menino de cinco – e uma estância para cuidar e garantir o futuro da pequena prole. Se para homens o ambiente era inóspito e pouco amigável (para dizer o mínimo), era quase impossível para Mariana, uma mulher, em pleno século XIX, levar adiante uma propriedade inteira sozinha. Comandar peões, negociar gado, zelar pela integridade da propriedade, impedindo a invasão e a tomada das terras por outras pessoas, era uma tarefa acima de suas possibilidades. Apesar da família influente de que vinha, e que a apoiou no momento difícil, garantindo a segurança dela e dos filhos, era preciso, naquele mundo, ter a presença de um homem em casa. Durante algum tempo, Mariana guardou a viuvez. Enquanto isso, colocou o filho para estudar, ensinou-lhe a ler e a fazer contas. Mas a família pressionava por um novo casamento. Ela cedeu três anos depois da morte do primeiro marido. Mas havia um detalhe: seu novo marido não queria que filhos de outro pai constituíssem sua nova família. A solução foi casar a filha, de doze anos incompletos, com um agricultor. Já Irineu foi levado por um tio (irmão da mãe), comandante de navio de um grande comerciante do Rio de Janeiro que comprava charque no Sul, para trabalhar no comércio.

No caminho para o Rio de Janeiro, Irineu pela primeira vez viu o mar – experiência fascinante para qualquer criança, ainda mais para uma como ele, que nascera contemplando as imensas planícies dos pampas – e embarcou, também pela primeira vez, em um navio, “uma chata movida a velas e remos, construída especialmente para levar o charque e o trigo até o porto do Rio Grande”, como descreve Caldeira. E continua: “Com seu fundo raso, não tinha dificuldades para navegar pelo rio Jaguarão, que desembocava na lagoa Mirim, e daí seguir, evitando os bancos de areia até o canal que levava à lagoa dos Patos e ao porto”. Durante

Placa de rua com o nome do Barão, localizada na Vila Pereira Carneiro

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Tampa de bueiro onde se lê o nome da cidade com a grafia usado nos tempos do Império

a viagem de cerca de um mês, o pequeno Irineu pôde presenciar o trabalho duro da tripulação, as dificuldades e os desafios que o mar impunha. E essa memória deve ter permanecido com ele por toda a vida. E ele também teve de se adaptar, para aprender a viver por si só todas as experiências que o aguardavam na capital.

Ao chegar no Rio de Janeiro aos nove anos, Irineu começou a trabalhar com João Rodrigues Pereira de Almeida, um importante comerciante. Numa época em que era comum contratar pessoas com menos de catorze anos para serem caixeiros, ele logo se destacou, demonstrando bom faro comercial. Aprendeu muito da arte do comércio nesse primeiro emprego, onde também se graduou na tarefa de administrar e cuidar de finanças. Tempos depois, seria um dos homens a quem Pereira de Almeida confiaria seus negócios, que não eram poucos nem pequenos. A favor do jovem gaúcho, falava sua vontade de aprender e seu empenho em conhecer mais e melhor os negócios em que estava trabalhando. Aos catorze anos de idade, Irineu Evangelista de Sousa tornou-se guarda-livros das empresas de Pereira de Almeida, comandando uma grande e importante rede de negócios, apenas cinco anos depois de chegar ao Rio de Janeiro completamente inexperiente.

Conquistou depois a confiança de outras pessoas, outros empregos, conheceu e aprendeu muito, aperfeiçoou-se, sempre abrindo novas portas para o futuro, até que deixou de servir a outros para administrar seus próprios negócios. Primeiro, foi um brilhante e bemsucedido comerciante, ofício aprendido em seus primeiros anos no Rio de Janeiro. Até que, devido às questões políticas e ao cenário internacional a que o Brasil estava exposto, Irineu vislumbrou uma nova possibilidade: a de tornar-se industrial, deixando apenas de negociar mercadorias, para fabricar produtos por conta própria.

Se esse passo de mudar de ramo parece arriscado aos olhos dos empresários de hoje, era quase uma loucura o que pretendia Irineu em um cenário onde a agricultura era a locomotiva da economia, o café era o produto do momento (apesar das já existentes quedas de

preço), os escravos a mão-de-obra mais óbvia, e as fábricas, essencialmente, eram manufaturas para prover produtos de primeira necessidade para a população. Além disso, a “lógica do mercado” era muito diferente da que estamos acostumados atualmente. Em sua Autobiografia, o já Visconde de Mauá fala sobre qual era o pensamento de sua época a respeito de negócios: “Desgraçadamente entre nós entende-se que os empresários devem perder para que o negócio seja bom para o Estado, quando é justamente o contrário que melhor consulta os interesses do país”. Se essa era a mentalidade vigente no século XIX, as dificuldades naturais de iniciar um negócio eram potencializadas, tornando novos investimentos uma ousadia quase impossível.

Mas Irineu era um excelente articulador, calculava cada passo que daria no mundo dos negócios e avançava em direção ao seu objetivo com obstinação. Era 1846, quando ele julgou que fosse seguro dar a guinada em que deixaria o comércio, comprou de Carlos Colleman, um descendente de alemães, uma pequenina fábrica de fundição em Niterói, que estava em precárias condições, apesar dos esforços do proprietário e de ser essa uma das maiores empresas urbanas do Brasil daquela época (em que grandes mesmo, na verdade, eram as fazendas e propriedades rurais e os

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negócios no comércio), já que o chamado setor secundário era incipiente e quase inexpressivo. Apesar do interesse no negócio, Irineu conseguiu barganhar no preço e, em 11 de agosto de 1846 tornou-se proprietário do Estabelecimento de Fundição e Estaleiros da Ponta d’Areia, em Niterói.

Com seu empreendedorismo e pioneirismo, Irineu, que só se tornaria Barão em 1854, inaugurava assim, uma nova era. Não apenas em sua vida profissional ou em seus negócios, mas uma nova era no Brasil que, ainda Império, agora podia vislumbrar um progresso nunca antes visto. Estava inaugurada uma nova era também em Niterói, cidade que, se nasceu ligada ao mar, agora nunca mais se apartaria dele, pois dali em diante aquele lugar ficaria marcado pela atividade de construção naval. Hoje, mais de 150 anos depois, apesar dos percalços enfrentados pela indústria, a vocação permanece, os estaleiros ainda se fixam ali e a Ponta d’Areia é uma das poucas regiões do país onde se desenvolve, há mais de um século, a mesma atividade industrial: a construção naval.

Apesar de ser uma das maiores indústrias urbanas de sua época, o estaleiro comprado pelo futuro Barão de Mauá era, na verdade, muito modesto. Jorge Caldeira o descreve assim: “mal se distinguia de uma oficina artesanal, com seus telheiros toscos, uma pequena doca seca e o rude aparato de fundição. Ele mesmo (Irineu) chamava o negócio de ‘embrião’ daquilo que queria montar. Pensava numa fábrica à inglesa, organizada e com grande produção”.

A idéia da “fábrica à inglesa”, aliás, veio de uma viagem que Irineu fizera à Inglaterra seis anos antes, quando conheceu um estabelecimento de fundição e ferros em Bristol, o que prova que o sonho foi gerado e fermentado com cuidado.

Naquela época, o grande investimento eram as ferrovias, que acabavam por incentivar também as indústrias de siderurgia e máquinas. Por isso, construir estradas de ferro acabou tornando-se uma das mais importantes atividades econômicas do futuro Barão

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de Mauá. A “menina de seus olhos” era a Santos-Jundiaí, mas outras tantas, de norte a sul do país, também foram obras desse homem que, ainda nos tempos do Império, pensava como um empreendedor moderno. Mauá incentivou construções, captou recursos, investiu. Mas sabia que apenas por terra o desenvolvimento do país não seria completo. O mar precisava ser explorado. Por isso, quando visitou a Inglaterra, não deixou de notar a fábrica em Bristol, que foi o modelo que germinou a idéia de uma indústria como aquela no Brasil.

Em sua Autobiografia, Mauá descreve a experiência assim: “Era precisamente o que eu na mente contemplava como uma das necessidades primárias para ver aparecer a indústria propriamente dita no meu país (...). Era já então, como é hoje ainda, minha opinião que o Brasil precisava de alguma indústria dessas que podem medrar sem grandes auxílios, para que o mecanismo de sua vida econômica possa funcionar com vantagem; e a indústria que manipula o ferro, sendo mãe das outras, me parecia o alicerce dessa aspiração. Causou-me forte impressão o que vi e observei, e logo aí gerou-se em meu espírito a idéia de fundar em meu país um estabelecimento idêntico; a construção naval fazia parte também do estabelecimento a que me refiro”.

Mas, justamente porque o foco dos investimentos era outro naqueles meados do século XIX, pouca gente apostaria que um estaleiro podesse ter futuro. E menos pessoas ainda ousariam colocar dinheiro nessa aposta. Por isso, a Ponta d’Areia alçou vôo como um sonho solitário. E Irineu empenharia todas as suas energias, e muito de seu dinheiro, para manter esse sonho de pé, e transformá-lo em realidade. Jorge Caldeira faz um retrato da situação logo que a fábrica da Ponta d’Areia foi comprada: “Faltava simplesmente tudo para o funcionamento de uma empresa desses moldes no país – mas Irineu Evangelista de Sousa se julgava capaz de suprir sozinho boa parte desse todo. Ele possuía, é bem verdade, os dotes necessários para a tarefa. Em primeiro lugar, tinha dinheiro, um fator significativo

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Gravura de Jean

Baptiste Debret, extraída do livro

Viagem pitoresca e histórica ao Brasil

numa terra de capitais escassos; experiência como administrador; e uma visão ampla do cenário econômico. Os sócios da Inglaterra lhe abriam possibilidades inacessíveis aos investidores comuns”.

Alberto de Faria, biógrafo de Irineu no livro Mauá – Irineu Evangelista de Sousa, Barão e Visconde de Mauá (1813-1889) exalta a idéia e a concretização do sonho da Ponta d’Areia em uma linguagem quase ufanista, como era comum no início do século XX, quando o livro foi editado: “Na ordem cronológica, o estabelecimento de fundição e de construção naval na Ponta d’Areia é o primeiro grande serviço de Mauá à sua pátria. (...).

Poderá parecer exagero de admiração dizer que de graves riscos nos salvou a Ponta d’Areia nos primeiros embates da guerra (contra o Paraguai)”. Quando essa guerra começou, quase um terço de nossa força naval havia sido produzida na Ponta d’Areia.

Para além dos ufanismos, a verdade é que Irineu era um homem à frente de seu tempo. Se isso em perspectiva histórica seria

uma virtude, por outro lado significava problemas imediatos no presente em que ele vivia. Um presente em que a realidade era o trabalho escravo, o investimento na agricultura e a crença de que trabalho assalariado não era uma possibilidade factível, já que trabalhar, em si, era considerada uma atividade humilhante, aviltante. Por isso, apesar de Irineu nunca ter sido exatamente um escravocrata, não teve outra saída, porque quase não havia trabalhadores livres qualificados (ou ao menos disponíveis) naquele cenário.

Assim, mais de 30% do capital empenhado na compra da fábrica foi destinado à compra de escravos que ali trabalhavam, e que já tinham conhecimento específico do negócio. Eram escravos caros porque sabiam trabalhar: eram carpinteiros, fundidores, calafates, modeladores e maquinistas. Se o trabalho era degradante para os brasileiros, a saída era contratar gente de fora – estrangeiros que custavam caro, pois quando aceitavam a proposta e aceitavam vir para o Brasil, precisavam ser recompensados financeiramente pelos

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riscos que essa escolha representava: atravessar o oceano, ficar a mercê de doenças e ainda ganhar o suficiente para, num futuro próximo, voltarem à Europa com economias que garantissem um melhor nível de vida. Mesmo a preço de ouro, era necessário contratar mais pessoal. João Henrique Reynell de Castro, amigo de longa data de Irineu, foi o responsável por contratar e trazer para a Ponta d’Areia, diretamente da Inglaterra, um engenheiro, um mestre maquinista, um mestre modelador, quatro caldeireiros e seis moldadores. Com essa mão-de-obra livre e bem-qualificada, o estaleiro saía na frente em termos de desenvolvimento e tecnologia, e iria depois promover uma verdadeira revolução nas ainda provincianas cidades de Niterói e Rio de Janeiro, que depois experimentariam uma evolução nos recursos, hábitos e costumes. Foi por causa da fábrica da Ponta d’Areia, por exemplo, que os barcos a vela foram aos poucos substituídos por vapores fabricados ali.

Entretanto, havia as dificuldades de logística: encomendas demoravam meses para serem entregues, freqüentemente atrasavam, imprevistos ocorriam. Irineu desdobrou-se para driblar esses problemas. Cuidou pessoalmente do negócio, optou por trabalhar com estoques elevados para evitar a falta de material e o atraso da entrega das encomendas no caso de haver problemas nos navios que traziam a matéria-prima. Tratou de detalhes quando era necessário, alocou os lucros de outros negócios para impulsionar a Ponta d’Areia e fez a fábrica crescer: contratou operários, dando empregos livres numa fase em que os escravos eram a base da mão-de-obra; comprou terrenos vizinhos; aumentou a produtividade. Tudo porque acreditava que esse era o caminho mais certo em direção ao desenvolvimento. A intenção era poder competir com os preços dos produtos importados. Conseguiu obter isenção de impostos para as importações de sua empresa, por meio de uma lei da época que ajudou a indústria nacional apenas como benefício secundário. Na verdade, ela havia sido implantada porque as finanças brasileiras passavam por uma crise e, para

Ponta d’Areia : O Berço da Construção Naval

saná-la, as tarifas foram aumentadas. Irineu sabia que as vantagens eram transitórias e por isso empenhou-se em diminuir os custos ao máximo. Além disso, tomou outra providência estratégica: conseguiu como cliente o governo. Dias depois de adquirir a fábrica da Ponta d’Areia, assinou um contrato no qual forneceria os tubos de ferro para realizar a canalização do Rio Maracanã. Em um ano, o capital da empresa aumentou mais de quatro vezes. Mas a mágica não era tão simples assim. Com muitos elogios em relação ao trabalho realizado, mas sem nenhum pagamento por parte do governo, logo o dinheiro começou a minguar. O poder público argumentava que não havia dinheiro suficiente para pagar pela obra. Em vez de desistir, o futuro barão insistiu: descobriu novas possibilidades de negócios usando a estrutura da fábrica que já estava funcionando a pleno vapor. Pedro Carlos da Silva Telles, em seu livro História da Construção Naval, descreve a variedade de produtos da fábrica da Ponta d’Areia: “Embora a atividade principal do estaleiro fosse de construções navais, o estabelecimento produziu também uma grande quantidade e variedade de máquinas e equipamentos, tais como máquinas a vapor, engenhos, bombas, tubos, máquinas e peças fundidas em geral, bem como veículos ferroviários”. Jorge Caldeira reforça a idéia de que a produção precisou ser diversificada ao extremo: “Começou a fabricar pregos, sinos de igrejas, máquinas de serrar, peças para engenhos de açúcar, guindastes e molinetes”, escreve o pesquisador.

Foi também nessa época que se descobriu uma outra atribuição para a estrutura do estaleiro: reparar navios. Nas instalações da Ponta d’Areia transformou-se em rebocador um vapor que foi operar no sul do país. Essa atividade nunca mais foi abandonada e, em outras épocas difíceis para a construção naval brasileira, já no século XX, foi o que contribuiu para manter aberto o estaleiro.

Mas tudo isso não foi suficiente, nem mais forte que o jogo político comandado pelos liberais que o Brasil assistia à época, e do qual Irineu estava de fora, apesar de sua importância financeira,

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Detalhe das máquinas da casa das bombas do dique Lahmeyer, tabém de origem inglesa, mas de época posterior ao Barão de Mauá

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pois havia confessado, em uma correspondência do início da década de 1840, manter ligações com os conservadores. No final daquela década, o jogo político mudou e os conservadores – de quem Irineu havia confessado ser amigo – alcançaram o poder. Com esse golpe de sorte, a fábrica da Ponta d’Areia, que estava à beira da falência, recebeu em 1848 uma injeção de 300 contos de réis, valor de um empréstimo obtido junto à Câmara dos Deputados. Além disso, os pagamentos relativos às obras voltaram a ser recebidos. Assim, o desenvolvimento da fábrica continuou. Agora, na Ponta d’Areia, havia mais de trezentas pessoas trabalhando nas oficinas existentes: fundição de ferro, fundição de bronze, acessórios, construção naval e caldeiraria. A fábrica também contava com carpintaria, galvanização e velame, nos diversos galpões que possuía em Niterói (e que inclusive foram retratados por Bertichen em 1856). Fabricava engenhos de açúcar completos, pontes de ferro, canhões de bronze para navios de guerra. Até navios a vapor completos eram fabricados ali. Outra evolução podia ser vista: agora, a maior parte das pessoas que trabalhavam na fábrica eram livres, e não mais escravos. “A Ponta d’ Areia provava o valor da iniciativa individual como caminho para o desenvolvimento”, resume Caldeira, em seu livro Mauá, Empresário do Império. Depois da tempestade, a bonança. Em 1849, portanto três anos depois de comprada pelo futuro Barão de Mauá, “a Ponta d’Areia já era uma indústria importante, contando com um grande estaleiro e oficinas anexas”, como escreve Pedro Carlos da Silva Telles. O autor cita em seu livro História da Construção Naval um anúncio publicado no início daquele ano em que se afirmava que a fábrica era capaz de construir “embarcações de todas as dimensões, tanto de vela como de vapor”, além das embarcações de ferro, incluindo peças inteiriças de até sete toneladas. Até hoje, não é qualquer fundição que tem essa capacidade. Para uma fábrica de um lugar como o Brasil do século XIX, que na época não tinha nenhuma expressão no setor secundário, isso era espantoso.

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Além disso, completa Telles, o anúncio destacava o que hoje se poderia chamar de pesquisa em outros mercados, já que naquela fábrica “os melhoramentos que vão aparecendo na Europa, de onde recebeu constantemente as mais exatas informações” eram prontamente utilizados. Aquela altura, já trabalhavam na Ponta d’Areia engenheiros ingleses, e mão-de-obra especializada era trazida de toda a Europa. Durante a questão platina, foi o estaleiro da Ponta d’Areia que forneceu vapores leves para que se enfrentasse o conflito, transportando as tropas com mais rapidez.

Um relatório de 1850 do Ministro do Império, Joaquim Marcelino de Brito, dá a noção da importância que a fábrica sonhada e realizada pelo gaúcho em Niterói tinha para o país em sua época: “Resta falar da fábrica de fundição de ferro da Ponta d’Areia. É, sem contestação, o mais importante estabelecimento fabril do Império, tem tido melhoramentos constantes e é poderosíssimo auxiliar de muitas matérias, que promove e alimenta com a faculdade de acharem elas, em seus produtos, meios e recursos que outrora mandávamos mendigar à Europa; tem produzido importantíssimas peças de maquinismos, diversas caldeiras para máquinas de vapor e entre elas um jogo de três da maior força que até o presente se tem empregado no Brasil, engenhos de açúcar e de serrar, guindastes, molinetes e muitas outras obras, entre as quais os tubos de ferro para o encanamento do Maracanã”.

Todo esse franco desenvolvimento fez com que até mesmo os mais incrédulos investidores dos primeiros tempos ficassem convencidos de que a Ponta d’Areia era um bom e sustentável negócio.

Foi nesse cenário que Irineu abre o capital da Ponta d’Areia, elevando-o para 1250 contos de réis, vinte vezes mais do que a quantia investida quando comprara a pequena fábrica do alemão Carlos Colleman, apenas seis anos antes. Com o dinheiro conseguido na abertura de capital da empresa – da qual continuou

Ponta d’Areia : O Berço da Construção Naval

sendo o maior acionista – passou a investir na abertura de um banco. Novamente, começava a calcular a mudança de rumo em seus negócios.

A Ponta d’Areia não parava de crescer. Na década de 1850 era considerado o maior estaleiro da América do Sul, construindo embarcações para transporte de cargas e passageiros, além de máquinas.

Em abril de 1854, Irineu recebe o título de Barão de Mauá, ganha ainda mais reconhecimento social, mas não pára de trabalhar arduamente para fazer prosperar seus negócios.

Em 1857, segundo Telles, a Ponta d’Areia chegou a ter mil funcionários em uma fase de grande prosperidade não apenas para essa indústria mas para todo o setor da construção naval brasileira. Apesar disso, são raros os dados exatos sobre a produção da fábrica. Na autobiografia de Mauá, há a informação de que 72 navios foram construídos nos primeiros onze anos em que o estaleiro pertenceu a ele, um número que representa a metade da tonelagem aproveitável no Brasil, à época. Isso significa uma média de seis navios por ano, uma alta produtividade ainda que o porte dos navios não fosse grande. Segundo Telles, “Alves Câmara acrescenta a informação de que o deslocamento e a potência de máquinas totais desses navios atingiam, respectivamente, cerca de 13000t e 5500 CV”.

Como o Barão de Mauá possuía diversas empresas, ele utilizava a estrutura do estaleiro da Ponta d’Areia para produzir máquinas, equipamentos e até mesmo embarcações para tais empresas. Certamente, navios ali produzidos navegaram pelo Amazonas, pelo Prata, Rio Grande e outros locais,

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Desenho com efígie do Imperador D. Pedro II

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Inauguração do primeiro trecho de Cais do Porto de São Lourenço, em 1927. Foto de Augusto Malta

carregando cargas e fazendo transporte dentro do Brasil e para fora do país. Peças de reposição e reparos de embarcações, para diversas empresas, como a Cia. de Navegação do Amazonas, também eram feitas na empresa da Ponta d’Areia. Mas o estaleiro tinha ainda outros clientes para os quais fabricou embarcações, vapores de rodas, rebocadores, vapores costeiros e barcas, entre as quais, pode-se citar os vapores costeiros Santa Maria e São Paulo (que faziam o transporte de passageiros entre Rio e Santos); barcas para a travessia Rio-Niterói e para o trecho que Telles chama de Rio-Mauá, como a barca Petrópolis, Príncipe do Grão Pará e Engenheiro Coutinho.

A indústria criada por Mauá era próspera não apenas no tocante a construção naval, mas em todas as atividades a que se propunha. Sua força era tamanha que, mesmo já durante a crise que viria culminar em seu fechamento, aparecia com destaque no cenário internacional. Exemplo disso foi o que aconteceu em 1861, quando, apesar da crise já anunciada, alguns dos muitos equipamentos produzidos pela fábrica da Ponta d’Areia foram incluídos pelo júri especial da Exposição Nacional Preparatória de

Londres (uma espécie de eliminatória local para uma exposição mundial que ocorria na Inglaterra) no Catálogo de Produtos Industriais da Exposição Nacional de 1861, e mais tarde enviados à Exposição Universal, em Londres. Alberto de Faria, na biografia que escreveu sobre Mauá, descreve o sucesso da empresa naquela exposição com o estilo peculiar de narrar do início do século XX: “Pelo jogo de moendas para cana, assim como pela máquina de torrar farinha, e pela tacha para açúcar, foi o estabelecimento da Ponta d’Areia premiado. (...) Ele ( Mauá ) e a Ponta d’Areia confundem-se no primeiro lugar nesse certame industrial, primeira exposição que houve no Brasil. A fábrica da Ponta d’Areia expôs uma pequena estátua de bronze, a primeira que se fundiu no Brasil”.

E particularmente sobre a produção naval da fábrica, o autor aponta: “Os esplêndidos moldes de construção naval aumentam ainda os prêmios conquistados pela Ponta d’Areia e que depois foram confirmados na Exposição Universal de Londres, onde Mauá foi ao mesmo tempo galardoado com várias medalhas como expositor brasileiro...”.

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O elogio a respeito dos moldes veio menos de cinco anos depois do incêndio que havia destruído a fábrica (e os moldes de navios), em 1857. A capacidade de recuperação de Mauá, especialmente se levarmos em conta a época em que ele viveu, impressionava.

Talvez por isso mesmo, o júri da Exposição declara, em um relatório, que nada mais pode ser dito a respeito dos recursos de que a fábrica dispunha porque nada havia mais do que o que já estava em “domínio geral”. Diz o relatório: “Ligando-se tão de perto ao interesse de outras pequenas indústrias nascentes, como sejam as fábricas diversas estabelecidas nesta corte e províncias, as construções navais para a navegação de longo curso, de cabotagem e de tráfego dos nossos portos e rios, que devem germinar à sombra protetora dos benefícios que derramaram as grandes indústrias, e que lhe dão em retorno a seiva para que elas se nutram e vivifiquem quando explorada no país, foi o estabelecimento da Ponta d’Areia o objeto da mais séria atenção do júri especial do 3º grupo, logo que ele considerou do mais subido interesse para o país as promessas daquelas indústrias que concorrem para favorecer a agricultura, as fábricas e a navegação”. Era pública a capacidade e a qualidade de produção da Ponta d’Areia, mas logo novos problemas também se tornariam de domínio público.

Para conquistar tantos prêmios, a fábrica produzia em velocidade, quantidade e qualidade impressionantes para sua época, não apenas no que se refere à Marinha Mercante, mas também contribuindo com a Marinha de Guerra do Brasil.

Exemplo disso é o levantamento que Telles faz da produção da fábrica de Ponta d’Areia para a Marinha, em seu livro História da Construção Naval no Brasil. Ele destaca que a maior parte dessas embarcações era feita a partir de projetos de engenheiros do Arsenal da Corte, o que não diminui a importância e a capacidade de produção do estaleiro. São por ele citados:

- Barcas a vapor de rodas (apenas o casco) Amélia e Cassiopéia, construídas em 1838 (quando o estaleiro ainda era de

Ponta d’Areia : O Berço da Construção Naval

Carlos Colleman), com 70t e máquinas de 12CV;

- Corvetas de rodas Recife, D. Pedro II e Paraense, lançadas em 1849,1850 e 1851, com cerca de 500t e 50m de comprimento;

- Vapor de rodas Dom Pedro, com 36,27m de comprimento e 4,72m de boca, adquirido pela Marinha em 1850;

- Galeota a vapor Galeota Dourada, para uso do Imperador, construída entre 1857 e 1858. Sobre essa embarcação, Telles comenta que seu projeto foi feito pelo engenheiro Napoleão Level e que este talvez tenha sido o primeiro navio construído no Brasil com a utilização de ferro (no casco);

- Patacho Iguassu (1858);

- Vapor de rodas Apa (1858);

- Vapor de rodas Jaguarão (1859), com máquinas de 100 CV;

- Vapor de rodas Corumbá (1860), com 24m de comprimento e máquinas de 40CV, além do casco provavelmente construído parcialmente em ferro;

- Canhoneiras de rodas Henrique Martins e Greenhalgh (1865), com casco de madeira, 163t e 28m de comprimento;

Sobre essas construções, Faria destaca: “pode-se bem imaginar o valor que tiveram nas nossas operações de guerra vapores de 12 milhas, recorde de velocidade nas costas do Brasil. Era um luxo patriótico de Mauá anteriormente construir vapores que vencessem os ingleses na carreira Rio-Santos”. Infelizmente, a rivalidade com os ingleses, se na época se restringia ao porte dos navios, vai depois se agravar. E o patriotismo de Mauá, descrito aqui como “luxo”, passará, anos depois, a ser uma questão de honra.

Em junho de 1857, a época próspera fica ameaçada por um incêndio que atingiu a Ponta d’Areia, destruindo as oficinas e diversos moldes que permitiam a construção dos navios. A produção parou, perdeu-se tecnologia, equipamentos e material, num prejuízo de mais de 500 contos de réis. Na época, o incêndio foi considerado criminoso. Por essa hipótese, os ingleses teriam sido responsáveis pela tragédia, por considerarem que a Ponta d’Areia

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