Arca Brasileira: Uma Viagem pelo Brasil e seus Animais

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Copyright® by Quiron Comunicação & Conteúdo S/E Ltda.

Pesquisa e Redação: Renata de Albuquerque e Angela Sanches

Coordenação Editorial: Ricardo O. Oliveira

Consultoria em Preservação Animal: Arca Brasil

Redação de Artigos sobre Preservação: Renata Costa

Projeto Gráfico, Editoração e Capa: Vagner Simonetti

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

A298a Albuquerque, Renata, 1976-

Arca brasileira : uma viagem pelo Brasil e seus animais / Renata de Albuquerque, Angela Sanches ; coordenador editorial Ricardo O. Oliveira. - São Paulo : QuironLivros, 2009.

142p. : il.

ISBN 978-85-89204-11-8

1. Cultura - Brasil. 2. Cultura popular. 3. Preservação ambiental. 4. Animais - Proteção.

I. Sanches, Angela, 1968-. II. Oliveira, Ricardo O., 1972-. III. Título. 09-3085. CDD: 306

CDU: 316.7

25.06.09 01.07.09 013460

Todos os direitos desta edição reservados a Quiron Comunicação & Conteúdo S/E Ltda. www.quironcomunicacao.com.br

Arca Brasileira

Uma Viagem pelo Brasil e seus Animais

Pesquisa e Redação

Renata de Albuquerque

Angela Sanches

Coordenador Editorial Ricardo O. Oliveira

2009

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Índice 10 62 36 Tartaruga-do-amazonas ............................ 12 Boto Cor-de-rosa ....................................... 20 Pirarucú ........................................................ 28 Cabra ............................................................ 38 Jumento ........................................................ 46 Peixe-Boi ...................................................... 54 Onça Pintada .............................................. 64 Boi ................................................................. 72 Arara Azul ................................................... 80 88 Cão ................................................................ 90 Gato .............................................................. 98 Mico Leão Dourado .................................. 106 114 Cavalo ........................................................... 116 Baleia Franca ............................................... 124 Gralha Azul ................................................. 132 6 7

Apresentação

Alguns livros surgem sem uma idéia inicial específica – eles “acontecem”. Outros, já começam com um projeto mais definido por parte do autor. Esse livro nasceu de um modo diferente. Ele é fruto de uma parceria, e por isso nasceu da soma de várias experiências, e também foi feito a várias mãos.

Nossa história de trabalho com a Arca Brasil já vem de longa data. Acompanhamos o trabalho desta ONG na proteção dos direitos dos animais há pelo menos 8 anos. Vimos seus esforços iniciais com campanhas de controle populacional de cães e gatos tornar-se um modelo nacional. E tivemos a satisfação de participar e colaborar em algumas de suas iniciativas.

Desde que iniciamos nosso trabalho com projetos culturais já trilhamos diferentes caminhos. Contamos histórias tão diferentes como a de violeiros e estaleiros. Já recebemos prêmios pela qualidade das pesquisas realizadas. Mas a presente obra nos enche especialmente de orgulho.

Numa conversa com Marco Ciampi, o Presidente da Arca Brasil surgiu uma pergunta e um desafio: Porque não concebermos um livro que aliasse a questão cultural com a preservação e a proteção animal? Seria possível? Do que falaríamos? Qual a mensagem a ser passada? Qual a sua relevância?

Depois de outras várias conversas e algumas pesquisas iniciais surgiu a convicção: a preservação de determinadas espécies da fauna brasileira era indispensável para que certos traços da cultura regional brasileira não desaparecessem. Afinal, seria possível conceber, por exemplo, a figura do peão pantaneiro, sem o contra ponto dos “causos” e lendas dos seus encontros com a “pintada”? Ou entender realmente como funciona a cabeça de um ribeirinho do Amazonas, se não levarmos em conta traços de sua cultura; como o seu respeito pelos “filhos do boto”? E o que dizer da gralha azul e as florestas do Paraná? E da relação do nordestino com a cabra ou o jumento, animais tão presentes no dia-a-dia das populações tradicionais da região, que viraram sinônimos de traços do caráter desses habitantes.

Enfim, são estas e muitas outras histórias que contamos neste livro. Histórias de cada canto desse enorme país, que nos ajudam a entender melhor quem somos, da onde viemos, de que material, de que herança, somos realmente filhos. Esperamos que surjam outras obras que também coloquem a preservação das riquezas da cultura regional brasileira lado a lado com a proteção animal. E esperamos, acima de tudo, que essa obra ajude a difundir um conceito básico: a preservação das espécies ameaçadas, e o respeito a espécies que conosco convivem em contato mais próximo, não são somente indicativos do grau de desenvolvimento de uma sociedade, são uma necessidade. Podemos mesmo dizer que são um imperativo. Se quisermos manter clara na mente das gerações por vir os fatos, as cores, as memórias e histórias, que nos fazem ser realmente brasileiros.

Fundador da Quiron Comunicação & Conteúdo

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Rios de conhecimento

A região norte do país ainda hoje exerce um misto de fascínio e curiosidade sobre aqueles que ainda não a conhecem. A imagem que a floresta amazônica possui, de ser o “pulmão verde do mundo” atrai a curiosidade e a atenção de turistas, visitantes, cientistas, políticos, estudiosos e ativistas, não só do Brasil, mas também do mundo inteiro.

Colocada no centro da agenda mundial pelas discussões que envolvem a preservação do planeta e a continuidade da própria existência humana, a Amazônia é hoje um foco da atenção e do interesse mundiais. A preocupação com sua preservação extrapola as fronteiras brasileiras, fazendo com que a discussão sobre a sua utilização e desenvolvimento seja pauta de discussões na ONU e demais organismos internacionais.

Indiscutíveis importâncias internacionais à parte, o que essa floresta representa para quem mais diretamente convive com ela? A sua onipresença faz com que mesmo os habitantes das maiores cidades à sua volta como Manaus ou Belém, marquem seus compromissos antes ou depois das chuvas quase diárias determinadas pela força da mata. Já para os ribeirinhos e demais “povos da floresta”, essa influência é inegável. Ela é fonte, razão e raiz de toda a sua existência. Social, econômica, e principalmente, culturalmente, essa tão cantada presença da floresta faz com que a ligação dos habitantes da região norte do país com a natureza seja forte. Especialmente forte.

A chamada cultura cabocla baseia-se em uma mistura dos hábitos e costumes indígenas (uma população ainda muito representativa em todos os estados da Amazônia Legal) com as influências de outros povos: portugueses, franceses e tantos outros que andaram por ali. Podemos mesmo dizer que em nenhuma outra parte do país, a herança indígena se faz tão proeminente e determinante das características culturais que a definem.

Atualmente, mais de 40 povos indígenas estão presentes na região. Sua cultura e seu imaginário, fortemente baseado em lendas, permeiam a identidade cultural dos rincões norte desse nosso país. A profunda ligação com a terra e seus elementos, tão presentes na vida do índio brasileiro, é elemento essencial

para compreendermos como o homem amazônico de hoje se “entende”, e como se relaciona com o meio ambiente à sua volta.

O próprio Rio Amazonas é em si, um ponto central no entendimento da constituição social e cultural da região norte. Ele é a origem de muitas riquezas, de alimentos e da subsistência das populações que vivem às suas margens. É pelo Rio Amazonas e seus inúmeros afluentes que se vai de um lugar a outro, que se in- tegram culturas e povos, que se unem as pessoas. É ao longo da extensão desses rios que se formam as comunidades, cada uma com suas peculiaridades e histórias próprias, mas ligadas entre si por esse grande fator de socialização. O rio é, no inconsciente coletivo da região, o unificador, o comum a todos, atuando como muito mais que um simples meio de transporte e comunicação. Ele reflete e sintetiza a necessidade e o desejo do homem amazônico, tão isolado geograficamente de tudo e de todos, de pertencer a um grupo, de vencer esse “amazônico” isolamento. Não por acaso, os inúmeros mitos e lendas existentes na região são ligados, surgidos, derivados e relacionados com esse mesmo rio...

Se a produção artesanal da região tem um forte caráter utilitário - cestos, barcos e utensílios domésticos – respondendo às necessidades de utilização dos recursos oferecidos pela floresta, as lendas e o folclore trazem em si a expressão transcendente do povo local. Elas refletem o desejo de entender mais do que aquilo que se pode “ver”. Assim, manifestações culturais e folclóricas, conhecimento, crenças, hábitos, comportamentos e festas populares misturam elementos comuns do lugar – fauna e flora –para explicar o grande mistério da existência humana. E é assim que o homem que vive na região amazônica se relaciona com a terra e cria uma identidade cultural própria. Como diz a estudiosa Marcela Arantes Ribeiro: por meio do mito, o ribeirinho materializa a vida da própria natureza e cria seu mundo diante do mundo físico que já encontrou construído.

Esperamos que essa viagem que propomos agora pela região norte do Brasil nos faça aprender. E temos muito que aprender com os ribeirinhos. Aprender a observar e a tirar lições com tudo aquilo que já estava aqui muito antes de existirmos.

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tartaruga (Podocnemis expansa) -do-amazonas

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A Charlotte Luis Fernando Veríssimo

A mãe da escritora Colette tinha uma tartaruga chamada Charlotte, que dormia durante todo o inverno. A menina Colette sabia que o inverno tinha acabado quando sua mãe anunciava “Charlotte seveille, cest le printemps”. Não importava que o calendário não concordasse com a tartaruga. Ou que o próprio clima a desmentisse. Podia estar nevando: se Charlotte abrisse os olhos, era primavera.

Não se sabe a idade da Charlotte. Podemos presumir que fosse uma tartaruga que já vira passar muitas primaveras. E que, portanto, em matéria de mudança de estação, era mais confiável do que o calendário ou o clima. O calendário traz as datas oficiais em que uma estação termina e a outra começa, com certeza burocrática e de acordo com cálculos precisos, indiferente ao clima. O clima pode variar e até enlouquecer de ano para ano, indiferente ao calendário. Já a tartaruga sente a mudança nas suas entranhas. Tem uma sabedoria instintiva mais antiga do que qualquer calendário. Sabe que a hora exata em que o inverno dá lugar à primavera é a sua hora de acordar. E vice-versa.

Muita gente vive segundo crenças particulares ou tradições familiares, desconsiderando as informações que regem ou afligem a vida dos outros. É gente que confia na Charlotte mais do que no senso comum. Desconsidera os ciclos oficiais, o noticiário e todas as evidências em contrário e só segue as convicções das suas entranhas - por mais estranhas que sejam. Todo tipo de esoterismo é uma forma de acreditar na Charlotte, ou numa sabedoria misteriosa anterior à inteligência.

Mas a Charlotte também serve como metáfora para outro tipo de desconsideração, a das pessoas pelo significado maior dos acontecimentos em que estão metidas, ou pelo que não afeta seus interesses menores. Como aquele orador famoso que enaltecia as conquistas da Revolução Francesa (para não sair da França) começando não pela liberdade, a fraternidade ou a igualdade, mas pela sopa. Pois para ele o maior feito da Revolução fora acabar com o “bouillon” que era só o que serviam nos restaurantes - o nome “restaurant” era o adjetivo que descrevia a sopa - e substituí-lo pela mesa variada, acessível a todos os franceses. Para o orador, a revolução que importava ocorrera no menu. Como ele, muita gente até hoje parece fazer questão de não entender o tempo em que está vivendo, ou a revolução acontecendo à sua volta.

Também tem gente que só reconhece a importância de qualquer notícia quando ela acorda a sua tartaruga. Há certo exagero, claro, em viver eternamente ligado nos fatos e preocupado com o mundo. Num mundo em crise, isso é receita certa para a neurose - por mais que seu pequeno feudo afetivo esteja em ordem. Mas não se pode viver idilicamente alheio a tudo. Principalmente quem não tem vocação para tartaruga.

Texto publicado no Jornal Zero Hora em 05/5/2008, do autor Luis Fernando Veríssimo. Direitos Autorais cedidos pelo autor.

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Longevidade amazônica

É nos rios de águas calmas da região norte que a tartaruga-doamazonas passa os dias a nadar. A vida segue lentamente para um animal que pode viver, segundo alguns, quase um século. Ela é o maior quelônio de água doce da América do Sul e, como todo réptil, precisa do sol para aquecer seu corpo, tendo por isso hábitos essencialmente diurnos. A tartaruga-do-amazonas sempre fez parte da vida cotidiana do homem ribeirinho, que convive em harmonia com a natureza que o cerca. Mas, hoje, a ameaça de extinção ronda esse animal que, apesar de chamar-se tartaruga, é na verdade um cágado, já que vive em baías de grandes rios de água doce, como o próprio Amazonas.

A tartaruga-do-amazonas era um animal muito comum na região, quando o naturalista Henry Coudreau viajou pelo norte do país no final do século XIX. Tanto que, para ele, as tartarugas eram uma fonte inesgotável de alimento. O consumo da carne da tartaruga-do-amazonas é um hábito arraigado entre índios

e caboclos na região. Mais recentemente, passou a ser reconhecido como uma iguaria gastronômica. Realmente, poderia haver muitos desses animais na natureza, uma vez que, em cada postura, a fêmea do animal chega a colocar cerca de 100 ovos. Nos registros da viagem de Francisco de Orlleana, que chegou à região no século XVI, há referências da troca de utensílios por tartarugas entre a população local e os navegadores.

A ocorrência em grandes quantidades, além da forte identificação que o povo do lugar tem com este animal, fizeram com que a tartaruga-do-amazonas passasse a ser reconhecida como um símbolo amazônico. Outro naturalista, o inglês Henry Bates, que morou na região entre 1848 e 1859, estimou que aproximadamente 48 milhões de ovos da tartaruga-do-amazonas eram extraídos da natureza por ano para consumo humano. Essa predação indiscriminada, com a captura da tartaruga para fazer óleo para lampiões; o consumo de sua carne; o uso como matéria-pri-

ma de cosméticos; o uso de sua carapaça como bacia; de sua pele para fazer tamborim; e o emprego de seus ovos, para fazer “manteiga de tartaruga”, alterou o equilíbrio que sempre existiu entre a capacidade reprodutiva do animal e o consumo somente das populações locais, e levou a espécie a entrar na lista de ameaçados à extinção, já em meados do século XX.

A identificação da tartaruga com a cultura e o folclore da região amazônica é tão intensa que existem muitas histórias a respeito de sua importância. O homem amazônico tem uma percepção mitológica das águas, e respeita profundamente os mistérios que vêm do rio. É assim que ele pode reinterpretar sua realidade, compreender a natureza que se impõe à sua volta e descobrir a harmonia que pode haver entre seres humanos, animais e plantas. A tartaruga é, certamente, uma figura de destaque nesse cenário. O muiraquitã, eternizado em “Macunaíma”, de Mário de Andrade, é um dos mais poderosos amuletos indígenas e uma das formas na qual ele pode ser encontrado é justamente a da tartaruga.

Em 1952, Câmara Cascudo traduziu o livro “Mitos amazônicos da tartaruga”, escrito pelo professor norte-americano Charles Frederick Harrt em 1875. Nessa coletânea de histórias que normalmente eram passadas via tradição oral, e que desde criança o homem do norte do país se acostumou a ouvir, a tartaruga-doamazonas é um dos personagens de destaque em suas narrativas fantásticas.

Uma das lendas conta que, certa vez, o filho de um cacique indígena foi mordido, sem perceber, por uma cobra coral à beira de um rio. Então começaram as tonturas e ele desmaiou sobre algo que parecia ser um rochedo, mas que na verdade, era o casco de uma tartaruga. Quando a tartaruga percebeu que estava carregando nas costas o filho do cacique, pôs-se a nadar em direção a aldeia. Enquanto isso, o cacique, notando a ausência de seu filho, pediu que diversos guerreiros fizessem uma busca pela floresta. Ao procurarem o filho do cacique, notaram o rastro da cobra coral. Ao saber disso, o cacique teve certeza da morte do filho. Em meio à tristeza, e à busca do corpo de seu filho, o cacique viu dezenas de tartarugas formando um círculo de proteção no meio do qual estava a tartaruga gigante. Ela triturava folhas sobre o ferimento do filho do cacique. Sabendo que a tartaruga havia salvado seu filho, o cacique ordenou que, a partir daquele momento, todas as

tartarugas seriam poupadas, vivendo por longos anos sob a proteção da aldeia e de seus futuros integrantes. Todos se adornariam com miniaturas de tartaruga, como símbolo de perseverança, tranqüilidade e longevidade.

Para tentar preservar a tartaruga-do-amazonas, como quis o cacique da lenda, diversas iniciativas começaram a surgir como, por exemplo, a da Reserva Mamirauá e a da Sociedade de Preservação aos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia (SOPREN), que tem a tartaruga-do-amazonas como seu logotipo.

Antes de existirem tais iniciativas, o próprio desconhecimento da biologia deste animal era uma barreira. Com o progressivo estudo da espécie a visão sobre a tartaruga-do-amazonas passou a ser mais correta e as iniciativas preservacionistas, mais empenhadas. Por exemplo, a criação das tartarugas da Amazônia em cativeiro é uma possibilidade de garantir sua preservação, já que, protegidos, os filhotes não ficam à mercê de seus predadores naturais: urubus, gaviões, piranhas, jacarés, jaús e outros peixes. Assim, mesmo que uma boa parte dos animais criados em cativeiro sejam destinados ao consumo humano, a percentagem de filhotes já crescidos (e por isso com maiores chances de chegar à idade adulta) que obrigatoriamente o criador deve liberar no meio ambiente, é muito maior do que a taxa natural de indivíduos que atingem a maturidade sexual. Isso tem contribuído de maneira significativa para o aumento dos estoques da espécie. Por isso, com base em estudos científicos e em tecnologia desenvolvida pelo Centro Nacional dos Quelônios da Amazônia (CENAQUA), o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) autorizou a criação em cativeiro, como uma forma de conciliar a demanda por carne desse animal, tão arraigada nos hábitos alimentares dos habitantes da região, com as necessidades de repovoamento das populações da tartaruga-do-amazonas.

Assim, há mais do que esperança, mas uma possibilidade real, de a tartaruga-do-amazonas voltar a fazer parte do cotidiano da população na Amazônia. Um exemplo bem sucedido desta iniciativa é o “Projeto Quelônios da Amazônia”, mantido pelo RAN (Centro de Conservação e Manejo de Répteis e Anfíbios), responsável por 119 criadouros comerciais com mais de um milhão de animais em sistema de confinamento.

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Informações Biológicas

A tartaruga-do-amazonas (Podocnemis expansa), ou tartaruga verdadeira, é o maior quelônio de água doce da América do Sul. Ocorre na baía de grandes rios no Norte do Brasil, Guianas, Venezuela e Colômbia. Encontradas em grupos, vivem cerca de 50 anos, e alimentam-se de peixes e vegetais, chegando a pesar mais de 60 kg.

O casco da tartaruga-do-amazonas é oval e seus ossos são cobertos por um escudo córneo. Na carapaça, há um colorido preto, marfim ou alaranjado, com manchas escuras regulares.

Sua cabeça é achatada e suas patas são curtas e potentes: a anterior tem cinco unhas e a posterior, quatro.

Seu tamanho na fase adulta é de 80 cm de comprimento e 60 cm de largura. Em cada postura, a fêmea da espécie chega a colocar mais de 100 ovos, mas muitos filhotes não sobrevivem devido à predação natural.

A criação em cativeiro têm surgido como uma forma muito eficaz de ajudar na preservação da espécie.

Cativeiro que salva

A tartaruga-do-amazonas é velha conhecida dos indígenas. Desde os mais remotos tempos, eles a usavam na alimentação e aproveitavam seu couro e carapaça para fazer artesanato e utensílios. Quando o homem branco começou a ocupar a Amazônia, adquiriu o mesmo hábito. No entanto, o que séculos de caça à tartaruga como fonte de alimento não fez, a cobiça do homem fez em alguns anos. A partir do momento em que percebeu o valor comercial da carne, a utilidade de sua gordura como óleo para lampião e depois de lamparina e de seus ovos para manteiga e na indústria de cosméticos, o homem se tornou um predador perigoso.

Segundo o RAN (Centro de Conservação e Manejo de Répteis e Anfíbios), existem documentos históricos que relatam a intensa predação sofrida pelos quelônios. Estima-se que de 1700 a 1903, foram destruídos mais de 214 milhões de ovos, utilizados no preparo de óleo ou manteiga. Nos anos 70, a tartaruga-do-amazonas já era vista apenas raramente. O Ibama decidiu intervir e estudar a melhor forma de impedir seu desaparecimento. Em 1979 criou o Projeto Quelônios da Amazônia para proteger, ajudar na reprodução e reduzir a mortalidade desse anfíbio. Atualmente, o Projeto está inserido no “Programa de Conservação e Uso da Herpetofauna” do RAN e atua nas áreas de ocorrência natural das tartarugas, nos estados do Acre,

Amapá, Amazonas, Goiás, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Ele coordena 16 bases avançadas e mantém sob proteção 115 áreas de reprodução distribuídas nos rios Amazonas, Tapajós, Trombetas, Purus, Xingu, Juruá, Branco, Araguaia, Javaés e Rio das Mortes, entre outros.

Durante 23 anos de atividades, o Projeto Quelônios já devolveu aos rios amazônicos cerca de 35 milhões de filhotes das diferentes espécies de quelônios, principalmente da tartarugado-amazonas, do tracajá e do pitiú ou iaçá, proporcionando o repovoamento e a recuperação das populações naturais dessas espécies. Desde então, o RAN tem se consolidado como uma das mais importantes iniciativas ecológicas e de cunho social do Brasil, pois tem garantido não só a sobrevivência das várias espécies de tartarugas, como também vem preservando a cultura regional e oferecendo uma alternativa econômica para a região.

Na atualidade existem 119 criadouros comerciais com mais de um milhão de animais em sistema de confinamento e cerca de 100 mil em fase de abate e comercialização.

No papel, a preservação desta espécie está resolvida. A portaria número 93, de 7 de julho de 1998, regulamenta a importação e exportação de espécimes vivos da fauna brasileira, seja para criação comercial, participação de exposições ou para mantê-las em cativeiro. Na prática, no entanto, a situação ainda é diferente. Com uma fiscalização deficiente, torna-se imprescindível a ajuda da comunidade ribeirinha para garantir o futuro desse animal.

Todo turista quer experimentar as iguarias do local que visita e levar para casa souvenires de sua viagem. Mas comprar pentes e adornos de casco de tartaruga, cosméticos feitos de sua gordura, só manterão a lembrança de que um animal foi morto e a cultura da crueldade, perpetuada. Pense nisso ao visitar a região em sua próxima viagem. A ARCA Brasil alerta sobre a responsabilidade dos visitantes esporádicos a esse ecossistema tão maravilhoso.

E vale lembrar o exemplo dado por Luis Fernando Veríssimo no seu texto sobre a tartaruga Charlote: já passou da hora de pararmos de bancar a tartaruga, nos escondendo em nosso próprio egoísmo, e de percebermos que a mudança de nossas atitudes diárias sobre ecologia e meio-ambiente será o que, em última análise, vai dizer se vamos poder continuar, como a Charlotte, vivendo em harmonia com ritmo das estações...

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Flores do Agreste

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, escreveu Euclides da Cunha no início do século passado. Não apenas o sertanejo, mas o nordestino em geral é um povo forte. Luta por sobreviver, no sertão semi-árido, no agreste, na zona da mata, no litoral. Cana, cacau ou flores. Não importa o que se plante ali, o nordestino vê em tudo uma oportunidade de luta pela sobrevivência, para fazer multiplicar o pouco que tem e melhorar as condições muitas vezes precárias de existência.

O nordestino precisa aproveitar tudo o que a natureza lhe oferece, ao máximo, para ter chance de continuar sua caminhada. Por isso, com um mínimo ele consegue muito, e o que a terra oferece é acolhido com alegria.

Se os meios naturais são escassos, a cultura popular é de uma riqueza ímpar. A cultura do nordeste atrai a atenção e o interesse de pessoas do resto do Brasil e também do exterior. Hábitos seculares são preservados. O folclore permanece vivo entranhado no cotidiano do nordestino: a renda de bilro, as festas juninas, os vaqueiros, a influência dos africanos, as crenças. Tudo inspira inovação, sem perder de vista a tradição. É no nordeste que se concentra a maior quantidade, (no Brasil), de Patrimônios Culturais da Humanidade, reconhecidos pela UNESCO.

Nesse lugar de paradoxos, de extremos, se constrói a identidade cultural do nordestino e também sua relação com a natureza, plantas e animais. Espécies resistentes, mas que muitas vezes aparentam uma delicadeza sutil. Muitas trazem a subsistência para o homem e ajudam-no a sobreviver nesse meio que pode ser tão hostil. E assim o homem nordestino cultiva suas crenças e sua cultura, obstinado e atento a tudo o que o meio pode lhe proporcionar.

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Cabra

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(Capra aegagrus hircus)

Poema das Cabras

Quem já encontrou uma cabra que tivesse ritmos domésticos? O grosso derrame do porco, da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse animal de sociedade?

Tal o cão, o gato, o cavalo, diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco, rebelde, do animal selvagem, viva demais que é para ser animal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser, quando colaboracionista, o reduzido irredutível, o inconformado conformista.

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A cabra é o melhor instrumento de verrumar a terra magra. Por dentro da serra e da seca não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.

Se a serra é pedra, é pedernal. Sua boca é sempre mais dura que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio, a insolência do que mastiga. Por isso o homem vive da cabra mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra e não é capaz do seu braço desconfia sempre da cabra: diz que tem parte com o Diabo.

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Não é pelo vício da pedra, por preferir a pedra à folha. É que a cabra é expulsa do verde, trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro. Condenada à caatinga seca. Liberta, no vasto sem nada, proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga que a impede de furar as cercas. Leva os muros do próprio cárcere: prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede da ambulante prisioneira.

Não é que ela busque o difícil: é que a sabem capaz de pedra.

(...)

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O núcleo da cabra é visível por debaixo de muitas coisas. Com a natureza da cabra outras aprendem sua crosta.

Um núcleo da cabra é visível em certos atributos roucos que têm as coisas obrigadas a fazer do seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola, a armar-se em couraças, escamas: como se dá a certas coisas e muitas condições humanas.

Os jumentos são animais que muito aprenderam com a cabra.

O nordestino, convivendo-a, fez-se de sua mesma casta

O núcleo da cabra é visível debaixo do homem do Nordeste Da cabra lhe vem o escarpado e o estofo nervudo que o enche

Se adivinha o núcleo da cabra no jeito de existir, Cardozo, que reponta sob seu gesto como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forte que o esqueleto comum, de todos; debaixo do próprio esqueleto, no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestino esse esqueleto mais de dentro: o aço do osso, que resiste quando o osso perde seu cimento.

Texto extraído do livro “João Cabral de Melo Neto - Obra completa”, Editora Nova AguilarRio de Janeiro, 1994, pág. 254. Copyright @ by herdeiros de João Cabral de MeIo Neto

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Forte como o nordestino

Os primeiros registros arqueológicos do convívio próximo entre os seres humanos e as cabras datam do período entre 10.000 e 7000 a.C., fazendo deste animal um dos primeiros a serem domesticados com a função de fornecer alimento ao homem. Originárias das regiões da Pérsia, Ásia Menor e Egito, têm entre seus prováveis ancestrais mais antigos as espécies Capra sivalencis e Capra perimensis, conhecidas apenas em forma de fósseis.

No Brasil as cabras chegaram com os colonizadores portugueses, franceses e holandeses a partir do século XVI. Mesmo com essa introdução “recente” (se comparada aos 10 mil anos de história em comum das duas espécies), hoje já não se pode negar que as cabras podem ser consideradas animais típicos do nordeste brasileiro, de tão bem que se adaptaram a esta região.

O nordestino, “cabra macho”, faz criações de caprinos para extrair principalmente o leite para a subsistência da família. Isso porque esses animais são rústicos, adaptam-se bem ao calor e ao clima seco da região, além de ocuparem menos espaço que vacas leiteiras. Cerca de 90% do rebanho caprino do Brasil concentra-se no nordeste, tamanha é a identidade, a adaptabilidade do animal ao lugar.

Atualmente, o leite de cabra, de grande valor nutritivo e de fácil digestão, tem sido consumido cada vez mais in natura além de continuar sendo utilizado como matériaprima para a produção de queijos sofisticados, muito consumidos no exterior, e cada vez mais presentes na mesa do brasileiro. Uma outra utilização para o leite que vem ganhando espaço recentemente é o seu emprego na indústria de cosméticos. Mas desse animal versátil não utilizamos somente o leite. Também se pode aproveitar a carne para consumo nas mais variadas formas, e a pele para o fabrico de um sem número de produtos.

Infelizmente, em muitos locais a cabra ainda é identificada como uma espécie criada apenas por quem não pode criar vacas. Existe um preconceito com a espécie, que fica rotulada como a criação dos menos favorecidos. Isso faz com que a imensa maioria do rebanho nacional

seja criada com baixa tecnologia e em condições sanitárias insatisfatórias. É enorme o potencial que a criação de caprinos apresenta para ser um instrumento de geração de emprego e renda, de melhoria das condições de vida e fixação do homem na terra, especialmente para as populações mais carentes da região nordeste. Uma mudança de mentalidade se faz urgente, pois pode ajudar a diminuir a pobreza e a falta de recursos da região. O Brasil possui um dos maiores rebanhos caprinos do mundo, mas só responde por cerca de 1% do total da produção mundial de leite. Aumentar essa porcentagem pode significar trazer ganhos e sustentabilidade a uma região carente como o nordeste.

A cabra (e o bode, macho da espécie) está presente nas manifestações artísticas e culturais do nordeste: no cordel, nos motivos do artesanato, na culinária, no folclore, no jeito de falar e, principalmente, no dia-a-dia do nordestino. Animal robusto e vigoroso, a cabra pode ser violenta se for ameaçada. O “cabra da peste” no nordeste é justamente o homem de temperamento forte e explosivo, mas que suporta, enfrenta e supera grandes problemas. É como se cabras e bodes fossem elementos indissociáveis da identidade da região, parceiros nas dificuldades, próximos com nunca. Por isso, festas e manifestações populares são dedicadas a cabras, bodes e cabritos em diversas cidades da região. O poema de João Cabral de Melo Neto que abre essa seção, talvez defina como nenhum outro texto o porquê dessa proximidade...

E o homem nordestino tem orgulho dessa relação. Tanto que sempre enche a boca para se dizer “cabra macho sim senhor”! “A terminologia ‘cabra macho’ (...) é usufruto da miscelânea portuguesa nas várias regiões do Brasil, sobretudo do Norte e Nordeste. Mas no Rio Grande do Norte, essa expressão adquire níveis afirmativos de um estereótipo masculino: a virilidade”, explica o historiador Paulo Milhomens.

E esse orgulho só pode mesmo ser explicado, se citarmos mais uma vez o poeta João Cabral: “A cabra deu ao nordestino esse esqueleto mais de dentro: o aço do osso, que resiste quando o osso perde seu cimento”.

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Informações Biológicas

A cabra, bode (macho) ou cabrito (filhote) é um mamífero herbívoro ruminante que vive de 15 a 20 anos. Principalmente os machos, exalam um odor característico produzido por uma glândula localizada embaixo do rabo. Tanto o machos como fêmeas possuem chifres virados para trás e para cima. Os machos apresentam uma barbicha característica.

Seu poder de adaptação é singular, e o animal pode ser encontrado tanto em regiões montanhosas, úmidas e frias quanto em lugares mais quentes e secos, como o nordeste brasileiro. Sua alimentação é variada, composta preferencialmente de arbustos, e por isso a cabra selvagem foi facilmente domesticada pelo homem, sendo o primeiro animal do qual se pôde obter alimento, pelo que se tem notícia. Atualmente, a tecnologia permite que seu leite seja encontrado in natura, pasteurizado, congelado ou em pó; além de ser matéria-prima para a produção de diversos queijos e cosméticos.

A criação de cabras pode ser uma boa alternativa para algumas regiões, já que elas precisam de pouco espaço (onde se cria uma única vaca podem ser criadas até dez cabras), além de terem boa produtividade. Da cabra aproveita-se quase tudo: leite, pele, carne e até mesmo seu esterco, que é de ótima qualidade.

A palavra cabra, no Nordeste, tem muitos significados. Um deles para designar o próprio homem sertanejo, que com orgulho se diz “cabra macho, sim senhor”. Embora as raças trazidas para o Brasil tenham sua origem em países de clima ameno, a criação de caprinos desenvolveu-se naquela região, trazendo melhorias na condição de vida de quem tem esses animais por perto.

A familiaridade com a espécie algumas vezes pode ser motivo para negligência, especialmente no caso dos pequenos proprietários ou famílias que vivem de culturas e criação de subsistência. A cabra ou bode – no masculino – é mais resistente com a situação da seca do que outros animais de criação, como os bovinos. Ela consome menos água, come um número mais variado de plantas e ocupa menos espaço que uma vaca. Estima-se que onde vive um bovino, pastem dez caprinos.

Esta capacidade de adaptação é, ao mesmo tempo, o ponto fraco e forte desse animal. Sua capacidade para resistir aos problemas de clima, alimentação e falta d’água do Nordeste, em muitos casos, faz com que seja criado sem qualquer critério e morto sem nenhuma preocupação com princípios humanitários. Afinal, os próprios seres humanos da região ainda lutam por uma vida digna, sendo tantas vezes abandonados à própria sorte pelos poderes políticos.

Cabra Escola: uma

liçao

de vida e respeito ~

No Brasil, o rebanho de caprinos supera 10 milhões de cabeças, e a maior parte - quase 40% - concentra-se na Bahia. Mas tão forte como o nordestino, os caprinos da região também conseguem tirar vantagem dessa força para a sobrevivência. Para o homem, o aproveitamento desses animais é total. Do leite, à carne e pele, em tudo se obtém algum dinheiro. Além disso, a criação de cabras fixa o homem à terra, melhorando suas condições de vida.

Por todas essas características, alguns projetos têm sido desenvolvidos no sertão semi-árido. O Cabra Escola, do Movimento de Organização Comunitária, entidade de Feira de Santana na Bahia, é um deles. Lançado em 2002, o projeto consiste em um acordo com famílias que se comprometem a colocar seus filhos na escola e, em troca, ganham um bode e três cabras. A iniciativa tem o objetivo de evitar o trabalho infantil e a evasão escolar – os alunos têm de cumprir um mínimo de 80% de frequência às aulas. A lógica do programa é simples. A família consegue vender leite, queijo e, claro, aumentar o número de caprinos. Com a renda, ainda é possível iniciar uma pequena plantação em casa e vender o excedente por meio de cooperativas locais. São mais de 500 famílias beneficiadas.

A ARCA Brasil entende que a melhoria na vida dos animais dependerá de sua relação com a comunidade onde eles estão inseridos. Políticas que levem isso em conta, e que promovam a sustentabilidade e o bem-estar, são certamente a saída para o aprimoramento das relações entre o homem e os animais.

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No mundo das árvores tortas

Foi a promessa de ouro e riqueza que povoou o CentroOeste do Brasil, ainda no século XVIII. Os garimpeiros que chegaram ao Mato Grosso e Goiás acharam ouro, diamantes e outras pedras preciosas na região, e ali deixaram raízes, criando um caldo cultural que mistura hábitos e tradições do norte, nordeste e sudeste do país. Bandeirantes, tropeiros, garimpeiros, vaqueiros montados em lombo de boi, índios e portugueses criaram, na sua união, uma nova gente.

Mais tarde, veio a criação de gado, na planície e no planalto, naturalmente atraída para a região pelo tipo de relevo e pelas pastagens naturais que favoreciam a atividade. Assim nasceu uma cultura própria, regional, característica, que não por acaso, é calcada nos elementos naturais - sejam de fauna, de flora, de rios, chapadas e pantanais – e nas atividades trazidas pelos pioneiros. Surgiu um povo cheio de tradições e de folclore, que une em suas festas e danças o popular e o religioso, como na Festa do Divino.

Muitos anos se passaram. A construção de Brasília, como nova capital do país, mudou o Brasil. E mudou mais ainda o Centro-Oeste. Por ter atraído migrantes de toda a nação para os novos centros urbanos, Juscelino além de interiorizar o país, abriu os olhos de todos os brasileiros para os tesouros do cerrado. E mesmo com todas as mudanças, uma coisa permanece: sempre foi e ainda é no campo que está a força da cultura da região.

A culinária, por exemplo, diz muito sobre como se constitui a identidade cultural do lugar. Dos frutos do cerrado, terra à primeira vista árida e inóspita, surgem delícias: arroz de pequi, empadas, licores, compotas, brevidades e bolinhos misturam-se a carnes de caça, peixes e pratos preparados

com carne bovina. Na panela se fundem todos os recursos naturais disponíveis, alimentando o cotidiano do CentroOeste. Frutos que só existem aqui, e que muitas vezes só são apreciados pelos moradores locais. Talvez as próprias árvores do cerrado, com seus galhos retorcidos, que têm crescimento dificultado pelas grandes concentrações de alumínio e pela acidez no solo, sejam uma boa metáfora para definir o homem e a cultura do centro-oeste: força e tenacidade, buscando o desabrochar da beleza onde poucos acreditariam encontrá-la.

E essa relação com o meio também se faz forte no artesanato. A fauna pantaneira inspira os artesãos e “assina” essa forma de expressão cultural. Seus elementos simples e um cuidado delicado de composição fazem com que os trabalhos em cestaria e cerâmica sejam donos de beleza singular.

O pantanal é um caso a parte dentro dessa região do Brasil. Tanto que há quem queira transformá-lo em um novo estado da União. Ele atrai turistas do mundo todo com sua natureza exuberante, suas águas claras e abundantes, e toda uma mítica que envolve sua variada fauna e a poesia de suas paisagens, mas também sua gente moldada ao sabor das vazantes e das cheias dos seus rios.

E essa gente é uma viagem à parte, para quem se aventura a desbravar as chapadas, o cerrado, ou o pantanal. E como entender ou definir o que é um pantaneiro sem falar do boi e da sua temida e respeitadíssima “pintada”? Assim como é impossível separar a região central do Brasil da natureza que a cerca e constitui; é impossível também pensar na vida do homem do centro-oeste fora de sua relação com animais e plantas que o acompanham dia-a-dia durante toda a sua vida.

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Onça Pintada (Panthera onca)

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Assembléia na Mata Monteiro Lobato

(...)

Quando a vida dos animais selvagens se vê ameaçada de perigo geral, as velhas rivalidades cessam. A jaguatirica deixa de perseguir as lebres. A lontra esquece a fome e pode até conversar amavelmente com os peixes de que se alimenta. O cachorro-do-mato passa perto do porco-espinho sem que este erice as agulhas.

Assim, ao ouvirem as palavras da capivara, tanto o gavião como os bem-te-vis esqueceram a briga e vieram sentar-se diante dela, um ao lado do outro, como se nada tivesse havido entre eles.

- Os meninos de Dona Benta mataram a onça da Toca Fria - começou a capivara. - Ora, se mataram a onça, que era a rainha da floresta, o mesmo farão, com a maior facilidade, a qualquer outro bicho menos forte do que a onça. Estamos pois com as nossas vidas ameaçadas de grande perigo e temos de tomar providências. Por isso quero convocar uma reunião de todos os animais. Vocês, que voam, sejam meus mensageiros. Voem sobre a mata e avisem a todos para que estejam aqui reunidos, amanhã à noitinha, debaixo da Figueira Brava.

Logo que os viu reunidos, a capivara tomou a palavra e expôs a situação perigosa em que se achavam todos.

(...)

Um jabuti adiantou-se e disse: - O meio que vejo é mudarnos para outras terras.

Que terras? - replicou a capivara. - Não há mais terras habitáveis neste país. Os homens andam a destruir todas as matas, a queimá-las, a reduzi-las a pastagens para bois e vacas. No meu tempo de menina podíamos caminhar cem dias e cem noites sem ver o fim da floresta. Agora, quem caminha dois dias para qualquer lado que seja dá com o fim da mata. Os homens estragaram este país. A idéia do jabuti não vale grande coisa. Impossível mudar-nos, porque não temos para onde ir.

- Amor com amor se paga - disse uma jaguatirica. - Matando a nossa rainha esses meninos nos declararam guerra. Paguemos na mesma moeda. Declaremos guerra a eles. Reunamos todos os animais de dentes agudos e garras afiadas para um assalto ao sítio de Dona Benta.

A capivara ficou pensativa. Isso de assaltar um sítio era realmente coisa que só onças e jaguatiricas podiam fazer, porque são animais guerreiros.

A assembléia aprovou a lembrança. “Muito bem!”, pensaram os animais. As onças fariam a guerra. Se vencessem, a bicharia inteira das selvas estaria salva de novas incursões dos meninos.

Texto extraído da obra “Assembléia na Mata”, do autor Monteiro Lobato. Direitos Autorais cedidos pela J. M. Kornbluh - Monteiro Lobato Licenciamentos Ltda.

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Caçada no pantanal

Silencioso, paciente, tenaz. Não, esses adjetivos não estão sendo usados para descrever o homem pantaneiro, como muitos poderiam pensar. Falamos do maior mamífero das Américas: a Onça pintada. Ou só “a pintada” como dizem os nascidos na região. Essa intimidade do pantaneiro com a rainha do ambiente onde ele vive é tão forte, que essas três características podem ser na verdade atribuidas a ambos.

A onça pintada é um animal ameaçado de extinção que pode ser encontrado não só no pantanal, mas também no cerrado e nas florestas quentes e úmidas. Ela acumula os “títulos” de maior felino das Américas e o maior mamífero carnívoro do Brasil. Grande caçador, este animal se alimenta de diferentes presas e por isso sua fama é de bicho perigoso.

O outro nome da onça é jaguar, que em tupi-guarani significa “o que mata com um salto”. Os índios já conheciam a força e a agilidade da onça e sabiam de sua importância. Dizem que, por isso, os guerreiros das tribos indígenas comiam pedaços de gordura de onça na ponta de suas flechas e também passavam a gordura no corpo de jovens meninos da tribo, por acreditarem que isso lhes daria força e proteção contra os perigos da floresta.

Como grande predadora, a onça pintada está no topo da cadeia alimentar. Caça mais de oitenta espécies, entre cobras, antas, veados, capivaras, tamanduás e até peixes, pois, ao contrário de muitos outros mamíferos, e especialmente de outros felinos, a onça pintada é excelente nadadora. A mordida de uma onça é tão forte que pode perfurar o casco de uma tartaruga.

Existem, pelo menos, duas lendas que envolvem a onça pintada e sua fama de figura ameaçadora. Uma delas, citada por

Câmara Cascudo no “Dicionário do Folclore Brasileiro”, é a da onça da mão torta. O animal seria enorme, com o corpo rajado e teria a pata dianteira torta. Os caçadores temem o “monstro”, pois, diz a lenda, ela sai ilesa dos tiros disparados contra ela. A razão disso, diz a história popular, é que essa onça é, na verdade, a alma penada de um vaqueiro, que cometeu muitas crueldades em vida e que morreu já velho. E sua alma vaga pelas florestas até hoje, assombrando os caçadores.

A outra lenda é a da onça maneta. O animal teria perdido uma de suas patas dianteiras em uma luta com caçadores. Desde então, a onça teria conquistado uma grande força, além de uma grande raiva por não possuir mais a pata. Por isso, ela se esconde nas matas, onde é quase impossível vê-la e, quando ataca, raramente seria possível escapar dela.

Apesar das lendas terem construído para a onça uma aura de crueldade, na verdade, quem tem sido cruel com as onças são os homens. Além da caça indiscriminada, para obtenção da pele ou apenas para impedir que a onça ataque criações de gado, outro grave problema que o animal enfrenta é a devastação de seu habitat natural. No centro-oeste especialmente, a vegetação nativa deu lugar a pastos para criação de animais e a plantações de soja e outros alimentos. Em função disso, a onça se afastou, e agora se esconde apenas em locais de mata fechada e difícil acesso. Como precisa de um grande território para viver (porque necessita de uma grande variedade e quantidade de animais para se alimentar), o número de indivíduos diminuiu muito, e o risco de extinção é cada vez maior. Por isso, muitas iniciativas em favor da preservação da onça pintada têm ocorrido, como a do WWF, Wildlife Conservation Society (WCS) e Instituto Pró-Carnívoros.

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Informações Biológicas

A onça pintada (Panthera onca) é o maior mamífero carnívoro do Brasil. Possui um corpo robusto e musculoso, chegando a medir até 1,85 metros (da cabeça até o início da cauda) de comprimento e 75 centímetros de altura. Sua cauda tem mais de 50 cm e seu o peso varia entre 60 e 90 quilos.

A cor do pêlo da onça vai do amarelo bem claro ao amarelo acastanhado (mais para o marrom). Seu corpo é revestido por pintas negras que podem formar rosetas grandes, médias ou pequenas, desenhos característicos da espécie.

Animal de hábito terrestre (apesar de ser boa nadadora) e solitário, a onça demarca seu território, que precisa ser grande. Cada animal adulto pode precisar de até 40 Km2 de área de caça, para obter os 2 Kg de alimento que necessita por dia. Vive em regiões de cerrado, caatinga, pantanal e florestas tropicais, sendo encontrada desde o México até a Argentina. Ela só pode ser vista em companhia de outra onça na época do acasalamento. A onça pode ter de um a quatro filhotes por gestação, que demora cerca de cem dias. Os filhotes nascem de olhos fechados e só abrem-nos depois de dez ou treze dias. Ficam com a mãe de um a dois anos, quando atingem sua maturidade sexual. Nesse período, aprendem com as mães a caçar e a nadar.

Amigos da onça

A onça pintada é uma das riquezas do Pantanal, mas nem por isso tem sua existência preservada. Enquanto as fronteiras agrícolas e a pecuária se ampliam, as florestas desaparecem e o alimento para os animais silvestres fica escasso. Eles são obrigados a sair da mata fechada para procurar algo que sirva para a alimentação.

Até o ano de 2050, a população da América Latina aumentará em 42%, segundo estudo do instituto de pesquisa Population Reference Bureau, em Washington. No Brasil, este crescimento será de 24%. Se a população cresce, a produção de alimentos também precisa aumentar. Economicamente, para o país, isso não é problema. Segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, o Brasil será, na próxima década, o maior produtor de ali- mentos do mundo. Ótimo para a economia, potencialmente péssimo para a fauna e a flora.

As fazendas crescem, a mata diminui e as onças, que normalmente não se alimentam de criação doméstica, entram famintas nas propriedades. A presa mais fácil são os bezerros, encontrados mortos e aos pedaços pelos fazendeiros. Sabendo que ali há comida, a onça permanece nos arredores e é facilmente morta a tiros pelos proprietários da terra, vingados do prejuízo causado pelo felino, que há milhares de anos vive naquele ecossistema.

Dinheiro é o que importa para quem produz na região. Por isso, o Fundo para a Conservação da Onça-Pintada, que trabalha para salvar este felino, utiliza métodos muito conhecidos em países como os Estados Unidos. Além de estudos científicos sobre a espécie, eles indenizam financeiramente o proprietário do boi morto, em troca de ele deixar a onça viver.

A Pró-Carnívoros, organização brasileira não governamental que atua na conservação dos mamíferos carnívoros e seus habitats, desenvolve trabalho de campo no Pantanal. Como parceiros da iniciativa estão os próprios fazendeiros da região. No projeto, acontecem visitas regulares às fazendas em busca de informações sobre avistamento de onças e orientações sobre o melhor manejo do gado para evitar a predação deste. Segundo a instituição, a parceria tem surtido efeito.

Para garantir a continuidade do trabalho e vida longa às onças, a Pró-Carnívoros atua junto a crianças. Nesse projeto de educação ambiental, o público infantil recebe cartilhas feitas especialmente para ele, explicando a importância da convivência pacífica entre os homens e os mamíferos carnívoros.

Educar é gerar conhecimento e, a partir disso, a transformação cultural. A ARCA Brasil acredita que, se trabalhos como esse forem apoiados no presente, haverá um futuro a ser compartilhado entre os homens e os demais animais.

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Metropolis

O Sudeste concentra a maior população do país e também a maior porcentagem do PIB nacional. É a região com a maior taxa de urbanização do Brasil - mais de 85% de sua população vive em cidades, como a gigante São Paulo, a movimentada Belo Horizonte, a agitada Rio de Janeiro ou a acolhedora Vitória.

A riqueza econômica, historicamente, atraiu também a riqueza da diversidade cultural. No sudeste, povos e etnias misturam-se com naturalidade: os portugueses, desde o século XVI; os franceses, que deixaram suas marcas nos primórdios da colonização do Rio de Janeiro; os japoneses, que há um século fizeram de São Paulo seu segundo lar. Além é claro, de judeus, árabes, espanhóis e tantos outros povos, de todos os lugares do Brasil que aqui vieram fazer a vida. Não é a toa que São Paulo é, ao mesmo tempo, a maior cidade japonesa fora do Japão, a terceira maior italiana fora da Itália, a terceira maior libanesa fora do Líbano, etc. Ela é local e cosmopolita ao mesmo tempo, tendo acolhido a todos quantos nela buscaram com trabalho duro a oportunidade de progresso e prosperidade. Por isso, essa cidade é hoje a cara e a síntese dasiquezas e dos problemas do Brasil.

Mas engana-se quem pensa que nas “selvas de pedra” do sudeste só há lugar para concreto armado, apartamentos e tecnologia. Aqui há tradições. A culinária, o artesanato, as festas e os folguedos possuem contornos únicos nos diferentes estados do sudeste. E são cada vez mais valorizadas por nossa gente. Heranças culturais como a catira, o cururu, a moda de viola, e tantas outras manifestações típicas do caipira paulista, vêm recebendo cada vez mais atenção das pessoas e da mídia na luta por sua preservação. Talvez isso seja um sintoma do afastamento crescente da vida “natural” que gerou originalmente essa identidade, e da qual estamos mais e mais afastados pela realidade das nossas grandes cidades.

O progresso e o cimento trouxeram novas necessidades. Para viver em lugares assim é essencial ter por perto um pouco da natureza. E os animais de estimação vêm ocupando esse espaço e são cada vez mais presentes nos lares do sudeste. Hoje em São Paulo temos mais “Pet Shops” que padarias.

É uma presença inegável e um mercado de produtos e serviços altamente expressivo. Mas infelizmente, essa convivência mais estreita também trouxe os seus problemas. A cada hora, mais de 2 mil gatos e cães nascem na região. Nem todos esses animais têm donos, são bem-cuidados ou tem asseguradas condições dignas de vida.

Como cuidamos dos animais que convivem conosco é um forte indicador do grau de civilidade e do desenvolvimento que alcançamos, ou que queremos alcançar como sociedade.

Por isso, ao falarmos da região sudeste, a mais rica e mais desenvolvida do país, é importante lembrarmos de como “isso tudo começou”. O desenvolvimento da região, desde os primórdios da colonização foi feito às custas da exploração e da utilização irrestrita dos recursos naturais aqui existentes. Por um lado não podemos simplesmente condenar nossos antepassados por terem devastado 95% da cobertura vegetal da região – a Floresta Tropical Atlântica – pois eles apenas faziam o que era a regra em sua época: o importante era o desenvolvimento, o crescimento das cidades, da economia, a melhoria das condições de vida. Outros tempos, outra consciência. Hoje, não temos como eximir-nos de nossa responsabilidade atual - a de lidar com o passivo que nos foi legado, e a partir dele dar novos rumos e novos valores para nossa relação com a natureza e com os animais a nossa volta.

E não por acaso, é desses 5% remanescentes das matas nativas do sudeste que surge o grande símbolo da conservação ambiental hoje em nosso país: o Mico Leão Dourado. Da iniciativa pioneira da luta por sua preservação, iniciada no começo dos anos 70 na reserva Poço das Antas, brotaram várias sementes. A bandeira levantada por biólogos e ambientalistas em defesa do Mico fez muito mais que simplesmente salvar essa simpática espécie de primatas. Ela fez soprar na mídia, nas escolas, nas universidades, nas empresas e em todos os demais setores da sociedade brasileira uma nova visão sobre o que é meio ambiente e preservação. Grande feito para um bichinho que não pesa mais de 600 gramas...

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Gato

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(Felis silvestris catus)

Chico e Manuela Ruy Castro

Meu nome é Chico. Sou um gato de navio. Modéstia à par- te, sou o gato mais esperto da armada do capitão Pedro Álvares Cabral, que saiu outro dia de Lisboa com treze naus. O capitão também é esperto. Dos gatos que faziam parte da expedição, escolheu a mim como o gato da nau capitânia - queria ter certeza de que nenhum rato roeria seus mapas e roupas. Fui recomendado a ele pelo capitão Vasco da Gama, a quem ajudei a descobrir o caminho marítimo para as índias. Como um bom gato português de 1500, já viajei pelos sete mares, vivi muitas aventuras e namorei gatas de vários continentes.

O capitão Cabral partiu dizendo que ia para as Índias, mas, no meio do caminho, desviou-se da rota e viemos dar a uma ilha que não estava nos mapas. Acho que ele já desconfiava da existência dessa ilha. Quando o vigia gritou “Terra à vista!”, estávamos tirando uma soneca no camarote e percebi que o capitão não ficou nada espantado. Apenas se espreguiçou e disse: “Vamos lá, ó Chico.” Eu também me espreguicei. Descemos ao convés e tomamos os botes para a ilha.

Fomos recebidos na praia por muitos homens nus e pintados de vermelho. Estavam armados de arco-e-flecha e pareciam brabos, mas eram bons e alegres. Quando um dos nossos agitava um sininho ou um chocalho, eles rolavam de rir. Um espelhinho ou pano colorido era, para eles, uma coisa do outro mundo. E, pelo visto, achavam muita graça do nosso jeito de falar.

É verdade que meus patrícios portugueses não agiam muito diferente. Quando viam passar um bando de araras ou maritacas, corriam matraqueando atrás delas. Um marinheiro fez amizade com um papagaio e os dois levaram o dia conversando - acho que ficaram contando piadas um para o outro. E outro marinheiro viu um bicho peludo e narigudo que queria abraçá-lo - pensou que fosse um nativo fantasiado e acabou abraçado por um tamanduá.

Quanto a mim, preferi explorar as redondezas. Com minha cautela felina, andei pé ante pé por aquele lugar desconhecido. Era um paraíso. Mares, rios e lagoas cheios de peixes deliciosos. Lindas aves coloridas ao alcance de um salto. Suculentos roedores e lagartixas esperando apenas que eu desse o bote. Ninguém passaria fome nesta terra. Havia perigos também: cachorros-domato, cobras, onças. Este era um lugar para gatos espertos.

E, então, comecei a pensar. Por que não ficar por aqui? O Novo Mundo é que seria a minha grande aventura - eu, um gato europeu e civilizado, senhor daquele território virgem. O único problema era: onde estavam meus semelhantes? Durante dias, não vi ninguém parecido com um gato. E muito menos com uma gata.

No sétimo dia, do alto de uma colina, observei quando o capitão Cabral deu ordens para a partida, deixando alguns homens para trás. Ouvi quando ele me chamou. Miei de volta um voto de boa viagem. Ele teria de se virar sem mim. Porque eu também tinha resolvido ficar.

Sim, eu a encontrara: uma linda gata maracajá, de pêlo tigrado e olhos amarelos. Era nativa da ilha, docemente selvagem e tão feliz quanto aqueles homens e mulheres pintados de vermelho. Com a vantagem de que falávamos a mesma língua de prrrs e miaus. Chamei-a de Manuela, em homenagem ao nosso rei. E descobri que tínhamos uma missão. Juntos, povoaríamos com nossos filhotes a terra do Brasil.

Texto do autor Ruy Castro, extraído da obra “Contos de Estimação”. Direitos autorais cedidos pelo autor.

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Companhia independente

Esquivo, elegante, manhoso, ágil, dorminhoco, inteligente e de andar silencioso. Apesar de tantos adjetivos normalmente usados para descrevêlos, os gatos já inspiraram as mais diversas reações em sua longa história de convivência com o homem. Uma verdadeira história de amor e ódio durante a qual os gatos já foram de adorados a símbolos de mau-agouro em questão de poucos anos.

No Egito antigo, por exemplo, os gatos eram venerados como animais sagrados, associados à deusa Bastet, talvez devido aos enormes serviços prestados pelos felinos na defesa dos estoques de grãos dos ratos e outras pragas. Essa associação com a divindade demonstra a importância e o respeito que estes animais tinham naquela sociedade.

Já na Idade Média, eram relacionados à bruxaria, e foi quando surgiu a lenda de que teriam sete ou nove vidas. Eram criaturas ligadas ao mundo da magia e do ocultismo, associados aos cultos da Lua e da Fertilidade, sendo que um gato preto macho era considerado uma das encarnações do diabo. E se alguém fosse encontrado com ele em situação suspeita, seria certamente levado para a fogueira.

Não se sabe exatamente quando os gatos começaram a ser domesticados. De qualquer forma, a canção em que Chico Buarque de Holanda diz “nós gatos já nascemos livres”, está mais que certa. Seu comportamento solitário e independente faz com que ele não precise da companhia constante de seu dono. Dizem até que os gatos escolhem as pessoas com quem convivem, e não o contrário. Por isso essa “liberdade” lhes é atribuída. E também é, muitas vezes, mal interpretada, sendo tomada como uma errônea impressão de que os gatos sejam traiçoeiros ou interesseiros. Os amantes dos gatos rebatem essas críticas dizendo que gatos não são interesseiros. São interessantes. Seja como for, devido a essa fama injustificada, até hoje são inúmeros casos de abandono e maus tratos, que podem ser atribuídos ao preconceito e a ignorância.

No século XIX começaram a acontecer exposições de gatos. Com elas, a seleção dos indivíduos e do pedigree passou a ser importante, bem como a busca pelo melhoramento genético da espécie, com a mudança de características típicas para fins específicos (reprodução, companhia, competição). Persa, Angorá, Himalaio, Siamês, Abissínio, Sagrado da Birmânia são algumas das diversas as raças de gatos domésticos conhecidas nos dias de hoje.

Os cuidados com gatos domésticos são simples. Eles aprendem com facilidade a fazer suas necessidades nas caixas próprias para isso; a areia que recobre a caixa deve ser sempre limpa. Eles também fazem sua própria higiene, lambendo a pelagem para eliminar sujidades e os pêlos mortos. Mas é possível ajudar nesse ritual de limpeza, penteando-os ou escovando-os periodicamente.

É muito importante vacinar os gatos domésticos e castrá-los. É a castração dos gatos que garante mais saúde a esses animais, diminuindo o nível de incidência de câncer de testículo e ovário e também facilitando a vida do dono, já que gatos castrados não têm comportamento de demarcação de território e sua urina perde o forte odor característico. Manter um gato longe de outros, aliás, é a forma mais simples de evitar esse comportamento, já que os gatos o fazem para demarcar seu território.

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Informações Biológicas

O Felis silvestris catus é um felídeo, assim como leões, tigres, panteras, guepardos, onças, jaguatiricas, chitas e pumas. Mas ao contrário de seus “primos” distantes, não são animais da floresta. A espécie é conhecida como gato doméstico e diversificou-se em muitas raças ao longo dos tempos.

Um gato doméstico pode viver até 20 anos. Existem muitas raças diferentes, cada uma com seu tamanho característico, mas em média, eles têm 55 cm de comprimento e 30 cm de altura e pesam entre 2,5 e 7 quilos. Podem ter pêlo longo, curto ou ralo, novamente dependendo da raça. Depois de cerca de dois meses de gestação, nascem de três a seis filhotes, que serão amamentados pela mãe.

Carnívoros, os gatos têm dentes cortantes e salientes. Eles possuem unhas retráteis e uma densa pelagem nas patas – que têm grande sensibilidade tátil – o que facilita seu andar silencioso.

Esses felinos têm visão e audição muito aguçadas. Percebem os mais sutis sons e enxergam por meio de suas pupilas verticais (que têm grande capacidade de dilatação e contração), tanto em ambientes claros quanto escuros, o que facilita ainda mais sua já desenvolvida agilidade. Nos bigodes, os gatos têm sensíveis pêlos táteis, por meio dos quais eles conseguem melhorar sua percepção.

O novo melhor amigo?

De deusa no Egito a símbolo das bruxas perseguido pela Inquisição na Europa. Desde que se aproximou do homem cerca de 7.000 a.C., dando início ao seu processo de domesticação, a trajetória do gato não tem sido das mais fáceis.

O ser humano é mesmo ingrato, pois a companhia do bichano sempre lhe trouxe bons agouros. No Egito, a população estocava os alimentos e os via devorados pelos ratos. Quando os gatos surgiram e controlaram os roedores, o felino virou herói – ou melhor, a representação da deusa Bastet. Foi um bicho tão adorado que escavações na terra dos faraós encontraram centenas de múmias dele.

Independente, o gato preserva vários traços de seus ancestrais predadores, um dos aspectos que o torna único entre os animais domésticos. Ele pode ainda não ser tão popular por aqui quanto o cachorro – nos EUA eles já superaram o cão como pet favorito – mas quem convive com o gato é geralmente aficcionado por este animal fascinante. Por viver bem em apartamentos, não exigir passeios diários e ficar bem sozinho enquanto seus donos trabalham, é cada vez mais o bicho de estimação preferido dos moradores das grandes metrópoles.

O fato de ser um animal mais autônomo não alivia a culpa daqueles proprietários que decidem livrarem-se

dele, largando-o na rua ou entregando-o a um Centro de Controle de Zoonoses. O que essas pessoas não entendem é que o abandono significa sofrimento, passar por necessidades e se reproduzir sem controle, multiplicando o número de bichanos sem lar nas cidades.

Castrar, registrar e vacinar, assim como contar com um abrigo, boa alimentação e carinho, são cuidados básicos a que todo gato – de rua ou de estimação – tem direito. A compra de filhotes no comércio, geralmente feita por impulso, é outra grande causa de abandono, pois quem obtém um gatinho dessa forma dificilmente pensou nos cuidados que ele demanda antes de pagar por ele. Por isso sempre recomendamos a adoção, uma nova chance de vida para esses animais.

A ARCA Brasil sabe que, para diminuir o preconceito em relação ao gato e fazê-lo amado pela população, é preciso que ele seja conhecido. Além das ações de castração e incentivo à doação dos animais adultos, organizou a exposição Um Dia de Gato, no Conjunto Nacional, importante edifício comercial e residencial na Avenida Paulista, coração financeiro da cidade de São Paulo. A mostra incluiu fotos doadas por fotógrafos excepcionais como Bob Wolfenson e Márcio Scavone, entre outros, além de cartazes educativos. A exposição já viajou para diversos lugares, com milhares de visitantes, uma esperança de que os tempos de preconceito em relação a este maravilhoso animal já ficaram para trás.

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