A História do Cavalo no Território Brasileiro

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A História do Cavalo no Território Brasileiro

Uma Parceria de 500 Anos

Vanessa Costa

Ricardo Osorio de Oliveira

Patrocínio Apoio

Produção

Expediente

Coordenação Geral e Edição

Ricardo Osorio de Oliveira

Redação e Pesquisa

Vanessa Costa

Pesquisa Iconográfica

Ricardo Osorio de Oliveira e Vanessa Costa

Criação do Projeto Gráfico e Diagramação

Karly Carraro

Fechamento de Arquivo e Finalização

Janaina Holovatuk

Ilustrações

Flávio de Polli e Marcello Gallante

Revisão de Texto

Milena Baycsi Monaco Pedrão e Paulo José Freitas de Oliveira

A História do Cavalo no Território Brasileiro

Uma Parceria de 500 Anos

Vanessa Costa

Ricardo Osorio de Oliveira

Patrocínio Apoio

Produção
Parte 1 Uma Ausência Ancestral..................................11 O mais nobre dos animais....................................................12 Uma incrível vocação andarilha.......................................14 Um brasileiro antigo – fósseis que contam história.............21 A linhagem brasileira ancestral.......................................24
2 Cavalo, que Bicho é Esse?..................................29 Gado: a primeira razão do cavalo no Brasil..................34 O cavalo na economia e o ciclo do ouro.....................40 A seleção e melhoria de raças...........................................48 Parte 3 O Cavalo de Guerra no Brasil........................53 Cavalo: uma arma decisiva...................................................54 Uma capitania marcada pela guerra... a cavalo............62 A criação do cavalo militar.............................................69 Parte 4 Raças que o Brasil Criou..................................79 O Cavalo Marajoara...............................................................82 O Cavalo Pantaneiro..............................................................90 O Cavalo Nordestino...........................................................100 O Cavalo Campeiro.............................................................112 Parte 5 Raças que os Brasileiros Criaram....................123 O Cavalo Crioulo.................................................................124 O Cavalo Campolina...........................................................140 O Mangalarga Marchador.................................................152 O Mangalarga Paulista......................................................168 O Brasileiro de Hipismo...................................................180 Sumário
Parte

Nestes cinco séculos de presença no território nacional, o cavalo brasileiro tem sido um constante parceiro. Uma parceria que faz jus a origem da palavra, partiariu (do latim), referindose a quem participa ou que compartilha algo. Acompanhou a chegada do gado bovino e participou da evolução da pecuária no Brasil. Compartilhou os momentos gloriosos do ciclo do ouro desde seu início. E assim esteve acompanhando o homem no trabalho, no esporte e no lazer, gerando renda, emprego e bem-estar. Vanessa Costa e Ricardo Osorio de Oliveira conseguiram resgatar a história dessa parceria de meio milênio e apresentam-na através de didática narrativa com belíssimas ilustrações. Essa obra vem preencher uma lacuna na literatura e deixar transparente a participação do cavalo na formação do Brasil, tanto da nação quanto do seu povo.

Deve-se destacar o momento histórico do lançamento deste livro, em meio a pandemia COVID-19. Isto porque o cavalo, entre suas múltiplas funções, tem reforçado seu papel na terapia e bem-estar. Mais uma guerra que o mais nobre dos animais ajudará na vitória, somando-se aquelas que marcaram a história militar, bem relatadas na parte 3 –O Cavalo de Guerra no Brasil, que compõe esta obra.

Fica claro o inestimável valor dos cavalos, que vai além do PIB estimado em 16 bilhões de Reais. O que nos remete à importância de conhecer as raças que o Brasil criou e as raças que os brasileiros criaram, descritas e ricamente ilustradas nas partes 4 e 5 deste livro.

Desejando uma leitura agradável e enriquecedora a todos, parabenizo os autores por esta importante contribuição para a equideocultura brasileira.

Prof. Dr. Roberto Arruda de Souza Lima ESALQ/USP

Prefácio

Apresentação

A Vetnil apresenta nesse livro um trabalho inédito, feito a partir de uma pesquisa extensiva que investigou as origens do cavalo brasileiro. O resultado é este material único, que contribuí diretamente com o acervo histórico da equinocultura no Brasil, relatando como esta desenvolveu-se no país, contando as histórias das raças brasileiras e da sua formação.

Esse resgate aborda desde a genética, economia e a própria cultura nacional e suas ligações com o mundo equestre, e foi realizado com o apoio imprescindível das associações de criadores. Essa participação foi fundamental para que fossem contadas em detalhes as origens destas raças e a contribuição de cada uma delas na formação do que é hoje o mundo do cavalo no Brasil.

Ao apoiar esse projeto e garantir a sua viabilidade financeira, a Vetnil reforça o seu comprometimento como uma empresa que tem suas origens no mundo equestre, e que hoje e sempre está presente e atuante neste mercado. Sua preocupação vai além do desenvolvimento da saúde, bem-estar dos animais e o fomento dos esportes que envolvem a equinocultura – queremos por meio de incentivo a pesquisas como esta, promover o devido registro histórico desta importante atividade.

Essa iniciativa soma-se a tantas outras que fazem da Vetnil uma empresa reconhecida não somente pelos produtos que comercializa, mas também pelas ações realizadas em prol do desenvolvimento e fortalecimento do setor.

E nesse momento em que o mercado nos mostra uma nova visão, a de transformação, onde o cavalo vem cada vez mais sendo utilizado para esportes e lazer e dentro das famílias, entendemos ser oportuno conhecer a história, para com base nela, projetar o futuro. E é isso que esperamos oferecer na leitura desta obra.

Bruno Ribeiro – Vice-Presidente da Vetnil

Uma Ausência Ancestral

Parte 1

O mais nobre dos animais

O cavalo detém esse crédito e não é à toa. Afinal, que outro animal foi, ao longo de sua trajetória, um cúmplice essencial ao desenvolvimento da sociedade, e em tão diferentes aspectos? Os embates bélicos, o transporte de insumos e cargas que ajudaram a erguer cidades e nações, a mobilidade urbana e rural, a tração que precedeu a revolução industrial, a lida no campo. Em todas essas vertentes o cavalo é protagonista, seja como força motriz, arma de guerra, instrumento de trabalho, de dominação política, ativo econômico ou símbolo de status.

Na alta Idade Média europeia, por exemplo, quanto mais cavalos tivesse uma nação, e mais fortes e bem adestrados fossem, mais respeitada ela seria em função do seu potencial de combate. Em Portugal, no tempo das monarquias, quando basicamente apenas duas classes balizavam a rígida estrutura social – a dos nobres e a dos plebeus – o cavalo era o único passaporte para que homens comuns tivessem acesso a privilégios elitistas.

Sem um exército organizado, a Coroa Portuguesa tinha no armamento particular do seu povo, um arsenal fundamental ao país1,2. Naquele tempo, a composição de guerra admitia também o homem comum, mas, para fugir da indesejável e arriscada posição nas fileiras da infantaria, era preciso ter um cavalo. Assim, com um animal de sela, a vida podia mudar. O plebeu era autorizado a acompanhar Sua Majestade nas campanhas, em pé de igualdade com os Cavaleiros de linhagem, e podia exibir sua bravura e fidelidade. Porém, nem uma ou outra era capaz de assegurar a posição enobrecida. O que importava mesmo era o cavalo. Se o animal morresse, o homem comum era obrigado a comprar outro em um prazo máximo de seis meses, sob pena de ver seus privilégios sepultados3.

Quem tinha cavalo a serviço da Coroa também era isento da aplicação de algumas penalidades e do pagamento de alguns impostos, mesmo que fosse plebeu. Se condenado à morte, a execução só seria autorizada após a palavra final do Rei, o que obviamente dificultava o processo. Com um cavalo, segundo as Ordenações do Reino de Portugal, o homem também não precisava assumir filhos supostamente ilegítimos, transferindo-lhes herança. Mas, frente a tantos privilégios, havia uma obrigação comum a todos: manter os animais sadios, bonitos, corajosos e aptos para as batalhas, sob a fiscalização do “Regimento dos Coudéis”. No Brasil Colônia aconteceu a mesma coisa. Todo ano, ao menos três vezes, o Regimento dos Governadores Gerais do Estado do Brasil determinava averiguação obrigatória dos animais registrados na Companhia de Cavalos. Somente em 1850, o governo brasileiro assinou o decreto que permitiu a compra de animais especificamente para fins militares.

A verdade é que ao longo dos séculos o cavalo manteve e diversificou sua importância econômica e social no nosso país. Nas fazendas de gado ele foi e é

indispensável, justificando a máxima “onde há gado, há cavalo”. Por causa do gado, o cavalo entrou Brasil adentro, expandindo a atividade pecuária e ganhando importante função econômica. No ciclo da cana-de-açúcar, no Nordeste, o cavalo ajudou a mover maquinário nas moendas; e no do ouro, em Minas Gerais, transportou e foi mercadoria nas feiras de animais e comboios conduzidos por tropeiros de São Paulo até o Sul do país, região onde a presença bélica do animal foi mais significativa.

Na medida em que a sociedade se tornou mais complexa, por conta da evolução das atividades comerciais, o cavalo galgou diferentes ramificações socioeconômicas. Na metade do século XIX, o cavalo surgiu como animal de corrida e salto, ocupando definitivamente espaço nas atividades esportivas e de lazer, mudando e impulsionando essa indústria como nunca. Atualmente, o Brasil é o quarto maior criador de cavalos do mundo, com quase seis milhões de cabeças, perdendo apenas para EUA, China e México4

Mas como essa trajetória tão fascinante começou? Onde o cavalo surgiu, como chegou ao Brasil e quando passou a integrar nossa cultura de forma absolutamente abrangente?

Nos tempos da Colônia era permitido a um plebeu aliar-se aos nobres nas lutas e nas campanhas militares, desde que o mesmo possuísse (e o mantivesse em condições de ir à batalha) um cavalo e o colocasse à disposição da Coroa. Ficava ao cargo dos Governadores Gerais, como Tomé de Souza, o primeiro governador geral do Brasil, manter um registro destes homens e animais, que constituíam uma importante força de combate.

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Uma incrível vocação andarilha

A América do Norte foi a “fábrica” dos cavalos. Existe entre os pesquisadores uma forte tese científica, a mais creditada, que afirma que as espécies mais primitivas do animal surgiram naquele continente e, depois, ganhando um “design” vencedor, migraram para a Ásia, por meio do istmo de Bering, faixa de terra que ligava o que seria o Alasca de hoje com a porção norte da Rússia. Os fósseis do grupo de equídeos mais antigo de que se tem registro – o da família Hyracotherium – foram encontrados na América do Norte e também na Eurásia. Eram animais pequenos, encurvados, com cerca de 30 cm, que habitaram a Terra no período Eoceno (há 55 milhões de anos) e em nada lembravam o nosso cavalo moderno. Na marcha, apoiavam-se nas plantas dos pés e das mãos, e não em cascos, e possuíam dentes arredondados, o que sugere uma alimentação à base de folhas e frutos.

Ainda na América do Norte, evoluções dessa espécie ancestral são atestadas por fósseis de exemplares maiores, como o Mesohippus e o Miohippus, que viveram durante o Oligoceno, ou seja, há 36 milhões de anos. Embora maiores, são ancestrais com dentição frágil e ainda pouco resistente a uma dieta mais abrasiva. Somente a partir do Mioceno (22 milhões de anos atrás) há registros de alterações fundamentais na sequência evolutiva da espécie: o aumento progressivo do tamanho corporal, o alongamento do crânio, o fechamento da órbita, a diminuição do número de dedos e a formação de uma dentição mais complexa. Adaptações fantásticas que ampliaram a superfície de trituração do alimento sem comprometer a rigidez dos dentes, o que tornou o animal adequado às pastagens5.

Hyracotherium

55 milhões de anos

Altura: 40 cm

Comprimento: 70 cm

Habitat: florestas

Mesohippus

35 milhões de anos

Altura: 60 cm

Comprimento: 100 cm

Peso: 40-50 kg

Alimento: folhas e brotos

4 dedos anteriores

4 dedos posteriores

Merychippus

15 milhões de anos

Altura: 90 cm

Comprimento: 90 cm

Peso: 71-100 kg

Habitat: florestas

Alimento: folhas e brotos

3 dedos anteriores

3 dedos posteriores

Habitat: pradarias

Alimento: pastagens

3 dedos anteriores

3 dedos posteriores

As mudanças na estrutura óssea também prepararam o cavalo primitivo para a vida em planícies abertas, e não mais somente em florestas. Houve fusão dos ossos rádio e ulna nos membros anteriores, e tíbia e fíbula nos membros posteriores, o que impediu a rotação dos membros e deu mais velocidade aos deslocamentos e, portanto, facilitou a fuga de predadores. Provavelmente, nessa fase ancestral, o cavalo desenvolveu a capacidade visual, olfativa e auditiva de longa distância e a excelente capacidade tátil dos cascos, capaz de perceber imperfeições no terreno e adquirir grandes velocidades sem sofrer acidentes6. É dessa era o Parahippus, por exemplo, com cerca de 80 cm de altura e 1,30 cm de comprimento.

Ao fim do Mioceno diversos exemplares mais evoluídos partiram da América do Norte e espalharam-se pela Ásia, Europa e África usando o istmo de Bering. Há até mesmo teorias que supõem que as migrações do cavalo para a Ásia e a Europa possam ter ocorrido via a lendária Atlântida, que hoje estaria sepultada pelo mar. Mas o fato é que, posteriormente, no período Plioceno, há cerca de cinco milhões de anos, há registros da vasta ocupação de espécies já com apenas um dedo, do porte de um jumento e arcada dentária adaptada ao consumo de forragens. É o caso do Pliohippus, com cerca de 1,2 metro de altura, e o Hipparion, que viveu durante o mesmo período, extinguindo-se mais tarde. Taxonomicamente, ele já era um integrante da subfamília Equinae, que inclui também os equídeos modernos5.

Pliohippus

5 milhões de anos

Altura: 120 cm

Comprimento: 150 cm

Peso: 70-80 kg

Habitat: pradarias

Alimento: pastagens

1 dedo anterior

1 dedo posterior

Equus

1 milhão de anos

Altura: 160 cm

Peso: 450 kg

Habitat: pradarias

Alimento: pastagens

1 dedo anterior

1 dedo posterior

14 15 Flávio de Polli

Ao final do Plioceno / início do Pleistoceno (de 11 mil a um milhão e 800 mil anos atrás), houve novas migrações partidas também da América do Norte, e, a partir daí, os cavalos modernos (Equus) já estavam presentes na vida do Planeta5. O maior do gênero já encontrado é o Equus giganteus, com 2m de altura e uma tonelada, extinto há alguns milhares de anos6

Além das alterações morfológicas que prepararam gradativamente o cavalo para a vida em pradarias, há estudos recentes que também atribuem a evolução do animal às importantes mudanças climáticas que teriam gerado ecossistemas fragmentados e com suficiente alimento para manter uma grande diversidade de populações isoladas e geneticamente diferentes, mesmo que fisicamente parecidas.

O fato é que o cavalo chegou à América do Sul. Mas como?

Embora existam teorias do cavalo como sendo originário desta parte do continente, a tese mais aceita entre cientistas e pesquisadores é a de que o animal migrou a partir da América do Norte até a do Sul por meio do istmo do Panamá, que emergiu ao fim do período Plioceno. Segundo o autor Angel Cabrera, no livro Caballos de América, (...) o animal apareceu na América do Norte e ali se pode perceber toda uma série filogenética praticamente continuada desde a espécie mais remota até o Equus. E, mais adiante, espécies de Pliohippus passaram para a América do Sul e ali deram origem a outros gêneros (Hippidion, Anochippidium, Parahipparion) que existiram nos tempos quaternários e cujos restos fósseis têm sido encontrados com frequência na Argentina e países vizinhos.

A travessia para a América do Sul foi o auge da incrível vocação andarilha do cavalo, mas ela só pode ocorrer depois da conclusão do lento processo geológico que fez emergir a América Central como uma ponte entre os continentes. O caminho tirou a América do Sul de um período de isolamento de 60 milhões de anos e deu margem a um fascinante intercâmbio entre faunas, do qual o cavalo foi parte. Este movimento ficou conhecido como o Grande Intercâmbio Americano. Uma fascinante peregrinação do Norte para o Sul, e vice-versa, que, segundo alguns pesquisadores, também foi motivada por intensas mudanças climáticas que alteraram a vegetação.

Além do cavalo, outros animais vindos da América do Norte como os cachorros, ursos, os tigres-dente-de-sabre, os mastodontes e raposas, chegaram à porção Sul do continente; e na via contrária, preguiças-gigantes, tatus, gambás, porcosespinhos entre outros grandes vertebrados atravessaram o istmo do Panamá. Do grande intercâmbio participaram 16 dentre as 32 famílias norte-americanas e 8 dentre as 30 sul-americanas. Treze das 16 primeiras famílias e quatro das oito últimas sobrevivem ainda hoje em seus continentes de origem5.

Um dos principais pontos de evolução na formação do cavalo moderno foram as mudanças no aparelho dental e a fusão nos ossos dos dedos. Os dentes evoluíram para tornar o animal capaz de ingerir e triturar forragens, o que lhe deu o acesso às pradarias tirando seus ancestrais das florestas. Os dedos fundidos tornam o aparelho locomotor mais resistente, forte e rápido, possibilitando a fuga de predadores. A comparação entre os ancestrais encontrados no Brasil Hippidion principale e Equus (Amerhippus) neogaeus mostram bem esta evolução.

Dente do Hippidion principale Dente do Equus (Amerhippus) neogaeus
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Mandíbula do Equus (Amerhippus) neogaeus

1- Gambá

2- Ouriço

3- Tatu

4- Tamanduá

5- Capivara

6- Megatherium (Preguiça gigante)†

7- Notoungulado†

8- Gliptodonte†

9- Furão

10- Urso de Óculos

11- Onça

12- Mão Pelada

13- Tapir (Anta)

14- Esquilo

15- Gomphothere†

16- Cavalo*

17- Cachorro (Lobo guará)

18- Rato Silvestre

19- Lhama

20- Veado

21- Coelho

22- Musaranho

23- Queixada

( † ) Animais que atualmente estão extintos.

( * )Animais extintos naquela área.

O Grande Intercâmbio Americano

O Grande Intercâmbio Americano (GABI, do inglês “Great American Biotic Interchange”) foi um importante evento paleozoogeográfico no qual a fauna terrestre e de água doce migrou da América do Norte através da América Central para a América do Sul e vice-versa, quando o istmo do Panamá se formou e uniu os continentes antes separados. A migração atingiu seu ápice por volta de três milhões de anos atrás, no Piacenziano, a primeira metade do Plioceno superior. Esse intercâmbio pôde ser constatado a partir da observação dos achados fósseis, sejam vegetais ou animais. Seu efeito mais dramático foi sobre a zoogeografia dos mamíferos, mas também possibilitou que aves ápteras, artrópodes, répteis, anfíbios e até mesmo peixes de água doce, migrassem.

É verdade que alguns mamíferos, como quatis, mão-peladas e roedores da subfamília Sigmodontinae, oriundos do norte, parecem ter pisado na América do Sul há mais tempo, e também há registros de que a entrada na América do Norte de preguiças, originárias da porção meridional do continente, seria mais antiga do que a data clássica de formação do istmo. Os pesquisadores explicam esses achados anteriores pela migração esporádica de indivíduos através de corpos d’água ou pelo transporte em porções de terras que são levadas pela correnteza de uma margem a outra de um rio ou mar. Mas a formação do istmo é um evento importante para entender as características evolutivas da fauna e da flora nas Américas.

Dos animais que migraram da América do Norte para a América do Sul, destacamos os ancestrais do cavalo, da onça e demais grandes felinos, e os camelídeos que deram origens às lhamas, vicunhas e alpacas. Também seguiram essa corrente os ancestrais do lobo-guará e das raposas, e os mastodontes. Já na direção inversa, as principais espécies envolvidas foram as do gênero Glyptodon (que deu origem aos tatus e armadilhos), as capivaras, beija-flores (Trochilidae) e as preguiças gigantes (Megalonyx).

A Megafauna da América do Sul

Preguiças-gigantes de até 6 metros de comprimento; toxodontes do tamanho de hipopótamos; os notoungulados, com cerca de 2 metros, com chifres e enormes incisivos e caninos projetados para frente; os litopternos, animais do porte dos camelos, com cerca de 1 tonelada, pescoço comprido e uma estranha narina entre os olhos, como uma tromba de anta.

Você consegue imaginar uma fauna tão impressionante?

São os grandes mamíferos, tão únicos quanto os dinossauros, que habitaram endemicamente a América do Sul na era Cenozoica (período Quaternário), quando o continente ainda era uma ilha, isolado do resto do mundo. São exemplares riquíssimos, embora completamente desconhecidos da nossa cultura popular, e que se revelam hoje graças às descobertas de registros fósseis em diversas regiões do continente.

É sabido que a chegada de inúmeras novas espécies de animais da América do Norte impactou o equilíbrio da peculiar fauna do Sul do continente. No entanto, as causas da extinção dessas espécies nativas da América do Sul, ainda são questão de debate na comunidade científica. Algumas hipóteses sugerem a junção de fatores ambientais, como variações climáticas e na dinâmica da vegetação, que era um alimento importante para muitas dessas espécies.

Durante o Intercâmbio Americano, o volume de exemplares vindos do Norte para o Sul foi maior que o da mão contrária. No entanto, embora menos volumosa, a fauna sul-americana que participou da grande travessia não foi menos magnífica. Para o Norte, migraram, por exemplo, gliptodontes, várias espécies de preguiças terrícolas, tatus e marsupiais. Os dois últimos grupos sobrevivem lá até hoje Assim como estão muito bem adaptados aqui os coelhos, capivaras, pacas e o próprio cavalo, cujos ancestrais são norte-americanos.

Um brasileiro antigo – fósseis que contam história

Mas e o cavalo no Brasil? Na América do Sul, quem primeiro encontrou restos fósseis de cavalos primitivos foi o naturalista Charles Darwin, em 1833. Sete anos depois, em 1840, o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (18011880) anunciou ao mundo o primeiro registro da presença do cavalo em terras tupiniquins: um metacarpo, osso da mão, que integra o membro do animal5. Era o começo das investigações não somente sobre a presença do cavalo em nosso país, mas sobretudo sobre a fauna tipicamente brasileira. Um trabalho extraordinário que abriu caminho para a aceitação das ideias revolucionárias de Darwin e incitou discussões importantes sobre a coexistência entre o homem e a megafauna extinta.

O fragmento, provavelmente do gênero Equus (Amerhippus) neogaeue, descendente do norte-americano Pliohippus, foi encontrado em Minas Gerais, mais especificamente na região de Lagoa Santa - um santuário de ossadas diversas, preservadas em cavernas calcárias no vale do Rio das Velhas. O achado atesta o quão antiga é a presença do cavalo em nosso país. A partir de 1835, quando decidiu residir na cidade, e ao longo dos 10 anos seguintes, Lund adentraria inúmeras vezes em centenas dessas grutas, em busca de fósseis e vestígios de uma fauna única e remota. O objetivo? Criar uma visão conjunta do “mundo animal brasileiro”.

À época era comum a extração de salitre nas grutas de Lagoa Santa para a fabricação de pólvora. Ao final do processo de extração, frequentemente sobravam alguns ossos enormes, que o folclore local dizia ser de “gigantes”.

Reprodução de página do Jornal do Commercio, relatando os achados de Lagoa Santa, e a presença concomitante de restos humanos e de animais da megafauna.
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Conhecendo a megafauna extinta, Lund compreendeu imediatamente o valor científico do material e começou a coletar tantos ossos quanto fosse possível, em um comportamento completamente bizarro aos olhos de quem vivia na cidade:

“Os brasileiros consideram esses ossos indignos de qualquer estudo, embora não desconheçam sua existência. Segundo suas asserções, cujo justo valor reconheço, por numerosas experiências, a aparição de ossadas na terra das grutas seria mesmo um fato extremamente freqüente. (...) Muita surpresa lhes causa ver alguém ocupar-se em apanhar tais ossadas, toda vez que não compreendem que o seu valor nas farmácias possa compensar os gastos de sua extração. É inútil tentar convencê-los de que possam ter outra qualquer importância” (Lund, 1950a, p.119)7.

E que importância!

Se naquele tempo, conforme registros do próprio Lund, muitos julgavam seu interesse pelos ossos uma extravagância ou um disfarce para a intenção de encontrar diamantes nas cavernas, hoje são inquestionáveis as descobertas realizadas por aquele que foi depois intitulado “pai da paleontologia brasileira”. Dentre elas estão não só o metacarpo, atualmente preservado como peça do Museu de Zoologia de Copenhague, na Dinamarca,5 como também demais restos de fósseis de cavalos americanos da idade pré-colombiana8,9, misturados a registros de grandes mamíferos extintos, como a capivara gigante (Hydrocoerus sulcidens) e o grande jaguar (Felis protophanter), e a restos de esqueletos humanos, identificados em pelo menos seis grutas de Lagoa Santa, sobretudo na do Sumidouro, que quase sempre permanecia inundada, como descreveu o próprio Lund em uma de suas memórias:

“Domingo, 26 (de julho). Visita a duas grutas na rocha da extremidade leste da Lagoa do Sumidouro; onde estive dentro de uma delas no ano passado, mas não pude entrar muito, pois estava cheia de água. Em um corredor dessa gruta que, naquela época, estava debaixo d’água e, consequentemente, provavelmente fica submerso periodicamente no tempo de chuva, foram encontrados, além de alguns restos de animais, dois esqueletos extraordinariamente velhos de humanos em condição completamente petrificada”10 .

Os achados de Peter Lund contribuíram, portanto, para colocar em questão a teoria catastrofista, dominante à época, que afirmava que o homem só teria habitado a Terra após a extinção da megafauna. Porém, entre os anos de 1843 e 1844, Lund apresentou a sua tese que comprovava a contemporaneidade do homem com algumas espécies primitivas, dentre elas provavelmente o cavalo.

É verdade que muitos ainda duvidam dessa coexistência, mas achados mais recentes na região revelam, por exemplo, esqueletos de preguiças terrícolas exibindo cortes nos ossos, o que faz supor que estes animais teriam sido vítimas da ação predatória do homem antigo.11

Peter

Lund – O Pai da Paleontologia Brasileira

Peter Wilhelm Lund nasceu em Copenhague em 1 de junho de 1801. Iniciou muito cedo seus estudos: aos 17 anos matriculouse na Academia de Medicina de Copenhague. No entanto, a paixão pelas ciências naturais logo o levou a desistir da medicina para seguir carreira definitiva nos campos da zoologia e botânica.

O jovem pesquisador aportou pela primeira vez no Brasil, no Rio de Janeiro, em 1825, atraído pelo mesmo fascínio sobre o desconhecido – a América do Sul – que motivou outros cientistas como Saint-Hilaire, Martius e Humbolt à mesma viagem. Aos 26 anos, passou uma longa temporada em Minas Gerais, onde ocupou-se primeiramente do estudo da flora da Serra de Nossa Senhora da Piedade. A experiência foi o suficiente para que Lund passasse a nutrir uma forte afeição e interesse pelo Brasil.

“Muitas vezes as doces harmonias do Brasil ressoam aos meus ouvidos, embalando meus sonhos, - muitas vezes penso ainda nesses encantadores sítios, entre os quais a Serra da Piedade não ocupa, certamente, o último lugar, e compreendo, então, a verdade do velho adágio: não se viaja impunemente à sombra das verdes palmeiras”, escreveu Lund já de volta a Europa, para pesquisas que precederam a sua segunda e definitiva viagem ao nosso país, em 1833.

Dessa vez, Lund atravessou o rio São Francisco, perto do ponto de confluência com o Abaeté, até Curvelo, chegando por fim a Ouro Preto. Essa trajetória foi marcante em sua vida. A descoberta de algumas ossadas fósseis perto de Curvelo alterou definitivamente sua vocação. A partir daí, Lund resolveu dedicar-se exclusivamente à zoologia.

Sob essa nova perspectiva profissional, em 1835 Lund viaja até Sabará e alcança o arraial de Lagoa Santa, em Minas, onde desenvolveu suas importantes pesquisas e viveu até a morte, em 5 de maio de 1880.

Em Lagoa Santa Lund explorou, por conta própria, mais de 250 grutas e escreveu a história do reino animal brasileiro em épocas remotas, muito anteriores à nossa. Em 1837 enviou para a Academia de Ciência de Copenhague a primeira parte dessa incrível história, com o título “Exposição Sumária do Reino Animal no Brasil antes da Última Revolução do Globo”, uma introdução à fauna dos mamíferos do Planalto Central de Minas Gerais.

No total, Lund estudou na região de Lagoa Santa 39 gêneros da fauna atual e 54 gêneros da fauna fóssil, organizados em 112 espécies. Sua dedicação e a importância dos trabalhos realizados lhe conferiu o título de pai da paleontologia brasileira.

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A linhagem brasileira ancestral

Após Lund, poucas descobertas significativas a respeito do cavalo primitivo foram realizadas no Brasil: dentes isolados, em Minas Gerais (Montes Claros e Lagoa Santa), Rio Grande do Sul e Paraíba, e alguns ossos das extremidades, na Bahia (Chique Chique) e em Pernambuco (Pesqueira)5. Porém, na década de 1980, a equipe de paleontologia do Museu de Ciências Naturais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) coletou dentes e fragmentos de esqueletos de cavalo em Jacobina; e um crânio, no município de Santana, ambos na Bahia, concluindo registros que merecem destaque nas investigações.

Por estarem relacionadas a uma outra espécie de cavalo menos difundida no Brasil - em relação ao exemplar identificado por Lund - estas descobertas nos ajudam a compreender melhor a linhagem ancestral do cavalo brasileiro. O professor paleontólogo Cástor Cartelle, curador do Museu de Ciências Naturais da PUC-MG, explica:

“(...) Tais restos identificados pertencem a Hippidion, gênero encontrado apenas na América do Sul. Tradicionalmente, pensava-se que o Brasil tivesse sido habitado por duas espécies do mesmo gênero (uma de porte reduzido, outra de maior porte), a exemplo do que fora constatado na Argentina. As espécies dos dois países seriam, portanto, idênticas. Acreditamos, agora, no entanto, que o Brasil abrigou uma única espécie. A comparação do material coletado em Santana com o que se conhece da Argentina leva-nos também a concluir que o Hippidion brasileiro é diferente das espécies que se conhecem no país vizinho. Hippidion principale é a denominação da nossa espécie. Ele apresentava caracteres mais primitivos do que a outra espécie brasileira, a Equus (Amerhippus) neogaeus É de se notar que as diferentes espécies nacionais - Equus e Hippidion - se teriam originado provavelmente de um ancestral norte-americano, o Pliohippus. Alongado, o crânio de Hippidion era desproporcional em relação ao corpo. Os dentes, mais simples, eram em maior número do que os de Equus. Aparentemente, fêmeas e machos possuíam caninos (nos cavalos atuais, só os machos os possuem); o primeiro pré-molar superior era conservado durante toda a vida, ao passo que nas espécies de Equus esse dente desaparece quando a dentadura definitiva se instala, raramente permanecendo em indivíduos adultos. Os ossos nasais de Equus, relativamente largos, projetam-se livres, formando as narinas externas a partir do nível do segundo pré-molar. Hippidion principale tinha ossos nasais

muito finos e alongados, que se projetavam livres desde o nível das órbitas, formando a cavidade nasal, o que equivale a um plano posterior ao último molar. O crânio do animal, anteriormente longo e estreito, apresentaria um focinho afilado.

Com crânio maior que o do Equus (Amerhippus) neogaeus, o Hippidion possuía corpo de tamanho semelhante, pescoço mais curto e membros mais atarracados do que aquele. Se pudéssemos observá-lo em nossos campos, teríamos a nítida impressão de que se tratava de um animal menos ágil e desproporcional em relação a outros cavalos5”.

A grande extinção

Uma grave crise biológica aconteceu durante o período Pleistoceno, ou seja, de 2 milhões e 500 mil a 10 mil anos atrás. Tente imaginar o cenário: o istmo de Bering, que até então permitira a migração do cavalo e tantas outras espécies da América do Norte para a Eurásia virou um estreito, um canal de água. O fenômeno das glaciações cobriu de gelo enormes superfícies continentais, na chamada era do Gelo, que chegou ao seu apogeu há cerca de 30.000 anos. Animais adaptados a climas frios ou que se refugiaram em territórios de climas mais amenos sobreviveram, mas muitos não tiveram a mesma sorte. Nos trópicos, períodos de umidade e seca alternaram-se acarretando fortes mudanças climáticas que provavelmente contribuíram para romper o equilíbrio que a natureza levara séculos para construir, culminando na extinção da incrível fauna de mamíferos5.

Alguns pesquisadores defendem que, embora tenha sido um fenômeno generalizado e bastante intenso, a extinção no período do Pleistoceno não aconteceu ao mesmo tempo nas diferentes regiões do planeta. E que foi também um processo relativamente acelerado, multifatorial, com espécies que deixaram de existir em poucas décadas, e outras, como os mamutes, que foram desaparecendo sucessivamente de diferentes zonas ao longo de vários séculos. Acredita-se que, no total, um terço das espécies de mamíferos da Eurásia e dois terços da América do Norte foram dizimados ao longo da grande extinção.

Há pesquisas que também consideram a presença do homem, na caça, como um dos fatores do desaparecimento de alguns animais, dentre eles o cavalo selvagem e o bisão siberiano, por exemplo12.

Apesar das dificuldades, os equídeos conseguiram sobreviver em territórios da Ásia, Europa e África5. Mas foram completamente dizimados na América do Norte, sua terra natal, e na do Sul também. Somente cerca de 10 mil anos depois, no século XV, o cavalo foi reintroduzido no continente pelo colonizador Cristóvão Colombo, via América Central.

No Brasil, os primeiros cavalos chegaram depois da descoberta de Cabral. A partir daí, inicia-se uma nova relação entre homem e cavalo, em uma ocupação abrangente do território nacional, não somente geográfica, mas também funcional.

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Metacarpo e conjunto de falanges do Hippidion principale, recuperados em escavação realizada por municípios de Santana e Jacobina.

Após a extinção ocorrida no final do Pleistoceno, os cavalos só retornaram às Américas com os conquistadores europeus. Os nativos americanos, que nunca haviam visto o animal, ao se depararem com os espanhóis e portugueses montados, muitas vezes os tomaram por seres mágicos, metade homem, metade animal.

Hernán Cortés en la

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. OLIVEIRA DE SALES, Izabella Fátima; ZANGELMI, Arnaldo José. Armas no Termo de Mariana (1707-1736): Legislação e Direito Comum. Revista CLIO – Revista de Pesquisa Histórica. Volume 28 (2), 2010.

2. GOULART, José Alípio. O Cavalo na Formação do Brasil. Editora Letras e artes. Pag 15-17, 1964.

3. Ordenações do Reino de Portugal, Livro II, Título LX

4. Estudo do Complexo do Agronegócio Cavalo no Brasil. Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da ESALQ, Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – Brasília: CNA; MAPA, 2006. 68p. (Coletânea Estudos Gleba 40).

5. CARTELLE, Cástor. Cavalo, um brasileiro antigo. Revista Ciência Hoje, Vol. 8 N° 44, julho de 1988.

6. CINTRA, André Galvão de Campos. O Cavalo: Características, Manejo e Alimentação. Editora Roca, 2011.

7. LOPES, Maria Margaret. Cenas de tempos profundos: ossos, viagens, memórias nas culturas da natureza no Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos [online], vol.15, n.3, pp.615-634, 2008.

8. LUND, Peter Wilhelm. Comunicação sobre o material das cavernas de ossadas exploradas em 1844 e sobre sua contribuição para o conhecimento da vida animal no Brasil antes da última revolução do globo. In: Paula Couto, Carlos de (org.) Memórias sobre a paleontologia brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde. p.505-535. 1950c.

9. LUND, Peter Wilhelm. Memórias sobre a paleontologia brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950 [1845]. p. 465-484.

10. LUND, Peter Wilhelm. Diários de Viagens (manuscrito); Biblioteca Real, Copenhague, Add. 1128 4º.

11. LIMA, Murilo Rodolfo de. Fósseis do Brasil . Editora da Universidade de São Paulo, 1989.

12. PORTAL G1. Extinção da megafauna foi causada por conjunto de fatores, diz estudo. Disponível em: http:// g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/11/extincaoda-megafauna-foi-causada-por-conjunto-de-fatores-dizestudo.html. Acesso em 20 ago. 2019.

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batalla de Otumba. Pintura de autor desconhecido. Museu do Exército de Madrid.

Cavalo, que Bicho é Esse?

Parte 2

Quando os primeiros colonizadores espanhóis chegaram na América, causoulhes espanto a ausência de animais domésticos por aqui. Não havia nenhum animal que provesse alimentação, lida no campo, ou mesmo tração para o trabalho do homem. É o que sugere, por exemplo, a carta de Cristóvão Colombo, em 1494, para El Rei, solicitando remessas de gado ao novo mundo, pois “acá ninguns desta alimalias ay, de que hombre se pueda ayudar ni valer1”. É também o que nos diz, seis anos depois, Pero Vaz de Caminha em sua famosa carta a D. Manoel I, tão logo a frota de Pedro Álvares Cabral aportou no litoral baiano, em 1500:

“(...) eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam.”

Desta forma, tanto gado quanto cavalo eram desconhecidos do povo americano nos idos do descobrimento. Por isso, em 1493, na segunda viagem de Colombo às Américas, para a expedição que envolveu 17 embarcações até a América Central, os reis da Espanha, Fernando e Izabel, preocuparam-se pessoalmente com a questão do suprimento do cavalo, pois era importante contornar essa ausência e considerar o envio de animais que servissem à frota tanto como transporte e tração quanto como instrumento de combate. Até hoje não se sabe ao certo quantos cavalos embarcaram naquela viagem, mas estima-se que tenham sido pelo menos 25.

Assim, gradativamente o envio de cavalos para a América tornou-se, mais que uma estratégia, uma necessidade, pois significava facilitar a conquista do novo território. Tanto é verdade que, em agosto de 1493, uma nova Cédula Real foi decretada na Espanha, afirmando que, se as embarcações colonizadoras não tivessem espaço suficiente, seria necessário deixar de embarcar alguns materiais para privilegiar o ingresso dos cavalos 1. Ao longo de 12 anos, Cristóvão Colombo e o Governador das Índias Ocidentais (Antilhas) importaram éguas e garanhões da Espanha, estabelecendo rebanhos na Ilha Hispaniola (São Domingos ou Haiti), para atender às necessidades da nova colônia.

A partir daí, a inserção do cavalo nos países da América do Sul ocorreu sob a liderança de diversos colonizadores. Hernán Cortés cuidou disso na Venezuela e Colômbia; e Cabeza de Vaca, em 1541, seis meses após ter deixado a Espanha, aportou em Santa Catarina, na ilha de Florianópolis, com cerca de 30 cavalos a bordo. De Santa Catarina a expedição de Cabeza de Vaca rumou para a região do Rio da Prata, em Buenos Aires, acompanhada de perto por índios Guaranis. Nos registros da viagem há curiosas memórias sobre o início da relação da tribo com o cavalo, um animal, até então, completamente estranho para eles2.

“Era uma coisa impressionante de se ver como os cavalos eram temidos pelos índios de toda a terra daquela província; de tanto medo que eles tinham, desviavam os cavalos do caminho, oferecendo-lhes mantimentos, dizendo que não ficassem bravos, porque eles lhes dariam de comer; e, por tê-los acalmado, que não desamparassem seu povo […]2.”

(...) eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam.

Reprodução do original e trecho
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da carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel

Essa reação, de medo e submissão, reforça a teoria da ausência do cavalo na América do Sul antes das conquistas de Portugal e Espanha, e vai contra a hipótese do animal autóctone do continente. Mas é preciso dizer que nem todo indígena agiu assim. Os índios Querandis, nativos da região do Rio da Prata, na Argentina, embora provavelmente também não tivessem conhecido o cavalo antes da colonização, incorporaram muito bem o animal em seu cotidiano, inclusive para enfrentar violentamente a comitiva do colonizador espanhol Dom Pedro Mendoza, o primeiro fundador de Buenos Aires. Em meados de 1536, por conta de violentos conflitos com os Querandis, Mendoza teria abandonado a cidade rumo a Assunção, deixando para trás dezenas de cavalos de combate2. Por isso, em 1590, durante a segunda tomada de Buenos Aires, Juan de Garay, líder da conquista, encontrou as planícies dos Pampas completamente habitadas por extensas manadas de cavalos selvagens e arredios, descendentes dos que foram esquecidos lá, por Mendoza, décadas antes.3

Para alguns pesquisadores, sem contar os registros fósseis descobertos no continente, são exatamente esses exemplares a origem mais remota não apenas do cavalo sul-americano mas, também, do nosso cavalo brasileiro.4

Outra tribo que também não se intimidou pelo desconhecido animal foi a dos Guaicurus, povo conhecido pela alcunha “gentio de corso”, por sua incrível resistência à conquista portuguesa e espanhola. A maior parte da tribo vivia entre o Norte da Argentina e o que hoje é o Paraguai. E muito embora tivessem, à primeira vista, se assustado com a figura imponente do cavalo, os Guaicurus aprenderam a manejar o animal com maestria – provavelmente com os vizinhos Querandis e, talvez, justamente com os exemplares desgarrados, herdeiros dos cavalos deixados por Mendoza - e a transformá-lo em poderosa arma de guerra contra o colonizador e tribos rivais. Por tamanha destreza na montaria, há quem acredite que o povo Guaicuru já conhecia o cavalo mesmo antes da ocupação espanhola e portuguesa, o que, para muitos, reacende a ideia do cavalo genuinamente sulamericano. Há quem afirme também que esses índios detinham um grande plantel, de mais de 8 mil animais!

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lustrações de Jean Baptiste Debret. Na página oposta ‘Ataque de cavalaria Guaicuru’ e nesta página ‘Chefe dos índios Charrua’. Arquivo do Museu Histórico Nacional.

Gado: a primeira razão do cavalo no Brasil

No que diz respeito ao Brasil, o cavalo chegou à Colônia por diferentes acessos e, sobretudo, na esteira do gado. Talvez a primeira iniciativa, e uma das mais importantes, tenha sido a de uma mulher: Dona Anna Pimentel de Souza, esposa de Martim Afonso de Souza, militar português, comandante da primeira expedição colonizadora enviada ao Brasil pelo rei de Portugal D. João III, no ano de 1530. Martim Afonso de Souza foi também o primeiro donatário da Capitania de São Vicente.

Foi de Ana Pimentel a ordem, em 1534, portanto bem antes da expedição de Cabeza de Vaca, para que mandassem vir do arquipélago de Cabo Verde até São Vicente as primeiras dezenas de cabeças de gado, e com elas alguns poucos cavalos1. Era o começo da atividade pecuária em nosso país. Nos anos seguintes, outras expedições importando de Portugal suínos, bovinos, e com eles, cavalos, contribuíram para povoar a capitania e para fazer dela uma das mais abastadas na criação desses animais. O pesquisador Robert Southey (1774-1843), em seu livro “História do Brasil”, chegou a afirmar que o gado proveniente de Cabo Verde se

multiplicou rapidamente por São Vicente a ponto de fazer com que a capitania virasse referência na produção de queijo e manteiga.

Pernambuco foi, provavelmente, um segundo importante acesso. O donatário da capitania, Duarte Coelho Pereira, quando chegou à região, em 1535, trouxe consigo quase uma centena de cabeças de gado e cavalos5, também de Cabo Verde. Mais tarde, Tomé de Souza, ao assumir em 1549 o cargo de Governador Geral do Brasil, escreveu uma carta ao rei D. João III solicitando a liberação de lotes de gado para serem enviados à colônia. Foi imediatamente atendido. Em dezembro de 1551, vindas também de Cabo Verde, chegaram algumas centenas de bois e vacas, cinco cavalos e dois burros, que foram distribuídos entre seus apadrinhados da Bahia. O Reino também concederia ao governador a caravela “Galga”, destinada a fazer viagens a Cabo Verde e ao arquipélago de Açores para trazer para o Brasil gado e cavalos, desembarcados em Salvador, na época a capital da Colônia.

No Rio Grande do Sul, tanto o gado quanto o cavalo marcaram presença mais tarde, a partir de meados de 1630, graças ao padre Jesuíta Cristóvão de Mendoza Orellano, que comprara mil bovinos de um estancieiro paraguaio (que por sinal era paulista), e os espalhara pelas Missões (os Sete Povos), campos de Vacaria de los Pinares (Passo Fundo e a atual Vacaria), e campos de Santa Tecla, hoje município de Bagé, fronteira com o Uruguai. Cristóvão Mendoza foi o fundador da primeira estância sul-rio-grandense missioneira com criação de gado e cavalo5.

Embora de início mais tardio, a ligação do gaúcho com o gado e o cavalo tornouse fortíssima e autêntica já no Brasil Colônia. É do missionário norte americano, Daniel Kidder, que percorreu o Brasil em viagens evangelizadoras, o bonito relato abaixo que congela uma cena cotidiana entre cavalo e gado no Rio Grande do Sul, nos idos de 1830:

“Os gaúchos (...), de ambos os sexos, são habituados desde a infância à equitação e, consequentemente, adquirem grande destreza do manejo dos belos animais sobre os quais se divertem, viajam e perseguem o gado selvagem em suas planícies. Os cavalos são admiravelmente ensinados para a caça ao gado arredio e, quando o vaqueiro atira o laço, eles sabem exatamente o que devem fazer. Às vezes, quando a rês é bravia, o cavaleiro esbarra o cavalo e salta enquanto o boi continua correndo até esticar o laço de couro cru. O cavalo vira-se e firma-se no chão para esperar o golpe que o animal em disparada há de fatalmente dar. O boi, que não espera parada repentina, esparrama-se no chão. Levantando-se novamente, atira-se contra o cavalo para chifrá-lo, mas, este, em disparada, mantém a distância até que o boi, convicto de que nada poderá fazer, tenta novamente fugir e novo golpe do laço dá-lhe com os costados em terra. Assim, vencido pela fadiga, o pobre animal entrega-se inteiramente aos seus captores9”.

A verdade é que, em todo o Brasil, mais pela pecuária do que por questões bélicas, no século XVI já havia um volume considerável de animais domésticos

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Gravura ‘Caça aos Touros’, da coleção Ferdinand Dias. Acervo do Museu Histórico Nacional.

para a produção animal provenientes da Espanha e Portugal, entre eles o cavalo, a maioria concentrada nas faixas litorâneas. Principalmente por exigência da criação de gado, a presença do cavalo em nosso país expandiu-se a partir dos eixos centrais - São Paulo, Pernambuco e Bahia – ganhando também o Sul – com a participação dos tropeiros de Laguna e Sorocaba5 - e os sertões - subindo o Rio São Francisco para o Norte - na medida em que a Coroa precisou intervir para distanciar o gado das áreas costeiras, sobretudo dos canaviais, que movimentavam a economia e a vida nos engenhos. É que o gado estragava a lavoura e causava conflitos a ponto de Portugal estabelecer por lei, instituída em Carta Régia de 1701, o afastamento da pecuária para um mínimo de dez léguas das áreas agricultadas. Acontece aí a separação forçada entre as atividades açucareira e de criatório, a instalação dos currais e a interiorização do gado e cavalo no Brasil, sobretudo no Norte e Nordeste, onde fixou-se a primeira grande região pecuária do nosso país, em função do sistema de doação de sesmarias1,10. Por volta do século XVIII floresce, então, no sertão nordestino a criação cavalar e muar.

Assim, é certo dizer que o nosso cavalo descende de exemplares de Portugal e Espanha, cumprindo uma distribuição geográfica distinta: no Sul e CentroOeste, o cavalo brasileiro é originário sobretudo de exemplares espanhóis, reproduzidos na Argentina e Uruguai; e no Norte e Nordeste, e também em São Paulo, é proveniente de Portugal, a maioria de Cabo Verde. Seja da Espanha ou de Portugal, o nosso cavalo tem, portanto, sangue bético-lusitano (Andaluz), e Árabe e Berbere, o que para muitos equivale a dizer que o cavalo brasileiro vem do Árabe e do Berbere, as duas mais nobres estirpes da espécie1 (conheça mais sobre essas raças nos boxes ao lado e abaixo).

No século XVII, com o domínio holandês no Nordeste, houve também a introdução de cavalos das raças holandesas e germânicas, mas, ao chegarem aqui, esses exemplares já encontraram uma população equina bem desenvolvida.

O Cavalo Andaluz

Uma das raças formadoras dos rebanhos espanhóis, o cavalo Andaluz tem uma interessante mescla em seu DNA. Pesquisadores afirmam que cavalos já existiam na península Ibérica, vindos da África. E que, provavelmente, os animais espanhóis procriaram naturalmente, sem nenhuma intervenção humana, por cerca de seiscentos anos até a invasão do Norte da Europa pelos bárbaros, principalmente os teutônicos, que também ocuparam a Espanha e a batizaram de Vandaluzia. Esse povo trouxe à região cavalos do tipo “germânico puro” que foram misturados aos espanhóis nativos. Depois, por volta do ano 700 d.C, houve a primeira leva da ocupação muçulmana, envolvendo mais ou menos 300 mil cavalos, certamente quase todos da raça Berbere.

A luta contra os muçulmanos induziu o povo espanhol à criação de cavalos com objetivos específicos, seletivos. Com um cavalo pesado, do tipo espanhol-germânico, as chances de vitória contra os muçulmanos, montados em animais Árabes e Berberes, bem mais ágeis, eram reduzidas. A saída foi misturar o cavalo espanhol com tais raças, o que deu certo. Assim, a partir do século XI, os cavalos espanhóis do tipo Andaluz se propagaram por toda a Europa, e foram criados com afinco e fidelidade à pureza da raça, sobretudo por monges.

Por isso é possível dizer que o Andaluz tem uma mescla berbereteutônica-ibérica-árabe. O resultado disso tudo? Um animal muito inteligente, afetuoso e altivo. O peito é profundo; o dorso é firme e alongado. O Andaluz tem o corpo largo e compacto com lombo potente e garupa arredondada6.

36 37 Marcello Gallante

O Cavalo Berbere

O Berbere é um verdadeiro alicerce no desenvolvimento das raças ibéricas. Um dos grandes cavalos utilizados para reforçar e melhorar outras raças, como o Andaluz, o Lusitano e o Crioulo Argentino. É originário da Berbéria (ou Magrebe), no Norte da África, em território que se estende da Líbia ao Marrocos. As origens da raça são ainda tema de debate. Há uma teoria, por exemplo, que diz que o Berbere descende de um grupo de cavalos selvagens que teria sobrevivido à era glacial. Outra atribui a raça à conquista islâmica, por volta do século VII. Mas um consenso existe: trata-se de uma das mais antigas raças do mundo, que teria sido criada, na antiguidade, para caça, guerra e trabalho.

O Berbere é dócil e corajoso. É extremamente resistente e rústico, capaz de viver com pequenas quantidades de alimento. A garupa é inclinada com cauda de baixa inserção e as pernas são compridas e fortes, o que faz do cavalo um animal muito ágil6 .

O Cavalo Árabe

O cavalo Árabe tem sido seletivamente criado por mais de mil anos, mais que qualquer outra raça. Segundo a Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Árabe é certo que existem evidências da presença do animal, já domesticado, na Mesopotâmia, por volta de 4000 a.C, no território onde hoje se localiza o Iraque. O Puro-Sangue Árabe seria, portanto, a raça mais antiga do mundo!

A criação seletiva do Árabe foi iniciada pelas tribos beduínas do deserto, e tem sido realizada desde os tempos de Maomé, com muita atenção à pureza da linhagem. O Árabe sempre foi um animal de trabalho e batalha. Em 700 a.C já havia uma procura generalizada por ele em todo o Oriente Médio e Norte da África. Guerras eram iniciadas com o único fim de obtê-lo em maior número possível7 .

A lenda beduína afirma que Alá teria criado o cavalo Árabe de um punhado do Vento Sul. Mas a raça deve ter evoluído a partir de cavalos pré-históricos que habitavam os planaltos e estepes da Europa e Ásia antes mesmo do homem civilizado6.

O Árabe é um cavalo de vivacidade marcante, fogoso, possuidor de grande inteligência, corajoso, leal e paciente. Tem o corpo compacto e bem musculoso com garupa forte; as pernas são delicadas e ao mesmo tempo fortes; e as patas são pequenas e duras.

38 39 Marcello Gallante Marcello Gallante

O cavalo na economia e o ciclo do ouro

No período do Brasil colonial as criações de gado bovino, cavalar e muar tinham uma grande importância na economia social. De fato, antes da era das máquinas, os cavalos serviam como agente motor, meio de transporte, e exerciam relevante função na evolução socioeconômica, representando o principal meio de condução e o elemento indispensável nas vilas, nos engenhos, nas fazendas ou no comércio de gado.

O tropeiro ilustra bem essa importância. Com sua tropa composta por mulas e cavalos, ele era o responsável direto pela circulação de produtos destinados à exportação e ao abastecimento de regiões interioranas. Além disso, era quem assegurava o fluxo da comunicação nos séculos XVIII e XIX. Uma espécie de mensageiro montado.

Na feira de Sorocaba, na época um dos principais entrepostos comerciais do país, a comercialização de produtos diversos, principalmente a carne seca, fervilhava no lombo muar ou de equinos, eles próprios mercadorias negociadas por mercantes tropeiros de diferentes regiões, sobretudo de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. A feira, que começou a funcionar em 1750 com a instalação do Registro de Animais de Sorocaba, era um grande centro comercial que chegava a durar de dois a três meses, vendendo cavalos, mulas e gado para diferentes propósitos. Nessa época, enquanto os bandeirantes paulistas rumavam para os sertões do Norte, do Oeste e do Sul, de olho na escravização indígena e na fundação de currais, Minas tornava-se a principal comarca na utilização e comércio de muares e cavalos, por conta das descobertas auríferas que, a partir do século XVII, provocaram intensas emigrações de uma incalculável população interessada nas possibilidades de enriquecimento, entre portugueses, escravos e gente vinda dos canaviais do Norte e das lavouras paulistas. Os tropeiros, com suas mulas e cavalos, abasteciam os mineiros com alimentos que não eram produzidos localmente, e vendiam animais que ajudavam nas expedições exploratórias. Foi a forte demanda mineira por animais de carga, por exemplo, que enriqueceu os estados da Bahia, Pernambuco e Piauí, e que mais tarde foi a responsável pela manutenção da atividade pecuária do Sul do Brasil1. Neste cenário, fica clara a importância econômica do cavalo, como meio de transporte e um dos maiores canais de civilização e povoamento que nosso país já teve, até o advento da estrada de ferro. Porém, como qualquer atividade comercial, a criação de cavalos não estava livre de riscos. Dadas as excelentes condições do Planalto Central para a criação do gado, a mula se desenvolveu tão bem que começou a representar uma forte concorrência à criação de equinos para o transporte de carga na capitania de Minas. No Nordeste, onde as mulas demoraram mais para aparecer, é provável que o cavalo tenha sido utilizado mais frequentemente como animal cargueiro9. Por isso, muitos criadores, assustados

com a queda do preço dos animais, apelaram para a Coroa que decidiu intervir: mandou colocar em execução a carta régia de 19 de junho de 1761, que ordenava a extinção da raça muar, sob o pretexto de favorecer os criadores, o comércio e a propagação dos cavalos8. A lei proibia o despacho de entrada e saída de mulas em qualquer região do país10 e causou polêmica. Vigorou somente até 1774, quando uma nova carta régia reestabeleceu a criação dos muares, mas dessa vez protegendo a população cavalar, pois determinava uma cota mínima de criação de cavalos nas fazendas10 e exigia que ela fosse satisfatória e sustentável para servir aos viandantes e à remonta das tropas.

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Serra dos Órgaõs. Litografia de Johann Moritz Rugendas (1820). Acervo do Museu Histórico Nacional.

Conde de Bobadelha, Mestre de Campo, General dos meus Exércitos, Principal Comissário, e Plenipotenciário na Divisão dos Limites da América Meridional da parte do Sul, Governador e Capitão General das Capitanias do Rio de Janeiro e Minas Geraes, Amigo DEL REY vos envia muito saudar como aquelle que amo. Sendo-me prezente que pelo costume que de anos desta parte se tem introduzido no continente do Estado do Brazil, de fazerem os moradores dele os seus transportes em machos, e em mullas, deixando por isso de comprar os Cavallos; de sorte que se vai extinguindo a creação deles; por não terem sahidas; em grava prejuízo do meu Real Serviço, e dos creadores, e bem comum dos Lavradores dos Sertões da Bahia, Pernambuco e Piauhy.

E atendendo ao que me foi por eles reprezentado: Sou Servido Ordenar, que em nenhuma Cidade, Villa, ou Lugar do Território dos vossos Governos se possa dar despacho por entrada, ou por sahida a machos, ou mullas. E que antes pelo contrário todos, e todas as que nele se introduzirem depois da publicação deste, sejam irreversivelmente perdidos, e mortos, pagando as pessoas em cujas mãos forem achados os sobreditos machos, ou mullas, a metade do seu vallor para os que os descobrirem. Nas mesmas penas incorrerão as pessoas, que dessas cavalgaduras se servirem, ou seja em transportes, ou em Cavallaria, ou em carruagens, depois de ser passado um anno, que lhes concedo para o consumo das que actualmente que tiverem já, sendo matriculadas para se conhecerem. E para obviar as fraudes, que se podem maquinar contra essa minha Real Determinação; Vos Ordendo que logo que receberes esta, e depois de a fazeres publicar por Editaes afixados nos lugares públicos desta capital, e das mais Povoações dessas Capitanias: Passeis as ordens necessárias, para que se faça um exacto inventário de todos os machos e mullas que se acham nos destrictos destes Governos com a declaração das suas idades, e sinaes, para por eles serem confrontados os que de novo apparecerem, e se proceder na execução desta Minha Real Determinação, contra os transgressores dela pela prova que resultar das ditas confrontações. O que tudo executareis, e fareis executar com a exactidão que devos confio. Escripta no Palacio de Nossa Senhora da Ajuda, a desanove de Junho de Mil, Setecentos, Sessenta, e hum.

Carta do Conde de Bobadelha onde se instaura pela primeira vez a proibição da criação de muares em território brasileiro. Fonte: Arquivo Histórico Nacional.

Em certa feita, recebi carta firmada pela real mão de sua Majestade com a data de 19 de Setembro de 1761, que com anymo e Fé de servi-los lealmente, que chegando a sua real notícia haver já introduzido no Continente do Estado do Brasil, por fazerem os moradores como seu transporte machos, e mullas, deixando por isso de criar os cavalos de sorte que se vão extinguindo as criações mais velhas, por não terem sahida em grave prejuízo ao real serviço, e dos creadores, e o bem comum dos lavradores nos sertões da Bahia, Pernambuco e Piauhy, atendendo sua Majestade aos desejos representados, há servido mandarme, que em nenhuma cidade, Villa ou lugar, dos governos de que me acho encarregado, se proíba o despacho, por entrada ou por sahida a muares ou mullas, antes pelo contrário, todos aqueles que nelles se introduzirem depois da publicação deste Real Ordem serão irremediavelmente perdidos e mortos, pagando as pessoas com quem foram achados sobreditos machos e mullas a metade do seu valor para os que os descobrirem, e que nas mesmas penas incorreram as pessoas que destas cavalgaduras se servirem, seja em transportes ou cavallarias, ou em transportes, depois de ser passado hum anno, que lhes concedo para o consumo das que atualmente viverem, já sendo matriculadas para se conhecerem. O mesmo será determinado que sendo publicadas as Reais Ordens nas povoações destas Capitanias passem as ordens às selareias para que seja feito um exato inventário de todos os machos, e mullas que se acham nos discrictos destes Governos, com declaração de lugar, idades, e sinaes, para por eles serem confrontados contados os que de novo aparecerem, e se proceda na correção desta Real Ordem contra os transgressores della pela prova confrontada destas transgressões.

Carta do Marques de Pombal, comentando e reforçando a proclamação Real de proibição da criação de muares de do uso de animais castrados no Brasil. Fonte: Arquivo Histórico Nacional.

Os Antigos Tropeiros

Quando os portugueses colonos do Brasil passaram a levar regularmente, a partir de 1732, tropas de animais dos longínquos campos do Sul até Sorocaba, em São Paulo, o nome “tropeiro”, tão usado nas vacarias do Uruguai, logo se firmou também para aqueles homens habilidosos em escolher homens e animais, negociar preços, compor um grupo capaz de lidar com boiadas, cavalhadas e muladas, e, além disso, enfrentar as difíceis, perigosas e demoradas marchas pelo Caminho do Sul, partindo dos Campos do Viamão em direção Norte. Num sentido amplo, os homens que estavam envolvidos na condução e no costeio de uma tropa poderiam ser designados por tropeiros. O grupo de homens que vaqueava (do castelhano “baquear”) ou recolhia o gado em tropas, isto é, para ser conduzido, também fazia parte delas.

Na tropa havia uma hierarquia que diferenciava social e economicamente os homens que a compunham. O tropeiro propriamente dito era o dono do negócio, dos animais que ele punha em marcha com seus camaradas. Podia não ser o único dono, mas tinha algum capital empregado nessa atividade, alguma participação, como, por exemplo, comandar a transação e a viagem. Por isso, chefiava, decidia. Além dele, participava a sua camaradagem – os camaradas da tropa: o capataz, quando havia, e os peões ou assalariados. Às vezes, na ausência dos empresários, um capataz contratado fazia o papel de chefe, de tropeiro. Tropear, conduzir gado solto, era um modo de vida, uma atividade econômica, antes de tudo. E um ganha-pão. Como atividade lucrativa, um grande negócio. Como ganha-pão, um magro resultado auferido pela camaradagem. Cada tropeada representava um grande esforço para todos os que estavam envolvidos nela, fosse de que maneira fosse. É claro que, na imensa distância que ligava as áreas de fornecimento do gado em pé às áreas de comercialização e uso dele, as tarefas mais duras e habilidosas recaíam sobre a peonada: tratando da conservação e da marcha das manadas de animais xucros ou brabos, dos arreios e da matalotagem do grupo. De resto, todos compartilhavam do prolongado isolamento, da rusticidade do pouso noturno, dos terrenos ou rios de travessia estafante ou arriscada, do possível ataque de feras ou guerreiros indígenas.

Fonte: TRINDADE, Jaelson Bitran. Tropeiros. São Paulo, Editoração Publicações e Comunicações Ltda, 1992. 160p. Ilus.

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Acima: Gravura ‘Condutor de Algodão Sertanejo’, da coleção Ferdinand Dias. Acervo do Museu Histórico Nacional. Abaixo: Freios e bridões utilizados no período colonial no Brasil. ilustrações do livro ‘Luz da Liberal, e Nobre Arte da Cavallaria’.

A seleção e melhoria de raças

A verdade é que a Coroa tinha diversas razões para incentivar o desenvolvimento da população de cavalos no Brasil Colônia. Uma delas, por exemplo, foi Angola, pois era preciso equipar os soldados lusitanos em campanha do outro lado do Atlântico. Durante o século XVII e parte do XVIII, nosso país foi o grande fornecedor de montaria para as campanhas portuguesas na África. A Carta Régia de 14 de dezembro de 1666, por exemplo, anunciava a vitória do governo de Angola e ordenava que se mandasse para lá o maior número possível de cavalos. Cartas régias e provisões durante todo o século XVIII repetiram a recomendação de que não partisse embarcação alguma para Angola sem conduzir cavalos.10

O “Estabelecimento de Manadas Reais”, documento criado em julho de 1819 por D. João VI, marca o anúncio da importação de cavalos de Portugal com o intuito de selecionar e melhorar raças na capitania de Minas Gerais, por meio da Coudelaria Real de Cachoeira do Campo, município próximo a Ouro Preto, a antiga Vila Rica. Era o início da criação cavalar seletiva no país. A carta da imperatriz D. Leopoldina, endereçada a seu pai três anos depois, reiterava a importância da medida dizendo que “no Brasil é indispensável a aquisição de bons cavalos8”.

A Coudelaria Real de Cachoeira do Campo passou a ser o maior centro criador de cavalos de raça da província na época, partindo dali a gênese de algumas das estirpes mais apreciadas no Brasil e no exterior. Muitas outras iniciativas seguiramse a essa, em outras capitanias, que não Minas, e com foco no aperfeiçoamento das raças cavalares nacionais, como um recurso capaz de suprir não só as demandas públicas e privadas da pecuária, mas também as sociais – no cavalo de luxo, como símbolo de status na Colônia – e as necessidades de paz e de guerra, em conflitos internos e externos. Somente em 1850 o governo brasileiro assinou o decreto que permitiu a compra de cavalos especificamente para fins militares, mas, muito antes disso, o cavalo protagonizou diversas batalhas que marcaram a nossa história e que serão tema do próximo capítulo.

Nesta página e página anterior: Detalhes da Obra ‘Luz da Liberal e Nobre Arte da Cavallaria’, editada originalmente em 1790. 48

lustração de Jean Baptiste Debret ‘Tribo Guaicuru em busca de novas pastagens’. Arquivo do Museu Histórico Nacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. GOULART, José Alípio. O Cavalo na Formação do Brasil. Editora Letras e Artes, 1964.

2. MARKUN, Paulo. Dom Álvar Núñez Cabeza de Vaca Pelas Américas e revelações Inéditas sobre seu Julgamento. Companhia das Letras, 2009.

3. CANABRAVA, Alice Piffer. O comércio português no Rio da Prata. Editado pela Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1984.

4. CORRÊA FILHO, Estevão. Contribuição ao Estudo do Cavalo de Mato Grosso. Revista Militar de Remonta e Veterinária, ano III, nº 25, Rio de Janeiro.

5. SPALDING, Walter. O Cavalo e o Boi na América, em especial no Brasil. Revista da História, v.51, n°101, 1975.

6 SILVER, Caroline. Tudo sobre Cavalos – um guia mundial de 200 raças. Editora Martins Fontes, 2000.

7. Site da Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Árabe. Disponível em: http://www.abcca.com.br/raca/ abcca_raca_psa.asp. Acesso em Acesso em 20 ago. 2019.

8. FILHO, João Dornas. O Ouro das Gerais e a Civilização da Capitania. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1957. Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/ bitstream/doc/65/1/293%20PDF%20-%20OCR%20-%20 RED.pdf. Acesso em 20 ago. 2019.

9. KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil (Rio de Janeiro e Província de São Paulo). Senado Federal, Brasília 2001. Disponível em :https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/1050/591395.pdf?sequence=4

10. BARCELOS, Fábio. A Coroa pelo bem da agricultura e do comércio. A importância institucional da Coroa portuguesa na formação da agricultura brasileira durante o período colonial. Cadernos Mapa n° 1. Memória da Administração Pública Brasileira. Arquivo Nacional. Disponível em: http://www. arquivonacional.gov.br/images/virtuemart/product/ ACoroa-pelo-bem-da-agricultura9.pdf

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O Cavalo de Guerra no Brasil

Parte 3

Cavalo: uma arma decisiva

Pernambuco é o palco da origem da cavalaria no Brasil quando, nos anos de 1600, durante o ciclo açucareiro e por causa dos conflitos entre portugueses e holandeses, surge pela primeira vez o Regimento dos Dragões Auxiliares, que caracterizou o grupo de soldados que se deslocava a cavalo nos campos de combate. A Batalha dos Guararapes, como foi batizada a guerra na região onde hoje está o Recife, marca a origem do Exército Brasileiro, pois foi a primeira vez que a Coroa Portuguesa lutou ao lado de índios e negros sob o mesmo espírito patriota e um objetivo comum: impedir o domínio holandês no território nordestino. Mas é mais tarde, à medida em que o ciclo do açúcar decai e Minas ganha projeção por conta das atividades de mineração, e, principalmente, quando os conflitos com os espanhóis nas fronteiras do Sul tornam-se cada vez mais frequentes e intensos, que vemos o cavalo como arma de guerra poderosa e essencial ao Brasil Colônia. No extremo Sul, um vilarejo fundado e fortificado em 1680 por D. Manoel Lobo, militar português, à época Governador do Rio de Janeiro, marcava o limite meridional dos domínios portugueses na América. Era a Colônia do Sacramento, hoje cidade uruguaia situada na margem norte do Rio da Prata. Tratava-se de um estratégico entreposto comercial português, com pouca gente, tropas regulares e alguma artilharia1, até que Espanha e Portugal tornam-se rivais na Europa. Fica fácil imaginar como a proximidade entre os dois povos transformou rapidamente Colônia do Sacramento em palco de desentendimentos constantes

que culminaram em uma longa disputa política e econômica pelos territórios sulinos. Havia vários interesses comerciais envolvidos, como a rota do Rio da Prata, e também a disputa sobre os meios produtivos, envolvendo gado, mulas e cavalos, abundantes na região e cada vez mais importantes para as descobertas em Minas Gerais. Apimentando ainda mais a disputa, a questão dos índios das Missões Jesuíticas era mais um ponto de discórdia entre Portugal e Espanha.

Já vimos que as planícies dos pampas, principalmente na Província Paraguaia e nas missões do Uruguai, abrigavam extensas manadas de cavalos selvagens, animais fundamentais ao escoamento da produção aurífera e ao suprimento, não só de Minas, mas também de regiões do Centro-Oeste e extremo Oeste brasileiro, como Goiás e Mato Grosso, e até do Nordeste e Norte do país. Daí o Rio Grande do Sul ter se tornado, no século XVIII, o grande fornecedor de cavalos para diversas capitanias brasileiras1, sobretudo a partir também da contribuição de importantes tropeiros, como Cristóvão Pereira, tido como o principal e mais valente da região. Em 1731, por exemplo, Pereira conseguiu arrebanhar 3 mil cavalgaduras do Rio Grande para São Paulo2. Os orçamentos de algumas províncias chegavam até a prever verbas destinadas exclusivamente à aquisição de cavalos para as fazendas de criação.

As gravuras destas páginas são reproduções de cenas da lida de campo no Rio Grande do Sul, durante o Século XVI. Acervo do Museu Julio de Castilhos de Porto Alegre, RS. Desde o Século XVII a criação de gado prosperou nos campos do Sul. A presença do cavalo se fez indispensável para a lida com os animais e o trabalho nas fazendas.
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As Missões Jesuíticas

As missões jesuíticas na América, também chamadas de reduções, foram, talvez, o mais singular exemplo do contato dos Europeus com os grupos indígenas no Novo Mundo. Os Padres Jesuítas criaram uma verdadeira comunidade à parte ao organizar e administrar grandes grupos indígenas, especialmente dos povos Guaranis. Levados por seu espírito de cunho civilizador e evangelizador, os jesuítas procuraram criar uma sociedade com os benefícios e qualidades da sociedade cristã europeia, mas isenta dos seus vícios e maldades. Uma verdadeira utopia. E que, por se tornar uma força econômica nas regiões onde atuava, e despertou inveja e a cobiça de muitos. Desde o começo da atuação dos jesuítas no novo mundo, esteve presente o desejo de aprender a cultura e língua dos índios, para poder ter maior acesso a eles, e assim ter êxito no seu projeto de catequese. Anchieta foi o responsável pela primeira gramática da língua Tupi, e é, até hoje, um dos principais responsáveis pelo que conhecemos desta linguagem, que antes dele era exclusivamente oral. Essa relação de respeito pelos índios fez com que as primeiras comunidades regidas sob a égide dos padres começassem a surgir.

Depois de um início assistemático marcado por tentativas frustradas, em meados do século XVII, o modelo missioneiro já estava bem consolidado e disseminado por quase toda a América. Mas teve de continuar enfrentando a oposição de setores da Igreja Católica que não concordavam com seus métodos; do restante da população colonizadora, para quem os índios não valiam a pena o esforço de cristianizá-los; e dos bandos de caçadores de escravos, que aprisionavam os índios para submetê-los ao trabalho forçado na economia colonial exploradora, destruindo diversos povoados e causando muitas mortes. Mesmo com vários problemas a vencer, as missões, como um todo, prosperaram a ponto de, em meados do século XVIII, os jesuítas se tornarem suspeitos de tentar criar um império independente, o que foi um dos argumentos usados na intensa campanha difamatória que sofreram na América e na Europa e que acabou por resultar na sua expulsão das colônias a partir de 1759 e na dissolução da sua Ordem em 1773.

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Esculturas recuperadas das reduções Jesuíticas. Acervo do Museu Julio de Castilhos, Porto Alegre, RS.

O Rio Grande do Sul era o maior fornecedor de tropa para o Brasil Colônia. Este destaque foi relevante, e especialmente potencializado, pois convinha que a maior região fornecedora de animais se encontrasse próxima das regiões de maior instabilidade da época. O cavalo como arma ganha importância crescente, ganhando forças no século XVIII, ao acompanhar os constantes conflitos territoriais entre espanhóis e luso-brasileiros pelo chamado continente do Rio Grande. Conflitos estes que também ressoaram na Guerra Cisplatina (1825 – 1828) e na Guerra do Paraguai (1864-1870). Para se ter uma ideia, somente no governo de Getúlio Vargas o Estado do Rio Grande do Sul, o mais meridional da Federação, foi completamente pacificado. Portanto, desde o século XVII, nos primórdios do processo de ocupação do Rio da Prata, a população do Sul mesclou o uso do cavalo como recurso socioeconômico, fundamental à lida com o gado bovino, e bélico3, talvez como nenhuma outra no Brasil.

Alguns estudiosos afirmam que essa combinação é justamente o que contribuiu para transformar os povos da região em exímios cavaleiros. Isso, somado à crescente diferenciação social entre os que andavam montados e os que tinham de caminhar, acabou levando a região a valorizar tanto o serviço militar na cavalaria a ponto de transformá-lo em um dos elementos mais importantes da identidade do Sul3. As distâncias, o clima mais favorável à montaria, (diferente do calor nordestino), a rapidez das movimentações permitida pelo uso dos cavalos e a familiaridade das gentes dos pampas com os equinos, são fatores que ajudam a explicar por que a cavalaria se tornou a principal arma dos exércitos no Sul, criando um tipo peculiar de guerra4. Era a “guerra à gaúcha”, um misto de guerra convencional e guerrilha, que consistia em tentar manter o inimigo em permanente e inquietante estado de alerta, o que se traduzia em profundo desgaste e, claro, exigia total controle do animal.5

A tabela abaixo faz uma relação interessante entre a origem provincial e a arma dos generais do Exército Imperial Brasileiro, entre 1822 e 1889. Claro que a trajetória dos generais não serve, sozinha, para avaliar aspectos gerais do Exército naquela época. Mas os números são curiosos ao mostrarem que a arma da Cavalaria era uma espécie de monopólio3 ou “característica nata” do povo rio-grandense, quando comparada à performance de outras províncias da Colônia.

ARMA ORIGEM Cavalaria Infantaria Artilharia Engenharia Totais

Portugal 4 7 5 3 19

Rio Grande do Sul 4 1 1 1 7

Rio de Janeiro 2 4 9 3 18

Alagoas, Bahia, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo 2 6 1 2 11

Totais 12 18 16 9 55

Relação entre a origem provincial e a arma dos generais do Exército Imperial Brasileiro (1822-1889)

Fonte: SILVA, Alfredo Pretextato Maciel da. Os generais do Exército brasileiro de 1822 a 1889.

2ª ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, 1940. II Volume.

A própria ocupação mais efetiva pelos portugueses da região Sul no Brasil, foi acelerada por conta dos conflitos latentes na Colônia do Sacramento. O povoado de Rio Grande foi posto avançado, centro da dominação lusa nas terras gaúchas, e serviu como fonte tanto de gente como de cavalos. De maneira quase que simultânea à ascensão da população, a comandância militar ergueu também no local o fortim de Jesus-Maria-José, que serviu de presídio e de sede para o Regimento de Dragões do Rio Grande, ou seja, tropas especiais que atuavam na cavalaria, e na infantaria, e que foram originalmente pensadas para servirem na Colônia do Sacramento. Nessa linha, os dragões constituíam inicialmente um corpo de cavalarianos que deveria possuir mobilidade tática e capacidade de improvisação, devendo ser capaz de lutar inclusive como um corpo de infantaria.3

Os litígios dos luso-brasileiros com os espanhóis também chegaram a mobilizar unidades militares de diferentes capitanias do Brasil Colônia para o Sul. No século XVIII o Vice-Rei de Portugal, o Marquês de Lavradio, preocupado com a delicada conjuntura da região Platina, que era ameaçada também por ataques indígenas que roubavam gado e cavalos, decidiu reorganizar tropas de diferentes regiões do Brasil e prepará-las para as campanhas bélicas no extremo Sul da Colônia. Para se ter uma ideia, em 1776 quase todas as unidades militares do Rio de Janeiro estavam concentradas nas fronteiras meridionais do Império6. É curioso observar como o aspecto demasiado militar do Rio Grande do Sul destoava do preparo e formação de outras capitanias. É o que nos sugere, por exemplo, o registro abaixo, do botânico viajante francês, Saint Hilaire, que percorreu nos séculos XVIII-XIX diferentes áreas do Brasil, dentre elas o Sul:

“Quando um dos estados europeus entra em guerra, todas as suas províncias fornecem soldados e, por conseguinte, se a nação se torna belicosa, o é em sua totalidade. No Brasil, tal não acontece. A fronteira meridional há muito tempo goza apenas de curtos intervalos de paz, mas, salvo algumas tropas vindas de São Paulo e Santa Catarina, todos os soldados que combateram a Espanha são naturais da própria capitania. Nenhum recrutamento foi feito nas províncias mediterrâneas setentrionais. Disso resulta que, enquanto os habitantes dessa capitania se tornam completamente militarizados – dotados de um sentimento nacional que só a guerra faz nascer -, os povos das outras capitanias caem pouco a pouco na inércia”7

Exatamente em razão de turbulências políticas territoriais é que, mais tarde, em 1807, o Príncipe Regente D. João autoriza a desvinculação dos governos militares de Santa Catarina e Rio Grande, que ascenderiam à posição de capitanias, e estabelece, também, oficialmente, a capitania geral de São Pedro do Rio Grande do Sul7 .

“Os habitantes daqui passam a vida, por assim dizer, a cavalo, e frequentemente locomovem-se a grandes distâncias com rapidez suposta além das possibilidades humanas. (...) Os daqui vivem continuamente a cavalo, fazendo exercícios e respirando o ar mais puro e sadio da terra.”

Trecho de “Viagem ao Rio Grande do Sul”, de Saint Hilaire, segundo tradução portuguesa de Leonam de Azeredo Penha7
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Gravuras ‘Viajantes da província de Rio Grande’ e ‘Habitantes de Minas’. Acervo do Museu Histórico Nacional, coleção Ferdinand Dias. Gravuras ‘Caravana de mercadores indo à Tijuca’ e ‘Grupo de tropeiros conduzindo diamantes’. Acervo do Museu Histórico Nacional, coleção Ferdinand Dias.

Uma capitania marcada pela guerra... a cavalo

São Pedro do Rio Grande do Sul nasceu, portanto, em guerra. Portugal necessitava de alguém que possuísse conhecimento da guerra e experiência administrativa, para assumir o cargo de primeiro capitão geral e lidar com sucesso com as tensões da região Platina. Coube a D. Diogo de Sousa, Conde do Rio Pardo, comandar o exército local, e depois, já como governador da capitania, alterar normas da organização militar justamente em função do cavalo1.

O governador tinha urgência em fortalecer a arma de artilharia para a defesa da capitania. Mas um entrave cultural o pegou de surpresa: a dificuldade em alistar soldados gaúchos para o serviço militar a pé. Ninguém ou pouca gente queria. A solução foi criar, segundo carta datada de 1810, um corpo de “artilharia montada”, como justifica abaixo o próprio D. Diogo.

“De toda a mesma tropa é indispensável afastar a ideia de serviço a pé porque os habitantes – acostumados desde criança a andarem a cavalo e não andarem nem pretos de recados desmontados – têm grande desprezo em serem alistados na infantaria e artilharia a pé, aliás se prestam voluntariamente para assentar praça nos corpos de cavalaria2”.

Nesse sentido, a partir das notícias cada vez mais preocupantes que vinham do Rio da Prata, D. Diogo exigiu a aquisição em maior quantidade de animais que servissem às tropas de cavalaria e estivessem prontos para um eventual combate nas fronteiras meridionais. Como presidente da Junta da Real Fazenda na Capitania do Rio Grande do Sul, ele estabeleceu que era preciso comprar mais cavalos capazes de servir às tropas, sob as condições da ordem emitida em 1810 a partir da qual no caso de os estancieiros não possuírem animais com as qualidades requeridas, ou seja, “Mulas [...] que pelas suas alturas, idades e vigor possam servir nos parques da artilharia, e também cavalos [...] mansos para entrar nos esquadrões”, os criadores deveriam pagar à Junta da Real Fazenda 3$200 réis por cada mula, ou 4$800 réis por cada cavalo. Naquele mesmo ano, o governador estipulou ainda, em ofício enviado aos comandantes dos distritos anexos a Porto Alegre, que os estancieiros que mantivessem cavalos de baixa qualidade e em más condições, após um mês da promulgação da ordem, deveriam ser multados em 10$000 réis, dos quais a metade seria enviada à Fazenda Real e a outra para quem entregasse tais cavalos ou denunciasse a infração8. Com essas medidas, tentava-se não apenas aumentar as receitas da capitania, que passava por uma situação delicada, mas também estabelecer um meio de forçar os estancieiros a manter o rebanho em estado bom o suficiente para um eventual recrutamento ao combate ou logística de transporte de guerra.8

Todos esses relatos asseguram uma conclusão: é inquestionável a importância do cavalo para as funções bélicas no Sul dos séculos XVII e XVIII, dentre as quais podemos destacar a revolução Farroupilha e a Guerra do Paraguai.

Farroupilha e Paraguai

A aversão dos gaúchos pela infantaria, na luta a pé, era tão grande que em 1835, ano da Revolução Farroupilha, o governo republicano e revolucionário da capitania, reconhecendo ser impossível formar uma numerosa infantaria com os voluntários que para ela se apresentassem, não encontrou alternativa a não ser compô-la em sua maioria com escravos. E o depoimento do famoso general Garibaldi, em suas Memórias, confirma isso quando diz: “O exército republicano forte de mil homens de infantaria e cinco mil de cavalaria...”1

Fotos de combatentes das Forças gaúchas na Revolução Farroupilha. Praticamente todos os soldados orgulhavam-se muito de seus cavalos, sendo motivo de grande humilhação para eles, combaterem na infantaria, a pé. A maioria dos soldados de infantaria era composta por negros. Acervo do Museu Julio de Castilhos, Porto Alegre, RS.

Garibaldi foi uma das principais lideranças dos revolucionários republicanos, que reivindicavam menos impostos sobre a província do Rio Grande do Sul e melhores condições para o exército local nos combates meridionais.

Segundo alguns historiadores, o deslocamento com cavalos foi uma das razões, senão a principal, da longevidade da revolução Farroupilha, que com uma década de duração (de 1835 a 1845), foi a mais longa do país. Na guerra Farroupilha o cavalo foi instrumento estratégico tanto para o Império quanto para os republicanos: ao Império estava imposto o difícil desafio de superar os revolucionários Farrapos na cavalhada, ou seja, na capacidade de manobrar e conduzir os animais no estilo “guerra à gaúcha”. Impedir que o opositor tivesse acesso a mais cavalos nas fronteiras do Uruguai e Argentina também foi uma tática adotada pelos dois lados. Para se ter uma ideia, considerando apenas a fase final do conflito em 1842, cerca de 7 mil cavalos foram transportados por terra até a região do Canal São Gonçalo pelo Marechal Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, nomeado Presidente e Comandante-em-chefe do Exército em operações no Rio Grande do Sul para o combate aos Farrapos. Durante esse movimento de tropa os revolucionários tentaram se apoderar dos animais, o que só reitera a figura do cavalo como arma de guerra fundamental para ambos os lados envolvidos no conflito1 .

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Proclamação de Guerra feita pelo Governador da Província do Rio Grande do Sul, Joze Gomes de Vasconcellos Jardim, e publicada na Gazeta Mercantil em 6 de Novembro de 1836. Fonte: Arquivo Histórico Nacional.

Mais tarde, Duque de Caxias seria também a principal liderança do Exército Imperial na Guerra do Paraguai (1864-1870) que, para alguns historiadores, foi a mais sangrenta da América Latina e a mais importante da história brasileira. As disputas comerciais e fronteiriças foram novamente a razão da batalha que, dessa vez, reuniu Brasil, Argentina e Uruguai como aliados contra um inimigo comum: o Paraguai. Novamente a província do Rio Grande do Sul contribuiu enviando homens que compuseram o corpo do exército nacional em diferentes frentes do conflito, como relata José Bernardino Bormann, autor do livro A História da Guerra do Paraguay (Impressora Paranaense – 1897), ele próprio militar integrante das tropas, ajudante de Caxias e posteriormente nomeado Marechal do Exército Brasileiro e Ministro da Guerra:

“O Rio Grande do Sul, apesar de já ter concorrido com grandes contingentes para a luta, sempre o primeiro a empunhar as armas quando periga a honra da pátria; sempre pronto a desafrontá-la; ainda deu alguns milhares de seus filhos para compor mais essa força que recebeu a denominação de 3º corpo do exército”11.

Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias foi o grande General Brasileiro na Guerra do Paraguai, sendo que a sua designação como Comandante

Chefe das Forças Brasileiras é tida como o momento da virada e começo da campanha vitoriosa do Brasil. Patrono do Exército Brasileiro, é homenageado no vitral que decora o Hall do Palácio Duque de Caxias, antiga sede do Ministério da Guerra (1815–1967), atual

do Leste (CML).

Neste trecho específico, Bormann se refere à segunda fase da campanha, no acampamento de Tuiuti, na embocadura do Rio Paraguai, justamente quando uma mudança importante na gestão e cuidado dos cavalos mudou o cenário da batalha. Segundo registros, na ocasião a cavalaria brasileira era numericamente menor que a paraguaia, mas uma decisão importante permitiu que mesmo assim ela prevalecesse sobre o inimigo: a alimentação dos animais foi modificada, em uma medida estratégica que só faz endossar a relevância da força cavalar como recurso de guerra também neste episódio. De pasto, passou a ser milho e alfafa em grandes quantidades, como nos conta o próprio Bormann:

“(...)Compraram-se cavalos e mulas e a forragem que até então cifrava-se quase nos maus pastos que existiam nas léguas que havíamos conquistado à custa de um mar de sangue de milhares de vítimas, foi substituída por milho e alfafa em abundância, de modo que imediatamente cessou a espantosa mortandade dos animais e, assim, o marechal ia preparando a nossa cavalaria para os brilhantes combates (...)11”

Ordem do dia n°489 de 20 de Dezembro de 1866.

INSTRUCÇÕES

1° Organizar-se-hão cinco corpos de caçadores a cavallo, segundo o plano annexo ao decreto n° 3555 de 9 de Dezembro de 1865, sob a numeração de 1 a 5.

2° O corpo de caçadores a cavallo n° 1 terá oito companhias, e será organizado na província do Mato Grosso, com officiaes e praças do corpo de cavallaria da mesma província, e das companhias também de cavallaria das províncias de S. Paulo, Minas Geraes e Goyaz.

Os corpos de caçadores a cavallo de ns. 4 e 5 terão seis companhias, e serão organizados na província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, com o pessoal dos actuaes 4° e 5° regimentos de cavallaria que lhes servirá de casco.

3° Os demais corpos terão apenas quatro companhias, sendo um com o n° 2, organizado na província de Goyaz, e o outro com o n° 3 na província do Paraná, com o pessoal da companhia de cavallaria da mesma província.

O Brigadeiro Polydoro da Fonseca Quintanilha Jordão, ajudante general interino. Reprodução de Ordens do Dia, coletadas durante a Guerra do Paraguai. Arquivo Histórico do Exército.

Quartel General do Comando Militar
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Na Guerra do Paraguai, o Exército também inseriu no plano de combate “Corpos de caçadores a Cavalo”, conforme decreto 3555 expedido em 9 de dezembro de 1865, que trazia, entre seus componentes, veterinários e seleiros. Ao final da Guerra, em 1870, um contingente de mais de 30 mil cavalos do Exército, remanescentes do conflito, foi transportado ao Rio Grande do Sul, para a mesma região onde, meio século adiante, o Brasil abrigaria o primeiro núcleo oficial destinado à criação de cavalos de guerra, para as forças armadas.5

Dia 9.

Novas diligencias para encontrar gado tem sido baldadas. Resolvemos que ficassem aqui as praças, emquanto iriamos até Rio Negro, explorar o caminho e mesmo encontrarmos com nossos collegas que para alli se devem dirigir. Com effeito, hoje às 8 horas, seguimos com o nosso guia, mas depois de andarmos perdidos muito tempo pelos taquaraes tivemos de voltar e o guia de confessar que não conhecia o caminho e nunca havia passado por ali: á vista do que conservamo-nos aqui (no Potreiro), mas impossibilitados de seguir o Rio Negro por falta de pratico e as praças porque não é possível mais exigir-se trabalhos dellas.

Dias 10, 11 e 12.

Ainda novas dilligencias e nada se tem conseguido, por falta de animaes para o capeio do gado. Algumas praças achão-se doentes. Continuamos a passar a palmito e a côco cozido.

Dias 13 e 14.

Depois de grandes esforços conseguio-se carnear duas rezes, que forão distribuídas às praças, á vista do que continuaremos nossos trabalhos amanhã.

Dia 15.

Seguimos com as praças para continuar nossos trabalhos na direcção que ia ter ao caminho aberto pelos fugitivos de Miranda, mas retrocedemos por ter chegado aviso de seguirmos pelo caminho dos pantanaes.

Aqui chegárão nosso chefe e mais 3 collegas.

Rio Negro, 18 de Abril de 1866.

(Assignados). – Capitão bacharel João Thomaz de Cantuaria. –Tenente bacharel Catão Augusto dos Santos Rôxo.

A criação do cavalo militar

Em 1922, já na República, o Estado do Rio Grande do Sul abrigou o primeiro núcleo oficial no Brasil destinado exclusivamente à criação de cavalos de guerra para as Forças Armadas: a Coudelaria Nacional de Saycan1

Antes da regulamentação do Decreto Nº 15.796, de 10/11/1922, que subordinou a Fazenda e Coudelaria Nacional de Saycan ao Ministério da Guerra, o local criava cavalos para a remonta, além de exercer atividade agrícola destinada ao forrageamento de animais reprodutores. Segundo Relatório do Ministério da Guerra, de maio de 1910, naquele ano a fazenda Saycan reunia 498 cavalos e 8 muares, além de outros 8540 animais catalogados na zona zootécnica9. Este mesmo relatório já revela a urgência do Ministério da Guerra em adquirir bons cavalos na época. E sugere também certa dificuldade para isso:

“(...) Resolvida a aquisição de cavalos, nomeou-se para esse fim uma comissão de oficiais que percorreu os Estados do Rio de Janeiro, Minas e São Paulo, entendendose diretamente com os criadores, entre os quais fizeram a propaganda da criação de cavalos para o Exército com altura mínima de 1m e 46cm. Não se podendo obter desde logo cavalos perfeitos, porque entre nós esses animais têm degenerado sensivelmente, foi preciso nos contentarmos com o que de melhor se pôde obter. A comissão recebeu cavalos do Rio Grande do Sul que foram entregues aos veterinários e só incluídos nos corpos depois de julgados sãos. A comissão de compras recebeu até 29 de novembro 396 cavalos e 50 muares, que foram distribuídos ao 1° regimento de cavalaria, 1º de artilharia, 20° grupo de montanha, I° pelotão de estafetas, esquadrão de trem e Iº regimento de infantaria9”.

Trechos do Relatório do Ministro da Guerra, João Lustoza da Cunha Paranaguá, apresentado junto à Assembleia Nacional em 1868, reproduzindo Ordens do Dia e Diários de Campanha feitos por oficiais durante a Guerra do Paraguai. Arquivo Histórico do Exército.
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Embarque de tropas para o front da Guerra do Paraguai. Aquarela de 1851, pertencente ao acervo do Museu Julio de Castilhos, Porto Alegre, RS.

EVOLUÇÃO DOS UNIFORMES EQUESTRES NO EXÉRCITO BRASILEIRO

Soldado de cavalaria nº 1 montando. Oficial da Cavalaria de Olinda. Soldado da Cavalaria Ligeira do Rio Grande. Soldado da Cavalaria de Olinda. Animal pertencente ao 4º Reg. de Cavallaria. Cavalaria Auxiliar do Rio Grande. Oficial do Esquadrão que faz a Guarda aos Senhores Vice-Reis. Cavalaria de Olinda, Guarda do General. Oficial do 4º Reg. de Cavallaria. Oficial da Cavalaria Ligeira do Rio Grande. Soldado de cavalaria nº 1 montando. Imagens pertencentes ao Acervo do Museus Histórico Nacional.

EVOLUÇÃO DOS UNIFORMES EQUESTRES NO EXÉRCITO BRASILEIRO

Esquadrão da Guarda dos Vice-Reis. Uniformes dos Caçadores a Cavallo. Uniformes da Imperial Guarda de Honra, Official e Guarda. Soldado de Cavalaria em Uniforme de Campanha. Uniformes do 4º Reg. de Cavallaria. Soldados do 43º Batalhão de Caçadores de São Paulo. Imagens pertencentes ao Acervo do Museus Histórico Nacional.

Talvez a formalização da Coudelaria como órgão criatório de animais exclusivos para o Exército tenha sido resposta ao entrave da pouca qualidade dos animais disponíveis nos criatórios. O próprio texto do decreto fala em “reerguimento da produção equina”. Segundo o documento, a Coudelaria de Saycan e suas dependências passaram a ser, em 1922, subordinadas ao Ministério da Guerra, sob a direção superior do Serviço de Remonta, para “desenvolver e auxiliar o reerguimento da produção equina para obtenção do cavalo para o Exército, e cuidar da cultura de forragens com esmero”. O decreto também é bem específico em mencionar que os reprodutores cavalares na coudelaria deveriam ser mantidos em número indicado pelas necessidades e em raças na seguinte ordem de preferência para os cavalos: Árabe, Anglo-Árabe, Corredor Inglês, Morgan, Bretão, Bolonheza. Para os muares os preferidos eram o Poitou e o Andaluz10

Com foco na qualidade dos animais, o regulamento estabeleceu seis depósitos de remonta, todos vinculados ao Ministério da Guerra, localizados no Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Mato Grosso. Os locais deveriam receber os animais comprados, já manuseados, em bom estado e, preferencialmente, entre 3 e 4 anos de idade, com altura mínima de 1,45m. Ali permaneceriam o tempo necessário para a aclimação e para se habituarem ao regime da alimentação à base de milho (ou aveia) e alfafa – a mesma dieta que anos antes, que recuperara os animais do exército de Caxias. Também receberiam o preparo contínuo e progressivo de adestramento para sela, tiro ou carga e seriam marcados a fogo, com a letra S (sela), T (tração) e com o número da série. Os melhores animais, tidos como “excepcionais”, seriam ainda marcados com a letra E.

Porém, com o passar dos anos diversos especialistas convergiram na opinião de que o melhor cavalo de guerra é aquele, puro ou mestiço, que melhor se adapta ao país ou à região que lhe serve de habitat12. Portanto, para o nosso país, os melhores são os aqui nascidos, selecionados e criados1.

Atualmente, o Brasil possui apenas três regimentos de cavalaria – em Brasília (Dragões da Independência), em Porto Alegre e no Rio de Janeiro -, mas foi somente em 1960, com o Acordo Militar Brasil – Estados Unidos, que os regimentos adotaram o transporte mecanizado e blindado. A chegada da cavalaria mecanizada sepultou uma fase romântica, onde o cavalo militar teve seus muitos momentos de glória. Esses animais foram verdadeiros heróis, fundamentais às forças militares nacionais, pois atuaram como a força motora e motriz de tropas e suprimentos. Carregaram toda a intendência, e moveram os avanços da cavalaria. Venceram distâncias, abateram inimigos, deslocaram tropas e conquistaram territórios, assegurando a soberania nacional1.

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Na página ao lado: Aquarela mostrando o deslocamento de tropas brasileiras na Guerra do Paraguai. Acervo do Museu Julio de Castilhos, Porto Alegre, RS.

‘Proclamação da República’, 1893, óleo sobre tela de Benedito Calixto (1853-1927). Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. GOULART, José Alípio. O Cavalo na Formação do Brasil. Editora Letras e Artes, 1964.

2. OLIVEIRA, Viana. Populações Meridionais do Brasil. Edições do Senado Federal, 2005. Disponível em: https:// www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1108

3. POSSAMAI, Paulo César (organizador). Gente de Guerra e Fronteira: estudos de história militar do Rio Grande do sul. Pelotas, Editora da UFPel, 2010. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/nphr/files/2017/08/ GENTE-DE-GUERRA-E-FRONTEIRA.pdf

4. GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. O horizonte da província: a República Riograndense e os caudilhos do rio da Prata (1835-1845). Tese (Doutorado em História). Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

5. MARIANTE, Hélio Moro. Farrapos: guerra à gaúcha. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985, p. 60-66.

6. PAULA, Eurípedes. As origens do exército brasileiro. Revista de História, 24 (49): 57, 1962.

7. LESSA, Barbosa. Rio Grande do Sul, Prazer em Conhecê-lo. Editora Globo, 2002.

8. COSTA, Alex Jacques. Seguindo ordens, cruzando campos: o governador e capitão general Dom Diogo de Souza e a política do Império Português para o Rio da Prata (1808-1811). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, 2010. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

9. Relatório do Ministério da Guerra – 1910. Ministro do Estado da Guerra - José Bernardino Bormann, - Maio de 1910. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/720950/ per720950_1910_00001.pdf

10. Ministério da Guerra - Regulamentos do Serviço de Remonta e das Coudelarias Nacionais (Saycan e Rincão de São Gabriel). Disponível em: https://www. diariodasleis.com.br/legislacao/federal/164168-approvao-regulamento-das-coudelariasnacionaes.

11. BORMANN, José Bernardino. A História da Guerra do Paraguay – Volume II. Curityba. Impressora Paranaense. Editores – Jesuíno Lopes & Cia. 1897

12. HERMSDORFF, Guilherme Edelberto - Zootecnia especial – volume 1 - Edicão publicada sob os auspícios da Universidade Rural e do Escritório Técnico de Agricultura-- Brasil-Estados Unidos, 1956.

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As Raças que o Brasil Criou

Parte 4

Dentre os primeiros exemplos descritos da ação do ambiente sobre a evolução das espécies estão as anotações de Charles Darwin durante sua viagem no HMS Beagle. Um caso interessante é a sua descrição das espécies similares, mas não idênticas, de tentilhões, que habitavam as ilhas Galápagos. Ele percebeu que cada espécie estava bem adaptada para seu ambiente e sua função: espécies que comiam sementes grandes tendiam a ter bico largo e duro, enquanto aquelas que comiam insetos tinham bico fino e afiado. E isso variava de ilha para ilha, conforme a disponibilidade de alimento de cada uma. Ou seja, conforme o ambiente.

Com os cavalos que colonizaram o território brasileiro ocorreu processo similar. Ao serem expostos à uma enorme diversidade de ambientes, diferentes populações de cavalos evoluíram de forma distinta, constituindo uma série de raças autóctones onde o grande ‘selecionador’ não foi o homem, mas sim as condições severas a que estes animais eram expostos.

Nesta parte do livro você irá conhecer as raças que foram moldadas pelos biomas brasileiros. A história delas é similar: seja por introdução voluntária dos europeus, seja por fugas, os animais evoluíram e se adaptaram, cada grupo segundo as pressões do ambiente onde vivia. Assim, várias raças genuinamente brasileiras foram formadas.

Na Ilha de Marajó, as regiões alagadas, com clima tropical quente e muito úmido, forjaram uma raça de animais rústicos, extremamente resistente, e que de tão adaptada à região chegou a ser um problema de superpopulação em determinados momentos históricos. Processo semelhante ocorreu no Pantanal. A maior planície alagável do planeta também atuou sobre o desenvolvimento dos equinos que por ali se refugiaram após a sua fuga dos rebanhos espanhóis e portugueses. Estes animais se tornaram selvagens, mas foram amansados pelos índios e, a partir daí, incorporados de forma perfeita ao bioma. Podendo passar até 6 meses do ano com as patas dentro da água, o cavalo Pantaneiro apresenta adaptações que o fizeram ferramenta indispensável para a pecuária na região até hoje.

O cavalo Nordestino é talvez o descendente ‘mais direto’ dos animais ibéricos introduzidos por aqui no início da colonização. Submetido às condições inóspitas do semiárido, o cavalo Nordestino rapidamente se diferenciou de seus ancestrais, tornando-se um dos mais importantes instrumentos da interiorização da pecuária, que levou a reboque a presença europeia para áreas cada vez mais distantes do litoral. E, finalmente, o cavalo Campeiro, também conhecido como o ‘Marchador das Araucárias’, tem sua origem no século XVI, em Santa Catarina, a partir de animais que escaparam da expedição do espanhol Álvar Nuñes, conhecido como Cabeza de Vaca. O animal também se tornou um importante aliado dos fazendeiros e colonizadores da região.

Todas essas histórias possuem o mesmo pano de fundo: um ambiente muito diverso das planícies europeias e asiáticas, moldando novas raças adaptadas com força e rusticidade aos trópicos e às novas condições de vida. São testemunhas únicas da nossa história, que criadores e pesquisadores apaixonados por todo o Brasil lutam para valorizar e preservar.

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O Cavalo Marajoara

História

A história do cavalo Marajoara pode ser contada ao longo de mais de três séculos. Segundo algumas referências, a raça descende de exemplares da península ibérica, dos cavalos Árabe ou Berbere que, por sua vez, originaram o Andaluz, introduzidos pelos portugueses na região de Belém, capital do Pará.

A base de tal processo estaria nos primeiros cavalos trazidos em 1535, de Cabo Verde até Pernambuco, por Duarte Coelho, para ajudar nas moendas de canade-açúcar. Há ainda a vertente que atribui a origem do cavalo da ilha de Marajó a Tomé de Souza, primeiro governador geral do Brasil que, em 1549, também conseguiu trasladar para a Bahia alguns animais (ver mais no capítulo 2). E existe ainda a hipótese de que alguns cavalos oriundos do Centro-Oeste do Brasil (como o cavalo Ibérico que deu origem ao cavalo Pantaneiro) tenham migrado para o extremo Oeste, originando os cavalos selvagens de Rondônia, Roraima, Acre e Amapá1.

O fato é que, ao chegarem na região de Belém, cavalo e gado proliferaram tão bem a ponto de devastar roças e plantações que à época existiam na capital paraense. A solução, então, foi transferir o primeiro criatório de Belém para a Ilha Grande Joanes, atual Ilha de Marajó 1,2. A partir daí, então, começa a caracterização do Marajoara.

Segundo especialistas e historiadores, a farta variedade de pastagens nativas da ilha compensou as adversidades do ecossistema local e o cavalo Marajoara se desenvolveu e multiplicou rapidamente, assumindo ali aspectos particulares e bem definidos: rusticidade, força, uma enorme resistência às inundações amazônicas, velocidade nos galopes curtos, grande capacidade de adaptar-se ao trabalho no campo e ao clima quente e extremamente úmido o ano todo2.

Para se ter uma ideia dessa surpreendente capacidade de aclimatação, ao final do século XIX, o plantel da raça na ilha foi estimado em mais de 1 milhão de cabeças. Uma população volumosa que, embora muito importante para a vocação pastoril de grande parte da ilha, e para o desenvolvimento da pecuária da região, devorou pastagens em um ritmo ameaçador, colocando em risco a nutrição do gado e levando o governo local à decisão de estimular o abate de éguas – das quais se aproveitavam pele e crinas - como uma forma de equilibrar a situação e contornar prejuízos às outras atividades agropecuárias do arquipélago 1,2,3

Assim, segundo pesquisadores, somando o sacrifício dos abates deliberados à devastação causada por doenças, a população equídea do Marajó sofreu uma redução considerável. Na década de 2000, o plantel girava em torno de 150 mil exemplares2,3.

83 Agência Pará

A preservação da raça

Dada a importância da raça Marajoara para as atividades de tração e transporte, para os trabalhos rotineiros das fazendas de gado bovino e bubalino da região, para o lazer e programação turística da ilha, em 1979 a Associação Brasileira de Cavalos da Raça Marajoara foi fundada, com sede em Belém, com o objetivo de preservar, padronizar e divulgar a raça1,2,3.

No ano seguinte, o exército precisou de cavalos de sela para a região, o que impulsionou o desenvolvimento de um Núcleo de Reprodução Marajoara em Soure e outro em Cachoeira de Arari, ambos municípios do arquipélago, introduzindo uma estação de monta e utilizando o cavalo Árabe e o Anglo-árabe para cruzamentos com os cavalos locais1.

Desta forma, atualmente, pode-se dizer que o cavalo Marajoara resulta sobretudo da mistura entre essas duas estirpes. No entanto, especialistas chamam a atenção para cruzamentos indiscriminados com outras raças, como o Mangalarga e o Quarto de Milha que, ao buscarem o ganho de altura e melhora da aparência do animal, colocam em risco as características originais do Marajoara. Daí as iniciativas em prol da conservação do germoplasma nativo da ilha, como a da Embrapa Amazônia Oriental. Em 1998, o órgão implementou o BAGAM (Banco de Germoplasma Animal da Amazônia Oriental), em parceria com a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) / Rede de Recursos Genéticos Animais da Amazônia (GENAMAZ), para efetuar a conservação não só do Marajoara mas também do mini-cavalo Puruca, outra raça importante para

a região, resultado de cruzamentos entre o Marajoara e pôneis da raça Shetland, de origem inglesa1.

No BAGAM, sediado na Ilha de Marajó, à margem direita do rio Paracauari, a Embrapa abriga coleções biológicas do cavalo Marajoara e do mini-cavalo Puruca. No caso do primeiro, a coleção reúne 43 animais oriundos de criadores das áreas do Retiro Grande, Cachoeira do Arari, Soure, Salvaterra e Chaves, que conservam a raça no arquipélago1

As principais ações desenvolvidas e previstas para o BAGAM para a conservação do Marajoara são:

• Conscientização sobre o manejo adequado (cuidados básicos com os cascos e dentes, identificação, marcação, castração, lida, doma, etc);

• Alimentação|nutrição e pastejo com suplementação mineral;

• Manejo reprodutivo, observando-se o garanhão, as éguas em produção e os recém-nascidos;

• Manejo sanitário, que observa afecções como: garrotilho, anemia infecciosa equina (AIE), encefalomielite equina a vírus (mal-da-roda), brucelose (malda-nuca), tétano, tripanossomose (mal-das-cadeiras), laminite, cólica, dentre outras.

Atualmente, o cavalo Marajoara predomina na Amazônia, mais especificamente na Ilha de Marajó, com um plantel de cerca de 100 mil cabeças1.

Agência Pará

Características do Cavalo

Marajoara

Pelagens

Qualquer pelagem, exceto pampa e albina.

Andamento

Trote em todas as modalidades, andamento com apoio, bipedal diagonalizado.

Peso

Média de 350kg.

Altura

Machos: mínima de 1,35m e máxima de 1,56m.

Fêmeas: mínima de 1,30m e máxima de 1,50m.

O cavalo Marajoara apresenta temperamento enérgico, vivo, ativo e dócil, com o andamento na forma de trote. É um animal extremamente versátil, resistente, inteligente e de grande rusticidade, fruto da adaptação bem-sucedida ao meio onde vive. Na época chuvosa da região amazônica, o Marajoara atravessa impunemente pântanos e rios caudalosos; na seca, onde a poeira fina e as “terroadas” desafiam qualquer ser vivo com temperaturas perto dos 40 graus, ele também resiste na lida diária do campo.

O Marajoara é fundamental ao manejo extensivo de criações típicas da ilha, como a bubalinocultura e a bovinocultura, e também é utilizado como cavalo de tração e esporte, em festas tradicionais do arquipélago, e como montaria para o turismo1,2,3.

Enduro do Cavalo Marajoara

O Festival do Cavalo Marajoara é o principal evento relacionado à raça promovido no arquipélago para fortalecer a cultura marajoara. O festival conta com a tradicional prova equestre do Pará, conhecida popularmente como Enduro do Cavalo Marajoara, onde cavalo e cavaleiro, juntos, devem superar os difíceis desafios de uma jornada de cerca de 160 km.

Na programação costuma haver também competições de resistência, prova de argola e provas de velocidade3.

87 Agência Pará Flávio de Polli

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. MARQUES, José Ribamar Felipe, et. al. Equinos em Conservação na Ilha de Marajó, Amazônia, Brasil. Sociedade Brasileira de Recursos Genéticos. Revista RG News, volume 2, nº 2, 2016.

2. COSTA, Maria Rosa Travassos da R. A História dos Eqüinos na Amazônia: Ênfase ao cavalo marajoara. Pesquisadora Embrapa Amazônia Oriental. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/ item/60443/1/s01.pdf. Acesso em 15 set. 2019.

3. CINTRA, A. G. de C. O Cavalo: Características, Manejo e Alimentação. Editora Roca. 2014.

89 Agência Pará

O Cavalo

Pantaneiro

História

O cavalo Pantaneiro descende de exemplares que escaparam, após as batalhas de índios Guaicurus contra espanhóis colonizadores na parte central da América do Sul. Estes animais se desgarraram e viveram por centenas de anos soltos e selvagens nas planícies da região. Assim, o cavalo Pantaneiro tem alma ibérica, de origem Andaluz e Céltica Luzitana1.

Os primeiros que chegaram à região do Pantanal Mato-Grossense ali se aclimataram e se multiplicaram, cunhando um tipo de raça rústica e resistente, lapidada por condições bioclimáticas muito hostis. A raça é, portanto, fruto de uma seleção natural longínqua, de mais de dois séculos, com pouca ou nenhuma intervenção humana.

O Pantanal é a maior planície alagável do mundo. Um lugar de paisagem mutante, desenhado e redesenhado por períodos de inundação e seca; e um clima quente e úmido. É um ecossistema complexo, com uma enorme variabilidade temporal e espacial, que forja habilidades singulares dos animais que ali vivem: ter força e arranque para sair de atoleiros; atravessar superfícies alagadas; ser ágil na água; nutrir-se do alimento submerso; estar atento à ameaça de predadores; percorrer longas jornadas nas extensas distâncias que emolduram a região, sem esmorecer. O Pantanal escolhe os fortes.

Com o cavalo Pantaneiro as exigências não são e não foram mais brandas. Ou seja, a planície pantaneira orquestrou a seleção da única raça de equinos brasileira que pode ser considerada ‘meio anfíbia’. Este animal consegue permanecer seis meses com as patas dentro da água sem amolecer ou prejudicar a saúde do casco diminuto e fechado. Este mesmo casco deverá estar sólido e saudável o bastante no período seco para resistir ao calor e às oscilações do terreno. É a única raça capaz de se alimentar do pasto alagado e submerso, revelando uma grande capacidade respiratória; e uma das que mais se destacam na força do arranque, para livrarse de atoleiros e brejos, e pela visão periférica avantajada, importante à defesa contra predadores locais como a onça.

Assim, a rusticidade e a resistência são duas das mais importantes características da raça. São também fatores que, com o desenvolvimento da pecuária extensiva na região – base da economia pantaneira - fizeram do cavalo Pantaneiro um ativo de enorme importância econômica e social. O cavalo no Pantanal é um ativo funcional no trabalho com o gado e essencial à integração, transporte e fixação da população à terra, graças à sua capacidade de suportar marchas por períodos prolongados em áreas alagadas2.

Portanto, o cavalo Pantaneiro configura-se como um animal de sela indicado para o serviço e trabalho contínuos com o gado. A raça também se destaca em atividades esportivas e de lazer, como o ecoturismo que cresce cada vez mais no

91 Adobe Stock: Cesar Machado

Pantanal, em função da sua rusticidade e do comportamento dócil. Pesquisadores apontam os seguintes municípios do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul como locais de formação da raça: Santo Antônio do Leverger, Barão de Melgaço, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Cáceres, Corumbá e Aquidauana2.

A Evolução da Raça

Pesquisadores afirmam que, ao final do século XIX, o cavalo Pantaneiro viveu uma forte crise. Foi por volta do ano de 1900 que a influência de outras raças, tais como o Arábe e o Puro Sangue-Inglês, aconteceu por meio de cruzamentos desordenados, sem critérios e orientações técnicas, com o intuito de melhorar a conformação e elevar o porte do animal. Além dessa ameaça à preservação da estirpe, o cavalo Pantaneiro também foi acometido nessa época por sérias patologias, como a Anemia Infecciosa Equina e a Peste das Cadeiras1,2.

A Associação Brasileira dos Criadores de Cavalo Pantaneiro (ABCCP), com sede em Poconé, foi uma das respostas a esses entraves. Criada em 1972, a associação nasceu para congregar os criadores, organizar e manter o registro genealógico da raça, fomentar a criação e estudar todos os assuntos referentes ao cavalo Pantaneiro. Para a formação da raça, técnicos qualificados selecionaram 92 fêmeas e 8 reprodutores que foram distribuídos em plantéis na região de Poconé1.

Nos anos de 1980, dando continuidade aos esforços da ABCCP, órgãos governamentais como a Secretaria da Agricultura de Mato Grosso do Sul (SECAP-MS), a Universidade de Mato Grosso (UFMT), a Universidade de Mato Grosso do Sul (UFMS) e o Centro de Pesquisa Agropecuária do Pantanal (CPAPEMBRAPA) também iniciaram trabalhos de conservação e melhoramento do cavalo Pantaneiro, de forma sistematizada, oferecendo também informações aos criadores sobre o manejo, reprodução e a prevenção de doenças.

O CPAP mantém um núcleo de criação de Cavalos Pantaneiros na fazenda Nhumirim, na sub-região da Nhecolândia, que, além de conservar a raça, permite o desenvolvimento de pesquisas em reprodução, nutrição, genética, seleção e melhoramento, parasitologia, virologia, dentre outros temas. Este órgão, em conjunto com a ABCCP, realiza também o levantamento dos núcleos de criação do Cavalo Pantaneiro nas diversas sub-regiões do Pantanal, caracterizando genética e fenotipicamente as populações existentes e identificando os sistemas de criação adotados em cada localidade. Além disto, o CPAP se preocupa em esclarecer a origem secular do Cavalo Pantaneiro2.

A tecnologia do aprimoramento genético também melhora continuamente a raça, respeitando sua herança ancestral, ou seja, conservando a mesma resistência, agilidade, vivacidade e docilidade dos primeiros exemplares. Recentemente o conselho técnico da ABCCP desenvolveu critérios seletivos para qualificar o animal como doador de material genético.

Todas estas ações conjuntas blindaram o cavalo Pantaneiro da extinção que chegou a rondá-lo no início do século passado. Hoje a raça possui cerca de 10 mil animais com registro definitivo e cerca de 16 mil com o provisório, o que totaliza perto de 27 mil animais em criatórios ativos. Para a ABCCP esse número cresce

93 Freepik: Renan Rosa

a cada ano, muito por conta da resistência, versatilidade e funcionalidade da raça. Segundo a associação, uma estirpe que enfrentou durante centenas de anos as adversidades do bioma Pantanal, sob a pressão de uma seleção natural impiedosa, e que vem absorvendo melhorias seletivas há mais de 30 anos, está preparada para habitar qualquer ambiente.

Por isso, os animais foram se espalhando e, atualmente, há criatórios em regiões diversas do Pantanal como Tocantins, Paraná, Pará, Rondônia, São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Acre, e em países como Bolívia e Paraguai.

Características do Cavalo

Pantaneiro

Pelagem

Qualquer uma, exceto a albina.

Andamento

Trote em todas as suas modalidades, sem movimentos parasitas.

Temperamento

Vivo, altivo e dócil.

Altura

As raças dentro da raça

O primeiro estudo realizado sobre o cavalo Pantaneiro avaliou a população equina dos pantanais do Norte (Poconé, Cáceres, Santo Antônio do Leverger e Barão de Melgaço) e estabeleceu, juntamente com os criadores de Poconé, um padrão provisório do Cavalo Pantaneiro.

Dois fenótipos principais dentro da raça foram identificados: o cavalo da bala e o cavalo mimoseano. O primeiro recebeu esse nome por ter sido criado nos campos circunvizinhos às baias e corixos da região, situados no município de Cáceres. É descrito como animal de altura média, cabeça levemente acarneirada e pesada, pescoço grosso, com 60% de pelagem tordilha. O segundo foi assim denominado devido aos campos de mimoso situados no município de Santo Antônio do Leverger e Barão de Melgaço, sendo caracterizado como de porte baixo, cabeça pequena, perfil retilíneo, pescoço convexo no bordo superior (pescoço de cisne); e 80% dos animais apresentavam pelagem tordilha. A junção destes dois fenótipos compõe a Raça Pantaneira atual2.

Mínima de 1,40m e máxima 1,50m (ideal de 1,45m) para machos e mínima de 1,35m e máxima 1,50m (ideal de 1,40m) para fêmeas.

O Cavalo Pantaneiro é um animal de porte médio, com linhas harmoniosas, leves em sua aparência geral e com musculatura bem distribuída. Sua constituição é robusta e sadia, com ossos resistentes, articulações e tendões bem definidos, sem taras. Seus olhos são grandes e expressivos, sendo pretos e com pálpebras finas, afastados lateralmente. O rosto do animal é completado por orelhas de tamanho pequeno a médio, bem implantadas e móveis.

O corpo é forte, com o pescoço proporcional e harmoniosamente ligado à cabeça, com inserção ao tronco proporcional ao comprimento da garupa, com crineira estreita e com pelos sedosos. É um cavalo de tórax amplo, profundo, com as distâncias do ponto médio da cernelha até o centro da articulação escapuloumeral e da cernelha ao cilhadouro maiores que o comprimento da cabeça.

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Flávio de Polli

Provas e Eventos da Raça

A Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Pantaneiro organiza anualmente, no mês de junho, a Semana Nacional do Cavalo Pantaneiro. O evento, o maior da entidade, acontece no município de Poconé, sede da associação, envolvendo a cada edição mais de 200 exemplares da raça, com exposições agropecuárias, julgamentos morfológicos e a grande final da Prova do Laço Comprido Técnico.

Os julgamentos morfológicos premiam os exemplares que simulam na arena e da melhor forma possível o trabalho de função, na lida com o gado no campo. E a prova do Laço Comprido Técnico avalia tanto o desempenho do cavalo no desfecho esperado da competição, que é a laçada do boi, quanto a conduta do animal durante todo o processo: o equilíbrio, o tempo de prova, a agilidade, o fôlego e a obediência aos comandos do laçador.

Diferentemente da Prova do Laço Comprido Técnico, a do Laço Aberto, outra modalidade inerente à raça, se atém apenas ao resultado final da prova, ou seja, à captura bemsucedida da rês no laço, seja como for. Tanto os julgamentos morfológicos quanto as provas de laço servem para posicionar os melhores reprodutores no ranking nacional da raça.

Outro grande evento da qual a associação participa periodicamente é a Festa do Ouro do Cavalo Pantaneiro, também em Poconé. Já em sua oitava edição, o evento é um sucesso. A festa, também anual, faz parte da agenda de outubro da associação e consagra com ½ quilo de ouro aos melhores laçadores nas avaliações morfológica e de laço.

Segundo a ABCCP os eventos confirmam com sucesso o potencial do Cavalo Pantaneiro para a lida no campo no Pantanal e também fora dele. Afinal, se o animal supera com sucesso as condições adversas impostas pelo Pantanal, ele tem plenas condições de atuar em outras áreas do Brasil e da América do Sul com uma performance excelente.

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