Sentinelas da floresta

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DEZEMBRO DE 2023 | ANO 24, N. 334

SENTINELAS DA FLORESTA

Múltiplos sistemas monitoram o desmatamento na Amazônia e guiam o trabalho de fiscalização

Brasileiro deveria comer insetos, defende cientista de alimentos

Para a ecóloga Ima Vieira, quem desmatou a floresta deve pagar por sua recuperação

Contos de horror à brasileira fazem crítica social e denunciam violência da escravidão

O caminho tortuoso de óvulos humanos exportados da Espanha para o país

Antes marginalizado, hip hop faz 50 anos e traz novas questões de pesquisa

Comitê planeja ações para que 12 doenças deixem de ser problemas de saúde pública


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DEZEMBRO 2023

FOTO PAULINO MENEZES / MINISTÉRIO DO TURISMO

334

O rio Negro, antigo e largo, favoreceu a diversificação genética de espécies de animais e plantas (ECOLOGIA, P. 24)

5 CARTA DA EDITORA 6 NOTAS CAPA

12 Sistemas monitoram por satélite perda de floresta na Amazônia e facilitam busca pela meta do desmatamento zero 20 Embrapa e Inpe retomam mapeamento que acompanha o uso de áreas que perderam vegetação

Capa Imagens do satélite Sentinel 2 em julho de 2022 mostram desmatamentos em duas áreas de Rondônia: em trecho entre o rio Madeira e o afluente Jamari (capa), e na região de Cujubim (contracapa). Os polígonos cor de terra são áreas desflorestadas e as pequenas manchas brancas representam nuvens. IMAGENS SENTINEL 2 / ESA

ZOOLOGIA

22 Guia ilustrado traz informações sobre 160 espécies de serpentes

EPIDEMIOLOGIA

DADOS

ENTREVISTA

BIOLOGIA

36 Comitê busca reduzir impacto de doenças negligenciadas até 2030

51 Diminuem os ingressos em engenharia, e crescem em ciência da computação

ECOLOGIA

24 Os Andes moldaram a paisagem e tornaram a floresta no norte da América do Sul berçário de novas espécies ETOLOGIA

28 Em Manaus, sauim-de-coleira usa cheiro para complementar a comunicação vocal ENTREVISTA

30 Para a ecóloga paraense Ima Vieira, quem desmatou a Amazônia deve pagar por sua recuperação

40 O físico e ex-ministro Sergio Machado Rezende conta o que esperar da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação RECURSOS HUMANOS

44 Concursos anunciados pelo MCTI trazem alívio parcial a instituições de pesquisa BOAS PRÁTICAS

48 Consórcio propõe checklist para garantir que imagens de microscopia em artigos possam ser compreendidas e confirmadas

52 Instituto Butantan desenvolve antídoto para quatro espécies de peixes venenosos CLIMA

56 Aquecimento global pode aumentar intensidade de ciclones extratropicais REABILITAÇÃO

58 Cirurgia precoce para corrigir fissura no céu da boca reduz a ocorrência de problema de fala mais tarde

›››


MEDICINA

ENERGIA

LITERATURA

RESENHA

ONCOLOGIA

SOCIEDADE

MEMÓRIA

97 COMENTÁRIOS 98 FOTOLAB

ENTREVISTA

ARQUEOLOGIA

62 Óvulos importados da Espanha passam por outros países antes de chegar ao Brasil

73 Usinas eólicas em alto-mar podem ser opção para abastecimento elétrico de plataformas de petróleo

66 Terapia fotodinâmica para tratar câncer de pele deve ser incorporada em breve ao SUS

76 Aos 50 anos, movimento hip hop motiva pesquisas em áreas como antropologia e educação

70 Criador de farinha à base de grilos, o cientista de alimentos Antonio Bisconsin Junior defende o uso de insetos na dieta humana

82 Vestígios materiais, documentos escritos e depoimentos ajudam a contar episódios da colonização à ditadura

86 Contos brasileiros de horror do século XIX trazem fantasmas, vampiros e senhores de escravizados 90 Acelerador de núcleos atômicos mais potente do país, o Pelletron continua em operação após 50 anos

96 Arrabalde – Em busca da Amazônia, de João Moreira Salles. Por Danilo Araújo Fernandes

ITINERÁRIOS DE PESQUISA

94 A historiadora Adriana Salay comanda o projeto “Quebrada alimentada” em um bairro da periferia paulistana

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VÍDEO

Os tesouros de uma biblioteca bicentenária Segunda instituição mais antiga do país, Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro pretende tornar seus 10 milhões de itens mais acessíveis

PODCAST

O equilíbrio dos fundos patrimoniais Podcast discute estratégias para ampliar doações privadas a universidades no país. E mais: ciência cidadã; fauna da Amazônia; resgate de partituras

Este conteúdo está disponível no site www.revistapesquisa.fapesp.br, que contém, além de edições anteriores, versões em inglês e espanhol e conteúdo exclusivo

Breaking em Diadema, SP: dança urbana vai ser modalidade olímpica (SOCIEDADE, P. 76)

FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

VÍDEO

O que é o El Niño? Animação explica por que o aquecimento das águas do oceano Pacífico pode causar eventos extremos cada vez mais frequentes


CARTA DA EDITORA

De olho na floresta Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

A

Amazônia está em crescente evidência no século XXI. Primeiro, pela reserva de biodiversidade, de valor incalculável para a vida na Terra. Segundo, por seu papel na dinâmica climática, que hoje sabemos ir muito além de suas fronteiras. Os temores com a destruição desse bioma suscitam discussões sobre sua ocupação (e preservação) pelos povos originários e as perspectivas dos quase 30 milhões de habitantes. O Brasil tem ampla e reconhecida capacidade de monitoramento por satélite. Coleta e análise de dados são feitas por especialistas qualificados que atuam em instituições públicas e no terceiro setor. Essas informações permitem ações imediatas de fiscalização, municiam a elaboração de políticas, embasam negociações internacionais, além de alimentar pesquisas científicas e tecnológicas que por sua vez permitem a produção de mais e melhores dados. A reportagem de capa desta edição apresenta cinco iniciativas de monitoramento do desflorestamento da Amazônia hoje em ação: as características, diferenças metodológicas e finalidades dos sistemas (página 12). Traz, ainda, o sistema do Inpe e da Embrapa que mapeia o uso da terra desmatada naquela região. Após um período de inatividade, a iniciativa voltou a levantar dados, lançando a radiografia do ano de 2020 (página 20). O que nasceu como uma proposta de explicar os sistemas de monitoramento existentes, cujos dados amplamente divulgados pela mídia podem causar estranheza por suas divergências, tornou-se um pequeno especial sobre a Amazônia. Nesta edição, são 25 páginas sobre o tema, trazendo segredos geológicos por trás da formação da floresta (página 24), um guia de serpentes amazônicas (página 22) e saguis que mudam sua comunicação por conta de ruídos urbanos (página 28).

Traz, ainda, entrevista com a ecóloga Ima Vieira, do Museu Paraense Emílio Goeldi, que estuda a regeneração da floresta (página 30). Em um período de preocupação com o bioma e seus habitantes, o primeiro movimento deve ser o de ouvir quem se dedica a estudar as questões amazônicas há tempos, in loco. Vieira integra o grupo que propôs a meta de desmatamento zero até 2030, adotada pelo atual governo federal. A pesquisadora sustenta que, com 20% de território aberto na Amazônia, não se deve desmatar mais nada. As políticas públicas para a região retratam os interesses conflituosos, e a produtividade das atividades agropecuaristas nessas áreas é muito baixa. Vieira hoje assessora a Finep na construção de políticas públicas para fortalecer o sistema regional de ciência, tecnologia e inovação. * “É a periferia ocupando a academia”, declararam os Racionais MC’s em 2018, quando seu disco Sobrevivendo no inferno foi definido como obra obrigatória para o vestibular 2020 da Unicamp. Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor. O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta. Eu?! Eu tenho uma bíblia véia, uma pistola automática e um sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver no inferno. O grupo paulistano de rap é um dos expoentes do hip hop, movimento social, político e cultural que surgiu há 50 anos em um contexto de precariedade e violência. O hip hop hoje é objeto de estudo em universidades (página 76), visto como uma chave para a compreensão da realidade brasileira. PESQUISA FAPESP 334 | 5


NOTAS Os riscos de comer carne vermelha Quanto maior o consumo de carne vermelha, maior o risco de desenvolver diabetes tipo 2, fator de risco para doenças cardiovasculares e câncer. Pesquisadores das universidades de Harvard, nos Estados Unidos, e de Laval, no Canadá, reforçaram essa associação estudando 216.695 participantes do Nurses’ Health Study, do Nurses’ Health Study II e do Health Professionals Follow-up Study. Recrutados entre 1976 e 1989 e acompanhados até 2017, os integrantes desses estudos descreviam a cada dois anos seu estado de saúde e o consumo de alimentos e bebidas. Quase 22.800 pessoas desenvolveram diabetes tipo 2 durante o período de acompanhamento. Os que comeram mais carne vermelha apresentaram um risco 62% maior de desenvolver a doença em comparação com as que comeram menos. Comer carne vermelha processada (salsicha, cachorro-quente bovino ou suíno e bacon) ou não processada (hambúrguer magro ou normal, carne bovina, suína ou de cordeiro como sanduíche ou prato principal) foi associado a um risco 51% e 40% maior de diabetes tipo 2. O estudo não prova que comer carne vermelha causa diabetes tipo 2, mas já se sabe que a gordura saturada, abundante em carnes vermelhas, reduz a sensibilidade à insulina e o funcionamento das células beta do pâncreas, que produzem insulina, responsável pelo controle da glicose no sangue. Trocar uma porção de carne por nozes ou legumes reduziu em 30% o risco de desenvolver diabetes tipo 2, enquanto a opção por laticínios diminuiu as chances em 22% (CNN e American Journal of Clinical Nutrition, 19 de outubro).

Estudo com 200 mil pessoas associou o consumo de hambúrguer a um risco 40% maior de diabetes tipo 2

1


2

Outra fábrica de biometano a partir da vinhaça A usina São Martinho, produtora paulista de açúcar e eta-

dos e Projetos (Finep), duas empresas, a Methanum Enge-

nol, anunciou investimentos da ordem de R$ 240 milhões

nharia Ambiental e a Adecoagro, em parceria, começaram

para construir sua primeira fábrica de biometano (CH4),

a usar vinhaça para produzir biometano em julho de 2018

gás renovável elaborado a partir da vinhaça, resíduo do

em Ivinhema, Mato Grosso do Sul, utilizando o insumo pa-

processamento da cana-de-açúcar, e usado como com-

ra aquecimento de água e como combustível para sua

bustível. Prevista para entrar em operação no segundo

frota de veículos. Cada litro de etanol produzido gera de

semestre de 2025, a planta deverá processar 100% da

10 a 14 litros de vinhaça, que pode aumentar a acidez do

vinhaça gerada em sua unidade de Américo Brasiliense

solo e contaminar cursos d’água e é usada apenas em par-

(SP) e produzir cerca de 15 milhões de metros cúbicos do

te como fertilizante (Newsletter da São Martinho, 31 de

gás por safra. Também com apoio da Financiadora de Estu­

outubro; newsletter da Finep, 29 de abril de 2019).

Unidade da São Martinho em Américo Brasiliense, SP, onde deverá ser construída a nova planta de produção de gás de fonte renovável

O jacaré-açu pode ficar estressado se os turistas o assustarem com muita luz

Por que e por quem os policiais arriscam a vida Os especialistas em segurança pública Gabriela Lotta e Rafael Alcadipani, da Fundação Getulio Vargas

FOTOS 1 DIZELEN / GETTY IMAGES 2 USINA SÃO MARTINHO 3 BERNARD DUPONT / WIKIMEDIA COMMONS

(FGV), convidaram 5.746 policiais civis e militares brasileiros a responderem uma série de perguntas, entre elas “se já haviam colocado a vida em risco no trabalho”, ou o quanto estavam dispostos a colocá-la em risco pelo público ou por determinado grupo de indivíduos. Dos 2.733 policiais que responderam,

3

Sem flash, por favor

42% afirmaram já ter vivido perigo de morte “muitas vezes” e 28% “várias vezes”. Eles se mostraram

Para quem busca a emoção de ver um predador perigoso de perto, jacarés

mais dispostos a arriscar a vida por colegas, crianças,

são uma boa pedida: com alguma prática, eles podem ser capturados e ma-

idosos, mulheres e pessoas com emprego formal.

nuseados, sobretudo os jovens. Por isso, uma proposta do turismo ecológico

E menos por grupos minoritários, como pessoas

é a focagem noturna, na qual se usam lanternas para procurar animais. “Du-

em condição de rua e LGBT. “Uma explicação para

rante o dia é quase impossível capturá-los”, diz o zoólogo Washington Men-

a relutância dos policiais em dar suas vidas pelos

donça, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Mas os flashes das

membros da comunidade LGBT pode ser a cultura

câmeras fotográficas usadas pelos turistas podem estressar os animais do

da força policial, que é muito masculina e machista”,

arquipélago de Anavilhanas, no Amazonas. Mesmo com um tempo de inte-

escreveram os autores do trabalho, uma parceria

ração menor do que o dos passeios, os níveis do hormônio corticosterona e

com Nissin Cohen, da Universidade de Haifa, Israel,

do metabólito lactato apresentaram alterações. No jacaré-açu (Melanosuchus

e Teddy Lazebnik, da University College London,

niger), o lactato aumentou 2,4 vezes com o manuseio e a corticosterona 1,7

no Reino Unido. O comprometimento profissional

vez durante o manuseio e 2,7 vezes com os flashes. O jacaré-tinga (Caiman

e a autorrealização eram algumas das motivações

crocodilus) não parece ser afetado. Para Mendonça, o melhor seria direcionar

para enfrentar o perigo pelos outros (The American

o turismo ao jacaretinga e evitar que os animais fossem capturados e foto-

Review of Public Administration, 11 de setembro).

grafados com frequência (The Journal of Wildlife Management, 17 de agosto). PESQUISA FAPESP 334 | 7


Medicamentos para emagrecer causam problemas digestivos Medicamentos injetáveis contra o diabetes que passaram a ser largamente usados para a perda de peso podem gerar problemas digestivos graves em uma pequena parcela de seus usuários, conforme estudo da Universidade da Columbia Britânica, no Canadá. Efeitos colaterais são raros – com o Ozempic, nome comercial de um dos remédios, só 1% dos pacientes sofreram paralisia

Representação da área com maior concentração de detritos de satélites

estomacal. Mas, como milhões de pessoas tomam esses medicamentos, as complicações não são apenas eventuais. “Risco de 1% se 1

Resquícios de satélites na estratosfera

traduz em muitas pessoas que podem sofrer esses eventos”, afirmou à CNN o epidemiologista Mahyar Etminan, autor principal do estudo. Os pesquisadores compararam informações

Uma equipe da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (Noaa) dos Estados

de 4.757 usuários de duas classes desses

Unidos usou um avião de pesquisa, com um funil especial, para coletar partículas em

remédios injetáveis, a semaglutida e a

suspensão, chamadas aerossóis, na estratosfera, a segunda camada da atmosfera

liraglutida, com as de 654 usuários de uma

que se estende até 50 quilômetros acima da superfície. O objetivo era encontrar

outra categoria de remédio para emagrecer,

partículas de rochas que queimam ao entrar na atmosfera, mas o avião registrou

a combinação da naltrexona com a bupropiona,

elementos químicos metálicos que não poderiam ser explicados por processos na-

vendida em comprimidos. Parte dos pacientes

turais. Os altos níveis de nióbio, háfnio, alumínio, cobre, lítio, prata, ferro, chumbo,

com diabetes que usa os remédios injetáveis

magnésio, titânio, berílio, cromo, níquel e zinco foram associados à reentrada de

sofre com problemas gastrointestinais, mas

satélites artificiais e foguetes na atmosfera terrestre. Quando voltam à Terra, os

não se sabia se tais efeitos se deviam aos

veículos produzem vapores metálicos que se condensam em aerossóis. Nesse le-

medicamentos e se repetiam também nos

vantamento, 10% das partículas de ácido sulfúrico da estratosfera com o mínimo de

pacientes obesos sem diabetes. Conclusão:

120 nanômetros de diâmetro continham pelo menos um entre os 20 elementos quí-

mesmo para os não diabéticos, há um

micos provenientes da reentrada de satélites, já que a quantidade desses metais

pequeno aumento de risco para desenvolver

excedia a que chega com a poeira cósmica. A situação, de consequências incertas,

pancreatite, obstrução intestinal e paralisia

pode se intensificar, porque há 9 mil satélites de órbita terrestre baixa em operação

estomacal (CNN Health e Journal of the

e outros 50 mil devem ser colocados em órbita até 2030 (PNAS, 16 de outubro).

American Medical Association, 5 de outubro).

3

Besouros destroem cajueiros no Piauí No início de outubro, milhões de besouros

sa agropecuária do Piauí se reuniram para

avermelhados chegaram inesperadamente e

elaborar um plano de combate à praga, que

devastaram cajueiros e outras árvores na re-

atacou cajueiros pela primeira vez. Eles reco-

gião de Pio IX, leste do Piauí. À noite, agricul-

mendaram aos agricultores não empregarem

tores e moradores das cidades encheram bal-

inseticidas, já que a região produz mel orgâ-

des com os insetos, atraídos por armadilhas

nico, e continuarem utilizando armadilhas lu-

luminosas. A partir de amostras enviadas do

minosas. “Em alguns locais, principalmente

campo, o agrônomo Paschoal Coelho Grossi,

onde usavam armadilhas luminosas, a quanti-

da Universidade Federal Rural de Pernambuco

dade de besouros está diminuindo, mas em

(UFRPE), identificou o inseto como Liogenys

outras continua aumentando”, observa o agrô-

pilosipennis. Descrito em 2015 na revista Du-

nomo Paulo Henrique Soares da Silva, da Em-

gesiana como espécie nova com base em exem-

brapa Meio-Norte. A seu ver, as larvas dos

plares coletados no Cerrado, tem em média

besouros podem ter se proliferado em conse-

12,5 milímetros (mm) de comprimento e 6 mm

quência de um período de chuvas mais longo

de largura. No final de outubro, especialistas

que o habitual (Dugesiana, julho de 2015; news-

da Embrapa Meio-Norte e de órgãos de defe-

letter da Embrapa, 30 de outubro).

8 | DEZEMBRO DE 2023

À noite, agricultores enchem baldes com Liogenys pilosipennis, abaixo

2


Bebês com anemia dormem menos

Se dorme menos de 10 horas por dia, pode ser por falta de ferro

FOTOS 1 NASA ODPO 2 CHERMAN, M. A. ET AL. DUGESIANA. 2015 3 REPRODUÇÃO YOUTUBE 4 ANTONI SHKRABA / PEXELS 5 MARIA JACQUELINE RODET / UFMG 6 PXHERE / WIKIMEDIA COMMONS

4

Bebês que dormem menos do que deveriam po-

como níveis de hemoglobina no sangue menores

dem estar com anemia ferropriva, causada pela

que 11 gramas por decilitro (g/dL). Entre os bebês

falta de ferro. A associação entre a duração do

que dormiam menos de 10h, 93,3% tinham ane-

sono e esse distúrbio orgânico provém de um

mia. Levantamentos nacionais registraram ane-

estudo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal)

mia em 10% de crianças menores de 5 meses e

com 123 crianças nascidas na maternidade de

18,9% de 6 a 23 meses. Quase metade (43%)

Rio Largo, município próximo a Maceió. Elas fo-

das famílias das crianças acompanhadas pelos

ram acompanhadas durante um ano, com dados

pesquisadores da Ufal recebia menos de um sa-

sobre sono e parâmetros sanguíneos coletados

lário mínimo de renda mensal. Caracterizada

aos 3, 6 e 12 meses de idade. As análises indica-

também pela palidez e movimentos lentos, a

ram que 37% dos bebês dormiam menos de 10

anemia, se não tratada com a suplementação de

horas, quantidade mínima recomendada para

ferro, pode prejudicar o crescimento, facilitar o

essa faixa de idade, e 85% tinham anemia fer-

surgimento de doenças crônicas e causar danos

ropriva, definida para crianças com até 5 anos

cognitivos (Revista Paulista de Pediatria, julho).

Os caprichosos escultores de rochas, há 12 mil anos Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufop) examinaram as técnicas de produção de instrumentos líticos a partir de 3.174 vestígios coletados na caverna da Pedra Pintada, no município paraense de Monte Alegre. Com idade entre 12 mil e 9 mil anos, as peças foram coletadas em 2014 por

Mulheres da Gâmbia exemplificam a grande diversidade genética da África

uma equipe coordenada pela arqueóloga Edithe Pereira do MPEG. Os objetos eram feitos de sílex, rochas vulcânicas, arenitos ou quartzo, “matérias-primas de qualidade, o que significa que as pessoas sabiam onde encontrá-los”, diz a arqueóloga Maria Jacqueline Rodet, da UFMG, autora principal do estudo. As rochas eram lascadas com

6

Parceria para sequenciar os genomas de 500 mil africanos

madeira, ossos ou chifres de veado. “Impressionou a grande quantidade de peças

O Meharry Medical College, a primeira escola de medicina no sul dos Estados Unidos para

sem acidentes, o que indica que quem lascou

afro-americanos, associou-se com quatro empresas farmacêuticas (Regeneron, Astra-

tinha um alto controle do lascamento”,

Zeneca, Novo Nordisk e Roche) para sequenciar o genoma de até 500 mil afro-america-

acrescenta. Os instrumentos podem

nos e africanos e combinar os resultados em uma base comum para pesquisas na área

corresponder a pontas de projétil

da saúde. Cada empresa deverá contribuir com US$ 20 milhões. O projeto pretende re-

ou facas, utilizadas para caçar ou

crutar parceiros acadêmicos no continente africano, que terão acesso exclusivo às infor-

para cortar (Latin American

mações, e tem um comitê de ética com líderes da comunidade negra e um líder religioso

Antiquity, 10 de julho).

para assegurar que as ações sejam ética e culturalmente apropriadas. Ainda que representem menos de 0,5% dos participantes em estudos genéticos, as populações de ascendência africana estão entre as mais diversificadas geneticamente no mundo. No UK

Instrumento do dia a dia de habitantes da gruta de Pedra Pintada

Biobank, um dos maiores do mundo, cerca de 1,6% do meio milhão de participantes identifica-se como negro ou negro britânico. A desproporção preocupa porque as estratégias de tratamento usadas para europeus sem ascendência africana poderiam não 5

funcionar tão bem em pessoas com ascendência africana (Science, 18 de outubro). PESQUISA FAPESP 334 | 9


Padrões quase universais da música A música é uma linguagem em geral com-

compartilham características acústicas uni-

preendida da mesma forma por ouvintes de

versais, que permitem reconhecer a que con-

diferentes culturas, indicou um estudo da

texto se referem, independentemente da

Universidade Yale, nos Estados Unidos, com

cultura do ouvinte – por exemplo, músicas

5,6 mil pessoas de 49 países, falantes de 31

dançantes tendem a ser altas e rítmicas, e

línguas distintas. Cada participante escutou

canções de ninar baixas e melodiosas. A ex-

de 18 a 24 trechos de 118 canções compos-

ceção foram as canções românticas, prova-

tas em 75 línguas diferentes. Em seguida,

velmente por expressarem tanto felicidade

teve de indicar, com maior ou menor grau

quanto tristeza e ciúme. “Os ouvintes que

de certeza, em qual de quatro categorias

escutaram canções de amor de países vizi-

cada canção melhor se encaixava: música

nhos e em línguas relacionadas às suas tive-

para ninar, dançar, curar ou expressar amor.

ram um desempenho um pouco melhor, pro-

Nas três primeiras categorias, o nível de acer-

vavelmente por causa das pistas linguísticas

to foi superior ao que seria esperado se as

e culturais”, comentou Lidya Yurdum, autora

escolhas tivessem sido feitas ao acaso. O

principal do estudo, em um comunicado à

resultado sugere que esses tipos de canção

imprensa (PNAS e YaleNews, 7 de setembro).

O conceito de canções de amor variou muito entre ouvintes de 49 países

0 dia

15,1 dias

17,4 dias

22 dias

Estruturas cerebrais mudam durante ciclo menstrual Dois estudos independentes mostraram que a variação dos níveis de

2

Representação do movimento das estrelas e dos detritos lançados para fora de uma das estrelas

Ondas de plasma mais altas que o Sol

hormônios durante o ciclo menstrual, além dos sintomas já conhecidos, pode remodelar temporariamente a estrutura do cérebro. O primeiro, do Instituto Max Planck de Ciências Cognitivas e do Cérebro Humano, da Alemanha, acompanhou 27 mulheres durante o ciclo menstrual e, por meio de imagens de ressonância magnética, verificou que o volume de regiões do lobo temporal medial, associadas à memória de curto prazo e à percepção espacial, expande-se sob níveis elevados de estradiol e baixos de progesterona. O estradiol aumenta na primeira metade do ciclo menstrual e a progesterona na segunda. No outro estudo, com 30 mulheres, um grupo da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, Estados Unidos, também por ressonância magnética, identi-

Aproximadamente a cada 33 dias, na Grande Nuvem de

ficou alterações na substância branca, que transfere informações para

Magalhães, uma galáxia que orbita a Via Láctea, duas

a substância cinzenta, quando sobem os níveis do 17β-estradiol e do

estrelas a cerca de 160 mil anos-luz da Terra passam perto

hormônio luteinizante. O aumento do hormônio folículo-estimulante,

uma da outra. Nesses momentos, o brilho da estrela maior,

antes da ovulação, foi associado à massa cinzenta mais espessa. Os

com 35 vezes a massa do Sol, varia muito (a outra estrela

significados dessas modificações ainda são incertos (Nature, 5 de ou-

do sistema conhecido como Macho 80.7443.1718 tem

tubro; bioRxiv, 10 de outubro; ScienceAlert, 19 de outubro).

pelo menos 10 massas solares). Por meio de simulação

3

computacional, uma equipe do Centro de Astrofísica Harvard-Smithsonian, dos Estados Unidos, descobriu a provável causa da perda do brilho: a proximidade das estrelas faz com que as forças gravitacionais aumentem as marés no plasma nas superfícies de ambas as estrelas, da mesma forma que a Lua puxa os oceanos da Terra (plasma é um estado da matéria similar ao gás, em temperaturas muito altas). Formam-se ondas de plasma cuja altura pode chegar a 3,3 milhões de quilômetros, o equivalente a 2,4 vezes o diâmetro do Sol. Ao se quebrar sobre a superfície da estrela maior, as ondas geram detritos, lançados para a atmosfera, fazendo com que as órbitas das estrelas encolham (Nature Astronomy, 10 de agosto; ScienceNews, 21 de agosto). 10 | DEZEMBRO DE 2023

Regiões da substância branca ativadas pelo hormônio folículo-estimulante (em azul) e pela progesterona (em vermelho)

FOTOS 1 GUSTAVO-FRING / PEXELS 2 MACLEOD, M. E LOEB, A. NATURE ASTRONOMY. 2023 3 RIZOR, E. J. ET AL. BIORXIV. 2023 4 JJHARRISON / WIKIMEDIA COMMONS 5 NASA

1


4

Regras para IA nos EUA

A equidna-de-bico-curto, que vive na Austrália e Nova Guiné

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, assinou em agosto um esboço de regulamentação da inteligência artificial (IA) para reduzir os riscos de preconceito e violações dos direitos civis. A chamada ordem executiva exige que os criadores de sistemas de IA que representam riscos para a economia ou para a saúde pública compartilhem os resultados dos testes de segurança com o governo antes de os divulgarem ao público. O documento

Reencontrado mamífero que põe ovos

orienta as agências a estabelecerem padrões para os testes e definir seus riscos. O novo

Nos jogos de adivinhação, essa é uma pergunta difícil: qual é o animal que tem es-

pedido vai além dos compromissos voluntários

pinhos e bico, come formigas, é mamífero e põe ovos? É a equidna (Zaglossus sp.).

assumidos no início deste ano por empresas

No último dia de uma expedição coordenada por biólogos da Universidade de Ox-

de IA como OpenAI, Google e Meta, que

ford, no Reino Unido, câmeras noturnas registraram uma das espécies desse bicho

se comprometeram a colocar marcas d’água

estranho, a equidna-de-bico-longo-de-attenborough (Z. attenboroughi), em trechos

no conteúdo gerado por IA para tornar

inexplorados de florestas do norte da Indonésia. Os quatro clipes de 3 segundos

a tecnologia mais segura. Como parte do

mostraram que essa espécie não estava extinta, como se temia. Até então, a única

comunicado de Biden, o Departamento de

prova de sua existência era um exemplar morto, coletado há 62 anos e mantido no

Comércio deverá “desenvolver orientações

Naturalis, o museu de história natural da Holanda. As quatro espécies existentes de

para autenticação de conteúdo e marcas

equidnas e do ornitorrinco (Ornithorhynchus anatinus) são os únicos mamíferos vivos

d’água” para rotular itens gerados por IA e

que põem ovos e vivem na Austrália e na Nova Guiné. A equidna-de-bico-longo-de-

garantir que as comunicações governamentais

-attenborough e a de-bico-longo-ocidental (Z. bruijni) são consideradas criticamen-

sejam confiáveis. O líder da maioria no

te ameaçadas de extinção. Os adultos medem em média 30 centímetros de compri-

Senado, Chuck Schumer, disse que espera

mento e têm uma língua comprida e pegajosa, com a qual apanham formigas e

concluir a legislação sobre IA em alguns meses

cupins. Solitárias e de hábitos noturnos, enrolam-se sobre si próprias ou escavam

(Agência Reuters, 30 de outubro).

um buraco com rapidez quando se sentem em perigo (BBC News, 10 de novembro).

5

Lago de lava coberto de gelo Em 2001, imagens de satélites indicaram algo estranho: sinais de um lago borbulhante de rocha derretida no fundo de um vulcão de uma ilha perto da Antártida, habitada

Cavidades dentro de um vulcão nas bordas da Antártida guardam magma fundido

apenas por pinguins, elefantes marinhos e albatrozes. Em 2019, outras análises por satélite indicaram uma variação de temperatura, de 284 graus Celsius (°C) a 419 °C, no fundo da cratera – era o primeiro indício mais consistente de um lago de lava, que seria o oitavo já identificado. Para confirmar, Emma Nicholson, vulcanóloga da University College London, no Reino Unido, visitou pela primeira vez o Monte Michael, um vulcão ativo com 843 metros na Ilha Saunders, nas Ilhas Sandwich do Sul, em 2020, mas o clima hostil a fez desistir no caminho. Com seu grupo, voltou em novembro de 2022 e confirmou: era mesmo um lago de lava, com uma área estimada em 10 mil metros quadrados. Um documentário sobre a viagem mais recente foi exibido em outubro em canais a cabo. A descoberta ajudará os cientistas a conhecer melhor a circulação de magma no interior de vulcões (Journal of Volcanology and Geothermal Research, julho de 2019; LiveScience, 24 de outubro). PESQUISA FAPESP 334 | 11


CAPA

VIGIAS DA FLORESTA Múltiplos sistemas de

monitoramento por satélite acompanham o desmatamento da Amazônia e fornecem subsídios para a meta de zerar o desflorestamento até 2030 Marcos Pivetta

E

m 9 de novembro, o governo brasileiro repetiu pela 36ª vez na história um gesto aguardado pela sociedade brasileira e comunidade internacional: divulgou a taxa anual oficial de desmatamento na Amazônia Legal, área de aproximadamente 5 milhões quilômetros quadrados (km²), correspondente a 58,9% do território nacional. A notícia foi animadora. Segundo estimativa do Programa de Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), uma iniciativa a cargo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a extensão de área desflorestada entre agosto de 2022 e julho deste ano foi de 9.001

km² – 22,3% menor do que a do período anterior. De 2019 a 2022, a taxa tinha permanecido acima dos 10 mil km². Criado em 1988, o sistema Prodes é a primeira e a mais antiga iniciativa dedicada a monitorar por sensoriamento remoto, com imagens de satélite, o desmatamento na Amazônia brasileira, que abriga a maior floresta tropical do planeta. Seus dados, reconhecidos em acordos internacionais firmados pelo país e citados em quase 1.600 artigos científicos, apontam que cerca de um quinto da floresta foi desmatado nas últimas décadas. A partir de 2004, o Sistema de Detecção de Desmatamentos em Tempo Real (Deter), também do Inpe, passou a funcionar e a atuar como um complemento ao trabalho do Prodes. O Deter


IMAGEM COORDENAÇÃO GERAL DA OBSERVAÇÃO DA TERRA / INPE

Hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, apresenta polígonos de desmatamento em sua margem direita

emite alertas diários sobre trechos da floresta que estão perdendo cobertura vegetal. Os avisos se destinam aos órgãos de fiscalização ambiental, que, a partir dessas informações, podem atuar na repressão ao desmatamento. “Temos tradição em sensoriamento remoto, área em que fazemos um trabalho de Primeiro Mundo”, comenta o engenheiro e especialista em geoprocessamento Gilberto Câmara, que foi diretor-geral do Inpe entre 2006 e 2013 e hoje atua como consultor na área. “Na década de 1970, o Brasil foi o terceiro país a usar imagens dos satélites Landsat, depois dos Estados Unidos e do Canadá.” Depois do Prodes e do Deter, projetos coordenados por entidades científicas da sociedade civil,

como o MapBiomas e o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), passaram a acompanhar a dinâmica e a evolução do desmatamento na Amazônia brasileira por meio da análise de imagens de satélites. Embora tenham pontos em comum com as iniciativas pioneiras do Inpe, cada sistema persegue objetivos ligeiramente diversos e adota metodologias próprias para produzir seus dados. Eles podem, por exemplo, usar satélites diferentes, com resolução espacial e tempo distinto de revisita a cada ponto da Amazônia. Também podem fazer a análise das imagens obtidas de forma automática, apenas com o emprego de softwares, ou com o auxílio do olho treinado de um especialista. Ainda assim, todos divulgam algum tipo de cálculo sobre o desmatamento mensal ou anual da Amazônia (ver quadro na página 14 com a evolução anual do desmatamento segundo diferentes sistemas). Essas particularidades levam, forçosamente, a resultados que tendem a não coincidir em 100% com as informações do Prodes e do Deter. Os especialistas não consideram essas divergências preocupantes, desde que o cenário geral do desmatamento retratado por cada iniciativa seja parecido e aponte tendências semelhantes, como o aumento ou a redução da supressão de vegetação. “O sistema público de monitoramento do desmatamento na Amazônia é bom e razoavelmente robusto”, diz o físico Ricardo Galvão, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “As iniciativas da sociedade civil são bem-vindas e fazem um trabalho complementar muito importante.” Até 2030, o país assumiu o compromisso internacional de zerar o desmatamento na Amazônia. Em agosto de 2019, Galvão foi exonerado da direção do Inpe depois de ter defendido publicamente a correção e a lisura dos dados produzidos pelo Inpe sobre o desmatamento da Amazônia de críticas infundadas feitas pelo então presidente Jair Bolsonaro e seus ministros. Na ocasião, a taxa anual de desmatamento calculada pelo Prodes tinha passado dos 10 mil km, algo que não ocorria desde 2008. O governo federal questionou a veracidade do número e ameaçou contratar uma empresa privada para fazer o trabalho do Inpe. O caso ganhou repercussão em todo o mundo e a ideia de terceirizar o trabalho de monitoramento não foi adiante. Ter vários sistemas dedicados a observar e calcular o processo de supressão da vegetação nativa na Amazônia permite que os dados oficiais possam ser confirmados, refinados ou mesmo refutados pela sociedade civil. Caso um dia, por qualquer motivo, o Prodes e o Deter venham a faltar, existem alternativas à mão. “Esses sistemas alternativos também podem funcionar como um PESQUISA FAPESP 334 | 13


pelos rumos da Amazônia, que, além de sua riqueza em biodiversidade, exerce papel importante na regulação do clima global. Nesse contexto, oposto ao que dominara a década anterior, foi criado o Prodes em 1988. Seu objetivo é simples: estimar a taxa anual de desmatamento da floresta nativa na Amazônia Legal. Cabe ressaltar que a Amazônia Legal – uma designação criada em 1953 com a finalidade de estimular o desenvolvimento econômico numa região que se espalha por nove estados – abrange todo o bioma Amazônia em terras nacionais, 37% do Cerrado e 40% do Pantanal.

backup, uma cópia de segurança, dos serviços do Inpe”, diz o especialista em sensoriamento remoto Carlos Souza Jr., do Imazon. Para entender as semelhanças e diferenças dos sistemas, Pesquisa FAPESP fez um resumo das principais características de cinco iniciativas que monitoram o desflorestamento da Amazônia, quatro nacionais e uma do exterior. PRODES

O especialista em sensoriamento remoto Cláudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e outros Biomas do Inpe, conta uma história interessante sobre os projetos que antecederam e criaram a expertise para montar o Prodes. Na década de 1970, em meio a políticas públicas oficiais que visavam estimular a ocupação da Amazônia e a implantação de grandes projetos de agropecuária, uma das preocupações do governo federal era ter meios de se certificar de que seus incentivos estavam sendo bem empregados. “Naquela época, o monitoramento da Amazônia por imagens de satélite foi concebido como uma forma de assegurar que os projetos estavam sendo realmente implantados, ou seja, que áreas da floresta estavam sendo desmatadas para abrir espaço para a agricultura e a pecuária”, diz Almeida. Essa visão dominante de progresso começou a ser questionada fortemente a partir dos anos 1980, com a ascensão do movimento ambientalista. Dono da maior floresta tropical do planeta, o Brasil passou a ser cobrado internacionalmente

N

o Brasil, o bioma Amazônia, onde fica a floresta tropical, estende-se por uma área de quase 4,2 milhões de km², cerca de 49% do território nacional. Há uma diferença de cerca de 800 mil km², mais de 9% da área nacional, entre a extensão da Amazônia Legal e o bioma Amazônia. “É preciso tomar o cuidado de não se comparar dados de desmatamento de toda a Amazônia Legal com os do bioma Amazônia”, comenta Almeida. A taxa anual do Prodes exibe uma peculiaridade temporal. Segue o chamado calendário do desmatamento, que costuma se intensificar na época mais seca do ano. O ano Prodes inicia-se em agosto, com a chegada da estiagem, e termina em julho do ano seguinte. A taxa de 2023 recém-divulgada cobre o período de agosto de 2022 até julho deste ano.

TODOS OS NÚMEROS DO DESMATAMENTO Área desmatada anualmente em km2 segundo os cinco sistemas Prodes1

Deter1

MapBiomas2

SAD1

GFW2 34.202

35.000

29.059 28.972

30.000

25.396

27.169

25.000

21.954

21.050 20.000

17.934

18.307

13.990

O Prodes é a taxa oficial

12.911 10.049

de desmatamento 5.000

16.963

14.980

15.000

10.000

17.384

5.002

adotada pelo governo

9.001 7.893 7.952 6.447

5.377 3.577

0

1987

1995

(1) DADOS REFERENTES À AMAZÔNIA LEGAL ENTRE AGOSTO E JULHO DO ANO SEGUINTE

14 | DEZEMBRO DE 2023

2003

2008

(2) DADOS REFERENTES AO BIOMA AMAZÔNIA DE JANEIRO A DEZEMBRO

2016

2021 2023

FONTES INPE, IMAZON, MAPBIOMAS, GFW


IMAGENS CBERS4 / AMAZOZIA 1 / LANDSAT 9 / SENTINEL 2 / INPE INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Padrão de desmatamento causado por diferentes atividades (da esquerda para a direita): queimada, área degradada, remoção da floresta e mineração

O Prodes registra o desmatamento por corte raso, que resulta na remoção completa da cobertura florestal de um ano para o outro. Ocorre geralmente para abrir espaço para introdução de atividades da agropecuária ou estabelecimento de áreas urbanas ou projetos de hidrelétricas. Desde 2022, o Prodes também passou a medir o desflorestamento que ocorre em razão da degradação progressiva da vegetação. Esse processo é lento, mais difícil de ser detectado por satélite, e pode se estender por alguns anos. Está associado a cortes seletivos de madeira e emprego de queimadas. Entram no cálculo da taxa anual apenas os trechos de floresta desmatada que alcançam a extensão mínima de um polígono de 6,25 hectares (ha), ou seja, 62.500 metros quadrados (m2). A área equivale às dimensões de pouco mais de seis campos de futebol. Alguns críticos consideram o tamanho desse polígono muito grande, limitação que, em tese, poderia deixar escapar uma parcela do processo de desflorestamento. “Na Amazônia, o desmatamento é feito para a implantação de grandes propriedades, de áreas de monocultura de soja ou de criação de gado. Não compensa abrir áreas pequenas, algo muito custoso e trabalhoso”, explica Câmara, que não considera uma limitação importante alterar o tamanho da área monitorada pelo Prodes. “Polígonos de 6,25 ha pegam a maior parte do desmatamento.” Hoje o Prodes já monitora polígonos de desmatamento de 1 ha (10 mil m2), mas não os inclui no cálculo de sua taxa anual. É provável que passe a fazer isso em breve. O sistema usa imagens de cinco satélites: Landsat 8 e 9, da agência espacial norte-americana (Nasa) e do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS); Sentinel, da Agência Espacial Europeia (ESA); e os CBERS 4 e 4A, projeto conjunto do Brasil com a China. As imagens dos Landsat formam a principal base de dados do sistema. São necessárias 229 imagens de satélites da família Landsat para co-

brir toda a Amazônia Legal. Cada imagem, também denominada cena, cobre uma área imensa, de 32.400 km², pouco mais de quatro vezes a extensão da Região Metropolitana de São Paulo. Nos setores da Amazônia que se encontram cobertos por nuvens quando são registrados pelos Landsat, são usadas imagens dos CBERS e do Sentinel para cobrir esses buracos do levantamento. Em média, cada área é observada por um satélite usado pelo Prodes a cada 16 dias. Na prática, o intervalo entre dois registros pode ser de 5 a 26 dias. O menor ponto com informação dentro de uma imagem Landsat equivale a um quadrado de 30 por 30 metros (0,09 ha ou 900 m2), pouco maior do que duas quadras de basquete. Por isso, os especialistas em sensoriamento remoto dizem que a resolução espacial (pixel) dos Landsat é de 30 metros (m). O polígono mínimo de desmatamento levado em conta pelo Prodes, de 6,25 ha, é composto, portanto, por 69,4 pixels. O pixel dos CBERS e do Sentinel dá conta de registrar áreas ainda menores. Nos satélites sino-brasileiros, a resolução espacial é de 20 m. No projeto europeu, é de 10 m. Para calcular a taxa anual de desmatamento, o Inpe conta com cerca de 25 técnicos em sua sede em São José dos Campos que comparam no computador, “manualmente”, as melhores imagens disponíveis de como estava uma área antes do início e ao final do atual ano Prodes. Esses especialistas delimitam os novos polígonos de desmatamento diretamente na tela do micro. Seguem um padrão de alteração da cobertura florestal com base em elementos visíveis nas imagens, como tonalidade, forma, textura e contexto das áreas desmatadas. “Nossa mão de obra é formada por muitos bolsistas do CNPq. Precisamos contar com mais pessoal contratado de forma estável”, comenta Almeida. DETER

Concebido 16 anos depois do Prodes, em um momento de alta nas taxas de desmatamento da PESQUISA FAPESP 334 | 15


Amazônia Legal, o Deter nasce como uma ferramenta para auxiliar o combate à supressão de vegetação quase em tempo real. Emite diariamente avisos de desflorestamento que são enviados automaticamente a órgãos do ministério e secretarias estaduais do meio ambiente encarregados de combater o desmatamento. São também disponibilizados publicamente na internet, geralmente às sextas-feiras, com defasagem de uma semana. O Deter divulga totais mensais e anuais de desmatamento, seguindo o calendário do ano Prodes. Esses números normalmente mostram a mesma tendência de desmatamento do Prodes, mas são diferentes devido a diferenças metodológicas. Sua metodologia foi aprimorada e refinada ao longo do tempo. De 2004 a 2015, usou dados dos satélites Terra, da Nasa, CBERS-2b (Brasil-China), com resolução espacial de 250 m. Com essas imagens, era possível emitir alertas de desmatamento para áreas de no mínimo 25 ha. No entanto, elas não permitiam diferenciar os setores totalmente desmatados dos que apresentavam degradação progressiva.

A

partir de 2015, passou a adotar imagens dos satélites CBERS-4 e CBERS-4A (Brasil-China) e Amazonia-1 (sem acento), concebido e operado pelo Inpe, com resolução espacial entre 56 e 64 metros. “Hoje usamos apenas satélites com tecnologia nacional para fornecer imagens para o Deter”, comenta Almeida. A alteração permitiu reduzir a área mínima dos avisos mapeados para 3 ha e separar os alertas em duas classes, a de desmatamento e a de degradação. A cada um ou dois dias, um dos três satélites passa por cada faixa da Amazônia. A periodicidade garante o monitoramento contínuo da região e a emissão de alertas de desmatamento quase em tempo real. A supressão, total ou parcial, da vegetação nativa em uma área sem registro anterior de redução da cobertura verde é considerada um desmatamento novo. Ainda que não seja possível definir

2001

16 | DEZEMBRO DE 2023

2003

o dia exato em que houve o corte de um trecho da floresta, a data em que a imagem de satélite foi gerada fica associada no sistema ao evento. A identificação de novas áreas é feita diariamente de forma manual, como no Prodes, mas por outra equipe de especialistas. Dez técnicos do Deter trabalham na unidade em Belém do Inpe e analisam as imagens na tela do computador. Os alertas de desflorestamento são separados nas categorias corte raso, desmatamento com vegetação e desflorestamento decorrente de mineração. Os avisos de degradação são discriminados como corte seletivo geométrico, corte seletivo desordenado e cicatriz de incêndio florestal. Com essa abordagem, o sistema é capaz de diferenciar um distúrbio natural de um provocado pela ação do homem. Os do primeiro tipo apresentam majoritariamente formas irregulares e não lineares, enquanto os do segundo exibem contornos geométricos e lineares. SAD

Sediado em Belém, o Imazon criou em 2008 o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD). Seu objetivo é monitorar mensalmente a supressão de vegetação nativa e a degradação florestal na Amazônia Legal para entender sua dinâmica e tendências. “Ter sistemas alternativos ao Prodes/Deter dá segurança e autonomia para a sociedade civil caso venha a ocorrer alguma falha ou descontinuidade nessas iniciativas do Inpe”, comenta Carlos Souza Jr., do Imazon. O sistema registra o corte raso da floresta e a degradação da vegetação em áreas a partir de 1 ha. Usa imagens dos satélites norte-americanos Landsat 8 e 9 e dos europeus Sentinel 1A e 1B (ambos com pixel de 20 m) e Sentinel 2A e 2B (pixel de 10 m). Cada ponto da Amazônia é varrido por algum dos satélites a um intervalo de cinco a oito dias. A análise das imagens é feita inicialmente de forma automática, com o emprego da plataforma Google Earth Engine, mas validada por especialistas antes de os dados serem fechados. O SAD divulga mensalmente estatísticas de desflorestamento para toda a Amazônia e seus estados

2005

Evolução do desmatamento em uma área da Amazônia brasileira ao longo de quase 20 anos 100 km

2007

2009


OS SISTEMAS QUE MONITORAM A FLORESTA Cinco das principais iniciativas que produzem dados sobre o desmatamento na Amazônia Prodes – Inpe

Deter – Inpe

SAD – Imazon

MapBiomas

GFW

1988

2004, com alteração da metodologia em 2016

2008

2015

1997

Objetivo principal

Estimar a taxa anual oficial de desmatamento da floresta nativa na Amazônia Legal. Calcula o desflorestamento entre 1º de agosto e 31 de julho do ano seguinte

Divulgar diariamente, quase em tempo real, avisos de desmatamento com o objetivo de orientar ações de fiscalização ambiental

Monitorar mensalmente o desmatamento e a degradação florestal para entender sua dinâmica e tendências

Mapear anualmente o uso e a cobertura da terra e, partir desses dados, calcular o desmatamento

Monitora mudança do uso do solo por desmatamento e queimadas, sobretudo em florestas tropicais

Tipo de desmatamento medido

Corte raso, remoção completa da cobertura florestal de um ano para outro. Desde 2022, passou a contabilizar oficialmente a degradação progressiva da vegetação primária, processo mais lento que também leva à perda da floresta

Corte raso e degradação progressiva

Corte raso e degradação da vegetação

Supressão de floresta primária e secundária

Capta a copa das árvores acima de 5 metros. Também identifica queimadas sem corte

1 hectare (ha), mas, para fins do cálculo da taxa de desmatamento, são computados apenas os polígonos acima de 6,25 ha

3 ha

1 ha

1 ha

0,09 ha

Satélites Landsat 8 e 9, da Nasa, Sentinel 2, da ESA, e CBERS 4 e 4A, de Brasil/China. Os Landsat são a base do sistema. Seu pixel é de 30 metros (m). O do CBERS é de 20 m, e o do Sentinel de 10 m

Satélites CBERS-4 e 4A e Amazonia-1 (Brasil), com resolução espacial entre 56 e 64 m. A cada um ou dois dias, um dos três satélites cruza cada faixa da Amazônia

Satélites Landsat 8 e 9 e Sentinel 1A e 1B (pixel de 20 m) e Sentinel 2A e 2B (pixel de 10 m). Cada faixa da Amazônia é registrada por algum dos satélites a um intervalo de 5 a 8 dias

Landsat, com resolução de 30 m, para o cálculo do desmatamento

Família Landsat de satélites

Técnicos do Inpe comparam no computador as melhores imagens disponíveis de uma área antes do início e ao final do ano Prodes. Eles delimitam os novos polígonos de desmatamento na tela do micro. A estimativa da taxa é divulgada entre o fim de novembro e dezembro

A supressão, total ou parcial, da vegetação nativa em uma área sem registro anterior é considerada um desmatamento novo. A identificação das áreas é feita diariamente de forma manual. O sistema diferencia distúrbios naturais dos provocados pelo homem

Processamento automático das imagens, mas validado por especialistas antes de fechar os dados. Divulga mensalmente dados de desmatamento

Processamento automático das imagens no Google Earth. Divulga uma vez por ano os dados de desmatamento

Processamento automático de imagens. Divulga uma vez por ano os dados consolidados de desmatamento

Nuvens costumam impedir a produção de boas imagens em 5% das áreas. Não mede a supressão de matas secundárias, tipo de cobertura vegetal que cresce espontaneamente em áreas desmatadas abandonadas

As mesmas do Prodes

Nuvens atrapalham suas imagens e ele não mede supressão de vegetação secundária

Trabalho totalmente automatizado pode cometer erros de classificação

Trabalho automatizado pode cometer erros de classificação. Não diferencia se a derrubada de uma árvore foi por um processo natural ou antrópico

2011

2013

Criação

Área mínima monitorada

IMAGENS NASA / LANDSAT INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Fonte das imagens

Metodologia

Limitações

2015

2017

PESQUISA FAPESP 334 | 17

2019


e também permite calcular uma taxa anual de desmatamento. “Normalmente, nosso dado representa de 70% a 80% do valor registrado pelo Prodes, um desempenho que consideramos muito bom dadas as diferenças metodológicas”, comenta Souza Jr. MAPBIOMAS

Áreas de floresta preservada e desmatada perto do rio Capim, no Pará, em 2022

Em 2015, a rede MapBiomas começou a produzir mapas e dados sobre a evolução do uso da terra no país (existência de vegetação, de atividades agropecuárias ou estrutura urbana) baseados em imagens de sensoriamento remoto analisadas de forma automática na plataforma Google Earth Engine. A partir desse trabalho foi possível calcular uma taxa de desmatamento anual para todos os biomas nacionais, inclusive a Amazônia. Quatro anos atrás a rede – uma iniciativa do Observatório do Clima, organização não governamental (ONG) que reúne universidades, empresas de tecnologia e entidades da sociedade civil brasileira – lançou um projeto específico para acompanhar a supressão de vegetação nativa no território nacional. Trata-se do MapBiomas Alerta, que valida e refina avisos de desmatamento emitidos por outros sistemas, como o Deter e o SAD, e produz um laudo público de cada área com vegetação suprimida. Esses dados são publicados semanalmente pelo MapBiomas Alerta e, uma vez por ano, consolidados no Relatório do desmatamento (RAD). “Apesar do nome, o MapBiomas Alerta não é um sistema que fornece avisos sobre desmatamentos que estão em curso”, explica o geógrafo Mar1

cos Rosa, coordenador técnico do MapBiomas. “Ele confirma em imagens em alta resolução que houve desmatamento em uma área e cruza essas informações com dados públicos para qualificar esse desflorestamento e produzir um laudo.” Quando tem evidências suficientes de que a vegetação foi realmente removida, o MapBiomas utiliza imagens de sensoriamento remoto da rede privada de satélites Planet. Segundo a empresa norte-americana, qualquer ponto do globo é registrado diariamente por algum de seus 200 satélites com uma resolução espacial de apenas 3,7 m. Em outras palavras, a menor área visível dentro de uma imagem Planet abrange aproximadamente 14 m2, o tamanho de um cômodo em uma casa. Cada alerta validado e refinado produz um laudo com imagens de alta resolução de antes e depois do desmatamento. O sistema do MapBiomas também permite fazer cruzamentos das informações geográficas da área com vegetação suprimida com dados de vários bancos de dados públicos, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef ). “Assim, conseguimos incluir no laudo informações sobre a área desmatada e inferir indícios de ilegalidade”, comenta Rosa. GFW

Projetos internacionais também divulgam dados regulares sobre o desmatamento na Amazônia brasileira. O Global Forest Watch (GFW) é possivelmente a iniciativa de maior impacto. Coordenado por pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, com financiamento do World Resources Institute (WRI), uma entidade não governamental sediada na capital norte-americana, o GFW monitora, desde 1997, o uso da terra e a remoção de áreas com vegetação arbórea, sobretudo em florestas tropicais, como a Amazônia. A iniciativa usa registros de sensoriamento remoto dos Landsat e adota como a menor área de desmatamento monitorado a resolução espacial mínima desses satélites: 1 pixel de uma imagem Landsat, de 0,09 ha. O processamento de suas informações é automatizado. “O sistema observa a copa das árvores acima de 5 m. Capta o corte de árvores e também queimadas sem corte”, diz o geógrafo Jefferson Ferreira, coordenador do programa de floresta do WRI no Brasil. “Ele mostra a perda de cobertura florestal, que pode ou não ser decorrente de desmatamento.” O GFW divulga uma vez por ano a taxa anual, calculada de janeiro a dezembro, para o desmatamento da Amazônia. LIMITAÇÕES DOS SISTEMAS

Não há sistema de monitoramento de desmatamento perfeito. Os registros de sensoriamento 18 | DEZEMBRO DE 2023


Imagem de satélite de 2018 mostra a região em torno do rio Amazonas coberta de nuvens, particularidade que dificulta o mapeamento por sensoriamento remoto da floresta

2

IMAGENS 1 COPERNICUS SENTINEL 2 / ESA 2 NASA / LANDSAT

remoto fornecidos pelos satélites, que geralmente captam imagens em frequências do infravermelho e da luz visível, esbarram em um problema comum: uma nuvem entre o campo de visão de seus sensores no momento de obtenção de um take pode gerar uma imagem de pouca ou nenhuma valia. Daí a importância de haver redundância de dados e trabalhar com imagens de mais de um satélite. O uso de radares instalados em satélites, que trabalham com frequências de microondas, pode minorar esse problema. Sua observação não é atrapalhada pela nebulosidade e pode ocorrer tanto de dia quanto à noite. “O satélite CBERS 6 contará com a tecnologia de radar em sua instrumentação”, diz Galvão.

E

mbora mais rápida e barata, a análise totalmente automatizada dos polígonos de desmatamento pode deixar escapar alguma forma de supressão de vegetação, que um olho humano treinado observaria, ou gerar alertas errados. É importante saber o contexto histórico e geográfico do lugar em que ocorre o aparente desmatamento”, comenta Câmara. “Às vezes, os sistemas automáticos podem interpretar uma imagem de uma várzea de rio na Amazônia obtida na época de cheia como um flagrante de supressão de vegetação. Mas essa conclusão está errada.” A imagem da área de várzea alagada se parece com a de um trecho cortado de floresta. Mas basta ver uma imagem subsequente da mesma área, só que na época de seca, para se certificar de que a vegetação ainda está lá. Apesar da crítica, Câmara é um defensor da adoção de técnicas de aprendizado de máquina

para auxiliar o trabalho de monitoramento por sensoriamento remoto da Amazônia. Em 2014, obteve apoio do programa eScience da FAPESP para um projeto de pesquisas sobre o uso de megadados de satélites para a classificação de uso e cobertura da terra com o auxílio de métodos de aprendizagem de máquina. A partir do projeto, o especialista em sensoriamento remoto conseguiu financiamento de outras fontes para desenvolver o software livre sits (satellite image time series analysis), atualmente em fase final de testes para eventualmente substituir o Prodes. Segundo Câmara, a adoção de métodos no estado da arte da área de aprendizagem profunda permite obter 95% de concordância entre a interpretação visual de imagens e a feita por algoritmos. Nunca houve tanta informação sobre a dinâmica do desmatamento na Amazônia, um insumo necessário para a implantação de políticas públicas em prol da gestão e manutenção da floresta. “Todo sistema de monitoramento faz o gestor e a sociedade olharem de forma diferente para o problema. Hoje sabemos a dimensão do desmatamento, onde ele está ocorrendo, qual sua velocidade. Às vezes, conseguimos até identificar quem está desmatando”, comenta a geógrafa Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). “O grande desafio é entender o nível de ilegalidade do desmatamento e tomar ações mais ágeis de fiscalização, embargo e até restrição de acesso ao crédito [a quem suprime a vegetação nativa].” n O projeto consultado para esta reportagem está listado na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 334 | 19


Roraima

Boa Vista

Amapá Macapá

Belém

Manaus

Amazonas

Pará

Maranhão Porto Velho

Acre Rio Branco

Palmas

Tocantins

Rondônia

Limite da Amazônia Legal

DADOS DO PRODES – 2020 72,8% n Floresta natural

17,6% n Área desflorestada até 2019

6,6% n Não floresta

2,7% n Rios e corpos d'água

0,2%

Desmatamento ocorrido em 2020

Mato Grosso

Limite do bioma Amazônia

Q

250 km

Cuiabá

A VOLTA DO TERRACLASS

Embrapa e Inpe retomam mapeamento do uso e da cobertura da terra na Amazônia, onde 14% da superfície é ocupada por pastagens e agricultura Marcos Pivetta

ual é o destino das áreas desmatadas na Amazônia Legal? Em 2008, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) lançaram o projeto TerraClass, cujo objetivo era mapear que tipo de uso havia sido dado a trechos em que a vegetação natural fora suprimida. A partir da localização e extensão do desmatamento flagrado pelo sistema Prodes, equipes das duas entidades usavam técnicas de sensoriamento remoto para averiguar se a floresta tinha cedido espaço para culturas agrícolas, pastagens ou, algo bem mais raro, áreas urbanas e outras formas de ocupação. A iniciativa produziu radiografias sobre a Amazônia Legal referentes a cinco anos (2004, 2008, 2010, 2012 e 2014). Por falta de verbas e pessoal, o TerraClass parou de fazer o levantamento nos últi-


FOTO JOÃO LAET / AFP VIA GETTY IMAGES INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP SOBRE IMAGEM TERRACLASS

São Luís

mos anos. Mas agora está de volta. Uma nova versão do projeto, financiada pelo Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), do Ministério da Defesa, disponibilizou recentemente no ar os dados de uso da terra em 2020. Houve mudanças na metodologia. Por isso, não foi possível ainda comparar as informações de 2020 com as das edições passadas. Em sua abordagem inicial, o TerraClass processava e analisava dados referentes à Amazônia Legal. Essa região abrange cerca de 5 milhões de quilômetros quadrados (km2) e engloba toda a floresta amazônica e partes do Cerrado e Pantanal. Agora a iniciativa passou a gerar informações específicas sobre o bioma Amazônia, que tem cerca de 800 mil km2 a menos do que a Amazônia Legal. Entre outros motivos, a alteração é motivada pela existência desde 2018 de um TerraClass para o bioma Cerrado, uma das maiores fronteiras agropecuárias do país. Dessa forma, não há sobreposição e redundância de áreas cobertas pelas iniciativas que, agora, enfocam os dois maiores ecossistemas brasileiros, onde se situa mais de 70% do território nacional. “Estamos terminando de fazer a migração dos antigos TerraClass para esse novo formato”, comenta o agrônomo Júlio César Dalla Mora Esquerdo, da Embrapa Agricultura Digital, de Campinas, um dos coordenadores do projeto. “Também devemos disponibilizar em breve os dados de 2022.” A meta inclui também voltar ao passado e disponibilizar edições do mapeamento de uso e

cobertura da terra referentes aos anos de 2016 e 2018, período em que o TerraClass Amazônia deixou de ser feito. Com apoio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi criado ainda o TerraClass Brasil para mapear o uso da terra em todos os biomas nacionais. “Conhecer a dinâmica territorial nacional vai potencializar a sinergia entre as políticas de desenvolvimento econômico, social e ambiental”, diz o pesquisador Alexandre Coutinho, da Embrapa Agricultura Digital. Segundo os dados de 2020, 72,8% do bioma Amazônia eram ocupados por florestas nativas e 3,7% por secundárias – áreas desmatadas abandonadas em processo de regeneração. A porção desflorestada chegava a 17,6% e era quase toda tomada pela criação de gado e culturas agrícolas. Pastagens e lavouras de soja, divididas com milho ou algodão, tomavam cerca de 14% da superfície da Amazônia. As pastagens abrangiam quase nove vezes mais terras do que as plantações. Áreas classificadas como de não floresta – compostas majoritariamente por vegetação não arbórea, em menor escala, por trechos urbanizados – representavam 6,7% do bioma. Os rios e corpos d’água abrangiam 2,7% do território amazônico. Ainda em 2020, o TerraClass apontava que 0,2% da área da Amazônia, algo em torno dos 10 mil km2 de florestas, tinha sido suprimida naquele ano. “No momento em que ocorre o desmatamento, não sabemos para que fim será destinada a terra”, comenta o agrônomo Júlio César Dalla Mora Esquerdo, outro 2

Bois em frente à área de floresta degradada incendiada em Novo Progresso, no Pará, em agosto de 2019

pesquisador da Embrapa Agricultura Digital envolvido no projeto. “Por isso, não temos como definir como é o uso imediato dessa terra.”

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s números do TerraClass 2020 são similares aos apresentados pelo mais recente levantamento do MapBiomas, iniciativa do Observatório do Clima, organização não governamental (ONG) que reúne universidades, empresas de tecnologia e entidades da sociedade civil brasileira. De acordo com esse mapeamento, 15,5% do território do bioma Amazônia em 2022 era ocupado por atividades agropecuárias, aproximadamente 650 mil km2. Desde 1988, a área ocupada por pastagens e cultivos agrícolas aumentou 4,6 vezes. Um estudo de pesquisadores do Inpe, publicado em 2020 na revista Acta Amazônica, comparou versões antigas dos mapeamentos de uso e cobertura da terra no bioma Amazônia feitos pelo TerraClass e MapBiomas. A conclusão central do trabalho foi que, apesar das diferenças metodológicas, a concordância dos resultados de ambas as iniciativas ficou entre 87,4% e 92%. INICIATIVA AMAZÔNIA+10

O uso da terra é um dos grandes temas de interesse da Iniciativa Amazônia+10, ao lado de questões ligadas à biodiversidade, mudanças climáticas, bioeconomia, biotecnologia e melhoria das condições de vida da população amazônica. Lançado em julho do ano passado, o programa é coordenado pelo Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) e pelo Conselho Nacional de Secretários para Assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação (Consecti), e conta também com a parceria do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No final do ano passado, foram selecionadas 39 propostas de 18 estados e do Distrito Federal pela iniciativa. As Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAP) destinaram R$ 41,9 milhões aos projetos escolhidos no primeiro edital do programa. Em novembro deste ano, foi lançado o segundo edital da Amazônia+10, com orçamento previsto de R$ 59,2 milhões e foco no financiamento a expedições científicas à região. n PESQUISA FAPESP 334 | 21


ZOOLOGIA

AMAZÔNIA, TERRA DE SERPENTES (MANSAS?) Guia ilustrado lançado no Instituto Butantan permite reconhecer e traz informações sobre 160 espécies habitantes do bioma Maria Guimarães

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e for andar pela floresta amazônica, a cautela manda usar botas, perneiras por cima das calças e não pôr a mão em nenhum lugar sem antes olhar se é seguro. O cuidado se justifica, já que um acidente com animal peçonhento – sobretudo serpentes – pode significar uma operação complexa de socorro, se for um local distante de atendimento médico. A Amazônia abriga a maior diversidade de serpentes do Brasil, mas chega com alguma surpresa a informação de que a maior parte das espécies não oferece risco a seres humanos. É apenas um entre os fatos apresentados no guia ilustrado Serpentes da Amazônia (Ponto A, 2023), recém-lançado por um quarteto de pesquisadores entendidos nesse grupo animal: Otavio Marques, do Instituto Butantan, André Eterovic, da Universidade Federal do ABC (UFABC), Marcio Martins, da Universidade de São Paulo (USP) e

A caninana (Spilotes sulphureus) é diurna, não tem dentes injetores de veneno e vive no chão e nas árvores 1

Ivan Sazima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Marcio Martins tem grande expe­ riência na Amazônia, onde trabalhou na reserva Ducke, na região de Manaus”, conta Marques, ressaltando que o colega também é excelente fotógrafo – atributo essencial para a confecção de um guia visual. “Sazima também tem muitas imagens de serpentes de uma diversidade de lugares”, completa. Mesmo assim, depois da revisão bibliográfica que definiu as espécies conhecidas, que deveriam compor o livro, foi necessário sair em busca de registros fotográficos das mais discretas e das habitantes de outros estados amazônicos. Por falta de imagem, 16 delas precisaram ficar de fora. Depois de informações gerais sobre a Amazônia e sobre serpentes, o guia traz, em cada página, a fotografia com nome científico e popular, a família e ícones que revelam detalhes ecológicos e biológicos. As mais perigosas com relação


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FOTOS 1 LAURIE VITT / SAM NOBLE MUSEUM 2 OTAVIO MARQUES / BUTANTAN 3 E 4 IVAN SAZIMA / UNICAMP

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ao potencial de acidentes são marcadas com uma caveira e ossos cruzados em cor vermelha, para não deixar dúvidas. Ao fim, há mapas de distribuição para as 160 espécies incluídas – cerca de 98% do total conhecido para o bioma. Marques explica que muitas das espécies só existem na Amazônia, mas têm uma distribuição ampla nessa floresta – o que faz o risco de extinção não ser um problema recorrente, como é o caso na Mata Atlântica, onde a ocorrência muitas vezes é restrita a locais que podem facilmente ser destruídos. Mesmo assim, há um caso marcante: a coral-falsa Anilius scytale, única espécie da família Aniilidae, só existe nessa região (embora em todos os estados amazônicos). “Se ela desaparecesse, toda uma família deixaria de existir”, reflete o herpetólogo. Além dessa singularidade taxonômica, o animal, com bandas pretas e vermelhas alternadas, ainda detém o trunfo de ser o mais parecido com o ancestral de todas

A azulão-boia (Leptophis ahaetulla) mostra a boca escura e uma jovem periquitamboia (Corallus caninus) descansa na árvore

as serpentes. Nos ícones que acompanham seu retrato, aprendemos que ela é noturna, a probabilidade de avistá-la é média, assim como seu tamanho; não tem dente injetor de veneno; dá à luz filhotes sem o invólucro de ovos; vive na água e debaixo do folhiço ou na terra; se alimenta de serpentes; e, quando ameaçada, faz movimentos erráticos, esconde a cabeça, enrola a cauda e libera fezes e outras substâncias repulsivas pela cloaca. Conseguir as informações para os ícones não é sempre tarefa fácil, mesmo com extensa busca em artigos científicos. “Contamos com a experiência dos autores e com relatos de outras pessoas”, conta Marques. Eles incluem, por isso, informações novas, que não estão publicadas em outros lugares. O pesquisador, que já é coautor de guias semelhantes para a Mata Atlântica, o Pantanal, o Cerrado e a Caatinga, afirma que o volume mais recente já sai desatualizado por espécies descritas

A coral-falsa (Anilius scytale) é a mais parecida com o ancestral de todas as serpentes

depois de concluído o guia. O da Mata Atlântica, aliás, foi publicado em 2001 e mais recentemente, em 2019, ganhou edição atualizada e ampliada. Fica faltando cobrir as serpentes dos campos sulinos, menos diversas. Os guias podem ser usados por qual­ quer pessoa interessada em reconhecer serpentes e aprender mais sobre elas. O físico Ricardo Galvão, da USP e atual­ mente presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), conta no prefácio ao guia amazônico como aprendeu com o avô, aos 7 anos, a importância ecológica das serpentes e também a necessidade de enviá-las vivas ao Instituto Butantan para produção de soro antiofídico. Por isso, em seu sítio no interior paulista ele mantém uma caixa e um laço de captura especializado, para esse efeito. Tem também, junto à mesa de trabalho, o guia Serpentes da Mata Atlântica. “[…] sempre que tenho oportunidade, mostro ao trabalhador que está prestando serviço as fotos e explicações sobre as serpentes de maior ocorrência na área, procurando incentivá-lo a capturá-las ao invés de matá-las”, escreve, confessando sucesso relativo. O livro será lançado no Butantan em 7/12, a partir das 18h, em uma pro­gra­ mação que envolve apresentação por Marcio Martins, sessão de autógrafos, coquetel, tour pelo acervo e serpentário, com possibilidade de tocar em uma cobra em carne e osso. n Os projetos e o livro consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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ECOLOGIA

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Formados por 104 montanhas com 4 mil metros (m) de altitude média e 8 mil quilômetros (km) de extensão, do norte da Colômbia ao sul da Argentina, os Andes ainda regem o funcionamento e a biodiversidade da maior parte da bacia amazônica de dois modos distintos. As nascentes na cordilheira e sua contínua erosão fornecem água e sedimentos (terra e areia) que alimentam os rios a oeste da Amazônia. O menor volume de água que chega das montanhas pode ter contribuído para a intensa seca deste ano na região, geralmente atribuída apenas à redução de chuvas decorrente do El Niño. De acordo com um estudo de pesquisadores do Peru e do Brasil publicado em abril de 2022 na Remote Sensing, em resposta ao aquecimento

FOTO WATER LOO / WIKIMEDIA COMMONS

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m 2017, o geólogo Roberto Ventura Santos, da Universidade de Brasília (UnB), e sua equipe passaram quatro dias em uma piscina de plástico, montada em um hotel em Puerto Maldonado, cidade com 40 mil moradores a leste do Peru. Com a ajuda dos funcionários do hotel, eles esvaziavam na piscina os sacos de terra coletada de até 80 metros (m) de profundidade às margens do rio Huallaga, um dos formadores do Amazonas. Em seguida, enchiam grandes peneiras com os sedimentos que flutuavam e separavam os que pudessem conter um mineral marrom e muito resistente, o zircão. Nas semanas seguintes, nos equipamentos dos laboratórios da UnB, registraram a proporção entre os elementos químicos (principalmente urânio e chumbo) e definiram a idade e a origem das 46 amostras do também chamado silicato de zircônio. Desse modo, eles ampliaram para 65 milhões de anos o conhecimento sobre a história geológica e ambiental da Amazônia – até então os estudos minuciosos como esse chegavam a até 20 milhões de anos atrás – e contribuíram para detalhar os mecanismos de geração da riqueza biológica da Amazônia, estimada em 40 mil espécies de plantas, 2,5 mil de peixes e 425 de mamíferos. Em um artigo publicado em abril na Journal of South American Earth Sciences, o grupo de Santos reforçou a importância da cordilheira dos Andes na formação das estruturas geológicas da Amazônia, que por sua vez determinaram sua riqueza biológica, e acrescentou uma variável nova: a água do mar, com os organismos que carrega, pode ter vindo também do sul e não apenas do norte, como já se sabia, e deve ter ocorrido milhões de anos depois. A datação do zircão indicou que, há cerca de 60 milhões de anos, quando a cordilheira dos Andes apenas começava a subir, água e organismos do Atlântico Sul, por meio do rio da Prata, podem ter chegado a terras hoje cobertas por floresta na região de Madre de Dios, no Peru, próxima à divisa com Rondônia. Segundo Santos, polens encontrados em meio aos sedimentos desenterrados no Peru reforçam a origem comum da Amazônia e do Pantanal, que também teria se formado como resultado da elevação dos Andes. Uma das espécies identificadas por meio do pólen é da família das araucárias, plantas hoje típicas do clima frio do Sul do país.


AS RAÍZES DA BIODIVERSIDADE DA AMAZÔNIA Ao inverter o sentido dos rios,

moldar a superfície e barrar a umidade do Atlântico, os Andes fizeram da floresta um refúgio e berçário de novas espécies de plantas e animais Carlos Fioravanti

Rio Marañón, um dos formadores do Amazonas, nos Andes peruanos

global, a área das geleiras do norte dos Andes sofreu uma redução de 2.429 km2 para 1.409 km2 (42%) de 1990 a 2020, assim fornecendo menos água para os rios. “Ainda hoje cerca de 80% dos sedimentos levados pelos rios da Amazônia até o mar vêm dos Andes”, diz o geólogo Maurício Parra, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP), também autor de estudos nessa área. “Ao longo de 60 milhões de anos, os sedimentos que vieram dos Andes formaram camadas com espessuras decrescentes, de 2 km de profundidade a oeste da Amazônia e 800 m na ilha de Marajó, a leste.” Além disso, os Andes influenciam o clima na região ao barrar a umidade que vem do Atlân-

tico e volta sobre a floresta, aumentando a quantidade de chuva. “O clima em Lima, no Peru, é muito seco, porque a massa de ar úmido não chega até lá”, comenta Santos. UM IMENSO PANTANAL

“O soerguimento dos Andes não foi contínuo, mas por pulsos”, observa a geóloga Michele Andriolli Custódio, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Segundo a pesquisadora, as montanhas reorganizavam a paisagem à medida que cresciam. Ao levantarem um dos lados dos terrenos inundados pela água que vinha do mar do Caribe, forçaram os rios que ainda desaguavam aos pés dos Andes a correrem para leste, na direção do Atlântico. A inversão do sentido dos rios, por PESQUISA FAPESP 334 | 25


sua vez, uniu áreas e populações que antes viviam isoladas ou, inversamente, separou as que viviam juntas, criando-se assim condições para a formação de novas espécies de plantas e animais. “Como a rede de drenagem atual só foi estabelecida entre 10 milhões e 9 milhões de anos, a maior parte do tempo os rios corriam para oeste, o sentido inverso do que conhecemos hoje”, comenta o biólogo Carlos D’Apolito, da Universidade Federal do Acre (Ufac), coautor de um estudo sobre as antigas redes de drenagens na região publicado em julho na Sedimentary Geology. “Os Andes geraram um grande espaço rebaixado a oeste da Amazônia, que virou um pantanal de dimensões continentais, provavelmente com lagos gigantes”, diz ele. “Ali viviam jacarés, tartarugas e peixes, todos enormes. Entre as plantas, os buritizais eram certamente os mais comuns, porque crescem em áreas alagadas, o que não faltava entre cerca de 20 milhões e 7 milhões de anos.” Fósseis de conchas marinhas ainda hoje encontrados às margens do rio Solimões e de seus afluentes testemunham a ocupação do mar, que recuou e hoje está a mais de mil km dali (ver Pesquisa FAPESP nº 329). Os botos-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), os peixes-boi (Tricherchus inunguis) e as arraias (Potamotrygon spp.), que ainda vivem nos rios da região, reforçam a ideia de que o interior da floresta já foi coberto por água salgada. Antigas populações dessas espécies podem ter sido aprisionadas com o fechamento das conexões com o mar. Ao longo de gerações, adaptaram-se ao novo ambiente e se diferenciaram dos parentes marinhos.

“Grande parte das espécies de plantas e animais que vivem na Amazônia hoje surgiu nos últimos 5 milhões de anos, apesar de estarem inseridas em famílias muito antigas, que já estavam na Amazônia há cerca de 60 milhões de anos”, comenta a botânica Lúcia Lohmann, da USP e da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. Segundo a pesquisadora, as respostas das plantas às mudanças ambientais indicam que a Amazônia é tanto um refúgio quanto um berçário de biodiversidade.

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m 2016, Lohmann coordenou a coleta de 10 espécies de plantas que cresciam às margens dos rios Negro e Branco, ao norte de Manaus. As análises genéticas mostraram que os rios podem ter efeitos diferentes sobre a formação de novas espécies, a chamada especiação: o Negro, por ser mais antigo e largo, favoreceu a diferenciação genética de espécies que cresciam em suas margens, enquanto o Branco, mais jovem e estreito, não apresentou um impacto relevante na diferenciação das espécies de plantas examinadas, embora possa ter favorecido a diversificação de populações de aves e primatas. Não há regras simples. Os rios como barreiras e a variação de altitude ou de temperatura podem favorecer a formação de novas espécies para alguns grupos de plantas e animais, mas não para outros. “Os mesmos fatores podem desencadear processos evolutivos diferentes, impactando a história biogeográfica e de diversificação de organismos amazônicos de formas variadas”, diz ela.

Polens encontrados em sedimentos que retratam as mudanças de vegetação (sentido horário): Crototricolpites annemariae, Grimsdalea magnaclavata, Malvacipolloides, Rhoipites irregularis

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Os botos-cor-de-rosa indicam que a água do mar já ocupou o interior da Amazônia 26 | DEZEMBRO DE 2023


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FOTOS 1 HOORN, C. ET AL. ANNUAL REVIEW OF EARTH AND PLANETARY SCIENCES. 2023 2 CRISTIAN DIMITRIUS / INPA 3 IPPBIO.INPA.GOV.BR

Uma análise de polens e de genes de plantas mostrou as relações profundas entre geologia e biodiversidade, refletida nas formas da floresta, que se apresentava ora mais fechada, ora mais aberta, ao longo dos últimos 23 milhões de anos. “Os períodos de maior soerguimento dos Andes corresponderam aos de maior diversificação para vários grupos de plantas”, comenta Lohmann, uma das coordenadoras de uma síntese sobre a história de formação da vegetação amazônica ao longo desse período, publicado em maio na Annual Review of Earth and Planetary Sciences.

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e acordo com esse trabalho, uma floresta contínua que ocupava quase toda a América do Sul foi dividida há cerca de 30 milhões de anos por uma área de clima seco, formando a oeste o que seria a Amazônia e a leste a Mata Atlântica. Em seguida ocorreram mudanças na estrutura e composição da floresta. Por exemplo: entre 23 milhões e 16 milhões de anos atrás a Amazônia abrigava uma ampla diversidade de formas de vegetação, desde manguezais até florestas de terra firme, em um ambiente estuarino, no qual a água do mar e a dos rios se misturavam. Os polens encontrados nos sedimentos às margens dos rios indicam que pelo menos 48 famílias de plantas já viviam na Amazônia nesse momento. O número de famílias cresceu para 79 entre 16 milhões e 12 milhões de anos atrás; depois caiu para 25 entre 12 milhões e 6 milhões, resultando em uma floresta aberta, que voltou a expandir-se entre 5 milhões e 2 milhões de anos atrás, levando a 117 famílias. “Ao longo de milhares de anos, a vegetação da Amazônia se adaptou a mudanças geoclimáticas muito maiores do que imaginávamos. Talvez seja por isso que tantas espécies de lá que chegaram ao Cerrado, à Mata Atlântica e

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Buritis às margens do rio Juruá, no Acre: uma das linhagens de plantas preservadas ao longo de milhões de anos

às florestas da América Central conseguiram sobreviver em ambientes tão diversos”, diz ela. “A história da vegetação amazônica nos ensina como espécies se adaptaram a mudanças climáticas numa escala de milhões de anos, uma informação crucial nos dias de hoje.” Mas nem tudo está bem. Em um artigo de janeiro de 2023 na Science, Lohmann e outros pesquisadores do Brasil, dos Estados Unidos e de outros países examinaram o impacto de 11 tipos de mudanças de origem humana, como a expansão urbana e agrícola, e 21 naturais, como a elevação dos Andes e o afastamento da América do Sul e da África. De acordo com essa análise, as mudanças de origem humana estão ocorrendo mais rapidamente do que a capacidade de as plantas se adaptarem aos novos ambientes. Se não for detida, essa desproporção pode levar, entre outros efeitos, à redução da quantidade de chuva que abastece as áreas agrícolas do Centro-Oeste e Sudeste do Brasil. n Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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ETOLOGIA

NA CIDADE, GRITAR NÃO BASTA Sauim-de-coleira, em Manaus, usa cheiro para

complementar comunicação vocal, e bugio gaúcho acrescenta churrasco à dieta vegetariana

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o meio do burburinho urbano, com ruídos como o do tráfego constante de carros, crianças ensaiando músicas de Natal na escola e instruções de manobras militares aos brados em um quartel, pequenos macacos manauaras tentam se comunicar. São os sauins-de-coleira (Saguinus bicolor), que existem apenas na região de Manaus, no Amazonas, e disparam gritos finos para afirmar sua presença. “Nossa hipótese era de que eles trocariam de modal de comunicação nas áreas mais ruidosas”, diz a bióloga Tainara Sobroza, professora substituta na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Durante o doutorado, realizado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), ela foi atrás de grupos desses sauins em trechos de mata urbana para verificar se eles deixariam os gritos de lado em prol de um tipo de comunicação que competisse menos com a cidade. Descobriu que eles mantêm as vocalizações. Mas passam a recorrer com mais frequência à comunicação química, deixando sinais de cheiro nas árvores. “Eles têm glândulas nas regiões genital, perianal e do esterno, e se esfregam nas árvores para deixar um sinal”, conta ela, que publicou os resultados em setembro na revista Ethology Ecology & Evolution. Foram nove grupos estudados, em fragmentos de floresta com áreas entre 24 hectares (ha) e 730 ha. Este último, 28 | DEZEMBRO DE 2023

no campus da Ufam, “na Mata Atlântica seria considerada floresta contínua”, compara Sobroza. Na Amazônia, é parte da área urbana. É difícil enxergar com exatidão o que fazem lá no alto das árvores esses primatas que pesam no máximo 600 gramas, com porte de esquilos e que vivem em grupos matriarcais de até 13 indivíduos. “Só uma fêmea se reproduz e todos do grupo ajudam a cuidar dos filhotes, em geral um par de gêmeos a cada vez”, conta a pesquisadora, que munida de binóculos conseguia ver quando um deles esfregava a parte de trás do corpo em algum galho ou gritava. Quanto mais barulhento o local, mais frequente o comportamento. As observações aconteceram ao longo de um ano, no qual cada grupo era seguido por 10 dias consecutivos, das 6h às 17h. Para encontrá-los, era preciso um processo de habituação prévio até que fosse possível capturá-los em armadilhas instaladas nas árvores, caixas gradeadas que não causam danos aos animais. “Esse processo levava até quatro meses, por isso só conseguimos acompanhar nove grupos”, conta Sobroza. A captura era necessária para instalar coleiras com transmissor de sinal de rádio, sem as quais era improvável encontrar o mesmo grupo no dia seguinte. Uma interpretação da comunicação complementar por canais alternativos – ou multimodal, no jargão especializado – é de que serviria para chamar a atenção. “Os sauins percebem mais facilmente a

vocalização quando sentem o cheiro”, propõe a bióloga. Segundo ela, esse tipo de estudo não tinha sido feito em macacos de vida livre na natureza, pelas dificuldades de observação. Um exemplo semelhante seria a rãzinha-das-corredeiras: quando machos fazem um gesto com os dedos em acréscimo à comunicação vocal, é um forte chamado à briga. O primatólogo Júlio César Bicca-Marques, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), não se lembra de estudos semelhantes sobre comunicação na natureza. Esse tipo de comportamento não é seu foco de pesquisa, mas seu grupo tem estudado outros aspectos de macacos em contexto urbano, e alguns anos atrás ele fez uma revisão para um verbete no livro The international encyclopedia of primatology (John Wiley and Sons, 2017). “Nem todos os primatas se adaptam bem a meios urbanos”, avalia, “por isso não é um tema facilmente abordável em alguns lugares”. Um dos efeitos da urbanização relatados no levantamento é os macacos perderem informações cruciais sobre seu meio natural, como macacos indianos (Macaca radiata), que vivem na cidade e não reconhecem os sons emitidos por predadores. BUGIOS SULINOS

Mas o efeito mais marcante da adaptação às cidades é a mudança na disponibilidade alimentar, que pode causar mudanças no padrão de movimentação dos animais que deixam de buscar suas fontes habi-

FOTO GUMMYBONE / GETTY IMAGES

Maria Guimarães


Pequeno macaco amazônico precisa se adaptar aos ruídos urbanos

tuais de nutrição. A interação com seres humanos por alimento pode fazer com que algumas espécies de macacos sejam consideradas pragas em cidades. Essa interação também pode ameaçar a saúde dos animais. Em São Francisco de Assis, uma cidade pequena do interior gaúcho, a estudante de mestrado Isadora Alves de Lima, da PUC-RS, observou recentemente bugios (Alouatta caraya) recebendo restos de churrasco de funcionários e clientes de restaurantes, conforme artigo publicado em outubro na revista Primates. É surpreendente porque essa espécie sabidamente se alimenta de folhas e frutos. “Já havíamos observado bugios comendo ovos e recebido relatos do consumo de passarinhos, mas nada próximo de carne assada”, relata o primatólogo. Seu grupo colheu amostras de fezes para investigar como essa mudança de dieta afeta a microbiota – bactérias do trato intestinal, responsáveis por parte da digestão. Um objetivo futuro é avaliar os efeitos dessa dieta alterada na saúde dos animais. Sobre vocalizações, nesse tipo de ambiente Bicca-Marques relata ter ouvido menos roncos, os chamados dos bugios que atingem extensas distâncias. “Quando um grupo único vive em uma praça, não faz tanto sentido gastar energia com vocalizações territoriais”, interpreta. Na revisão para a enciclopédia de primatologia, ele destacou o potencial dessas populações urbanas de proporcionar experiências de observação de macacos como forma de promover a conectividade das pessoas com a natureza e o respeito pela vida selvagem. É o caso do sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata), que virou símbolo ecológico da cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais) em 1992, e do próprio sauim-de-coleira, considerado mascote da cidade de Manaus desde 2015. “Apesar de todos os esforços dos cientistas e conservacionistas, pouco (se algo) mudou em prol do sauim-de-coleira desde então”, lamenta no texto. n Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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30 | DEZEMBRO DE 2023


ENTREVISTA Ima Vieira

RESTAURAR A FLORESTA COM JUSTIÇA Ecóloga paraense diz que grande parte das áreas desmatadas da Amazônia se regenera sozinha, mas que a conta da recuperação deve ser paga por quem destruiu a floresta Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta

IDADE 63 anos ESPECIALIDADE Ecologia florestal INSTITUIÇÃO Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) FORMAÇÃO Graduação em agronomia na Universidade Federal Rural da Amazônia (1980-1983), mestrado em genética e melhoramento de plantas na Universidade de São Paulo (1984-1987), doutorado em ecologia na Universidade de Stirling, Reino Unido, (1992-1996)

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RETRATO Vicente de Mello

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uando vai a uma reserva extrativista da região de Santarém, no Pará, a ecóloga Ima Célia Guimarães Vieira conversa com os moradores das comunidades de etnia Tupinambá para, em conjunto, encontrarem formas de restaurar áreas de florestas degradadas por incêndios. Ela oferece sugestões e ouve, embora tenha muito a contar, já que começou a estudar os mecanismos de recuperação da vegetação nativa há quase 40 anos. Com seus estudos, mostrou que muitas vezes é possível apenas deixar a mata se recuperar sozinha, ainda que em outras, quando o uso da terra foi intenso, seja necessário plantar espécies nativas para acelerar a recuperação das áreas degradadas. Paraense nascida em Belém, cresceu entre as cidades, os campos e as florestas da ilha de Marajó, onde passava temporadas ao lado dos pais, ambos juízes, e dos cinco irmãos. Divorciada, tem dois filhos: Murilo, 29 anos, historiador e produtor musical, e Tomás, 26, baterista e estudante de música na Universidade do Estado do Pará. A nova geração herdou o pendor musical da família. Sua avó tocava quatro instrumentos, a irmã é cantora lírica e diretora de ópera, o irmão é violonista e professor universitário. A toada de Vieira é outra, mas sempre em um tom firme e sereno. Seu conhecimento e sua habilidade como conciliadora a levaram em 2019 ao Vaticano, para ajudar 185 bispos a aprimorar suas visões sobre a maior floresta tropical do planeta e, desde o início deste ano, ao Rio de Janeiro, para assessorar a presidência da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Mas ela também tem opiniões fortes sobre as possibilidades de ocupação da Amazônia, expressas na entrevista a seguir, concedida por plataforma de vídeo, dias antes de ela viajar de Belém para outras reuniões na sede da Finep. PESQUISA FAPESP 334 | 31


Que forças regem o desmatamento na Amazônia? A Amazônia é um território em disputa. De um lado, você tem um modelo socioambiental, que se fortaleceu a partir da conferência Eco92 e defende a conservação e manejo da floresta e, de outro, um modelo desenvolvimentista, que lança mão inclusive de recursos ilegais para converter a floresta em áreas economicamente produtivas. O modelo desenvolvimentista, que tem predominado, levou a essa situação de altas taxas de desmatamento, com o apoio do Estado brasileiro, por meio de crédito e incentivo à expansão da agropecuária em larga escala. Um colega antropólogo aqui do Goeldi, Roberto Araújo (ver Pesquisa FAPESP no 309), lançou o conceito de pós-ambientalismo, que procura tornar o modelo desenvolvimentista mais verde, mais amigável, com as certificações ambientais e a mercantilização do carbono. Outro colega, o economista Francisco Costa, da Universidade Federal do Pará (ver Pesquisa FAPESP no 277), argumenta, com dados muito profundos, que a intensidade do desmatamento varia de acordo com a maior ou menor procura por terras para usar como pastagens ou agricultura. Quando a gente vê florestas públicas sendo queimadas e destruídas, não é à toa. É para colocar essas áreas no mercado de terra, porque vem depois a possibilidade de que sejam regularizadas e aproveitadas para a produção de commodities. As políticas públicas para a Amazônia retratam esses interesses conflituosos. A infraestrutura e o apoio ao desenvolvimento econômico estão ligados ao agronegócio e à mineração. Essas abordagens de bioeconomia, restauração florestal e créditos de carbono não atendem diretamente às necessidades das populações tradicionais, que ocupam 40% da Amazônia e não só conservam, mas manejam a floresta secularmente. A restauração não é um grande problema para essas populações porque usam áreas pequenas. Estamos buscando soluções para problemas causados por aqueles que destruíram a Amazônia, o que nos leva ao que eu chamo de justiça da restauração. Não me parece justo que os mesmos grupos que receberam recursos públicos para destruir a floresta agora recebam mais para desfazer os estragos que fizeram. O próprio agronegócio tem de arcar com a restauração, sem dinheiro público. 32 | DEZEMBRO DE 2023

As grandes pastagens e as plantações não deveriam ter espaço na Amazônia? Não deveriam ter sido privilegiadas nas políticas públicas de desenvolvimento regional e agora não deveriam ter mais espaço, porque já temos 20% de áreas abertas na Amazônia. Não precisa desmatar mais nada. O problema, como diz o Gilberto Câmara, do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], é que os agropecuaristas produzem muito pouco nas áreas que desmataram. Nesse contexto é que em 2005 propusemos a meta de desmatamento zero, que o presidente Lula defende hoje. Eu, José Maria Cardoso, zoólogo paraense, professor da Universidade de Miami, e Peter Mann de Toledo, ex-diretor do Goeldi, apresentamos essa ideia em um artigo na revista Estudos Avançados. Na época a Amazônia estava com taxas de desmatamento anual superiores a 20 mil quilômetros quadrados. O avanço da agropecuária e da agricultura de larga escala nas florestas amazônicas não é mais admissível, porque as áreas já abertas são ou deveriam ser capazes de atender à necessidade humana de alimentação. Grande parte dessa área aberta, cerca de 65%, é ocupada pela agropecuária, incluindo os pastos limpos e os degradados, e cerca de 30% é

Grandes pastagens e plantações não deveriam ter mais espaço, porque já temos 20% de áreas abertas na Amazônia

área abandonada, sem uso agrícola, com parte já degradada. Sem uma boa governança sobre os usos da terra na Amazônia, as agendas do clima e da transição energética dificilmente avançarão e, pior, podem causar outros problemas e injustiças. Os grandes projetos implantados na Amazônia foram pensados fora da região e poucos têm sido discutidos com os amazônidas. Todos deveriam ter uma governança forte, para não dar mais recursos públicos para quem destruiu a floresta e quer agora plantar árvores para absorver carbono. O modelo socioambiental deveria ser valorizado, com apoio às comunidades da Amazônia. As populações tradicionais, indígenas e quilombolas, conservam hoje 198 milhões de hectares, e há outros 60 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas. Temos de garantir que essas florestas não sejam destruídas. A estimativa é de que 40% dessas florestas públicas já estejam degradadas. É preciso que essas áreas sejam logo destinadas para um uso florestal e assim saiam do mercado ilegal de terras. Existe uma receita de como se faz a restauração de áreas na Amazônia? Não existe receita, mas uma das principais estratégias é a de regeneração natural, porque cerca de 40% das áreas desmatadas da Amazônia têm potencial de regeneração de médio a alto. A regeneração natural é conhecida como método de restauração passiva e deve ser vista como prioridade em projetos de restauração de áreas degradadas na Amazônia, pois é capaz de recuperar até 80% da biodiversidade e do carbono, os processos ecológicos e os serviços ecossistêmicos. Onde houve um uso intensivo da terra, com muito fogo e forte mecanização, aí sim precisa entrar com a restauração ativa, ou seja, o plantio de espécies nativas. Conhece bons exemplos de restauração ativa? O governo do estado do Pará está formulando um plano de restauração florestal, e espero que, com isso, seja possível organizar ações e apoio a projetos e que esses possam ser monitorados. Já há várias empresas se instalando no estado com a finalidade de recuperar áreas degradadas. Isso é um pouco preocupante, na medida em que, se não houver diretrizes claras


tipo de tema que ele se interessaria. Ele é um dos maiores ecólogos tropicais do mundo e nessa época, fim dos anos 1980, era pesquisador visitante da Embrapa. Escrevi e ele respondeu prontamente, dizendo que eu poderia visitar o projeto e me associar ao grupo. Quando voltei para o Pará, parei em Paragominas, conheci o trabalho dele e percebi que era uma ótima oportunidade de desenvolver meu projeto. Iniciei meus levantamentos, mas ficava de olho no que eles estavam fazendo, que me parecia muito interessante.

Ao lado de Carlos Silva, do Goeldi, e morador de reserva extrativista, Vieira mede árvores em parcelas da floresta

FOTO ARQUIVO PESSOAL

do governo e um bom acompanhamento, podem trazer para a Amazônia espécies ou mudas de outros estados. As políticas públicas de restauração têm de ser muito bem conduzidas para não trazer mais problemas do que soluções. A meu ver, devemos valorizar a regeneração natural para a recomposição da vegetação nativa de propriedades com passivo ambiental, como permite o Código Florestal. Se o agricultor tiver um passivo ambiental na propriedade, pode optar por essa alternativa em seu plano de regularização ambiental. E é uma solução de baixo custo. Simplesmente se deixa a terra se recuperar sem a intervenção direta do homem e, em alguns casos, podem-se adotar ações de manejo que induzam o processo de regeneração natural. Como está seu trabalho de restauração florestal com as comunidades de Santarém? Está caminhando bem, mas os incêndios florestais frequentes nos assustam. Na região do Baixo Tapajós, perto de Santarém, há duas grandes áreas protegidas, a Resex [reserva extrativista] Tapajós-Arapiuns e a Floresta Nacional do Tapajós. Vários contextos associados à expansão do fogo envolvem as populações tradicionais e as florestas, como o caso dessa Resex, que já está sendo atingida por megaincêndios. Com o Instituto Clima e Sociedade (ICS), estamos trabalhando

com indígenas da etnia Tupinambá na restauração das florestas degradadas na Resex. Unimos o conhecimento científico e o tradicional. O que vemos como um processo de competição ecológica eles veem como a invasão da tiririca e de outras espécies. É importante que eles se organizem e se empoderem para buscarmos novas ações, como o apoio para formar áreas de coleta de sementes nas aldeias. A gente nota que eles percebem as vulnerabilidades da floresta e que devem agir para evitar os incêndios e recuperar as áreas. Devemos voltar lá em dezembro. Quando você começou a pesquisar sobre restauração florestal? Há quase 40 anos. Assim que terminei o mestrado, mandei um projeto para o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], ganhei uma bolsa de desenvolvimento regional e o museu Goeldi me aceitou como bolsista. Meu objetivo era entender como as plantas invasoras se instalavam em pastagens abandonadas em Paragominas [leste do Pará] e compreender o que chamamos de processo de sucessão ecológica, que se refere à sequência de mudanças estruturais e funcionais que ocorrem nas comunidades após um distúrbio. Eu tinha bolsa, mas não os recursos para ir a campo. Um colega que trabalhava com o Chris [Christopher Uhl] disse que era o

E o que estavam fazendo? Eles desenvolviam experimentos para entender o processo de sucessão ecológica e os mecanismos de regeneração das plantas em pastos abandonados e as alterações causadas pelas perturbações antrópicas no comportamento de aves, morcegos e outros dispersores de sementes. Com a chegada do Daniel Nepstad [ecólogo norte-americano], os estudos se ampliaram e tornaram Paragominas um laboratório de pesquisas ecológicas. Acabei me envolvendo nesses projetos e produzi com o Chris e o Daniel um dos meus artigos mais citados, sobre o papel de uma dessas espécies invasoras na facilitação do processo de sucessão. Fui contratada como pesquisadora no Goeldi em 1988, um ano depois de chegar em Paragominas. Entrei no doutorado em 1992, já como servidora pública. As ideias sobre regeneração da floresta mudaram desde essa época? Até a década de 1980, havia apenas os estudos de pesquisadores do Goeldi e da Embrapa na Zona Bragantina, a leste de Belém, o primeiro polo de agricultura em áreas de terra firme na Amazônia, ainda no século XIX. Ali se desmatou muito, mas para formar colônias de agricultura de pequena escala, nada parecido com o que foi Paragominas e as outras frentes de ocupação. Os pesquisadores descreveram bem a vegetação espontânea, que aparecia depois que as áreas eram desmatadas, cultivadas e abandonadas, as capoeiras. Não se tinha o entendimento de que era um processo sucessional, com toda uma dinâmica regenerativa. Explique um pouco esse processo sucessional. O processo de sucessão, do ponto de vista teórico da ecologia, não é novo. Foi em PESQUISA FAPESP 334 | 33


1916 que o [botânico norte-americano Frederic] Clements [1874-1945] lançou uma teoria abrangente e lógica de sucessão, com mudanças de vegetação ocorrendo de modo ordenado e previsível em direção a uma condição de estabilidade, o clímax. Essa teoria dominou o campo científico até meados do século XX. A visão atual é de que a sucessão ocorre de modo probabilístico, podendo levar a estados de equilíbrio múltiplos. Essa visão é importante para a restauração, porque a sua prática é entendida como a manipulação dos processos de sucessão. Na Amazônia, o processo de sucessão ecológica só era estudado com intensidade pelo grupo do Chris Uhl em Paragominas. Os trabalhos dele a partir de 1984 foram os primeiros a mostrar que a Amazônia era resiliente, que conseguia se regenerar após desmatamento de larga escala, mas formava-se uma vegetação diferente da original. A intensidade do uso da terra e a distância da floresta da área modificada também influenciavam. Em Paragominas as fazendas eram muito grandes e as florestas iam ficando cada vez mais distantes do pasto que era abandonado após um ciclo de oito, 10 anos de produção. Os estudos evidenciaram que os pastos mais distantes da floresta tinham menos capacidade de regeneração, em comparação com os mais próximos, porque havia um fluxo mais baixo de dispersores de sementes, como aves e morcegos. Alguns jovens pesquisadores, como eu, José Maria Cardoso e outros, contribuíram para o entendimento mais amplo desse processo. Mais recentemente, equipes da Embrapa, do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia] e de várias universidades estudam a regeneração na Amazônia, não só para entender as mudanças nas trajetórias sucessionais após o desmatamento, mas também após os incêndios florestais de origem antrópica que se expandem na região. A floresta pode voltar a ser como era? Dificilmente. No meu doutorado examinei florestas secundárias iniciais, logo depois de abandonadas, e com três, cinco, 10, 20, 40 e 70 anos na Zona Bragantina, para entender o processo sucessional ao longo do tempo, e descobri que apenas 35% das espécies da floresta madura voltavam. Com estudos em outras áreas da Amazônia, o entendimento é de que depois de 20 anos há uma recuperação de 34 | DEZEMBRO DE 2023

cerca de 80% da diversidade de espécies de árvores, mas a composição de espécies será diferente. Outros grupos de plantas, diferentes dos da floresta primária, se estabelecem nessas áreas. Espécies da mata com sementes muito grandes, difíceis de dispersar, tendem a desaparecer das áreas antropizadas, enquanto as com sementes menores tendem a permanecer. As com capacidade de brotar logo depois do fogo e depois do corte também se tornam mais comuns nos ambientes que foram usados para pasto ou agricultura. Mas o potencial de regeneração natural em uma determinada área é diferente de outra. A recuperação da floresta depende, como Chris Uhl já evidenciara nos anos 1980, da intensidade do uso da terra. Quanto maior o uso de trator e do fogo, menor o potencial de regeneração e menor a diversidade de espécies a longo prazo. Como você vê a chamada bioeconomia da Amazônia? Temos de tomar muito cuidado com o termo bioeconomia, porque pode ser usado com interesses diversos, até mesmo, como já tem sido, pelo agronegócio. Me preocupa a ideia de que a Amazônia possa ter uma bioeconomia altamente tecnológica, como se propõe. A população da região, em geral com falta de perspec-

tivas em termos de educação e acesso à informação, não está preparada para receber uma abordagem muito tecnificada, sob o risco de, novamente, ficarem à margem dos processos produtivos ou de se tornarem, como diz uma amiga do ISA [Instituto Socioambiental], os proletários da floresta, em consequência de uma bioeconomia desassociada do bioma. Do ponto de vista econômico é importante garantir que as áreas desmatadas e ocupadas com a agropecuária sejam produtivas. Permitir que o agronegócio tenha ainda mais aporte tecnológico ou biotecnológico não é coerente com políticas públicas que procuram conservar a floresta e sua biodiversidade. Acho que a melhor abordagem de bioeconomia para a Amazônia é aquela associada à sociobiodiversidade, que valoriza os conhecimentos tradicionais, empodera as comunidades e produz junto com elas novas tecnologias de produção. Para isso, é preciso acelerar o reconhecimento do papel dessas populações em uma economia florestal e dar o apoio às instituições locais. Já existem bons exemplos nessa linha? Os melhores exemplos vêm das populações tradicionais, com seus conhecimentos e práticas no manejo da floresta. Os produtos que estão no mercado internacional, a castanha, o açaí, em parte o cacau, vêm da associação com as populações tradicionais. Elas produzem pelo menos 2 mil produtos florestais não madeireiros já catalogados na Amazônia. O que falta é a valorização e apoio para as associações e cooperativas, com políticas públicas que possam fortalecer a comercialização dos produtos da sociobiodiversidade. Com o açaí, o problema é que até os anos 1990 havia um processo de produção sustentável, com a participação das populações tradicionais. Com o boom do açaí, que hoje chega a 70 países, alguns produtores abandonaram as boas práticas e houve uma intensificação do manejo nas várzeas, as áreas com 200 a 400 touceiras por hectare passaram a ter até 2 mil, 3 mil touceiras por hectare. Isso levou à açaização da várzea, com perda de biodiversidade e desequilíbrios ecológicos.

Sem uma boa governança sobre os usos da terra, as agendas do clima e da transição energética dificilmente E o dendê na Amazônia, como avalia? Definitivamente não é uma cultura de avançarão baixo impacto. O dendezeiro é originário


da África e foi introduzido nos anos 1940 no Pará. A maior parte da produção é feita em grandes áreas, em monocultura, principalmente na região de Moju [norte do Pará]. O desmatamento para cultivar dendezeiro diminuiu, mas ainda existe em pequena escala. O maior problema é a desestruturação total da paisagem por conta das grandes áreas de monocultivo. As paisagens com dendezeiro têm poucos remanescentes de florestas e baixa conectividade entre os fragmentos. Os agricultores deveriam manter as reservas legais conectadas e pelo menos 40% da floresta nativa na paisagem, pois áreas com maiores coberturas de floresta devem conter diferentes condições ambientais e recursos capazes de manter alta diversidade de espécies. Isso deve garantir, inclusive, a sustentabilidade do ambiente agrícola, via polinização e controle de pragas, por exemplo. Como vê os efeitos das mudanças climáticas na Amazônia? Muito preocupante. Os pesquisadores do Inpe já mostraram que as secas na Amazônia estão se tornando mais prolongadas e mais intensas. As temperaturas mais elevadas, a baixa umidade, e os eventos intensos de secas estão associados ao desmatamento e ao uso da terra. Vimos os dramáticos efeitos dessas associações em 1995, depois em 2003, 2010, 2015, 2017 e agora em 2023. Nem o Brasil, nem a Amazônia, nem os municípios, nem as populações estão preparados para essas mudanças, com impactos grandes na vida das pessoas, dos animais e da vegetação. Falamos em savanização, mas não gosto do uso desse termo, pois é como se o Cerrado e as savanas fossem inferiores às florestas. Prefiro usar capoeirização, que é a transformação da floresta em uma vegetação empobrecida floristicamente e uma estrutura diferente da floresta madura. Estudos recentes mostram que os efeitos das mudanças climáticas estão afetando o crescimento e a mortalidade de espécies e alterando a composição das espécies arbóreas em parte da Amazônia. As descobertas destacam a necessidade do desmatamento zero e de manter grandes áreas de florestas intactas. Quais são suas atuais prioridades? Desde maio estou na assessoria da presidência da Finep e tenho mudado meu foco de atuação, que era exclusivamente de

Quanto maior o emprego de trator e do fogo, menor o potencial de regeneração e menor a diversidade de espécies

cientista. Recentemente, ajudei a preparar notas técnicas e policies briefs para apoiar a decisão de gestores em políticas ambientais. Com colegas da Embrapa, Inpe, Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais], Ipam [Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia] etc., tenho trabalhado para mostrar ao Ministério do Meio Ambiente [MMA] que a degradação florestal, que se expressa pelo empobrecimento progressivo da floresta causado por um ou mais distúrbios, como os incêndios, também deve ser combatida, junto com o desmatamento. Em março, apresentamos uma nota técnica ao MMA alertando para esse problema, associado às grandes queimadas e incêndios na Amazônia. No âmbito do Programa Simbiose/CNPq, tenho colaborado para colocar em evidência a regeneração natural como uma abordagem importante nos programas de regularização ambiental de propriedades rurais na Amazônia. Em outubro preparamos uma nota técnica e a lançamos em um evento em Belém, e espero que as secretarias de Meio Ambiente dos estados da Amazônia usem essa informação no monitoramen-

to dos projetos de recuperação de áreas degradadas no âmbito dos programas de regularização ambiental. Como assessora da presidência da Finep tenho também outras atividades. Quais são? Atuo como membro do Conselho de Administração do Centro de Bionegócios da Amazônia, o CBA, e participo das discussões e elaborações de programas na temática no âmbito da gerência regional da Finep em Belém. O presidente Celso Pansera me pediu para participar, ontem [8 de novembro], de uma reunião do Grupo de Trabalho sobre a Amazônia do Conselhão, o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, órgão de assessoramento direto do presidente Lula, e falei da importância da territorialização das ações de ciência e tecnologia na região. Outro integrante do grupo de trabalho, Ennio Candotti [diretor do Museu da Amazônia, em Manaus], mapeou mais de 300 instituições em quase 200 municípios da Amazônia, incluindo centros de pesquisa, unidades da Embrapa e da Fiocruz, universidades e institutos, e discutimos como integrar essa rede de instituições na agenda nacional de ciência e tecnologia. As conversas estão avançando? De certa forma, sim. Fortalecer um sistema regional de ciência, tecnologia e inovação não é fácil, porque nunca houve um programa de Estado para a Amazônia. Ainda existem muitos preconceitos e muito desconhecimento sobre a história, a cultura e a vida na região. Poucos sabem que a Amazônia só existe a partir de 1823, com a adesão do Pará às lutas da Independência, quando o Grão-Pará deixa de existir e dá origem ao Amazonas e ao Pará. Até então éramos um estado colonial português, como o estado do Brasil, os dois ligados a Lisboa. Só quando compreendemos os processos de incorporação e integração da Amazônia ao Brasil é que percebemos as consequências trágicas desses projetos, que até hoje têm produzido subdesenvolvimento e prejuízos ambientais e sociais por aqui. Mudar esse quadro é difícil, mas permanece aberta a possibilidade de formular estratégias capazes de impulsionar a ciência produzida na região, mas precisa de muito investimento. Minha luta é essa agora. n PESQUISA FAPESP 334 | 35


EPIDEMIOLOGIA

DOENÇAS NEGLIGENCIADAS NA MIRA Comitê interministerial busca reduzir

a carga de moléstias ligadas à pobreza para que deixem de ser problemas de saúde pública até 2030 Fabrício Marques

U

m colegiado com representantes de nove ministérios foi encarregado de uma missão fundamental: fazer com que 12 doenças infecciosas ligadas à pobreza deixem de ser um problema de saúde pública no Brasil ou que parem de ter transmissão entre mãe e filho. Para moléstias como tuberculose, hanseníase, hepatites e Aids, a meta é reduzir o número de casos. O prazo para realizar a tarefa se esgota no dia 1º de janeiro de 2030. Algumas das ambições do Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente (Ciedds) parecem utópicas, mas suas propostas estabelecem um horizonte para o país cumprir compromissos assumidos com órgãos multilaterais e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). “Não se trata de erradicar as doenças, mas eliminá-las como problema de saúde pública e reduzi-las a níveis aceitáveis”, explica o coordenador do comitê, o sanitarista Draurio Barreira, diretor do Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites virais e Infecções sexualmente transmissíveis do Ministério da Saúde – as doenças sob seu guarda-chuva estão entre os focos do Ciedds, juntamente com enfermidades como hanseníase, malária e esquistossomose.


FOTO STEFANO FIGALO / BRAZIL PHOTOS / LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES

Paciente com tuberculose é atendido em hospital municipal do Rio de Janeiro: país ainda tem 37 casos da doença por 100 mil habitantes

Para três moléstias da lista do comitê, o esforço não precisará ser muito grande. A filariose linfática, doença parasitária crônica também conhecida como elefantíase, não tem registros no país desde 2017. Transmitida por pernilongos, teve como última área endêmica quatro municípios pernambucanos: Recife, Olinda, Paulista e Jaboatão dos Guararapes. Há também o tracoma, um tipo de conjuntivite causado por uma bactéria que é frequente em áreas sem saneamento. Em 2019, estava presente em 387 municípios, mas só o estado do Ceará estava acima do limite apontado como aceitável. O terceiro exemplo é a oncocercose, transmitida por insetos, que pode causar cegueira. Ela pode ser controlada com a aplicação do vermífugo ivermectina e há só uma área endêmica no país: o Território Indígena Yanomami. Já para outras enfermidades, o prazo de apenas sete anos soa irrealista para o tamanho da incumbência. O exemplo mais complicado talvez seja o das geo-helmintíases, doenças causadas por parasitas intestinais presentes no solo, como a ascaridíase ou a ancilostomíase. A ocorrência é maior no Norte e no Nordeste, onde há crianças que morrem ou precisam ser operadas devido a infestações de lombrigas que causam bloqueio intestinal. Mas a sua incidência nem sequer é conhecida – o último inquérito nacional foi concluído em 2015.

A ideia de eliminar um conjunto de doenças até 2030 surgiu no início do ano, quando o departamento dirigido por Draurio Barreira levou à ministra da Saúde, Nísia Trindade, um projeto para reduzir a carga de tuberculose na população brasileira. “A ministra nos desafiou a incluir a hanseníase e outras moléstias”, conta o coordenador do Ciedds. Várias delas estão no rol das doenças negligenciadas, que atingem pessoas e países pobres e, por isso, atraem investimentos insuficientes em prevenção, diagnóstico e tratamento. A meta para a tuberculose é ousada: reduzir a incidência no país para menos de 10 casos por 100 mil habitantes e o número de mortes para menos de 230 por ano. Os dados mais recentes, de 2019, contabilizam 38 casos por 100 mil habitantes e 45,8 mil mortes. O infectologista Marcos Boulos, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), é pessimista. Ele conta que a vacina BCG só protege contra formas mais graves da doença em crianças e adolescentes e, com o tempo, deixa de conferir imunidade. “É muito difícil eliminar a tuberculose com a população pobre nos centros urbanos vivendo em condições precárias de moradia.” A situação é mais complexa em estados como Amazonas, Acre e Rio de Janeiro, com cerca de 60 casos por 100 mil habitantes, mas há lugares em que o objetivo deverá ser alcançado, como o Distrito Federal, que tem hoje 10,5 casos por 100 mil habitantes. Boulos, porém, não subestima o efeito de medidas bem articuladas por governos para eliminar doenças. “Tínhamos 8 milhões de casos de malária no Brasil em 1948, e cinco anos depois, em 1953, passamos a ter 50 mil”, conta. Isso ocorreu em um tempo em que países europeus enfrentavam a moléstia e foi resultado de uma abordagem aplicada internacionalmente, baseada no tratamento com cloroquina e na aplicação do pesticida DDT na parede das casas para eliminar os mosquitos. “Quando acabou a malária no mundo desenvolvido, o financiamento para combater a doença nos países pobres diminuiu – e o problema acabou voltando. Tivemos mais de 600 mil casos na década de 1990”, lembra Boulos. A meta do Ciedds é diminuir o número para menos de 68 mil por ano e a quantidade de óbitos para zero até 2030. Em 2020, houve 140 mil casos de malária e 51 mortes. “A decisão política de eliminar a malária passa por reverter as invasões de garimpeiros em áreas indígenas”, afirma o infectologista. O plano de criar um comitê interministerial se baseou na necessidade de envolver diferentes atores e segmentos no enfrentamento das doenças. A participação de um representante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação busca afinar os esforços de pesquisa financiados pelo governo federal com as metas a serem alcançadas pelo Ciedds. O engajamento do Ministério da PESQUISA FAPESP 334 | 37


Justiça é essencial para combater as enfermidades dentro do sistema prisional. Da mesma forma, a pasta do Desenvolvimento Social e a dos Povos Indígenas podem facilitar em ações com pessoas em situação de rua e aos povos originários, que também são grupos vulneráveis. “A articulação entre ministérios é bem-vinda e penso que deveria se estender a outras pastas, como a do Meio Ambiente, porque algumas dessas doenças têm vetores ou reservatórios e o manejo ambiental inadequado facilita o aumento do número de casos, e também a das Mulheres, já que mulheres e crianças são os grupos mais afetados por muitas dessas doenças”, afirma a médica Rosa Castália Ribeiro Soares, que foi coordenadora do Programa Nacional de Hanseníase e Doenças em Eliminação do Ministério da Saúde. O Ministério das Cidades, responsável por projetos de saneamento do governo federal, não faz parte da composição original do Ciedds, mas deve se juntar ao comitê em breve. Investimentos em saneamento foram cruciais para vários países se livrarem dessas enfermidades e tiveram efeito também no Brasil, como na evolução de outro alvo do comitê, a esquistossomose, infecção gerada por vermes da família Schistosoma, transmitida pelo contato com água doce contaminada. Já foi uma das principais endemias do país até a década de 1970 e pode ser controlada por ações educativas e, sobretudo, pelo acesso a saneamento e a medicamentos. “Uma das propostas do comitê é reforçar o investimento em saneamento em 175 municípios que têm uma grande carga dessas doenças e merecem tratamento prioritário”, afirma Barreira. As hepatites virais A e E podem ter incidência atenuada por investimentos em saneamento, mas há outras estratégias a considerar. No caso da hepatite B, a eliminação é possível, pois a cobertura de vacinas em crianças está próxima dos 100%. Mas ainda há infecção por compartilhamento de agulhas e por via sexual, o que requer ações

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junto a indivíduos com comportamento de risco. Na hepatite C, a chave é o diagnóstico e o tratamento precoces, pois não há vacina. A despeito de progressos recentes, algumas doenças na mira do Ciedds vão exigir monitoramento reforçado. Existem ao menos 2 milhões de pessoas com doença de Chagas no Brasil, mas a forma tradicional de transmissão do protozoário Trypanosoma cruzi foi praticamente erradicada com o combate em áreas endêmicas do principal transmissor, o barbeiro Triatoma infestans, e a substituição de casas de pau a pique, próprias para a proliferação do inseto, por outros tipos de construção. Persistem, contudo, casos de transmissão por ingestão, quando o barbeiro contaminado é triturado no processamento de caldo de cana ou de açaí. Um desafio estabelecido pelo Ciedds é eliminar a transmissão vertical, com a realização de exames de diagnóstico em gestantes e a aplicação de medicamentos. Além da doença de Chagas, o Ciedds quer interromper a transmissão vertical da hepatite B, do HTLV e da sífilis, o que depende de ampliar o diagnóstico pré-natal e aplicar remédios. Há um medicamento antiviral que pode ser utilizado pe-

Coleta de sangue de paciente com suspeita de malária em garimpo no Pará: a meta é reduzir a zero as mortes pela enfermidade

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Agentes da Organização Pan-americana de Saúde em ação no território yanomami, foco de oncocercose, entre outras moléstias 38 | DEZEMBRO DE 2023


Campanha de prevenção do tracoma em escola pública no interior do Ceará, estado onde a doença ocular ainda é presente

FOTOS 1 RICARDO FUNARI / BRAZIL PHOTOS / LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES 2 KARINA ZAMBRANA / MS / OPAS / OMS 3 PREFEITURA DO CRATO

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las mães contaminadas pela hepatite B a partir do terceiro mês de gestação. A mesma estratégia está disponível para a sífilis. Uma vez diagnosticada em gestantes, pode ser tratada com a aplicação de penicilina benzatina a fim de evitar a transmissão para o feto. Mas nem sempre isso acontece. “Incrivelmente, está aumentando a transmissão vertical de sífilis no país, porque muitos médicos não pedem a sorologia no pré-natal”, critica Marcos Boulos. Esse problema foi resolvido para a Aids. “Os obstetras têm medo de se infectar com o HIV quando fazem partos, então não esquecem de pedir o exame para as gestantes. Com isso, estamos perto de zerar a transmissão, pois 94% das grávidas brasileiras hoje são testadas”, afirma Barreira.

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ambém se busca eliminar a Aids como um problema de saúde pública. As metas são diagnosticar ao menos 95% das pessoas contaminadas, oferecer tratamento para mais de 95% dos casos detectados e eliminar a carga de vírus de, no mínimo, 95% dos indivíduos tratados – com isso, quebra-se a cadeia de transmissão. Os objetivos em relação ao acesso ao tratamento e à redução da carga viral foram atingidos, mas ainda falta resolver o primeiro elo da cadeia: menos de 90% dos infectados são diagnosticados no país. O vírus HTLV, que tem parentesco com o da Aids, é transmitido de forma semelhante e causa uma moléstia degenerativa caracterizada por problemas de locomoção, concentra vítimas em algumas poucas cidades, como Salvador, São Luís e Recife. A testagem de gestantes foi aprovada recentemente pela comissão nacional de incorporação de tecnologias do Sistema Único de Saúde (SUS), o que amplia as chances de eliminação.

A hanseníase representa um dos principais desafios do Ciedds, pois seus registros não têm diminuído nos últimos anos mesmo com a ampliação do atendimento. “É uma doença da Idade Média. É vergonhoso ainda termos isso no Brasil”, afirma Barreira. O Brasil só é superado pela Índia em registros de hanseníase. Em 2022, contaram-se 19.635 casos novos no país, 7,2% a mais do que em 2021. Os estados com maior incidência foram Mato Grosso (2,4 mil), Maranhão (2,3 mil) e Bahia (1,7 mil). As metas consistem em interromper a transmissão em 99% dos municípios brasileiros, eliminar totalmente a doença em 75% dos municípios e reduzir em 30% o número absoluto de casos novos até 2030. “O número de pessoas incapacitadas vem caindo graças ao aumento no diagnóstico. Mas é preciso ir além e fazer uma busca ativa de pessoas que tiveram contato com os indivíduos contaminados, e adotar a quimioprofilaxia com um medicamento chamado Rifampicina. A OMS preconiza essa solução”, afirma Rosa Castália. Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que os pesquisadores também têm um papel a cumprir no esforço para eliminar doenças negligenciadas. “Desde a década de 1970, não temos um tratamento novo contra a doença de Chagas. Nosso complexo industrial da saúde precisa se engajar na busca por vacinas e medicamentos”, afirma o pesquisador, que coordena no Brasil um consórcio internacional para desenvolver medicamentos contra Chagas, leishmaniose visceral e malária, com investimentos da FAPESP e de organizações como a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) e Medicines for Malaria Venture (MMV). Na avaliação do infectologista Reinaldo Salomão, a iniciativa do Ciedds é importante também por uma razão simbólica. Ela ajuda a quebrar um círculo vicioso que perpetua a incidência das doenças negligenciadas. “Nos acostumamos a conviver com moléstias endêmicas como se elas fizessem parte da paisagem do Sul global, mas elas matam uma quantidade enorme de gente e só continuam por aqui porque atingem populações desfavorecidas”, afirma. No final de outubro, Salomão foi um dos organizadores no auditório da FAPESP da assembleia geral da Global Research Collaboration for Infectious Disease Preparedness (Glopid-R), que reúne agências que apoiam pesquisas sobre doenças infecciosas novas ou emergentes. “O foco da Glopid-R são enfermidades com potencial para gerar pandemias, capazes de atrair financiamento e produzir respostas rápidas dos pesquisadores, como ocorreu com o novo coronavírus. Precisamos utilizar esse aprendizado com a Covid-19 para enfrentar de vez as doenças negligenciadas.” n PESQUISA FAPESP 334 | 39


ENTREVISTA SERGIO REZENDE

BÚSSOLA PARA PROCURAR O CAMINHO

O físico e ex-ministro conta o que esperar dos debates da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que acontece em junho de 2024 Fabrício Marques

A

5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação está programada para acontecer em Brasília entre os dias 4 e 6 de junho de 2024. O evento deverá reunir cerca de 2 mil pesquisadores, gestores públicos e empresários, entre outros interessados. Vai promover debates e formular recomendações para orientar políticas públicas e ações de governo nos próximos 10 anos. Seus resultados serão usados para dar corpo à Estratégia nacional de ciência, tecnologia e inovação, documento lançado em maio pelo governo federal, que prevê a recuperação da capacidade científica do país, enfraquecida em anos recentes pela escassez de financiamento, políticas para combater a desindustrialização, investimentos em pesquisa em áreas como saúde, energias renováveis e semicondutores, e iniciativas voltadas para o desenvolvimento social. A primeira conferência nacional aconteceu em 1985, ano de criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (hoje MCTI, com o acréscimo de Inovação no nome), e as duas seguintes ocorreram em 2001 e 2005. O país não organiza uma reunião dessa natureza desde 2010, época em que o ministro da Ciência e Tecnologia era o físico Sergio Machado Rezende, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Rezende, que no final do ano passado coordenou o grupo encarregado de formular políticas de ciência, tecnologia e inovação para os 100 primeiros dias de governo, foi nomeado secretário-geral da 5ª Conferência e agora está à frente de sua preparação. Na entrevista a seguir, ele conta como o evento está sendo planejado e o que se pode esperar de suas recomendações. 40 | DEZEMBRO DE 2023

O senhor era o ministro da Ciência e Tecnologia quando foi realizada a última Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em 2010. Como compara os desafios de hoje e os daquela época? A última conferência aconteceu no final do segundo mandato do presidente Lula, quando vivíamos um momento auspicioso. Os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) não estavam contingenciados, os laboratórios que precisavam de equipamentos mais caros estavam equipados. Havia um otimismo geral e o propósito da conferência era apresentar propostas que impulsionassem a ciência e a tecnologia no país até os 200 anos da Independência do Brasil. O que ocorreu de lá para cá é que aquelas expectativas foram frustradas. O final do governo da presidente Dilma Roussef já foi muito complicado. Tínhamos


FOTO LÉO CALDAS

Sergio Rezende era o titular do ministério em 2010, quando foi realizada a 4ª Conferência

uma crise econômica e um Congresso preparando o impeachment dela. E os anos seguintes foram muito ruins. No governo Michel Temer, o Ministério da Ciência e Tecnologia foi incorporado ao das Comunicações, que é um ministério de uso político mais amplo. O governo Bolsonaro, então, foi um desastre. O FNDCT foi tremendamente contingenciado; os recursos de agências como o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] caíram muito. Agora, vivemos uma retomada, mas ainda de forma incipiente. Nesse ano de 2023, o FNDCT não está contingenciado, mas os recursos ficaram comprometidos, porque o governo anterior deixou encomendas muito grandes, fez editais em cima da hora, assinou convênios. O cenário muda de figura em 2024, quando o FNDCT promete ter um crescimento

significativo, de mais de 20%. A comunidade está esperançosa, mas sabendo que é preciso ter uma estratégia. O grande objetivo da próxima conferência é criar um plano de ciência, tecnologia e inovação para o decênio 2025-2035. Nosso desafio é analisar o que aconteceu no passado, avaliar o quadro atual e fazer uma proposta para os 10 anos seguintes. O tema da 5ª Conferência, Ciência, Tecnologia e Inovação para um Brasil Justo, Sustentável e Desenvolvido, é muito parecido com o da reunião de 2010, que foi Política de Estado para Ciência, Tecnologia e Inovação com Vistas ao Desenvolvimento Sustentável. Como foi definido esse tema e por que se decidiu voltar a esse mote? A comissão organizadora, que é composta por representantes de cerca de 50 instituições, entre associações e autarquias ligadas à ciência e à inovação,

10 ministérios, conselhos de fundações estaduais de amparo à pesquisa e de secretarias estaduais de Ciência e Tecnologia, fez algumas sugestões sobre temas e o formato da conferência. Mas a escolha foi definida por um decreto do presidente da República no dia 12 de julho. O título ficou abrangente e parecido com o outro. Há muito em comum entre essa conferência e a anterior. O contexto da conferência é diferente mas de certa maneira se busca uma retomada daquele caminho que foi perdido. Em maio, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, assinou uma portaria definindo as bases para uma estratégia nacional e definindo quatro eixos de uma política de ciência e tecnologia. Esses quatro eixos também são semelhantes aos que tivemos no Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação que vigorou entre 2007 e 2010. O eixo 1 é bem abrangente e trata de PESQUISA FAPESP 334 | 41


ciência de maneira geral. O número 2 é ciência e inovação para o desenvolvimento industrial. O 3 é voltado para áreas estratégicas. São mais ou menos 10 áreas, algumas não completamente definidas. Vamos fazer nos próximos meses reuniões temáticas preparatórias para a conferência nacional, em que vão ser discutidos temas importantes vinculados a essas áreas. Finalmente o eixo 4 é ciência e tecnologia para o desenvolvimento social. O senhor se referiu a reuniões temáticas. E haverá também conferências estaduais e regionais preparatórias. O que está programado? Estendemos o prazo das reuniões temáticas e das conferências estaduais ou municipais até fevereiro, porque estava muito apertado fazer tudo nesse final de ano. Várias reuniões temáticas foram propostas. Em algumas delas, ainda estamos amarrando com a entidade anfitriã e o organizador. As reuniões e conferências estaduais terão de dois a três dias de duração e o objetivo delas é produzir documentos que servirão de base para as discussões da conferência nacional. Quais são os temas já definidos para as reuniões temáticas? Vamos ter, por exemplo, uma conferência temática sobre Ciência, Tecnologia, Inovação e a Juventude. O organizador é o Guilherme Rosso, foi bolsista do programa Ciência sem Fronteiras, trabalhou com o professor Sérgio Mascarenhas [1928-2021], da USP [Universidade de São Paulo] em São Carlos. Vamos ter uma reunião sobre Energias Renováveis, organizada pelo Enio Pontes, da Universidade Federal do Ceará. Teremos em Brasília uma reunião temática sobre a Integração das Ações do Sistema Nacional de CT&I, em que vai se discutir como fazer funcionar marcos legais que foram definidos há alguns anos e estão de certa maneira patinando. Quem vai organizar será o próprio MCTI. O coordenador deverá ser o Guilherme Calheiros, que é o secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do ministério, e também integra o grupo executivo da conferência, juntamente comigo, o Anderson Gomes, meu colega na Universidade Federal de Pernambuco [UFPE], e o Fernando Rizzo, do CGEE [Centro de Gestão e Estudos 42 | DEZEMBRO DE 2023

Estratégicos, organização social vinculada ao MCTI]. A Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] vai fazer uma reunião sobre política industrial. Vamos ter outra sobre semicondutores em Porto Alegre, onde funciona o Ceitec [Centro de Inovação e Tecnologia], fábrica estatal de semicondutores que entrou em liquidação no governo anterior e agora está se tentando retomar. Vamos ter uma reunião sobre a Amazônia, Ciência e os Saberes Tradicionais. Tem também uma sobre saúde, que vai ser organizada pelo Ministério da Saúde, juntamente com a Fiocruz. Há um elenco de 11 conferências sendo definidas. Não há desafios emergentes que deveriam ser discutidos? Não há o risco de a conferência, ao buscar retomar o caminho da conferência anterior, olhar pouco para o futuro? Eu me referi às reuniões temáticas principais, mas não a todas. Vamos ter uma sobre tecnologias quânticas e inteligência artificial, que é um assunto novo e no qual o Brasil fez um esforço relativamente pequeno. Precisamos ganhar volume e nos aprofundar. Tem uma também sobre ciência básica na fronteira do

O contexto da conferência é diferente do da anterior, mas de certa maneira se busca uma retomada daquele caminho que foi perdido

conhecimento, que vai ser organizada pela Academia Brasileira de Ciências e pela SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência]. É muito amplo. Esperamos ter grandes cabeças no Brasil contribuindo para essa discussão. As reuniões regionais, que virão depois, vão rediscutir os assuntos das reuniões temáticas ou só tratar de temas de interesse local? Elas tendem a discutir questões regionais, mas alguns temas também devem reaparecer. A conferência da região Norte vai ter uma grande correlação com a reunião temática sobre a Amazônia. Ainda não foram definidos os locais. Sabemos, por exemplo, que Alagoas quer patrocinar a conferência regional do Nordeste, mas isso vai envolver discussões nos conselhos das fundações de apoio à pesquisa e das secretarias estaduais. Cada região vai definir sua agenda e nós não teremos ingerência sobre isso. E aí, nos dias 4, 5 e 6 de junho, haverá a conferência nacional em Brasília. Como ela está sendo organizada e como deve aproveitar os documentos das reuniões preparatórias? A conferência de 2010 reuniu cerca de 2,8 mil pessoas e aconteceu em um hotel muito grande, o Brasília Alvorada. Estamos esperando um número menor dessa vez, entre 1,5 mil e 2 mil pessoas, porque toda a programação poderá ser acompanhada pela internet. Estamos considerando três hotéis e está em curso uma licitação. Quem está cuidando disso é o CGEE. Teremos palestras de pessoas com muita experiência na sua área de conhecimento, mesas-redondas, um conjunto de sessões paralelas. Serão três dias com um grande número de atividades. Ainda vamos definir juntamente com a comissão organizadora e com a comissão executiva o tema e o autor de cada palestra e a composição de cada mesa-redonda. Como serão compiladas as recomendações? Todas as sessões terão relatores. Um papel dos relatores é produzir um documento com resumo do que foi discutido e com as recomendações. Ao final da conferência, teremos um conjunto extenso de sugestões. Na conferência de 2010, esse trabalho resultou em vários


documentos. Os palestrantes e participantes de mesas-redondas se comprometeram a escrever um artigo sobre as apresentações, que foram publicados em livro pelo CGEE. Também tivemos um livro-resumo com as recomendações da conferência e, finalmente, o chamado Livro azul. Como havia mais de 300 recomendações, o Livro azul é mais sintético e propôs uma estratégia de ação para o decênio seguinte. O organizador e responsável pelo Livro azul foi o físico Luiz Davidovich, que depois seria presidente da Academia Brasileira de Ciências e está no conselho consultivo da conferência do ano que vem. A conferência tem uma comissão organizadora, um conselho consultivo e uma comissão executiva. As pessoas que estão à frente no momento sou eu como secretário-geral; o Anderson Gomes, como secretário-geral adjunto; o presidente do CGEE, Fernando Rizzo; e o Guilherme Calheiros, do MCTI. Uma das recomendações da conferência de 2010 era exigir, nas políticas públicas de inovação, que as empresas fizessem investimentos em pesquisa e desenvolvimento como contrapartida dos investimentos públicos que recebessem. A preocupação também está presente no debate em curso sobre política industrial. Há condições mais favoráveis de engajar empresas em inovação hoje? Acho que sim. O setor industrial do Brasil é historicamente muito conservador, formado por muitas empresas que fabricam produtos mais simples e inovam pouco. Há cerca de 15 anos, foram definidos dois instrumentos importantes, a Lei da Inovação e a Lei do Bem, e elas gradualmente começaram a ser encampadas pelas empresas. Mas, como não temos uma política industrial – o governo anterior dizia que a melhor política industrial era não ter política nenhuma –, esse arcabouço jurídico foi menos explorado do que poderia. Além disso, a política industrial certamente pode se beneficiar da experiência da academia. O número de empresas geradas nas universidades, nas incubadoras é cada vez maior. Houve a criação de um sem-número de startups. O meu colega, o fisico Carlos Henrique de Brito Cruz [diretor científico da FAPESP entre 2005 e 2020], sempre mostra uns slides com os

Precisamos expandir as opções de trabalho para os doutores. Dá para expandir um tanto na academia, mas precisamos ampliar bastante nas empresas

logotipos de um grande número de empresas originadas na Unicamp. Na USP é a mesma coisa. Promover discussões que envolvam novos empreendedores e empresários de maior experiência é da maior importância. Uma conferência capaz de envolver academia, empresários, industriais, traz um componente importante para o sistema. A CNI [Confederação Nacional da Indústria] só em 2005 realizou sua primeira conferência sobre inovação e nos últimos tempos envolveu-se profundamente com o tema. Temos uma experiência acumulada e a discussão de política industrial na conferência virá em boa hora. O Livro azul de 2010 estabeleceu metas ousadas para a formação de mestres e doutores, que foram alcançadas, embora, com a pandemia, o número de titulados tenha caído. Como será a discussão agora? Deve-se continuar propondo a ampliação do número de doutores? A ciência é muito jovem no Brasil. Nós começamos a formar pesquisadores de maneira institucionalizada somente em 1968. Portanto, há 55 anos apenas. Temos no Brasil perto de dois

pesquisadores para cada grupo de mil habitantes, enquanto em países industrializados, associados à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], a média chega a oito pesquisadores por mil habitantes. Nossa proporção ainda é relativamente baixa e há espaço para crescer. Tivemos no governo passado um ministro da Educação que dizia que o Brasil estava formando muito doutor, não precisava de tantos doutores. Essa é uma visão completamente equivocada. Em que ritmo o sistema de pós-graduação deveria crescer, na sua opinião? Talvez o ritmo de crescimento não precise ser o mesmo dos últimos 20 anos, mas não é o momento de dizer que já formamos o suficiente. Precisamos, de todo modo, expandir as opções de trabalho para os doutores. Dá para expandir um tanto na academia, mas precisamos ampliar bastante nas empresas. A indústria brasileira emprega, na comparação com outros países, um número de doutores ainda pequeno. Quero chamar a atenção para uma mudança que ocorreu nos últimos tempos. Há quase 20 anos, o MCTI começou a fazer programas em parceria com fundações estaduais de amparo à pesquisa. Um exemplo foi o programa de núcleos de excelência, o Pronex, a partir de 2005. O CNPq convidou fundações estaduais para fazer o programa em conjunto e a proposta era a seguinte: uma vez selecionados os projetos de uma unidade da federação, o CNPq entraria com uma parte e a fundação estadual com outra. Isso permitiria ter mais projetos aprovados para aquele estado. Isso se repetiu em 2008, quando foi feito o edital para os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia. Esses movimentos estimularam os estados a colocar para funcionar suas fundações de apoio à pesquisa e a maioria delas buscou seguir o modelo consolidado e bem-sucedido da FAPESP. O Brasil tem hoje 20 fundações estaduais que funcionam de verdade – há outras que existem no papel, mas não têm recursos para investir. É um número muito significativo. As fundações passaram a ter um papel cada vez mais importante, oferecendo bolsas nos estados. Isso contribuiu para o aumento do número de mestres e doutores formados. Estamos mais preparados para continuar crescendo. n PESQUISA FAPESP 334 | 43



RECURSOS HUMANOS

RESGATE PARCIAL Concursos anunciados pelo MCTI trazem alívio

a instituições de pesquisa, mas contratações não recompõem cientistas e técnicos que se aposentaram Maurício Oliveira

FOTOS SMOLAW11 / GETTY IMAGES

A

convocação de concursos públicos para preencher 814 vagas no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e em 17 instituições de pesquisa vinculadas à pasta foi recebida com alívio pelos dirigentes dessas unidades e pela comunidade científica. Há o reconhecimento de que o governo foi sensível com a situação das instituições científicas federais ao promover concursos já no primeiro ano de mandato. Em contrapartida, também há a avaliação de que o volume anunciado de vagas está aquém do ideal. Embora as vagas representem um acréscimo de 35% aos 2.354 servidores na ativa, elas não serão suficientes, na maior parte dos casos, para recompor quadros perdidos por aposentadorias, mortes ou pedidos de desligamento ao longo de mais de uma década sem concursos. As inscrições estão abertas, na maioria das instituições, até o início de dezembro. Unidade com maior número de vagas disponíveis (135 no total), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) precisaria de 400 novos contratados apenas para ocupar as posições classificadas como “nível máximo” de prioridade, diz Oswaldo Duarte Miranda, coordenador do gabinete do diretor da instituição. “Estamos com 667 servidores nesse momento, com idade média de 55 anos e incluindo 190 que estão em abono de permanência, podendo sair a qualquer momento por aposentadoria. Há 10 anos o Inpe tinha 1.005 servidores”, ele descreve. Composto pelo valor equivalente à contribuição previdenciária do servidor, o abono de permanência é um benefício concedido a quem decide continuar na ativa mesmo tendo cumprido todos os requisitos para

a aposentadoria. “O concurso é um respiro, mas continuaremos bem distantes do ideal, que seria ter 1.200 servidores.” Várias linhas de pesquisa e atividades do Inpe vêm caminhando mais lentamente do que deveriam por falta de pessoal. Um exemplo é o Projeto Queimadas, criado em 1985 para mapear focos de calor no Brasil. Além das dificuldades acumuladas em decorrência da redução de servidores ao longo dos anos, o projeto perdeu um de seus principais líderes em setembro, com a morte do pesquisador Alberto Setzer, aos 72 anos (ver Pesquisa FAPESP nº 332). “Temos muitos casos de pesquisadores com mais de 40 anos de ligação com o Inpe, com uma bagagem enorme a transmitir àqueles que vão chegar. Também por isso esse concurso representa uma oportunidade gigantesca para jovens pesquisadores”, diz Miranda, que é pesquisador da divisão de astrofísica no Inpe e soma 19 anos de casa. Do total de 814 vagas abertas pelo governo, 100 são para a Administração Central do ministério, divididas igualmente entre cinco secretarias, e as demais 714 estão distribuídas por 16 unidades de pesquisa vinculadas à pasta – o Inpe é uma delas. Serão 253 novos pesquisadores, 265 tecnologistas (mais dedicados a aplicações) e 196 analistas em ciência & tecnologia (que atuam na parte administrativa). Cada unidade é responsável por definir as regras e organizar o seu processo seletivo, incluindo a formação de bancas de especialistas para a avaliação dos candidatos. Em geral, só os cargos de pesquisador exigem formação de doutorado. De acordo com a tabela de salários para cargos de nível superior na estrutura do MCTI, a remuneração mensal vai de R$ 6.662,68 a R$ 19.586,95, dependendo da classe ( júnior, pleno I, pleno II, PESQUISA FAPESP 334 | 45


CHANCE PARA BOLSISTAS

O Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), sediado em Campinas (SP), abriu concurso para preencher vagas concentradas especialmente em tecnologistas – são 46 com esse perfil. Também há oito vagas para analistas e três para pesquisadores. O maior número de vagas para tecnologista se deve ao perfil da instituição, que é voltado ao desenvolvimento de aplicações tecnológicas, como microeletrônica, impressão 3D e inteligência artificial. O quadro atual é composto por 83 servidores, mas o centro conta com o reforço de 75 bolsistas que dão apoio na execução técnica dos projetos da instituição. Muitos desses colaboradores estão se preparando para concorrer às vagas oferecidas no concurso.

“Justamente pela perspectiva de termos vários candidatos já conhecidos da instituição fazendo o concurso, decidimos que as bancas de avaliação, na segunda fase do processo seletivo, serão compostas majoritariamente por professores e pesquisadores externos ao CTI. Traremos gente especializada com conhecimentos necessários para cada cargo”, afirma o diretor, Jorge Vicente Lopes da Silva, que ano passado completou 35 anos na instituição. A descrição dos cargos oferecidos seguiu as determinações do plano diretor do CTI, que estabelece eixos de atuação como indústria 4.0, saúde avançada, tecnologias habilitadoras e governo digital. Uma das áreas de pesquisa que não evoluíram no CTI no ritmo desejado, por falta de pessoal, foi a de manufatura baseada em sistemas biológicos. Com o novo concurso, será contemplada com até cinco novos profissionais, o que ampliará bastante a atual equipe dedicada a esse tema. O concurso do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) tem uma proporção maior de pesquisadores – são 36, ante 10 tecnologistas e nove analistas. Essas vagas praticamente dobrarão o quadro de servidores concursados de nível superior, composto hoje por 58 profissionais – 43 pesquisadores, 12 tecnologistas e três analistas, cujas atribuições administrativas são reforçadas por 33 servidores de nível médio e 102 terceirizados. “A instituição já chegou a ter 120 pesquisadores. Então, mesmo com a inegável relevância do con-

ONDE ESTÃO AS VAGAS DOS CONCURSOS Pesquisador

Tecnologista

Analista em C&T

S. José dos Campos (SP)

44

49

42

Administração Central do MCTI

Brasília (DF)

-

-

100

Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)

Manaus (AM)

51

12

13

Centro de Tecnologia da Informação (CTI)

Campinas (SP)

3

46

8

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)

Rio de Janeiro (RJ)

36

10

9

Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG)

Belém (PA)

19

10

14

43

Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)

Brasília (DF)

4

27

10

41

Unidade

Sede

Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)

Total de vagas 135 100 76 57 55

Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) Petrópolis (RJ)

13

17

9

39

Instituto Nacional de Tecnologia (INT)

Rio de Janeiro (RJ)

3

21

12

36

Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden)

S. José dos Campos (SP)

7

17

11

35

Instituto Nacional do Semiárido (Insa)

Campina Grande (PB)

10

9

13

32

Centro de Tecnologia Mineral (Cetem)

Rio de Janeiro (RJ)

11

10

10

31

Observatório Nacional (ON)

Rio de Janeiro (RJ)

13

9

7

29

Instituto Nacional da Mata Atlântica (Inma)

Santa Teresa (ES)

16

2

8

26

Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast)

Rio de Janeiro (RJ)

8

8

6

22

Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste (Cetene)

Recife (PE)

5

8

8

21

Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA)

Itajubá (MG)

5

8

6

19

Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal (INPP)

Cuiabá (MT)

5

2

10

17

253

265

296

TOTAL FONTE MCTI

46 | DEZEMBRO DE 2023

814

INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

pleno III e sênior) e do grau de titulação (graduação, especialização, mestrado e doutorado). As unidades de pesquisa têm buscado apoio externo para a organização dos concursos, que acontecerão no início do ano que vem. O Inpe, por exemplo, contratou a Fundação Getulio Vargas (FGV). Muitos dos concursos já estão com o edital publicado, após articulação entre as unidades para evitar coincidência de datas. Já as contratações de analistas não terão a etapa das bancas de especialistas e serão definidas por meio de um concurso unificado promovido pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI).


curso, continuaremos atrás do que já fomos. Voltaremos apenas ao patamar em que estávamos no início da década passada”, compara o vice-diretor, João Paulo Sinnecker. O CBPF está na iminência de sofrer novas baixas. A idade média dos 44 pesquisadores na ativa é de 58,7 anos, sendo que 15 deles já estão em abono de permanência. Desses, 10 completarão 75 anos dentro dos próximos três anos, idade que leva à aposentadoria compulsória.

P

ara Sinnecker, a reposição dos quadros é necessária, mas seria mais adequado se ela tivesse ocorrido de forma progressiva ao longo dos últimos anos – e não em um concurso para atender a uma demanda acumulada. “Preferíamos que esse pessoal chegasse aos poucos, talvez ao longo de três anos, para que tivéssemos melhores condições de ambientação e transferência de cultura.” Ele prevê um “choque de gerações” e afirma que será fundamental fazer um trabalho de conscientização com os novos servidores sobre os objetivos do CBPF e as peculiaridades de trabalhar como pesquisador em uma unidade do MCTI. A senioridade da equipe tem contribuído para que as metas pactuadas com o MCTI venham sendo cumpridas, mesmo com a redução gradual do número de servidores. O volume de publicações tem permanecido num patamar regular, próximo a 400 por ano. Diferentes fatores foram levados em conta na definição do perfil das vagas do concurso do CBPF. A comissão interna foi formada por dois representantes de cada coordenação, sempre um mais sênior e outro mais jovem, para contemplar pontos de vista de gerações diferentes. A maior parte das novas vagas será direcionada à física experimental, que tem pesquisas em andamento sobre temas como matéria condensada, cosmologia observacional e nanociência. Houve também a decisão de apostar numa área nova, a óptica quântica, com quatro vagas de pesquisadores, a exemplo do desenvolvimento de dispositivos para a construção de chips de computação quântica. No Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), sediado em Petrópolis (RJ), as 39 novas contratações terão o impacto de dobrar o tamanho da equipe, formada atualmente por 60 servidores (incluindo 10 que foram atraídos de outras carreiras para o LNCC), dos quais um terço já é “aposentável” ou chegará a esse estágio nos próximos três anos. Mesmo com o concurso, a equipe corresponderá a pouco mais da metade do que era no início da década de 1990, quando chegou a ser composta por 137 servidores. “A consequência desse cenário é que não estamos conseguindo cumprir plenamente a nossa missão, mesmo com a reconhecida capacidade

dos servidores que temos”, lamenta o matemático Fábio Borges de Oliveira, diretor do LNCC. Ele trabalha com a perspectiva de que indicadores de avaliação de desempenho cairão nos próximos anos, a exemplo do número de publicações por pesquisador. Isso porque vários dos nomes mais experientes e produtivos do LNCC deverão se aposentar nos próximos anos. Entre eles estão Marcelo Dutra Fragoso, Carlos Emanuel de Souza e Renato Portugal, que figuram entre os cientistas brasileiros mais influentes ou mais citados do mundo na edição de 2023 de uma lista elaborada por uma equipe da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, com base nas publicações e citações registradas pelo Scopus, plataforma de revistas científicas. AUTONOMIA PARA CONTRATAR

Para o diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, Nilson Gabas Jr., os 43 novos contratados serão um reforço importante para as crescentes demandas que envolvem a instituição, mas estão longe de atender às necessidades. Hoje, são 168 servidores na ativa, dos quais cerca de 50 já estão em abono de permanência ou terão condições de aposentadoria no horizonte de três anos. O concurso compensará de forma parcial as saídas que virão. “A Amazônia está vivendo um boom de interesse e estamos no epicentro disso”, diz Gabas Jr. A cidade-sede do museu, Belém (PA), receberá em 2025 a COP30, 30ª edição da Conferência do Clima das Nações Unidas. “Poderíamos ter um papel mais ativo em várias iniciativas e projetos, mas para dar conta de tudo isso e marcar território como instituição de referência na região seria preciso ter uma equipe bem maior.” A esperança dos gestores das instituições é de que haja um novo concurso até 2026, em reconhecimento à perspectiva de que a situação continuará delicada. Uma forma de amenizar as dificuldades causadas pela falta de pessoal seria a permissão para que as unidades de pesquisa pudessem repor automaticamente as vagas abertas por aposentadoria, morte ou pedidos de desligamento. “Essa autonomia é desfrutada pelas universidades federais, nas quais a reitoria pode convocar concursos periódicos com a finalidade de reposição de vagas. Achamos justo, necessário e urgente que as unidades de pesquisa possam fazer o mesmo”, diz Gabas Jr., do Goeldi, um dos defensores mais ativos da ideia, também apoiada por outros diretores de instituições vinculadas ao MCTI. A autonomia depende de um reordenamento jurídico – as universidades são autarquias especiais vinculadas ao Ministério da Educação, enquanto as unidades de pesquisa ligadas ao MCTI integram a administração pública direta. Com a legislação atual, é preciso que o governo autorize concursos, como está acontecendo agora. n PESQUISA FAPESP 334 | 47


BOAS PRÁTICAS Ingredientes para a receita não desandar Consórcio propõe checklists para garantir que imagens de microscopia em artigos possam ser compreendidas e confirmadas

48 | DEZEMBRO DE 2023

U

ma rede formada por 554 pesquisadores de 39 países propôs um conjunto de diretrizes para a publicação de imagens obtidas por microscopia óptica em artigos científicos de ciências biológicas e biomédicas. O objetivo da iniciativa é permitir a interpretação correta das figuras e, principalmente, facilitar a reprodução de seus resultados por outros grupos de pesquisa. Em um artigo divulgado em setembro na revista Nature Methods, um grupo de representantes desse consórcio recomendou o uso, tanto por autores de papers quanto por revisores e editores de revistas científicas, de listas de verificação capazes de averiguar se uma imagem foi processada de forma apropriada e se ela contém informações suficientes para ser entendida e replicada. A meta é detectar e corrigir problemas antes que a figura seja publicada. “Os checklists fornecem instruções claras e fáceis sobre como publicar e analisar imagens, em um grande passo para torná-las reproduzíveis, compreensíveis


FOTO HAROLD M. LAMBERT / LAMBERT / GETTY IMAGES

e acessíveis”, afirmou o autor principal do artigo, o cientista de dados Christopher Schmied, do Instituto Leibniz de Pesquisa para Farmacologia Molecular, em Berlim, Alemanha, em seu perfil no LinkedIn. As listas de verificação propostas dispõem sobre diferentes parâmetros das imagens, como padrões de formatação, tratamento de cores e anotações ou rótulos acrescentados pelo autor, e são divididas em três níveis de exigência: mínimo, recomendado e ideal. O nível mínimo envolve requisitos indispensáveis para que os resultados científicos representados por uma imagem possam vir a ser confirmados por outros grupos – como dados a respeito da origem da figura e dos métodos de processamento utilizados. Cumprir tais requisitos – que abrangem, por exemplo, explicar manobras adotadas para ampliar detalhes de uma imagem, informar o grau de ajuste de brilho e contraste ou compartilhar os dados originais em repositórios – pode ajudar a identificar lacunas cruciais antes da publicação de um trabalho, evitando dúvidas e contestações. Já o nível recomendado tem mais exigências e procura garantir que o achado contido na imagem seja compreendido sem dificuldades. Um exemplo é a sugestão de fornecer uma escala de intensidade cromática que ajude a explicar o sentido das cores exibidas. O terceiro nível, classificado como ideal, estabelece práticas suplementares, como disponibilizar cópias das figuras originais em bancos de dados especializados nesse tipo de documento ou oferecer versões em tons cinzentos de imagens a fim de permitir a comparação com as originais coloridas. Publicar em preto e branco já seria suficiente, segundo as diretrizes. “Aconselhamos a todos que divulguem suas imagens em preto e branco em vez de coloridas, porque a visão humana é muito mais sensível a detalhes em figuras monocromáticas”, explicou ao site ScienceDaily uma das participantes da iniciativa, a bióloga inglesa Alison North, diretora do Centro de Recursos de Bioimagem (Birc) da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos. “Muitos pesquisadores gostam de imagens coloridas porque elas são bonitas e impressionantes. Não percebem que, na verdade, estão desperdiçando muita informação.” Além de indicar estratégias para obter imagens confiáveis, o grupo também enumerou métodos que devem ser evitados em certas situações. Um exemplo é a interpolação, que é a criação de novos pixels a partir dos já existentes na imagem para reforçar a nitidez – ela não deve ser aplicada em detalhes ampliados de uma imagem que tenha resolução baixa, pois é elevado o risco de produzir distorções. As diretrizes consolidam um esforço de cooperação que teve início em 2020 com a formação da iniciativa Avaliação de Qualidade e Reprodutibilidade para Instrumentos e Imagens em Microscopia Óptica (Quarep-LiMi), composta por pesquisadores de universidades e empresas de vários países interessados em criar padrões e protocolos para uso de imagens em microscopia. Uma das principais preocupações

da rede foi tentar reduzir a quantidade de equívocos e manipulações indevidas em imagens, que são causa frequente de retratação de artigos. O foco é combater o que se convencionou chamar de crise da reprodutibilidade, a repetição de casos de artigos científicos, sobretudo em áreas como medicina, ciências da vida e psicologia, que caíram em descrédito porque seus resultados não puderam ser confirmados em experimentos subsequentes. “Se os cientistas começarem a adotar um padrão mínimo para publicação de imagens, reproduzir os resultados será muito mais fácil para todos”, explica o analista de imagens Ved Sharma, pesquisador do Birc, também ao ScienceDaily. “Há muita informação que poderia ser incluída em uma imagem, mas na maioria das vezes isso não está disponível ou então o leitor precisa se aprofundar na leitura do artigo para compreender o sentido de uma figura.”

A

s listas de verificação do Quarep-LiMi incluem, também, o detalhamento de fases e protocolos para obter e processar as imagens, os chamados fluxos de trabalho, que podem contemplar etapas como reconstrução, segmentação, rotulagem e análise estatística. Os fluxos de trabalho podem ser agrupados em três categorias: os já estabelecidos, os novos e os baseados em aprendizado de máquina. Para um fluxo já estabelecido, informar cada etapa é requisito de nível mínimo, enquanto fornecer um tutorial sobre como a imagem foi trabalhada é um tópico do checklist no nível ideal. Já para fluxos de trabalho recém-criados, as exigências são mais amplas: é essencial detalhar cada uma de suas etapas e componentes para que outros pesquisadores consigam criar as mesmas condições e verificar os resultados. Para fluxos que utilizam aprendizado de máquina, recomenda-se, adicionalmente, informar que dados foram utilizados para treinar os modelos de inteligência artificial e disponibilizar seus códigos para os interessados. Segundo o estudo da Nature Methods, as diretrizes também podem ter utilidade para promover a confiabilidade de outros tipos de imagens científicas, como fotografias, imagens de testes de diagnóstico ou obtidas por microscópios eletrônicos de varredura, embora não tenham sido criadas com esse propósito. Um entrave para a implementação de diretrizes desse tipo é o custo adicional que elas tendem a impor aos pesquisadores. Esses encargos podem ser proibitivos para cientistas de países de renda média e baixa. Para contornar o problema, os artífices do Quarep-LiMi aceitam flexibilizar alguns requisitos, principalmente os que se enquadram no nível ideal. O armazenamento de dados em repositórios especializados em imagens, que é dispendioso, é uma exigência considerada negociável. “Para sermos inclusivos, não poderemos impor a utilização de repositórios on-line, mas, como medida mínima, exigimos que os cientistas estejam preparados para partilhar seus dados”, escreveram no artigo. n Fabrício Marques PESQUISA FAPESP 334 | 49


Conversão automática do Excel muda para prevenir erros em estudos genéticos

A

Microsoft anunciou mudanças em um dos recursos das planilhas do Excel e os usuários poderão agora desativar facilmente funções de formatação automática que ficaram famosas por introduzir erros em dados de pesquisa e atrapalhar o trabalho de geneticistas. A função original da conversão automática do Excel é facilitar a inserção de dados padronizados que se repetem com frequência e um desses recursos converte texto em datas. O problema é que o programa interpretava a abreviatura SEPT1, que é muito usada para denominar o gene septin-1, como se fosse o primeiro dia de setembro e a convertia para 01/09. Outro gene, o MARCH1, virava 1º de março. O problema se tornou tão disseminado que, em 2020, o Comitê de Nomenclatura de Genes da Organização do Genoma Humano (Hugo) modificou a forma como alguns genes eram escritos. O SEPT1

passou a ser grafado como SEPTIN1, enquanto o MARCH1 virou MARCHF1, a fim de driblar a conversão automática da planilha. Um estudo publicado por pesquisadores australianos na revista Genome Biology em 2016 analisou arquivos Excel que serviram de conteúdo complementar de 3.587 artigos sobre genética publicados em 18 periódicos. Identificaram erros atribuíveis a conversões equivocadas de nomes de genes em 19,6% das planilhas. Os periódicos que tiveram a maior proporção de artigos com arquivos afetados foram Nucleic Acids Research, Genome Biology, Nature Genetics, Genome Research, Genes and Development e Nature. O problema podia se manifestar de modos diferentes a depender da configuração do idioma na planilha. No caso do espanhol, o gene AGO2 podia ser convertido para 2 de agosto. Já o gene MEI1 podia virar

1º de maio se a configuração estivesse em holandês. “Não há casos documentados em que erros no nome do gene tenham afetado as conclusões de um estudo. Mas, se um pesquisador salvasse sem saber uma planilha contendo tais erros, alguém que importasse esses dados para análise posterior enfrentaria um problema de reprodutibilidade”, explicou Mandhri Abeysooriya, pesquisadora da Universidade Deakin, em Geelong, Austrália, que fez parte do estudo publicado na Genome Biology, segundo um texto divulgado no site Retraction Watch. Em um comunicado publicado no blog da Microsoft, o engenheiro de computação Chirag Fifadra, que é gerente de produto do Excel, informou que o programa passará a mostrar uma mensagem de aviso quando detectar que conversões automáticas de dados estão habilitadas e disse que as opções para desativá-las ficarão mais visíveis.

Revisão por pares comprometida leva à retratação de 209 artigos

50 | DEZEMBRO DE 2023

ILUSTRAÇÃO SERGEY LOBODENKO / GETTY IMAGES

A

editora de revistas científicas Sage anunciou a retratação de 209 artigos científicos de uma revista da área de engenharia, a International Journal of Electrical Engineering & Education. Segundo a editora, a razão da retratação em massa foi a constatação de que o processo de revisão por pares fora comprometido. Em dezembro de 2021, a Sage havia tornado inválidos 122 artigos da mesma revista, logo depois de demitir seu editor-chefe e trocar o conselho editorial. Seguiu-se uma investigação que, agora, resultou na nova onda de cancelamento de artigos. As irregularidades detectadas na revisão por pares foram variadas, a julgar pelas mensagens de retratação. Em alguns casos, a justificativa foram os indícios de participação de pessoas não autorizadas no processo de avaliação dos artigos. Em outros, a editora informou que uma nova avaliação dos artigos feita após a publicação encontrou problemas fundamentais nos papers e que os trabalhos “foram aceitos em um processo de revisão por pares que não atendeu aos padrões e expectativas da Sage”. Houve ainda situações em que autores foram contatados para dar explicações sobre falhas ou indícios de má conduta encontrados nos artigos, mas não responderam. Por fim, houve artigos com sinais de fraude na atribuição de autoria: o coautor de um dos papers, Enas Abdulhay, da Universidade de Ciência e Tecnologia da Jordânia, avisou que não teve nenhuma participação no trabalho e desconhecia os demais autores.


DADOS

Ingressos em programas de engenharia e de computação

DIMINUEM OS INGRESSOS NA ÁREA DE ENGENHARIA E CRESCEM NA DE COMPUTAÇÃO Entre 2014 e 2022,

No mesmo período, na grande área

Em 2014, os cursos de engenharia

Com isso, a área

o total de ingressantes

de engenharia e correlatas, esse

e correlatas responderam por 15,1%

de engenharias e

em cursos de graduação

número diminuiu de 469 mil para

dos ingressos, diante de 7,2%, em 2022;

correlatas foi da 3ª para

no país cresceu de 3,1

344 mil; já na de computação e TIC1,

a participação no total de ingressantes

a 5ª posição, a de

milhões para 4,8 milhões

cresceu de 146 mil para 410 mil,

na área de computação e TIC passou

computação e TIC,

de estudantes

superando as engenharias

de 4,7% para 8,6%, no mesmo período

da 5ª para a 4ª posição

INGRESSOS POR GRANDE ÁREA, 2014

INGRESSOS POR GRANDE ÁREA, 2022

Valor absoluto

Participação 1.090.571

Negócios, administração e direito Educação

569.438

Valor absoluto

35,1%

Negócios, administração e direito

18,3%

Saúde e bem-estar

Engenharia e correlatas

469.383

15,1%

Educação

Saúde e bem-estar

437.836

14,1%

Computação e TIC

Computação e TIC

145.975

4,7%

Engenharia e correlatas

Ciências sociais

140.658

4,5%

Ciências sociais

Participação 1.456.403

30,6%

995.822

20,9%

804.935

16,9% 8,6%

410.454

7,2%

344.190

4,5%

214.365

Artes e humanidades

67.573

2,2%

Serviços

201.187

4,2%

Agricultura e correlatas

67.486

2,2%

Artes e humanidades

132.840

2,8%

Serviços

63.044

2,0%

Agricultura e correlatas

125.310

2,6%

Ciências naturais e exatas

39.612

1,3%

Ciências naturais e exatas

0,9%

42.163

EXPANSÃO DO ENSINO A DISTÂNCIA O total de ingressantes em

Na área de engenharias e correlatas, a quantidade de novos

Aumentou ligeiramente o ingresso

cursos presenciais retraiu-se

alunos em cursos presenciais diminuiu de 442 mil para 176 mil,

na área de computação e TIC, nos

de 2,4 milhões para 1,7 milhão,

mas o ingresso nos cursos a distância aumentou de 28 mil

programas presenciais (de 114 mil para

mas nos cursos a distância

para 169 mil. Logo, quase a metade dos novos estudantes da

120 mil novos estudantes) e com grande

o crescimento foi intenso:

área ingressou em programas a distância, em 2022, mas esse

intensidade na modalidade a distância

de 728 mil para 3,1 milhões

aumento não compensou a queda no presencial

(de 32 mil para 290 mil ingressantes)

INGRESSANTES – POR GRANDE ÁREA (CINE/MEC)

INGRESSANTES – POR GRANDE ÁREA (CINE/MEC)

ENSINO PRESENCIAL BRASIL, 2010-2022

ENSINO A DISTÂNCIA BRASIL, 2010-2022

Computação e TIC

Engenharia e correlatas

Computação e TIC

500.000

500.000

400.000

400.000

300.000

300.000

200.000

200.000

100.000

100.000

0

Engenharia e correlatas

0

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 NOTA (1) TIC: TECNOLOGIA DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO FONTE MICRODADOS DO CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR, INEP/MEC

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022

ELABORAÇÃO GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES, FAPESP

PESQUISA FAPESP 334 | 51


BIOLOGIA

PEIXES VENENOSOS À VISTA Butantan desenvolve antídoto para quatro espécies que podem causar dor intensa em quem se banha em rios e no mar Gilberto Stam

52 | DEZEMBRO DE 2023


FOTO KRIS MIKAEL KRISTERIA / WIKIMEDIA COMMONS

H

As toxinas dos espinhos do peixe-escorpião podem causar alterações no ritmo cardíaco

á 30 anos, sempre que vai à praia, a bióloga Mônica Lopes Ferreira, do Instituto Butantan, aproveita para coletar peixes venenosos. De volta ao laboratório, ela e sua equipe extraem o veneno para desenvolver soros e tratar vítimas de acidentes causados por alguns tipos de animais do mar e de rios. Até agora, o grupo obteve sucesso com o bagre-amarelo (Cathorops spixii), comum em toda a costa brasileira, a arraia de rios da Amazônia (Potamotrygon orbignyi), o niquim ou peixe-sapo-do-nordeste (Thalassophryne nattereri) e um parente próximo do peixe-leão, o peixe-escorpião (Scorpaena plumieri), encontrado nos recifes. Ferreira e o médico Vidal Haddad Júnior, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), do campus de Botucatu, escolheram essas espécies por causarem acidentes frequentes, com base em relatos de pescadores de vilas litorâneas do Nordeste e do Norte. Testados em camundongos, os soros são produzidos como aqueles usados contra picadas de serpentes ou escorpiões: doses minúsculas de veneno são inoculadas em cavalos, dos quais depois se extraem os anticorpos usados para tratar pessoas. Em testes em camundongos, os soros se mostraram eficazes para deter os efeitos das toxinas dessas quatro espécies, como descrito em um artigo publicado em maio na revista científica International Journal of Molecular Sciences. Novos testes e a produção em maior escala, no entanto, dependem de o Ministério da Saúde (MS) reconhecer os acidentes com peixes como um problema relevante de saúde pública. De 2007 a 2013, de acordo com o levantamento mais recente, publicado em 2015, o MS registrou 4.118 acidentes com animais de rio e mar, incluindo ouriços e águas-vivas – ou 1,6 por dia. “Como a notificação não é obrigatória, o número real certamente é muito maior”, afirma Haddad, um dos autores do levantamento, publicado em 2015 na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Existem quase 200 espécies conhecidas de peixes venenosos que causam acidentes no Brasil – esse número aumenta pouco a pouco. “Recentemente, reconhecemos os pintados [Pseudoplatystoma corruscans], usados para fazer isca à milanesa nos bares brasileiros, como peçonhentos”, afirma Haddad.

Nos registros médicos, cerca de 70% dos acidentes são atribuídos a arraias de água doce, provavelmente os mais notificados porque as lesões são profundas e doloridas. Com base em suas próprias observações, porém, Haddad e Ferreira consideram que os bagres, conhecidos como mandis de água doce, são os peixes que mais causam acidentes, por viverem em toda a costa e em rios. De 126 pescadores do município de Miranda, em Mato Grosso do Sul, 38 haviam se machucado com bagres e, em Corumbá, 111 dos 355 pescadores relataram lesões causadas por mandis, segundo estudo publicado em 2018 na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Nas praias, os pescadores costumam descartar bagres pequenos na areia, que podem ser pisados por banhistas. Há 30 anos estudando esses acidentes, Haddad tem observado que as pessoas não costumam procurar atendimento médico porque, em geral, a dor das ferroadas passa após poucas horas, ainda que as toxinas do veneno possam causar grandes danos ao organismo. “As infeções bacterianas são comuns nos ferimentos e podem levar a complicações graves como amputação e sepse”, observa. Ferreira acrescenta: “Os médicos raramente identificam a verdadeira causa do ferimento, confundido com cortes de cacos de vidro ou ferroada de siri, que não é venenoso e não causa ferimentos graves. Alguns médicos ficam surpresos quando conto que peixe tem veneno”. O fato de esses peixes não serem citados nos formulários de notificação médica dificulta o trabalho. Em parceria com a Secretaria da Saúde de Santa Catarina, a bióloga tem feito palestras para profissionais da área da saúde para aumentar a notificação dos acidentes com peixes. Também tem ajudado a produzir folhetos informativos para a população. Haddad, por sua vez, publicou em 2007 um manual para profissionais da saúde chamado Animais aquáticos potencialmente perigosos do Brasil: Guia médico e biológico. Em seu doutorado, quando atendeu no pronto-socorro de Ubatuba entre 1998 e 1999, o médico constatou que não só os peixes perturbavam a paz dos moradores e turistas. Ali, os acidentes mais comuns, cerca de metade deles, eram com ouriços-pretos, um animal que não tem veneno ativo em humanos e vive em colônias de até 12 bichos, nas pedras. Os espinhos são tirados com duas agulhas grossas, sem anestesia. “Já atendi PESQUISA FAPESP 334 | 53


pacientes com até 50 espinhos, o que trava a fila do pronto-socorro”, relata Haddad. A bióloga do Butantan testemunhou episódios dramáticos. Anos atrás, em um posto de saúde de Maceió, capital de Alagoas, ela conheceu um alfaiate que, 20 dias antes, pescava na lagoa de Mundaú, nos arredores da cidade, quando um bagre que balançava na vara espetou sua mão. O efeito do veneno do peixe foi tão intenso que parte dos músculos já estava necrosada e sem movimento 20 dias depois, quando foi ao posto. O médico que o atendeu teve de amputar os dedos indicador e médio da mão direita, e o alfaiate teve de antecipar a aposentadoria.

que normalmente protegem os animais contra patógenos. Em alguns peixes, como as arraias, o ferrão fica revestido pela pele e coberto de muco. O niquim é o único que injeta o veneno ativamente, como as serpentes. Ele contrai os músculos de glândulas que injetam o veneno por meio de quatro espinhos ocos, dois ao lado do corpo e dois nas costas. É o que mais causa ferimentos em quem pisa no animal sem perceber. Os venenos dos peixes funcionam de forma parecida. Assim que entram na circulação sanguínea, geram uma intensa contração das arté-

Arraia de água doce, causadora de lesões profundas e doloridas

F

erreira relata ter conhecido catadores de marisco no litoral de Alagoas que ficaram meses sem trabalhar após serem atingidos pelos espinhos do niquim, um peixe que fica enterrado em águas rasas. Mergulhadores também são vítimas frequentes: “As pessoas têm o péssimo hábito de tocar aquilo que observam e podem encostar no peixe-escorpião, escondido nos recifes”, diz ela. O veneno dessa espécie é o único que tem efeito em todo o corpo, e não apenas local, e pode causar problemas respiratórios e cardíacos. Os venenos são compostos de proteínas e se somam a toxinas do muco da pele dos peixes,

VEJA BEM ONDE PISA As espécies que mais causam acidentes no Brasil vivem em águas marinhas rasas e profundas

Bagre-amarelo

Niquim ou peixe-sapo

Arraia de rios

Peixe-escorpião

(Cathorops spixii)

(Thalassophryne nattereri)

(Potamotrygon sp.)

(Scorpaena plumieri)

De águas costeiras

De corpo achatado, com

Corpo chato e

Vive em águas profundas,

ou fluviais rasas, com até

até 15 centímetros. Habita

arredondado. Vive em

nos recifes de corais do

2,8 metros

águas rasas do Nordeste

rios da América do Sul

Nordeste ao Sul do país

Estrutura

Espinhos nas costas

Dois espinhos nas costas

Um a quatro ferrões

Espinhos nas

venenosa

e nas nadadeiras

e ao lado das brânquias

na cauda

nadadeiras

Efeitos

Efeito local: dor intensa,

Efeito local: dor intensa,

Efeito local: dor intensa,

Efeito local e sistêmico,

iniciais

morte dos tecidos se não

morte dos tecidos se não

morte dos tecidos se não

com alterações na respira-

do veneno

for tratado e infecção

for tratado e infecção

for tratado e infecção

ção e no ritmo cardíaco

Descrição

FONTE VIDAL HADDAD JR. E MÔNICA LOPES FERREIRA

54 | DEZEMBRO DE 2023


PRIMEIROS SOCORROS Como reconhecer e tratar acidentes com peixes

SINAIS NO CORPO

CAUSADORES

Pedaços de ferrão

Bagres marinhos,

Colocar na área atingida água quente (cerca de

visíveis, dor intensa

mandis, arraias

50 oC ) por 30 a 90 minutos, para reduzir a dor

Perfurações, raros

Peixe-escorpião

Retirar espículas ou fragmentos de ferrão

espinhos, dor intensa

(mangangá),

ou epitélio glandular e aplicar anestésico local

niquim (peixe-sapo) Ferimentos com bordas

Arraias e bagres

azuladas ou pálidas,

marinhos e fluviais

pedaços de ferrão,

CUIDADOS MÉDICOS

Fazer exame radiológico se os sintomas persistirem Aplicar vacina contra tétano

perfurações, dor intensa Fazer uma lavagem intensiva e uma

Cortes profundos,

Cações, barracudas,

dor moderada

moreias, piranhas,

exploração cirúrgica (procura por fragmentos

peixes-cachorro, traíras

de ferrões) da área atingida Antibióticos Aplicar vacina contra tétano

FONTE HADDAD JR., V. MEDICAL EMERGENCIES CAUSED BY AQUATIC ANIMALS: A BIOLOGICAL AND CLINICAL GUIDE TO TRAUMA AND ENVENOMATION CASES. 2021

FOTO KLAUS RUDLOFF / BIOLIB.CZ INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

rias e veias. O fechamento dos vasos sanguíneos causa inchaço, vermelhidão na pele, inflamação, morte dos tecidos e infecções bacterianas. “A interrupção da circulação provavelmente é a causa da dor intensa, que os pacientes descrevem como excruciante”, comenta Haddad.

E

mbora usados como sinônimos, os termos veneno e peçonha expressam diferentes comportamentos, alerta o biólogo Carlos Jared, também do Butantan: “Animais peçonhentos, como as serpentes, atacam, mordem e injetam o veneno quando vão se alimentar ou se defender. Já os peixes usam o veneno apenas como forma de defesa, quando são pisados ou mordidos”. Os baiacus (Takifugu sp.), além de produzirem veneno, inflam o corpo, dando aos predadores a impressão de que seriam bem maiores, impossíveis de serem comidos. Suas toxinas estão na pele e em órgãos como o fígado, removidos antes de serem consumidos. Em 1982, o fechamento das comportas da usina hidrelétrica de Itaipu gerou um imenso lago que cobriu o salto de Sete Quedas, até então uma barreira natural às arraias. Com o caminho livre,

elas subiram o rio Paraná, chegaram ao Paranapanema e continuam se espalhando. “Por volta de 2005, coletamos as primeiras arraias no rio Tietê, hoje com quase um terço de seu curso ocupado por esses peixes”, relata Haddad. Sua previsão é de que as arraias avancem pelo Tietê e cheguem a Minas Gerais. Na estação reprodutiva, em julho e agosto, as arraias migram de áreas mais profundas para as rasas e se enterram no lodo. A pisada de visitantes no leito dos rios dispara um movimento reflexo de contração do rabo no peixe, com um a quatro ferrões, difíceis de serem removidos quando enterrados na perna. Haddad recomenda andar arrastando o pé no leito do rio, principalmente no Pantanal e na Amazônia, para afugentar as arraias. O tratamento recomendado contra acidentes com peixes venenosos consiste em imergir o membro atingido em água quente a uma temperatura tolerável, remover o ferrão ou espinho e restos que tenham se quebrado no corpo, lavar a ferida com água e sabão, procurar ajuda médica, tomar os remédios receitados e fazer curativos até o ferimento desaparecer. n Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 334 | 55


CLIMA

O RISCO DOS CICLONES EXTRATROPICAIS Aquecimento global pode aumentar intensidade do fenômeno, como o que causou em setembro mortes e destruição no Sul Meghie Rodrigues

56 | DEZEMBRO DE 2023

N

os cinco primeiros dias de setembro, choveu 300 milímetros (mm) na região central do Rio Grande do Sul, quase o dobro do previsto para o mês. A pluviosidade extrema foi acompanhada de granizo e rajadas de vento de até 100 quilômetros por hora e deixou um rastro de destruição em cerca de 90 municípios gaúchos. Aproximadamente 4.700 pessoas tiveram suas casas completamente destruídas e 20.500 foram desalojadas. Mais de 50 pessoas foram mortas e 900 foram feridas em deslizamentos de terra ou enxurradas causadas pelo transbordamento de rios, como o Taquari, cerca de 120 quilômetros a noroeste de Porto Alegre. O evento foi o maior desastre natural da história do estado. A tragédia foi ocasionada por um ciclone extratropical, nome dado a tempesta-

des com vento, geralmente mais fracas, mas similares a furacões, que ocorrem em faixas do globo situadas entre 30 e 60 graus de latitude, fora da zona tropical. Um ciclone desse tipo se forma quando, no jargão da meteorologia, surge um sistema frontal: há o encontro de duas massas de ar com diferentes densidades e temperaturas, uma fria e outra quente. Esse tipo de fenômeno meteorológico é relativamente comum no Sul do país e pode produzir desde chuvas fracas até tormentas devastadoras, como a ocorrida em setembro no Rio Grande do Sul. Ciclones extratropicais severos são conhecidos dos gaúchos: em junho deste ano, mais de 40 cidades ao norte do estado já tinham sido afetadas por outra ocorrência dessa categoria. A intensificação dos ciclones extratropicais formados no continente pode ser influenciada pela diferença de temperatura entre a superfície terrestre e a


FOTO SILVIO AVILA / AFP VIA GETTY IMAGES

Destruição no vale do rio Taquari, no Rio Grande do Sul, em setembro passado em razão de chuvas e ventos fortes

dos oceanos, especialmente durante o inverno. Nessa estação, o continente fica mais frio que os oceanos, que baixam de temperatura de forma mais devagar porque retêm mais calor. “Além disso, o ar sobre o continente sul-americano está mais seco do que sobre o Atlântico. Ao se se deslocar em direção ao oceano, o ar seco e frio do continente absorve calor e umidade da água do mar. A diferença de temperatura do ar com a água do mar e a baixa umidade relativa do ar facilitam ainda mais a evaporação do Atlântico, levando mais umidade e calor para a atmosfera”, conta Manoel Alonso Gan, meteorologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nas regiões mais altas da atmosfera, o vapor muda para a fase líquida. Assim como a evaporação da água rouba calor de quem está com uma blusa molhada, a liquefação do vapor gera calor, o que dá mais energia para o ciclone.

Não há estudos conclusivos sobre se os ciclones extratropicais estão se tornando mais frequentes ou intensos. Embora não haja consenso, alguns trabalhos indicam que, com o aquecimento global, eles tenderiam a se tornar menos numerosos, mas haveria uma elevação no número de eventos mais vigorosos. “Análises numéricas globais mostram que, ao longo dos anos, estamos tendo uma redução na quantidade de ciclones. No entanto, há aumento na quantidade dos mais intensos”, explica Gan. Na América do Sul, os ciclones extratropicais normalmente se formam no trecho do litoral entre o sul da Argentina e o Rio de Janeiro. “Por serem um centro de baixa pressão, ou seja, com menos ar do que as suas redondezas, os ciclones estão intimamente ligados à instabilidade atmosférica”, comenta o meteorologista André Nunes, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). “Para tentar entrar em equilíbrio, o sistema atmosférico faz o ar convergir para o centro de baixa pressão.” No hemisfério Sul, os ciclones giram no sentido horário, enquanto no Norte é no anti-horário. Essa particularidade se deve ao efeito Coriolis, que empurra para o oeste os ventos quentes que sopram no sentido trópico-polo e para leste os que sopram no sentido oposto. Sistemas de baixa pressão surgem com frequência sobre os continentes, mas não são necessariamente ciclones extratropicais. Estes aparecem geralmente sobre os oceanos, onde a evaporação de água é bem maior. “O encontro entre a corrente marítima do Brasil, quente, e a das Malvinas, fria na altura do Rio Grande do Sul, favorece a formação mais frequente de ciclones no Sul do país”, diz Nunes. Os ciclones extratropicais têm uma parte quente no seu setor leste – a de entrada da massa de ar com temperatura mais elevada – e uma fria no setor oeste, que é a região influenciada pelo ar frio ou de origem polar. “Chamamos a borda da massa de ar frio de frente fria e a da

massa de ar tropical de frente quente”, comenta Nunes. Frequentemente noticiadas nos meios de comunicação, as frentes frias vindas do Sul, que usualmente trazem chuvas e frescor, fazem parte de ciclones.

N

a maioria das vezes, chega ao continente apenas a borda do ciclone, não o centro, que geralmente se situa sobre os oceanos. Mas, a depender do volume da massa de ar quente em um ciclone ou na região pré-frontal de uma frente fria, pode haver tempestades e instabilidade mesmo nas margens da formação, e não apenas no coração do fenômeno. Quanto mais ar quente e úmido, mais condições de ocorrerem tempestades. A geografia da América do Sul favorece a ocorrência de ciclones extratropicais. “Os ventos alísios, ao bater na Cordilheira dos Andes, deslocam-se para o sul e facilitam a formação de ciclones”, explica Nunes. Úmidos e quentes, esses ventos sopram de leste para oeste na região equatorial. FURACÃO OU TUFÃO

Diferentemente dos extratropicais, os ciclones tropicais, que se formam nas áreas oceânicas mais próximas do Equador, desenvolvem-se a partir do aquecimento da superfície. Eles costumam ser de menor extensão e mais intensos. Os que se originam no Atlântico, nos arredores da América Central e América do Norte, são denominados furacões; os da Ásia são chamados de tufões e os sobre o Índico simplesmente de ciclones tropicais. “Eles são sempre eventos severos, mas normalmente se dissipam ao entrar no continente porque cessa a alimentação de umidade que vinha do oceano”, comenta Nunes. Já a intensidade dos ciclones extratropicais, como os que ocorrem no Sul do país, é muito variável. O problema é que os mais severos parecem ter aumentado de frequência. n PESQUISA FAPESP 334 | 57


REABILITAÇÃO

CONTORNOS DE UMA FISSURA 58 | DEZEMBRO DE 2023


Cirurgia precoce para corrigir abertura no céu da boca reduz ocorrência de problema de fala aos 5 anos de idade Renata Fontanetto

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ILUSTRAÇÃO Mariana Zanetti

ábios, gengivas, nariz e céu da boca. Em maior ou menor grau, todas essas estruturas da face podem ser acometidas em uma das más-formações congênitas mais comuns do mundo: as fissuras de lábio, de palato ou de lábio e palato. Juntas, as três formas do problema, as chamadas fissuras labiopalatinas, atingem uma proporção que varia de um em cada 500 a um em cada 2 mil bebês, com cerca de 1.500 casos novos por ano no Brasil. Elas são mais frequentes em pessoas de origem asiática do que de outras etnias e de duas a três vezes mais usuais em meninos do que em meninas. O tratamento começa com cirurgias para fechar a fissura, idealmente feitas no primeiro ano de vida, embora não haja consenso sobre a idade mais adequada para a primeira operação. E continua até a idade adulta, com o acompanhamento de cirurgiões, dentistas, fonoaudiólogos e outros especialistas. Um estudo internacional publicado em agosto na revista The New England Journal of Medicine (NEJM) trouxe uma contribuição importante para definir o melhor momento para realizar a primeira operação quando a fissura atinge apenas o palato (céu da boca). Nesses casos, quanto mais cedo, melhor, sugere o trabalho, realizado com a participação de pesquisadores do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC) da Universidade de São Paulo (USP) em Bauru. Fazer a primeira cirurgia reparadora aos 6 meses de idade foi associado a uma redução maior da ocorrência de um distúrbio de fala mais tarde, aos 5 anos, do que aguardar até os 12 meses de vida para realizá-la. Em muitos centros, os médicos optam por aguardar por causa dos riscos relacionados à anestesia e de ocorrerem complicações, como infecções ou a obstrução das vias aéreas. “Esses resultados estão sendo debatidos no hospital. Estamos avaliando a possibilidade de fazer a cirurgia mais cedo sempre que possível”, conta a fonoaudióloga Ana Paula Fukushiro, pesquisadora do HRAC e vice-coordenadora do estudo no Brasil. Ligado ao Sistema Único de Saúde (SUS), o hospital é um dos principais centros de tratamento de fissuras labiopalatinas no país e atualmente faz a correção do palato entre os 12 e os 18 meses de idade. “Para a criança, a resolução do problema de fala significa mais qualidade de vida e menos sofrimento ao ser inserida socialmente, com a possibilidade de diminuir o bullying na escola”, explica.

No trabalho, publicado em agosto, 558 crianças atendidas em 23 centros especializados da Europa e da América do Sul foram selecionadas aleatoriamente para passar pela cirurgia de correção da fissura do palato em um de dois momentos: 281 foram submetidas à operação aos 6 meses de idade e 277 aos 12 meses. Depois, os pesquisadores acompanharam os participantes até o quinto ano de vida, submetendo-os de tempos em tempos a testes para medir o desempenho da fala. Nem todas as crianças operadas completaram o ciclo de avaliação. Nos dois grupos, a grande maioria (de 85% a 90%) das crianças operadas desenvolveu a capacidade de produzir adequadamente a fala. Em especial, o som de consoantes cuja pronúncia requer o aumento da pressão do ar na boca, como “p”, “b”, “t”, “d”, ou ainda, “f”, “v”, “s”, “z”, entre outras. Mas a proporção das que ficaram livres de um problema que atrapalha a produção dessas consoantes foi maior no grupo operado precocemente do que no tardio. Aos completar 5 anos de idade, 461 crianças fizeram um teste para avaliar a chamada insuficiência velofaríngea, resultado do fechamento incompleto da passagem de ar entre o fundo da boca e a parte posterior do nariz, o que leva à pronúncia com som anasalado de sílabas com aquelas consoantes. Das 235 que passaram pela cirurgia aos 6 meses, só 21 (9%) continuavam com insuficiência velofaríngea. No grupo operado aos 12 meses, 34 (15%) das 226 crianças ainda apresentavam o distúrbio aos 5 anos de idade. Mesmo o resultado obtido com a cirurgia tardia foi superior ao de estudos anteriores, em que o problema de fala persistia em cerca de 30% das crianças operadas. Uma possível explicação para os bons resultados de agora é a técnica cirúrgica escolhida, usada tanto nas operações feitas aos 6 quanto aos 12 meses: a Sommerlad, adotada em quase todos os participantes do estudo. Criada pelo cirurgião plástico australiano Brian Sommerlad, essa estratégia é mais trabalhosa e exige maior habilidade de quem realiza o procedimento. Nela, com o auxílio de um microscópio, o cirurgião disseca e reposiciona feixe por feixe os músculos do palato mole, a parte posterior do céu da boca. Outro estudo realizado por pesquisadores do HRAC e publicado em setembro no Journal of Craniofacial Surgery, reforça a superioridade dessa técnica PESQUISA FAPESP 334 | 59


sobre duas outras na reparação de fissuras que atingem simultaneamente lábio e palato. Corrigir cedo a má-formação do palato também parece favorecer o desenvolvimento da capacidade de pronunciar as primeiras sílabas simples, formadas por uma consoante e uma vogal, por exemplo, “ba”, “da” ou “gu”, às vezes repetidas, como em “dadadadada”. Sem função comunicativa, essa habilidade, chamada balbucio canônico, costuma surgir entre os 7 e os 10 meses de idade e é um marco do desenvolvimento da linguagem. Segundo o estudo do NEJM, 84% das crianças operadas aos 6 meses de idade eram capazes de produzir o balbucio canônico ao final do primeiro ano de vida, enquanto o mesmo ocorria com apenas 64% daquelas que só passaram pela cirurgia aos 12 meses. “Fechar o palato mais cedo proporciona ao bebê maior capacidade de produzir seus primeiros sons e reduz as alterações da fala no longo prazo”, afirma Fukushiro.

O

tratamento cirúrgico também permite às crianças que nascem com fissura labiopalatina ter uma qualidade de vida comparável com a de quem não teve a deformidade. Um trabalho de revisão realizado por pesquisadores da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC)/Centro Universitário FMABC permitiu combinar os dados de 14 estudos que compararam os indicadores psicológicos de qualidade de vida entre dois grupos de crianças e adolescentes: 1.558 sem fissura labiopalatina e 1.185 que nasceram com a má-formação, posteriormente corrigida por meio de cirurgias e outros tratamentos. De acordo com os resultados, publicados em setembro na BMC Oral Health, a qualidade de vida no primeiro grupo não foi significativamente superior à do segundo. “As crianças e os adolescentes parecem se adaptar bem”, conta o pesquisador Erik Montagna, coautor do estudo. “Isso reforça a importância de realizar as intervenções o mais cedo possível, como é recomendado pelos protocolos internacionais.” Quem nasce com alguma dessas más-formações enfrenta vários desafios para realizar atividades tão corriqueiras quanto comer ou falar. As dificuldades variam de grau conforme o tipo e a gravidade da fissura. A classificação mais utilizada pelos especialistas separa a patologia de acordo com as estruturas afetadas: lábio, palato ou lábio e palato – cada um desses tipos correspondendo a cerca de um terço dos casos (ver infográfico na página 59). Por alterar a feição do rosto, as fissuras que se restringem ao lábio costumam gerar desconforto estético e geralmente são resolvidas por meio de uma cirurgia entre os 3 e os 6 meses de idade. Elas, no entanto, podem se estender até a gengiva e alterar o alinhamento dos dentes, exigindo tratamento cirúrgico e odontológico. A gravidade aumenta sempre que a fissura ocorre no céu da boca. Nesses casos, o bebê pode não

60 | DEZEMBRO DE 2023

conseguir mamar no peito por não produzir a pressão adequada para extrair o leite e o aleitamento pode exigir adaptações. Essas crianças também correm maior risco de ter problemas de fala e perda de audição em consequência de inflamações no ouvido por causa do mau funcionamento dos músculos do palato. “Não importa a extensão nem a localização, se o céu da boca é afetado, é quase certo que haverá problemas funcionais”, conta a fonoaudióloga Melissa Antoneli, do HRAC, coautora dos estudos publicados no NEJM e no Journal of Craniofacial Surgery. Pouco mais de 33,6 mil casos de fissura (labial, palatina ou labiopalatina) foram identificados no Brasil nas últimas duas décadas – uma média de quase 1,5 mil por ano. A odontologista Valéria Freitas, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia, e colaboradores chegaram a esses números ao contabilizar os casos identificados no Sistema Nacional de Nascidos Vivos (SisNac), do Ministério da Saúde, de 1999, ano em que a má-formação começou a ser registrada, até 2020. Os números mostraram que, em 82% das vezes (o correspondente a 27,7 mil casos), a fissura ocorreu de modo isolado, sem relação com outras enfermidades. Os especialistas chamam esses casos de não sindrômicos, para diferenciar daqueles nos quais a deformidade aparece associada a outras doenças – a ocorrência de fissuras na boca e na face já foi registrada em mais de 600 síndromes. Nos 22 anos analisados no estudo, houve um aumento significativo (com flutuações) na ocorrência das fissuras não sindrômicas no Brasil. O problema atingia 3,3 crianças em cada grupo de 10 mil em 2000 e passou para 5,3 por 10 mil em 2020. De acordo com os dados, publicados em setembro na Revista Paulista de Pediatria, a taxa média de casos não sindrômicos no país foi de 4,2 casos em cada grupo de 10 mil crianças. Esse número é bem inferior à média mundial, de 15 casos por 10 mil. Por razões ainda não compreendidas, tanto os casos não sindrômicos quanto os sindrômicos se concentram no interior do país. Dos 27,6 mil casos isolados de fissura, 95% (26,3 mil) foram identificados em bebês nascidos em cidades longe da costa, assim como 98% dos 6.022 casos sindrômicos. Realizado em parceria com o cirurgião-dentista brasileiro Alexandre Vieira, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, e publicado em setembro no The Cleft Palate Craniofacial Journal, o estudo não se debruçou sobre as causas de tamanha diferença. Vieira, no entanto, tem uma suspeita. “A melhor explicação que posso imaginar são as disparidades sociais observadas entre os meios rural e urbano”, afirmou a Pesquisa FAPESP. “As condições de moradia, o acesso a cuidados de saúde, a qualidade da alimentação e o nível de estresse, por exemplo, são fatores ambientais que podem influenciar o desenvolvimento do feto durante a gestação.”


Fechamento incompleto De 1999 a 2020, nasceram no Brasil 33.699 crianças com fissura no lábio, no palato ou simultaneamente no lábio e no palato

LÁBIO E PALATO NORMAIS

FISSURA LABIAL

FISSURA PALATINA

FISSURA LABIOPALATINA

Os lábios e o céu da boca

(LÁBIO LEPORINO)

Resultado da soldagem parcial

Uni ou bilateral, é mais grave

(palato) se formam entre

Ocorre pelo fechamento

dos tecidos do céu da boca,

e afeta lábio, gengiva e palato.

a 4ª e a 9ª semana de gestação,

incompleto dos tecidos que

costuma ser unilateral.

Ela corresponde a um terço dos

quando um grupo específico

formam o lábio. Pode ser uni

Pode atingir tanto o palato

casos de fissuras orofaciais no

de células e tecidos se une na

ou bilateral e afetar a gengiva

duro (ósseo e anterior) quanto

Brasil e gera problemas de fala,

região central da face

e a arcada dentária superior

o palato mole (muscular)

deglutição e audição

FONTES CDC E DA SILVA, A. M. ET AL. REVISTA PAULISTA DE PEDIATRIA. 2023

Os especialistas sabem que existem os casos decorrentes de alterações em um único gene. Em geral, são as formas sindrômicas da má-formação. Eles, no entanto, sugerem que, na maioria das vezes, as fissuras no lábio e no palato ocorram em consequência de alterações em vários genes que influenciam a formação da face e as condições em que o bebê é gestado.

INFOGRÁFICO RODRIGO CUNHA

N

o campus da USP em São Paulo, a geneticista Maria Rita Passos-Bueno e sua equipe investigam há anos as bases hereditárias das fissuras labiopalatinas e, em um trabalho recente, identificaram uma situação em que a deformidade surge em consequência da interação entre gene e ambiente. Analisando casos registrados em algumas famílias, os pesquisadores constataram que a maioria das pessoas com a má-formação compartilhavam uma alteração em um único gene, o CDH1. Esse gene codifica a produção da e-caderina, uma proteína importante para a adesão de uma célula a outra e para a formação de determinados tecidos. As mutações encontradas nessas famílias são trocas de um único par de bases nitrogenadas – as unidades químicas que compõem o DNA – dos milhares que constituem esse gene. A mudança, no entanto, era suficiente para originar uma pequena deformidade na e-caderina e impedi-la de funcionar adequadamente. A forma não alterada da e-caderina desempenha um papel importante no começo da vida. Nas fases iniciais do desenvolvimento do embrião (até a 12ª semana de gestação), essa proteína é importante para a formação de ossos, cartilagens e múscu-

los da face e a fusão das estruturas que originam os lábios e o céu da boca. Em experimentos com camundongos, rãs e células humanas, realizados em parceria com o embriologista chileno Roberto Mayor, da University College London, no Reino Unido, o grupo de Passos-Bueno observou que a mutação no CDH1 encontrada nessas famílias causava alterações na formação dos tecidos compatíveis com o surgimento de fissura labiopalatina. Mas havia um detalhe interessante. Só a mutação no gene CDH1 nem sempre era suficiente para a má-formação se manifestar nessas famílias. Em experimentos com embriões de rãs feitos no laboratório de Mayor e com embriões de camundongos e células humanas realizados no de Passos-Bueno, o biólogo Lucas Alvizi verificou que a formação dos tecidos da face era ainda mais prejudicada quando, além da alteração no gene, o embrião se desenvolvia na presença de uma inflamação – provocada experimentalmente pelo acréscimo de pedaços de bactérias no meio de cultura. Publicados na revista Nature Communications, os resultados ajudam a entender por que, nas famílias estudadas, nem sempre quem tinha o gene alterado apresentava fissura labiopalatina e confirmam que, nesses casos, ela resultou da interação entre o gene e o ambiente. “Gestantes obesas, com diabetes não controlado ou alimentação desbalanceada, rica em carboidratos e pobre em proteínas, podem expor o embrião a um ambiente inflamatório que pode potencializar o efeito dessa mutação”, propõe Passos-Bueno. n Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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MEDICINA

O CAMINHO TORTUOSO DOS ÓVULOS Células reprodutivas femininas importadas da Espanha passam por outros países antes de chegar ao Brasil Ricardo Zorzetto 62 | DEZEMBRO DE 2023


IMAGEM CLOUDS HILL IMAGING LTD / GETTY IMAGES

U

Óvulo fertilizado atravessa a trompa a caminho do útero

ma vez por mês, um óvulo maduro é liberado por um dos ovários das mulheres em idade fértil e gentilmente conduzido por diminutos cílios no interior da trompa até o útero. É um caminho curto, de uns 10 centímetros, atravessado em até 12 dias. Se no trajeto surge um espermatozoide saudável, o óvulo solitário pode se fundir com ele e gerar um embrião. Se o encontro não ocorre, a célula reprodutiva feminina é eliminada na próxima menstruação. Nos últimos anos, no entanto, uma quantidade importante de óvulos tem enfrentado um percurso bem mais longo – e, no caso do Brasil, tortuoso – antes de originar um potencial embrião, como identificou a socióloga Rosana Machin, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Em um artigo publicado em junho na revista Mobilities, ela e dois colaboradores da Espanha reconstituíram o percurso mutável dos gametas femininos vindos do exterior para atender a demanda crescente das clínicas brasileiras de reprodução assistida. Em um trabalho financiado pelo Ministério da Ciência e Inovação da Espanha, os pesquisadores analisaram documentos oficiais de importação e as regras que regulam a comercialização e o transporte de material biológico humano em diferentes países. Também entrevistaram 10 pessoas, entre médicos e embriologistas de clínicas de reprodução assistida nacionais e estrangeiras, advogados peritos na área, técnicos da agência sanitária brasileira e proprietários de empresas especializadas no transporte internacional de material biológico. Assim, conseguiram refazer passo a passo o percurso desses óvulos, que chegam ao país em números crescentes (ver gráfico na página 64) – de 2019 para cá foram importadas de 2 mil a 3 mil unidades por ano, o correspondente a algo entre 5% e 10% dos ciclos de fertilização (estímulo hormonal para liberação de óvulos, seguido de coleta) em clínicas brasileiras, segundo o Sistema Nacional de Produções de Embriões (SisEmbrio). Dois anos de trabalho revelaram que o fluxo desse material biológico exige o acionamento de uma rede de agentes intermediários – entre eles especialistas em transporte e despachantes aduaneiros – para facilitar a saída dos óvulos da Europa e sua chegada ao Brasil, às vezes se aproveitando de brechas na legislação do país de origem que podem comprometer a rastreabilidade do material. “Nesse estudo, tornamos mais claro algo que a Anvisa já desconfiava”, afirma Machin, referindo-se à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, responsável por autorizar a importação do material. A pesquisadora começou a se interessar pelo mercado nacional de reprodução assistida no fi-

nal dos anos 1990, com o início da expansão das clínicas que ofereciam esse tipo de tratamento. Em trabalhos recentes, apoiados pela FAPESP e por instituições estrangeiras, ela mapeou o aumento desses serviços no país na década passada e o perfil da população por eles atendida, além do crescimento da importação de células reprodutivas masculinas e femininas, como apresentado em um artigo publicado em 2020 no JBRA Assisted Reproduction e outro em 2022 na revista Inter Disciplina. Neste último, ela identificou que a maior disponibilidade de tecnologias de reprodução assistida levou não apenas à vinda de estrangeiros buscando o serviço no país, mas também ao aumento da importação de óvulos e sêmen (ver Pesquisa FAPESP nº 269). “Analisando as informações sobre a origem dos óvulos, notei algo curioso”, conta Machin. Embora os documentos indicassem que a origem do material era sempre o Ovobank, o maior banco de gametas femininos da Espanha, o terceiro país em que mais se doam óvulos no mundo, as células reprodutivas podiam ser adquiridas de clínicas menores. Além disso, a cada ano eles passaram a ser enviados para o Brasil a partir de um país europeu diferente. TRÂNSITO COM ESCALAS

No Brasil, não há bancos de óvulos, embora a doação seja permitida em três situações: a altruística, na qual uma mulher se submete aos procedimentos de extração dos gametas e, anonimamente, oferece-os a outra; a compartilhada, quando a receptora paga pelo seu tratamento e pelo da doadora, sem que a identidade de ambas seja revelada; e a feita por parentes de até quarto grau (primos). Em nenhuma delas, em princípio, pode haver pagamento direto ou compensação para a doadora. Na Espanha, uma mulher pode receber até € 1.200 como forma de compensação por ciclo de produção de óvulos, mais que o salário-mínimo do país (€ 1.080), e o lote vindo de lá sai mais barato do que o importado dos Estados Unidos, outro grande produtor. “As regras brasileiras criam uma situação ambígua. Proíbe pagar pelas doações feitas no país, mas permite comprar de quem paga por doações no exterior”, critica Machin. Como a quantidade disponível parece ser insuficiente, mesmo com as possibilidades de doação, anos atrás a Anvisa autorizou a importação. Em 2017, ano em que a compra no exterior passou a ocorrer de modo mais consistente, entraram no país 51 lotes de gametas femininos, com um total de 321 óvulos. Desses lotes, 86% eram provenientes do Ovobank. A documentação sanitária que acompanhava o material biológico importado da empresa espanhola indicava, no entanto, que a maioria provinha de uma sucursal na Grécia. PESQUISA FAPESP 334 | 63


No ano seguinte, segundo o estudo, o total de gametas femininos importados quase sextuplicou e chegou a 1.852 – o número informado pela Anvisa a Pesquisa FAPESP é menor, 1.322. Novamente comprados do banco da Espanha, esses óvulos tinham como local de envio uma sucursal na Itália, que não exporta as células reprodutoras de suas cidadãs. Em 2019, o padrão se repetiu. O número de exemplares cresceu outra vez, tendo o banco hispânico como principal fonte, agora despachados da Eslováquia – mais recentemente eles começaram a ser importados da Argentina.

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o menos dois motivos explicam o malabarismo. O primeiro é que a legislação espanhola é bastante exigente, como verificaram os pesquisadores, o que torna o envio de óvulos para fora da União Europeia trabalhoso e demorado. Exigem-se documentos especificando o uso das amostras (para evitar seu emprego em algo proibido no país, a gestação por substituição, conhecida pelo termo pejorativo “barriga de aluguel”), além da solicitação da clínica de destino e de documentos garantindo a disponibilidade do material. “Em toda a minha experiência profissional (mais de 20 anos em reprodução assistida) só consegui extrair embriões uma vez, seguindo o protocolo, para transferência para os EUA e demorou um ano para obter as autorizações”, afirmou aos pesquisadores um embriologista espanhol entrevistado, cujo nome não foi revelado no artigo. O segundo possível motivo apresentado por esse mesmo embriologista é que o banco de óvulos pode ter lucro alto ao revender o material para uma subsidiária. Apesar das restrições espanholas à exportação direta, essas empresas contornaram o problema.

Importação de óvulos e sêmen Como evoluiu a entrada de gametas no país desde 2016

Amostras de sêmen

3.087

2.976

Óvulos 1.968 2.041 1.348

1.2332 835 361 2016

804

1.079

781

1.012

1.956 1.079 626

321 2017

2018

2019

2020

2021

(1) Foi considerado o quantitativo referente às importações realizadas de 2011 a 2016 (2) Houve padronização na metodologia de apresentação dos dados, considerando o número absoluto de óvulos importados (em média, cada paciente importa entre 6 e 8 óvulos para uso próprio) (3) Até setembro

64 | DEZEMBRO DE 2023

2022

20233

FONTE ANVISA, 2023

As regras da União Europeia permitem que o material circule fácil e rapidamente de um país para outro do bloco sem a exigência de que as transportadoras tenham licenças especiais nem de que o material biológico passe pela alfândega. “Como a exportação direta a partir da Espanha é difícil, os bancos encontraram brechas legais para fazer o envio”, conta Machin. O sistema de gerenciamento espanhol de informações sobre reprodução assistida, em princípio, permitiria rastrear o percurso das amostras da coleta ao destino final. Ele atribui um código formado por letras e números que identifica o estabelecimento responsável por manipular o material, a data de extração e de congelamento e o tipo de material (óvulo, espermatozoide ou embrião), entre outras informações. Essa identificação tornou-se obrigatória em 2017, mas não vale para as amostras armazenadas antes de outubro de 2016, que puderam ser distribuídas sem o tal código pelos cinco anos seguintes. Além disso, segundo o depoimento de um embriologista espanhol, o sistema não estava completamente operante quando o estudo foi feito, entre setembro de 2021 e setembro de 2022. Essas falhas no acompanhamento levantaram suspeitas de que o conteúdo exportado para o Brasil pudesse sofrer alterações no caminho, como a substituição por óvulos de outra origem, algo que não pôde ser comprovado nem refutado. “Os diretores de clínicas brasileiras entrevistados afirmam que esse problema não deve ocorrer, uma vez que é possível saber a origem do material porque os médicos têm acesso à nacionalidade das doadoras dos óvulos”, conta a socióloga da USP. Outra preocupação decorrente do trânsito ampliado do material na Europa era o comprometimento de sua qualidade. Diferentemente dos espermatozoides, produzidos continuamente e lançados aos milhões a cada ejaculação, os óvulos são células raras. As mulheres nascem com um estoque limitado e, em geral, liberam um a cada mês. Sua obtenção para a fertilização in vitro exige a administração de hormônios para induzir a liberação de um número alto de gametas (de 10 a 20), além de exames para avaliar o amadurecimento das estruturas (folículos) precursoras dos óvulos. A coleta é invasiva, realizada por meio de aspiração dos folículos maduros, com a paciente sedada. “É um procedimento que gera algum incômodo e costuma causar inchaço abdominal passageiro devido ao aumento temporário dos ovários”, conta o médico Nathan Ceschin, membro da Associação Brasileira de Reprodução Assistida, a SBRA, e vice-diretor de um instituto de fertilidade privado no Paraná, que não participou do estudo. Uma vez extraído, o material tem de ser submetido a um processo especial de congelamento e mantido a cerca de 190 graus Celsius negativos.


FOTO TED HOROWITZ PHOTOGRAPHY / GETTY IMAGES INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Óvulos e embriões armazenados em um contêiner resfriado com nitrogênio líquido

Também deve ser transportado de modo a evitar impactos. Especialistas entrevistados para a reportagem, todavia, afirmam que os deslocamentos extras na Europa não devem prejudicar o desempenho dos gametas. “Esse percurso é curioso, mas, se o transporte for adequado, é provável que não ocorra o comprometimento dos óvulos nem efeitos negativos sobre o tratamento”, comenta o ginecologista Luis Bahamondes, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp). Inspeções feitas por especialistas na saída e na chegada também ajudariam a garantir a viabilidade do material. “Os óvulos passam por avaliação de embriologistas antes de sair do banco de origem e depois de chegar ao destino”, explica Ceschin.

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iante das dúvidas, por que manter a importação? O argumento mais óbvio é que é lucrativo para os centros de reprodução assistida. Outro, lembrado pelos pesquisadores e alguns especialistas, é que faltariam gametas femininos para abastecer o mercado nacional, em expansão com a queda do preço do tratamento (ainda caro, variando de R$ 20 mil a R$ 50 mil), o adiamento da maternidade e, desde 2013, a possibilidade de casais do mesmo sexo ou pessoas solteiras passarem por terapia de reprodução assistida. “No Brasil, leva de seis meses a um ano para conseguir os óvulos para um único procedimento. Com a importação, o tempo cai pela metade”, afirma Ceschin.

A crescente demanda levou a Anvisa a propor, em dezembro de 2022, alterações nas regras de importação de células reprodutivas masculinas e femininas e de embriões. A principal foi a criação das empresas importadoras, que devem ser habilitadas pela autoridade sanitária brasileira. Com a mudança, que entrou em vigor em agosto, a negociação, antes feita pelas clínicas e analisada caso a caso pela Anvisa, fica agora a cargo das importadoras, que se tornam responsáveis por garantir que o banco exportador esteja em conformidade com as normas sanitárias do país de origem, assim como por registrar as amostras, assegurar sua qualidade, supervisionar o transporte, encarregar-se da liberação alfandegária e da posterior distribuição no país. “Com a experiência de avaliação de riscos e benefícios desse processo e o crescimento das demandas por importação, foi necessário implantar um mecanismo regulatório mais eficiente”, afirmou a Anvisa a Pesquisa FAPESP via assessoria de comunicação. “O processo foi se tornando complexo e foi necessário estabelecer responsabilidades claras entre as partes (bancos de origem internacional, empresas transportadoras nacionais e internacionais, clínicas brasileiras) de forma a garantir que a importação fosse realizada com segurança, qualidade e eficiência.” Até outubro, segundo a agência, algumas empresas tinham se candidatado à habilitação, mas nenhuma ainda havia sido aprovada.n O projeto e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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ONCOLOGIA

EM BREVE, NO SUS 66 | DEZEMBRO DE 2023

O aparelho para terapia fotodinâmica foi criado pela startup MM Optics com apoio do IFSC-USP


Terapia fotodinâmica e dispositivo para tratar câncer desenvolvidos em universidade estarão à disposição na rede pública de saúde Suzel Tunes

FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

M

ais de 20 anos de pesquisas desenvolvidas no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), no interior paulista, resultaram em um novo protocolo terapêutico para um tipo específico de câncer de pele e em um equipamento inovador. Ambos poderão ser empregados tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento da lesão tumoral. A inovação está prestes a chegar à população brasileira por recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) no Sistema Único de Saúde (SUS). A Conitec é um órgão assessor do Ministério da Saúde para assuntos relativos à adoção, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS. Em julho deste ano, após concluir o processo de avaliação das evidências científicas de segurança e eficácia, além de estudos de viabilidade econômica, a Conitec recomendou a incorporação ao SUS da terapia fotodinâmica (TFD) para carcinoma basocelular, um dos tipos de câncer de pele mais comuns no país. O novo tratamento consiste na destruição do tumor por meio de irradiação intensa com luz em um comprimento de onda que ativa um agente fotossensível, produzido pelas células tumorais após aplicação local de um creme. Uma vez ativado, esse agente produz radicais livres que destroem as células que o contêm. Antes da irradiação, o próprio agente fotossensível permite identificar a região tumoral, pois uma vez iluminado com luz azul, o agente fluoresce em cor vermelha (ver infográfico na página 68). A recomendação da Conitec foi publicada no Diário Oficial da União em 5 de setembro. A partir dessa data, o Ministério da Saúde tem 180 dias para efetivar a oferta no SUS. “A incorporação dessa tecnologia é um incentivo para que as universidades continuem investindo em atividade de pesquisa, o que é fundamental para fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico na área da saúde”, afirma a farmacêutica Daniela Oliveira de Melo, coordenadora do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e professora do curso de

farmácia da instituição. A docente colaborou com o Ministério da Saúde na análise da demanda. O responsável pelo projeto, o físico Vanderlei Bagnato, conta que começou a trabalhar com terapia fotodinâmica por volta de 1997. Na época, ao participar de um congresso nos Estados Unidos, tomou conhecimento do uso da TFD no tratamento de câncer. “Fiquei fascinado e iniciei a aplicação clínica, a partir dos estudos laboratoriais realizados no exterior, em parceria com o Hospital Amaral Carvalho, de Jaú [SP]”, diz ele, que coordena o Grupo de Óptica do IFSC-USP, sede do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Inicialmente, o físico utilizou laser para tratamento de tumores na cavidade bucal e em órgãos internos como esôfago e bexiga. A droga fotossensibilizadora, com capacidade de absorver certa faixa de luz e promover a morte das células doentes, era administrada de forma sistêmica, via intravenosa. “Apesar dos resultados promissores no tratamento do câncer de bexiga e esôfago, por volta de 2005 começamos a focar em câncer de pele, utilizando um medicamento de uso tópico.” A mudança de foco se deu por dois motivos principais. O primeiro era o elevado número de casos de câncer de pele no Brasil, que poderiam responder de forma rápida ao tratamento. O segundo dizia respeito à própria terapêutica. Por se tratar de um tratamento tópico, os resultados eram mais facilmente visíveis, o que ajudava no desenvolvimento da técnica. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que o Brasil deve registrar 704 mil novos casos de câncer por ano até 2025. O mais frequente é o de pele não melanoma, responsável por 31% das ocorrências dentre todos os tipos de tumores, com cerca de 220 mil novos casos anuais. O carcinoma basocelular, para o qual a terapia fotodinâmica foi recomendada, é o subtipo mais comum do câncer de pele não melanoma, correspondendo a 80% dessa parcela. Segundo o dermatologista Mário Yoshiaki Enokihara, coordenador do curso de Especialização em Dermatologia Cirúrgica Avançada da Unifesp, o carcinoma basocelular apresenta prognóstico favorável desde que tratado precocemente, PESQUISA FAPESP 334 | 67


COMO FUNCIONA A TERAPIA FOTODINÂMICA Detecção da lesão cancerígena ocorre por fluorescência óptica

1.

Creme fotossensibilizador é

aplicado no local com indício de tumor. A região é coberta com filme plástico e papel alumínio para evitar fotoestimulação pela luz ambiente

2.

A interação do creme com

células tumorais, por três horas, produz a molécula fotossensível protoporfirina IX, sintetizada naturalmente pelo corpo. Células tumorais têm maior capacidade de produção dessa molécula

3.

Sistema que emite as luzes

é formado por um aparelho evidenciador, que usa LED violeta para detectar a lesão, e ponteira de tratamento, que emprega LED vermelho para destruir o tumor

4.

Médicos usam o evidenciador

para ver se houve formação de protoporfirina IX em toda a lesão, que apresentará fluorescência de um vermelho intenso; a pele sadia emite luz verde É a capacidade de emissão de luz por uma substância que recebe luz de outra cor, de uma fonte externa

5.

O creme é removido e a

lesão é iluminada com a ponteira de tratamento. Luz com comprimento de onda em torno de 630 nanômetros penetra na região com o tumor

6.

A protoporfirina IX absorve

a energia da luz e interage com o oxigênio presente no tecido tumoral, formando espécies reativas de alto poder oxidativo. A célula tumoral é morta por oxidação. Uma segunda aplicação finaliza o tratamento

FONTE VANDERLEI BAGNATO E CRISTINA KURACHI (IFSC-USP)

68 | DEZEMBRO DE 2023

quando a lesão ainda é inicial. Foi exatamente para o tratamento de tumores superficiais, com até 2 milímetros (mm) de infiltração, que os pesquisadores paulistas criaram o protocolo, utilizando diodos emissores de luz (LED). O laser, que penetra mais profundamente na pele, era usado nos estudos que visavam ao tratamento de órgãos internos. “Nem todos os pacientes tratados nos serviços públicos são diagnosticados precocemente, quando o tumor ainda é superficial”, diz Enokihara. A terapia fotodinâmica também é indicada em casos específicos de contraindicação do tratamento invasivo, seja por impedimentos clínicos do paciente, como imunossupressão ou baixa capacidade de cicatrização de feridas, ou se houver alto risco de desfiguração da região operada, com comprometimento funcional. O padrão ouro do tratamento é a remoção cirúrgica do tumor, com taxa de cura de até 98%.

C

oube à empresa MM Optics, uma spin-off do IFSC, fundada em 1998 e apoiada pela FAPESP, a criação do novo aparelho de TFD, com luz LED, sob orientação do Grupo de Óptica do instituto. O equipamento, 100% nacional, teve apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial – Embrapii (ver Pesquisa FAPESP nº 253). Recebeu aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2014. Segundo o engenheiro eletricista Anderson Luís Zanchin, diretor industrial e de engenharia da MM Optics, uma diferença desse equipamento em relação a outros usados para TFD em consultórios particulares é um sistema dual que une fotodetecção, a emissão de luz para a visualização do tumor, e uma ponteira de tratamento – os aparelhos concorrentes têm apenas a ponteira de tratamento. O uso da TFD para câncer de pele não melanoma foi aprovado no Brasil em 2006. ESTUDO MULTICÊNTRICO

A empresa já produziu cerca de 200 aparelhos, que estão sendo utilizados por centros de pesquisa e serviços de medicina privada. “O Brasil será o primeiro país a colocar a terapia fotodinâmica no sistema de saúde pública”, afirma a pesquisadora Cristina Kurachi, que também se dedica ao estudo de TFD no IFSC desde o fim da década de 1990. Na recomendação de incorporação da tecnologia ao SUS, a Conitec considerou a existência de profissionais capacitados e uma estrutura instalada em dezenas de serviços públicos de saúde. Segundo Kurachi, essa estrutura é resultado do Programa TFD Brasil, coordenado pelo IFSC com


Obter a recomendação da Conitec foi um processo longo. O primeiro pedido de incorporação da terapia foi feito em novembro de 2018. Após mais de um ano de análise, a resposta foi negativa e ele foi recusado. A comissão que analisou o pedido considerou frágeis as evidências científicas apresentadas, principalmente do ponto de vista de eficácia em comparação à cirurgia. “Continuamos aperfeiçoando a técnica e elevamos o índice de eliminação tumoral para 95%”, recorda-se Bagnato. “Trabalhamos com margens de segurança de modo a assegurar a remoção das pequenas células nas bordas que fogem do corpo principal do tumor.”

FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

O novo dispositivo usa luz LED tanto para detecção do tumor quanto para tratamento da lesão

apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O programa, iniciado em 2012, foi criado com a finalidade de implementar a terapia fotodinâmica em centros nacionais. Nos cinco anos que durou o projeto, foram treinados na nova tecnologia profissionais de 72 centros de tratamento espalhados pelo país. “Foi o maior ensaio clínico multicêntrico de câncer de pele do mundo”, afirma Bagnato. Um artigo com os resultados foi publicado na revista Cancer Control, em 2019. Uma das instituições participantes foi o Inca, que em 2015 criou um ambulatório específico para tratar câncer de pele com terapia fotodinâmica. “É um procedimento que poupa da cirurgia os pacientes com lesões superficiais”, destaca o chefe da Seção de Dermatologia do instituto, Dolival Lobão. Ele explica que, além de dispensar anestesia e internação, a TFD não deixa cicatrizes na região tratada. O serviço atende em média três pacientes por semana. FOTOSSENSIBILIZADOR DE BAIXO CUSTO

A parceria do Inca com a USP continua até hoje. O IFSC fornece, gratuitamente, o equipamento e o creme utilizado na terapia – manipulado na própria universidade –, e o Inca repassa os resultados clínicos aos pesquisadores. Os consultórios particulares recorrem a um produto importado, que custa em torno de R$ 1.000 a bisnaga de 2 gramas, o suficiente para quatro aplicações, em média. A manipulação do fármaco na USP foi custeada pelo BNDES e pela Embrapii. Por isso, pode ser oferecido gratuitamente ao Inca. Uma solução mais econômica pode surgir em breve. A empresa Emipharma, ligada a MM Optics, está sendo estabelecida para a produção nacional do fármaco.

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m agosto de 2022, nova submissão foi apresentada e o parecer preliminar, emitido em março de 2023, antes da etapa de consulta pública, ainda foi desfavorável. Restavam dúvidas sobre a técnica, sobretudo em questões de custo-efetividade. “Depois da consulta pública, o Conitec promoveu outra reunião e pudemos tirar todas as dúvidas”, relata Kurachi. O parecer final, favorável, veio em julho. O dermatologista Enokihara, da Unifesp, ainda vê com reservas a implementação da TFD no tratamento de câncer. Sua principal preocupação é a correta indicação da terapia fotodinâmica e o treinamento para os profissionais que a aplicarão. “Mesmo dentre os casos de carcinoma basocelular há vários tipos, e alguns mais agressivos. É preciso ter muita certeza do diagnóstico”, alerta. Opinião semelhante tem a dermatologista Maria Claudia Almeida Issa, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela estuda a terapia fotodinâmica há mais de 15 anos e viu casos de uso indevido da técnica. A médica não recomenda, por exemplo, sua aplicação para o carcinoma basocelular instalado em áreas da pele com alto risco de recorrência. “Na região do nariz e próximo aos olhos, mesmo o carcinoma in situ [não invasivo] é agressivo. Nesses casos, não se indica a TFD pela alta incidência de recidiva”, diz. A especialista enfatiza que a TFD tem “excelente taxa de cura para lesões de ceratoses actínicas, pré-malignas, na face”. Autora de um artigo de revisão sobre o uso da TFD em tratamentos de pele, publicado na revista Anais Brasileiros de Dermatologia em 2010, e integrante do estudo multicêntrico promovido pelo grupo de São Carlos, Issa vê como positiva a incorporação do tratamento na rede pública. “Estou contente que a terapia tenha sido aprovada para implantação no SUS. Agora a sua aplicação será padronizada.” n Os projetos, os artigos científicos e o livro consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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ENTREVISTA ANTONIO BISCONSIN JUNIOR

“COMER INSETOS FAZ TODO O SENTIDO” Cientista de alimentos desenvolve farinha proteica

à base de grilos e defende que o país deveria produzir conhecimento e tecnologia na área Frances Jones

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pesar de considerar que o brasileiro médio não incluirá tão cedo em sua rotina alimentar os chamados insetos comestíveis, o cientista de alimentos Antonio Bisconsin Junior, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (Ifro), defende que faz todo o sentido inseri-los na dieta – tanto pelo valor nutricional quanto pela ótica da sustentabilidade. “Insetos são uma alternativa para nosso sistema agroalimentar, que atualmente produz muito gás de efeito estufa e usa muita terra e recursos, com pouco retorno”, afirmou a Pesquisa FAPESP. Em 2023, ele concluiu o doutorado no Programa de Ciência de Alimentos da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (FEA-Unicamp), feito sob orientação da professora Lilian Mariutti, que incluiu um período de seis meses no Instituto Leibniz para Tecnologia Agrícola e Bioeconomia, em Potsdam, na Alemanha. Lá ele desenvolveu um concentrado proteico de grilo para o consumo humano – um suplemento alimentar similar ao conhecido whey protein, a proteína do soro do leite. O concentrado também pode ser usado como ingrediente pela indústria de alimentos. Uma das tecnologias empregadas por Bisconsin para criar a farinha, chamada de alta pressão hidrostática, foi a mesma utilizada por ele durante o mestrado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no campus de Araraquara, quando estudou a qualidade do suco de laranja produzido de maneira não convencional, por alta pressão. A investigação foi realizada com apoio da FAPESP. Na entrevista a seguir, ele apresenta as principais conclusões de sua pesquisa sobre a aceitação do brasileiro em incorporar insetos à sua dieta e revela particularidades desse hábito alimentar, pouco difundido no país. 70 | DEZEMBRO DE 2023

Por que comer insetos? Estudos deixam claro que insetos são ricos em nutrientes, como proteínas, lipídios de boa qualidade e fibras insolúveis. Com esse perfil nutricional, aliado à questão da sustentabilidade, insetos fazem todo o sentido como opção alimentar. A criação tem um impacto ambiental bem menor do que a de animais de corte tradicionais. Qual a vantagem de inseri-los na dieta? A principal é o teor proteico deles. É uma proteína de alta qualidade, comparada à do gado bovino, suíno, dos ovos e do leite. E há o aspecto sustentável. São emitidos menos gases de efeito estufa, a criação demanda pouco espaço, eles consomem menos alimento e água. São diversas vantagens do ponto de vista produtivo. Em que lugares o consumo por humanos é mais comum?


Bisconsin Junior: insetos são ricos em nutrientes e uma boa opção alimentar

FOTO KALITA CASTRO FOTO ESTÚDIO

Insetos têm mais proteína do que as carnes normalmente consumidas por nós? A quantidade de proteína encontrada nos insetos equivale à das carnes. Mas existe certa confusão quando são exibidos dados de análises. É muito comum as pessoas apresentarem o resultado em base seca, ou seja, desprezando a água natural do produto. Isso faz sentido quando se produz uma farinha do inseto, que tem cerca de 60% a 70% de proteína, mais do que o dobro de uma carne convencional. Mas, quando é o inseto inteiro, considerando a água contida nele, há uma proporção de proteínas e de lipídios semelhante à das outras carnes.

Em vários países da Ásia e da África. Faz parte da cultura alimentar dessas populações. A Tailândia tem um turismo forte com esse foco e consome bastante grilo. Na República Democrática do Congo, tem muita larva de besouro e lagarta de mariposa. No México, os famosos chapulines – ou gafanhotos – são vendidos em feiras de rua. As pessoas comem como se fosse pipoca. Há também o consumo em países europeus, que historicamente não têm a cultura de se alimentar de insetos, mas já criaram legislações próprias. Snacks, hambúrgueres e almôndegas de inseto são vendidos em algumas redes de alimentos da Holanda, Alemanha, França e Dinamarca. Que insetos são mais comuns por lá? Eles usam a larva do Tenebrio molitor, conhecido popularmente como besouro-de-farinha ou bicho-de-farinha, para fazer hambúrguer e almôndega, e o grilo-doméstico, que é o Acheta domesticus,

para salgadinhos. Insetos comestíveis já entraram no sistema agroalimentar europeu, embora não seja ainda algo muito popular. Você come insetos? Sim, sempre que tenho oportunidade. A última vez foi há um mês, durante uma trilha aqui em Rondônia. Pessoas da região consomem a larva de besouro do coquinho-babaçu, cujo nome popular é gongo, rico em lipídios. O costume dos indígenas é fazer um refogado. A forma larval do inseto tem grande quantidade de gordura. Também dá para cozinhar na própria gordura que soltam no aquecimento, mas no meio do mato se come cru mesmo. E tem um segredo. Você segura a cabeça do gongo e morde o restante da larvinha, jogando a cabeça fora. Se puser o bichinho inteiro na boca, ele pode te morder. É adocicado e parece leite de coco condensado, com uma textura mais firme que a do leite de coco.

O consumo de insetos traz risco de alergias, como ocorre com os crustáceos? Sim. Do ponto de vista biológico, insetos e crustáceos são classificados como artrópodes. As substâncias que os crustáceos e os insetos produzem – as proteínas que geram alergia – são muito semelhantes. Mas não há nenhum outro risco à saúde quando comparado aos outros alimentos. A Autoridade de Segurança Alimentar Europeia lançou um relatório há uns cinco anos com a análise de risco de consumo de insetos e não encontrou nenhum problema adicional. É bom ressaltar: estamos falando das espécies já caracterizadas como comestíveis – e não de espécies naturalmente venenosas, tipo uma lagarta urticante. O Brasil tem potencial para produzir insetos comestíveis? Sim, principalmente por causa da temperatura local, naturalmente alta. Poderíamos explorar os insetos mais aceitos na Europa e nos Estados Unidos – já existentes no Brasil – e exportá-los para esses mercados. Não gastaríamos tanta PESQUISA FAPESP 334 | 71


Quais os principais resultados da pesquisa que fez sobre a aceitação de insetos comestíveis? Entre 2018 e 2019, eu e um grupo de professores e pesquisadores voluntários de universidades federais e da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] entrevistamos 780 pessoas no país. Os moradores das regiões Norte e Centro-Oeste mostraram maior aceitação e familiaridade com o assunto. A cultura que molda a sociedade nessas

O brasileiro e o consumo de insetos Estudo ouviu 780 moradores de oito cidades de todas as regiões do país

n Maioria dos entrevistados

associa a ideia de comer insetos a algo nojento n Jovens mais escolarizados

têm uma atitude mais positiva com relação ao tema n Rejeição é maior entre

mulheres, pessoas com menos anos de estudo e mais velhas n Grilos e gafanhotos

são os insetos mais aceitos, seguidos pelas formigas n Moradores das regiões

Norte e Centro-Oeste mostram maior aceitação FONTE BISCONSIN-JUNIOR, A. “INSETOS COMESTÍVEIS: ESTUDO DO CONSUMIDOR E DESENVOLVIMENTO DE INGREDIENTE ALIMENTÍCIO”

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regiões é influenciada pela dos povos originários, que consomem e consumiam insetos, dependendo do grupo indígena que estamos falando. Já no Sudeste, Sul e Nordeste, onde a população se distanciou dessa cultura originária, houve maior rejeição e desconhecimento sobre o tema. Há alguma produção no Brasil? A maioria dos membros da Associação Brasileira dos Criadores de Insetos Alimentícios [Asbracia] cria insetos para alimentação animal. Mas existe uma corrente que defende o uso de insetos para a nutrição humana. Há também uma rede de pessoas que produzem, cozinham em casa e vendem, apesar de não existir legislação. É algo informal. De onde veio seu interesse por estudar esses insetos? Já acompanhava o assunto na graduação [em ciência de alimentos, na Universidade de São Paulo], mas em 2013 a FAO

Grilo desidratado (pote inferior) e a farinha feita do inseto: brasileiro resiste a incluí-los em sua dieta

[Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] publicou um amplo relatório sobre o uso de insetos na alimentação humana, trazendo vários exemplos no mundo, ideias de criação e produção, composição nutricional. O documento, revolucionário para a área de alimentos, me motivou a acreditar e investir nessa ideia. A proteína de grilo que você desenvolveu no doutorado é para ser usada no lugar do whey protein? Sim, mas não apenas como suplemen­to alimentar como o whey protein. Meu objetivo inicial era criar um concentrado, a partir do grilo-preto ou grilo-da-jamaica [Gryllus assimilis], que pudesse ser um ingrediente para a indústria alimentícia. Usamos proteína para fazer sorvete, enriquecer um produto, para dar textura, fazer uma emulsão. As empresas, infelizmente, ainda não abraçaram a ideia. O grilo é endêmico no Brasil e nas regiões mais quentes do mundo, no sul global. Sua pesquisa mostrou que, no geral, o brasileiro acha nojento comer insetos. Existe uma escala de repulsa? Sim. Nesse ranking, a barata fica em último lugar – é a mais repulsiva. Outro grupo de insetos mencionado de forma negativa foram as larvas. Larva de besouro ou mesmo lagarta-de-mariposa. Ficaram em penúltimo. Depois vieram as formigas, com uma conotação levemente positiva. Grilos e gafanhotos tiveram a maior aceitação entre os entrevistados. Algum dia os insetos farão parte da nossa cultura alimentar? Difícil responder. O ponto fundamental é que não há hoje normas regulamentadas pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] nem pelo Mapa [Ministério da Agricultura e Pecuária] sobre criação, processamento e comercialização de insetos para consumo humano. Além disso, são necessárias mudanças na visão do brasileiro e tempo para as pessoas aceitarem a ideia. Já a questão econômica poderia, sim, levar ao consumo, desde que os insetos se tornem mais acessíveis. A divulgação de receitas e de onde encontrar esses insetos também poderia ajudar a popularizar o consumo. n O projeto e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

energia criando um ambiente artificial para manter uma temperatura alta e acelerar o ciclo de vida do inseto, como fazem indústrias de produção de insetos na Holanda. Elas gastam muita energia. Também temos outra frente possível: os chamados insetos regionais, que fazem parte de nossa cultura. O brasileiro não assume, mas há quem consuma insetos. Restaurantes em São Paulo, Minas e Bahia servem pratos com formigas, por exemplo.


Tanque oceânico da UFRJ onde foi testado o modelo em pequena escala de turbina eólica flutuante projetada na USP (estrutura amarela)

ENERGIA

VENTO PARA PLATAFORMAS DE PETRÓLEO Petroleiras e centros de pesquisa buscam alternativas para abastecer unidades produtoras no mar com energia elétrica renovável

FOTO CLAUDIA MARTINI / PETROBRAS

Domingos Zaparolli

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redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) em plataformas marítimas de produção de petróleo é uma preocupação crescente da indústria de óleo e gás, e dois projetos de pesquisa em desenvolvimento no país podem colaborar com esse objetivo. A Petrobras e a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) trabalham em um sistema flutuante de geração eólica adequado para fornecer energia elétrica às unidades produtoras estabelecidas na região do pré-sal. A outra iniciativa reúne a petrolífera China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) e o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ). Em agosto, as duas instituições fecharam uma parceria para desenvolver parques offshore para a geração elétrica utilizando fontes renováveis híbridas. As plataformas de petróleo marítimas são tradicionalmente atendidas em suas necessidades de abastecimento elétrico por geradores de energia movidos a diesel ou a gás natural. As reservas do pré-sal brasileiro se caracterizam por uma composição de gás natural associado a óleo. As plataformas situadas PESQUISA FAPESP 334 | 73


nessa região empregam o gás extraído no próprio local para o funcionamento de seus geradores. Segundo o professor de estruturas oceânicas e engenharia submarina da Coppe Segen Estefen, os maiores navios-plataforma do tipo FPSO (Unidade Flutuante de Armazenamento e Transferência) que atuam no pré-sal demandam, cada um, geradores com 150 megawatts (MW) de potência instalada. A energia gerada nas plataformas movimenta diversos equipamentos necessários à exploração, como produção, separação de óleo e gás, injeção de água e reinjeção de gás nos poços, bem como à acomodação dos trabalhadores.

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projeto em desenvolvimento na Poli-USP prevê o uso de um sistema flutuante de geração eólica estabelecido em uma base ancorada no leito oceânico para o abastecimento direto de sistemas submarinos ou do próprio FPSO, reduzindo a emissão de GEE do gerador a gás natural. “A ideia é que a estrutura fique ancorada a uma distância segura da plataforma e a energia seja transportada por meio de cabos elétricos chamados umbilicais”, explica o coordenador do projeto, Alexandre Simos, professor de engenharia naval e oceânica da Poli. Distância segura é aquela que garante que não haverá danos à plataforma no caso de uma avaria no sistema de ancoragem ou na situação extrema de um eventual tombamento do aerogerador. O rotor desse equipamento, formado pelas pás, normalmente três, e o cubo central onde elas são fixadas, chega a 220 metros (m) de diâmetro – o equivalente a quase seis monumentos do Cristo Redentor. Boa parte do trabalho de engenharia do projeto consiste em evitar a possibilidade desse tipo de ocorrência. A tecnologia de geração eólica é a mesma em aerogeradores instalados em terra, fixados no leito oceânico em regiões de águas rasas ou em plataformas flutuantes (ver Pesquisa FAPESP nos 275 e 290). As instalações de sistemas flutuantes no mar, no entanto, demandam estudos sobre o tipo de plataforma e ancoragem mais adequadas para dar suporte aos aerogeradores em cada circunstância marítima e climática, incluindo o regime de ventos de cada localidade. É preciso, também, fazer cálculos avançados sobre a estabilidade e as acelerações da plataforma flutuante escolhida, considerando diversas condições combinadas de ondas, ventos e correntes. O projeto da USP e Petrobras optou por uma plataforma flutuante semissubmersível para dar suporte a um gerador de 15 MW de potência, com a qual poderiam ser montados pequenos parques eólicos flutuantes capazes de atender entre 10% 74 | DEZEMBRO DE 2023

e 30% das necessidades de um FPSO, a depender do seu porte. É uma estrutura com cerca de 100 m de diâmetro, constituída por quatro colunas cilíndricas construídas em aço naval, liga metálica com características anticorrosivas e boa soldabilidade, com calado (a parte submersa) de menos de 20 m. Uma das colunas é a base da torre do aerogerador. Um sistema de correntes e cabos de aço conectado a estacas no leito oceânico faz a ancoragem do sistema. Em agosto, uma versão em escala reduzida foi testada no Laboratório de Tecnologia Oceânica (LabOceano) da Coppe, que reproduziu as condições extremas do pré-sal da bacia de Santos, região situada a cerca de 300 quilômetros (km) da costa em uma área onde as profundidades marítimas ultrapassam 2 mil metros. “Foi o primeiro teste no mundo de uma estrutura eólica projetada para atuar nessas condições e podemos dizer que os resultados técnicos foram positivos”, diz Simos. O experimento foi pioneiro ao avaliar o uso de energia eólica para o abastecimento de um sistema submarino de injeção de água em poço de petróleo. Para o engenheiro naval Kazuo Nishimoto, professor do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Poli-USP e diretor científico do Centro de Inovação em Tecnologia Offshore (Otic), um dos Centros de Pesquisa em Engenharia (CPE) apoiados pela FAPESP e pela petrolífera Shell, os parques eólicos são uma das alternativas mais promissoras para abastecimento elétrico de plataformas de petróleo em alto-mar, mas alguns obstáculos precisam ser superados. “Ainda existem desafios técnicos para instalar, operar e manter essas usinas em águas profundas, onde estarão submetidas a regimes extremos de ondas, ventos e correntezas. É necessário projetar e desenvolver novos sistemas que permitam a instalação e a manutenção com custo aceitável”, diz Nishimoto. “Além disso, estruturas de geração de energia renovável no mar, como as eólicas ou solares, ainda são muito caras em comparação aos sistemas convencionais usados hoje, que emitem CO₂ [dióxido de carbono]. Será preciso baixar o custo para que se tornem economicamente viáveis.” O Centro de Inovação em Tecnologia Offshore dedica-se a analisar e integrar diversas soluções de descarbonização em operações offshore. A cooperação entre a chinesa CNOOC e a UFRJ envolve dois projetos que serão conduzidos pelo Grupo de Energias Renováveis no Oceano (Gero), vinculado ao Laboratório de Tecnologia Submarina da Coppe. Um projeto investigará quais tecnologias de plataformas eólicas offshore para profundidades de até 150 m são mais adequadas às condições marítimas e climáticas e ao regime de ventos do litoral brasileiro. O estudo envolve também a indicação das melhores concepções de produção das estruturas, a


Parque eólico flutuante Hywind, na costa da Escócia: primeiro projeto comercial instalado em alto-mar

adequação dos insumos disponíveis, como o aço ou o concreto de melhor desempenho, e a logística de reboque da estrutura do estaleiro ao local de operação. Os procedimentos de manutenção e reparo dos equipamentos offshore são temas também abordados pelos pesquisadores. O outro projeto conduzido pelo Gero é voltado para o abastecimento de plataformas de petróleo em águas com profundidades entre 500 e 2,5 mil m utilizando o conceito de parques híbridos, com geração eólica, solar fotovoltaica e por meio de conversores de energia das ondas, que aproveitam a força das ondas para movimentar uma turbina e gerar eletricidade (ver Pesquisa FAPESP nos 113 e 290).

FOTO EQUINOR

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ideia é que cada gerador tenha sua base flutuante própria, podendo ou não compartilhar os sistemas de ancoragem. A vantagem potencial a ser estudada são a estabilidade e a segurança que o conjunto de diferentes fontes pode proporcionar ao sistema. “Um grande desafio das instalações em águas profundas é o impacto de ondas de grande magnitude sobre os sistemas eólicos e solares”, descreve Estefen. Os pesquisadores cogitam instalar os conversores de onda a fim de proteger o conjunto de geradores eólicos e solares. Assim, o equipamento, além de gerar energia, atuará como um amortecedor, reduzindo o impacto das ondas a montante, que se formam antes de atingir as

usinas geradoras de energia. “Com maior estabilidade, os geradores eólicos ganham produtividade e os fotovoltaicos durabilidade”, justifica o engenheiro. Usinas solares flutuantes (ver Pesquisa FAPESP nº 324) são utilizadas hoje apenas sobre águas calmas. Por isso, terão que ser testadas e provavelmente aprimoradas para o emprego em condições mais turbulentas. “Teremos dois anos de trabalhos intensos até o teste em protótipo do parque híbrido no LabOceano”, diz Estefen. O primeiro parque eólico offshore flutuante do mundo já funciona há seis anos na Europa. Projetado pela petrolífera norueguesa Equinor, foi instalado em 2017 no mar do Norte e é composto por cinco turbinas situadas a menos de 30 km de Peterhead, cidade na costa escocesa para onde é enviada a energia gerada. Neste ano, a Equinor inaugurou, também no mar do Norte, o maior parque eólico flutuante do mundo, para prover eletricidade a plataformas de petróleo. Composto por 11 turbinas com capacidade instalada de 88 MW, ele deverá atender 35% da necessidade energética de suas cinco plataformas de petróleo no local, evitando a emissão de cerca de 200 mil toneladas de GEE por ano. A infraestrutura está instalada a 140 km da costa da Noruega em uma lâmina d’água de até 300 m de profundidade, muito inferior aos 2 mil m do pré-sal brasileiro. Tanto a estrutura pioneira escocesa quanto a recém-inaugurada no mar do Norte utilizam bases flutuantes do tipo spar – tecnologia que prevê apenas um cilindro vertical com calado que pode superar 100 m, de acordo com cada instalação. A Petrobras entrou com processo de licenciamento ambiental para a instalação de um parque eólico flutuante em águas com profundidades entre 120 e 160 m a 42 km de Cabo Frio, no litoral fluminense. O pedido prevê até 178 aerogeradores de 18 MW cada um. Por ora, o Brasil ainda não conta com legislação sobre o direito de uso de áreas marítimas para a geração de energia renovável nem com normas de concessão. No Congresso Nacional tramitam três projetos de lei com o objetivo de regular o tema. n Os projetos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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SOCIEDADE

DAS MARGENS ÀS UNIVERSIDADES No marco de seus 50 anos, movimento hip hop motiva pesquisas no Brasil em áreas como antropologia e educação Christina Queiroz

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Site da Universidade Harvard compila filmes, fotografias, panfletos, referências e outros itens sobre o movimento

FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 JOSÉ CRUZ / AGÊNCIA BRASIL

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m episódio do podcast Mano a mano gravado em junho, Mano Brown e Thaíde conversam sobre mudanças observadas na Pedreira, bairro no extremo sul da cidade de São Paulo frequentado pelos dois rappers. “Esse lugar já teve um momento de muita pobreza. É claro que o olhar mais aguçado de um sociólogo vai encontrar ali mil defeitos, pois estamos falando de uma favela. Mas, para nós, é perceptível como o povo de lá lutou e prosperou”, comenta Brown, apresentador do programa. A menção que o cantor e compositor do grupo paulista de rap Racionais MC’s faz às diferentes formas de olhar para as periferias urbanas ilustra um movimento que vem se fortalecendo nos últimos 20 anos no país e envolve a apropriação do hip hop – movimento social, político e cultural que surgiu nos Estados Unidos na década de 1970 – como objeto de estudos em universidades brasileiras. Se antes essas expressões eram marginalizadas no contexto acadêmico do país, hoje, quando o movimento completa 50 anos no mundo, elas começam a ser vistas como “explicações sócio-históricas de como o Brasil funciona”, observa o antropólogo Waldemir Rosa, da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila). O hip hop nasceu em Nova York, em áreas marcadas por situações de pobreza, violência, carência de infraestrutura e tráfico de drogas, e onde vivia grande parte da população negra e latina da cidade. Uma festa realizada em agosto de 1973 no bairro do Bronx, que contou com a discotecagem do DJ de origem jamaicana Kool Herc, é considerada o marco inaugural do movimento. Herc concebeu o som chamado de break, ou quebra, introduzindo sonoridades ou mudando o ritmo de músicas por meio de equipamentos de mixagem de discos. No mesmo evento, participantes começaram a improvisar rimas a partir dessas músicas, criando o rap, sigla que condensa as palavras rhythm and poetry (ou ritmo e poesia). Além da música, o hip hop engloba as expressões artísticas grafitti, breaking, estilo de dança urbana criado por bailarinos com base no break, dentre outras. De acordo com a socióloga Daniela Vieira dos Santos, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), o hip hop surgiu no Brasil na década de 1980 a partir do breaking, vinculado à veiculação de filmes de ficção norte-

Dançarino de breaking (ao lado) e graffiti (acima): junto com o rap, as expressões artísticas compõem a cultura hip hop

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Convite para festa que marcou a criação do movimento hip hop há 50 anos e o DJ Kool Herc em Nova York, em 2019

Acervo Afro Cebrap reúne material doado por colecionadores, artistas e militantes do movimento negro

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-americanos sobre esse estilo de dança, entre eles Wild style (1972), de Charlie Ahearn, e Beat street (1984), de Stan Lathan. Nesse período, na capital paulista, integrantes do movimento, chamados de hip hoppers, dançavam em festas chamadas de bailes black. No final daquela década, esses eventos também passaram a acontecer na estação de metrô São Bento e na rua 24 de maio, no centro paulistano, que se tornaram pontos de encontro de integrantes do movimento. “A primeira expressão artística que chegou até os jovens participantes dos bailes black foi o estilo de dança urbana breaking, seguido pelo rap. Da mesma forma que nos Estados Unidos, as pessoas no Brasil se envolviam com 1 essa produção cultural para fugir do contexto de violência e precariedade das periferias”, recorda Rosa, da Unila. Entre as diferentes expressões artísticas que o hip hop engloba, foi o rap que mais se destacou em todas essas décadas, devido à maior facilidade de circulação da música, conforme a professora da UEL. Os primeiros discos do gênero gravados no Brasil foram as coletâneas Hip hop cultura de rua (1988) e Consciência black – Volume 1 (1988). Lançada pela gravadora Zimbabwe Records (SP), nessa última o grupo Racionais, que surgiu naquele mesmo ano e também é composto por Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, registrou duas músicas: “Tempos difíceis” e “Pânico na zona sul”. Além disso, na mesma coletânea, Sharylaine lança a música “Nossos dias”. Segundo Vieira dos Santos, ela foi a primeira mulher a gravar um rap no Brasil. Nesse período, de acordo com a professora da UEL, foram criadas as primeiras posses na cidade de São Paulo, ou seja, grupos que atuavam para disseminar os princípios da cultura hip hop pelos bairros e também para formar politicamente a juventude periférica, propondo medidas para

superar desigualdades. “O rap se consolidou como gênero musical no final da década de 1990, especialmente por causa do sucesso do Racionais, considerado o principal grupo de rap do país, quando lançou o álbum Sobrevivendo no inferno [1997]”, avalia a socióloga. A respeito dos Estados Unidos, o pesquisador Gabriel Gutierrez, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conta que os trabalhos acadêmicos sobre o hip hop floresceram na década de 1980, associados ao campo de estudos africanos, sobretudo na sociologia da cultura. “Foi uma vertente específica do rap, o rap afrocêntrico, de forte teor político e que tem no grupo Public Enemy um de seus principais representantes, que impulsionou a entrada do hip hop em circuitos acadêmicos”, afirma Gutierrez, que pesquisa o movimento há cerca de 10 anos. Segundo o estudioso, muitos desses grupos de rap afrocêntrico eram formados por pessoas pretas de classe média e universitários de Nova York. “Elas criavam músicas de contestação que podiam desagradar os políticos e a polícia, mas, mesmo assim, foram absorvidas pela indústria cultural. Contratados por grandes gravadoras, esses artistas eram convidados para participar de programas de televisão e estavam sempre na mídia”, diz.

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o Brasil, os primeiros trabalhos acadêmicos sobre o hip hop foram escritos na década de 1990. Uma das pesquisas pioneiras é a tese de doutorado “Invadindo a cena urbana dos anos 1990 – Funk e hip hop”, defendida na UFRJ em 1998 pelo historiador Micael Herschmann. Hoje, ele é supervisor do estágio de pós-doutorado de Gutierrez na mesma instituição. Dentre os trabalhos inaugurais, segundo o musicólogo Walter Garcia, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), está a tese de doutorado sobre rap na cidade de São Paulo concluída em 1998, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pelo antropólogo José Carlos Gomes da Silva, atualmente professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Outro exemplo é a dissertação de mestrado da pedagoga Elaine Nunes de Andrade sobre rap e educação, desenvolvida na Faculdade de Educação (FE) da USP e finalizada em 1996. Garcia começou a estudar o rap a partir dos discos Raio X do Brasil (1993) e Sobrevivendo no inferno (1997), do Racionais, e depois de ler dois números da revista Caros amigos. O primeiro trazia uma reportagem sobre Mano Brown e o segundo era um especial sobre hip hop, elaborado a partir de trabalho de conclusão de graduação do antropólogo Spency


FOTOS 1 STEVEN FERDMAN / GETTY IMAGES 2 REPRODUÇÃO 3 LUANA FISCHER / FOLHAPRESS 4 ROVENA ROSA / AGÊNCIA BRASIL 5 ARQUIVO EDGARD LEUENROTH / UNICAMP

Kmitta Pimentel, atualmente professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). “A minha intenção era e continua sendo fazer a crítica da estética do Racionais no quadro de um estudo mais amplo, o da canção popular-comercial no Brasil”, afirma Garcia. Holocausto urbano (1990) é o primeiro álbum solo do grupo, cuja discografia completa é composta por oito títulos e duas coletâneas. Segundo o musicólogo, apesar de diferenças entre os discos, “o valor artístico do Racionais se constrói pela adequação entre a técnica de feitura de cada obra e o tema cantado”. Para Garcia, a técnica de feitura se refere ao trabalho artístico com vários elementos: “Escolha das palavras, rimas, figuras de linguagem, literalidade, recursos narrativos, construção e interpretação de personagens, flow, samples, acompanhamento musical, balanço” O sociólogo Richard Santos, da UFSB, observa que, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos, canais televisivos brasileiros passaram a veicular entre as décadas de 1980 e 1990 programas sobre o hip hop, o que mobilizou o interesse de jovens por pesquisar o assunto. Santos, também conhecido como Big Richard, atuou como divulgador cultural do movimento e de culturas periféricas no Rio de Janeiro e em São Paulo, além de dirigir e apresentar programas de televisão em diferentes canais da TV aberta. Hoje pró-reitor de Extensão e Cultura da UFSB, ele esteve à frente do processo de outorga do título de doutor honoris causa concedido a Mano Brown no começo de novembro. Porém a temática do hip hop ganha fôlego na academia após a promulgação da Lei nº

10.639/2003, que determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na educação, de acordo com Rosa, da Unila. Impulsionadas pela criação de ações afirmativas em universidades brasileiras, que fomentaram a entrada de populações negras e periféricas em espaços de produção do conhecimento, as primeiras pesquisas da década de 2000 procuraram analisar as relações entre o hip hop e identidades raciais em campos como sociologia, história e literatura. Em um segundo momento, prossegue Rosa, o hip hop passou a ser estudado por pesquisadores do campo da antropologia urbana com enfoque principal nas identidades juvenis e racializadas, como é o seu caso. Assim, no mestrado, concluído em 2006 na Universidade de Brasília (UnB), ele investigou o processo de construção de masculinidades heterossexuais jovens e negras em letras de rap de grupos de periferias em São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Goiás, entre outros lugares. Já no doutorado, defendido na UFRJ em 2014, o antropólogo analisou as relações entre o hip hop e o poder público. “Identifiquei que no decorrer dos anos 2000 organizações e associações se profissionalizaram, criando CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica] para acessar linhas de financiamento público de fomento a atividades culturais e comunitárias”, conta Rosa. Segundo ele, depois de 2010, como continuidade do processo de entrada do movimento no meio acadêmico, o hip hop começou a experimentar uma virada epistemológica e ser compreendido como uma possibilidade para explicar o funcionamento e a história da sociedade brasileira. A entrada do hip hop como objeto de estudos na academia está alinhada com um processo cada vez mais intenso de

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Primeira revista brasileira especializada em hip hop traz Mano Brown na capa, em 1993

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Thaíde e DJ Hum se apresentam durante festival em São Paulo, em 1999. Ao lado, artista pioneira da cena nacional, a rapper Sharylaine em retrato de 2023

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A Casa Sueli Carneiro disponibiliza documentos sobre a história do hip hop

institucionalização do movimento. Para se ter ideia, o breaking será uma modalidade olímpica a partir das Olimpíadas de Paris, em 2024. No Brasil, fazem parte dessa tendência o estabelecimento de decretos estaduais e municipais para reconhecê-lo como patrimônio cultural, o desenvolvimento de linhas de financiamento público, a criação de museus e centros culturais. Com investimentos de R$ 6 milhões, o Ministério da Cultura (MinC) lançou em outubro um edital para reconhecer e valorizar a cultura hip hop. Em julho o movimento se tornou patrimônio cultural e imaterial do Distrito Federal, por meio da Lei nº 7.274, e, no momento, a cidade de Campinas (SP) prepara a publicação de decreto similar. O governo do Rio Grande do Sul prevê inaugurar em dezembro o Museu da Cultura Hip Hop, em Porto Alegre. O espaço fica em uma área de 4 mil metros quadrados onde antes funcionava uma escola. Concebida pelo rapper Rafael Rafuagi, a iniciativa reuniu um acervo de cerca de 10 mil itens, incluindo instrumentos, toca-discos, panfletos e outros documentos, por meio de um levantamento e da coleta de material realizada em diferentes regiões gaúchas. “Além disso, acabamos de entregar um 1 inventário participativo da cultura hip hop existente em cada estado do país para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional [Iphan], solicitando que ela seja patrimonializada”, conta Rafuagi. A patrimonialização é uma ação que visa fomentar o desenvolvimento de expressões artísticas e históricas por meio

da valorização e da revitalização de determinadas culturas. “O hip hop conseguiu se legitimar na sociedade mesmo enfrentando historicamente situações de preconceito”, afirma a antropóloga Jacqueline Lima Santos, da Unicamp e uma das organizadoras do Festival Internacional Hip Hop 50, realizado pela instituição em novembro, para celebrar o cinquentenário do movimento no mundo. Lima Santos coordena, junto com Vieira dos Santos, da UEL, um selo editorial na Editora Perspectiva focado em publicações sobre hip hop. Em 2021, elas traduziram o livro Barulho de preto: Rap e cultura negra nos Estados Unidos, da socióloga norte-americana Tricia Rose, publicado originalmente em 1994, como resultado de estudos pioneiros elaborados sobre o tema naquele país. Já em 2023, elas editaram a coletânea Racionais MC’s – Entre o gatilho e a tempestade, para compilar estudos e reflexões acadêmicas sobre o grupo de rap realizados no Brasil nos últimos anos. “Por meio dessas publicações, de atividades em universidades e do diálogo com artistas do movimento queremos ampliar o campo de estudo sobre o hip hop no país”, diz Lima Santos. Por sua vez, na análise de Vieira Santos, da UEL, os estudos precisam se aprofundar em questões como o protagonismo feminino. “Desde o início, o hip hop contou com a presença de artistas mulheres. Porém elas costumavam ficar à margem das atividades e muitas foram invisibilizadas”, destaca a pesquisadora. Graduado em letras e pedagogia, Arthur Dantas Rocha, autor do livro Racionais MC’s – Sobrevivendo no inferno (Editora Cobogó, 2021) investiga como o grupo paulistano foi recebido 2

Acima, Mano Brown recebendo título de doutor honoris causa e, ao lado, graffiti da dupla paulistana OSGEMEOS

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pela imprensa e por setores culturais entre o lançamento dos discos Raio X do Brasil e Sobrevivendo no inferno. “Na época, as obras já eram conhecidas e celebradas nas periferias, mas havia uma desconfiança generalizada em relação ao rap, então um gênero musical subvalorizado”, relata Rocha. “Inclusive, muitos adotavam um discurso racista e afirmavam equivocadamente que os integrantes do Racionais eram ex-presidiários.” Por outro lado, diz, artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque destacaram o valor dos trabalhos do grupo, na contramão de grande parte da imprensa.

FOTOS 1 MALU CARVALHO / UFSB 2 EDUARDO CESAR / REVISTA PESQUISA FAPESP 3 @CINEASTAFAVELADO

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ssa visão começou a mudar na primeira década dos anos 2000, motivada por diferentes fatores. Um deles foi quando o rap começou a vivenciar um processo de profissionalização, depois que rappers como Emicida abriram produtoras dedicadas a administrar suas carreiras artísticas. Em pesquisa de pós-doutorado financiada pela FAPESP e concluída em 2019 na Unicamp, Vieira dos Santos, da UEL, identificou que o gênero musical passou a ocupar um novo lugar social e simbólico na sociedade a partir desse processo de profissionalização, constituindo o que ela denominou de “a nova condição do rap”. À conclusão similar chegou o sociólogo Felipe Oliveira Campos em pesquisa de mestrado, finalizada em 2019 na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. “Na década de 1990, os shows de rap eram marcados por uma condição de precariedade e costumavam atrasar por horas. As produtoras ajudaram a mudar esse cenário”, reforça Campos. O documentário Racionais: Das ruas de São Paulo pro mundo, dirigido por Juliana Vicente e lançado em 2022, aborda esse processo. No mestrado, Campos pesquisou a Batalha da Matriz de São Bernardo do Campo (SP). Criado em 2013, o evento acontece semanalmente em frente à igreja central da cidade, lugar conhecido por receber manifestações de trabalhadores na época da ditadura militar (1964-1985). A batalha chega a reunir por edição mais de mil pessoas, muitas delas jovens de municípios da Região Metropolitana de São Paulo, que promovem batalhas de rimas e fazem canções improvisadas de rap. Hoje, segundo Gutierrez, da UFRJ, o mercado musical do rap é complexo e multifacetado, abarcando desde músicas politizadas até românticas. “Mesmo com as diferenças, um elemento em comum na poética dessas canções é fazer crônicas da vida na rua e nos bairros em que os artistas vivem ou nasceram”, comenta o pesquisador, que no estágio de pós-doutorado investiga o mer-

cado do rap no Brasil, especialmente, no Rio de Janeiro. No estado, o miami bass, vertente do rap proveniente da Flórida, nos Estados Unidos, influenciou os primeiros rappers. “Esse estilo musical é muito dançante e tem elementos latinos. Chegou aos subúrbios do Rio e à baixada fluminense nos anos 1970 e se encontrou com o samba enredo, o candomblé e a umbanda, dando origem mais tarde ao funk carioca e também aos primeiros momentos da cena hip hop”, explica. No Brasil, diferentes pesquisadores têm trabalhado com o hip hop como ferramenta pedagógica em escolas, como é o caso da psicóloga Mônica Guimarães Teixeira do Amaral, da Faculdade de Educação da USP. Em pesquisa financiada pela FAPESP e concluída em 2018, ela constatou que as leis nº 10.639/03 e 11.645/08, que obrigam o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena em escolas, não eram cumpridas em grande parte das escolas de São Paulo. No estudo, Amaral desenvolveu metodologias e estratégias para efetivar a incorporação da legislação por instituições de ensino. Ao fomentar o intercâmbio entre a cultura escolar, expressões do hip hop e docências compartilhadas entre artistas e professores, a pesquisadora propõe ações para trabalhar com conteúdos de história da África, além de culturas afro-brasileiras e urbanas em currículos do ensino fundamental. O rapper Daniel Garnet, formado em educação física e doutorando na FE-USP, também trabalha com proposta similar. Em suas pesquisas acadêmicas, ele criou metodologias para utilizar batalhas de rima, também conhecidas como duelos de MC’s, em processos pedagógicos. Assim, em oficinas ministradas na USP, em escolas públicas e na Fundação Casa, ele se vale do gênero musical para abordar métricas de versos na poesia, rimas e figuras de linguagem, assim como ministrar aulas sobre história da África e do Brasil. “As batalhas de rap e o breaking ocupam lugar especial na cabeça dos jovens, que gostam de desafios e de testar seus limites. Além disso, elas constituem uma combinação entre o universo das artes e da educação, ajudando a despertar o interesse de estudantes por diferentes disciplinas escolares”, finaliza Garnet. n

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Rapper canta na Batalha da Matriz, em São Bernardo do Campo (SP)

Os projetos, os artigos científicos e os livros consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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ARQUEOLOGIA

A HISTÓRIA QUE OS VESTÍGIOS CONTAM Ao associar cultura material, documentos escritos e depoimentos orais, arqueologia histórica investiga da colonização à ditadura Diego Viana

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m artigo publicado durante a Segunda Guerra Mundial, o escritor britânico George Orwell (1903-1950) redigiu uma sentença que se tornaria célebre: “A história é escrita pelos vencedores”. Em geral, os registros escritos refletem o ponto de vista das elites, da documentação oficial da administração pública aos grandes poemas épicos. Mas não é só com textos que a história pode ser escrita: os rastros materiais deixados por grupos humanos permitem falar do passado de outra maneira, incluindo grupos subalternos, excluídos ou sem tradição letrada. Campo que ganhou tração no Brasil a partir da década de 1990, a arqueologia histórica se apoia simultaneamente em registros textuais e vestígios físicos. Em outubro do ano passado aconteceu a Semana de Arqueologia Histórica do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, reunindo 73 profissionais da área. Em 2024, segundo um dos organizadores do evento, o arqueólogo Marcos André Torres de Souza, do Museu Nacional da


FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

Arqueóloga trabalha nas dependências do antigo DOI-Codi, em São Paulo, centro de detenção e tortura da ditadura militar

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), está prevista a fundação da Sociedade Brasileira de Arqueologia Histórica, cujo primeiro presidente deverá ser o também arqueólogo Luis Cláudio Symanski, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Souza e Symanski são os editores do livro Arqueologia histórica brasileira (Editora UFMG, 2022). Com 22 capítulos, a obra traz um panorama de estudos realizados em todas as regiões do país. Os textos escritos por 29 pesquisadores abordam temas tão diversos quanto a relação de povos indígenas com colonizadores europeus no século XVI, a implantação de quilombos no campo e nas cidades, o impacto da monocultura de grande escala sobre biomas como a Amazônia, os efeitos ambientais e sociais da mineração e os centros de tortura na ditadura militar (1964-1985). A definição de arqueologia histórica é ampla. De acordo com Souza, no continente americano o termo é usado sobretudo para se referir a escavações que estudam o período posterior à chegada dos europeus, por oposição à arqueologia que po-

de ser chamada de pré-histórica, pré-colonial ou pré-colombiana. Segundo a historiadora Adriana Schmidt Dias, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a distinção entre história e pré-história na arqueologia tem origem no norte da Europa, no século XIX, quando eram escavados sítios dos povos daquela região que antecederam a conquista romana. Em localidades onde há documentação textual para milênios atrás, a denominação é menos comum. Quando usada, a expressão se refere sobretudo às contribuições da arqueologia para a história como um todo, conforme explica o arqueólogo francês Alain Dupouy, da Universidade Paris I. “Entendo a arqueologia histórica como busca de uma síntese dessas disciplinas, uma história total, que explora tanto as fontes arqueológicas quanto as textuais, sem hierarquia entre elas”, disse Dupouy a Pesquisa FAPESP. O arqueólogo Andrés Zarankin, da UFMG, propõe uma terceira definição, a partir das propostas do arqueólogo canadense Charles Orser. A arqueologia histórica, argumenta, é aquela que “estuda o processo de formação da sociedade moderna”. Ela seria um modo de formular questões orientada por problemas atuais. Por isso emergem subáreas como a arqueologia do capitalismo, ou da diáspora africana, ou ainda a arqueologia do passado recente, que investiga eventos acontecidos há poucos anos, da ditadura militar aos desastres ambientais. Souza, da UFRJ, reforça que a interação entre cultura material, registros escritos e entrevistas orais tem permitido “contribuir para as histórias de longa duração dos grupos indígenas, que atravessam a arqueologia pré-histórica e a histórica”, em um subcampo conhecido como etnoarqueologia. O mesmo vale para populações da diáspora africana, cuja principal forma de transmissão de memória é oral, lembra Dias, que é doutora em arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP). Se documentos e entrevistas revelam apenas parte das histórias, isso também é verdade para a cultura material. É o que relata a arqueóloga Marianne Sallum, pós-doutoranda do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas em Evolução, Cultura e Meio Ambiente do Museu de Arqueologia e Etnologia (Levoc-MAE-USP) e atualmente pesquisadora visitante na Universidade de Massachusetts (UMass), em Boston, nos Estados Unidos, com apoio da FAPESP. Por meio de fragmentos de vasilhas e potes, encontrados em escavações dos séculos XVI e XVII, Sallum e o também arqueólogo Francisco Silva Noelli, doutorando no Centro de Arqueologia (Uniarq) da Universidade de Lisboa, concluíram que a chegada dos europeus no século XVI ao território que hoje é São Paulo não levou à extinção ou à aculturação dos indígenas Tupiniquim. A pesPESQUISA FAPESP 334 | 83


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arqueóloga investiga o tema desde o doutorado, defendido em 2018, no MAE-USP. Em 2023, deu mais um passo na pesquisa ao publicar no Journal of Social Archaeology artigo com Noelli e a historiadora Sílvia Alves Peixoto, doutora em arqueologia pelo Museu Nacional da UFRJ. No estudo, os pesquisadores mapeiam a genealogia de duas mulheres Tupiniquim nascidas na capitania de São Vicente (SP), no século XVI: Joana Ramalho (c. 1511-1590) e Esperança da Costa (c. 1580-?). Com isso, levantaram, respectivamente, os nomes de cinco e sete gerações de mulheres indígenas Tupiniquim que formaram relações de parentesco com homens europeus, sobretudo portugueses. Além disso, os pesquisadores analisaram duas comunidades compostas pelos Tupiniquim e europeus, que se deslocaram de São Vicente para o litoral do Rio de Janeiro. Uma delas é a fortaleza do morro Cara de Cão, criada em 1565 pelo português Jorge Ferreira (c. 1508-1575), para participar da invasão e conquista da baía de Guanabara. Ferreira era casado com Joana Ramalho, filha da Tupiniquim Mbicy (c. 1495-?) e do português João Ramalho (c. 1493-1580). Já o engenho Camorim, na zona oeste carioca, surge em 1594 pelas mãos de Gonçalo Correia de Sá (c. 1576-?), que os pesquisadores pensam descender de portugueses e indígenas, e de sua mulher, Esperança da Costa. “As mulheres cuidavam da soberania alimentar, de parte da logística e há evidências de que participavam dos combates”, relata Sallum. 84 | DEZEMBRO DE 2023

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Na década de 1970, ceramista de Iguape (SP) executa peça com a técnica de acordelado, legado Tupiniquim do período colonial

A investigação genealógica começou em 2020 e vem sendo feita por meio de documentos como cartas e papéis da administração pública. Segundo a arqueóloga, a meta é levantar mais dados sobre mulheres e homens Tupiniquim para traçar histórias que foram apagadas pelo colonialismo e racismo. Um sítio que exemplifica como a economia colonial se instalou e se espalhou pelo Brasil está nos arredores de Belém (PA), de acordo com o arqueólogo Diogo Menezes Costa, da Universidade Federal do Pará (UFPA), autor do capítulo “Arqueologia histórica na região Norte do Brasil”. O engenho do Murutucu, que a equipe do pesquisador da UFPA explora há cerca de 10 anos, ficou ativo entre o início do século XVIII e as primeiras décadas do século XX. Além de ter sido a primeira escavação onde se encontraram vestígios de uma senzala na região, o engenho também revela o uso de uma tecnologia pouco conhecida no Brasil. “Diferentemente do que acontecia nos engenhos do Sudeste e do Nordeste, cuja tração era animal ou humana, a moenda era movida a maré”, relata Costa. “Quando a maré subia, a água era represada. Na baixa, as comportas eram abertas, fazendo o mecanismo girar. É uma tecnologia antiga, que vem dos romanos, foi usada na Irlanda e os portugueses trouxeram para cá porque a variação do nível da água é enorme”, completa. Segundo o pesquisador, o local não produzia para a exportação, mas para abastecer de aguardente o mercado interno de trocas na Amazônia (no caso, escambo entre indígenas e colonizadores), o que revela um pouco de como eram os circuitos de comércio da Colônia. A arqueologia histórica também pode investigar eventos tão recentes quanto os desastres ambientais de Brumadinho e Mariana, em Minas

FOTOS 1 PLÁCIDO DE CAMPOS JÚNIOR / MUSEU DA IMAGEM E DO SOM DE SÃO PAULO 2 DIOGO M. COSTA 3 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

quisa é uma parceria entre USP, UMass-Boston e Uniarq, onde Sallum é pesquisadora associada. Ao contrário, desenvolveu-se uma cultura material com características próprias, que os pesquisadores denominaram “cerâmica paulista” (ver reportagem “No rastro da cerâmica paulista”, disponível no site). Sallum lembra que os portugueses e os Tupiniquim já tinham uma aliança de 60 anos na guerra contra os franceses e os Tamoio, entre 1565 e 1574, que incluía casamentos entre pessoas dos dois grupos. Dessas relações resultaram práticas ceramistas aplicadas até hoje, feitas por mulheres, parte das quais reivindica o legado ancestral do modo de fazer Tupiniquim. Porém, a pura análise dos materiais, sem considerar a história local e articulação de práticas, não revela essa continuidade indígena, porque os ornamentos e formas das vasilhas são semelhantes aos encontrados na produção portuguesa. Esse contexto levou a arqueologia do século XX a sugerir que a cerâmica paulista foi uma apropriação e transformação da cerâmica comum portuguesa pelas mulheres Tupiniquim, diz Sallum, que no livro escreve com Noelli o capítulo “Povos indígenas e arqueologia do colonialismo no Brasil”.


Gerais, que já são estudados por arqueólogos. Outro tema pertencente à arqueologia do contemporâneo emergiu em 1984, quando a Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) foi constituída para estudar os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura daquele país (1978-1983). O trabalho contribuiu para a condenação de líderes do regime de exceção. No Brasil, a EAAF participou em 1996 de algumas das primeiras escavações arqueológicas na região do Araguaia (TO) que tentaram reconstituir episódios do regime militar.

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egundo Zarankin, embora estudos nesse sentido tenham ocorrido em universidades brasileiras como a UFMG e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), eles se desenvolveram mais nos países vizinhos do que aqui. Entre outros motivos, o arqueólogo relata que até 2020 os pesquisadores não conseguiam autorização para visitar centros de detenção e tortura. “Hoje, o campo é consolidado em toda a América Latina e impactou a Europa, onde a Guerra Civil Espanhola [1936-1939] tem sido muito pesquisada. No Brasil, só podíamos estudar os centros de detenção da ditadura por meio de entrevistas com sobreviventes ou plantas dos locais”, lamenta Zarankin, autor do capítulo “O desenvolvimento da arqueologia da repressão e da resistência no Brasil: Avanços e desafios”, com a arqueóloga Caroline Murta Lemos, pós-doutoranda na Unicamp.

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Parte dos itens encontrados por pesquisadores nas escavações onde funcionou o DOI-Codi paulista

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Ruínas do engenho do Murutucu, nos arredores de Belém (PA)

O primeiro estudo do gênero ocorreu em Belo Horizonte, em 2020, na sede regional do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que deverá se tornar um memorial. A partir do ano passado, foi a vez do local que abrigou o Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), no bairro do Paraíso, em São Paulo, entre as décadas de 1960 e 1970. Em ambos os casos, foram localizados objetos e fragmentos de materiais associados ao funcionamento desses espaços, corroborando as entrevistas de sobreviventes. Entre eles, há inscrições nas paredes, que aparecem ao escavar as camadas de tinta com bisturi. No DOI-Codi, os pesquisadores coordenados pela arqueóloga Cláudia Regina Plens, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pela historiadora Aline Vieira de Carvalho, da Unicamp, e por Zarankin, identificaram frascos de tinta da década de 1970, usados para preencher a ficha dos prisioneiros. Também na prisão paulistana, debaixo do piso atual, o antigo revestimento de taco escondia manchas, que no momento estão sendo avaliadas na Unifesp. A equipe quer descobrir se os vestígios são de material biológico, como sangue. “É importante que esses prédios se tornem lugares de memória, como ocorreu na Escola de Mecânica da Armada (Esma), na Argentina, e em outros centros de detenção”, diz Zarankin. Neles, foram encontradas roupas com marcas de tiro e inscrições nas paredes com pedidos de socorro. “A história que esses objetos contam é poderosa e amplia o impacto das entrevistas para conscientizar as pessoas sobre a ditadura e a violência, ou sobre a importância da democracia e da tolerância”, conclui o arqueólogo. n O projeto e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

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LITERATURA

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MEDO

ENTRE NÓS


Contos de horror escritos no Brasil do século XIX trazem personagens assustadores como fantasmas, vampiros e senhores de escravizados Juliana Vaz

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ILUSTRAÇÕES João Montanaro

ós, brasileiros, não temos Idade Média, nem antiguidades célticas, nem ao alcance mistérios do Oriente. […] O Atlântico e uma vida gloriosa de sol e de luz interpuseram-se entre nós e os mitos que saem imediatamente do solo em que vivem o francês, o inglês, o alemão e o italiano e em que viveram os seus antepassados. […] A demonologia […] não encontra na alegria americana elementos que possam favorecer a criação de uma fase estética sombria e tenebrosa.” A análise é de Araripe Júnior (1848-1911), um dos mais importantes críticos literários do país do século XIX. Para o intelectual cearense, a tradição gótica de origem europeia era incompatível com a cultura e a literatura brasileiras. Pesquisadores do século XXI, porém, têm se empenhado em derrubar essa crença e provar que a visão de mundo sombria trazida pela literatura do medo também marcou presença nos trópicos. Exemplo disso é a antologia Tênebra: Narrativas brasileiras de horror (1839-1899), organizada por Júlio França, professor de teoria da literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e pelo escritor e tradutor Oscar Nestarez, autor da tese de doutorado “Uma história da literatura de horror no Brasil: Fundamentos e autorias”, defendida no ano passado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Na obra lançada pela editora Fósforo em 2022, a dupla busca mostrar que a literatura brasileira foi, sim, assombrada por personagens fantásticos e sobrenaturais, a exemplo de fantasmas e bruxas, ou assustadoramente humanos, como maridos vingativos e sádicos senhores de escravizados. Com 27 contos, a coletânea reúne a produção

de autores consagrados como Machado de Assis (1839-1908) e Aluísio Azevedo (1857-1913), mas também de escritores pouco conhecidos do público como o paulista Antônio Joaquim da Rosa (1821-1866), que também foi político, e a jornalista gaúcha Maria Benedita Bormann (1853-1895). O livro vem se juntar a outras antologias publicadas nos últimos anos, caso de Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira (Editora Escrita Fina, 2010), organizada por Lainister de Oliveira Esteves, professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). França conta que começou a levantar as narrativas do gênero há cerca de 15 anos, quando se deparou com a quase ausência de estudos acadêmicos sobre a literatura de horror feita no Brasil. “A primeira dúvida que tive foi: a literatura do medo existiu no Brasil? E, se existiu, por que foi ignorada?”, recorda o professor, que coordena o grupo de pesquisa Estudos do Gótico, na Uerj, certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As centenas de narrativas ficcionais publicadas entre as décadas de 1830 e 1940 que França e seus orientandos encontraram em hemerotecas e bibliotecas do país foram reunidas primeiramente no site Tênebra, acervo digital criado em 2021 que continua sendo atualizado pelos integrantes do grupo. De acordo com a dupla de pesquisadores, os contos e romances de ficção que exploraram o medo como efeito estético enfrentaram o preconceito da crítica literária brasileira do século XIX. Isso porque, no jovem país recém-independente de Portugal, críticos valorizavam narrativas realistas que exploravam temas ligados à identidade nacional. A literatura de horror acabou, assim, sofrendo com a falta de recepção formal, sobrePESQUISA FAPESP 334 | 87


vivendo à margem da corrente literária principal. “[O crítico literário e professor da USP] Antonio Candido [1918-2017] aponta que a nossa literatura é de formação, que quer ajudar a entender o que é o Brasil. A literatura do medo, focada nos aspectos mais macabros e negativos da existência, não encontrou espaço nessa concepção literária que tinha como missão construir uma ideia de país”, afirma França.

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recepção da obra de Álvares de Azevedo (1831-1852) é emblemática nesse sentido, e, segundo os pesquisadores, revela o desdém com que os estudiosos de literatura no Brasil trataram as histórias de assustar. Ao explorar elementos da tradição gótica em livros como Noite na taverna (1855), novela com cenas de violência, orgia, incesto e canibalismo, e Macário (1852), drama sobre um estudante que faz pacto com o demônio, a obra de Azevedo (ver Pesquisa FAPESP nº 307) foi considerada um desvio na tradição literária do país. Hoje, porém, sabe-se que o autor, morto aos 20 anos, não foi o único na época a dialogar intensamente com o horror, nem mesmo o primeiro. Já nos anos 1830 circularam em jornais e revistas, muitas vezes no formato de folhetim, histórias que apresentavam elementos sombrios, como o conto “A missa do galo”, que abre a antologia Tênebra. Escrita por Maciel da Costa, sobre quem França e Nestarez localizaram parcas informações, a história a respeito de fantasmas e adultério foi publicada em 1839, no Correio das Modas, título voltado ao público feminino, mais de uma década antes da estreia literária de Azevedo. Na literatura, o gótico é inaugurado na Inglaterra em 1764, com a publicação de O castelo de Otranto, romance do britânico Horace Walpole (1717-1797). Nas décadas seguintes, escritores como Ann Radcliffe (1764-1823) passam a explorar elementos que se tornaram típicos do gênero, como o cenário medieval, os castelos mal-assombrados, as histórias que voltam no tempo e os elementos sobrenaturais, explica Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos, professora de literatura inglesa e comparada da FFLCH-USP. Ao longo do século XIX, a grande quantidade de obras estrangeiras importadas da Europa favoreceu a introdução de elementos góticos em romances e contos escritos no Brasil. “Na Inglaterra do século XIX, o romance realista era a forma dominante. A literatura gótica não era hegemônica, nem no Brasil nem lá. Aqui, ela circulava entre nossos romancistas quase como uma corrente subterrânea, clandestina. O próprio Machado de Assis cita Ann Radcliffe, por exemplo, numa crônica”, relata. Até mesmo um prosador como José

de Alencar (1829-1877), prossegue Vasconcelos, que mapeou o Brasil em romances indianistas, urbanos, históricos e regionalistas, aproveitou-se de recursos dessa tradição. “Nos romances O tronco do ipê [1871], Til [1872] e As minas de prata [1865], há elementos góticos. Não são preponderantes na prosa de Alencar, mas estão lá”, aponta a estudiosa. O gótico está na raiz, por exemplo, da chamada literatura moderna de horror. Segundo Nestarez, é no século XX que esse tipo de ficção passa a se impor como um território autônomo graças a alguns textos seminais, como o ensaio “O horror sobrenatural na literatura” (1927), do escritor norte-americano H. P. Lovecraft (1890-1937). No artigo, o autor de livros como O chamado de Cthulhu (1928) propõe diretrizes para o gênero e defende que a atmosfera “é a coisa mais importante de tudo, pois o critério final de autenticidade não é o encaixe perfeito de um enredo, e sim a criação de uma determinada sensação”. Na opinião de Nestarez, trata-se de um desafio definir recortes precisos para o conceito. “Na recapitulação historiográfica apresentada no ensaio, Lovecraft menciona obras da Antiguidade e do período medieval que são permeadas por essa possível poética. Ele costumava dizer que a expressão literária do medo ‘sempre existiu e sempre existirá’.” Em relação à recepção da crítica brasileira no século XIX, outro equívoco apontado por estudiosos contemporâneos é a ideia de que a ficção de horror era alienada das questões sociais de seu tempo. Por desrespeitarem as convenções do realismo, essas produções foram frequentemente lidas como uma espécie de entretenimento escapista e despolitizado. “As histórias de horror trabalham com alegorias, com elementos sobrenaturais, mas conseguem chegar mais ao âmago do que somos como país do que as narrativas realistas”, defende Nestarez. “O que um personagem negro escravizado que, depois de torturado e morto, retorna como fantasma diz sobre nós?” Segundo o pesquisador, o “Conto fantástico”, de Américo Lobo (1841-1903), presente na antologia, é um dos exemplos de história que alia crítica social a elementos fantásticos. Publicado em 1861 no jornal paulista Fórum Literário, o enredo se passa numa fazenda onde Teresa, uma mulher negra tida como feiticeira, amaldiçoa o casal que é dono da propriedade, após a morte de seu filho Sabino, um jovem escravizado.

ALGUMAS HISTÓRIAS BRASILEIRAS DE HORROR FAZEM CRÍTICA SOCIAL E DENUNCIAM A VIOLÊNCIA EXTREMA DA ESCRAVIDÃO


Um conto que também recorre a estratégias da narrativa de horror para denunciar a violência extrema da escravidão é “Consciência tranquila”, de Cruz e Souza (1861-1898), figura-chave do simbolismo brasileiro. Na trama, um senhor de escravizados rememora no leito de morte, em monólogo delirante, as atrocidades que cometeu contra homens e mulheres negros, inclusive grávidas. “Em narrativas do gótico brasileiro, em geral, há mais personagens monstruosos do que propriamente monstros. No lugar de um saci ou outra figura fantástica, os vilões são seres humanos agindo de forma assustadora”, observa Ana Paula dos Santos, autora da tese de doutorado “A tradição feminina do gótico: Uma descrição de formas e temas nas literaturas brasileira e de língua inglesa”, defendida no Instituto de Letras da Uerj, em 2022. “E, nesse tipo de história escrita por mulheres, o vilão muitas vezes é um homem, como o pai da mocinha. Ele não bebe sangue nem volta do reino dos mortos, mas tem atitudes monstruosas.”

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ma das autoras estudada por Santos é a carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). Em sua dissertação de mestrado, defendida em 2017, na Uerj, a pesquisadora analisou a coletânea de contos Ânsia eterna (1903). Na obra, segundo afirma Santos, “a escritora utiliza-se da poética gótica para descrever espaços narrativos, situações aterrorizantes e, principalmente, representar ansiedades relativas ao universo feminino. Narrativas como ‘O caso de Ruth’, ‘As rosas’, ‘Os porcos’ e ‘Sob as estrelas’ retratam problemas surgidos das relações familiares e do convívio doméstico, em que as

protagonistas são vítimas de violência física e sexual.” Em Tênebra, Almeida está representada pela versão do conto “A nevrose da cor: Fantasia egípcia” publicada em 1889, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro. Trata-se de “uma das primeiras narrativas com elementos vampíricos da literatura brasileira”, escrevem França e Nestarez no prefácio da compilação. Hoje, além do grupo de estudos da Uerj liderado por França, outras iniciativas cadastradas no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq como Nós do insólito: Vertentes da ficção, da teoria e da crítica, também da Uerj, Vertentes do fantástico na literatura, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Distopia e contemporaneidade, da Universidade Federal Fluminense (UFF), vêm se dedicando a estudar a literatura do medo e seus desdobramentos na produção contemporânea. Para Nestarez, o interesse da academia por esse tipo de produção reflete o bom momento do gênero no Brasil. No ano passado, a Biblioteca Nacional concedeu seu tradicional prêmio literário ao livro de contos Gótico nordestino (Alfaguara, 2022), do paraibano Cristhiano Aguiar. Além disso, o prêmio Jabuti criou, há três anos, a categoria Romance de entretenimento, que contempla obras de gêneros como ficção científica, policial, horror, humor, suspense e fantasia. Em 2021, premiou Corpos secos (Alfaguara, 2020), história de zumbis escrita a oito mãos por Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado. Atualmente, Nestarez organiza com França o segundo volume de Tênebra, previsto para sair em 2024. “Dessa vez, nosso foco serão contos escritos na primeira metade do século XX. A ideia, com os dois livros, é abarcar essa produção literária produzida no país ao longo de cerca de 120 anos”, finaliza. n PESQUISA FAPESP 334 | 89


MEMÓRIA

VELHO GUERREIRO O acelerador de núcleos atômicos mais potente do país continua de pé após 50 anos em operação, em busca de parcerias para prolongar sua atividade Ricardo Balthazar

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Medidor de vácuo, próximo à fonte de íons do Pelletron da USP

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nstalado num prédio de nove andares construído especialmente para abrigá-lo no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), o acelerador de partículas do Laboratório Aberto de Física Nuclear (LAFN) foi inaugurado com pompa em janeiro de 1972. Cientistas vestiram terno e gravata para mostrar as novas instalações às autoridades. A banda de música da Polícia Militar recebeu os convidados na entrada do edifício com a marcha “Pra frente, Brasil”, que embalou a Seleção Brasileira na Copa de 1970 e depois foi adotada pela propaganda do regime militar. Batizado como Pelletron, o acelerador era visto como um passaporte para o futuro, um instrumento que aproximaria a ciência brasileira da fronteira do conhecimento numa área que parecia essencial para o desenvolvimento tecnológico do país. Formou gerações de pesquisadores e continua de pé, em sua torre de concreto, mesmo após a entrada em operação de máquinas maiores e mais modernas. Passado mais de meio século, físicos da USP estão em busca de parcerias para modernizá-lo e mantê-lo em operação. Equipamentos desse tipo costumam ser desativados quando ficam obsoletos


FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 E 3 GURGEL, I. E MUNHOZ, M. G. ET AL. (ORGS.). 50 ANOS DO ACELERADOR DE PARTÍCULAS PELLETRON: VOZES DE UMA HISTÓRIA. 2022

ou os custos operacionais elevados superam os benefícios obtidos pelos cientistas. O acelerador Tevatron, que permitiu a descoberta da partícula atômica conhecida como quark top, foi inaugurado nos Estados Unidos em 1983 e desativado em 2011, pouco mais de 15 anos após a identificação do quark top. Era bem maior que o Pelletron, mas os norte-americanos concluíram que não valia mais a pena pagar para mantê-lo e decidiram apostar em equipamentos mais potentes. O Pelletron é um acelerador eletrostático, em que grandes quantidades de energia produzem um campo elétrico poderoso, capaz de impulsionar átomos ionizados (carregados eletricamente) a cerca de 20% da velocidade da luz. O equipamento promove colisões de núcleos atômicos, que revelam detalhes novos sobre a estrutura das partículas e as interações entre elas. O acelerador tem viabilizado pesquisas de vários tipos. Na física básica, os cientistas investigam o comportamento instável dos chamados núcleos exóticos, que têm mais prótons ou nêutrons do que os núcleos estáveis dos mesmos elementos químicos. O Ribras (Feixes de Íons Radioativos no Brasil), um dos sistemas conectados ao Pelletron, instalado em 2004, é dedicado a esses estudos. Um sistema mais novo, que entrou em operação em 2016, permite analisar efeitos causados por radiação em dispositivos eletrônicos. Nos últimos anos, foi usado para aprimorar circuitos desenvolvidos para satélites brasileiros, dentro do projeto “Circuitos Integrados Tolerantes à Radiação” (Citar), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Existem mais quatro aceleradores da mesma família em funcionamento na USP e em outras universidades brasileiras, mas são de porte muito menor, usados em geral para análise de materiais. Com capacidade para alcançar tensão elétrica equivalente a 8 milhões de volts, o Pelletron do LAFN é o único desse porte no país e um dos maiores em operação no hemisfério Sul. A Argentina possui uma máquina capaz de gerar tensão de 20 milhões de volts, mas o custo operacional elevado impede que chegue a tanto. “O Pelletron ainda é estratégico para o país”, afirma o físico Leandro Gasques, que assumiu a direção do laboratório neste ano. “Formamos recursos humanos, usamos tecnologia de ponta

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Em construção, a torre de concreto, com uma altura de oito andares, e o espaço para o tanque do acelerador, com três andares

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nos sistemas acoplados ao acelerador e somos bastante competitivos, como mostram os resultados que temos publicado em revistas internacionais de prestígio.” O acelerador da USP contribuiu para a formação de 108 mestres e 75 doutores desde 1975. Nos últimos anos, seus pesquisadores publicaram em média oito artigos científicos por ano com resultados obtidos no Pelletron. “Ele ainda é muito útil para investigar problemas interessantes para a física básica, apesar da migração de muitos pesquisadores para a área de grandes aceleradores, e para pesquisas mais aplicadas”, afirma o físico da USP Marcelo Munhoz, um dos organizadores do livro

50 anos do acelerador de partículas Pelletron: Vozes de uma história (Instituto de Física da USP, 2022). O PREÇO DO PIONEIRISMO

A aquisição do equipamento foi resultado de uma iniciativa do físico Oscar Sala (1922-2010), que foi professor do IF-USP, diretor científico (1969-1975) e presidente do Conselho Superior (1985-1995) da FAPESP. Ele tinha sido enviado aos Estados Unidos para estudar o assunto após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, na volta, projetara o primeiro acelerador eletrostático construído no Brasil, instalado na USP na década de 1950, com participação da indústria nacional e dinheiro PESQUISA FAPESP 334 | 91


da Fundação Rockefeller. Nos anos 1960, Sala concluiu que ele ficara obsoleto e era preciso buscar um substituto. A oportunidade surgiu em 1965, quando um grupo liderado pelo físico norte-americano Raymond Herb (1908-1996), que ajudara Sala a desenhar a primeira máquina, fundou uma empresa para desenvolver um novo tipo de acelerador, a National Electrostatics Corporation (NEC), nos Estados Unidos. Sua principal inovação era o meio utilizado para o transporte de carga elétrica dentro do equipamento, uma corrente feita de pellets metálicos, pequenos cilindros conectados a peças de material plástico. Surgiu assim o nome da máquina, Pelletron, marca registrada pela NEC. O novo acelerador prometia maior eficiência e menor custo de manutenção que a dos concorrentes, mas era um produto novo cujo desempenho ainda não tinha sido testado. Sala convenceu a USP e o governo federal a apostar no Pelletron para não correr o risco de ficar para trás na corrida tecnológica. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) destinou o equivalente a US$ 18 milhões em valores corrigidos pela inflação à aquisição do equipamento. O Pelletron importado pelo Brasil foi o primeiro vendido pela NEC, que depois adotou algumas mudanças feitas em São Paulo, que se mostraram melhores que as originais. Para a equipe da USP, o pioneirismo teve um custo. “Era como um apartamento comprado na planta, sem carpete, iluminação e armários”, compara o físico Ivã Gurgel, coordenador do acervo histórico do IF-USP e coorganizador da coletânea de entrevistas sobre a história do acelerador. Foi preciso desenvolver 92 | DEZEMBRO DE 2023

uma fonte de íons para injeção das partículas atômicas na máquina, dispositivos para distribuí-las entre os instrumentos acoplados na outra ponta, e sistemas para coletar, processar e analisar os dados dos experimentos em computadores. A fonte de íons fica no oitavo andar do prédio em que o acelerador está instalado. O feixe de íons formado pelo material introduzido no equipamento é atraído para o tubo acelerador, no interior de um tanque que ocupa o espaço de três andares. Portas de concreto revestidas de aço foram projetadas para impedir vazamentos de radiação. De lá, as partículas aceleradas são direcionadas por eletroímãs e outros aparelhos para os sistemas 2

Instalação do tanque do acelerador, no início dos anos 1970

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ários dispositivos do Pelletron foram atualizados nos últimos anos, mas a falta de um fluxo contínuo de recursos para manutenção e modernização do equipamento fez com que as reformas ocorressem com atraso e obrigou os cientistas a dedicar boa parte de seu tempo à solução de problemas técnicos. “Aqui, todo mundo tem que arregaçar a manga e batalhar pelos dados”, diz o físico Valdir Scarduelli, recém-contratado para o corpo docente do instituto e vice-diretor do laboratório. “Nossa formação acaba sendo mais completa por causa disso.” Nove professores e 15 técnicos estão envolvidos com a operação do Pelletron hoje. Em 2015, o laboratório começou a investir no desenvolvimento de um sistema de controle digital para os dispositivos ópticos usados para direcionar o feixe de partículas dentro do acelerador. O objetivo é permitir que os ajustes sejam feitos remotamente na sala de controle da máquina, sem que alguém precise subir e descer as escadas do prédio para executá-los. O trabalho tem sido feito aos poucos por um técnico da equipe e deve levar alguns anos para ser concluído.

FOTOS 1 E 2 GURGEL, I. E MUNHOZ, M. G. ET AL. (ORGS.). 50 ANOS DO ACELERADOR DE PARTÍCULAS PELLETRON: VOZES DE UMA HISTÓRIA. 2022 3 E 4LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP ILUSTRAÇÃO JOÃO CARLOS TERASSI / IF-USP

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Oscar Sala, o idealizador do Pelletron

acoplados à saída do equipamento, na área experimental que fica no subsolo. Desde cedo, Sala e sua equipe fizeram uma opção pelo desenvolvimento de tecnologias na própria universidade. O grupo tinha um computador de grande porte da IBM, e a empresa chegou a oferecer um mais novo com os sistemas de detecção de dados prontos para usar, mas a oferta foi recusada. “Se nós comprássemos uma unidade sofisticada dessa, complexa, sem experiência, na primeira pane que ela oferecesse, estaríamos perdidos”, contou Sala em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas (FGV), concedido em 1977. Como a economista Tharsila Reis de Medeiros observa em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2012, a opção pelo desenvolvimento local dos sistemas deu bons resultados por algum tempo, mas acabou posta em xeque com o surgimento dos microcomputadores e outros avanços que deixaram o Brasil para trás na informática.


Ilustração esquemática do Laboratório Aberto de Física Nuclear

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É uma realidade diferente da encontrada pelos cientistas nos poderosos aceleradores construídos no exterior nos últimos anos, como o Grande Colisor de Hádrons (LHC), operado pela Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (CERN), na fronteira entre a França e a Suíça. “Lá, eu nem chego perto do acelerador e posso me concentrar na análise dos dados”, afirma Munhoz, que trabalha num projeto internacional no LHC. Em operação desde 2008, o equipamento é o maior acelerador de partículas do mundo, capaz de alcançar até 7 trilhões de volts de energia. “Os países ricos desativaram a maioria dos aceleradores do porte do Pelletron porque tinham recursos para construir instalações muito maiores e fazer outro tipo de pesquisa. Mas não desativaram todos e vários aceleradores semelhantes ainda contribuem com pesquisas, por exemplo, para estudar reações nucleares em estrelas ou verificar pequenos desvios das previsões do Modelo Padrão da Física de Partículas [teoria sobre o comportamento das partículas e a interação entre elas desde o início do Universo]”, diz a física húngaro-brasileira Alinka Lépine-Szily, professora da USP que dirigiu o Pelletron entre 2007 e 2011. “O Brasil não tem condição de ter um laboratório muito maior, mas ainda podemos fazer muito com esse equipamento.” No início dos anos 1980, quando o Pelletron completou sua primeira década em atividade, o próprio Sala percebeu a necessidade de dar um passo além para manter o laboratório em condições competitivas. A alternativa que propôs foi um convênio com o Laboratório Nacional Argonne, nos Estados Unidos, que havia

Valdir Scarduelli, vice-diretor do laboratório, na sala de controle; as linhas de feixes de íons (à esq., o Ribras), com diferentes aplicações

desenvolvido outro tipo de equipamento para o estudo de núcleos atômicos, usando radiofrequências para acelerar as partículas. Ele poderia ser acoplado à saída do Pelletron para amplificar os efeitos da energia gerada pelo equipamento.

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instituto criou o Laboratório do Acelerador Linear (Linac), no mesmo prédio do Pelletron, e comprou parte dos aparelhos necessários, mas a montagem do equipamento desenhado no Argonne não foi concluída até hoje. Sala sofreu um derrame cerebral e perdeu condições de seguir à frente do empreendimento. Scarduelli estima que a conclusão do projeto permitiria dobrar a energia gerada pelo Pelletron, mas faltam recursos, técnicos e professores que possam se dedicar exclusivamente a ele. A participação dos físicos da USP no desenvolvimento dos chips para o programa de satélites pode ter aberto caminho para uma solução. No projeto

Citar, concluído neste ano, o Pelletron foi usado para testar os componentes criados por outros laboratórios e indicar ajustes necessários. O equipamento, porém, não cobre todos os testes exigidos para certificação dos dispositivos de acordo com padrões internacionais. Em tese, a conclusão da montagem do Linac poderia resolver o problema, permitindo que o Pelletron oferecesse serviços de certificação a fabricantes dos circuitos. O financiamento para esse avanço poderia vir do lançamento de uma nova fase do Citar, atualmente sendo discutida pelo governo federal com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e outras instituições que participaram do programa. Em maio deste ano, ao final de um evento que comemorou os 50 anos do Pelletron, o então diretor do LAFN do IF-USP, Rubens Lichtenthäler Filho, mencionou essa possibilidade ao ser questionado sobre o futuro. “A última coisa que podemos fazer é desistir”, afirmou. “Nesse caso, acho que realmente tem uma luz no fim do túnel.” n PESQUISA FAPESP 334 | 93


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

UMA ATIVISTA CONTRA A FOME Além de pesquisar o tema, a historiadora Adriana Salay comanda o projeto “Quebrada alimentada” em um bairro da periferia paulistana

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asci em 1984. Sou a segunda filha de quatro irmãos e morei boa parte da infância na região do ABC paulista, sendo um período em uma favela de Diadema [SP]. Meus pais se separaram quando eu tinha 2 anos e minha mãe criou os filhos com grande esforço. Não chegamos a passar fome, mas vivíamos em uma situação difícil, com pouco dinheiro. Experimentei aquele desejo cotidiano nunca satisfeito, como define a escritora Helena Silvestre no livro Notas sobre a fome [Editora Expressão Popular, 2019]. Ou seja, não faltava arroz e feijão em nossa mesa, mas éramos bombardeados pela mídia e pela sociedade com outras vontades que não podíamos ter em casa. Estudei na Escola Técnica Estadual [Etec] Lauro Gomes, em São Bernardo do Campo [SP], onde fiz o ensino médio e, à tarde, o curso técnico em laboratório industrial. Por volta dos 16 anos comecei a praticar dança de salão e cheguei a dar aulas da modalidade. Ao terminar o ensino médio cursei um ano de comunicação das artes do corpo na PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo], mas precisei parar de dançar por causa de uma lesão na coluna e isso me fez pensar em outras possibilidades de trabalho. A experiência de ensinar dança me mostrou que eu gostava de ser professora e resolvi tentar história. Além disso, na minha família sempre se falou muito sobre as questões sociais do Brasil. Minha mãe, Maria Cristina, e meu pai, Alexandre, são muito politizados. Em 2004 fui aprovada no curso de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo [FFLCH-USP]. Quando entrei, 94 | DEZEMBRO DE 2023

ainda não havia sistema de cotas e eu me sentia um verdadeiro extraterrestre na universidade. Poucos eram os egressos de escolas públicas. Lembro que uma amiga da faculdade falou que iria fazer iniciação científica e eu pensei: “O que é isso? Vou fazer também!”. Em 2007, fui estudar os processos de independência do Brasil, orientada pelo professor João Paulo Garrido Pimenta. Foi ali que comecei a entender o que era fazer pesquisa em história, um trabalho árduo que inclui visitar arquivos e saber ler os documentos. Quando terminei a graduação, em 2010, resolvi pesquisar a alimentação brasileira. Na faculdade, havia feito uma disciplina sobre essa temática, ministrada pelo professor Henrique Carneiro, e me encantei pelo assunto. Iniciei o mestrado dois anos mais tarde, também no Departamento de História da FFLCH­ ‑USP. Investiguei o papel do feijão na construção da identidade nacional e a diferença entre esse discurso e seu consumo efetivo nas últimas décadas no Bra-

sil. Os povos originários já comiam essa leguminosa, que gradualmente chegou nas casas coloniais, mas foi no século XIX que ela começou a se transformar em item indispensável na mesa do brasileiro. Tanto que no século XX o feijão era visto como um dos ícones de brasilidade pelos modernistas. Na pesquisa mostro por meio de dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] que o consumo doméstico de feijão, entretanto, caiu 49% entre 1973 e 2009. Em compensação alguns itens ganharam mais espaço, como os alimentos industrializados, com alta acumulada de 400%. Nessa época, comecei a participar do Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo, um grupo de discussão cria-

A historiadora (de camiseta branca) ajuda a distribuir refeições para moradores da Vila Medeiros, na zona norte paulistana, em 2021

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Adriana Salay no restaurante Mocotó, onde são preparadas as marmitas do projeto “Quebrada alimentada”

FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 OFÍCIO DA IMAGEM / AGUINALDO PEDRO

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do pelo sociólogo Carlos Alberto Doria composto por pesquisadores, cozinheiros e demais interessados em alimentação. Foi lá, discutindo sobre feijão e outros itens alimentícios, que conheci meu marido, Rodrigo Oliveira, chef do restaurante Mocotó. As reuniões aconteciam no próprio restaurante, localizado na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo. Em 2015 defendi minha dissertação de mestrado, grávida do meu primeiro filho, Pedro. Após dois anos dedicados exclusivamente à maternidade, entrei para o doutorado em 2017, também no Departamento de História da FFLCH-USP, com Maria Alice na barriga. Minha pesquisa foi sobre Josué de Castro [1908-1973], médico pernambucano que também atuou, por exemplo, como geógrafo e sociólogo, e lutou contra a fome no Brasil [ver Pesquisa FAPESP nº 324]. Eu me aproximei da obra dele no mestrado. No doutorado, busquei compreender como a fome passou a ser discutida como um problema público e político no país e qual foi o papel de Josué nesse debate. Durante a pesquisa feita em jornais da época me deparei com um cenário catastrófico. A região brasileira mais atingida pelas crises de

fome era o semiárido, que sofria com grandes secas e a desigualdade social. Mas, como mostrou Josué, essa mazela cotidiana não poupava outras partes do Brasil. Além disso, episódios internacionais, como a Segunda Guerra Mundial [1939-1945], agravavam a situação. No trabalho fui orientada por Miguel Palmeira, professor de metodologia e teoria da história, uma pessoa incrível que teve grande importância na construção da minha autoestima como pesquisadora.

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m março de 2020, quando chegou a pandemia de Covid-19 ao país, eu tinha acabado de entregar a qualificação da minha tese e estava com essa questão da guerra na cabeça. Sabia que o mundo enfrentaria uma batalha contra a fome. Eu e Rodrigo estávamos muito preocupados não apenas com o que aconteceria à nossa família, já que o mercado de restaurantes seria muito afetado pela crise sanitária, mas também com a comunidade da Vila Medeiros, que é um bairro periférico, com muitas áreas vulneráveis. Em respeito às medidas de isolamento, fechamos o restaurante e no dia seguinte começamos a servir marmitas na porta

do Mocotó. Foi assim que nasceu o projeto “Quebrada alimentada”. No início, atendíamos famílias cadastradas em um centro para crianças e adolescentes do bairro, porém uma foto tirada por um vizinho viralizou nas redes sociais e passamos a ter mais demanda. Ao mesmo tempo, começamos a receber ajuda de outros restaurantes, que doavam os estoques parados por causa da pandemia. O resultado é que servimos mais de 100 mil refeições entre 2020 e 2023. Hoje, além das marmitas diárias, distribuímos mensalmente cestas básicas para cerca de 260 famílias da região. Em 2021, o projeto venceu o concurso The Macallan Icon Award, promovido pelo ranking “50 melhores restaurantes da América Latina”. O prêmio contempla iniciativas na área da gastronomia que geram mudanças positivas na sociedade e na indústria alimentícia. Outro reconhecimento que me deixa muito orgulhosa foi a menção honrosa no prêmio USP Mães Pesquisadoras 2023, um reconhecimento às mulheres que se desdobram entre maternidade e pesquisa. Como se sabe, não é fácil conjugar as duas coisas. No meu caso, além de Pedro e Maria Alice, tenho três enteadas, Nina, Flor e Cora, que passam alguns dias da semana em nossa casa. Defendi minha tese em junho. Na oportunidade, fui convidada pela professora Deisy de Freitas Ventura para um estágio de pós-doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP, em 2024. A ideia é estudar o papel das cozinhas coletivas em crises sanitárias. Como pesquisadora, sempre trilhei o caminho da história, mas estou muito animada com esse novo rumo que se abre para a minha trajetória acadêmica. n DEPOIMENTO CONCEDIDO A NEIDE OLIVEIRA

SAIBA MAIS Prêmio USP Mães Pesquisadoras

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RESENHA

Um paraíso ainda perdido Danilo Araújo Fernandes

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Arrabalde: Em busca da Amazônia João Moreira Salles Companhia das Letras 424 páginas R$ 79,92

96 | DEZEMBRO DE 2023

o início do século XX, mais especificamente em 1904, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, Euclides da Cunha, inicia uma jornada pelos “sertões” amazônicos seguindo a saga da população sertaneja que para lá havia se deslocado em busca do “ouro negro” da borracha. A sutileza e a potencialidade do projeto intelectual euclidiano estão na combinação de seu espírito republicano associado a uma enorme sensibilidade social e a um profundo interesse pela ciência de sua época. Na bagagem, ele levava um roteiro de viagem que previa ao final a escrita de seu segundo livro, Um paraíso perdido. Uma obra inacabada, como todos sabem, mas que deixou bastante vivas na cultura intelectual brasileira as marcas de um projeto ambicioso de interpretação da Amazônia. Entre as marcas deixadas pelo projeto euclidiano está a percepção de que a superação das desigualdades e mazelas que separam os diversos brasis deveria se dar por um processo lento de expansão da influência da civilização ocidental. Um movimento de homogeneização gradual, que abarcaria as raças autenticamente adaptadas ao meio e localizadas nos lugares mais inóspitos – mesmo que considerados culturalmente atrasados e inferiores – e as quais poderiam garantir uma maior capacidade de sucesso e adaptação das regiões mais distantes do processo de absorção dos valores da civilização. Isso contribuiria para a consolidação da identidade e da unidade da nação brasileira. Não é preciso ir muito longe para identificar a força retórica desse argumento ainda nos dias de hoje. No livro Arrabalde: Em busca da Amazônia, João Moreira Salles resgata, simbolicamente, e atualiza, com perspicácia, a saga euclidiana pela valorização da Amazônia; assim como a busca da superação de seus mitos e desafios atuais. Da mesma forma como Euclides, Salles se surpreende quando da sua chegada à região ao encontrar uma Amazônia bastante distante da sua imaginação. Diferentemente de Euclides, no entanto, ele não parece acreditar que o avanço da civilização possa se dar com o protagonismo do sertanejo e de seus descendentes, que hoje se agregam aos povos e comunidades tradicionais, estabelecendo a base atual da economia da sociobiodiversidade na região. Como alternativa, propõe como pauta prioritária a construção de modelos de desenvolvimento

orientados pela experiência e pela prática recente de empresários, políticos, pesquisadores, intelectuais e representantes destacados do terceiro setor na região. Interlocutores, que fazem as vezes de atores em cena, entram e saem da narrativa e dos capítulos do livro, contando suas estórias de vida, interpretações e projetos que orientam, tendo, como pano de fundo, as propostas consideradas com potencial efetivo de redenção da Amazônia. Com foco no que a Amazônia representa hoje para a humanidade e seu potencial de levar o país a um protagonismo internacional nunca antes imaginado, Salles se empenha em oferecer uma perspectiva de futuro para o país em que, por outro lado, à moda de Euclides, a Amazônia é vista ainda como uma esfinge, e/ou paraíso, a ser decifrada; assim como, de forma mais contemporânea, um lugar a ser cuidado e protegido como monumento que revela a grandeza das antigas civilizações que habitaram a região há milhares de anos. Seu olhar atual sobre a chamada Amazônia profunda revela, nesse sentido, um encantamento pelos avanços científicos da arqueologia e da botânica, e demonstra como a Amazônia teria o potencial de se desenvolver, valorizando o que tem de específico e único: a sua biodiversidade. Contrapondo-se de maneira brilhante ao projeto hegemônico que hoje valoriza a exploração imediata dos recursos naturais da região até a sua completa exaustão, o projeto de transformar a Amazônia em região protagonista no cenário internacional defendida pelo autor tem, sem dúvida, um estatuto científico e civilizatório muito mais elevado do que seus concorrentes imediatos. No entanto, um leve desencanto pode tomar conta do leitor mais atento diante da manifestação de desconfiança do autor em relação a um potencial protagonismo das populações tradicionais de pequenos produtores, agricultores, extrativistas e ribeirinhos nesse novo e ambicioso projeto. Nesse sentido, Salles talvez se mantenha preso, sem perceber, à perspectiva do viajante que carrega consigo, desde os tempos coloniais, a marca da desconfiança no desconhecido. Danilo Araújo Fernandes é coordenador do Programa de Pós-graduação em Economia e integra o Programa de Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, ambos da Universidade Federal do Pará.


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Durante uma caminhada noturna no Parque Estadual da Caverna do Diabo, no interior de São Paulo, pesquisadores avistaram luzes verdes na base de uma árvore. Era uma profusão de cogumelos bioluminescentes em forma de copos com menos de meio milímetro de diâmetro, diferentes de todos os já descritos ali, a ponto de terem sido alojados em um gênero novo. O nome científico, Eoscyphella luciurceolata, faz referência à produção de luz e ao formato, além de remeter a Lúcifer em homenagem à caverna. “Nosso desafio é cultivá-los em laboratório para sequenciar o DNA e ver se os genes envolvidos na bioluminescência são diferentes das outras espécies”, conta o químico Cassius Stevani, que participou da descrição científica do achado.

Imagem enviada por Cassius Stevani, professor no Instituto de Química da Universidade de São Paulo 98 | DEZEMBRO DE 2023

FOTO HENRIQUE DOMINGOS / IPBIO-IPORANGA

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