A corrida pelas terras-raras

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Reintrodução de animais ganha espaço em projetos para restaurar ecossistemas

Dez anos após a epidemia de zika, pediatra da Fiocruz fala do impacto da microcefalia

Drones desenvolvidos no país começam a ser usados no combate a incêndios florestais

A corrida pelas terras-raras

Com grandes reservas desses minerais essenciais para a transição energética, Brasil investe em pesquisa para dominar sua cadeia de produção

Mais de 85% das cidades brasileiras não têm plano de adaptação a mudanças climáticas Católicos e evangélicos reveem leituras tradicionais da Bíblia em debates sobre raça e gênero

sua pesquisa rende fotos bonitas?

Seu trabalho poderá ser selecionado e publicado na revista. Requisitos: beleza; estar associado a pesquisa; ter boa resolução (300 DPI)

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out 2025 356

Lobo-terrível: anúncio de desextinção provoca controvérsia

(CONSERVAÇÃO, P. 42)

revistapesquisa fapesp

5 CARTA DA EDITORA

6 NOTAS

CAPA Terras-raras: fluoreto de praseodímio, óxido de didímio, fluoreto de neodímio e óxido de neodímio

FOTO LÉO RAMOS CHAVES

CAPA

12 Brasil investe para dominar o ciclo produtivo das terras-raras e dos superímãs

19 Mineração urbana pode reduzir impactos ambientais da produção de metais

ENTREVISTA

22 A médica Maria Paula Curado trabalhou para identificar o perfil de ocorrência dos tumores na população

EMPREENDEDORISMO

28 Estudo estima a quantidade de doutores que se tornam donos de empresas no país

COMUNICAÇÃO

32 Análise evidencia os limites de estratégia para combater a desinformação

INDICADORES

34 Relatório de atividades FAPESP 2024 aponta retomada de fôlego da ciência paulista na pós-pandemia

BOAS PRÁTICAS

38 Investigação expõe rede de fraudadores por trás de artigos invalidados na revista PLOS ONE

DADOS

41 Escolaridade de nível superior de jovens adultos

CONSERVAÇÃO

42 Compreensão de ecossistemas leva à reintrodução de animais essenciais a seu funcionamento

ECOLOGIA

48 Microplásticos podem alterar dinâmica de microrganismos na Amazônia

CIÊNCIAS ATMOSFÉRICAS

50 Desmatamento reduz 75% da chuva na Amazônia na estação seca

AMBIENTE

52 Maioria das cidades do país não tem planos de adaptação para as mudanças climáticas

Igarapés amazônicos podem sofrer alteração pela presença de microplásticos (ECOLOGIA, P. 48)

POLÍTICAS PÚBLICAS

56 Eventos meteorológicos extremos afetam a vida das crianças e reforçam desigualdades sociais

EPIDEMIOLOGIA

60 Enfermidades gastrointestinais e metabólicas podem aumentar o risco de Parkinson e Alzheimer

ENTREVISTA

64 Dez anos após a epidemia de zika, pediatra da Fiocruz fala sobre os problemas enfrentados pelas crianças com microcefalia

ASTROFÍSICA

68 Buraco negro com massa de 36 bilhões de sóis é descoberto

ENGENHARIA AERONÁUTICA

70 Drones são usados para combater incêndios e monitorar o ambiente

ENGENHARIA BIOMÉDICA

74 Câmera acoplada à mochila alerta sobre obstáculos para deficiente visual

ENTREVISTA

76 Cientista da computação Rodrigo Contreras atua contra fraudes em sistemas biométricos

GESTÃO

79 Calculadora estima emissões de metano na pecuária intensiva

ANTROPOLOGIA

80 Como as religiões vêm incorporando debates sobre raça e gênero no Brasil

EDITORAÇÃO

86 Percurso de editores ajuda a entender a história do mercado de livros

MEMÓRIA

90 A campanha que levou à construção de um hospital para pacientes com câncer, nos anos 1940

ITINERÁRIOS DE PESQUISA

94 Tradutora migrou da química para letras e ajudou a criar bacharelado em língua coreana na USP

RESENHA

96 Entre Ariel, Caliban e Próspero: Dilemas da identidade (latino) americana pensados a partir do Brasil, de Bernardo Ricupero. Por José Luis Beired

97 COMENTÁRIOS

98 FOTOLAB

VÍDEOS

ENCHENTES NO RIO

GRANDE DO SUL: UM ANO DEPOIS, RISCOS PERMANECEM Fendas em morros e rios rasos ampliam a exposição do estado a erosões e alagamentos

GASES DE EFEITO

ESTUFA NO BRASIL: O QUE

EXPLICA NOSSAS EMISSÕES?

Desmatamento e agropecuária são os motores da contribuição brasileira para o aquecimento global

PODCAST A CRIANÇA É O PAI

DO HOMEM

A mobilização de pesquisadores para compreender os problemas que cercam a primeira infância e tentar atenuá-los. E mais: flash; hidrometalurgia; tendências

Este conteúdo está disponível em acesso aberto no site www.revistapesquisa.fapesp.br, que contém, além de edições anteriores, versões em inglês e espanhol e material exclusivo

Pesquisadores calculam quantas pessoas com doutorado têm empresas (EMPREENDEDORISMO, P. 28)

Nem terras, tampouco raras, mas importantes

Smartphones, turbinas eólicas, veículos elétricos, computação em nuvem. Vivemos em uma era de tecnologias digitais, movidas por equipamentos complexos. Sua produção demanda materiais com propriedades funcionais específicas, obtidas de recursos naturais cada vez mais diversos. Entre essas matérias-primas há um grupo particular de elementos químicos, as terras-raras.

O nome é impreciso. Os óxidos metálicos eram denominados terras, e esses elementos químicos foram isolados pela primeira vez na forma de compostos com oxigênio (não como metais puros). Hoje se sabe que são bastante abundantes, mas inicialmente foram identificados em baixa concentração em amostras de minérios escassos – ou raros – na Suécia. Não costumam ser encontrados isolados na natureza, mas sim associados entre si e com outros elementos, o que dificulta sua separação.

O Brasil detém grandes reservas, mas não domina o ciclo produtivo. O país também não possui a capacidade de fabricação de um componente central de inúmeros produtos e processos de alta tecnologia, os ímãs permanentes de terras-raras. Um esforço de pesquisa e desenvolvimento está em curso para tentar suprir essa lacuna, reportam Frances Jones e Yuri Vasconcelos na reportagem de capa ( página 12).

Avanços biotecnológicos tornaram mais palpável um tema antes restrito à ficção científica: a desextinção de espécies. Um caso recente, de grande repercussão, foi o anúncio do nascimento de filhotes de lobos-terríveis, animais extintos há 10 mil anos. Rapidamente, virou assunto na redação desta revista, e duas perguntas surgiram: como definir se houve ou não desextinção? (Basta,

como no caso dos lobos, inserir características desejáveis da espécie extinta em uma aparentada?) E qual o sentido de recriar lobos-terríveis, mamutes ou outros animais?

A nossa editora de Ciências Biológicas, Maria Guimarães, se propôs a entender a história dos lobos. Voltou com as respostas e uma reportagem sobre refaunação, mais interessante do que a polêmica original. Não se trata da restauração baseada apenas na vegetação; tampouco da preservação de determinadas espécies animais ameaçadas e sua reinserção na natureza. O objetivo é recuperar espécies e processos (como a dispersão de sementes) para aumentar a resiliência e autossuficiência do ecossistema em reconstrução ( página 42). Por uma coincidência, esta edição traz entrevistas com duas médicas, a epidemiologista goiana Maria Paula Curado, do A.C.Camargo Cancer Center, e a neonatologista Maria Elisabeth Moreira, da Fiocruz. A primeira se dedica à busca de padrões de ocorrência de câncer na população e recentemente foi premiada por sua trajetória profissional ( página 22); a triste efeméride de 10 anos da epidemia do zika motivou a segunda entrevista ( página 64). Ambas têm perspectivas profundamente humanas. Para Curado, o câncer não pode ser visto como um número. “Há sempre uma pessoa, um impacto social.” Moreira, que acompanha 180 crianças expostas na gestação ao vírus zika, não se conforma com o descaso com o qual são tratadas essas famílias.

Para fechar, as séries Vaga-lume e Para Gostar de Ler, da editora Ática, marcaram gerações de leitores desde os anos 1970. Jiro Takahashi, responsável por esses sucessos editoriais, é um dos personagens de reportagem que coloca em cena o editor de livros ( página 86 ).

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA diretora de redação

Penas de aves acumulam resquícios de agrotóxicos

O beija-flor-preto é uma espécie típica das matas de Pernambuco. Abaixo, penas quebradas de papa-taoca-de-pernambuco (Pyriglena pernambucensis)

Biólogos das universidades de São Paulo (USP) e federais de Pernambuco (UFPE) e da Paraíba (UFPB) não tiraram boas notícias de uma análise da proporção dos isótopos (variações do mesmo elemento químico) de carbono e nitrogênio de 1.778 amostras de penas de 89 espécies de aves da Mata Atlântica coletadas entre 1893 e 2023. “Observamos um aumento de falhas nas penas das aves nos centros de endemismo de Pernambuco e da serra do Mar, indicando que a qualidade das penas declinou ao longo dos últimos anos”, diz Ana Beatriz Navarro, da USP. As penas das aves da serra do Mar também exibiram sinais químicos do aumento do uso de agrotóxicos nas últimas décadas. Entre as espécies de Pernambuco que sofreram esses efeitos estão a cigarra-preta ( Asemospiza fuliginosa), que se alimenta de sementes, e o beija-flor-besourão (Glaucis hirsutus), o beija-flor-tesoura (Eupetomena macroura) e o beija-flor-preto (Florisuga fusca), nectarívoros. Na serra do Mar, estão a rendeira (Manacus manacus), frugívora; o beija-flor-de-banda-branca (Chrysuronia versicolor) e o beija-flor-de-fronte-violeta (Thalurania glaucopis), nectarívoros; e o sabiá-coleira (Turdus albicollis), onívoro (Oikos, julho).

Detalhes sobre a morte de uma estrela

Há 11.300 anos, uma estrela massiva agonizava, com uma energia oscilante, expelindo o material de suas camadas externas. Depois, explodiu e formou a Cassiopeia A (Cas A), um remanescente de supernova. Usando o telescópio de raios X Chandra, um grupo internacional de astrônomos descobriu que a estrela progenitora da Cas A tinha entre 15 e 20 massas solares, provavelmente era uma supergigante vermelha e explodiu quando seu núcleo colapsou. “Pouco antes do colapso da estrela em Cas A, parte de uma camada interna com grande quantidade de silício se espalhou e se rompeu em uma camada vizinha com muito neônio [elemento químico capaz de emitir uma característica luz vermelho-alaranjada]”, disse Kai Matsunaga, da Universidade de Kyoto, no Japão, ao site Astronomy Today. O neônio é queimado ao ser puxado para dentro e o silício transportado para fora da estrela, indicando que o processo final de queima estelar altera rapidamente a estrutura interna. A luz da extinção da Cas A chegou à Terra por volta dos anos 1660 ( Astrophysical Journal, 2 de setembro).

IA para recuperar dados climáticos

O climatologista Derrick Muheki, estudante de doutorado na Universidade Vrije de Bruxelas, na Bélgica, teve de viajar de avião, barco e motocicleta por estradas de terra. Tudo para chegar a um ponto remoto da República Democrática do Congo, na África, onde uma estação do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica abriga milhares de páginas de registros climáticos antigos, sem acesso à energia elétrica. O pesquisador, que precisou levar baterias suficientes para alimentar sua câmera digital, passou dois meses digitalizando as páginas repletas de informações e de números em tabelas. De volta a Bruxelas, extraiu as informações utilizando uma ferramenta de aprendizado de máquina chamada MeteoSaver, descrita no repositório EGUsphere. Nos primeiros testes, a precisão de leitura foi de 75%, melhorada para mais de 90% com refinamento da rede neural para o reconhecimento de texto manuscrito. É um exemplo de como a inteligência artificial pode ajudar a obter registros climáticos atualmente fora do alcance de grandes análises (Nature, 16 de setembro).

No detalhe, áreas com silício (vermelho) e neônio (azul escuro)

Restos da explosão de uma estrela em Cassiopeia A: enxofre (amarelo), cálcio (verde), ferro (roxo) e raios X (azul claro)

Calor faz o humor derreter

Acha difícil manter o bom humor no calorão? Você tem muita companhia, de acordo com uma análise de 1,2 bilhão de publicações nas mídias sociais Twitter e Weibo em 157 países ao longo do ano de 2019, feita por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade Harvard, ambos nos Estados Unidos. Principalmente nos países de baixa renda, nos quais o efeito emocional é bem maior, com 25% de manifestações negativas quando a temperatura sobe acima dos 35 graus Celsius. Nos países ricos, os sentimentos declarados são 8% mais negativos. “Isso ressalta a importância de incorporar meios para a adaptação nas futuras projeções de impacto climático”, disse a engenheira ambiental chinesa Yichun Fan, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, ao site MIT News. Por meio de modelos climáticos, mesmo com alguma adaptação às mudanças nas temperaturas globais, os pesquisadores preveem uma piora de 2,3% no bem-estar das pessoas até 2100, com base apenas no crescente calor. A realidade pode ser ainda pior, segundo eles, porque as pessoas mais vulneráveis – crianças e idosos –estão menos presentes nessas mídias sociais (One Earth, 21 de agosto).

Forte onda de calor na cidade do Rio de Janeiro em novembro de 2023

Onça-pintada cruza com onça preta

Câmeras de um parque nacional do Pará flagraram um encontro sexual entre um macho de onça-pintada (com manchas pretas sobre um fundo amarelado) e uma fêmea preta, a variação mais rara da espécie Panthera onca. O registro é precioso porque se acreditava que animais com pelagens de cores distintas viveriam separados. Também permite comparar o comportamento reprodutivo de animais de vida livre com o dos mantidos em cativeiro. Há semelhanças. Em menos de 5 minutos, as duas cópulas incluíram aproximação, penetração, grunhidos e outras vocalizações do macho, que em dado momento pareceu morder o cangote da parceira. Ela apresentou sinais de receptividade, como abaixar-se no chão e afastar a cauda para o lado. Depois, deitou-se de barriga para cima, deixando a suspeita, pela aparência das tetas, de que pudesse estar em período de lactação. Sua atuação poderia servir para ocultar e proteger os filhotes. As diferenças de cor não parecem influenciar o comportamento sexual, que provavelmente depende mais de estímulos sonoros e olfativos do que visuais (Ecology and Evolution, 25 de agosto).

Na cópula, sons e cheiros parecem importar mais do que a cor

Um crânio humano com traços de duas espécies

Pesquisadores da Universidade de Tel Aviv (TAU) encontraram uma combinação de características de neandertais e Homo sapiens no crânio de uma criança de 5 anos, descoberto há cerca de 90 anos na caverna Skhul, no monte Carmelo, em Israel. Com 140 mil anos, é o fóssil humano mais antigo com características dos dois grupos, considerados espécies distintas. Poderia ser a evidência mais antiga de que neandertais e Homo sapiens mantinham relações biológicas e sociais, e até mesmo se cruzaram, na região. “O crânio da criança, que em sua forma geral se assemelha ao de Homo sapiens, especialmente na curvatura da abóbada craniana, tem um sistema de irrigação sanguínea intracraniana, uma mandíbula inferior e uma estrutura de ouvido interno típica dos neandertais”, comentou o antropólogo Israel Hershkovitz, da TAU, em um comunicado da universidade. Em 1998, foi descoberto em Portugal o esqueleto de uma criança com 28 mil anos com características de ambos os grupos humanos (L’Anthropologie, julho-agosto).

Como se proteger contra ataques cibernéticos

O que fazer diante de sinais de que o computador sofreu um ataque do tipo ransomware, que sequestra dados e contas e só os devolve após pagamento?

“É preciso agir rapidamente para conter seu avanço, eliminar a presença do atacante, erradicar a causa-raiz da invasão, restaurar o ambiente e retornar à operação normal”, recomenda o recém-lançado guia Ransomware: Como se proteger, elaborado pelo Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil (CERT.br). Dirigido especialmente para pequenas e médias empresas, o guia apresenta um conjunto de medidas preventivas essenciais, como a proteção de backups, a identificação de vulnerabilidades e a separação de redes de usuários, para evitar perda de dados.

“Falhas na remoção de malware [programas criados para causar danos, como os vírus], na eliminação dos acessos usados pelo atacante ou na correção das falhas exploradas pelo atacante podem levar a novos ataques e mais prejuízos”, observa o documento (ver Pesquisa FAPESP nºs 327 e 352). Gratuito, o guia pode ser acessado pelo site https://cert.br/docs/ransomware/ (CERT.br, 28 de julho).

Fazer backups ajuda a evitar os danos dos programas que invadem o computador
Nas eleições, melhor prevenir do que corrigir

Alertar sobre a possível circulação de mentiras, boatos e fake news durante as campanhas eleitorais, em vez de tentar corrigi-las depois, pode evitar que as pessoas sejam enganadas, de acordo com um estudo que analisou eleições nacionais recentes nos Estados Unidos e no Brasil. Uma equipe coordenada pelo Dartmouth College, nos EUA, com a participação da brasileira Marília Gehrke, da Universidade de Groningen, nos Países Baixos, fez três experimentos até chegar a essas conclusões. O primeiro, com 2.643 pessoas, que interagiam com artigos curtos confiáveis ou com informações neutras, examinou como o chamado pré-bunking (alertas contra mentiras) e as correções de fontes confiáveis restauraram a confiança eleitoral

Os ganhadores do Prêmio Conrado Wessel

Os vencedores da edição de 2025 do Prêmio FCW, concedido pela Fundação Conrado Wessel, foram a bióloga Mercedes Bustamante, na categoria Ciências – Mudanças Climáticas, e o escritor Marcelo Rubens Paiva, na categoria Cultura – Literatura. Cada premiado receberá R$ 400 mil, em cerimônia a ser realizada em outubro. Professora da Universidade de Brasília (UnB) e autora do capítulo sobre agricultura e florestas do 6º Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), Bustamante especializou-se em ecologia e mudanças de uso da terra no Cerrado (ver Pesquisa FAPESP nº 324). Paiva é o autor do livro Ainda estou aqui (2015), sobre a luta

Uma banca de jornal em Nova York com informações falsas, montada pela Columbia Journalism Review para alertar sobre os perigos da informação, às vésperas das eleições de 2018

antes das eleições de meio de mandato de 2022 nos Estados Unidos. O segundo, com 2.949 pessoas, analisou os efeitos do pré-bunking e das correções de fontes confiáveis após a eleição presidencial de 2022 no Brasil. Nos dois casos, o pré-bunking foi a estratégia mais eficaz para restabelecer a confiança nas eleições e reduzir a crença em fraudes. O terceiro, com 2.030 participantes, focado nas eleições de meio de mandato em 2022 nos Estados Unidos, mostrou que os alertas que não mencionavam conspirações ou insurreições foram mais eficazes do que os que as citavam, provavelmente porque a exposição ao risco induzia ao ceticismo em relação a artigos factuais (Science Advances, 29 de agosto).

Bustamante e Paiva, reconhecidos nas categorias Ciência e Literatura de sua mãe, a advogada Eunice Paiva, em busca de respostas para o desaparecimento do marido. Dirigido por Walter Salles, o filme baseado na obra, também intitulado Ainda estou aqui, tornou-se, em 2025, o primeiro longa brasileiro a conquistar um Oscar, na categoria de Melhor Filme Internacional.

Aedes albopictus, transmissor do vírus que causa a chikungunya

Mosquitos espalham doenças pela Europa

A Europa tem novos recordes de casos de doenças transmitidas por mosquitos em razão do aumento das temperaturas, de verões mais longos e alterações nos regimes de chuva. O transmissor do vírus que causa a chikungunya ( Aedes albopictus) ocupou 369 regiões em 16 países europeus, em comparação com apenas 114 regiões há uma década, e causou 27 surtos da doença de janeiro a agosto deste ano. A França relatou 111 casos de chikungunya e a Itália sete. O vírus do Oeste do Nilo infectou 335 pessoas e causou 19 mortes em oito países europeus. O Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) prevê que as infecções continuem aumentando e orienta sobre as medidas de vigilância, prevenção e controle de surtos. “À medida que o cenário das doenças transmitidas por mosquitos evolui, mais pessoas na Europa estarão em risco no futuro”, comentou Céline Gossner, especialista em doenças emergentes do ECDC. Segundo ela, essa situação torna mais importantes as ações de saúde pública e de proteção individual, como o uso de repelentes e roupas que evitem as picadas dos insetos infectados (ECDC, 20 de agosto).

FDA suspende vacina contra chikungunya aprovada no Brasil

Em agosto, a FDA, agência federal dos Estados Unidos que regula medicamentos e alimentos, suspendeu a licença de uso da vacina Ixchiq (VLA1553) contra chikungunya, fabricada pela empresa austríaca Valneva. Produzida com uma versão viva e atenuada do vírus causador da doença, tinha sido aprovada em novembro de 2023. A decisão se apoia em preocupações sobre a segurança de uso da vacina, que parece estar causando sintomas semelhantes aos da chikungunya em indivíduos vacinados. Houve uma morte por encefalite diretamente atribuível à vacina e efeitos adversos graves, com sintomas semelhantes aos da chikungunya, incluindo 21 hospitalizações e três mortes. Em abril de 2025, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o registro da Ixchiq para uso em pessoas com até 65 anos, após testes feitos por pesquisadores da Valneva e do Instituto Butantan. Por meio de nota, o Butantan informou que “vem acompanhando as avaliações dos órgãos regulatórios dos EUA”. A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) aprovou a vacina em maio de 2024 e em maio deste ano publicou uma recomendação de cautela em aplicar essa vacina a idosos com comorbidades. A França registrou oito casos com efeitos adversos graves (FDA, 25 de agosto).

Menos internações por insuficiência cardíaca

Um estudo da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais, registrou um leve aumento da mortalidade hospitalar por insuficiência cardíaca, doença caracterizada pela incapacidade de o coração bombear o sangue de forma adequada. Os pesquisadores examinaram 2.851.437 internações de homens e 2.749.424 de mulheres registradas no Sistema Único de Saúde (SUS) de 2000 a 2021. As taxas de internação de homens caíram entre 6,7% (de 40 a 49 anos) e 8,1% (acima de 80). Entre as mulheres, a queda variou de 7,5% (70 a 79 anos) a 8,3% (50 a 59). No entanto, a mortalidade hospitalar aumentou entre os homens de 1,8% (40 a 49 anos) a 3,6% (acima de 80) e entre as mulheres de 3,1% (acima de 80 anos) a 3,5% (60 a 79). Para a equipe coordenada por José Marcos Girardi, da SBC, os resultados refletem melhorias no controle ambulatorial da doença, indo para internação apenas casos mais graves que evidenciam a necessidade de intensificação do controle dos fatores de risco para doença, em especial hipertensão arterial, altas taxas de colesterol, obesidade, sedentarismo, tabagismo e diabetes ( Arquivos Brasileiros de Cardiologia, junho).

Exames periódicos favorecem o controle dos fatores de risco para o coração

Computador quântico 100% japonês

O primeiro computador quântico supercondutor japonês, projetado e construído com componentes desenvolvidos internamente no país, entrou em operação no final de julho na Universidade de Osaka. O novo sistema utiliza um chip com bits quânticos supercondutores, derivados de metais que apresentam resistência elétrica desprezível quando resfriados a temperaturas próximas ao zero absoluto. Todos os componentes, incluindo a unidade de processamento quântico, desenvolvida no Instituto de Pesquisa Física e Química (Riken), estão em um dispositivo criogênico, que permite temperaturas extremamente baixas. Construído com a participação de empresas como a Fujitsu, o novo sistema funcionará com um software de código aberto desenvolvido no Japão. Os visitantes da Expo 2025, realizada em agosto em Osaka, puderam se conectar ao sistema remotamente e executar programas quânticos básicos. Esse tipo de computação ainda enfrenta muitas barreiras, como o número limitado de algoritmos com vantagem quântica consolidada (Universidade de Osaka, 26 de agosto).

Prevendo deslizamentos de terra

Pesquisadores das universidades Northwestern e da Califórnia em Los Angeles (Ucla), ambas nos Estados Unidos, criaram um método para prever o alcance de deslizamentos em grandes áreas. A nova abordagem integra dados meteorológicos, geográficos e históricos, incluindo informações sobre terreno, profundidade do solo, incêndios florestais anteriores, precipitação e condições meteorológicas e climáticas. Com uma métrica chamada estado do balanço hídrico (EBH), que avalia quando há excesso de água em uma área específica, os pesquisadores identificaram três vias principais que causaram os deslizamentos na Califórnia de dezembro de

Aparelho em operação em Osaka contém chips supercondutores

2022 a janeiro de 2023: chuvas intensas, chuva em solos já saturados e derretimento de neve ou gelo. Chuvas torrenciais fortes causaram cerca de 32% dos deslizamentos, outros 53% ocorreram após chuvas moderadas caírem em solos já saturados por tempestades anteriores e cerca de 15% estavam ligados à chuva, acelerando o derretimento da neve ou do gelo. “A maioria dos deslizamentos de terra foi desencadeada em condições excessivamente úmidas, quando a precipitação excede a capacidade do solo de reter ou drenar água”, disse Chuxuan Li, da Ucla, em um comunicado da universidade (Geophysical Research Letters, 25 de julho). 3

Chuvas desnudam o penhasco perto do mar em Aptos, na Califórnia, EUA

A conquista das

TERRAS‑RARAS

Frasco contendo areia monazítica rica em terras-raras e elementos radioativos, como urânio e tório

Brasil faz um esforço científico-tecnológico para dominar o ciclo de produção desses minerais estratégicos, essenciais para a transição energética

FRANCES JONES E YURI VASCONCELOS

Um prédio de três andares com fachada envidraçada localizado em Lagoa Santa, município a 35 quilômetros de Belo Horizonte, sedia uma estrutura fabril e laboratorial que poderá ajudar o Brasil a dominar o ciclo completo de produção de ímãs permanentes de terras-raras. Também chamados de superímãs, em razão de sua elevada força magnética e resistência à desmagnetização, esses componentes são usados em aplicações relacionadas à defesa, energia limpa e mobilidade elétrica, com destaque para motores de carros elétricos e de turbinas eólicas. O principal elemento químico empregado em sua fabricação, o neodímio (Nd), é uma das 17 terras-raras da tabela periódica, consideradas f undamentais para a transição energética. Por causa de suas propriedades especiais, como magnetismo intenso, luminescência e condutividade, esse grupo de elementos químicos é largamente usado em produtos e processos de alta tecnologia. Além dos superímãs, são empregados na fabricação de catalisadores usados pela indústria de óleo e gás, fibras ópticas, telas de computadores, celulares, jatos militares, mísseis e marcadores luminescentes para análises biomédicas (ver infográfico na página 15). Nos últimos tempos, as terras-raras têm estado no centro de uma disputa geopolítica mundial.

Lagoa Santa abriga o primeiro laboratório-fábrica de ímãs de neodímio do hemisfério Sul. Atualmente, a produção desses componentes

magnéticos é monopolizada pela China, com mais de 90% da oferta mundial. Batizado de CIT Senai ITR, sigla de Centro de Inovação e Tecnologia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial –Instituto de Ímãs de Terras-raras, a unidade começou a operar em 2024. Ela é constituída por duas áreas, uma com laboratórios e uma planta-piloto de pequeno porte, dedicados à pesquisa e ao desenvolvimento de tecnologias ligadas a ligas metálicas de terras-raras e superímãs, e outra com uma linha semi-industrial, voltada à fabricação de grandes lotes de superímãs. Antes denominado LabFabITR, o laboratório-fábrica foi criado há oito anos pela Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemge), do governo mineiro. A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais o adquiriu em 2023 e o CIT Senai passou a gerir o ITR.

“Já dominamos, em escala-piloto, o ciclo tecnológico de produção de ímãs permanentes à base de neodímio, ferro [Fe] e boro [B], a liga metálica mais comum para a fabricação desses materiais. Em nível industrial, temos o domínio de 60% a 70% do processo”, afirma o químico e mestre em engenharia de materiais André Pimenta de Faria, coordenador do CIT Senai ITR. “Para ampliar a produção, precisamos finalizar o comissionamento [testes em ambiente real] de alguns equipamentos, todos importados da China. Queremos atingir esse objetivo até janeiro.”

A principal matéria-prima usada para fabricar os ímãs – pequenas barras de neodímio metálico

André Nunis, pesquisador do IPT, junto ao reator-piloto usado na etapa de redução dos óxidos de terras-raras. Abaixo, liga de neodímio e praseodímio produzida no instituto

– é importada da China. Embora o Brasil tenha grandes reservas minerais de terras-raras, a sua produção de óxidos ou metais puros desses elementos químicos é incipiente. Somente uma mineradora, com capital e tecnologia estrangeiros, comercializa o concentrado de terras-raras (ver reportagem na página 19). O Brasil não tem operação comercial das demais etapas da cadeia, notadamente a etapa de separação das terras-raras.

O objetivo do laboratório-fábrica é ser um elo entre a pesquisa e a aplicação industrial. Sua produção permitirá validar protótipos e processos de forma semi-industrial. A capacidade produtiva máxima da unidade é de 100 toneladas por ano de ímãs permanentes, mas, por ser um centro de pesquisa, esse volume dificilmente será atingido. “Nossa intenção não é fabricar comercialmente os

ímãs. Por sermos um instituto de pesquisa, não podemos fazer isso”, explica Faria. “Queremos dominar a cadeia produtiva desses componentes e fazer a transferência de tecnologia para empresas interessadas em produzir os ímãs no país.”

OCIT Senai ITR integra o projeto MagBras – Da mina ao ímã, aprovado em um edital do programa Mobilidade Verde e Inovação, do governo federal. Lançada em julho, a iniciativa reúne 38 empresas, startups, centros de inovação, universidades, instituições de pesquisa e fun-

dações de apoio. Com um orçamento de R$ 73 milhões, dos quais R$ 60 milhões são do governo federal e o restante é contrapartida das entidades participantes, sua finalidade é consolidar a cadeia produtiva brasileira de ímãs permanentes, desde a mineração das terras-raras até a fabricação do produto final (ver infográfico na página 16 ).

“Temos a segunda maior reserva de terras-raras do mundo, atrás apenas dos chineses, e todas as condições para dominar em escala industrial o ciclo de produção desses minerais, bem como dos ímãs permanentes”, destaca o engenheiro mecânico Luís Gonzaga Trabasso, coordenador do MagBras e pesquisador-chefe do Instituto Senai de Inovação em Sistemas de Manufatura e Processamento a Laser, em Joinville (SC). “O MagBras é uma aliança tecnológica criada com essa finalidade. Queremos alcançar esse objetivo até 2030”, reforça Trabasso, que também é professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP).

SEPARAÇÃO, O GRANDE GARGALO

Apesar do nome terras-raras, a presença desses elementos na natureza é relativamente abundante. O problema, explica o químico Henrique Eisi Toma, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), é que eles estão presentes em concentrações muito baixas, costumam ser encontrados misturados e têm grande similaridade química entre si. Esta última característica exige tecnologias avançadas para extração e refino, principalmente durante a etapa da separação química, quando se isola um elemento específico do restante do concentrado de terras-raras. Para atingir seus objetivos, a equipe do laboratório-fábrica de Lagoa Santa contará com um valioso conhecimento gerado por pesquisas em torno da cadeia tecnológica das terras-raras que ganharam força no país há mais de uma década. Uma parte importante dos estudos se deu no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Terras-raras, também chamado Patria – sigla de Processamento e Aplicações de Ímãs

Para entender as terras-raras

Apesar do nome, a presença desses elementos na natureza é relativamente abundante

O que são?

Dezessete elementos químicos com aplicações tecnológicas avançadas. São eles: cério (Ce), disprósio (Dy), érbio (Er), escândio (Sc), európio (Eu), gadolínio (Gd), hólmio (Ho), itérbio (Yb), ítrio (Y), lantânio (La), lutécio (Lu), praseodímio (Pr), promécio (Pm), neodímio (Nd), samário (Sm), térbio (Tb) e túlio (Tm)

de Terras-raras para a Indústria de Alta Tecnologia. Ativo entre 2018 e 2024, recebeu apoio da FAPESP e do governo federal, via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

O INCT promoveu o diálogo entre os diversos grupos que pesquisavam esses elementos em diferentes etapas do ciclo produtivo, como a Escola Politécnica (Poli) da USP, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), ambos em São Paulo, os centros de Tecnologia Mineral (Cetem), no Rio de Janeiro, e de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN), em Belo Horizonte, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Fundação Certi, com sede em Florianópolis (SC).

No Cetem, instituição pública de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) dedicada exclusivamente à tecnologia do setor mineral, o maior avanço se deu na etapa da separação química, o principal gargalo na cadeia e uma das etapas mais caras. O centro, informa o engenheiro químico Ysrael Marrero Vera, chefe do Serviço de Metalurgia Extrativa, já obteve sucesso na separação de praseodímio (Pr) e neodímio.

“Fazemos a separação com o que chamamos de soluções sintéticas – e não a partir do concentrado químico mineral real de terras-raras, porque não o produzimos, por enquanto”, explica. “Compramos os reagentes, as terras-raras de empresas chinesas e os colocamos em solução aquosa. Depois, os separamos usando solventes específicos.” O processo foi registrado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e a patente foi

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Por que são cobiçadas?

Elas têm propriedades magnéticas, luminescentes, eletroquímicas e catalíticas superiores. Abundantes, as terras-raras estão espalhadas em mais de 200 minerais. A semelhança química entre elas dificulta a extração e o refino

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Onde são encontradas?

O Brasil é dono da segunda maior reserva de terras-raras do planeta (23% do total), atrás apenas da China (49%). Elas podem ser encontradas em jazidas de argila iônica, mais fáceis de serem mineradas, ou em depósitos de rocha compacta

De smartphones a aviões

As terras-raras estão presentes em grande número de produtos de alta tecnologia

Aviões Cério, európio, disprósio, ítrio, lantânio

Veículos elétricos Neodímio, disprósio e praseodímio

Jatos de caça, mísseis, satélites Samário

Lâmpadas fluorescentes Térbio

Fibras ópticas Érbio, itérbio, túlio

Smartphones

Lantânio, ítrio, praseodímio, neodímio, európio, gadolínio, térbio, disprósio

Contraste para exames de ressonância magnética Gadolínio

Telas de computadores Európio, cério

Catalisadores automotivos Cério, lantânio, neodímio

Turbinas eólicas Neodímio, disprósio

Lasers cirúrgicos Hólmio e érbio

Painéis solares lantânio

Dispositivos de raios X Túlio

Radiofármacos Lutécio

FONTES HENRIQUE EISI TOMA (USP) / MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA / MARISA NASCIMENTO (CETEM) E FLÁVIA ALVES FERREIRA (CETEM)

FONTES HENRIQUE EISI TOMA (USP) / SERVIÇO GEOLÓGICO BRASILEIRO (SGB) / COMPANHIA DE PESQUISA DE RECURSOS MINERAIS (CPRM)

concedida em 2022. Parte dos resultados dos estudos sobre a separação está publicada em artigo na revista Minerals Engineering, de março de 2020. O projeto MagBras, avalia Vera, trará a oportunidade de trabalhar com o material real, uma vez que há 12 mineradoras envolvidas no programa empenhadas em produzir o concentrado de terras-raras, etapa anterior à separação, a partir dos depósitos existentes no país. “Tenho grande confiança de que a tecnologia desenvolvida por nós vai funcionar também com os concentrados reais, a partir dos minérios brasileiros”, declara. Ele explica que, para fazer a separação química das terras-raras, são necessários, no mínimo, cerca de 20 quilos (kg) de concentrado químico de terras-raras e, no momento, poucas empresas no país são capazes de prover essa quantidade.

Em São Paulo, o maior investimento do INCT Patria foi no IPT, conta o engenheiro metalúrgico Fernando José Gomes Landgraf, coordenador do INCT e professor da Poli-USP. Ao longo dos anos, o instituto adquiriu o conhecimento, em escala laboratorial ou de planta-piloto, das etapas finais da cadeia produtiva, após a separação química, entre eles a redução dos óxidos de terras-raras e a produção das ligas metálicas usadas na fabricação do ímã (ver Pesquisa FAPESP nº 241).

“O ímã é composto principalmente por neodímio e praseodímio. Disprósio [Dy] e térbio [Tb], outras duas terras-raras magnéticas, são utilizados para conferir propriedades adicionais a esses ímãs”, detalha o engenheiro químico

André Luiz Nunis da Silva, gerente-técnico do Laboratório de Processos Metalúrgicos do IPT. O instituto começou a trabalhar com esses mate-

O caminho da jazida ao ímã

Conheça as principais etapas do ciclo produtivo desses minerais estratégicos e dos superímãs de terras-raras

1 Caracterização do depósito

2 Extração do minério

3 Processamento mineral

4 Purificação

Estudo identifica que minerais portam elementos de terras-raras (ETR), quantifica os teores e avalia se o depósito pode ser rentável. Em Poços de Caldas (MG), há 1 kg de concentrado de ETR para cada 1.000 kg de minério

Recolhe-se da mina a argila iônica ou outro mineral portador dos ETR, como a monazita. Quando o minério é uma rocha dura, é preciso britar e moer. O que não é de interesse volta às cavas, reduzindo a formação de barragem de rejeitos

Da argila , extrai-se um concentrado de ETR com os elementos misturados e em diferentes concentrações. Técnicas físico-químicas seguidas de um ataque químico com soluções ácidas, alcalinas ou salinas iniciam a separação

Retiram-se os metais dissolvidos com os ETR. A principal técnica é a precipitação seletiva, na qual um agente reage com as impurezas e as transforma em uma substância sólida, que decanta . As terras-raras permanecem na fase aquosa

Turbinas eólicas e carros elétricos:

ímãs permanentes de terras-raras são essenciais para o bom desempenho de seus motores

riais em 2014, antes da criação do INCT, em um projeto cofinanciado pela Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) e pela mineradora CBMM, maior produtora mundial de nióbio e cuja mina em Araxá (MG) dispõe também de terras-raras.

“Na época, o pessoal da CBMM nos contatou porque as terras-raras das minas deles viravam rejeito – o foco da mineração era e continua sendo o nióbio. Mas eles perceberam que havia demanda e necessidade de ter um fornecedor dos elementos de terras-raras como alternativa aos chineses”, relata Nunis. As etapas anteriores do ciclo produtivo, de concentração e separação de óxidos, seriam trabalhadas internamente, com os engenheiros e projetistas contratados pela mineradora.

OIPT foi chamado para atuar no processo de redução, que consiste em transformar um óxido qualquer de terras-raras, um pó de aspecto arenoso, em um metal. Para isso, é preciso retirar o oxigênio do óxido de interesse para ficar apenas com o metal – no caso, o objetivo era fazer a redução do óxido de neodímio para obter o neodímio metálico. O instituto estudou duas rotas: a redução eletroquímica e a calciotérmica, processo de extração metalúrgica com uso de cálcio. “Vimos que a eletroquímica era mais viável e abandonamos a outra”, diz Nunis. Na rota escolhida, usa-se energia elétrica em um reator com uma temperatura que supera mil graus Celsius (ºC) para que o neodímio metálico seja produzido no estado líquido, ou seja, fundido. Em uma segunda fase do trabalho, iniciada dois anos depois, em 2016, o IPT passou a produzir a

5 Separação 6 Redução

A separação das terras-raras de interesse é o maior desafio tecnológico, pois elas têm alta similaridade química. Ao fim do processo, cercado de segredos industriais, o ETR de interesse deixa a fase líquida e vira um pó, na forma de óxido

Uma vez que o ETR tenha sido separado, é preciso retirar o oxigênio presente em sua estrutura para que ele vire um metal. A rota mais comum é a redução eletroquímica em sais fundidos. No fim, produz-se um lingote de metal de ETR puro

liga metálica necessária à fabricação do superímã, sempre em escala de bancada.

Em nota técnica publicada no Brazilian Journal of Analytical Chemistry, em 2022, Silva, Landgraf e colegas do IPT, do Ipen, da Poli e do IQ da USP apresentaram um método analítico para quantificar os principais elementos na produção dos superímãs de terras-raras. “Pequenas variações na porcentagem de neodímio e praseodímio influenciam fortemente as propriedades físico-químicas da liga”, escreveram os pesquisadores na nota. Por essa razão, métodos de química analítica precisam ser capazes de distinguir pequenas variações na concentração dos elementos constituintes.

Na etapa seguinte do projeto, em 2019, a empresa de motores elétricos WEG entrou como parceira, assim como a UFSC, com cofinanciamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – IPT, WEG e UFSC integram a iniciativa MagBras. Foi projetado então um novo equipamento para a etapa de redução e a produção do neodímio metálico em escala-piloto. “Esse reator tem a dimensão de mais ou menos um terço do que seria uma escala industrial. Consegue produzir até 1 kg de material por hora”, conta Silva. Ele explica que, para obter 1 kg do neodímio metálico, é necessário antes ter 1,5 kg do óxido de neodímio.

A CBMM concluiu que a operação na sua mina de Araxá não tinha viabilidade comercial e não deu continuidade ao projeto. No caso dessa mina, os elementos de terras-raras estão contidos no minério monazita, com forte associação a um óxido de ferro, o que dificulta e encarece a seleção do material de interesse. A mineração é facilitada quando as terras-raras são extraídas de argilas iônicas, comuns nos depósitos existentes em Poços de Caldas (MG), e em Minaçu, no norte

7 Produção da liga metálica 8 Hidretação e moagem

9 Orientação e compactação

Para fabricar os superímãs de neodímio, é preciso antes produzir uma liga metálica, em geral formada por ferro e boro (Nd-Fe-B) Ela passa por uma solidificação rápida e adquire a forma de tiras

Acrescenta-se hidrogênio (hidretação) para tornar o material mais frágil e facilitar a fragmentação das tiras. Depois, remove-se o hidrogênio e o material é moído quimicamente. Nova moagem em um fluxo de nitrogênio é feita, originando um pó fino

Os grãos com as ligas de terras-raras são colocados sobre um campo magnético para alinhamento de suas partículas. O material é prensado e submetido a tratamento térmico. A peça sólida formada recebe um revestimento para evitar corrosão e é magnetizada

de Goiás, onde a Mineração Serra Verde opera o primeiro projeto comercial de terras-raras no país.

O investimento em pesquisas no país possibilitou avanços também na etapa de fabricação dos ímãs. Um dos principais grupos de pesquisa nessa área é liderado pelo engenheiro mecânico Paulo Wendhausen, coordenador do Laboratório de Materiais Magnéticos (Magma) da UFSC. Dedicada ao processamento, à fabricação e à caracterização de ímãs permanentes, sua equipe já domina todas as fases de desenvolvimento a partir de terras-raras e metais de transição.

“Trabalho desde a década de 1990 com terras-raras e minha pesquisa sempre foi voltada a materiais magnéticos. Nos últimos 10 anos, nosso foco foram os ímãs permanentes de neodímio, ferro e boro”, conta. O maior desafio na produção desse material, de acordo com Wendhausen, é obter altos valores de propriedades magnéticas, como remanência (capacidade de induzir o magnetismo espontaneamente), coercividade e densidade magnética. Em escala laboratorial, o grupo da UFSC conseguiu produzir ímãs com produto energético de 42 megagauss-oersteds (MGOe), a medida mais comum de classificação da força de um ímã. Para atingir a escala comercial, o valor deve chegar a 55 MGOe.

Os ímãs de terras-raras produzidos pela equipe catarinense, de pequenas dimensões, vêm sendo testados em campo para a verificação de seu desempenho magnético. “Fazemos os ensaios em dispositivos de menor porte e potência, como pequenos motores. O material que desenvolvemos não é adequado para aplicação em máquinas maiores, como aerogeradores”, ressalta Wendhausen, que colabora com o CIT-Senai-ITR.

Enquanto os pesquisadores e desenvolvedores da cadeia dos ímãs permanentes exploram as propriedades magnéticas das terras-raras, outras

equipes focam em suas características fotônicas, que envolvem produção, transporte ou detecção de luz. Em São Paulo, um projeto temático financiado pela FAPESP tem como objetivo avanços na área de materiais conversores de luz à base de terras-raras.

Segundo o químico Hermi Felinto de Brito, do IQ-USP e coordenador do projeto, os grupos têm conseguido produzir compostos e novos materiais, com possíveis aplicações como marcadores luminescentes, sensores ou amplificadores ópticos. “Usamos quase todos os elementos de terras-raras, menos o promécio [Pm], que é radioativo”, diz. Entre os materiais, ele destaca também os polímeros dopados (misturados) com európio (Eu) e térbio, que podem funcionar como marcadores de segurança para passaportes, carteiras de identificação e cédulas de dinheiro. “Basta irradiar com luz ultravioleta para ver a luminescência como se fosse a impressão digital do composto, dificultando muito a falsificação”, conta o pesquisador. “Ninguém falsifica.” Outra pesquisa envolve o desenvolvimento de nanossensores para mapear a temperatura de células humanas, como as tumorais.

Para o químico, o Brasil ainda descobrirá mais reservas de terras-raras. Por isso, defende que o país precisa de uma política de Estado no longo prazo voltada à exploração, extração, produção, ao refino e à separação de terras-raras. “É preciso ter um projeto muito bem elaborado e pautado em critérios de sustentabilidade ambiental”, alerta o pesquisador. l

Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Planta do Cetem, no Rio de Janeiro, faz a separação das terras-raras pelo método de extração por solvente

Mineração urbana

Reciclar terras-raras de produtos já usados e descartados pode reduzir impactos ambientais da cadeia desses minerais

FRANCES JONES E YURI VASCONCELOS

As terras-raras fazem parte de um grupo amplo de minerais chamados de estratégicos, que têm importância econômica e são fundamentais para a produção de tecnologias ligadas à economia verde e à indústria de baixo carbono. É também o caso do lítio, do nióbio, do silício, do grafite e do cobre. Para incentivar o desenvolvimento dessa indústria no país, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) selecionaram em junho deste ano 56 projetos de produção para os quais foram disponibilizados, em um primeiro momento, R$ 5 bilhões. Dez deles estão associados aos elementos de terras-raras.

O Brasil detém 23% das jazidas mapeadas de terras-raras, o equivalente a 21 milhões de toneladas (t), sendo superado apenas pela China. O país asiático concentra depósitos que somam 44 milhões de t, ou cerca de 49% do total, e, utilizando-se dessa matéria-prima, é o maior fabricante global de superímãs, segundo dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos. A produção brasileira de terras-raras é incipiente – foram somente 20 t, em 2024, diante de 270 mil t dos chineses – e ainda não há fabricação local de ímãs (ver infográfico na página 20).

Technologies

Os Estados Unidos, detentores de apenas 2% das reservas (1,9 milhão de t), buscam estabelecer acordos com outros países para garantir o abastecimento desses minerais e não depender somente dos chineses, que estão colocando barreiras à exportação de terras-raras, dificultando a concorrência no mercado de superímãs. A produção norte-americana no ano passado, de 45 mil t – menos de 20% da chinesa –, é insuficiente para a demanda do país. O governo de Donald Trump já demonstrou interesse nas reservas do Brasil, da Ucrânia, da Groenlândia, entre outros países. Os principais depósitos com potencial econômico do Brasil estão em Minas Gerais, Goiás, Amazonas, Bahia e Sergipe, segundo informações do Serviço Geológico Brasileiro, da Agência Nacional de Mineração e de estudos técnicos consolidados. As terras-raras são normalmente encontradas misturadas entre si e agregadas a mais de 200 minerais, principalmente nióbio e fosfato. Elas podem ser extraídas de rocha compacta ou de argila iônica, substrato que já sofreu intempérie e é mais fácil de minerar. É o que ocorre na reserva localizada no município de Minaçu, no norte de Goiás. Operada pela Mineração Serra Verde, de capital norte-americano e britânico, é uma das poucas minas de argila iônica exploradas fora da Ásia. O empreendimento é o único do país em produção comercial.

Ímãs de neodímio, ferro e boro produzidos pela empresa chinesa Neo Material
CAPA

Mais fáceis de serem exploradas, as reservas de argila iônica são uma descoberta recente no Brasil, de no máximo 10 anos, explica o engenheiro químico Ysrael Marrero Vera, chefe do Serviço de Metalurgia Extrativa do Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), no Rio de Janeiro. Muitos depósitos de terras-raras no país são de difícil extração e custo operacional mais elevado. A meta da Serra Verde é produzir 5 mil toneladas por ano de um concentrado misto de óxidos de neodímio (Nd), praseodímio (Pr), térbio (Tb) e disprósio (Dy), de acordo com informações no site da empresa. A produção, conforme reportagem da Folha de S.Paulo, é voltada à exportação, principalmente para a China. Procurada por Pesquisa FAPESP, a empresa não se pronunciou.

Pesquisadores ouvidos pela reportagem chamam a atenção para o fato de que as mineradoras que hoje exploram ou planejam explorar as terras-raras no Brasil são todas estrangeiras ou de capital estrangeiro, o que significa que podem ter menor propensão a fomentar ou utilizar a pesquisa desenvolvida no país. Temem também que o Brasil perca mais uma vez a oportunidade de se tornar uma das lideranças na exploração e no processamento das terras-raras – já que na década de 1950 e até meados de 1960 o país era um dos principais fornecedores mundiais de óxidos de terras-raras. O refino era feito pela empresa Orquima, que explorava depósitos de areias monazíticas, contendo terras-raras e urânio, e vendia sua produção de óxidos para clientes no exterior.

A Orquima acabou sendo estatizada e, depois de alguns anos, o governo considerou que não valia a pena investir mais no processamento de terras-raras. “Todo o investimento tecnológico e em recursos humanos foi praticamente perdido e, quando as terras-raras começaram a ter maior valor agregado nos anos 1970 e 1980, o Brasil já não tinha competitividade no setor”, escrevem os químicos Paulo Cesar de Sousa Filho e Osvaldo Antonio Serra, da Universidade de São Paulo (USP), em artigo publicado em 2014 na revista Química Nova

Assim como a mineração de outros elementos, a de terras-raras tem impactos ambientais. Nas minas a céu aberto, há supressão da vegetação, erosão e compactação do solo e perda de biodiversidade local. Há também outras questões. Quando se produz o concentrado de terras-raras, elementos como lantânio (La) e cério (Ce) podem estar numa proporção muito maior do que o neodímio e o praseodímio, que são os que interessam. Com isso, ao final do processo, tem-se terras-raras (lantânio e cério) com demanda limitada de mercado.

Além disso, certos minérios, como a monazita, podem ter elementos radioativos, como tório e urânio, gerando rejeitos com potencial radiotóxico. “Não basta dominar o ciclo de produção das terras-raras, é importante que ele seja sustentável”, destaca o químico Henrique Eisi Toma, do Instituto de Química (IQ) da USP.

Atentos à sustentabilidade do processo, o Cetem e outros grupos e institutos de pesquisa têm se voltado à recuperação dos elementos de terras-raras a partir de materiais já usados e descartados, como baterias, ímãs e lâmpadas fluorescentes, em um processo de reciclagem conhecido como mineração urbana. “Pegamos os ímãs pós-consumo e estudamos a recuperação das terras-raras contidas neles. Para isso, aplicamos algumas técnicas de metalurgia, como lixiviação, purificação e separação”, afirma Vera, do Cetem.

No Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, a FAPESP apoia pesquisas relacionadas à mineração urbana. Entre 2016 e 2020, houve uma colaboração internacional entre países da América Latina e Europa para recuperar elementos de lâmpadas fluorescentes descartadas, uma vez que o pó que reveste os tubos de vidro contém térbio.

O mapa da mina

China detém as maiores reservas e é a maior produtora global de terras-raras, em 2024

“Esse pó tem um valor agregado imenso, e também mercúrio, que é tóxico. Por isso, o descarte indiscriminado de lâmpadas fluorescentes em lixão é terrível”, comenta o químico Sidney José Lima Ribeiro, coordenador do Laboratório de Materiais Fotônicos do IQ-Unesp.

No caso das lâmpadas, afirma Ribeiro, podem ser recuperados térbio, európio (Eu) e ítrio (Y). Esses elementos são empregados no desenvolvimento de cerâmicas e filmes finos luminescentes, além de sensores ópticos, aplicações que são o foco do grupo da Unesp. “Estamos desenvolvendo métodos para extrair as terras-raras e usá-las em nossas pesquisas”, acrescenta o pesquisador. Uma das linhas de pesquisa, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), prevê o uso da bactéria Acidithiobacillus thiooxidans para produzir ácido sulfúrico a fim de recuperar as terras-raras, num processo de biolixiviação. O trabalho é coordenado pela química Denise Bevilaqua, do IQ-Unesp. Em artigo publicado este ano na ACS Applied Bio Materials, pesquisadores da Unesp apresentaram um possível uso de um composto de terras-raras em nanoplataformas para o controle da liberação da droga anticâncer doxorrubicina. Os elementos adicionados ao material permitiram que a liberação da droga fosse feita a partir de luz infravermelha, segundo o trabalho, cuja primeira autora, Marina Paiva Abuçafy, faz estágio de pós-doutorado com bolsa da FAPESP.

A mineração urbana também é tema de um projeto financiado pelo CNPq com a proposta de transfor-

Vista aérea do local de processamento de terras-raras da Mineração Serra Verde, em Minaçu (GO)

mar ímãs usados em turbinas eólicas, computadores antigos e trilhos de trem de levitação magnética, como os de um projeto em desenvolvimento na Universidade Federal do Rio de Janeiro (ver Pesquisa FAPESP nº 342), em novos ímãs ou materiais. “O processamento de um imã usado de um tomógrafo ou aerogerador é idêntico ao de uma liga zero-quilômetro”, afirma o físico Sérgio Michielon de Souza, do Departamento de Física dos Materiais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Souza também está à frente de outra empreitada, a coordenação de um novo INCT dedicado às terras-raras, o Materia – Materiais Avançados à Base de Terras-raras, aprovado este ano. Com investimentos de R$ 10,2 milhões previstos para os próximos cinco anos, a iniciativa é mais ampla em objetivos do que a anterior, do INCT Terras-raras (ver reportagem na página 12), uma vez que não se restringe à cadeia específica dos ímãs, mas se volta às diversas aplicações possíveis das terras-raras. Entre elas, a produção de células fotovoltaicas e materiais termoelétricos.

A meta do INCT, desafiadora, é fazer o ciclo das terras-raras totalmente nacional, da extração às aplicações nos próximos cinco anos, afirma Souza. “Vamos trabalhar para produzir novos materiais ou ímãs com a mesma qualidade da China.” Integram o novo INCT 15 instituições, sendo oito universidades, cinco centros e institutos de pesquisa e dois institutos de ensino técnico. “Esse é um grande diferencial, pois envolve desde a formação mais básica até a mais avançada”, conclui. l

Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

entrevista Maria Paula Curado

De olho nos padrões do câncer

Médica transitou da cirurgia para a epidemiologia a fim de identificar o perfil de ocorrência dos tumores na população e propor diretrizes de diagnóstico e tratamento

RICARDO ZORZETTO E MARIA GUIMARÃES retrato LÉO RAMOS CHAVES

Maria Paula Curado logo percebeu que operar tumores de cabeça e pescoço não era a melhor forma de empreender um combate amplo ao câncer. Trocou a cirurgia pela epidemiologia e reuniu instituições de pesquisa no projeto Headspace, um consórcio internacional que investiga as características genéticas e epidemiológicas dos cânceres de cabeça e pescoço e contou com financiamento europeu e da FAPESP. Sua trajetória abrangente e decidida lhe rendeu, em agosto, aos 73 anos, a homenagem como Personalidade de Destaque no Prêmio Octavio Frias de Oliveira, patrocinado pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e pelo jornal Folha de S.Paulo Formada pela Universidade Federal de Goiás (UFG), ela realizou especialização no A.C.Camargo Cancer Center, criado em São Paulo nos anos 1950 (ver reportagem na página 90), onde depois concluiu o doutorado e agora chefia o Grupo de Epidemiologia e Estatística em Câncer (Geecan), no Centro Internacional de Pesquisa (Cipe). Seu olhar populacional sobre a doença começou nos anos 1980, quando propôs fazer o registro de todos os casos de câncer em Goiânia, onde iniciou a carreira. Curado foi a primeira mulher presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço (SBCCP). Após tornar-se referência na área no país, viveu na França por 10 anos, primeiro como chefe do departamento de Epidemiologia Descritiva da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) da Organização Mundial da Saúde (OMS) e depois como pesquisadora no Instituto Internacional de Pesquisa e Prevenção (Ipri).

Ela vem de uma família de médicos destacados do município de Goiás Velho e vive atualmente com o filho de 30 anos. Em meados de agosto, conversou com Pesquisa FAPESP no Cipe sobre incidência de câncer de cabeça e pescoço, tratamentos e cura funcional. Leia os principais trechos da entrevista.

ESPECIALIDADE

Epidemiologia do câncer

INSTITUIÇÃO

A.C.Camargo Cancer Center e Fundação Antônio Prudente (FAP)

FORMAÇÃO

Graduação em medicina pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestrado em cirurgia de cabeça e pescoço no Hospital Heliópolis e doutorado em oncologia na FAP

O Brasil se destaca na incidência de cânceres de cabeça e pescoço?

O país com maior incidência de cânceres de cabeça e pescoço é a Índia. Lá ocorrem 50% dos casos, porque eles mastigam muito a folha de betel, uma trepadeira, com noz de areca, uma palmeira. Nós temos uma taxa alta, que varia de acordo com a região e a faixa etária. Aqui, a incidência cresce muito a partir dos 45 anos. O câncer de cavidade oral é mais comum em idosos, enquanto o de orofaringe ligado ao HPV [papilomavírus humano] afeta mais as pessoas na faixa dos 50 aos 59 anos.

Em quais regiões é mais frequente?

O Espírito Santo tem uma taxa alta, tanto dos tumores de cavidade oral quanto de orofaringe. Minas Gerais também.

Tem a ver com a alimentação?

Principalmente com o consumo de tabaco, de vape, de álcool e da transmissão do HPV por sexo oral. Em estudos que fizemos, vimos que o ex-fumante precisa esperar pelo menos 10 anos para que o risco de desenvolver câncer diminua. Se consumir álcool, demora mais ainda.

Antes os cânceres de cabeça e pescoço eram mais comuns a partir de 50 anos e, mais recentemente, começaram a aumentar em quem tem menos de 50, no Brasil, certo?

Isso aconteceu nos casos decorrentes da infecção pelo HPV. A proporção de mulheres com câncer de cabeça e pescoço também aumentou, com o problema aparecendo em uma idade um pouco mais jovem. Antes, a proporção era de quatro homens para uma mulher. Agora chegou a dois para um. A mulher saiu de casa, fuma e bebe. Tem uma vida mais parecida com a do homem.

A quais órgãos se refere quando fala em cabeça e pescoço?

À cavidade oral, formada por lábios, língua, gengivas e palato duro [céu da boca]; à orofaringe, que inclui o palato mole, a úvula, as tonsilas e a parede posterior da boca; ao nariz e aos seios paranasais; às glândulas salivares e à tireoide. Hoje há uma avalanche de diagnósticos de tumores na tireoide, porque toda mulher que vai a uma consulta ginecológica pede ultrassom. E qualquer nódulo vai para a análise patológica e a definição do diagnóstico.

Por que isso é um problema?

O câncer de tireoide é o mais frequente no mundo, mas, na maioria das vezes, é inativo. O nódulo não vira câncer. Para evitar a extração da glândula, que pode causar problemas, desenvolveram a técnica de queimar os nódulos. Efeito similar aconteceu com o câncer de próstata. Quando se criou o teste de detecção do PSA [proteína liberada pela próstata], todos os homens foram fazer, porque dispensava o exame de toque retal. A detecção de estágios muito iniciais levou a mais cirurgias desnecessárias, e o que aconteceu? A mortalidade aumentou. Em países como o Japão, no qual não se fazem exames de PSA, não houve aumento de mortalidade.

Em termos de tumores de cabeça e pescoço, a quais sintomas as pessoas deveriam ficar atentas?

O câncer de boca merece mais atenção, por ser de evolução rápida. As pessoas com frequência passam por médicos, dentistas e ninguém examina a boca. Talvez esses profissionais nem saibam fazer o diagnóstico. Quem tem que procurar o problema é o médico ou o dentista. O paciente precisa ser educado a fazer o acompanhamento de saúde.

Como evoluiu o tratamento desses tipos de câncer?

Mudou um pouco. Antes a gente tratava o estadiamento, o cancer stage . Examinávamos o paciente e olhávamos para o tamanho, a aparência e a localização do tumor. A nova classificação internacional, a TNM, proposta em 2018, classifica o câncer também com base em biomarcadores. Não é só o tamanho do tumor, mas se ele tem altas concentrações da proteína P16. Esse fator passa a influenciar o prognóstico, ou a chance de cura, e orienta para um tratamento mais preciso.

Faz-se o teste genético do tumor?

Teste de imuno-histoquímica, que usa anticorpos para detectar a presença da proteína. Se o tumor é P16 positivo, significa que há presença do HPV. No Brasil e nos Estados Unidos temos modalidades de tratamento adequadas aos pacientes que têm o vírus. Se for negativo, fazemos o tratamento de rotina. Os marcadores moleculares fazem hoje parte do estadiamento e, para alguns cânceres, são fatores prognósticos associados à cura. Isso permitiu dirigir melhor o tratamento e a sobrevida aumentou. A doença pode se tornar estável, o que permite à paciente conviver com ela. Hoje existem muitas drogas de uso oral, antes era tudo endovenoso. Também mudou o conceito de cura. Não se olha mais apenas para a eliminação completa do câncer. A pessoa pode ter uma sobrevida funcional, com capacidade e qualidade de vida, mesmo que continue com o tumor.

A pessoa pode ter uma sobrevida funcional, com capacidade e qualidade de vida, mesmo que continue com o tumor

Cura passa a significar conviver com a doença com qualidade de vida. Exatamente. Antes o tratamento tinha que matar o câncer, mas matava a pessoa junto. Hoje estamos diante de um equilíbrio. Por exemplo, a mulher tem um câncer de mama grande e, na hora de fazer a mastectomia, descobre-se uma metástase pulmonar. No meu tempo de cirurgiã isso era sinônimo de morte. Agora, tiram-se os nódulos e a mulher segue vivendo. O novo enfoque é dar vida ao paciente. A cura é relativa, não é definitiva. Tem também uma série de drogas novas: agentes imunossupressores, anticorpos monoclonais, células CAR-T para tratar tumores hematológicos. A indústria farmacêutica está investindo muito e mudando o tratamento.

Os tratamentos mais avançados estão disponíveis a todos no país?

Uma coisa muito necessária, que falta no Brasil, são diretrizes que ajudem a tornar o tratamento universal. Para câncer de cabeça e pescoço, não temos. O médico no interior de Mato Grosso, por exemplo, recebe um paciente com tumor na borda da língua, vê um linfonodo ou dois aumentados. Qual conduta deve adotar?

Se existem diretrizes, ele as acessa, toma uma decisão e pode justificar a conduta ao paciente. Há dois anos defendi o assunto em uma reunião com dirigentes regionais e conseguimos criar essas diretrizes para a América Latina. Estão publicadas, mas ainda não implementadas. Quando há suspeita de tumor de cabeça e pescoço, a orientação é fazer uma biópsia: tirar um pedacinho, pôr em um frasco e mandar para análise em laboratório. Um problema é que esse processo pode levar um ou dois meses no sistema público de saúde. Enquanto isso, o paciente fica esperando e o tumor cresce.

O diagnóstico precoce é importante? Aqui no A.C.Camargo, cerca de 40% dos tumores de boca estão no estágio inicial. No SUS [Sistema Único de Saúde], que atende 75% da nossa população, 76% dos casos já chegam avançados. Nessas situações, não conseguimos saber onde o tumor começou. Para fazer política pública, temos de conhecer onde está a maioria dos tumores em estágios iniciais, para saber como agir. Precisamos fazer esse mapeamento porque influencia o prognóstico. Quando o paciente chega com um tumor em estágio avançado, mesmo aqui no A.C.Camargo, com acesso a exames tecnológicos e tratamento, não adianta. Ele morre. Se ele inicia o tratamento nas fases iniciais, tem mais chance de cura.

Você atende ainda?

Fui cirurgiã de cabeça e pescoço até 2007. Em Goiânia eu não tinha dinheiro para fazer pesquisa, então operava. Brinco que de cirurgiã rica passei a epidemiologista pobre. Vim completar minha formação e propus ao Luiz Paulo Kowalski, que era meu amigo, fazermos um estudo epidemiológico. Juntamos dados de Goiânia, Curitiba e do A.C.Camargo. Começamos em 1991 a recrutar pacientes para entender seus hábitos e saber por que desenvolviam câncer. Insisti para incluirmos fogão a

Em Goiânia, vimos mudanças na incidência de câncer de mama, de colo do útero, que hoje aparecem em pacientes mais jovens

fazer registro epidemiológico e ela me ensinou um monte de coisas, trabalhava na Organização Pan-americana da Saúde e até me mandou um computador.

E criou o registro em Goiânia?

Comecei. É preciso pegar todos os casos de câncer da cidade, ir atrás de todos os hospitais, convencer os dirigentes a passar as informações. Eu já tinha mobilizado as fontes, mas precisava de autorização do Ministério da Saúde. Um dia vim a São Paulo e o Eduardo Franco e o Humberto Torloni (1924-2017) me chamaram para uma reunião em Brasília. Me disseram que, no ministério, perguntariam onde era preciso criar um registro no país e que eu deveria responder que era Goiânia. Aproveitei para convidá-los a conhecer o hospital onde eu trabalhava. Não era nada, comparado ao que já existia aqui no A.C.Camargo.

Como funcionava o registro?

Coletávamos idade, sexo, topografia [localização do tumor], estadiamento. Eram 24 horas por dia fazendo isso.

O registro já existia quando ocorreu o acidente com césio em 1987?

lenha na análise. A fumaça era mesmo um dos fatores de risco para câncer de boca em Curitiba, onde usavam muito. Conseguimos publicar no Journal of the National Cancer Institute. Foi nosso primeiro artigo. Éramos eu, o Kowalski e o Benedito Valdecir de Oliveira, do Hospital Erasto Gaertner, de Curitiba. Depois, nos juntamos ao grupo da USP. Eu queria fazer epidemiologia porque acho que o importante é investigar os fatores associados à doença, para mudar o comportamento.

A experiência na epidemiologia já vinha de antes, não?

Montei o registro de câncer de base populacional de Goiânia. Começou porque perdi um paciente de 37 anos com câncer de boca. Fiz uma cirurgia ótima, estava toda orgulhosa, coisa de cirurgiã metida. Alguns meses depois, ele voltou com recidiva. Pensei: “Cirurgia já sei fazer, mas não adianta”. Então fui fazer um curso no Instituto Nacional de Câncer, no Rio de Janeiro. Lá, tinha uma professora colombiana, que vivia nos Estados Unidos. Quando terminavam as aulas, todos iam embora e eu ficava. Então, ela veio falar comigo. Contei que queria aprender a

Tínhamos feito pouco antes. Trabalhamos muito. O governador pediu que eu ajudasse as vítimas e fui atender, com a condição de transferir, por lei, o registro para o Hospital do Câncer de Goiânia, onde eu trabalhava. Fizemos tratamentos preventivos, cirurgias para retirar lesões iniciais e impedir que se tornassem malignas. A situação causou muitos problemas mentais na população, as pessoas ficaram abaladas. Aprendi muito, principalmente a questão da comunicação. Dar a informação correta, confiável.

Houve alterações no padrão de câncer depois do acidente?

Criamos um protocolo para fazer o acompanhamento das vítimas e vimos que não teve um pico de casos de câncer. Uma mulher teve câncer de mama, mas não sabemos se tem relação com o acidente. Acho que não. No grupo exposto, de 249 pessoas, um funcionário teve mielodisplasia, um quadro pré-cancerígeno no qual ocorrem falhas na produção das células sanguíneas na medula óssea.

O registro continua ativo em Goiânia? O que revelou nesse tempo?

Até hoje funciona. Foi o primeiro do Centro-Oeste, agora Brasília também tem. Nesses 30 anos, conseguimos mostrar como está a situação do câncer em Goiânia e servir de referência para outros lugares. Vimos mudanças na incidência de câncer de mama, de colo do útero, que atualmente aparecem em pacientes mais jovens. Melanoma também está aumentando. Também vimos impacto de medidas de prevenção. Agora encafifei que temos de estudar os tumores raros. As pessoas vivem mais, então aumentam as chances de aparecerem esses tumores. Os médicos precisam ser treinados para suspeitar dos casos e fazer os diagnósticos.

Como funciona o Headspace? É um consórcio internacional que reúne centros de pesquisa de 15 países para investigar as características genéticas e epidemiológicas dos cânceres de cabeça e pescoço. Quando fui para a França, em 2007, fizemos um segundo projeto de câncer de cabeça e pescoço, com colaboradores de vários estados brasileiros e alguns países da América do Sul. Recrutamos cerca de 4 mil pacientes e analisamos a ocorrência e os fatores de risco que predispunham a esses tumores. A partir desse trabalho, um amigo, o epidemiologista britânico Paul Brennan, sugeriu criarmos o Headspace. Ele veio para cá, reunimos os grupos, discutimos e fizemos a proposta que ele apresentou na Comunidade Europeia. Ganhamos os fundos. Depois fizemos um acordo, mandamos à FAPESP e conseguimos o financiamento para o projeto que terminou em agosto e tenta entender as razões para o atraso no diagnóstico dos cânceres de cabeça e pescoço. Começou com pesquisadores de Goiânia, São Paulo, Argentina, Uruguai e dos Estados Unidos. No meio do caminho, entraram Irã e Índia. Hoje, somos 15 centros. Tratamos de comunicação, diagnóstico e análises do genoma. Queríamos conhecer quais são as mutações mais frequentes nesses 15 países, como funcionavam os sistemas de saúde e por que o diagnóstico de câncer de cabeça e pescoço era tardio.

A situação é semelhante nos 15 países? É bem diferente. Na América do Sul –Uruguai, Colômbia, Argentina, Brasil –, somos mais ou menos parecidos, mas as diferenças entre os sistemas particular e

privado influenciam. Aqui, o SUS oferece diagnóstico e tratamento sem custo, mas o paciente que pode pagar convênio ou atendimento particular tem atendimento mais ágil. Na Itália, por exemplo, o sistema é público, mas dizem que há fila. Fizemos um artigo com base em questionários e ficou evidente que há diferenças no tempo de diagnóstico. No Reino Unido há um prazo máximo de 60 dias para começar o tratamento.

Também temos uma legislação que estabelece esse prazo, não?

Temos. Depois que se faz o diagnóstico, o tratamento deve ser iniciado em até 60 dias. Mas não há mecanismos para obrigar a cumprir esse prazo. O sistema britânico funciona porque o controle é muito rígido.

Mesmo assim, lá surgem tumores em estágio mais avançado?

Sim, não sei por quê. A sobrevida para câncer de mama na Inglaterra, por causa da fila do NHS [Sistema Nacional de Saúde], é a mais baixa da Europa.

A fila parece ser um problema comum nos sistemas públicos de saúde. Qual a solução?

Acho que falta regionalização. Em Goiânia, o SUS funciona de um jeito. No Nordeste, a gestão local será de outra forma. Não há um modelo que funcione em todo lugar. O equipamento que existe no SUS de Barretos, no interior paulista, não é o mesmo disponível em Goiânia ou em Aracaju. Essa diferença tem que ser balizada.

O que viu no período que passou na Iarc, na França?

Aprendi muita coisa. É uma instituição já cristalizada e bem europeia, diferente do que estou acostumada. Me puseram para fazer um dos volumes do CI5, um livro que publicam a cada quatro anos sobre a incidência de câncer nos cinco continentes.

Você quis mudar algo?

Sim, duas coisas. Os registros eram pobres e não estavam digitalizados. Quem queria ter acesso tinha de comprar os programas. Criamos um software que se chama CanReg5, aberto para todo mundo, sem pagar licença. Hoje, está mais avançado, tem outras versões. Outra coisa que queria mudar era que, no CI5 , só usavam a topografia para descrever os casos: câncer no nariz, por exemplo. Mas a morfologia é mais importante para o tratamento do que o lugar onde ele está. Pela primeira vez, começamos a fazer o registro internacional da incidência do câncer, incluindo informações sobre a morfologia. Fiz muitos amigos nesse período, temos projetos juntos até hoje. Mas eu quis voltar. Aqui tem muita coisa para se fazer.

Quando voltou, você quis fazer algo diferente do que fazia?

Quando os europeus vieram, trouxeram os hábitos de beber, fumar, usar rapé, associados ao câncer de cabeça

Eu queria fazer epidemiologia do câncer, porque no Brasil não tinha. Aqui é um hospital de câncer e é importante os estudantes aprenderem mais sobre epidemiologia. Precisava criar uma mentalidade nova, e isso toma tempo.

Qual é essa mentalidade?

Olhar o câncer não como um número. Há sempre uma pessoa, um impacto social. Quando dizem que 50 mulheres em cada grupo de 100 mil têm câncer em um ano, pergunto aos estudantes: “O que isso quer dizer? Qual a faixa etária? Como essas mulheres estão morrendo? Como está o acesso dos pretos e pardos ao sistema de saúde?”. A incidência de tumores de cabeça e pescoço está aumentando e

os pretos estão morrendo mais do que os pardos, sem nem ter diagnóstico. Os pardos estão começando a ter acesso ao sistema de diagnóstico e tratamento, então diminui a mortalidade. Os pretos ainda não.

Você participou de um artigo de 2024 sobre o impacto do colonialismo no câncer no Brasil. Pode explicar? Quando os europeus vieram, eles trouxeram os hábitos de beber, fumar, usar rapé. O câncer de cabeça, principalmente o de boca, está associado a esses hábitos. O colonialismo não só foi a conquista da terra, mas também a inclusão de novos hábitos culturais.

Como surgiu o seu interesse pela cirurgia oncológica?

Sou edipiana, meu pai era médico. Ele era otorrino e me levava para ajudar na cirurgia quando eu tinha 11 anos. Isso me influenciou a ir para a cirurgia e a me interessar por cuidar, correr para atender às pessoas. Para a epidemiologia, quem me influenciou foi minha mãe, que era uma mulher de opinião. Ela fazia campanha política, ia para a rua. Era uma leitora assídua e fazia a gente ler. Li muito sobre Marie Curie. Meu avô tinha a maior biblioteca de Goiás Velho. Eu ficava pensando naquela mulher lá no frio, comendo cenouras sem luz e descobrindo tantas coisas. Fazia as radiografias, levava para a guerra. Aquilo me impressionou muito e me despertou para a ciência.

Como foi vir para São Paulo completar a formação em cirurgia oncológica, área dominada pelos homens? Vim de Goiânia no meu fusquinha, papai arrumou um rapaz para me ajudar a dirigir até aqui. Quando cheguei, encontrei um residente e pedi orientação, não sabia onde devia ir. “Te vira”, ele disse. Tive que descobrir onde era o quarto. Eles apostavam quanto tempo eu ia durar.

Por quê?

Porque eu era a única mulher na cirurgia, uma especialidade masculina. Na primeira cirurgia de cabeça e pescoço em que entrei, me puseram para ficar de pé só segurando o afastador, por 12 horas. Em geral, o residente júnior é quem faz a traqueostomia, mas, nessa vez, não fiz. Quando terminou, fui lá e disse: “Essa

Precisamos informar mais e ouvir os pacientes, como aquele cujo problema era não conseguir beijar a

mulher após a cirurgia

foi a primeira e a última vez que vocês fizeram a minha traqueostomia”. A mulher que mais fez traqueostomia neste hospital fui eu.

Você enfrentou os dois estigmas, o de ser mulher e o de não ser paulista. Uma vez houve uma reunião com uma autoridade e todos só diziam “sim, senhor”. Quando chegou ao fim, peguei minhas anotações e contestei várias coisas. No dia seguinte, ele mandou me chamar: “Quem é você?”. “Sou Maria Paula, de Goiânia”, respondi. “E lá tem faculdade de medicina?” Eram coisas assim que eu ouvia, por ser de outra região do Brasil.

Como foi presidir a Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço? Havia uma divisão entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em uma reunião, disse que precisávamos sair do eixo Rio-São Paulo. Foi posto em votação, perdemos. Avisei que na vez seguinte não perderíamos, era necessário mobilizar os integrantes. Juntamos gente do Nordeste, votamos e levamos a reunião para Natal. A primeira vez em 25 anos fora do eixo Rio-São Paulo. A seguinte foi em Goiânia.

Abriu caminho para mais gente. Fico superfeliz com isso. Não foi fácil, mas, no final, eles também gostaram de olhar o Brasil. Precisei brigar, parecia que os mandachuvas já tinham combinado quem seria o próximo presidente. Mas ganhei a eleição. Com o tempo, as coisas mudaram. A Fátima de Matos é agora a segunda mulher, depois de quase 20 anos.

Tudo isso lhe rendeu a homenagem no Prêmio Octavio Frias de Oliveira. Acho que sim. Na cerimônia, eu disse que o Brasil tem muita desigualdade e que São Paulo deveria colaborar mais com outros estados, conhecer o país e mostrar o que é possível fazer. A FAPESP pode contribuir para isso.

Como é sua atuação na formação de novos médicos?

Sou muito ativa. Já disse aos meus alunos que tem uma suíte presidencial no céu para mim. Adoro os estudantes, mas é difícil. Eles são muito jovens e têm um jeito de encarar a pesquisa científica muito diferente daquele do meu tempo. Aprendo com eles. Essa geração não tem compromisso, faz as coisas quando e como quer. Tento fazê-los pensar e enxergar as pessoas mais do que os números, o salário.

Por que viu a necessidade das mídias sociais para o Headspace?

Temos que ampliar. Por que a identificação e o rastreamento do câncer de mama melhoraram? Por causa da comunicação. Quando se criou aquele alvo azul, gerou-se conscientização. Estamos em outro momento, que é o de investir nas mídias sociais. Nós, especialistas, temos o costume de falar em código, “carcinoma espinocelular”. Precisamos decodificar e informar mais, ouvir os pacientes, como aquele que nos disse que o maior problema era não conseguir beijar a mulher depois da cirurgia, porque a boca ficou torta. Precisamos fazer menos terrorismo e falar mais de saúde, da importância de se cuidar.

Você também teve um câncer. O que aprendeu como paciente? Como médica, aprendi que informar bem o paciente é importante. Não foi uma época fácil, eu fazia quimioterapia e vinha trabalhar. O que ia ficar fazendo em casa? l

Doutores com CNPJ

Estudo mostra que entre os formados em programas de doutorado em 2021 e 2022 , 15% tinham se tornado donos de empresas no ano passado

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicado em abril apontou que, entre os 44 mil doutores formados no país em 2021 e 2022, 15,3% (6,7 mil) eram sócios ou administradores de empresas em julho de 2024, entre 18 e 36 meses após se titularem. A maioria deles, cerca de 62%, atua na gestão, em atribuições como presidente, diretor ou sócio-administrador. Segundo os dados, 54,7% têm microempresas, enquanto 14,6% são donos ou administradores de pequenas firmas e 30,7%, de empreendimentos de demais portes. Nesses negócios, as principais atividades econômicas a que eles se dedicavam eram saúde (28,2%), educação (11,1%) e atividades jurídicas, de contabilidade e de auditoria, que juntas formam a categoria que correspondeu a 6,2%. Já ao se observar o universo de formados em cada área do conhecimento, o direito teve o maior percentual de doutores proprietários ou sócios de negócios, com 41,7% do total de titulados, seguido por medicina (39,9%) e odontologia (30,8%).

Segundo o autor do estudo, o economista e coordenador de métodos e dados do Ipea, Daniel Gama e Colombo, os dados indicam perfis variados de doutores empreendedores, ainda que a pesquisa não tenha feito uma avaliação de caráter qualitativo. O fato de mais da metade se enquadrarem como microempreendedores, associado a certas especificidades das áreas do conhecimento e atividades econômicas a que eles se dedicam, sugere a existência de um processo de precarização e de “pejotização” – situação na qual profissionais são contratados como pessoa jurídica para prestar serviços ou exercer ativida-

des com regularidade, em situação análoga à de um vínculo empregatício. “Quando observamos as áreas de atividades das empresas, a categoria educacional aparece em segundo lugar. Como esse é o principal setor empregador de doutores do país, é possível que o elevado número de PJ esteja associado à pejotização e à precarização, com a contratação de profissionais com titulação sem direitos trabalhistas”, avalia.

Outra parcela parece de fato estar empreendendo e criando negócios com base na formação obtida nas universidades. “Cerca de 22% das PJ são sociedades que não se enquadram como micro ou pequenas empresas. Esses casos possivelmente não podem ser enquadrados como estratégia de pejotização, embora não tenhamos dados concretos para confirmar isso”, afirma Colombo. Entre os doutores com empresas abertas, cerca de 60% tinham um CNPJ antes mesmo de concluírem sua titulação, o que sugere um terceiro perfil: o de pessoas que buscaram a pós-graduação para melhorar a qualificação e o rendimento nas atividades que já exerciam, e não necessariamente para empreender. Isso explicaria por que as áreas do conhecimento que concentram mais donos de firmas sejam campos como direito e medicina, entre outras profissões liberais. “Nesse caso, pode não haver vocação acadêmica ou interesse genuíno por empreender, levando o conhecimento produzido na academia para o mercado, com alguma inovação, mas sim o objetivo de se qualificar para ter um diferencial para seu consultório ou escritório”, explica. Para o físico Anderson Gomes, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que não participou do estudo do Ipea, esse tipo de qualificação pode ter um papel importante pa-

O quinhão dos empreendedores

Distribuição dos doutores segundo sua participação em pessoas jurídicas (PJ)

TOTAL: 43.995

ANO DE TITULAÇÃO: 2021 E 2022

84,7%

Sem participação em PJ

Participação em PJ iniciada antes da titulação

5,9%

Participação em PJ iniciada depois da titulação 9,4%

ra levar novos conhecimentos para a sociedade. “Tenho alunos de odontologia na pós-graduação que buscam o título de mestre e de doutor para ter um diferencial no consultório deles. Ao fazerem isso, muitos passam a oferecer aos seus clientes novas tecnologias que descobrem em contato com a universidade”, conta Gomes, que atualmente é diretor do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), centro de pesquisa ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Ele observa que tanto esses alunos como os mestres e doutores “pejotizados” e aqueles que abrem uma startup de base tecnológica acabam sendo denominados empreendedores. “Eles estão no mesmo pacote, mas precisam ser separados. Por isso, esses estudos são importantes e precisam avançar para que possamos compreender melhor esse cenário”, afirma.

Osistema de pós-graduação brasileiro foi criado na década de 1960 com o objetivo primordial de formar docentes e pesquisadores para as universidades brasileiras e durante muito tempo cumpriu à risca esse papel.

A grande expansão do número de doutores nas últimas duas décadas – atualmente, cerca de 25 mil são titulados por ano – e a limitação das vagas de professores nas instituições públicas de ensino superior levaram parte dos pós-graduados a buscar alternativas tanto no mercado formal, trabalhando como pesquisadores contratados por companhias privadas ou no terceiro setor, como no empreendedorismo.

A análise do perfil dos doutores empreendedores ganha relevância ao apontar que caminhos

vêm sendo trilhados na busca por oportunidades fora da academia. Para Colombo, a expansão da pós-graduação trouxe benefícios significativos para indivíduos e sociedade, como maior empregabilidade, melhores salários, inovação e capital humano. “No entanto, persistem alguns desafios centrais. Um deles é a subutilização de doutores no mercado, já que muitos atuam em funções abaixo de sua qualificação”, afirma. Em pesquisa anterior que realizou em 2024 sobre doutores com emprego formal, Colombo identificou que cerca de 85% daqueles que atuam fora do setor educacional tinham ocupações que não aproveitam estritamente sua formação avançada.

“As evidências sugerem que as organizações e a economia nacional utilizam mal o estoque de conhecimento desses indivíduos”, avalia. O problema está presente em outras nações. Ele destaca um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicado em 2023, que aborda a crescente precarização das carreiras de pesquisadores de doutorado e de pós-doutorado em países da entidade, impulsionada pelo aumento no número de formados e pela escassez de posições acadêmicas permanentes. Uma das iniciativas que podem contribuir com o desenvolvimento desses pesquisadores é oferecer formação em empreendedorismo aos estudantes, uma das recomendações do relatório. “Além disso, a OCDE recomenda outras ações: programas de estágio em empresas, políticas de incubadoras e programas de mentoria, por exemplo, são algumas iniciativas possíveis que são mais práticas e promovem o desenvolvimento de habilidades relacionadas ao empreendedorismo”, explica Colombo.

O estudo do Ipea adotou uma definição ampla de empreendedorismo, baseada na participação dos doutores no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) como proprietários ou administradores. Nela, o empreendedorismo é definido como qualquer caso de criação, propriedade ou gestão de um negócio, como autônomo ou como empresa. Colombo destaca que há definições diferentes em outros países, e não existe um consenso entre os pesquisadores da área sobre qual seria o mais preciso. “Um relatório de titulados do Reino Unido que cito no estudo, do National Centre for Universities and Business, por exemplo, define empreendedores como ‘aqueles que administraram seus próprios negócios, se consideraram autônomos ou estão na fase conceitual’.” diz o pesquiador do Ipea. A fase conceitual é que precede o início do negócio, em que o empreendedor está investigando e avaliando a viabilidade do empreendimento.

O percentual de novos doutores que têm um negócio no Brasil é maior do que o descrito em

FONTE COLOMBO, D. G. IPEA . 2025

estudos realizados nos Estados Unidos (9% entre doutores em ciências, engenharia ou saúde), no Reino Unido (7% em 2019 e 2020) e Europa (6,8% dos titulados em nove universidades da região entre 2016 e 2020 eram autoempregados). Como há diferenças metodológicas entre os demais estudos, não é possível fazer uma comparação direta. “Ainda assim, parece que o caso brasileiro revela uma alta taxa de empreendedorismo”, avalia Colombo.

Para o bacharel em administração Márcio Florêncio, do Instituto Federal do Piauí (IFPI), que não participou do estudo, os dados do Ipea podem ser vistos sob duas perspectivas. “Por um lado, podem indicar que esses novos doutores estão conseguindo transformar os resultados de suas pesquisas em produtos ou serviços. Por outro, podem sinalizar a falta de oportunidades, o que os leva a empreender por necessidade”, avalia ele, que é um dos autores de uma revisão de literatura sobre empreendedorismo entre pesquisadores no país publicada na Revista Gestão em Análise em fevereiro de 2023. O levantamento mostrou que a maior parte dos artigos sobre o assunto estava voltada para a identificação de

Trajetórias no setor privado

Percentual de doutores formados em 2021 e 2022 em diferentes

áreas do conhecimento que eram sócios de empresas

Direito

Medicina

Odontologia

Administração

Arquitetura, urbanismo e design

Educação física

Psicologia

Medicina veterinária

Planejamento urbano e regional

Ciências da religião e teologia

Zootecnia/recursos pesqueiros

Interdisciplinar

Saúde coletiva

Ciência da computação

Engenharias

Economia

Comunicação e informação

Biotecnologia

Ciências agrárias

Ciências ambientais

Outras áreas

características e habilidades empreendedoras em alunos de graduação, havendo menor atenção aos estudantes de pós-graduação.

Outro estudo publicado em dezembro de 2021 pelo CGEE também analisou o número de pós-graduados que estavam no quadro societário de firmas brasileiras, com uma amostra maior e em um período mais longo. A pesquisa avaliou o universo de 512.218 mestres e 197.282 doutores titulados no país e de 14.705 doutores que obtiveram seu título no exterior, todos no período de 2003 a 2017. O percentual de sócios em empresas entre os doutores formados no país era de 16,8%, um pouco superior aos 15,3% encontrados pelo Ipea. Já entre os que estudaram no exterior, o índice chegou a 21,4%. Outro resultado que se aproxima dos dados do Ipea são os campos de atuação nos negócios.

Na análise do CGEE, as áreas predominantes entre os doutores titulados no país foram ciências da saúde – 32,1% deles estavam na base de sócios-proprietários –, seguidas por ciências sociais aplicadas, com 28,2%. “Embora qualitativamente alguns resultados sejam similares, não é possível saber se houve crescimento ou queda desse percentual de empreendedores, porque são amostras diferentes”, pondera Gomes, do CGEE. Algumas universidades se mobilizam para transferir à sociedade o conhecimento gerado em seus programas de pós-graduação. A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, publica todos os anos a lista de suas “empresas-filhas”, negócios criados por seus estudantes e docentes. Segundo o levantamento mais recente, há 1.588 companhias desse tipo cadastradas, sendo que 1.349 ativas no mercado: 141 (9%) das cadastradas foram fundadas por doutores ou pesquisadores em estágio de pós-doutorado, 139 por mestres e 879 por graduados. O restante são empresas criadas por docentes e funcionários. “Por meio desse mapeamento, levantamos e divulgamos casos de sucesso. Isso é importante para os alunos verem que é possível seguir esse caminho”, diz Renato Lopes, diretor-executivo da Inova Unicamp, a agência de inovação da universidade.

Na avaliação de Florêncio, do IFPI, os dados sobre o empreendedorismo de doutores podem contribuir para a construção e o fortalecimento de políticas públicas de inovação. “Eles demonstram que há uma disposição desses profissionais em empreender, seja qual for sua motivação”, diz. l

Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

FONTE

Comentários de alerta, feitos por usuários em posts nas redes sociais, têm pouca eficácia para combater conteúdos falsos, indica artigo

SARAH SCHMIDT

Um grito parado no ar

Ao encontrar uma postagem com informação falsa nas redes sociais, é eficaz fazer um comentário para alertar outros usuários de que se trata de fake news? Um estudo publicado em julho na revista científica Harvard Kennedy School Misinformation Review indicou que essas correções feitas por usuários comuns têm efeito limitado sobre indivíduos que acreditam em desinformação sobre a Covid-19. Quando, além de apontar o problema, também se adiciona um link com a informação checada por uma organização jornalística, os efeitos podem ser levemente mais relevantes, dependendo do país. Os pesquisadores destacam no artigo a necessidade de estratégias institucionais e mudanças na operação das plataformas para aumentar o impacto do combate às informações falsas.

Na pesquisa, 3 mil pessoas do Brasil, Índia e Reino Unido avaliaram publicações do Facebook sobre a Covid-19. Mil participantes de cada país responderam

a um questionário em que foram expostos a postagens reais com desinformação que circulavam na época em que os dados foram coletados, em março de 2021. As postagens, por exemplo, enalteciam a cloroquina – embora a eficácia do tratamento já tivesse sido descartada por estudos com uma ampla quantidade de pacientes – ou questionavam a gravidade da emergência sanitária.

Entre os participantes de cada país, havia três subgrupos, com cerca de 300 pessoas cada um. O primeiro, o de controle, foi exposto a três postagens verdadeiras e seis falsas, sendo que nenhuma delas tinha comentários com correção. O segundo grupo foi exposto às mesmas postagens, mas em algumas delas havia um recado criado pelos pesquisadores, simulando o comentário de um usuário, alertando para conteúdos falsos. No terceiro, as advertências continham um link para uma organização jornalística com a informação checada. Embora os links não fossem clicáveis, traziam uma pré-visualização do título do conteúdo e o nome do veículo.

Os participantes foram convidados a avaliar a veracidade dos conteúdos e a dizer se os consideravam nada precisos, pouco precisos, razoavelmente precisos ou muito precisos – cada resposta equivalia a uma pontuação em uma escala de 0 a 3 pontos. Com base nela, os pesquisadores calcularam a média do nível de crença em desinformação de cada país, primeiro para o grupo de controle. No Reino Unido, a média foi de 0,83 ponto, indicando o menor nível de crença; no Brasil, de 1,03 ponto; e na Índia a média alcançou 1,68 ponto, refletindo o maior nível.

Depois, eles calcularam essa média para os demais grupos que viram as postagens com os comentários corretivos. No Brasil, os efeitos foram tímidos, com pequenas reduções na média de crença em desinformação em relação ao grupo de controle: houve uma queda de 6,9% para aqueles expostos a postagens com comentário que continham links e uma redução de 5,7% no grupo sem link. Já na Índia, os comentários com link diminuíram de maneira significativa a crença em desinformação, em comparação com o grupo de controle, em cerca de 10%, enquanto entre os participantes que viram comentários sem link não houve resultado expressivo. No Reino Unido, houve pouca diferença entre os três porque o grupo de controle já mostrava ceticismo em relação a conteúdos com desinformação.

Outra etapa do estudo mediu de que maneira as correções diminuíram a disposição dos participantes em compartilhar conteúdos com informação falsa sobre a pandemia. O experimento foi similar ao primeiro, e os participantes precisaram responder o quanto estavam dispostos a compartilhar as mesmas postagens.As respostas foram ranqueadas em uma escala de 0 a 3, em que 0 significava nada provável, 1 pouco provável, 2 um pouco provável e 3 muito provável. No grupo de controle, a média de intenção de compartilhar postagens com notícias falsas foi de 0,47 ponto no Reino Unido, o menor de todos, de 0,71 ponto no Brasil e 1,61 ponto na Índia.

No Brasil, as reduções na disposição em compartilhar notícias falsas entre os grupos que viram os comentários com correções ficaram entre 7,4% e 11,2% em relação ao grupo de controle. Na Índia, enquanto as correções sem link tiveram pouco efeito (de 5,7%), as com o link pa-

ra uma fonte de informação confiável reduziram em 11,6% a intenção de compartilhamento de conteúdo falso sobre a Covid-19.

“O estímulo funciona em alguma medida e isso depende bastante do contexto de cada país. Por isso, as diferenças econômicas e sociais de cada lugar precisam ser levadas em consideração ao se formular estratégia contra a desinformação”, pondera Camila Mont’Alverne, professora da Universidade de Strathclyde, na Escócia, e uma das autoras do artigo. Ela propõe que as redes sociais ofereçam mais ferramentas aos usuários para garantir a integridade da informação. “Um exemplo são os labels, rótulos com descrições ou destaques visuais que ajudem a identificar se um conteúdo é confiável ou falso. Isso ocorreu na pandemia, por um período, e depois foi reduzido.”

Raquel Recuero, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que não participou da pesquisa, avalia que esse tipo de ação, sozinho, pode não ser efetivo porque a desinformação é um problema sistêmico. “As pessoas recebem conteúdos falsos de diversos canais diferentes. Um mesmo indivíduo, que já questiona a eficácia das vacinas, vê um vídeo de um secretário de Saúde de um país estrangeiro dizendo que vacinas não são seguras. Depois, recebe uma mensagem de um vizinho com outra fake news sobre o tema.

Tudo isso reforça sua crença”, observa ela, autora do livro A rede da desinformação – Sistemas, estruturas e dinâmicas nas plataformas de mídias sociais (Editora Sulina, 2024). “Por isso, um aviso em um comentário ou um link de uma checagem, apesar de importante, pode ter um alcance limitado em meio a tantas informações que circulam nas redes.”

Iniciativas para combater desinformação precisam ser diversificadas

“A pesquisa traz o alerta de que os esforços para enfrentar a desinformação precisam ser diversificados. É necessário apostar em mais de uma estratégia”, observa Dayane Machado, doutoranda do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que pesquisa desinformação em saúde e não participou do estudo. Machado é uma das autoras de um artigo que analisou vídeos de criadores brasileiros com informações falsas sobre vacinação no YouTube e apontou que a plataforma estaria contribuindo com a propagação desses conteúdos ao permitir que eles fossem monetizados, gerando receita para ambos, publicado em outubro de 2020 na revista científica Frontiers in Communication. Segundo ela, o desafio de corrigir informações não deve recair sobre o usuário. Recuero diz que é necessário um conjunto de ações para mitigar o problema. Uma delas é o trabalho off-line, mais próximo de alguns atores estratégicos da população, como os agentes da saúde, que podem propagar as informações corretas com autoridade – isso se também não estiverem desinformados. “Em um trabalho de pesquisa que realizamos no Maranhão com esses agentes, constatamos que eles próprios tinham dúvidas sobre a eficácia de diversas vacinas, pois também estavam sendo bombardeados com conteúdo falso”, observa. Outra estratégia destacada por ela é a criação de coalizões com a academia, o governo e a sociedade civil para combater desinformação em algum campo específico, de maneira coordenada.

Nesse cenário complexo, será que ainda vale a pena fazer um comentário desmentindo um conteúdo falso nas redes sociais? “Sempre vale. Ao menos, você pode desencorajar alguém que iria compartilhar aquela mentira”, conclui Recuero. l

O artigo científico consultado para esta reportagem está listado na versão on-line.

INDICADORES

Fôlego reconquistado

Relatório de atividades FAPESP 2024 mostra como o desempenho das instituições científicas de São Paulo está retornando aos níveis anteriores à pandemia

FABRÍCIO MARQUES

45,3%

R$ 799,7 milhões

Pesquisa para o Avanço do Conhecimento (básica e aplicada)

Desembolso por estratégias de fomento

0,8%

R$ 14,9 milhões

Difusão, Mapeamento e Avaliação de Pesquisas

AFAPESP investiu no ano passado

R$ 1.767.329.896 no financiamento a um número recorde de projetos: 27.095 bolsas e auxílios à pesquisa, 17,6% mais do que o total de 2023. No intervalo de um ano, 12.952 novos projetos foram contratados. O desempenho sinaliza uma superação quase integral do prejuízo causado pela pandemia nas universidades e instituições científicas de São Paulo. O montante em dinheiro aportado pela Fundação em 2024 foi 29,3% superior ao desembolsado em 2023 e, em valores correntes, é o maior da série histórica – já em valores atualizados pela inflação, o investimento ainda fica um pouco atrás do executado em 2019, antes da emergência de Covid-19.

Esse balanço foi divulgado no Relatório de atividades FAPESP 2024 , lançado em setembro. O documento está disponível no site da Fundação, no qual é possível obter os dados anuais do financiamento da instituição desde 1962, quando a FAPESP iniciou suas atividades. O progresso alcançado em 2024 foi estimulado por ações da Fundação tanto no sentido de facilitar os processos de submissão e de avaliação de propostas apresentadas por pesquisadores quanto em atualizar o teto orçamentário de projetos (de R$ 300 mil para R$ 600 mil, no

A FAPESP desembolsou em 2024 R$ 1.767.329.896 no apoio a 27.095 projetos de pesquisa

20,9%

R$ 369,0 milhões

Apoio à Infraestrutura de Pesquisa

R$ 110,7

milhões

19,4%

R$ 343,5 milhões

Formação de Recursos

Humanos para C&T

7,3%

R$ 129,5 milhões

Pesquisa em Temas Estratégicos 6,3%

Pesquisa para Inovação

caso de auxílios regulares à pesquisa) e os valores de bolsas (reajustadas em até 45%). No caso dos bolsistas de pós-doutorado, a FAPESP passou a garantir o ressarcimento da contribuição previdenciária e ampliou a duração das bolsas de 24 para 36 meses. Em 2024, a FAPESP financiou um total de 10.275 bolsas no país e no exterior, 30% a mais do que no ano anterior. “2024 foi um ano de avanços importantes para a pesquisa, para o fomento e para a própria FAPESP, quando se consolidou a recuperação do período da pandemia, reforçando uma perspectiva otimista para o sistema paulista de ciência, tecnologia e inovação”, escreveu na apresentação do relatório Marco Antonio Zago, presidente do Conselho Superior da Fundação.

A Fundação incorporou, em abril de 2024, duas novas iniciativas a seu portfólio de programas estratégicos. Uma delas é o QuTIa (Quantum Tecnologies Initiative), um programa para criar tecnologias quânticas, atrair talentos e desenvolver startups nessa área no estado de São Paulo. Inicialmente, foram selecionadas cinco propostas submetidas por jovens pesquisadores em início de carreira das universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e Federal do ABC (UFABC), que contarão com cinco anos de financiamento. Um segundo edital do programa foi lançado em 2025. Também foi lançado o Pro -

Desembolso por instituição

48,2%

R$ 863,0 milhões

Desembolso por grandes áreas do conhecimento

Universidade de São Paulo (USP)

Universidade Est. de Campinas (Unicamp)

Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Instituições Estaduais de Pesquisa

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Empresas

Instituições Part. de Ensino e Pesquisa

Universidade Federal do ABC (UFABC)

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA)

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

Soc. e Ass. Científicas Profissionais

Governos de outros estados

Instituições municipais Outras Instituição

FONTE RELATÓRIO DE ATIVIDADES FAPESP 2024

Ciências da Vida 10,8%

R$ 103,0 milhões Interdisciplinar 34,0%

R$ 608,9 milhões

Ciências Exatas e da Terra e Engenharias

R$ 192,3 milhões

Ciências Humanas e Sociais 7,0%

Evolução do desembolso desde 2018

grama para o Atlântico Sul e a Antártida (Proasa), que busca ampliar o conhecimento sobre o oceano e o continente gelado, fortalecendo redes nacionais e internacionais de pesquisa. A iniciativa é integrada pela FAPESP, pelo Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS), da França, e pelo Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), da Argentina.

Programas consolidados da Fundação também ganharam novo fôlego. Em maio de 2024, a FAPESP anunciou a constituição de três novos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), em um edital voltado para a s áreas de Ciências Humanas e Sociais, Arquitetura e Urbanismo, Economia e Administração. O Centro de Estudos das Favelas, com sede na UFABC, vai promover estudos envolvendo modelagem de dados, avaliação de políticas públicas e relações entre a economia urbana e a transformação do ambiente das favelas. O segundo centro aprovado foi o Cepid Bridge: Gestão de Ecossistemas para Transições Sustentáveis, sediado na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP (FEA-USP). Seu objetivo é criar uma ponte entre a academia e a sociedade na gestão de ecossistemas para enfrentar desafios relacionados à crise climática, à desindustrialização e às desigualdades sociais. Já o centro Governança das Mudanças Ambientais Globais, baseado na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp -FGV), reúne

pesquisadores das áreas de gestão e economia em projetos interdisciplinares que buscam soluções para desafios ambientais. Os Cepid contam com financiamento de longo prazo, por até 11 anos, e reúnem equipes multidisciplinares trabalhando em temas na fronteira do conhecimento. Havia 24 centros em operação em 2024.

O Programa FAPESP de Centros de Pesquisa em Engenharia/Centros de Pesquisa Aplicada (CPE/CPA), que organiza redes de pesquisa cofinanciadas pela Fundação, por empresas parceiras e instituições-sede, ganhou dois novos centros dedicados à citricultura. O primeiro, em cooperação com a empresa Citrosuco, é sediado no Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico (IAC), em Cordeirópolis, e tem como meta buscar soluções inovadoras para manter a sustentabilidade da indústria de sucos no estado de São Paulo. O segundo é uma parceria com o Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), sediado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP (Esalq-USP), em Piracicaba. Seu foco é o combate às principais doenças da citricultura, como a clorose variegada dos citros (CVC), também conhecida como amarelinho, a morte súbita dos citros e, em especial, o greening, com incidência de 44% nos pomares paulistas em 2024. FAPESP e Fundecitrus foram parceiros em várias iniciativas anteriores – a principal delas foi o sequenciamento pioneiro do genoma de uma bactéria de interesse econômico, Xylella fastidiosa , causadora do amarelinho, em 2000 (ver Pesquisa FAPESP nº 50).

“Juntos, já conseguimos importantes resultados em pesquisa, para estabelecermos estraté -

gias eficazes para mitigação e compreensão do greening. Agora, demos um passo muito importante que vai transformar a citricultura no estado de São Paulo”, afirmou o diretor científico da FAPESP, Marcio de Castro Silva Filho, no lançamento do centro. Também em 2024, foram selecionados dois CPA voltados à inteligência artificial aplicada à saúde, um deles sediado na Unicamp e o outro no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos. Em 2024, havia 27 desses centros em operação, apoiados pela FAPESP, por empresas como Shell, GSK, Embrapa, Embraer, entre outras.

Na área de inovação, 2024 foi marcado por esforços para sustentar as startups financiadas pelo programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP – havia 1.324 bolsas e auxílios do programa vigentes em 2024 – e afinar as ações da Fundação com as demandas do ambiente de inovação do estado. Um dos destaques do ano foi o lançamento da primeira chamada pública para selecionar fundos de investimento (FIP), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outras instituições financeiras, com o compromisso de aportar recursos em empresas participantes ou egressas do Pipe. “Atuamos em cinco FIP, que colocam recursos em empresas egressas do Pipe”, explicou, no final do ano passado, o economista Carlos Américo Pacheco, então diretor-presidente do Conselho

Técnico-Administrativo da Fundação. “Também selecionamos dois grupos de investidores-anjo e duas plataformas de investimento participativo [crowdfunding] para fazer captação e aporte nas empresas que fazem parte do Pipe. São formas de ir além do financiamento à pesquisa, para apoiar essas empresas nas suas fases de crescimento.”

Em 2024, a Fundação retomou a realização dos eventos FAPESP Week, encontros realizados em diversos países para fortalecer a cooperação entre pesquisadores de São Paulo e do exterior, que haviam sido interrompidos desde 2020 em razão da pandemia. Uma novidade é que, além de cientistas paulistas, participaram pela primeira vez desses eventos gestores e pesquisadores de startups apoiadas pelo Pipe com estratégias de internacionalização, selecionadas em edital. Houve quatro reuniões em 2024: em Chicago, nos Estados Unidos; em Shenzhen e Dongguan, na China; em Bolonha, na Itália; e em Madri, na Espanha.

A receita anual da FAPESP é formada por 1% da arrecadação tributária do estado de São Paulo, transferida pelo Tesouro estadual conforme determina a Constituição paulista, por receitas próprias da Fundação e por convênios com instituições e empresas. Em 2024, essas receitas totalizaram R$ 2,8 bilhões, 22% a mais do que em 2023. As transferências do Tesouro foram de R$ 2,17 bilhões, os recursos de receita própria chegaram a R$ 401 milhões e verbas de convênios alcançaram R$ 243 milhões. Ao final de 2024, a FAPESP assumira compromissos com despesas para os anos seguintes de R$ 3,25 bilhões, sendo R$ 1,09 bilhão em bolsas e R$ 2,16 bilhões em auxílios. l

R$ 3.253,1

FONTE

As pegadas do sistema fraudulento

Estudos detalham a ação de serviços ilegais, editores de revistas e agenciadores na publicação de artigos que sofreram retratação na PLOS ONE

Uma investigação realizada pela equipe de jornalismo da revista Nature identificou nomes de pesquisadores que, atuando como editores voluntários do periódico científico PLOS ONE , foram responsáveis pela avaliação e publicação de parte significativa dos artigos do título que sofreram retratação, ou seja, que foram considerados inválidos por conterem erros ou sinais de má conduta. De acordo com a apuração, cinco desses editores lidaram com 15% de todos os artigos da PLOS ONE que acabaram cancelados. Há indícios da participação deles em ações negligentes ou conluios que comprometeram a integridade do processo de avaliação e permitiram a publicação de estudos produzidos pelas chamadas fábricas de papers, serviços ilegais que vendem trabalhos sob encomenda, às vezes com dados falsos.

Renee Hoch, chefe de ética em publicações da família de revistas PLOS, disse estar ciente dos problemas. “Removemos prontamente as pessoas que nos causavam preocupação dos conselhos editoriais da PLOS e tomamos as medidas necessárias em relação aos estudos afetados”, afirmou à Nature. PLOS ONE é um mega-journal, um tipo de revista científica que publica um grande número de artigos em acesso aberto na internet e abrange um largo espectro de disciplinas (ver Pesquisa FAPESP nº 250). Criada pela organização sem fins lucrativos Public Library of Science (PLOS), em São Francisco, nos Estados Unidos, tem milhares de editores voluntários, que cuidam das submissões de artigos e supervisionam a revisão por pares, com o apoio de 22 editores contratados. Os cinco editores voluntários associados às retratações foram banidos da revista. Encabeça a lista Shahid Farooq, botânico da Universidade Harran, em Şanlıurfa, na Turquia. Entre 2019 e 2023, foi o responsável pela edição de 79 artigos da PLOS ONE , 52 dos quais acabaram cancelados. Os avisos de retratação declararam que o periódico tinha preocupações sobre autoria, conflito de interesses e lisura na revisão por pares relacionadas aos papers Farooq também assinou como coautor sete artigos no periódico, que posteriormente receberam notas de retratação idênticas. Ele declarou à Nature que se baseou em relatórios dos revisores para tomar suas decisões editoriais e que tinha poucas ferramentas para detectar conflitos de interesse. Contou que a PLOS ONE o removeu de seu corpo de editores em 2022 e que renunciou a cargos editoriais em outros periódicos, como Frontiers in Agronomy e BMC Plant Biology. “Não edito mais nenhum artigo para nenhuma editora, pois as editoras agem como se fossem inocentes quando quaisquer questões são levantadas sobre os trabalhos publicados”, retrucou.

Em segundo lugar na lista aparece Zhihan Lv (também conhecido como Zhihan Lyu), pesquisador chinês especializado em realidade virtual que se desligou no ano passado da Universidade de Uppsala, na Suécia. No período de 2017 a 2021 editou 54 artigos da PLOS ONE , sendo que 43 deles foram retratados, 31 neste ano. Em 2024, o periódico Neural Computing and Applications, publicado pela Springer Nature, invalidou 24 de 26 papers em uma edição especial de 2018 da qual Lv era o editor convidado. As retratações, que incluíam um artigo no qual o próprio Lv era coautor, fundamentaram-se em comprometimento da revisão por pares, inclusão de citações irrelevantes, manipulações de imagens, presença de frases distorcidas, que podem indicar uma tentativa de esconder plágio, e conteúdo fora do escopo do periódico. Lv disse à Nature que não sabia, na época, haver um conflito de interesses ao submeter um trabalho de sua autoria a uma edição especial da qual era o editor responsável. Em 2022, a PLOS ONE o afastou de seu time de editores voluntários.

Os outros editores apontados na investigação foram Haibin Lv, geólogo marinho do Ministério de Recursos Naturais da China (que não tem parentesco com Zhihan Lv), Adnan Noor Shah, agrônomo da Universidade de Engenharia e Tecnologia da Informação Khwaja Fareed, em Rahim Yar Khan, no Paquistão, e o médico Aamir Ahmad, que lecionou na Universidade do Sul do Alabama, em Mobile, nos Estados Unidos, por parte do período em que atuou como editor na PLOS ONE, entre 2012 e 2020.

ANature chegou aos nomes dos cinco editores ao analisar dados de um outro levantamento, publicado em agosto por pesquisadores da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, na revista PNAS – esse estudo mostrou o quanto a atuação das fábricas de papers depende de um sistema complexo, que inclui periódicos e intermediários que direcionam manuscritos fraudulentos ou de má qualidade para editores negligentes ou corrompidos. O trabalho examinou 276.956 artigos publicados na PLOS ONE entre 2006 e 2023 e analisou o desempenho de 134.983 autores e 18.329 editores voluntários. Constatou-se que 45 desses editores foram responsáveis por 30% de todos os artigos do período que sofreram retratação, embora tivessem lidado com apenas 1,3% do volume de estudos publicados entre 2006 e 2023. “As pegadas que a fraude sistemática deixa na literatura são tão grandes que não há como atribuí-las apenas a alguns maus autores”, disse à Nature o primeiro autor do estudo da PNAS, Reese Richardson, que recentemente concluiu o doutorado na Universidade Northwestern com uma tese sobre reprodutibilidade, vieses e fraude na produção científica. Para chegar aos nomes dos cinco editores, que não haviam sido revelados no estudo original, a equipe da Nature cruzou dados públicos disponibilizados pela PLOS ONE com registros de retratação do banco de dados do site Retraction Watch.

“É possível que alguns editores estejam recebendo propina”, disse Richardson, em entrevista à revista Science. “Mas também é possível que acordos informais estejam sendo feitos entre colegas”, afirmou, referindo-se ao fato de os autores frequentemente serem editores voluntários da revista e lidarem com os artigos uns dos outros. A equipe de Northwestern mapeou as atividades de intermediários que se propõem a agenciar a publicação de papers junto a periódicos e editores desonestos. Um deles é a Associação Acadêmica de Pesquisa e Desenvolvimento (Arda), sediada em Chennai, Índia. A Arda cobra entre US$ 250 e US$ 500, segundo orçamentos oferecidos a Richardson, para publicar artigos de clientes em várias revistas. A empresa pede que os autores enviem seus próprios manuscritos, em um indicativo de que não opera como uma fábrica de papers, mas apenas negocia a publicação deles. l MÔNICA MANIR

Ferramenta pode ajudar na triagem de revistas científicas ao apontar as que têm práticas questionáveis

Uma equipe liderada por cientistas da computação da Universidade do Colorado em Boulder, nos Estados Unidos, desenvolveu uma plataforma de inteligência artificial que busca identificar de forma automática revistas científicas com práticas questionáveis, como a publicação de um número exagerado de artigos, prazos muito curtos para publicação, índices elevados de autocitações em referências bibliográficas e abordagem agressiva a autores. Os responsáveis por esses títulos, que também são conhecidos como “periódicos predató -

rios”, tentam convencer pesquisadores a desembolsar dinheiro para publicar seus estudos rapidamente, muitas vezes sem oferecer um processo genuíno de avaliação por pares. “Eles dizem: ‘Se você pagar US$ 500 ou mil, revisaremos seu artigo’”, disse ao site ScienceDaily Daniel Acuña, pesquisador do Departamento de Ciência da Computação da universidade. “Na realidade, não prestam nenhum serviço. Apenas pegam o PDF e o publicam em seus sites.”

O grupo de Acuña treinou um sistema de inteligência artificial abastecendo-o com os parâmetros de excelência editorial adotados pelo Directory of Open Access Journals (Doaj), organização sem fins lucrativos que produz uma lista de periódicos de acesso aberto de boa reputação. Entre as boas práticas valorizadas pela curadoria do Doaj, incluem-se a oferta transparente de informações sobre objetivos e escopo da revista, sua política de revisão por pares e a composição do Conselho Editorial (incluindo afiliações institucionais de todos os membros).

Testes realizados com a plataforma de inteligência artificial, publicados em agosto em um artigo na Science Advances, mostram que, entre os quase 15.200 periódicos vasculhados, 1.400 não preenchiam ao menos parte dos critérios e foram sinalizados como potencialmente problemáticos. Especialistas humanos revisaram os achados e verificaram que a inteligência cometeu erros, já que cerca de 350 publicações vistas como questionáveis eram provavelmente legítimas. Acuña vê a ferramenta como um recurso promissor para proteger os pesquisadores no momento de escolher uma revista para publicar seus artigos, que ele compara a um “ firewall para a ciência”, referência aos sistemas de segurança de redes que barram ataques de hackers. “O sistema pode auxiliar na pré-triagem de um grande número de periódicos, mas profissionais humanos é que devem fazer a análise final”, diz. A ferramenta está disponível on-line em uma versão beta e seu acesso, por enquanto, é limitado para editoras e bases de dados que indexam revistas.

A maioria dos artigos retratados teve uma quantidade insignificante de citações, mostra estudo húngaro

Uma análise feita por pesquisadores húngaros com base em 35.514 artigos que sofreram retratação entre 2001 e 2024 indica que a maioria deles teve impacto científico insignificante. De acordo com o estudo, nove em cada 10 desses papers, que foram considerados inválidos após a publicação por conterem erros ou sinais de má conduta, receberam pouquíssimas citações nas referências bibliográficas de outros artigos – 35% do total não obteve uma citação sequer. Apenas uma pequena fração foi citada mais de 100 vezes. O autor com maior número de artigos removidos no período – 112 no total –

teve uma média de 11 citações por paper cancelado, enquanto o segundo do ranking – com 86 retratações – atingiu uma média de 28 citações.

O décimo autor da lista, com 39 artigos retirados, deixou um estrago maior na literatura científica. Cada paper retratado assinado por ele havia tido em média 158 citações. A identidade desses autores não foi revelada no levantamento. “À primeira vista, isso pode sugerir um sistema acadêmico ‘saudável’, em que estudos falhos são rapidamente identificados e marginalizados”, escreveram os autores da análise, o economista Péter Sasvári, da Universidade Ludovika de Serviço Público, em Budapeste, Hungria, e o estudante de doutorado Gergely Ferenc Lendvai, em um artigo publicado no Journal of Information Science. “No entanto, isso mascara o fato de que um pequeno número de trabalhos retratados com alto índice de citações continua a distorcer o cenário.” A China liderou a contagem de estudos cancelados, seguida por Índia e Estados Unidos. A análise utilizou informações da base de revistas científicas Scopus.

CONTEÚDO EXTRA

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dados Escolaridade de nível superior de jovens adultos

➔ A porcentagem de jovens adultos (25-34 anos) que concluíram pelo menos um programa de graduação vem sendo o indicador mais utilizado para comparações internacionais sobre escolaridade de nível superior

➔ Segundo levantamento da OCDE1, 48% da população desse grupo populacional, em 2023, havia completado o ensino superior, na média dos países-membros (abaixo)

População de 25 a 34 anos com ensino superior completo

Países da OCDE e associados (2023, em %)

Coreia do Sul Canadá Japão Reino Unido Lituânia Noruega Austrália Países Baixos Espanha França Suíça Estados Unidos Peru Bélgica Dinamarca OCDE Polônia Nova Zelândia Israel

➔ O Brasil apresentava taxa de 24%2, ou metade da média da OCDE. Esse índice vem subindo ao longo dos anos e cresceu 8 pontos percentuais desde 2013, quando era de 15,8%

Situação no Brasil

➔ Dos outros países da América Latina, o Peru apresentava o maior índice (50%), seguido por Chile (41%), Colômbia (35%), Costa Rica (32%), México (28%) e Argentina (19%)

População de 25 a 34 anos com ensino superior completo nas UF (média anual do triênio 2023-2025, em %)

➔ A variabilidade do indicador entre países também se verifica nas unidades da federação (UF) brasileiras, como se vê acima, na média do último triênio3

➔ Os indicadores das UF da região Sudeste e de quase todos das regiões Sul e Centro-Oeste superam a média nacional, além de Tocatins, da região Norte. Os das UF da região Nordeste são todos menores que aquela média

➔ No Brasil, como na maioria dos países, há diferenças significativas na escolaridade de mulheres e de homens. Para o triênio mais recente, a taxa de escolaridade de nível superior na população de 25 a 34 anos era de 28,2% para as mulheres e de 20,7% para os homens

NOTAS (1) ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (2) O VALOR EXATO É 23,8%. NO GRÁFICO SÃO APRESENTADOS OS VALORES ARREDONDADOS POR RAZÃO DE ESPAÇO (3) O USO DE TRIÊNIO EVITA QUE A FILTRAGEM, POR UF, IDADE E ESCOLARIDADE, APRESENTE NÚMERO MUITO BAIXO NA AMOSTRA DA PNAD-C, EM ALGUNS CASOS FONTES OCDE/DATA EXPLORER E IBGE/PNAD-C ELABORAÇÃO FAPESP/DPCTA/GPAFI

Da defaunação à desextinção

Compreensão de ecossistemas leva à reintrodução de animais essenciais a seu funcionamento e mesmo à recriação de espécies desaparecidas

MARIA GUIMARÃES

Em plena cidade do Rio de Janeiro, o Parque Nacional da Tijuca foi reflorestado no século XIX por ordem do imperador dom Pedro II (1825-1891). O resultado foi uma floresta viçosa e cheia de fontes de água, apreciada por cariocas e visitantes para passeios na natureza, mas o ecossistema não estava completo. “Tinha uma aleia [duas fileiras formando um caminho] de cutieiras, mas não tinha cutias”, exemplifica a ecóloga Alexandra Pires, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Essas árvores da espécie Joannesia princeps produzem frutos grandes e duros, que não podem ser abertos por qualquer animal. A cutia (Dasyprocta leporina), um roedor do tamanho de um gato, consegue, e é por isso essencial na ecologia das cutieiras. Da busca por preencher essa lacuna – entre outras –nasceu, em 2010, o projeto Refauna, liderado por Pires e seu ex-orientador, Fernando Fernandez, também ecólogo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que em 2021 se tornou uma organização não governamental (ONG).

Glossário

Defaunação

Perda de espécies animais em um local

Desextinção

Método para ressuscitar espécies extintas pela restauração de algumas características

Refaunação

Reintrodução de animais em um local

Rewilding

Restauração de uma área a seu estado natural, recompondo a fauna

Rewilding abiótico

Preservação dos processos naturais do ecossistema, como eventos periódicos de fogo e inundação

A reintrodução das cutias a partir de 2010, e em seguida de outras espécies, está embasada em conceitos ecológicos que mudaram nas últimas décadas. “Trata-se de reinserir espécies e processos-chave, como uma forma de restauração para tornar os ecossistemas mais resilientes e autossuficientes”, detalha o ecólogo espanhol Nacho Villar, do Instituto de Ecologia dos Países Baixos (NIOO-KNAW). Ele explica que essa visão é fundamentalmente distinta da restauração ecológica clássica, centrada na vegetação, como a realizada inicialmente na Tijuca, que não resolve como fazer os animais importantes chegarem à floresta. O rewilding trouxe uma concepção centrada em três cc: áreas bem conservadas, corredores entre essas áreas e carnívoros, considerando que os predadores de topo teriam um impacto mais abrangente. Segundo Villar, os herbívoros grandes e médios, como a cutia, são fundamentais em processos como a dispersão de sementes e a redistribuição de nutrientes, além de outros serviços ecossistêmicos (que ele define como “aquilo que os ecossistemas fazem para nós de

graça”). O pesquisador conversou com Pesquisa FAPESP por chamada de vídeo enquanto estava no Pantanal fazendo trabalho de campo em projeto que investiga como as capivaras conectam os ambientes terrestre e aquático.

“Antes, o foco da conservação era preservar espécies; agora, a maior preocupação é com as consequências no funcionamento do ecossistema”, explica o ecólogo Mathias Mistretta Pires, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em artigo de revisão ainda em processo de publicação na revista científica Cambridge Prisms: Extinction, ele e seu grupo defendem que a complexidade do ambiente aumenta quando as conexões entre os organismos são refeitas. Isso pode restituir sua funcionalidade, assim como aumentar a capacidade do sistema de adaptar-se a novas situações – algo crucial em tempos de mudanças climáticas.

Esse esforço pode ir além da reintrodução de espécies que ainda existem em outros lugares e chegar à chamada desextinção, quando características que deixaram de existir são inseridas em animais existentes para cumprir funções perdidas,

Cutias (à esq.) já se reproduzem e antas são monitoradas usando colar com transmissor de rádio

Jabutis e bugios (à dir.) contribuem para o funcionamento da floresta no Parque Nacional da Tijuca

uma estratégia controversa. Esse é o intuito por trás da criação, por meio de engenharia genética, do lobo-terrível (Aenocyon dirus), supostamente resgatado da extinção, e dos camundongos lanosos produzidos pela empresa norte-americana Colossal Biosciences, que não estão destinados a ser introduzidos em áreas naturais.

Para recompor os processos da floresta, o Refauna começa por reintroduzir os animais generalistas (capazes de restaurar mais conexões) que desapareceram no processo de empobrecimento da fauna, ou defaunação. Levar cutias para a floresta da Tijuca foi um desafio, de acordo com Alexandra Pires. “Achávamos que seria superfácil conseguir os animais, mas tentamos em vários lugares e só havia no Campo de Santana, em frente à Central do Brasil”, conta ela, referindo-se à região central da capital fluminense. Deu certo. Elas começaram a se reproduzir e a contribuir para o funcionamento do ecossistema. “Um estudante marcou as castanhas das cutieiras e viu que, onde tinha cutia, 2% delas germinavam; sem cutia, um ano depois todas as sementes apodreceram dentro dos frutos, no mesmo lugar”, segundo artigo de 2020 na revista científica Biotropica Encorajados pelos resultados, os pesquisadores do Refauna se-

guiram adiante. Em 2015 a Tijuca ganhou bugios (Alouatta guariba), grandes macacos que encheram a floresta com seus roncos e gritos, graças a uma parceria com o Centro de Primatologia do Rio de Janeiro. Eles contribuem para semear árvores, como descrito em artigo do grupo publicado em 2022 na revista Biological Conservation. Suas fezes, cheias de sementes grandes, atraem besouros rola-bosta, que as transportam fazendo exatamente o que seu nome sugere. Essas sementes acabam enterradas, com maior chance de germinar do que as defecadas por outros animais. O casal de bugios Cala e Juvenal está se reproduzindo e já teve oito filhotes, um por ano. Os pesquisadores introduziram um novo grupo na área, para proporcionar diversidade genética à população.

Com mais dificuldade, os jabutis-tinga (Chelonoidis denticulatus) chegaram em 2020. “No início não sabíamos exatamente qual espécie tinha existido por ali séculos atrás”, relata Alexandra Pires. “Após muita pesquisa os animais vieram do Centro-Oeste, onde ainda existiam animais da espécie.” Ela conta que uma estudante da UFRJ pesquisou o quanto esses animais contribuem para a fertilização do solo. “Eles parecem ser muito eficientes em disseminar nutrientes pela floresta.”

Para monitorar a reprodução e a necessidade de ações de cuidado, todos os animais do Refauna são monitorados por transmissores de rádio. Agora está em curso o processo de aclimatação de araras-canindé (Ara ararauna), com sua plumagem azul e amarela, produzidas por criadores comerciais. De acordo com Mathias Pires, que não faz parte do Refauna, esse projeto é o de maior destaque

Gelderse Poort, nos Países Baixos: cavalos ancestrais como parte de rewilding climático

no Brasil. Em seu laboratório, a zoóloga Érica Pacífico, pesquisadora em estágio de pós-doutorado, há mais de uma década trabalha na reintrodução da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari ) no Parque Nacional do Boqueirão da Onça, no norte da Bahia. “Só restavam dois indivíduos, agora são mais de 30 e o grupo está monitorando as consequências desse aumento no ecossistema local”, relata o pesquisador.

Oecólogo da Unicamp também destaca a refaunação, mais conhecida pelo inglês rewilding, no Parque Nacional Iberá, no nordeste da Argentina, onde há uma área bem conservada de chaco, um ambiente parecido com o Pantanal. Há 12 anos o local vem ganhando uma fauna de cervos, queixadas, tamanduás-bandeira e onças-pintadas, reconectando a cadeia alimentar. É uma ação especialmente ambiciosa porque introduz várias espécies ao mesmo tempo, inclusive predadores. Um cuidado necessário, Mathias Pires avisa, é ter um plano de contingência para evitar conflitos com habitantes humanos. Em 2017, ele publicou um ensaio na revista científica Perspectives in Ecology and Conservation propondo uma abordagem com base na teoria de redes ecológicas para minimizar conflitos e ampliar as chances de sucesso nas iniciativas de refaunação. A ideia é combinar informação ecológica e modelos probabilísticos para prever como o animal integrará o ambiente, selecionar as espécies mais promissoras e planejar o seu monitoramento. O potencial de interação com comunidades humanas entra nessa equação. Alexandra Pires ecoa: por isso o cateto, um porco

selvagem de comportamento um tanto arruaceiro, não foi incluído no Refauna. “É uma área que tem carros e comunidades próximas, temos muita preocupação com aspectos de saúde e riscos aos moradores locais”, afirma.

“Para ser sustentável, a reintrodução precisa funcionar do ponto de vista econômico, cultural e social”, completa Nacho Villar. “O custo-benefício tem que valer a pena.” A Europa viu, na última década, uma explosão de projetos de refaunação em vários países, agrupados sob o guarda-chuva Rewilding Europe, uma organização sem fins lucrativos fundada em 2011 com sede nos Países Baixos. Villar está no epicentro dessa onda e concentra sua pesquisa na avaliação dos resultados dessas iniciativas. Tendo começado há dois anos, as publicações ainda estão a caminho. “Nos anos 1990 houve cheias gigantescas nos Países Baixos que forçaram a evacuação em massa de áreas perto dos rios”, ele conta. “Isso forçou uma mudança radical na política de gestão de áreas ribeirinhas e o governo comprou áreas para atuarem como tampão frente a futuras cheias e aproveitou para introduzir espécies-chave para recompor os ecossistemas.” A partir disso, o foco ecossistêmico foi ganhando força.

Ele ressalta a importância dos animais de grande porte para a manutenção dos processos ecológicos e se surpreendeu com a resposta da população humana. “Os bichos grandões são mais aceitos do que pensávamos”, diz ele, a partir de um estudo em parceria com economistas, disponível no repositório SSRN. Um exemplo é a introdução de raças de cavalos e de bois ancestrais, como o tauros, e até o altamente ameaçado bisonte europeu, em áreas dos Países Baixos. O

grupo de Villar está avaliando os resultados. Segundo ele, os primeiros projetos de refaunação com esse tipo de animal começaram há 30 anos e só agora é possível medir os processos e enxergar o que aconteceu, usando conceitos da ecologia teórica mais recente, que faltava na restauração clássica. “Nosso objetivo é, a partir dessa avaliação, aperfeiçoar a estratégia em parceria com pesquisadores de áreas mais sociais, que estudam como maximizar a aceitação pelos moradores, o retorno econômico e a transformação social que gera”, explica. “Além do acréscimo de herbívoros, há também o rewilding abiótico, que envolve permitir que os incêndios naturais, o movimento de dunas e as cheias aconteçam normalmente.” Villar defende a importância da refaunação no contexto atual de extinção em massa que o deixa pessimista. “Hoje quase 60% da biomassa de vertebrados terrestres são vacas”, lamenta. Para ele, o campo de pesquisa sobre defaunação – entender o que acontece com o todo quando espécies são eliminadas de um ambiente (ver Pesquisa FAPESP nº 223) – já está bastante avançado. A refaunação é o outro lado, entender como reconstruir os ecossistemas.

DEFAUNAÇÃO

“A Mata Atlântica é um laboratório vivo”, define a bióloga Carine Emer, do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ). “Algumas áreas ainda têm animais grandes, enquanto outras foram muito defaunadas e já não contam com eles”, diz ela, cujo trabalho envolve comparar o funcionamento do ecossistema em restauração. Sem as espécies de maior porte, a bióloga explica que a floresta se torna mais homogênea.

Microrganismos também afetam a heterogeneidade da floresta, de acordo com artigo publicado em 2024 pelo grupo de Emer na revista Journal of Ecology. Ao medir danos foliares em 3.350 plantas do sub-bosque em quatro áreas protegidas de Mata Atlântica no estado de São Paulo, eles perceberam que nas áreas com grandes herbívoros, como queixadas, catetos e antas, há mais danos foliares causados por bactérias e fungos microscópicos. Essa interação mais detalhada entre os organismos da floresta indica que os grandes herbívoros, em parceria com os microrganismos patogênicos, ajudam a regular a diversidade de espécies vegetais. Quando a comunidade de plantas se torna menos diversa, aumenta a sua vulnerabilidade aos patógenos. O trabalho faz parte do projeto Defau-Biota, coordenado pelo ecólogo Mauro Galetti, do campus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que há décadas defende a refaunação e formou boa parte dos pesquisadores atuantes no país sobre esse tema.

Camundongos lanosos fazem parte de pesquisa para reintroduzir genes de mamute em elefantes

Aredução de populações de árvores com sementes grandes, em consequência da defaunação, leva à homogeneização da vegetação e tem impacto no contexto de mudanças climáticas, alerta Emer. “A mudança nas interações de dispersão de sementes pode levar ao predomínio de plantas com sementes menores e que estocam menos carbono”, detalha, conforme sintetizado em artigo publicado na edição de fevereiro da revista Conservation Biology. De acordo com a publicação, é essencial considerar as dinâmicas animais nos modelos de ciclo do carbono e no desenvolvimento de políticas de mitigação climática. De acordo com Nacho Villar, nesse contexto surge algo conhecido como climate smart rewilding [refaunação climática inteligente], cujos serviços ecossistêmicos podem ajudar a mitigar as mudanças climáticas. Por exemplo, aumentando a captura de carbono, como explica artigo de que participa, depositado em março no repositório de preprints bioRxiv.

Os tauros europeus são um exemplo de um caminho mais extremo na refaunação, que é, para além de reintroduzir espécies que deixaram de existir em um lugar, recriar animais perdidos. Eles foram obtidos por técnicas de cruzamento para recuperar características ancestrais, mas

Lobos-terríveis foram apresentados pela Colossal Biosciences como exemplo de desextinção

envolvendo engenharia genética.

É o que faz a empresa norte-americana Colossal Biosciences, que teve destaque na mídia com seus camundongos lanosos e lobos-terríveis. “Fiquei intrigada pela ideia de usar DNA antigo para recriar espécies perdidas, é ficção científica na vida real”, conta a geneticista norte-americana Beth Shapiro, que, além da carreira com pesquisa de animais extintos na Universidade da Califórnia em Santa Cruz (UCSC), fundou a empresa. Para Shapiro, que conversou com a reportagem de Pesquisa FAPESP por chamada de vídeo, as espécies precisam de ajuda para se adaptar a um ambiente em mudança, se quisermos viver em um mundo biodiverso.

Os camundongos foram criados em uma colaboração recente com o primeiro projeto de refaunação, iniciado nos anos 1990 pelo geofísico russo Sergey Zimov, da Academia Russa de Ciências. Ele criou na Sibéria uma área que batizou como Parque do Pleistoceno, onde vem estudando o efeito de grandes animais na preservação do gélido ambiente local, a estepe. A ideia é que o pisoteio impediria a formação de uma camada muito espessa de neve e permitiria que a vegetação brote, preservando o ecossistema. A Colossal se associou à busca por ressuscitar mamutes e criou os peludos camundongos inserindo genes desse ancestral extinto dos elefantes, em um teste de que é possível introduzir características de uma espécie em outra. No caso, uma

grandes paquidermes.

Shapiro afirma que os filhotes de lobo-terrível criados pela empresa são um exemplo bem-sucedido de desextinção. Sua equipe selecionou características da espécie extinta (tamanho avantajado e densa pelagem branca, principalmente) e inseriu no genoma do lobo-cinzento atual (Canis lupus). De acordo com ela, os animais nunca deverão ser introduzidos em ambiente natural. A ideia é manter um grupo de seis a oito indivíduos em local secreto, para estudo.

Há controvérsias sobre até que ponto essa manipulação equivale a trazer uma espécie de volta da extinção. As técnicas também vêm sendo usadas para a conservação do lobo-vermelho (Canis rufus), uma espécie ameaçada de extinção no sudeste dos Estados Unidos. “Fizemos clonagem a partir de células do sangue e conseguimos adicionar diversidade genética”, conta a pesquisadora norte-americana.

Mathias Pires, que conheceu Shapiro quando passou um período na UCSC como parte de seu doutorado, vê com esperança a possibilidade de recriação de diversidade genética que pode ser inserida nas populações fundadoras, mas considera que trazer de volta características extintas pode não ser o melhor uso do esforço em termos de conservação. “São iniciativas que mobilizam muito dinheiro e muitas pessoas; me parece mais importante evitar novas perdas e restaurar o que ainda pode ser restaurado.” l

Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Fungos invisíveis, impactos visíveis

Combinação entre microplásticos e mudanças climáticas pode alterar dinâmica de microrganismos nos igarapés da Amazônia

GUILHERME COSTA

Em meio a folhas submersas nos igarapés da Amazônia, fungos microscópicos regulam o equilíbrio das cadeias alimentares e transformam a matéria orgânica em nutrientes para insetos, peixes e, indiretamente, milhões de pessoas. Um estudo publicado em junho, na revista científica Science of the Total Environment, aponta, no entanto, que esses discretos organismos podem ser impactados pela combinação de microplásticos e das mudanças do clima, alterando a sua reprodução, a diversidade e a decomposição mediada por eles.

Conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), em parceria com colegas do Instituto Nacio-

nal de Pesquisas da Amazônia (Inpa), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o trabalho utilizou câmaras climáticas capazes de simular em tempo real cenários previstos para a região amazônica até 2100. Nessas condições, os cientistas expuseram organismos responsáveis pela decomposição de folhas a diferentes níveis de microplásticos e variações de temperatura e gás carbônico. “Observamos que houve uma alteração da reprodução desses fungos”, destaca a bióloga Viviane Caetano Firmino, da UFPA e primeira autora do artigo. “O impacto foi ainda maior quando as concentrações de microplásticos e os cenários climáticos extremos atuaram em conjunto.” A riqueza total de espécies

Área alagada no Amazonas: mudanças ambientais podem afetar ciclo de nutrientes

não diminuiu, mas houve substituição de espécies das comunidades fúngicas. Algumas mais tolerantes ou competitivamente superiores surgiram no ambiente e se tornaram dominantes, enquanto outras praticamente desapareceram. Além disso, a capacidade de decomposição da matéria orgânica sofreu impacto, sugerindo riscos diretos à ciclagem, que é o processo de decomposição que devolve nutrientes ao ambiente, permitindo seu reaproveitamento por outros seres vivos. “Os microplásticos já estão presentes nos igarapés amazônicos. Com isso, alguns serviços ecossistêmicos essenciais podem ser perdidos, e essa é nossa maior preocupação”, destaca o biólogo Leandro Juen, da UFPA. Ele é um dos autores do artigo e líder do Instituto Nacional de

Ciência e Tecnologia (INCT) de Síntese da Biodiversidade Amazônica (SinBiAm).

A apreensão do pesquisador se deve ao risco de que mudanças na base da cadeia alimentar provoquem efeitos em cascata, atingindo não apenas insetos e peixes, que dependem diretamente da ciclagem promovida pelos fungos, mas também a segurança alimentar de milhões de pessoas. “Os fungos tornam o material vegetal mais palatável para outros organismos e por isso funcionam como engrenagens invisíveis na manutenção dos riachos amazônicos”, explica Juen. Quando a decomposição da matéria orgânica perde eficiência, a água tende a se tornar mais ácida e menos potável.

O estudo foi conduzido em câmaras de simulação climática instaladas no Inpa, em Manaus, capazes de reproduzir em tempo real diferentes cenários previstos para a floresta. No cenário extremo, a temperatura da água foi elevada em 5,1 °C e a concentração de dióxido de carbono (CO₂) alcançou mais de 1.080 ppmv (partes por milhão por volume), enquanto no cenário intermediário o aquecimento chegou a 3,3 °C e o CO₂ a cerca de 700 ppmv. Esses cenários seguem as projeções estabelecidas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU (Organização das Nações Unidas).

Paralelamente, os fungos foram submetidos a distintas concentrações de microplásticos, variando entre a ausência completa e níveis considerados baixos (1,8 × 10 partículas por mililitro) e médios (1,8 × 10² partículas por mililitro). Para avaliar o efeito combinado desses fatores, os pesquisadores utilizaram discos cortados de folhas de louro-preto (Nectandra cuspidata), uma planta amplamente distribuída na Amazônia, preparados para permitir a colonização natural dos fungos decompositores de igarapés amazônicos.

Durante 15 dias de experimento, o grupo monitorou parâmetros como a produção de esporos, a diversidade de espécies presentes e a eficiência na decomposição da matéria orgânica, indicadores-chave da saúde e do equilíbrio dos ecossistemas aquáticos.

Para a ecóloga espanhola Luz Boyero, da Universidade do País Basco, investigar múltiplos estressores de forma combinada é fundamental, pois mostra que

os efeitos interativos entre eles não são simples e podem se reforçar mutuamente (efeitos aditivos) ou se comportar de forma mais complexa (efeitos não aditivos). “No caso dos fungos amazônicos, a produção de conídios [os esporos responsáveis pela reprodução] reagiu de forma diferente aos microplásticos dependendo das condições climáticas. Isso pode estar ligado ao fato de que algumas espécies são mais sensíveis que outras e variam em suas taxas de reprodução”, explica.

Boyero não participou do trabalho, mas um de seus estudos sobre microplásticos, publicado em 2023 na revista Environmental Pollution, serviu de referência para a metodologia adotada pelos pesquisadores brasileiros. “Em um de nossos estudos, observamos que o aumento da temperatura, combinado à eutrofização [excesso de nutrientes na água], afetou a forma como organismos que se alimentam de matéria orgânica equilibram os elementos químicos em seus corpos, embora o processo de decomposição não tenha se alterado.”

Na prática, isso significa que os organismos que se alimentam de matéria orgânica em decomposição, como insetos e outros pequenos invertebrados aquáticos, passaram a apresentar diferentes proporções de carbono, nitrogênio e fósforo em seus corpos. Embora a decomposição das folhas continuasse ocorrendo, essa alteração na química interna desses animais pode influenciar a qualidade do alimento disponível para níveis superiores da cadeia alimentar.

O biólogo Adalberto Val, pesquisador do Inpa que não participou do estudo, celebra os resultados obtidos pelos colegas da UFPA, mas lembra o quanto eles evidenciam o tamanho do desafio imposto pela emergência climática. “As mudanças climáticas na Amazônia tornam águas que já são quentes, mais quentes; águas que já são hipóxicas [com pouco oxigênio], mais hipóxicas; e águas que já são ácidas, mais ácidas. Daí a importância de estudos como esse sobre o futuro do ecossistema”, resume. l

Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Sufoco duplo E

Desmatamento torna a Amazônia mais seca, enquanto as mudanças climáticas globais a esquentam

MARCOS PIVETTA

studos recentes indicam que o clima na Amazônia Legal está se tornando mais quente e menos úmido neste século, especialmente na época de maior estiagem, entre o segundo e o terceiro trimestres do ano. Um artigo coordenado por pesquisadores brasileiros, publicado em setembro na revista científica Nature Communications, não só confirmou essa tendência como deu um passo além. Calculou o peso relativo dos dois fatores principais que provocam a elevação da temperatura máxima e a diminuição de chuvas na estação seca: o desmatamento da maior floresta tropical do planeta e as mudanças climáticas globais.

Segundo o trabalho, o desflorestamento é a alteração que mais reduz a pluviosidade na Amazônia enquanto o aquecimento planetário, alimentado pela emissão de gases de efeito estufa, é a causa que mais contribui para a alta dos termômetros. “Desenvolvemos uma modelagem estatística que nos permitiu

Ambos os fenômenos afetam as temperaturas e as chuvas na Amazônia durante todo o ano, mas nas equações concebidas pelos pesquisadores essa influência é mais acentuada e visível nos três meses de maior estiagem. “Por isso, focamos nosso trabalho especificamente no período mais seco.” Em diferentes setores da Amazônia, a estação seca abrange uma trinca de meses distinta. Em alguns, é de junho a agosto. Em outros, de julho a setembro. De acordo com o artigo, entre 1985 e 2020 houve uma redução média de 21 milímetros (mm) na precipitação na estação seca da Amazônia. A derrubada de florestas foi responsável por 74,5% dessa queda (15,8 mm) e as mudanças climáticas gloFogo durante período de seca extrema em Iranduba, no Amazonas, em setembro de 2023

discriminar quanto do aumento da temperatura máxima e da redução de chuvas na Amazônia se deve ao desmatamento regional e quanto é induzido pelo aquecimento global na estação seca”, diz o físico Marco Franco, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), autor principal do artigo.

bais por 25,5% (5,2 mm). Na questão das temperaturas máximas, o peso dos dois fenômenos é exatamente o oposto. Dos 2 graus Celsius (ºC) de aumento médio da temperatura máxima durante esse período de 35 anos, o trabalho atribui 83,5% dessa elevação (1,67 ºC) ao aquecimento global e 16,5% à supressão de vegetação (0,33 ºC).

Entre o primeiro e o último ano considerados pelo trabalho, a área de vegetação suprimida na Amazônia Legal dobrou: subiu de 10,9% do total em 1985 para 21,3% em 2020. Nesse mesmo intervalo, a concentração atmosférica de dióxido de carbono (CO 2), o principal gás de efeito estufa, fenômeno que é o motor das mudanças climáticas globais, aumentou em aproximadamente 20%.

É esperado que o avanço do desmatamento reduza a pluviosidade e eleve as temperaturas na Amazônia. A floresta tropical emite gases que são importantes para o processo de formação dos núcleos de condensação na atmosfera, as sementes das nuvens que geram chuvas (ver Pesquisa FAPESP nº 285). Por isso, é comum os estudiosos do clima dizerem que a Amazônia produz a sua própria chuva, além de parte da umidade transportada para outras regiões do país.

Também é bem conhecido o efeito de aquecimento que a supressão de vegetação provoca em áreas que perderam cobertura vegetal. “A contribuição do trabalho é ter desenvolvido uma abordagem que possibilitou separar os efeitos do desmatamento, uma alteração regional, dos impactos das mudanças climáticas, um fenômeno global”, comenta o meteorologista Luiz Augusto Machado, do Instituto de Física (IF) da USP, coordenador da equipe que fez o estudo.

A diminuição no volume de chuvas na estação seca pode parecer pequena, ainda mais em uma região como a Amazônia, onde o total da pluviosidade anual frequentemente passa de 2 mil mm. “Por ocorrer na estação mais seca, quando a floresta fica mais fragilizada com o estresse hídrico, essa diminuição de 21 mm nas chuvas, embora pequena em termos absolutos, tem grande impacto sobre a região”, comenta Machado. Uma redução desse nível durante os meses mais úmidos não teria maiores consequências e passaria quase despercebida.

Os valores destacados no artigo são uma média para os meses de maior es -

21 mm de chuvas deixaram de cair todo ano na Amazônia na estação seca entre 1985 e 2020 em razão do desmatamento

coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa (LaGEE), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que não participou do novo estudo. O artigo empregou dados sobre o desmatamento fornecidos pelo MapBiomas, iniciativa da sociedade civil que atua como uma rede colaborativa de mais de 70 organizações não governamentais (ONG), universidades e startups de tecnologia. “Contribuímos com a série histórica de mapas anuais sobre a cobertura e o uso da terra da Amazônia”, explica a ecóloga Julia Shimbo, coordenadora científica do MapBiomas, também coautora do artigo.

Otiagem na Amazônia Legal, que abarca todo o bioma da floresta amazônica e setores do Cerrado e do Pantanal. A região é enorme, com cerca de 5,2 milhões de quilômetros quadrados (km2), que correspondem a 59% do território brasileiro. Para calcular os impactos do desmatamento e das mudanças climáticas globais sobre essa imensidão de terra, o artigo dividiu a Amazônia Legal em 29 segmentos de floresta menores, de aproximadamente 90 mil km2 . As análises foram feitas em cada um desses segmentos, que cobrem cerca de metade da área da Amazônia Legal, e também para a região como um todo. Nas porções com mais área desmatada (quase 30% da floresta foi removida nesses trechos), a redução de chuvas ao longo dos 35 anos chegou a 50 mm na estação seca, mais do que o dobro da verificada em toda a região. “Nessa estação, entra menos água do oceano Atlântico na Amazônia e a floresta preservada assume um papel ainda mais importante para gerar chuva do que nos meses mais úmidos”, observa a bioquímica Luciana Gatti,

s autores principais do estudo preferiram trabalhar com os dados do MapBiomas em vez de usar as informações do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), do Inpe, que fornece a taxa oficial de desflorestamento divulgada anualmente pelo governo brasileiro. A maior resolução espacial do MapBiomas, que é capaz de observar cortes na vegetação em áreas de até 30 metros, pesou nessa escolha. O padrão de pluviosidade na Amazônia adotado no trabalho foi obtido a partir da dados de múltiplos satélites da Missão Global de Medição de Precipitação (GMP). Outra conclusão interessante do estudo foi que o clima da floresta tropical não responde de forma linear à perda de vegetação nativa. No início do processo de desflorestamento, quando a quantidade de vegetação original suprimida se situa entre 10% e 40% do total, os impactos climáticos dessa alteração aparecem mais rapidamente. “Ainda estamos dentro dessa faixa inicial de desmatamento quando olhamos para a situação atual da Amazônia como um todo”, diz Franco. No artigo, os autores ainda projetam como deverá ser o clima na Amazônia em meados da próxima década. Se o ritmo de desmatamento da floresta tropical se mantiver constante por mais 10 anos, o aumento da temperatura máxima na estação seca chegará a 2,64 oC e a redução de chuvas a 28,3 mm em 2035, sempre em relação aos valores de base de 1985. l

Os projetos e o artigo científico consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Risco fora de controle

Mais de 85% dos municípios do Brasil não têm planos de adaptação para as mudanças climáticas

MARCOS PIVETTA

Lago Sul e favela do Sol Nascente, em Brasília: diferenças socioeconômicas afetam a capacidade de adaptação climática em diversos setores de uma mesma cidade

Menos de 13% dos municípios brasileiros apresentam uma boa capacidade institucional e contam com um número razoável de instrumentos legais para tentarem se adaptar aos impactos das mudanças climáticas. Geralmente mais ricas, as cidades com população acima de 500 mil habitantes dispõem, em média, de mais dados e iniciativas que podem servir de base, de pré-requisitos, para a formulação de políticas públicas adaptativas do que as localidades menores, com até 50 mil moradores. Essas são algumas das conclusões de um estudo publicado em julho na revista científica Sustainable Cities and Society.

O trabalho levantou 25 indicadores sobre a situação dos 5.569 municípios que existiam no país em 2021 e, a partir desses dados, calculou um índice geral de adaptação urbana (UAI, acrônimo em inglês de Urban Adaptation Index). “O índice mede a capacidade institucional, o potencial adaptativo que um munícipio apresenta diante das mudanças climáticas”, explica Gabriela Marques Di Giulio, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), coordenadora do estudo. “Esse potencial é o ponto de partida para que as cidades possam formular políticas públicas com foco na adaptação.”

Os indicadores que formam o UAI se referem a cinco áreas (habitação, mobilidade urbana, pro-

dução local de alimentos, gestão ambiental e de riscos climáticos). Os quatro primeiros são de caráter adaptativo geral e o último considera aspectos relacionados à capacidade específica de se adequar e reduzir os impactos produzidos pelas mudanças climáticas. Além de permitir o cálculo do UAI, a abordagem também possibilita produzir índices específicos para cada uma das cinco áreas. O valor do UAI (e dos índices específicos) varia de 0, a nota mais baixa, a 1, a mais elevada. A mesma metodologia fora empregada em um estudo anterior do mesmo grupo, publicado em 2021 no periódico Climatic Change, que abrangeu os 645 municípios paulistas. Todas as informações usadas para formular o UAI são públicas e de acesso aberto e foram retiradas da edição 2020/2021 da Pesquisa de Informações Básicas de Municípios (Munic) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O novo estudo contou com apoio financeiro da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF). A capacidade adaptativa dos municípios é muito heterogênea, segundo o UAI. “Achávamos que o índice mostraria uma diferença mais clara entre os municípios de áreas mais ricas do país, como o Sul e o Sudeste, e os de regiões com IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] menor, como o Norte e o Nordeste, mas não encontramos

nenhum traço muito forte de regionalidade”, comenta o climatologista Roger Rodrigues Torres, da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), de Minas Gerais, coautor do artigo.

Apenas 1,4% das cidades obteve notas superiores a 0,81, dentro do patamar mais elevado, e 11,4% atingiram um desempenho considerado entre o razoável e o bom, com UAI entre 0,61 e 0,8. No restante dos municípios, o valor do índice foi inferior a 0,6, com mais da metade deles tendo notas baixas ou muito baixas (ver mapa). A média do UAI para os 49 municípios brasileiros mais populosos, com mais de meio milhão de habitantes, foi de 0,74. Em 4.893 cidades pequenas, com menos de 50 mil moradores, o índice ficou entre 0,33 e 0,44, um desempenho fraco. Nas capitais, a pontuação final do UAI variou significativamente. As melhores tiveram notas acima de 0,8, como Curitiba (0,98), Brasília (0,95) e São Paulo (0,89). As piores não chegaram a 0,6 no UAI, como Recife (0,46), Boa Vista (0,54) e Aracaju (0,54).

Se os valores do UAI não são muito animadores para a maioria dos municípios, a situação é ainda pior quando se leva em conta somente a nota relativa aos indicadores que refletem a existência (ou ausência) de políticas voltadas para gerir especificamente os riscos climáticos. Esses parâmetros, que são muito básicos, medem se uma cidade tem uma defesa civil própria; leis de uso e de ocupação do solo relacionadas à prevenção de enchentes e de deslizamentos; uma carta geotécnica para apoio do planejamento urbano; e um plano local para identificar riscos geológicos e físicos e definir intervenções e investimentos para minimizar seus impactos.

Somente 4,9% dos mais de 5 mil municípios alcançaram notas superiores a 0,6 no índice específico de gestão de riscos climáticos e 65% registraram um escore abaixo de 0,2 (ver mapa). “Apenas 13% das cidades informaram, em 2020, dispor de planos municipais de redução de riscos e 5,5% tinham cartas geotécnicas”, comenta Di Giulio. “Esses dados são muito preocupantes.”

Ter uma nota alta no UAI não significa que um município está bem adaptado para enfrentar as mudanças climáticas. Indica apenas que ele dispõe de dados e mecanismos, como leis de uso e de ocupação do solo e planos para gestão de riscos ambientais e climáticos, que podem ser empregados no processo de adaptação. Ou seja, o município criou um potencial de adaptação, mas não necessariamente o utiliza. Os pesquisadores ainda não encontraram uma forma confiável de medir se o potencial de adaptação é empregado

Como as cidades pontuaram

Menos de 13% dos 5.568 municípios brasileiros analisados obtiveram uma nota alta ou muita alta no Índice de Adaptação Urbana (UAI)

Muito alta (0,81-1)

Alta (0,61-0,8)

Média (0,41-0,60)

Baixa (0,21-0,40)

Muito baixa (0-0,20)

Proporção do total de municípios com nota neste intervalo

Pouca capacidade de gestão de risco climático

Avaliação em relação à existência nos municípios de defesa civil, plano para reduzir os impactos de desastres e leis de uso e ocupação do solo

Muito alta (0,81-1)

Alta (0,61-0,8)

Média (0,41-0,60)

Baixa (0,21-0,40)

Muito baixa (0-0,20)

FONTE DI GIULIO, G. M. ET AL SUSTAINABLE CITIES AND SOCIETY. 2025

FONTE DI GIULIO, G. M. ET AL SUSTAINABLE CITIES AND SOCIETY. 2025
Nota no UAI
Nota
Manaus
Natal
Brasília
São Paulo Curitiba
Porto Alegre
Manaus
Natal
Brasília São Paulo Curitiba
Porto Alegre

A cidade de São Paulo, cheia de desigualdades sociais, obteve uma nota boa, de 0,89, no índice de adaptação UAI

de forma eficaz pelos municípios. Uma possibilidade é seguir o dinheiro: levantar dados dos municípios sobre a alocação específica de verbas destinadas a combater e minorar os efeitos das mudanças climáticas e desastres. O problema é que obter esse tipo de informação para todos os municípios do país não é uma tarefa simples.

JUSTIÇA CLIMÁTICA

No artigo recém-publicado, os pesquisadores escolheram duas capitais que tiveram notas altas no UAI, São Paulo e Brasília, e analisaram mais detalhadamente sua situação. A ideia era averiguar se a alta pontuação no índice era um sinal de que a maior cidade do país e a capital federal tinham, de fato, implementado boas políticas públicas de adaptação climática. “Segundo os indicadores de capacidade adaptativa que levantamos para nosso estudo, essas duas cidades teriam os ingredientes necessários para fazer um bolo e se adaptarem, mas não o fazem”, comenta o biólogo Diego Lindoso, do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS-UnB). “Nem todas as ações de adaptação passam pelo poder público, mas sua atuação é imprescindível para que as políticas públicas voltadas para minorar os efeitos das mudanças climáticas beneficiem todos, sobretudo a população mais vulnerável.”

Segundo o artigo, as políticas públicas para minorar os efeitos das mudanças do clima têm pouco impacto sobre os bairros paulistas e as re-

giões administrativas brasilienses mais pobres. As zonas mais carentes das duas cidades têm menos áreas verdes (um traço que ameniza os impactos dos extremos climáticos) e concentram os pontos de maior risco hidrogeológico e as ocorrências de deslizamentos e inundações. O contraste extremo entre as áreas mais pobres e as mais ricas nas grandes cidades pode ser visto, por exemplo, nas duas paisagens de Brasília que aparecem na abertura desta reportagem: o Lago Sul, uma das áreas mais nobres da capital federal, e a favela do Sol Nascente, a segunda maior do Brasil, atrás apenas da Rocinha, no Rio de Janeiro.

Diminuir as disparidades socioeconômicas no interior dos municípios é também uma forma de melhorar a capacidade adaptativa geral do ambiente urbano, onde vivem mais de 87% dos brasileiros. “O trabalho do grupo da Gabriela Di Giulio é inovador ao realizar a análise da capacidade adaptativa em múltiplas escalas, não apenas no âmbito nacional, mas em nível municipal e intramunicipal”, comenta a engenheira ambiental Cassia Lemos, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que não participou do estudo coordenado pelos pesquisadores da FSP-USP. “A identificação de bairros mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas dentro dos municípios permite o direcionamento de ações de mitigação e adaptação de forma mais eficiente e eficaz. Dessa forma, podemos otimizar os financiamentos em prol da justiça climática no município.” Lemos faz parte da equipe do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que cuida do Sistema de Informações e Análises sobre Impactos das Mudanças do Clima, mais conhecida como a plataforma AdaptaBrasil.

Para o climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que também não trabalhou na elaboração do UAI, o índice proposto por Di Giulio e seus colegas pode ser um bom parâmetro para medir o grau de capacidade adaptativa dos municípios às mudanças climáticas. “Conheço índices similares que usam dados ambientais e socioeconômicos para calcular a vulnerabilidade das cidades a desastres, como deslizamentos de terra e inundações, mas não sua capacidade adaptativa”, comenta Marengo. “Embora não utilize informações sobre o clima nos municípios, o índice UAI pode ser útil para a formulação de políticas públicas nessa área.” l

O projeto e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Impacto precoce

Eventos climáticos extremos afetam a vida das crianças e reforçam desigualdades sociais

MÔNICA MANIR

ilustrações LETÍCIA GRACIANO

No dia 5 de agosto, a presidência da COP30 divulgou o calendário oficial dos dias temáticos para a próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que ocorrerá em Belém, no Pará, de 10 a 21 de novembro. O tópico crianças e juventudes consta apenas da programação da segunda metade do evento, nos dias 17 e 18, na mesma data de outros assuntos não menos importantes: florestas, oceanos, povos indígenas, comunidades locais e tradicionais, biodiversidade, além de pequenos e médios empreendedores. Na avaliação dos pesquisadores ouvidos para esta reportagem, o assunto mereceria ser amplamente discutido no evento em razão da magnitude do problema.

“Estima-se que todos os mais de 40 milhões de crianças e adolescentes no Brasil enfrentem ao menos um tipo de evento climático extremo”, afirma a pediatra Alicia Matijasevich, do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP). “Em geral, crianças são mais vulneráveis do que os adultos, pois têm menos recursos para lidar com as adversidades.” Por evento climático extremo entenda-se a ocorrência de fenômenos como ondas de calor, chuvas torrenciais e secas prolongadas. O dado mencionado por Matijasevich consta do relatório “Crianças, adolescentes e mudanças climáticas no Brasil”, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), divulgado em 2022. Segundo o documento, mais de 8,6 milhões de meninas e meninos brasileiros estão

expostos ao risco de falta de água e mais de 7,3 milhões deles aos danos decorrentes das inundações.

A pediatra assina, com mais três pesquisadoras brasileiras, o relatório “A primeira infância no centro do enfrentamento da crise climática”, publicado em junho. Trata-se do 14º estudo de uma série produzida pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), coalizão composta por cinco entidades, como o Insper e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), cujo objetivo é sugerir propostas para melhorar a qualidade de vida de crianças entre 0 e 6 anos.

No levantamento consta, por exemplo, que crianças nascidas em 2020 vivenciarão 6,8 vezes mais ondas de calor e 2,6 vezes mais secas do que as nascidas em 1960. “Isso impacta a vida desde a gestação. Estamos falando de parto prematuro e baixo peso ao nascer até complicações graves e crônicas na idade adulta, como doenças cardiovasculares, diabetes e déficits cognitivos”, diz a demógrafa Márcia Castro, chefe do Departamento de Saúde Global e População da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e coautora do estudo do NCPI. “O que acontece na primeira infância tem consequências ao longo da vida.”

Nem todos os brasileiros reconhecem a importância dessa fase no desenvolvimento humano. Divulgada em agosto, pesquisa realizada pela FMCSV em parceria com o Instituto Datafolha mostra que, entre os 2.206 entrevistados em todo o país, 42% não sabiam o significado do termo “primeira infância” e 84% ignoravam que o maior desenvolvimento físico, cognitivo e socioemocional do ser humano

ocorre nesse período. Dentre os ouvidos, 822 eram responsáveis diretos por crianças de até 6 anos. Um dos pontos discutidos pelo estudo do NCPI é a alimentação, que sofre os efeitos diretos e indiretos da crise climática de forma multifacetada. Eventos extremos, como secas prolongadas e inundações, reduzem a produção agrícola, elevando o preço dos alimentos da cesta básica e intensificando a insegurança alimentar, sobretudo entre famílias com maior vulnerabilidade social. “Isso compromete tanto a quantidade de alimentos disponíveis quanto a qualidade da dieta das crianças, aumentando o risco de desnutrição crônica, que, por sua vez, prejudica o crescimento físico e o desenvolvimento cognitivo”, alerta Matijasevich.

Além disso, a dificuldade de acesso a alimentos frescos e nutritivos favorece o consumo de produtos ultraprocessados, em geral mais baratos e facilmente encontrados em estabelecimentos comerciais, o que contribui para o aumento do sobrepeso e da obesidade infantil. A suspensão de atividades escolares e de creches em decorrência de inundações ou calor extremo compromete o fornecimento de merenda aos estudantes. “Os efeitos da crise climática são maiores entre crianças que vivem em condição de vulnerabilidade, pois eventos extremos intensificam desigualdades estruturais”, constata Castro.

O ambiente escolar não sofre apenas com a potencial perda de merenda. Um ponto crucial a se considerar diante das catástrofes climáticas é o dano ou até mesmo a destruição do espaço físico das instituições de ensino. “Quando as edificações

resistem às intempéries, muitas delas acabam servindo de abrigo para as pessoas desalojadas, o que implica suspensão de aulas e prejuízo à educação”, observa o sociólogo Victor Marchezini, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden). “Nas inundações no Rio Grande do Sul em 2024, por exemplo, em que cidades inteiras ficaram debaixo d’água, várias escolas públicas foram atingidas e algumas nem puderam servir como abrigo.”

Como informa o levantamento do NCPI, cerca de 1,18 milhão de crianças e adolescentes teve as aulas suspensas no Brasil em 2024, principalmente por alagamentos. As temperaturas elevadas do dia a dia também castigam os alunos. “Muitas escolas não oferecem ar-condicionado nem estrutura de ventilação adequada, muito menos uniformes pensados para amenizar as ondas de calor. Esse calor extremo prejudica a concentração e o desempenho escolar”, constata Marchezini, coordenador do projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos (Cope), desenvolvido pelo Cemaden com apoio da FAPESP. “As edificações tampouco foram pensadas para ter autonomia energética diante de um apagão ou vendaval.”

Outro problema é a falta de vegetação. No Brasil, quatro em cada 10 escolas não possuem áreas verdes (37,4%). A situação é mais grave em espaços destinados à educação infantil: 43,5% convi-

vem com essa carência. Os números são da pesquisa “O acesso ao verde e a resiliência climática nas escolas das capitais brasileiras”, divulgada no ano passado e realizada pelo Instituto Alana em conjunto com a agência de dados Fiquem Sabendo e o MapBiomas (iniciativa da organização não governamental Observatório do Clima). Fizeram parte da amostra 20.635 unidades de ensino.

Ainda de acordo com a pesquisa, se a comparação for feita entre escolas públicas e privadas, as primeiras estão mais bem colocadas: 31% delas apresentam mais de 30% de área verde no lote, percentual que cai para apenas 9% entre as instituições particulares. Salvador é a capital cujas escolas, públicas ou particulares, dispõem de menos área verde: 87% não desfrutam, por exemplo, da sombra e do frescor das árvores.

Dados preliminares do projeto Cope, do Cemaden, que consultou mais de 2 mil municípios brasileiros no primeiro semestre de 2025, revelam que menos de 10% dessas cidades têm planos de contingência para ondas de calor. Para completar, cerca de 60% não possuem orçamento próprio para a Defesa Civil e menos de 25% desenvolvem com frequência campanhas educacionais sobre prevenção de desastres.

Nesse sentido, o Cemaden realiza desde 2014 o projeto Cemaden Educação (ver Pesquisa FAPESP nº 323). Um dos objetivos da iniciativa é disponibilizar metodologia de pesquisa para que escolas e demais interessados possam investigar o próprio entorno e formular propostas para tentar prevenir desastres socioambientais. Ao longo desse tempo,

No Brasil, quatro em cada 10 escolas não possuem áreas verdes

a atividade envolveu 800 unidades de ensino e comunidades em 376 municípios.

De acordo com Marchezini, o projeto possibilita trabalhar uma série de pautas nas escolas a fim de ensinar as crianças a entender os dados climáticos, ajudando-as inclusive a identificar fake news . “Na catástrofe na região serrana de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em 2011, surgiu um boato após a inundação de que uma barragem havia se rompido na represa do município, o que fez com que as pessoas no centro da cidade entrassem em pânico”, relata o sociólogo. O desastre da serra fluminense registrou 905 mortos e 345 desaparecidos. Cerca de 35 mil pessoas perderam suas casas ou tiveram que deixá-las por risco de deslizamento.

Segundo o Unicef, entre 2016 e 2021 mais de 43 milhões de crianças no mundo foram forçadas a sair de casa por causa de desastres climáticos. Como destaca o economista Naercio Menezes Filho, do Insper e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, os deslocamentos das famílias nessas situações costumam ser especialmente traumáticos para a infância. “A criança, quando está se desenvolvendo, precisa ter uma interação saudável com os pais e cuidadores, precisa estar num ambiente enriquecedor, com espaço e natureza, um lugar para ser estimulada, mas também para ficar tranquila, brincar, fazer sua leitura”, elenca.

Menezes Filho organizou o livro Ciência da primeira infância (FEA-USP/Insper, 2025), que compila os primeiros resultados do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (Cpapi), financiado pela FAPESP e pelo NCPI. “Quando a família perde todos os seus pertences num desastre climático e necessita se mudar, a criança não é mais a prioridade, e esse elo entre pais e filhos fica abalado”, diz o economista. “Além disso, a experiência da perda repentina de moradia e a vivência daquela situação de risco podem acentuar ainda mais a ansiedade, o medo e o sofrimento prolongado”, acrescenta Matijasevich.

A pesquisadora reforça que os deslocamentos forçados aumentam a exposição da criança ao chamado estresse tóxico (oriundo de adversidades vividas por um longo período), que pode comprometer a saúde mental. “Sem contar que a instalação provisória em ambientes insalubres e inseguros eleva o risco de doenças infecciosas e intensifica a insegurança alimentar”, constata Matijasevich. No estudo do NCPI, as autoras defendem a criação de políticas públicas capazes, por exemplo, de planejar cidades com espaços verdes e seguros para o desenvolvimento das crianças. “Essas ações devem ser integradas e ter orçamento garantido nos planos de educação, habitação, saneamento, segurança alimentar e proteção social”, conclui Castro, de Harvard. l

O projeto, o livro e os relatórios consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Antes de o problema surgir

Pesquisadores estimam o quanto enfermidades gastrointestinais e metabólicas aumentam o risco de desenvolver as doenças de Parkinson e de Alzheimer

GISELLE SOARES

Àmedida que as pessoas vivem mais, cresce a preocupação – delas próprias e de familiares – com o surgimento de enfermidades neurodegenerativas, em especial as doenças de Parkinson e de Alzheimer, que, juntas, afetam mais de 400 milhões de pessoas no mundo. A primeira provoca tremores, rigidez muscular, lentidão dos movimentos, além de dor, alterações no sono e, nos estágios avançados, demência.

Já a segunda é marcada por esquecimento, dificuldades de raciocínio, orientação e linguagem, além de alterações no comportamento e perda de autonomia. Mais comuns em idades avançadas, essas enfermidades afetam o funcionamento do cérebro e de outras partes do sistema nervoso central e não são consideradas parte natural do envelhecimento. De origem complexa, muitas vezes elas resultam da interação entre a predisposição genética e a exposição a fatores do ambiente que aumentam o risco de desenvolvê-las. Interessados em identificar potenciais formas de reduzir o risco de essas doenças surgirem, um grupo internacional de pesquisadores, entre eles um brasileiro, decidiu olhar não só para o cérebro, a estrutura em que se concentram os danos

depois que o Parkinson ou o Alzheimer se instalam. Eles investigaram também problemas e alterações que surgem em outros órgãos e tecidos tempos antes e podem influenciar a vitalidade e o funcionamento do sistema nervoso central. No trabalho, publicado em agosto na revista Science Advances, a equipe liderada pela farmacêutica e neurocientista espanhola Sara Bandrés-Ciga, então chefe de neurogenética no Centro para Alzheimer e Demências Relacionadas dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, avaliou como 155 problemas que atingem os sistemas digestivo e metabólico poderiam influenciar o risco de desenvolver Parkinson ou Alzheimer. As 155 enfermidades foram selecionadas porque atingem as estruturas do chamado eixo intestino-cérebro, um conjunto de órgãos e glândulas do trato digestivo que, por diversos meios, afeta o funcionamento do sistema nervoso central. O contrário também ocorre, com a atividade cerebral modificando o desempenho dessas estruturas. Os pesquisadores observaram que quatro desses problemas de saúde apareceram associados a um risco até três vezes maior de desenvolver a doença de Parkinson e outros 13 à probabilidade de apresentar Alzheimer (ver infográfico na página 62). Todas são enfermidades que costumam

se instalar anos antes dos primeiros sintomas das duas doenças neurodegenerativas. O diabetes do tipo 1 e o do tipo 2, além de distúrbios intestinais como a síndrome do intestino irritável, mostraram-se relacionados a um maior risco de desenvolver tanto Alzheimer quanto Parkinson.

“No caso do Alzheimer, também chamaram a atenção os problemas ligados ao metabolismo das gorduras, a deficiência de vitamina D, os desequilíbrios de sais minerais e as inflamações do trato digestivo, como esofagite, gastrite e colite”, contou Bandrés-Ciga, que hoje atua na empresa de biotecnologia Valo Health, a Pesquisa FAPESP. “Já questões como indigestão crônica, disfunções do pâncreas e carência de vitaminas do complexo B apareceram associadas a um maior risco de Parkinson.”

Os achados, reforçam os pesquisadores, não permitem estabelecer uma relação de causalidade – isto é, definir que problemas como o diabetes estejam na origem do Parkinson ou do Alzheimer. Mas o fato de os problemas digestivos e metabólicos surgirem tempos antes das doenças neurodegenerativas sugere que os primeiros podem contribuir para o aparecimento das últimas.

“A hipótese é que esses problemas digestivos e metabólicos possam influenciar o desenvolvimento de Parkinson e Alzheimer”, explica o neurolo -

gista brasileiro Artur Schumacher Schuh, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coautor do estudo. Entre os resultados, ele chama a atenção para o aumento de risco atribuído ao diabetes tipo 2, que aparece de 10 a 15 anos antes do Alzheimer. “O diabetes sabidamente aumenta o risco cardiovascular e há suspeitas de que possa provocar a glicação de proteínas [ligação de açúcares às proteínas, tornando-as tóxicas], o que pode contribuir para o acúmulo das placas beta-amiloides características do Alzheimer.”

CONEXÕES MÚLTIPLAS

Trabalhos anteriores já levantaram a suspeita de que inflamações, desequilíbrios na microbiota intestinal ou deficiências nutricionais possam enviar sinais que prejudiquem o funcionamento do cérebro. “Há indícios de que proteínas malformadas, como as associadas ao Parkinson, possam inclusive se originar no intestino e migrar até o sistema nervoso central por meio do nervo vago”, relata Bandrés-Ciga.

“Intestino e cérebro se comunicam de várias formas”, explica o imunologista Licio Velloso, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que não participou do estudo. Afinal, o sistema gastrointestinal contém neurônios e células gliais,

em contato com os mesmos tipos de células no sistema nervoso central. Uma via de conexão é a neural, mediada pelo nervo vago, que conecta o sistema digestivo ao sistema nervoso central e ajuda a regular a saciedade. Outra é a hormonal, por meios de compostos do estômago e do intestino, que modulam o apetite. A terceira envolve as substâncias sintetizadas pela microbiota intestinal (bactérias e outros microrganismos que habitam o intestino), capazes de chegar à circulação e influenciar o cérebro. “Esse conjunto de

Contribuições indesejáveis

Conheça a lista de problemas gastrointestinais e metabólicos associados à maior probabilidade de desenvolver doenças neurodegenerativas

Alzheimer

Doença (código CID-10)

Amiloidose¹ (E85)

Lipidemias e desordens no metabolismo de lipoproteínas² (E78)

Gastrite e duodenite³ (K29)

Diabetes tipo 1 (E10)

Diabetes tipo 2 (E11)

Esofagite⁴ (K20)

Infecções intestinais bacterianas (A04)

Transtornos do equilíbrio eletrolítico e ácido-básico⁵ (E87)

Distúrbios funcionais do intestino⁶ (K59)

Gastroenterite e colite⁷ (K52)

Diabetes não especificado (E14)

Deficiência de vitamina D (E55)

Depleção de volume⁸ (E86)

Parkinson

Doença (código CID-10)

Dispepsia⁹ (K30)

Diabetes tipo 1 (E10)

Diabetes tipo 2 (E11)

Distúrbios funcionais do intestino (K59)

Faixa de aumento de risco (em número de vezes)

Faixa de aumento de risco (em número de vezes)

1 Doença em que se formam fibras de proteínas insolúveis nos tecidos 2 Níveis anormais de gorduras no sangue 3 Inflamação do estômago e de parte do intestino delgado 4 Inflamação do esôfago 5 Distúrbios que afetam o equilíbrio de eletrólitos e o estado ácido-básico, causados por condições como desidratação, insuficiência renal ou diabetes descontrolado 6 Disfunções na motilidade e função intestinal, que resultam em sintomas como dor abdominal, distensão, diarreia, constipação e mal-estar geral 7 Inflamações do estômago e do intestino que não têm causa viral, bacteriana ou outro tipo de infecção 8 Perda excessiva de líquidos por transpiração, vômitos, diarreia ou ingestão insuficiente de água 9 Indigestão FONTE SHAFIEINOURI, M. ET AL SCIENCE ADVANCES. SET. 2025

mecanismos, descrito de forma mais clara nos últimos anos, mostra como o sistema digestivo e o nervoso estão profundamente interligados”, esclarece Velloso, coordenador do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades da Unicamp, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão financiados pela FAPESP.

Para calcular a contribuição dos distúrbios digestivos e metabólicos para o risco de Parkinson e Alzheimer, os pesquisadores se basearam em informações genéticas, de idade e de saúde de 225 mil pessoas do Reino Unido acompanhadas de 1999 a 2023. Todas eram adultas e saudáveis no início dos registros, armazenados no banco de dados de saúde do Reino Unido, o UK Biobank. Além disso, elas apresentavam baixo risco genético de desenvolver doenças neurodegenerativas. Ao longo do período de seguimento, 4.473 apresentaram Alzheimer e 4.564 tiveram Parkinson. Para validar os achados, os resultados foram depois confrontados com informações de dois outros bancos de dados com registros de saúde de dezenas de milhares de pessoas.

Usando informações genéticas e de proteínas circulantes no sangue, os pesquisadores criaram um modelo matemático que foi capaz de predizer o risco de desenvolver Alzheimer, com 90% de acurácia, e Parkinson, com 78%. “Esses números são promissores, mas precisam de validação”, explica Schuh, da UFRGS. “O modelo indica que é possível estimar a probabilidade de vir a ter essas doenças neurodegenerativas e, talvez, selecionar pessoas para passarem por intervenções precoces que possam reduzir esse risco.” Para Bandrés-Ciga, ainda é necessário “testar essa ferramenta em populações mais diversas, incorporar fatores ambientais e de estilo de vida e lidar com a possibilidade de falsos-positivos” antes de torná-la disponível para a prática clínica.

A possível conexão entre os problemas metabólicos e digestivos e as doenças neurodegenerativas abre caminho para que se adotem medidas como alterações na dieta e manejo de problemas intestinais e diabetes antes do aparecimento dos sintomas neurológicos e, quem sabe, assim, diminuir o risco de Parkinson e Alzheimer. Apesar dessa possibilidade, ainda não há evidências de que isso de fato aconteça. “Estudos observacionais sugerem efeitos protetores de medicamentos como metformina e semaglutida, usados contra o diabetes, mas os ensaios clínicos realizados até agora trouxeram resultados mistos”, conta Bandrés-Ciga. l

O artigo científico consultado para esta reportagem está listado na versão on-line.

Quando agir

Saiba quais são os fatores que podem ser alterados, em que fase da vida atuam e quanto contribuem para os casos de demência

Risco prevenível

Controlar 14 fatores de risco pode evitar até 60% dos casos de demência no Brasil

GISELLE SOARES

Enquanto o estudo da Science Advances gera apreensão ao indicar que enfermidades comuns podem aumentar o risco de doenças neurodegenerativas, uma pesquisa realizada no Brasil traça um cenário mais alentador. Publicado na edição de setembro da revista The Lancet Regional Health – Americas, o trabalho liderado pela geriatra Claudia Suemoto, da Universidade de São Paulo (USP), mostra que quase 60% dos casos de demência, que incluem a doença de Alzheimer, poderiam ser evitados no Brasil caso 14 fatores de risco fossem totalmente controlados. Os pesquisadores chegaram a esse número depois de calcular, com base nos dados de saúde de 9.949 pessoas com 50 anos ou mais participantes do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), quanto cada um dos 14 fatores de risco contribuía para o desenvolvimento da demência. Desde 2017, a comissão de prevenção, intervenção e cuidados em demência da revista The Lancet elenca esses fatores, que em 2024 subiram de 12 para 14, ao incorporar a redução da acuidade visual e o nível elevado de colesterol. Cada um deles tem um peso distinto, ponderado com base na força de sua associação com a demência e na sua prevalência na população. A proporção de casos que poderiam ser evitados no restante do mundo, estimada com base em dados dos países ricos, é mais baixa do que no Brasil: 45% (ver Pesquisa FAPESP nº 346 ).

Aqui, os fatores que mais influenciam o risco de desenvolver demência são a baixa escolaridade, associada a 9,5% dos casos, a perda de visão não tratada, responsável por 9,2%, e a depressão na meia-idade, por 6,3% (ver infográfico). O impacto total dos fatores foi semelhante entre as diferentes etnias e regiões do país: 59,5%. Ele é um pouco mais elevado entre as mulheres (61,1%) do que os homens (58,2%). Em uma versão anterior dessa estimativa, publicada em 2022, o grupo de Suemoto havia calculado em 48,2% a proporção de casos evitáveis – chegando a 54% nas regiões mais pobres do país – com a eliminação de 12 fatores de risco (ver Pesquisa FAPESP nº 329).

“Não podemos nos basear apenas em estudos de países ricos”, alerta a geriatra. “No Brasil, a baixa escolaridade é o principal fator de risco para demência porque ainda é muito prevalente entre os idosos. Nos Estados Unidos, a média de estudo formal é de 12 anos e, na Europa, 16. Aqui, a média de escolaridade entre idosos é de cinco anos.” l

O artigo científico consultado para esta reportagem está listado na versão on-line.

Início da vida (até os 18 anos)

Vida adulta (dos 18 aos 65 anos)

Velhice (após os 65 anos)

59,5% é a proporção total do risco que pode ser alterada por mudanças no comportamento e no ambiente

entrevista Maria Elisabeth Moreira

A médica dos esquecidos

Dez anos após a epidemia causada pelo vírus zika, pediatra da Fiocruz fala sobre os problemas enfrentados pelas crianças com microcefalia

Foi por volta de outubro de 2015 que surgiram os primeiros casos, inicialmente em maternidades do Nordeste. Eram bebês que nasciam com a cabeça pequena demais para a idade gestacional. Eles tinham microcefalia e, muitas vezes, apresentavam a abóboda do crânio afundada, apesar da face normal. A malformação, provou-se depois, era decorrente dos danos causados pelo vírus zika, que destrói áreas do cérebro durante o desenvolvimento fetal, e havia infectado as mães dessas crianças durante a gestação. O total de casos registrados na epidemia, que teve seu auge no país em 2015 e 2016, superou em muito o decorrente de outras infecções. “Foi uma avalanche”, lembra a pediatra Maria Elisabeth Moreira, do Instituto Fernandes Figueira, hospital de referência em saúde materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro.

Especialista em neonatologia, a área que cuida de crianças que nascem com condições médicas complexas, Moreira acompanha desde o início os bebês expostos na gestação ao zika – ainda hoje, 180 são atendidos em seu ambulatório – e participa de pesquisas que avaliam como

evolui o desenvolvimento deles. Em julho, ela e colaboradores publicaram na revista The Lancet um artigo de revisão relatando o que se aprendeu nessa década sobre a nova enfermidade, que em sua versão mais grave recebeu o nome de Síndrome Congênita do Zika (SCZ), e o que falta ser feito: melhorar o diagnóstico e obter uma vacina contra o vírus.

Por videochamada, Moreira conversou em agosto com Pesquisa FAPESP. Falou sobre as dificuldades enfrentadas por essas crianças, que estão entrando na adolescência, e suas famílias e mostrou indignação com o descaso com que são tratadas. Às vezes, pelos próprios médicos.

Moreira, à frente da escultura Mater, no Instituto Fernandes Figueira

Há 10 anos o país viveu uma epidemia de zika, que afetou principalmente os filhos de mulheres infectadas na gestação. Como estão essas crianças? As crianças expostas intraútero, principalmente no primeiro trimestre da gestação, evoluíram com quadros neurológicos mais graves. Tiveram microcefalia e calcificações cerebrais. Desenvolveram paralisa cerebral, além de muitas alterações auditivas e oculares. As infectadas mais tarde apresentam problemas mais leves.

Qual a frequência desses problemas? Quatro por cento das mães afetadas tiveram filhos com microcefalia. Nesse grupo

de crianças, a frequência de problemas é alta. Muitas têm convulsões de difícil controle, que exigem o uso de medicações específicas nem sempre encontradas no serviço público de saúde. Houve muito desabastecimento de remédios durante a pandemia de Covid-19 e ainda hoje há faltas pontuais. Essas crianças também têm com frequência contraturas musculares nas mãos e nos braços, além de displasia de quadril. Tudo isso causa muita dor. Imagine que elas não conseguem pegar um brinquedo para brincar. Entre elas, é comum a disfagia, que é a dificuldade de engolir, e algumas convivem com desnutrição, apesar de terem feito gastrostomia, que é a introdução de um tubo por uma abertura na parede abdominal para a alimentação. As famílias também enfrentam dificuldade de obter apoio terapêutico para a estimulação das crianças e, na idade em que estão agora, há a dificuldade da inclusão escolar. A situação toda é muito difícil para as crianças e as famílias.

Como é o acesso delas ao atendimento no sistema público de saúde?

O acesso a cirurgias ortopédicas, para corrigir, por exemplo, displasia de quadril, não é fácil. Nós e o próprio Ministério da Saúde fizemos um movimento para tornar prioridade o atendimento dessas crianças, mas não deu muito certo. Muitas estão na fila para a cirurgia.

Quais são os problemas de desenvolvimento cognitivo mais comuns?

Muitas apresentam atraso no desenvolvimento da fala e na aquisição da linguagem. Um número grande delas, em especial as expostas ao vírus no fim da gestação, não nasceu com microcefalia nem recebeu o diagnóstico de exposição ao zika porque as mães quase sempre tiveram infecção assintomática. Mesmo essas apresentam atraso de desenvolvimento motor e cognitivo, com dificuldades na escola. Há inclusive alguns casos de autismo e de alterações comportamentais.

As que tiveram microcefalia apresentam um quadro mais grave?

Há graus distintos de microcefalia. As crianças menos afetadas, com um quadro mais leve, são mais sensíveis à estimulação e respondem melhor a uma série de intervenções para melhorar o desenvolvimento.

O que aquelas com quadro mais leve conseguem fazer?

Andar, correr, aprender. Acompanho crianças com microcefalia leve que estão com 8 anos e alfabetizadas. As famílias dessas crianças procuram muito veementemente estimulação para elas. Em geral, foram bem estimuladas desde o início, quando receberam o diagnóstico. Essas crianças têm um certo grau de atraso porque, afinal, nasceram com microcefalia, mas não apresentam muitos problemas motores. Têm mais dificuldades cognitivas e de linguagem.

E as mais graves?

Essas são as que nasceram com a cabeça muito pequena. Tiveram muita destruição de tecido cerebral durante o desenvolvimento no útero e evoluem com quadros graves de espasticidade [rigidez muscular] e paralisia cerebral [dificuldade de controle dos movimentos por lesões no cérebro]. Elas até são capazes de manter algum grau de comunicação, mas é muito mais difícil para as famílias as tratarem de forma a obter respostas contundentes. As mães dessas crianças enfrentam muito sofrimento.

Quantos casos foram confirmados?

Hoje há cerca de 1.800 casos confirmados de microcefalia decorrente de zika registrados no ministério e outros quase 3.200 em investigação. Identificar a infecção por zika tempos depois que ocorreu é ainda muito difícil. O maior problema é que falta um método de diagnóstico sorológico eficiente na rede pública de saúde. A maior parte das mães teve zika assintomática e o exame sorológico, em especial das que tiveram a infecção no início da gravidez, já não dava resultado positivo no nascimento do bebê. Assim, ficava-se sem saber se a criança havia sido exposta ao vírus. O método de diagnóstico mais preciso é o da reação em cadeia da polimerase, o PCR, mas a janela de detecção dele é muito curta. Ele identifica a infecção a partir do material genético do vírus até cerca de 15 dias depois que ela ocorreu. Testes sorológicos, que detectam os anticorpos imunoglobulina G e imunoglobulina M no sangue, em princípio, deveriam nos dar alguma informação sobre a infecção no passado. Mas eles estão sujeitos à reação cruzada com dengue e chikungunya, que causam sintomas semelhantes aos de zika. Nenhum dos testes sorológicos permite saber se a criança foi exposta ao zika, mesmo que ela nasça com microcefalia. Um único teste permite essa identificação posterior. É o PNRT [teste de neutralização por redução de placas, que mede a presença de anticorpos específicos contra o vírus], que só está disponível em centros de pesquisa e é muito caro. Por isso, há ainda hoje uma proporção desconhecida de crianças que podem ter sido expostas ao vírus na gestação e afetadas em graus variados.

Como começou a acompanhar essas crianças?

As crianças com quadro mais leve respondem melhor a intervenções para melhorar o desenvolvimento

O Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz, aqui no Rio, tem um ambulatório para doenças febris agudas. Por volta de 2015, esse ambulatório começou a receber casos de gestantes com febre de origem desconhecida, que não era causada por dengue nem por chikungunya. Na época, o grupo do virologista Gubio Soares Santos, da Universidade Federal da Bahia, identificou alguns casos de zika em Salvador. A partir dos resultados na Bahia, a equipe do ambulatório foi investigar e confirmou a infecção por zika nessas

gestantes. Essas mulheres foram encaminhadas para o Instituto Fernandes Figueira, unidade de cuidado materno-infantil da Fiocruz, para que pudessem fazer o pré-natal adequado. Foi assim que entramos nessa história.

Quando essas mães chegaram?

No início de 2016. Elas faziam exames de ultrassom do bebê de tempos em tempos para acompanhar o desenvolvimento da criança até o nascimento. Ainda hoje fazemos o seguimento dessas crianças. Das 90 que nasceram com microcefalia e foram atendidas por nós, ao menos 19 morreram. Também acompanhamos crianças expostas ao vírus na gestação que não tiveram microcefalia, porque elas podem apresentar atraso no desenvolvimento.

Quantas estão com vocês hoje?

Começamos com os filhos de 246 grávidas. Depois, outras mães com filhos com microcefalia, nem todos causados por zika, juntaram-se às primeiras. O instituto é centro de referência em genética no país e elas buscavam um parecer genético para o problema de suas crianças. Perdemos contato com uma parte dessas mulheres e crianças, em especial as que ficaram melhor de saúde. Hoje há 180 em acompanhamento.

Qual a situação das famílias?

A microcefalia trouxe muita desorganização familiar. Em geral, as mães se tornaram mães-solo. É raro um homem assumir o cuidado intensivo que é necessário o tempo todo. Quem cuida é a mulher. Pense em como deve ser ter em casa uma criança que tem convulsões, grita, sente dor e precisa ser levada com frequência a hospitais e serviços de saúde para fazer estimulação. A mãe acaba presa a essa rotina. Muitas tiveram de sair do trabalho e desistir dos seus sonhos. Elas escutam, em geral dos políticos, “vocês são umas guerreiras”. Recentemente uma delas me falou: “Doutora, não quero mais ser uma guerreira. Estou cansada”.

Por que as mães ficam sozinhas para cuidar das crianças?

Isso acontece muito e não é só com o zika, mas com outras patologias que afetam as crianças. Quando a coisa complica

e o ambiente e o trabalho em casa ficam pesados, os homens se mandam.

E como essas famílias lidam com os gastos para os tratamentos? Em julho, foi finalmente promulgada a Lei nº 15.156, que prevê o pagamento de uma indenização de R$ 50 mil para cada família de criança com microcefalia decorrente da síndrome congênita do zika, além de uma pensão vitalícia equivalente ao teto do Regime Geral de Previdência Social [hoje de R$ 8.157,41]. Mas, até agora, não há um cronograma de pagamento. É um dinheiro mais do que necessário. Muitas dessas crianças apresentam desnutrição e precisam de alimentação hiperproteica. São leites especiais, caros, nem sempre disponíveis nos postos de saúde. Essas crianças também precisam de cadeiras de rodas customizadas, que têm de ser trocadas à medida que crescem. Muitas têm problemas oculares e precisam trocar o grau dos óculos de tempos em tempos. Elas ainda passam por várias cirurgias, das menores, para corrigir a posição de mãos e braços deformados pelas contraturas, até as maiores,

de quadril. Essas famílias estão o tempo todo em busca de cuidado e, às vezes, precisam procurar serviços privados de saúde. Atendo minhas crianças todas as quintas-feiras e é duro ouvir as histórias contadas pelas mães. Não sei como elas fazem enquanto esperam essa pensão.

Por ora, com quem elas contam? Muitas contam com as avós para os cuidados gerais. Do ponto de vista da economia, os anos de vida saudáveis perdidos dessas crianças é muito alto, como mostramos em um estudo feito anos atrás. Essas mães perambulam pelos serviços de saúde com dificuldade. Uma coisa é andar de ônibus com um recém-nascido. Outra é com uma criança maior com paralisia cerebral e cadeira de rodas. Encaminhamos várias famílias para as unidades básicas de saúde próximas a suas casas, para que pudessem tratar problemas simples, como febre. Mas, em geral, as unidades não se sentem confortáveis em atender essas crianças e as encaminham de volta para os hospitais de referência.

Essas crianças estão hoje com 9 ou 10 anos. Como é o acesso delas à escola? A inclusão, em especial das mais graves, é muito difícil. Algumas mães conseguem educadoras para ir a suas casas. Outras assumem elas próprias esse papel. Mesmo as crianças sem microcefalia, mas com atraso de desenvolvimento, têm dificuldades de aprendizagem e a escola não sabe como enfrentar.

Em julho, foi promulgada a lei que prevê o pagamento de uma indenização e uma pensão vitalícia. É um dinheiro necessário

Um estudo do seu grupo estimou em US$ 600 milhões os gastos de saúde com essas crianças nesses 10 anos. O cuidado delas gera um alto custo financeiro para a sociedade com atendimentos médicos e tratamentos de saúde, sem falar na sobrecarga emocional e econômica para as famílias, em especial para as mães, que têm de abrir mão do trabalho, de sonhos. Além disso, as próprias famílias têm de tirar dinheiro do bolso para cobrir as despesas com tratamento. Por isso, estão ansiosas para receber a pensão vitalícia. Elas vão precisar disso para tratar adequadamente os filhos.

Depois de 2016, a epidemia arrefeceu e não se ouve falar mais em infecção pelo vírus zika. Ainda há casos? Eles continuam ocorrendo, mas o nú -

mero não é nem de longe próximo ao que se viu na epidemia. No hospital em que trabalho, surgem hoje um ou dois casos por ano.

Na epidemia, os casos se concentraram na região Nordeste. Descobriu-se a razão?

Muitas hipóteses foram investigadas, mas nada ficou comprovado. Acho que o problema foram as condições gerais da população nessas regiões. As menos favorecidas, com menos acesso a saneamento, foram as mais afetadas.

Dos casos que acompanhou, algum a tocou em especial?

Me lembro muito de um bem no início. A criança havia nascido com os pezinhos tortos. Um dia, quando ela tinha por volta de 1 ano, a mãe chegou aqui toda feliz, porque havia conseguido calçar um sapatinho no bebê depois de uma cirurgia de correção ortopédica. Aquela cena me fez desmoronar. Essas pequenas conquistas representam muita coisa para essas famílias. Essa criança faleceu recentemente.

Quais as maiores dificuldades que vocês, profissionais da saúde, enfrentaram no auge da epidemia?

Tudo era muito novo para nós. Como neonatologista, eu só tinha ouvido falar de uma proporção tão elevada de malformações associada ao uso da talidomida, antes dos anos 1960. Vi esses problemas ocorrerem com a rubéola congênita. Mas eram casos esporádicos, não havia essa proporção epidêmica. Foi uma avalanche. Para nós pediatras, era muito duro falar para a mãe que não havia tratamento nem o que se pudesse fazer. Em geral, a criança tem muita neuroplasticidade. Certas regiões do cérebro são capazes de formar novas células e substituir ou encampar as de um local danificado. Só que o estrago causado pelo vírus zika era tão grande que não tinha jeito de isso acontecer nas crianças com quadros mais graves de microcefalia. Nos casos sem microcefalia se consegue promover a neuroplasticidade por meio da estimulação. Me encantava aplicar os testes de desenvolvimento, identificar os principais problemas e trabalhar com estimulações específicas para as áreas que determinam certas funções. Mas isso não era suficiente para aquelas com microcefalia.

O médico disse:
“Seu bebê não tem indicação de CTI, porque vai morrer mesmo”.
É algo que se fale para uma mãe?

O que pôde ser feito?

O que tínhamos para fazer naquele momento era tratar os sintomas, para melhorar a qualidade de vida da criança, e trabalhar a estimulação. Mas havia um problema. Não tínhamos profissionais o suficiente para a estimulação de um grupo tão grande de crianças com microcefalia. Aqui no Instituto Fernandes Figueira, treinamos vários profissionais que trabalhavam em clínicas da família para atender essas crianças. Quando mudou o prefeito, todos foram mandados embora. Isso nos deu uma tristeza enorme. Ao longo do tempo, essas famílias enfrentaram desabastecimento, descontinuidade e descaso.

Por parte de quem?

De vários grupos. Os políticos olham para essas crianças e dizem “essas não têm jeito”. A mãe de uma criança com uma escoliose [deformidade na coluna] grave a ponto de causar problemas pulmonares, recentemente ouviu do ortopedista: “Sinto muito, mas você não é prioridade”. Essas crianças e famílias nunca foram enquadradas como prioridade. Outra criança com microcefalia teve uma pneumonia e precisava ser internada em um centro de terapia intensiva. O médico disse para

a mãe: “Seu bebê não tem indicação de CTI, porque vai morrer mesmo”. Poxa, é algo que se fale para uma mãe? Aquele é o filho dela e ele merece ser cuidado da melhor forma possível. No sistema de saúde, às vezes temos de fazer escolhas de Sofia. Mas não era o caso ali porque havia leito disponível. Foi uma postura muito cruel.

O que se aprendeu sobre a doença desde a epidemia?

Temos aprendido muito sobre o que esperar do crescimento e do desenvolvimento dessas crianças. E sobre quão importante é fazer a vigilância do desenvolvimento, isto é, acompanhar a aquisição de habilidades, como levar o pezinho à boca, sentar-se, sustentar o tronco, para aproveitar as janelas de oportunidade para a estimulação. Para isso, só é preciso saber observar.

Há no país capacidade de acompanhar todo esse contingente?

Claro que tem. A vigilância do desenvolvimento não é complicada. Para isso, precisa-se de pediatras nas clínicas da família, as unidades voltadas à atenção básica e ao acompanhamento continuado das famílias. Alguns dizem: “Não se pode pôr especialistas nessas clínicas”. Mas pediatra não é especialista. É o clínico geral da criança. Setenta por cento das mulheres que tiveram zika na epidemia eram assintomáticas. Se eu não tenho testes confiáveis para identificar, como vou saber se a criança foi exposta ao vírus?

Para minimizar os problemas de atraso do desenvolvimento dessas crianças, só fazendo a vigilância do desenvolvimento.

O que ainda falta para lidar melhor?

Um teste sorológico bom, fazer o controle dos mosquitos e conseguir uma vacina.

Como está o desenvolvimento de uma vacina contra zika?

Em fase de investigação. Ela seria importante para as mulheres em idade fértil.

O que se espera que ocorra com essas crianças nos próximos anos?

Atualmente, elas enfrentam a dificuldade do acesso à escola. Muitas estão entrando na adolescência, quando surgem todas as questões relacionadas à fertilidade. Esse será outro desafio para as famílias. l

Um peso-pesado galáctico

Buraco negro com massa equivalente a 36 bilhões de sóis é um dos maiores já descobertos

MARCOS PIVETTA

Um buraco negro com massa equivalente a 36 bilhões de sóis foi descoberto no centro da Ferradura Cósmica, um bonito sistema de três galáxias situado em uma região da constelação boreal de Leão. O objeto astronômico, que está entre os mais pesados buracos negros já identificados, foi reportado em um artigo publicado na revista científica Monthly Notices of the Royal Astronomical Society (MNRAS ) em agosto deste ano. “Não era meu objetivo encontrar um buraco negro tão massivo na minha pesquisa”, conta o autor principal do estudo, o físico brasileiro Carlos Melo-Carneiro, que acaba de defender tese de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Passei três meses achando que tinha cometido um erro.”

O estudo tomou forma definitiva no ano passado, enquanto Melo-Carneiro passava uma temporada na Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, com uma bolsa-sanduíche da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), como parte de seu doutorado. Sua ideia original era estudar a história evolutiva e a presença de matéria escura, um tipo de elemento não visível que representa pouco mais de um quarto do Universo, na Ferradura Cósmica. Seu trabalho incluía calcular a massa do buraco negro que deve existir no centro de uma das galáxias que compõem essa formação. O resultado foi uma enorme surpresa. “Sabíamos que existia um buraco negro nesse sistema, mas nossos modelos

iniciais indicavam que ele teria no máximo 10 bilhões de massas solares”, diz, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o astrofísico britânico Thomas Collett, da universidade britânica, coautor do artigo e coorientador do trabalho do brasileiro. Devido a uma peculiaridade desse sistema de galáxias, foi possível calcular por dois métodos distintos a massa do buraco negro. Uma das técnicas permite estimar esse parâmetro por meio da medição da velocidade de deslocamento das estrelas nos seus arredores. Quanto mais pesado for o buraco negro, mais rápido essa matéria visível se move. A outra abordagem explora uma singularidade desse sistema de galáxias, cuja imagem visível é distorcida por um fenômeno conhecido como lentes gravitacionais. “Fizemos simulações computacionais e vimos que um buraco de 36 bilhões de massas solares era necessário para reproduzir simultaneamente o efeito de lente gravitacional e o movimento das estrelas nesse sistema”, comenta Melo-Carneiro. A margem de erro da estimativa da massa do buraco negro é cerca de 15%.

“O artigo é muito interessante, especialmente a determinação da massa do buraco negro usando uma mistura de métodos, a dinâmica estelar e as lentes gravitacionais”, comenta o astrofísico Rodrigo Nemmen, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que não participou do estudo. Descoberta em 2007 durante o mapeamento do céu denominado Sloan Digital Sky Survey, a Ferradura Cósmica é um dos mais conhecidos sistemas de galáxias cuja imagem nas frequências da luz visível

Sistema de galáxias denominado

Ferradura Cósmica em meio a outros corpos celestes da constelação de Leão

A imagem mostra um objeto arredondado de cor vermelho-alaranjado circundado por um anel incompleto em azul e algumas formações borradas, destacadas nos retângulos. O buraco negro fica no centro do objeto alaranjado, que é uma das três galáxias do sistema

é distorcida e amplificada pelas lentes gravitacionais. Proposto por Albert Einstein (1879-1955) na teoria da relatividade geral (1915), esse fenômeno decorre da ação da gravidade. Um objeto de enorme massa deforma, ou entorta, a curvatura do espaço e do tempo. A alteração faz com que a luz que passa em torno desse objeto seja distorcida e magnificada, como se tivesse sido ampliada por uma lente.

A imagem do sistema de três galáxias remete a uma ferradura por causa do efeito das lentes gravitacionais. Sem ele, tudo que um observador situado na Terra veria nessa região da constelação

de Leão seria um objeto arredondado, de cor vermelho-alaranjado, mas não o aro azulado semifechado (a ferradura) que o circunda. Esse objeto em tom de fogo é uma galáxia do tipo vermelho luminoso e, das três, é a que está mais perto, a cerca de 5 bilhões de anos-luz. “O buraco negro cuja massa estimamos está bem no centro dessa galáxia”, explica a física Cristina Furlanetto, da UFRGS, que também assina o artigo e orientou a tese de doutorado de Melo-Carneiro.

Devido a sua enorme massa, dezenas de vezes maior do que a da Via Láctea, essa galáxia atua como uma lente gravitacional. Ela amplifica e distorce a luz de duas galáxias bem mais distantes que “se escondem atrás dela”, uma a 10,4 bilhões de anos-luz e outra a 11 bilhões de anos-luz. A ferradura azul, um tipo de formação que é denominado tecnicamente como Anel de Einstein, é o resultado do fenômeno das lentes gravitacionais, que distorce e amplia a luz da galáxia mais distante do sistema. A luz da galáxia do meio também sofre esse efeito, mas não gera formações tão bonitas como a do anel. Produz uma imagem borrada perto da galáxia luminosa vermelha e um traço azulado acima da ferradura, que podem ser vistos nos retângulos que destacam detalhes do sistema de galáxias na imagem menor publicada nesta reportagem. Buracos negros são objetos astronômicos tão densos que, a partir de uma determinada distância de seu centro, tudo, inclusive a luz, é atraído para seu interior por sua enorme forca gravitacional. O entendimento dominante na astrofísica atual é de que a maioria das galáxias, talvez todas, deva ter um buraco negro supermassivo em seu centro. A Via Láctea, por exemplo, tem um buraco negro de cerca de 4,3 milhões de massas solares, denominado Sagittarius A*. A M87, uma das maiores galáxias conhecidas, tem um ainda maior, de 6,5 bilhões de massas solares. O buraco negro da Ferradura Cósmica está dormente. Ou seja, quase não engole a matéria visível que circula ao seu redor. Permanece silencioso a maior parte do tempo. A falta de atividade desse peso-pesado dificulta seu estudo mais a fundo.

Uma questão interessante a ser investigada na Ferradura Cósmica é como ocorreu o processo de evolução da galáxia vermelha luminosa e de seu enorme buraco negro. Eles cresceram de forma integrada ou independente? Surgiram juntos ou se formaram em épocas distintas? Essas são algumas das indagações que novas pesquisas a serem feitas pelo grupo da UFRGS tentarão responder. l

O artigo científico consultado para esta reportagem está listado na versão on-line.

Drones contra incêndios

Aeronaves nacionais projetadas para detecção e combate ao fogo em florestas começam a ser usadas por órgãos de defesa civil do país

DOMINGOS ZAPAROLLI

Aeronaves não tripuladas de múltiplos usos, os drones vêm sendo empregados em missões de monitoramento, detecção e combate a incêndios em vários países. Modelos em sua maioria importados são usados por órgãos de defesa civil de estados e municípios brasileiros. Os resultados obtidos em campo têm motivado o desenvolvimento de inovações e versões nacionais desses equipamentos. Na Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos, está em curso o projeto de um drone que usa sensores e sistemas de inteligência artificial (IA) para medir a concentração de gases de efeito estufa (GEE) a fim de monitorar condições ambientais de áreas de matas e florestas e identificar focos de incêndio. As empresas paulistas Xmobots, também de São Carlos, e Indústria de Aeronaves Remotamente Pilotadas (UAVI), de São José dos Campos, interior paulista, colocaram drones anti-incêndio no mercado.

“Nosso aparelho foi pensado para ser um complemento a outras ferramentas, como satélites, torres de observação e aviões, usadas para monitorar florestas e grandes áreas rurais”, declara o engenheiro mecânico e coordenador do projeto Glauco Caurin, do Departamento de Engenharia Aeronáutica da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP. Os drones, argumenta o pesquisador, têm características que tornam mais eficiente o monitoramento ambiental. Enquanto satélites captam imagens do terreno apenas uma ou duas vezes ao dia, o drone tem sua trajetória e frequência de voo definidas pelo usuário, conforme a prioridade de cada cenário de risco.

As torres fixas, por sua vez, detectam os sinais de fumaça sempre à mesma altura e não disponibilizam dados precisos sobre a localização do foco de incêndio. Os drones podem fornecer imagens e dados volumétricos de gases que são captados em diferentes alturas e disponibilizam informações de cada microrregião sobrevoada, permitindo maior precisão da localização da origem do GEE. “Em relação aos aviões tripulados, os drones apresentam custos de voo significativamente inferiores, o que possibilita realizar mais operações com o mesmo orçamento”, compara o engenheiro.

Desenvolvido com o apoio da FAPESP, o aparelho da USP, de pequeno porte (ver infográfico na página 72), é dotado de quatro motores elétricos e capacidade de decolagem e pouso vertical (VTOL). Sensores ópticos e ambientais medem a temperatura, a umidade e a presença de gases – dióxido de carbono (CO₂) e metano (CH₄) – e de material particulado. Um pequeno computador com o auxílio de um sistema de IA analisa as informações coletadas e identifica a fonte de emissão dos gases. “A medida do gradiente de concentração de CO₂ é usada para se estabelecer de forma indireta a região provável de foco de incêndio”, diz Caurin.

O balanço de GEE obtido pelos sensores e o sistema de IA também têm o propósito de fornecer indícios sobre a qualidade da mata observada. “Podemos identificar com um sobrevoo se um projeto de reflorestamento é efetivo, com a evolução esperada das mudas plantadas, ou se ele não existe e estamos diante de um greenwashing, um marketing enganoso de sustentabilidade”, diz Caurin.

NOVA VERSÃO COM ASAS

A equipe da USP trabalha no projeto de um segundo modelo. Além das hélices que tornam viáveis a decolagem e o pouso vertical, a nova versão terá asas, o que possibilitará o deslocamento horizontal com menor gasto de energia. O novo drone deverá fazer voos de quase uma hora, o dobro do atual. “Para que o aparelho possa inspecionar áreas amplas, queremos dotá-lo de uma autonomia ainda maior, de 90 a 120 minutos de voo”, conta o engenheiro, acrescentando que a captura de informações de grandes áreas precisará ser feita por uma frota de drones.

Os pesquisadores da EESC optaram por embarcar no aparelho sensores de baixo custo para medição de GEE. “Embora não tenham grande precisão, são acessíveis e oferecem um indicativo útil da presença de gases”, defende o pesquisador. “Sensores mais precisos custam mais de R$ 100 mil. É um investimento muito alto para embarcar em drones que podem cair e quebrar ou se perder.” O uso de drones e a eficácia dos sensores selecionados para monitorar GEE foram demonstrados pela equipe da EESC em um capítulo do livro The future of electric aviation and artificial intelligence, publicado pela Springer Nature este ano.

O drone da USP foi projetado originalmente para integrar uma plataforma de dados sobre emissões de GEE na Amazônia. O coordenador desse projeto, o físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, avalia que o tempo de voo dos drones é ainda muito curto e a precisão dos sensores precisa ser melhorada para a inspeção florestal. “A iniciativa de desenvolver um drone nacional para medir GEE e a saúde das florestas é importante, mas para ter uso relevante o sistema precisa ser aprimorado, com sensores mais precisos e maior tempo de sobrevoo”, avalia Artaxo. Por outro lado, o pacote tecnológico desenvolvido em São Carlos despertou o interesse de duas empresas, que negociam o licenciamento para a produção da aeronave. Também atraiu a atenção da Defesa Civil do município, que já realizou testes com o equipamento em parceria com o Corpo de Bombeiros. “No combate a incêndios, o auxílio de drones dotados de sensores para medir gases é incomensurável”, diz o engenheiro ambiental Pedro Fernando Caballero Campos, diretor da Defesa Civil de São Carlos.

A avaliação da presença de gases antes, durante e após o incêndio, avalia Caballero, auxilia a compreensão dos processos de combustão e o trabalho de prevenção. “Também poderemos estudar a presença de gases na atmosfera em diferentes situações e entender melhor a qualidade do ar que respiramos e sua relação com a saúde humana e dos animais”, destaca o engenheiro.

Esquadrão antifogo

Conheça os drones projetados no país para combater incêndios florestais

USP

Missão

Equipamentos

Desenvolvedor

Categoria

Tamanho

Peso

Autonomia/ Alcance

Status

Custo

Monitoramento ambiental e combate a incêndios

Sensores ópticos e ambientais para medição de temperatura, umidade e presença de gases (dióxido de carbono e metano) e material particulado

EESC-USP

Pequeno porte

50 cm

2,5 kg

15 a 30 minutos/1 km

Protótipo

não se aplica

A defesa civil de alguns estados brasileiros, entre eles São Paulo e Mato Grosso do Sul, já adota drones importados de pequeno porte para o combate a incêndios. O pacote tecnológico embarcado neles é diferente do projetado pela USP. Alguns são equipados com câmeras térmicas com sensores infravermelhos, enquanto outros levam um conjunto formado por câmeras térmicas e visuais. Vendidas no país por R$ 50 mil a R$ 100 mil, segundo representantes comerciais, essas aeronaves são empregadas principalmente para detecção e localização de focos de calor e orientação das equipes envolvidas no combate aos incêndios.

Drones de grande porte com maior autonomia de voo também são utilizados para monitorar florestas e áreas rurais e detectar focos de incêndio. No Brasil, a Xmobots, empresa criada em 2007 por ex-alunos da Escola Politécnica da USP com apoio da FAPESP, foi pioneira em oferecer um aparelho para esse tipo de missão. Desde 2020 a companhia, com sede em São Carlos, tem em seu portfólio uma aeronave equipada com sensor infravermelho termal, câmera óptica e telêmetro, dispositivo para medição de distância em tempo real.

Instalados em um hardware com campo de visão de 360 graus, os sensores são apoiados por

NauruC

Monitoramento ambiental, detecção de incêndios e vigilância

Sensor infravermelho termal, câmera óptica, telêmetro e IA para reconhecimento facial e de placas de veículos

Xmobots

Grande porte

1,8 m de comprimento por 3,6 m de envergadura

25 kg

4 horas/60 km

Produto comercial

R$ 2,5 milhões

UAVI100 – Bombeiro

Combate direto a incêndios

Câmera térmica, sensor de realidade virtual e mangueira para esguicho de água ou espuma com precisão

UAVI

Grande porte

2,5 m de comprimento por 2,8 de envergadura

68,8 kg (com a mangueira)

20 minutos/30 m (conectado com a mangueira) e 2 km (sem a mangueira)

Produto comercial

R$ 550 mil

FONTES GLAUCO CAURIN (USP) / XMOBOTS) / UAVI

Protótipo do drone de pequeno porte criado na USP de São Carlos (abaixo) e o modelo NauruC, da Xmobots, usado para monitoramento ambiental e detecção de incêndio

um sistema de IA projetado para realizar reconhecimento facial e de placas de veículos. Dessa forma, o drone é capaz de identificar os possíveis autores de atos ilícitos. Além de monitoramento ambiental e detecção de incêndios, a aeronave também é usada para vigilância.

Odrone é um VTOL dotado de asas, com 1,86 metro (m) de comprimento e 3,64 m de envergadura (distância de uma ponta da asa a outra). Faz parte da família de drones Nauru. Tem autonomia de voo de quatro horas e alcance de 60 quilômetros, podendo realizar voos a até 3 mil m de altitude. “É o único drone no país com autorização da Anac [Agência Nacional de Aviação Civil] para voos acima de 400 pés [191,92 m] e operações noturnas”, informa a diretora comercial Thatiana Miloso.

O modelo Nauru 500C vem sendo usado principalmente para a vigilância de áreas públicas, florestas plantadas e unidades agropecuárias. Segundo informação da Xmobots com base em dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entre junho e agosto de 2024, incêndios geraram prejuízos de R$ 14,6 bilhões ao agronegócio brasileiro. A Xmobots está desenvolvendo uma nova versão do drone. “Estamos trabalhando para melhorar o desempenho do produto, incorporando sensores ambientais e de gases”, informa o engenheiro elétrico Leonardo Gomes, gestor de projetos da companhia.

ESGUICHO DE ÁGUA E ESPUMA

Drones também estão sendo empregados no combate direto a incêndios. No Brasil, o pioneiro é o UAVI100 – Bombeiro, lançado este ano pela UAVI,

com sede no Parque de Inovação Tecnológica de São José dos Campos (SP). A aeronave de oito motores e duas baterias tem autonomia de voo de 20 minutos e capacidade para levar 150 quilos. O drone carrega uma mangueira de cerca de 6 centímetros de diâmetro a uma altura de até 30 m e é capaz de esguichar água ou espuma com precisão a uma distância de 25 m. Na outra ponta, a mangueira é conectada ao caminhão de bombeiro ou hidrante, que fornece a água de forma contínua. O equipamento tem uma câmera térmica e um sensor de realidade virtual, que permite ao operador observar em tempo real o campo de visão do drone.

As duas primeiras unidades do UAVI100 foram entregues em maio ao Corpo de Bombeiros de Manaus (AM). “Nosso drone já foi testado em combates reais. Três outras unidades foram encomendadas”, diz o economista Ricardo Pietro, diretor-geral da UAVI. “Bombeiros do Paraná, de Goiás e de Mato Grosso também confirmaram pedidos e recebemos sondagens até de Portugal”, afirma Pietro.

Os aparelhos são utilizados primordialmente no combate a incêndios em áreas urbanas ou na borda de matas e florestas. Novas versões do drone bombeiro, com dispositivos de controle de esguicho e equipamentos que carregam pó químico ou manta antichamas em tecido de sílica, estão sendo construídas pela companhia. “Nossa equipe de pesquisa e desenvolvimento trabalha em grande sintonia com representantes dos bombeiros. A ideia é oferecer equipamentos que atendam às diferentes demandas dos usuários”, diz o diretor da UAVI. l

Os projetos e o livro consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Olhos eletrônicos

Protótipo de mochila com câmera permite a deficientes visuais identificar obstáculos com altura acima da cintura

CARLOS FIORAVANTI ilustração ALEXANDRE AFFONSO

Pensar no usuário é uma preocupação constante da designer Aline Darc, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Como parte de seu doutorado, concluído em julho de 2023 na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Bauru, ela procurou aparatos eletrônicos que detectassem objetos acima da cintura e evitassem colisões e quedas de pessoas com baixa ou nenhuma visão durante suas caminhadas. As bengalas, normalmente usadas por deficientes visuais, só alertam para a existência de obstáculos próximos ao chão.

Darc não gostou do que viu, como os protótipos de capacetes que poderiam detectar obstáculos e lhe pareceram desconfortáveis, e foi a campo. Entrevistou alunos do Lar Escola Santa Luzia para Cegos, em Bauru (SP), definiu os requi-

sitos do projeto e criou uma mochila com uma câmera com sensor de profundidade ligada a motores que vibram, alertando seu portador para a proximidade de obstáculos acima da cintura.

A câmera fica presa a uma alça da mochila e os demais componentes em uma caixa dentro dela, que pode ser aproveitada para carregar outros objetos (ver infográfico). De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, 3,4% da população, o equivalente a 7 milhões de pessoas, tem deficiência visual. Globalmente, são 2,2 bilhões de indivíduos com baixa ou nenhuma capacidade visual. Construído com uma equipe de engenheiros eletricistas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o primeiro protótipo do dispositivo, chamado NavWear, pesa 418 gramas, como detalhado em um artigo publicado em março deste ano na revista científica Disability and Rehabilitation: Assistive Technology Em um ensaio preliminar realizado na

Ufes, 10 pessoas vendadas vestiram a mochila e percorreram com ela e com uma bengala um corredor com caixas. Ao final do teste, consideraram a inovação eficaz para evitar colisões ao longo do percurso proposto.

O trabalho contou com o apoio financeiro da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes) – e ainda não terminou. “Pretendemos construir outro protótipo, com componentes menores, que foram lançados depois que começamos a trabalhar”, diz ela. “Queremos também fazer uma versão com sinal sonoro e não apenas tátil, para que os usuários possam escolher.”

A pedido de Pesquisa FAPESP, a equipe de Orientação e Mobilidade da Fundação Dorina Nowill para Cegos, de São Paulo, avaliou a proposta e, em uma nota, considerou-a adequada para pessoas com deficiência visual que já tenham segu -

rança e autonomia para usar recursos tecnológicos. “Como o objetivo é o uso em ambientes externos, seria necessário realizar um estudo prático com pessoas com deficiência visual em locais com grande circulação de indivíduos, diferenças na percepção de cada um, objetos, desníveis e outras questões práticas”, avaliou o grupo.

“Os sistemas de navegação como essa mochila, ainda que seja uma tecnologia emergente, têm o mérito de propor soluções para problemas reais”, comenta Vinicius Ramos, do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, que não participou da pesquisa. “Mas precisamos ter em mente que a mobilidade das pessoas com deficiência visual não depende só das tecnologias. Precisamos também de calçadas melhores.”

50 NOVAS TECNOLOGIAS

Graduado em relações internacionais, Ramos é membro da Cooperação Global pela Tecnologia Assistiva da Organização Mundial da Saúde (Gate-OMS), que procura reunir órgãos normativos, usuários, empresas e outras partes interessadas para viabilizar a produção de inovações para pessoas com todos os tipos de deficiência. Segundo ele, com o apoio desse grupo, a OMS deve publicar em breve uma lista atualizada de 50 produtos assistivos prioritários, com a recomendação de que sejam incorporados aos sistemas públicos de saúde.

Os chamados dispositivos vestíveis para deficientes visuais são bastante raros. Em julho de 2021, no JAMA Ophthalmology, uma equipe da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, apresentou um protótipo com uma câmera grande angular conectada a uma unidade central de processamento (CPU). O dispositivo é capaz de capturar imagens e analisar o risco de colisão com base no movimento relativo dos objetos aos quais os usuários se aproximam e ao redor de seu campo de visão.

Semelhante ao modelo brasileiro, a câmera estava acoplada ao peito pela alça de uma mochila, dentro da qual estava a CPU. Por sua vez, a CPU se conectava por bluetooth a duas pulseiras, uma em cada braço do usuário. Se a colisão iminente for detectada no lado esquerdo ou direito, a pulseira correspondente vibrará; ambas vibrarão se o obstáculo estiver à frente.

Usado durante um mês por 31 adultos com deficiência visual que utilizam uma bengala longa, um cão-guia ou ambos, o dispositivo, quando ativado, reduziu as colisões em 37%, em comparação com o modo silencioso, quando estava desligado, sem que o usuário soubesse em que modo estava. Em um comunicado da universidade, a equipe responsável pelo projeto informou que pretendia fazer outro protótipo, com componentes menores e mais rápidos, testá-lo e submetê-lo à aprovação dos órgãos oficiais.

Um grupo de estudantes do Instituto de Tecnologia Ramaiah, em Bangalore, na Índia, trabalhando em conjunto com os alunos e professores da Associação Nacional para Cegos (NAV), adotou uma abordagem semelhante: um par de óculos, conectado por fio a um processador que pode ser guardado no bolso, com programas de inteligência artificial instalados nele. Apresentado em julho de 2023, o dispositivo óptico descreve objetos próximos e lê em voz alta textos de cartazes, placas de trânsito e livros. A equipe recebeu um prêmio de US$ 4.400 de um programa de

apoio a projetos de engenharia mantido pela Universidade Purdue, dos Estados Unidos, para aprimorar o protótipo, já usado por cerca de 100 alunos do NAV. Similares aos indianos, óculos inteligentes já são produzidos nos Estados Unidos e no Reino Unido e custam o equivalente a R$ 30 mil.

À medida que avançarem, os dispositivos ópticos para caminhadas poderão reforçar os recursos que facilitam o dia a dia das pessoas com deficiência visual. Nos últimos anos, aumentou a oferta, com preços menores, de dispositivos como leitores de tela de computador e de celular, impressoras e teclados em braile para quem tem baixa visão e até um cão-guia robótico para cegos (ver Pesquisa FAPESP nos 314 e 348).

Outras novidades estão a caminho. A própria Darc, que fez um brinquedo para crianças cegas como trabalho de conclusão de sua graduação na Unesp, empenhou-se no desenvolvimento de materiais pedagógicos para uso em sala de aula, em conjunto com outros professores da FAU-USP, onde foi contratada em julho de 2024. l

O projeto e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Para evitar colisões e quedas

Quando detecta um obstáculo, uma câmera faz motores vibrarem, avisando para o usuário ir mais devagar

1 Uma câmera de profundidade divide a imagem em quatro quadros e registra os objetos acima da cintura

3 Se o obstáculo estiver à direita, o motor da direita vibrará. Se à esquerda, o da esquerda. Se à frente, os dois

2 Dentro de uma caixa, um microprocessador recebe a informação e aciona um dos motores (ou os dois)

4 A mochila pode ser usada também para transportar outros objetos do usuário

FONTE ALINE DARC (USP)

Um jogo de gato e rato

Soluções sofisticadas com o uso de IA são o melhor caminho para combater fraudes em sistemas de autenticação biométrica, sugere especialista

Dedos de silicone, máscaras de borracha que emulam o rosto de uma pessoa, moldes de orelha confeccionados com gelatina, gravações que se confundem com a voz humana ao vivo. Esses são alguns dos artifícios empregados por criminosos para ludibriar sistemas de autenticação biométrica, aqueles que reconhecem o indivíduo por meio de impressões digitais, face, voz, íris ou orelha. Para identificar e prevenir ataques conhecidos como spoofing, em que traços biométricos são falseados para enganar o sistema, pesquisadores recorrem cada vez mais à inteligência artificial (IA). “É um jogo de gato e rato”, afirma o cientista da computação Rodrigo Colnago Contreras, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (ICT-Unifesp), especialista na detecção de falsificações biométricas. “À medida que surgem novas técnicas fraudulentas, precisamos desenvolver soluções mais sofisticadas para reconhecê-las e combatê-las.” A maioria dos novos dispositivos, diz o pesquisador, conta com algoritmos de IA para identificar as burlas. Sensores que verificam a vivacidade do usuário, medindo sinais fisiológicos, também são empregados.

O interesse de Contreras pela área começou na graduação, quando elaborou um projeto para reconhecer impressões digitais em cenas de crime. O spoofing foi tema do mestrado, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), e do doutorado, na Universidade de São Paulo (USP). Poucas semanas após participar da mais importante competição mundial em detecção de fraudes biométricas, a LivDet, na Itália, em que ficou em segundo lugar, Contreras conversou com Pesquisa FAPESP por plataforma de vídeo e e-mail. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Sistemas biométricos são vulneráveis a fraudes?

Sim. Embora essas plataformas sejam soluções altamente convenientes para o reconhecimento de usuários, pois oferecem elevado grau de segurança sem exigir que a pessoa memorize senhas ou carregue objetos, como cartões ou chaves, elas possuem vulnerabilidades. As principais decorrem de ataques conhecidos como spoofing, em que características biométricas são falsificadas e apresentadas ao sistema. A principal complicação é que quase toda biometria, seja ela impressões digitais, face, voz ou íris, pode ser replicada. Isso torna essencial o uso de mecanismos de proteção contra esse tipo de fraude.

Essas falsificações vêm crescendo no mundo?

Não temos uma estimativa precisa sobre o crescimento de ataques, mas sabemos

que eles têm se tornado cada vez mais comuns. Fraudes biométricas despertam preocupação no setor financeiro e em instituições públicas do mundo todo. Um caso emblemático ocorreu em 2013, em Ferraz de Vasconcelos [SP], quando uma médica do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] foi flagrada utilizando dedos de silicone confeccionados com a colaboração de colegas para registrar o ponto por eles. O episódio ganhou repercussão internacional e ainda é citado como motivação para o desenvolvimento de técnicas de detecção de spoofing. Mais recentemente, têm surgido casos de falsificação facial, nos quais fotos de outras pessoas são usadas para burlar sistemas de reconhecimento e obter aprovação de empréstimos em aplicativos bancários. Em um caso, investigado pela polícia de Santa Catarina, estima-se que cerca de 50 pessoas físicas e jurídicas tenham sido lesadas.

Como combater essas fraudes?

É um jogo de gato e rato. À medida que surgem novas técnicas fraudulentas, empresas e pesquisadores desenvolvem soluções mais sofisticadas para detectar falsificações. A maioria utiliza algoritmos de inteligência artificial [IA], mas também há avanços no uso de sensores especializados que verificam a vivacidade do usuário, medindo, por exemplo, temperatura, resposta a estímulos elétricos e outros sinais fisiológicos –embora até mesmo esses sinais possam ser simulados. A pesquisa nessa área, em universidades e empresas, é contínua e essencial para manter a segurança dos sistemas biométricos diante de ameaças em constante evolução.

Quais as fraudes mais comuns?

De modo geral, cada biometria tem suas próprias formas de spoofing. Impressões digitais, por exemplo, podem ser reproduzidas com látex, cola de madeira ou silicone; o rosto pode ser simulado com a apresentação de uma foto, vídeo ou até mesmo uma máscara de borracha; a voz é vulnerável a replay attacks, em que qualquer dispositivo de som pode reproduzir a fala do usuário. Até mesmo a íris e a orelha, que também são usadas como biometria, podem ser falsificadas com fotos. Olhos artificiais ou lentes de contato impressas podem simular

a íris, enquanto vídeos ou disfarces de borracha são outras formas de emular a orelha verdadeira.

Como criar sistemas mais seguros?

A inteligência artificial desempenha um papel importante. Por meio de técnicas como aprendizado de máquina, a IA consegue identificar padrões sutis que diferenciam biometrias reais de falsificações, mesmo em ataques sofisticados. Além disso, esses métodos permitem que os sistemas aprendam continuamente com novas tentativas de fraude, tornando a detecção mais precisa e adaptativa ao longo do tempo. Um ponto especialmente relevante é o custo: é muito mais econômico incorporar um módulo lógico de detecção de spoofing baseado em IA do que investir em hardware adicional, como sensores térmicos ou de condução elétrica, que diferenciam uma impressão digital real de uma falsa. A vantagem é ainda maior em cenários de larga escala, como no caso de empresas com várias filiais ou centenas de terminais de controle de ponto. A IA oferece uma solução escalável, eficiente e financeiramente viável para fortalecer a segurança.

Qual é o foco das suas pesquisas? Tenho desenvolvido e publicado vários trabalhos centrados em detecção de spoofing em sistemas biométricos, cada um com uma abordagem distinta. Um dos artigos importantes foi sobre impressões digitais. Propusemos um framework [arcabouço] com múltiplos filtros de imagem e um novo descritor, cuja intenção é representar padrões artificiais na forma de sinais, para identificar fraudes. Recentemente, em um estágio de pós-doutorado na Unesp, com apoio da FAPESP, concentrei meus esforços na detecção de spoofing por voz. Propusemos diversos frameworks baseados em aprendizado de máquina clássico. Mostramos que, com a engenharia certa de atributos, se pode alcançar resultados comparáveis aos obtidos com redes profundas, mas com menor custo computacional. Também exploramos spoofing em biometria de orelha, usando estratégias de realce de imagem, múltiplos filtros e descritores texturais. Esse trabalho ampliou o alcance das nossas soluções para além das modalidades mais comuns de biometria. Cada artigo teve como objetivo

Contreras no Instituto de Ciência e Tecnologia da Unifesp de São José dos Campos

mostrar que é possível criar soluções robustas, escaláveis e financeiramente viáveis para fortalecer a segurança de sistemas biométricos sem depender exclusivamente de hardware especializado.

Quando surgiu seu interesse pela área?

Estudo sistemas biométricos desde a minha iniciação científica, financiada pela FAPESP, ainda na graduação, feita na Unesp de São José do Rio Preto. Nessa etapa, propus uma nova abordagem para identificar impressões digitais coletadas em cenas de crime. No mestrado, iniciei minhas pesquisas focadas na detecção de falsificações biométricas. Propus uma generalização do método conhecido como local binary pattern [LBP], que é um descritor de micropadrão de textura em imagens que compara cada pixel com seus vizinhos, gerando padrões binários convertidos em valores decimais. Esses valores formam um histograma [gráfico responsável por descrever a frequência que diferentes estruturas aparecem na imagem], utilizado para reconhecimento e análise de padrões visuais. Especificamente, a técnica proposta foi chamada de multi-scale local mapped pattern [MSLMP]. Diferentemente do LBP tradicional, que descreve apenas uma microrregião da imagem, ela representa múltiplas regiões concêntricas. As comparações de valores de pixels nessas regiões são feitas com o intuito de reduzir o impacto do ruído ou imperfeições, especialmente em impressões digitais. Esse método foi aprimorado e submetido em 2021 à competição internacional Liveness Detection Competition [LivDet]. Ficamos em segundo lugar.

A inteligência artificial identifica padrões sutis que diferenciam biometrias reais das falsas

O que é essa competição?

A LivDet é uma competição internacional que avalia sistemas capazes de diferenciar impressões digitais genuínas de falsificações feitas com silicone, gelatina ou outros materiais. Os participantes recebem um conjunto de imagens que mistura amostras vivas e falsas e devem classificá-las como tal. O desempenho é avaliado pelos organizadores e medido principalmente pela taxa de acerto. O tempo de processamento também é registrado, mas a precisão é o critério mais importante. É a mais tradicional e respeitada competição mundial na área de detecção de fraudes em sistemas biométricos. Acontece a cada dois anos. Par-

ticipei das três últimas edições, focadas em impressões digitais. Mas há também edições da LivDet voltadas para face e íris, além da ASVSpoof, organizada por outro grupo, centrada em voz. Os desafios mudaram bastante nas últimas edições. Em 2021, tínhamos uma base de dados com impressões digitais reais e falsas para treinar nossos modelos. Já em 2023, quando recebemos menção honrosa, a competição disponibilizou apenas algumas amostras legítimas e nenhuma falsificada, justamente para forçar os competidores a criarem modelos mais generalistas. Este ano, quando também obtivemos o segundo lugar, foi ainda mais desafiador, pois não foi disponibilizado nenhum dado de treinamento. Tivemos que recorrer a bases antigas e testar abordagens de geração de dados com IA. Nosso método, combinando técnicas clássicas de processamento de imagem com IA para diferenciar impressões digitais vivas de falsificadas, se adaptou bem a esses cenários.

Onde a pesquisa voltada a fraudes biométricas é mais avançada?

A LivDet é organizada na Itália desde sua primeira edição, em 2009. O grupo do pesquisador Gian Luca Marcialis, da Universidade de Cagliari, na Itália, é uma das principais referências mundiais em detecção de spoofing. Outro destaque é a equipe do professor Christoph Busch, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, que também tem forte atuação. Além desses, há grupos menores, mas bastante relevantes, como o da pesquisadora Önsen Toygar, da Universidade do Mediterrâneo Ocidental, no Chipre, que se destaca especialmente em spoofing aplicado à biometria de orelhas. Temos trabalhos em parceria com ela.

E aqui no Brasil?

Ainda não temos grupos formalmente consolidados com foco exclusivo em detecção de spoofing, mas há produções de destaque de pesquisadores da USP, da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], da Unesp e, mais recentemente, da Unifesp. Estamos em processo de formalização de um grupo de pesquisa dedicado ao tema, reunindo pesquisadores nacionais e parceiros internacionais. Essa articulação, espero, deverá fortalecer a atuação do Brasil na área. l

Uma calculadora para a pecuária

Aplicativo estima gases de efeito estufa emitidos pelos dejetos de animais confinados e pode ajudar a definir metas de redução

GILBERTO STAM

Uma calculadora de metano (CH₄), um dos mais potentes gases de efeito estufa (GEE), pode ajudar a diminuir as emissões da pecuária intensiva, sistema de criação de bovinos, suínos e aves em confinamento. Desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e lançada em agosto, a ABC+Calc foi projetada para ser usada por gestores públicos, mas não vale para a pecuária extensiva, sistema de criação de animais em grandes áreas de pastagem, predominante no país. O uso da ferramenta é simples: basta inserir informações da propriedade, como

o número de animais e método usado no manejo de resíduos, para obter uma estimativa das emissões.

Na pecuária intensiva, os dejetos armazenados, principalmente fezes e urina, estimulam o desenvolvimento de bactérias anaeróbicas, que atuam em condições com baixa oxigenação. Elas degradam a matéria orgânica e produzem CH4 e, em menor proporção, óxido nitroso (N₂O), outro GEE. Esse resíduo geralmente é armazenado em esterqueiras, depósitos a céu aberto onde os microrganismos o transformam em biofertilizantes e liberam metano na atmosfera.

O aplicativo, projetado para estimar também as emissões de N₂O, foi elaborado a partir de estudos internacionais e dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). No seu desenvolvimento, a Embrapa trabalhou com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e o Instituto 17, organização voltada ao desenvolvimento sustentável. Em fase de implementação, a ferramenta foi testada em 10 estados que têm metas de redução de GEE no âmbito do programa ABC+ (Agricultura de Baixo Carbono), iniciativa do ministério para reduzir as emissões na agropecuária.

“Com a ABC+Calc, é possível estabelecer metas anuais e indicar medidas de mitigação de emissões”, informa o químico industrial Airton Kunz, da Embrapa Suínos e Aves, que coordenou a criação do aplicativo. “A emissão de CH₄ pode ser evitada, por exemplo, com biodigestores, um equipamento capaz de coletar o biogás, uma fonte de energia renovável importante para a geração de energia elétrica”, ressalta Kunz. A queima do metano nos biodigestores produz gás

carbônico (CO₂), com efeito estufa menos intenso. Uma medida mais simples é fazer compostagem dos dejetos animais.

Segundo o agrônomo João Luís Nunes Carvalho, do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM) e do Centro de Estudos de Carbono em Agricultura Tropical (CCarbon), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, a calculadora simplifica a gestão do manejo de dejetos. “A medição direta de CH₄ exige equipamentos e cálculos complexos”, observa.

Kunz esclarece que, embora a pecuária intensiva responda por apenas 5,7% das emissões de CH₄, a calculadora serve como piloto para uma nova versão que avalie as emissões do gado de pasto. Esse sistema é responsável por 30,5% das emissões de CH ₄ , a maior parte delas pela expulsão de gases do estômago pela boca dos animais.

O aplicativo, financiado pela Coalizão pelo Clima e Ar Limpo (CCAC), uma iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), não está aberto aos pecuaristas por ser focado nos gestores de políticas públicas, que têm acesso às informações sobre os produtores nos bancos de dados do governo.

“Para os pecuaristas, o principal incentivo é preparar seu produto para o incipiente mercado de carbono”, assinala Carvalho. “Se a cadeia de produção emite menos GEE, o produto valerá mais.” Segundo ele, o uso de calculadoras de GEE é uma tendência no setor agropecuário. “É provável que, em algum momento, todos os aplicativos sejam reunidos em uma única ferramenta”, considera o pesquisador do CNPEM. l

Água com dejetos de porco cai sobre a serragem para degradação na composteira

ANTROPOLOGIA

Fé e identidade

Como religiões vêm incorporando debates sobre raça e gênero no Brasil

CHRISTINA QUEIROZ ilustrações MAYARA FERRÃO

Nas últimas duas décadas, tradições religiosas no Brasil passaram a incorporar de forma mais intensa pautas relacionadas à raça e ao gênero. Em especial, igrejas católicas e templos evangélicos têm abrigado grupos de fiéis que articulam espiritualidade e afirmação identitária, resgatando a presença de personagens negros na história do cristianismo e propondo releituras da Bíblia . As questões de gênero, por sua vez, passaram a ser abordadas sob perspectivas diversas: enquanto alguns coletivos religiosos defendem o direito ao aborto, outros elaboram discursos que

rejeitam o feminismo, mas ainda assim questionam modelos tradicionais de submissão da mulher. Como característica comum, essas iniciativas passam a participar de disputas em torno do corpo, da sexualidade e da autoridade interpretativa de textos sagrados.

De acordo com o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil segue sendo um país majoritariamente católico (56,7%), embora o percentual tenha diminuído em relação a 2010 (65%). No mesmo recorte temporal, a proporção de pessoas que se autodeclaram evangélicas cresceu de 21,6% para 26,9% e os sem religião passaram de 7,9%

para 9,3%. Já seguidores da umbanda e do candomblé subiram de 0,3% para 1,0%, enquanto os adeptos do espiritismo caíram de 2,1% para 1,8%.

Para a antropóloga Paula Montero, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), debates sobre raça e gênero entre grupos religiosos ganharam fôlego após a Constituição de 1988. “Até então, o país era pensado como uma nação homogênea, católica e majoritariamente branca. Com a redemocratização, a nova Carta propôs uma ruptura: a democracia brasileira deveria se constituir como pluralista”, pontua a pesquisadora, que coordena projeto temático sobre pluralismo religioso com financiamento da FAPESP. De acordo com ela, essa mudança, que resultou de uma ampla mobilização da sociedade civil, constituiu um marco à forma como religiões incorporam discussões sobre racismo e misoginia. No livro A cor da fé: “Identidade negra” e religião, publicado em 2024, o antropólogo Rosenilton Silva de Oliveira, da USP, analisa de que modo a noção de identidade negra é mobilizada por lideranças de religiões de matriz africana, católica e evangélica. Segundo o pesquisador, seja por meio de novas interpretações da Bíblia em cultos evangélicos ou da incorporação de elementos afro-brasileiros à missa católica, incluindo o uso de atabaques, grupos religiosos vêm debatendo a negritude e apoiando a formulação de ações afirmativas à população negra.

A obra, lançada pela editora Elefante, é resultado de estudo que abarcou o levantamento de dados

Presença de homens e mulheres

Público feminino predomina em quase todos os grupos religiosos do Brasil

Católica Apostólica Romana

Umbanda e candomblé

Tradições indígenas Outras religiosidades

censitários, trabalho de observação participante, mais de 60 entrevistas com fiéis e lideranças espirituais, além de revisões bibliográficas, pesquisa documental e o acompanhamento de redes sociais. “Embora a questão racial seja uma diretriz comum a muitos grupos religiosos, cada um adota estratégias distintas para incorporar esse debate em seus ritos e liturgias”, informa o antropólogo.

AIgreja Católica brasileira, segundo Oliveira, começou a acolher reivindicações do movimento negro no final da década de 1970, motivada pelo processo de reabertura política e pela preparação à Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, realizada em Puebla, no México, em 1979. O evento reuniu bispos da região para discutir ações de evangelização. Um dos resultados do encontro foi a criação dos Agentes de Pastoral Negros, em 1983, e, posteriormente, da Pastoral Afro-brasileira, em 1988. Pastoral é uma ação organizada da Igreja para cumprir a sua missão de evangelizar as pessoas. Na década de 1990, surgiram grupos de estudos teológicos, como o Atabaque, em São Paulo, que começaram a desenvolver novas liturgias, ou seja, ritos, cerimônias e cultos que abarcavam questões raciais. Nesse processo, outro marco importante foi a Campanha da Fraternidade de 1988, que teve a população negra como tema central. Realizadas anualmente, essas campanhas promovidas pela Igreja Católica pretendem despertar o espírito de caridade, solidariedade e justiça por meio da reflexão sobre um tema social. “Essa edição da campanha levou os católicos a reconhecer a conivência histórica de setores da instituição com a escravidão e a defender a necessidade de reparações. Em 1992, o papa João Paulo II [1920-2005] fez pedidos de perdão em razão da participação da Igreja no tráfico de pessoas escravizadas”, explica o antropólogo.

De acordo com o pesquisador, partindo desse cenário, a Igreja Católica brasileira tem ampliado o combate ao racismo e adotado símbolos de heranças africanas em liturgias. O objetivo é expandir sua atuação, valorizar a identidade negra de fiéis e o diálogo com o candomblé e a umbanda. No entanto, o pesquisador pontua que a forma como cada paróquia ou diocese incorpora o debate não é homogênea. Por isso, nem todas apresentam o mesmo nível de engajamento. A Renovação Carismática Católica, por exemplo, movimento surgido nos Estados Unidos em 1967 e que se espalhou pelo mundo, não discute abertamente pautas antirracistas nem defende políticas afirmativas até hoje. Nesse sentido, Oliveira lembra que, antes do Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965

para discutir a renovação da Igreja, muitas ordens religiosas não admitiam o ingresso de pessoas negras. E mesmo entre aquelas que aceitavam, havia distinções entre negros e brancos. Assim, os negros eram relegados à função de oblatas, desempenhando trabalhos braçais e de serviço. Já os chamados coristas, grupo formado por pessoas brancas, exerciam atividades de ensino, enfermagem e liturgia. O antropólogo traz um exemplo histórico para ilustrar essa exclusão. “O frade negro São Martinho de Porres [1579--1639], nascido no território que hoje é o Peru, foi admitido na ordem dominicana como oblato, trabalhando como cozinheiro e porteiro, e jamais desempenhou a função de corista”, conta. Porres ingressou na ordem por vontade própria e era reconhecido por sua humildade, dedicação ao trabalho e espírito de caridade. Destacou-se por curar enfermos e realizar milagres. Sua canonização, no entanto, ocorreu apenas em 1962, conduzida por João XXIII (1881-1963), o mesmo papa que convocou o Concílio Vaticano II. Criada em 1928 em Campinas, no interior de São Paulo, a Congregação das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado é considerada uma das primeiras ordens no Brasil a admitir o ingresso de mulheres negras. Graduada e mestra em ciên-

cias da religião, Letícia Aparecida Ferreira Lopes Rocha faz atualmente pesquisa de doutorado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com financiamento da FAPESP, para resgatar a história da organização religiosa. Rocha foi freira durante 10 anos, antes de ingressar no universo acadêmico. Um dos motivos que a levou à pesquisa científica foi a inquietação de compreender e analisar a experiência de mulheres negras no catolicismo.

Por meio de análises de documentos históricos e eclesiásticos e entrevistas com irmãs negras que fazem parte da congregação, Rocha identificou que, antes do Concílio Vaticano II, havia uma separação entre mulheres negras e brancas. As primeiras desempenhavam apenas funções domésticas. E as outras, as brancas, papéis de destaque, como coordenação. “Essa distinção só foi extinta depois do Concílio Vaticano II, que forçou a Igreja a repensar sua presença no mundo e a enfrentar as contradições de seu passado, principalmente no campo racial”, explica.

Mais tarde, na década de 1980, as irmãs negras começaram a resgatar a sua história na organização religiosa e a promover encontros, reunindo mulheres de outras ordens religiosas para debater temas como racismo e homossexualidade. Esses eventos foram pontos de partida para que a congregação estabelecesse missões no Quênia, Angola e Moçambique, reforçando o trabalho de evangelização de pessoas negras que era promovido no Brasil e colaborando para a expansão dos domínios da Igreja na África.

Apesar de reconhecer os avanços recentes da Igreja Católica no combate ao racismo e à misoginia, a socióloga Maria José Fontelas Rosado Nunes, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), destaca que as estruturas excludentes de gênero e raça perduram na instituição.

“Hoje temos bispos e cardeais negros, mas nenhuma pessoa de origem africana chegou a ser papa e as mulheres seguem proibidas de ocupar essa posição, assim como a função de bispos, padres e demais lideranças”, ressalta. De acordo com Nunes, a única exceção, que é tratada como lenda pela Igreja Católica, seria a papisa Joana, mulher que viveu no século XI na região onde hoje fica a Alemanha e que teria se travestido de homem para poder estudar e ascender na hierarquia eclesiástica.

Antes de se tornar pesquisadora, Nunes também foi freira por mais de uma década. Dava aulas em colégios religiosos dirigidos por congregações femininas e atuou em comunidades empobrecidas no sertão baiano e no Acre. Abandonou a vida religiosa para ingressar na academia, empenhada em

analisar como a Igreja Católica lida com questões de gênero. Ela é uma das fundadoras da organização Católicas pelo Direito de Decidir, criada no Brasil nos anos 1990 para defender a autonomia das mulheres sem que isso represente ruptura com a tradição cristã. “Mostramos que é possível manter a fé na Igreja e, ao mesmo tempo, questionar leis eclesiásticas relacionadas ao aborto, aos direitos reprodutivos e à autonomia das mulheres sobre decisões que envolvem seu próprio corpo”, sustenta. Na avaliação da socióloga, o movimento feminista brasileiro tem historicamente ignorado a situação de mulheres religiosas, incluindo freiras e adeptas do catolicismo, em suas reivindicações. “Nosso trabalho é preencher essa lacuna e criar pontes para que elas possam tomar decisões sem abrir mão do catolicismo”, afirma.

Ao contrário da Igreja Católica, em que os movimentos negros ganharam força a partir do final dos anos 1980, entre os evangélicos esse fenômeno é mais recente no Brasil, tendo se intensificado a partir da década de 2000. “Antes, predominava um discurso universalista, que defendia a igualdade de todos perante Deus e enxergava a discriminação racial como qualquer outro pecado”, relata Oliveira, da USP. Segundo o antropólogo, pequenas comunidades autônomas foram as primeiras a se definir como antirracistas e inclusivas. Em 2003, elas criaram o Movimento Negro Evangélico (MNE), que passou a se articular por meio de comunidades on-line e a promover encontros presenciais. Hoje, o MNE reúne organizações, além de lideranças pastorais e eclesiásticas, em 10 estados do país, que desenvolvem ações de enfrentamento ao racismo dentro e fora das igrejas.

Perfil racial

Maioria dos evangélicos se autodeclara como parda, enquanto brancos prevalecem nas religiões afro-brasileiras

Oliveira explica que o movimento é heterogêneo. Busca tanto recuperar as raízes africanas do cristianismo, colocando em evidência a história de personagens bíblicos negros e sua importância à constituição dessa fé, quanto enfrentar o racismo dentro e fora da Igreja. Nesse sentido, ele cita a atuação de Hernani da Silva, fundador da Sociedade Cultural Missões Quilombo, em São Paulo, e da plataforma virtual Afrokut. “Silva defende que a gênese do protestantismo brasileiro remonta ao ano de 1841 e aos trabalhos do pregador Agostinho José Pereira, conhecido como Lutero Negro, no Recife”, comenta o antropólogo. Essa é uma visão que se contrapõe às narrativas tradicionais sobre a disseminação dos evangélicos no país. De acordo com esse ponto de vista, a ascensão de igrejas protestantes ganhou impulso no século XIX por meio da atuação de missionários europeus, especialmente de alemães.

Considerando esse cenário, dados dos censos das últimas décadas apontam para um número curioso. Enquanto nas religiões de matriz africana pessoas brancas têm presença significativa, entre os evangélicos as pessoas autodeclaradas pardas são maioria (ver gráfico abaixo). Em relação ao Censo de 2022, o sociólogo Reginaldo Prandi, da USP, observa uma mudança significativa na composição racial do campo evangélico brasileiro. Ele pontua que, nos últimos 12 anos, a presença de negros entre os evangélicos subiu 7,2%, proporção superior ao crescimento da população negra em todo o país. Na perspectiva do sociólogo, o dado reflete uma transformação cultural ampla, ligada à forma como as pessoas passaram a se identificar e a se reconhecer em termos raciais. Por outro lado, esse crescimento também se deve à migração de fiéis negros que deixaram o catolicismo para ingressar em igrejas evangélicas, especialmente em denominações pentecos-

tais e neopentecostais. “Estamos diante de um fenômeno que não é apenas demográfico, mas simbólico: ele revela um deslocamento no modo como negros e pardos se situam dentro do cenário religioso e como as igrejas passaram a absorver essa presença”, propõe. Prandi destaca, ainda, que durante décadas o catolicismo encolheu na mesma proporção que os evangélicos aumentaram. “No entanto, no último período intercensitário, essa dinâmica mudou. A redução de fiéis católicos diminuiu e a expansão evangélica perdeu fôlego, evidenciando que o Brasil não vai se tornar nos próximos anos um país evangélico”, sustenta.

Em debates sobre questões de gênero nas igrejas evangélicas vem ocorrendo uma ressignificação de pautas feministas, constata a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. A pesquisadora explica que grupos de mulheres evangélicas estão criando iniciativas para combater a violência doméstica a partir da ideia de “feminino”. Essa noção tem se colocado como alternativa ao feminismo e está associada a valores como cuidado, sensibilidade e responsabilidade da mulher pela família. “É uma forma de ressignificar pautas historicamente ligadas ao movimento feminista, como a remuneração desigual ou a necessidade de creches para deixar os filhos, mas por meio de um viés conservador”, analisa. “Trata-se de uma política de gênero que afirma defender os direitos das mulheres, mas em nome da preservação de um modelo específico de família.”

Montero, por sua vez, destaca que a maior parte da população que se declara religiosa no país é feminina. Assim, em todas as tradições, o grupo representa mais de 50% dos fiéis (ver gráfico na página 82). A predominância, observa a antropóloga, está diretamente relacionada à função que as instituições religiosas desempenham na vida cotidiana. “Esses espaços respondem a muitas das necessidades familiares, domésticas e sociais das mulheres pobres do Brasil”, justifica. Segundo a pesquisadora, instituições católicas e evangélicas oferecem assistência em áreas em que o Estado não chega, tanto no apoio material como no acolhimento simbólico (ver Pesquisa FAPESP nº 286 ).

Isso acontece também nos cultos afro-brasileiros, como o candomblé e a umbanda, prossegue Montero. Historicamente perseguidos pelo Estado no passado, eles não eram considerados práticas religiosas até meados do século XX. “Hoje, essas manifestações são reconhecidas pelo poder público como guardiãs dos símbolos da herança africana no Brasil”, detalha Oliveira. Segundo o antropólogo, mesmo terreiros cujos líderes ou

a maioria dos adeptos se declaram brancos podem ser considerados espaços de legitimação da cultura negra.

Além disso, como explica Prandi, enquanto em igrejas cristãs persistem barreiras em relação ao gênero e à sexualidade, o candomblé e a umbanda acolhem essas diversidades. Segundo a crença dessas religiões, cada indivíduo nasce ligado a um orixá e a um odu, que contém seu destino. O odu é responsável por moldar seu jeito de ser. “Assim, o sucesso ou o fracasso da pessoa não dependem somente de mérito, mas de uma combinação entre o que se traz no nascimento e a relação com o mundo, podendo contar com o auxílio dos orixás para uma vida equilibrada e feliz. Os terreiros existem para ajudar a equilibrar essa trajetória, seja qual for a condição da pessoa”, destaca o sociólogo.

Essa abertura se reflete na aceitação de diferentes trajetórias de vida, segundo Prandi. “Os terreiros podem acolher pessoas marginalizadas, como ladrões e trabalhadoras sexuais, por exemplo”, esclarece. O sociólogo afirma que essa característica ajuda a explicar por que tantas pessoas da comunidade LGBT+ frequentam casas de santo. “Nesses locais, indivíduos que não são aceitos em outras religiões encontram condições para se assumirem, sem precisar mudar quem são. Nos ritos afro-brasileiros, todos os gêneros estão presentes. Há inúmeros terreiros chefiados por mulheres, homossexuais e pessoas transgênero”, finaliza o pesquisador. l

Os projetos, os artigos científicos e os livros consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Caminhos de papel

Percurso de editores ajuda a entender a história do mercado de livros no país

MÁRCIA CARINI

“Por que antes de morrer as vítimas recebiam um escaravelho? Como é descoberto o assassino? E quem vai ser o herói? Taí, bicho. Que sorte poder ler esse livro agora, hein?” Com gírias dos anos 1970 e roupas em estilo hippie, um personagem ilustrado interagia com os leitores na contracapa dos livros de maior sucesso da editora Ática naquele momento. Esse mascote encarnava tanto a intuição quanto o saber teórico do editor Jiro Takahashi, idealizador da série Vaga-lume – que a cada lançamento vendia pelo menos 120 mil exemplares. “Era 1973, e ele tinha apenas 26 anos, mas sabia identificar demandas e aplicar, no trabalho de edição, o conhecimento literário vindo de sua experiência como professor”, diz Thiago Mio Salla, docente no Departamento de Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

Salla assina com a pesquisadora independente Ana Claudia Almeida o livro Jiro Takahashi , lançado neste ano pela Com-Arte e pela Edusp. A obra integra a coleção Editando o Editor e traz o relato em primeira pessoa de Takahashi, que atua no ramo editorial brasileiro há quase 60 anos. “Conhecer sua trajetória contribui para entender os meandros do mercado de livros no país”, afirma Salla. Nascido em 1947, na cidade de Duartina (SP), Takahashi se mudou para a capital paulista nos anos 1960 e começou a trabalhar no setor em 1966, como datilógrafo da recém-fundada editora Ática, que ajudou a transformar em

Livros das séries

Vaga-lume e Para Gostar de Ler, além da coleção

Nosso Tempo, criadas pelo editor Jiro Takahashi

gigante editorial. Ao longo do percurso, passou por outras grandes editoras do mercado nacional, como Nova Fronteira, Rocco e Global. Além disso, aventurou-se como publisher, ao fundar a editora Estação Liberdade, em 1990, com Maria Antônia Lobo. Seis anos depois, Takahashi se desligou da empresa, que continua até hoje na ativa com outros sócios. “Mas, como diz em seu relato no livro, se um dia for lembrado por algo que realizou, certamente será por seu trabalho na Ática”, comenta Salla.

Segundo Takahashi, a série Vaga-lume nasceu no contexto da Lei nº 5.692 de 1971, que instituiu uma reforma de ensino no país durante a ditadura militar (1964-1985). Pela legislação, os professores deveriam dar preferência aos livros de literatura escritos por autores brasileiros. Além disso, o ginásio (atual ensino fundamental II) tornou-se obrigatório nas escolas públicas. O editor acompanhava essa movimentação de perto, pois, além de atuar na Ática, tornou-se professor de língua portuguesa no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) em 1970. “Os alunos também começaram a pedir outras leituras. Não se sentiam estimulados por livros como Iracema [1865], A moreninha [1844] e foram descobrindo outros autores. Já não era Cazuza [1938], de Viriato Correia [1884-1967]. Em 1969, descobriram O gênio do crime, de João Carlos Marinho [1935-2019], que foi

uma febre. A maioria dos professores não indicava esse livro, porque poderia não ser politicamente correto. E era, talvez, justamente por isso que a meninada gostava. Isso acendeu uma luz para nós da Ática”, lembra no livro.

A série Vaga-lume estreou em 1973, com o livro A ilha perdida , de Maria José Dupré (1898-1984). Naqueles primórdios, Takahashi prospectou outros escritores para a série, sugerindo adaptações em seus textos sempre que necessário. O caso mais emblemático é o do livro O escaravelho do diabo, lançado no ano seguinte. Escrito por Lúcia Machado de Almeida (1910-2005), o romance policial já havia sido publicado em fascículos na revista O Cruzeiro, nos anos 1950. No texto original, os personagens usavam o pretérito-mais-que-perfeito em suas falas, como “cantara” e “andara”. A pedido de Takahashi, a autora aceitou adotar uma linguagem mais coloquial para a época. “Para mim, editor é isto: se não conversar com o autor e com o leitor, não pode aperfeiçoar o seu trabalho”, justifica Takahashi. Em 1978, Takahashi acatou uma sugestão do escritor Affonso Romano de Sant’Anna (1937-2025) e criou mais um sucesso de público: a série Para Gostar de Ler. Pensada para estudantes do ensino fundamental, a antologia reuniu a princípio crônicas de quatro autores, cujos trabalhos já eram publicados nos livros didáticos: Carlos Drummond

de Andrade (1902-1987), Fernando Sabino (1923-2004), Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Rubem Braga (1913-1990). No primeiro semestre de lançamento, a série vendeu 200 mil exemplares. A coleção Nosso Tempo, idealizada também pelo editor, era voltada a estudantes de ensino médio e universitário. O primeiro lançamento foi O pirotécnico Zacarias, em 1974, de Murilo Rubião (1916-1991), autor indicado a Takahashi por três professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP: os críticos literários Antonio Candido (1918-2017), Davi Arrigucci Jr. e o então mestrando Jorge Schwartz, cuja dissertação tratou da obra do escritor mineiro. Ao nome de Rubião, somaram-se outros como o de Clarice Lispector (1920-1977), que publicou A legião estrangeira (1977) pela coleção.

Em agosto, Takahashi esteve na FFLCH-USP para o evento Centenário de Marcos Rey – O Legado da Série Vaga-lume. Rey (1925-1999), importante nome da literatura infantojuvenil brasileira, tornou-se amigo de Takahashi. “Dele, eu guardo um volume considerável de correspondências em meu arquivo pessoal”, conta o editor no livro. Porém muitos documentos que pertenciam ao arquivo da Ática se perderam depois que a editora foi vendida, em 1999. Nem mesmo o editor Paulo Verano, que relançou a série Vaga-lume em 2014 na Ática Scipione, encontrou esse histórico.

Exatamente pela quantidade tão pequena de registros da história do livro no Brasil, é surpreendente se deparar com o volumoso arquivo de Jorge Zahar (1920-1998), que em 1956 fundou com os irmãos Ernesto e Lucien a Zahar Editores, no Rio de Janeiro. O acervo inclui 2.771 itens como cartas, catálogos e pareceres sobre originais. Ao saber que essa coleção havia sido doada em 2020 pela família do editor ao Centro de Pesquisa e

Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), na capital fluminense, o jornalista Marco Aurélio Fiochi, formado pela ECA-USP, decidiu investigar o material.

Na pesquisa de doutorado, defendida em 2025 na FGV CPDOC, Fiochi se debruçou sobre a correspondência trocada pelo editor com personalidades como o sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o filólogo Antônio Houaiss (1915-1999). A análise desse material foi publicada no livro Os papéis do editor – Conversas sobre livros e amizade nas cartas do arquivo de Jorge Zahar (edição independente, 2025). “Zahar copiava as próprias cartas antes de enviá-las e as guardava em sua editora”, conta Fiochi, referindo-se aos documentos que vão dos anos 1950 até a morte do editor, em 1998.

Capas de alguns dos livros lançados pela Zahar Editores e, na foto, a partir da esquerda, Jorge Zahar e o irmão Ernesto (ambos de branco), com o vendedor Newton Feitosa, no estoque da livraria Ler, nos anos 1940

Segundo o pesquisador, Zahar também era cuidadoso ao armazenar comunicados da editora, como o informe de lançamento do Manual de sociologia, de Jay Rumney (1905-1957) e Joseph Maier (19112002), professores da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos. Publicado em 1957, foi o primeiro livro da casa. No documento, Zahar apresentava a missão da editora de publicar traduções de obras universitárias, com rigor metodológico e linguagem compreensível ao leitor não especializado. Para atingir esse objetivo, o editor se reservava o direito de alterar os títulos originais. “Ele criava títulos com palavras como ‘manual’ e ‘dicionário’ para reforçar que eram obras de interesse geral”, explica Fiochi.

A expertise de Zahar para compreender o que os intelectuais queriam ler vinha da sua experiência como livreiro. Ele começou importando livros em 1940 e, mais tarde, em 1946, tornou-se proprietário, com os irmãos, da livraria Ler. Localizada próxima da Faculdade Nacional de Filosofia (que deu origem ao atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro), no centro carioca, a loja atraía o público universitário. “Na época, os livros de ciências sociais eram em geral importados. Eles passaram a ser traduzidos e publicados no país em maior volume a partir da década de 1950 durante o governo de Juscelino Kubitschek (1902-1976), que incentivou o desenvolvimento da indústria em geral no país. A criação da Zahar situa-se nesse contexto de modernização”, conta o pesquisador.

Se no início a editora investiu em tradução, a partir do final dos anos 1960 abriu espaço para autores brasileiros. Um dos títulos lançados pela casa no período foi o primeiro livro da economista Maria da Conceição Tavares (1930-2024), Da substituição de importações ao capitalismo financeiro (1972). Zahar costumava dizer que “O editor é o seu catálogo” e prezava a coerência de suas escolhas. “As cartas do arquivo mostram sua rede de sociabilidade com pessoas do mundo acadêmico. Essa troca o ajudou a construir um vasto repertório de estudos para as universidades no Brasil”, constata Fiochi.

Segundo a historiadora Fabiana Marchetti, a editora não estava sozinha naquele momento. “Além da Zahar, a Civilização Brasileira, inaugurada em 1929 no Rio de Janeiro, mas que ganha expressão no final dos anos 1950 pelas mãos de Ênio Silveira [1925-1996], e a paulistana Difel, dirigida pelo engenheiro francês Paul Monteil [1907-1973], publicaram obras de referência que ajudaram a formar gerações de intelectuais”, conta a pesquisadora, que defendeu, em 2023, a tese de doutorado “Livraria Francesa e Difel: Economia do livro, sociabilidade literária e pensamento universitário em São Paulo (1947-1982)”, na FFLCH-USP. O trabalho, que teve apoio da FAPESP, venceu a categoria História do Prêmio Capes 2024, promovido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Na pesquisa, Marchetti recupera a trajetória das duas empresas fundadas por Monteil, em São Paulo. Uma delas, a Livraria Francesa, foi aberta em sociedade com sua esposa, Juliette Monteil (1908-1997), em 1947, no centro da cidade. Dois anos mais tarde, o estabelecimento radicou-se na rua Barão de Itapetininga, também no centro, e comercializava livros de autores franceses, especialmente na área de humanidades e ensino da língua. Em 1951, Monteil abriu a editora Difel, sigla de Difusão Europeia de Livros. “O intuito inicial era publicar traduções de obras francesas vindas de Portugal, como representante da editora Bertrand no Brasil. A iniciativa, que se iniciou com a sociedade entre o casal Monteil e os livreiros franceses Marcel Didier e Georges Lucas, contava com o apoio do Ministério das Relações Exteriores da França”, relata Marchetti. “Mas, em pouco tempo, Monteil iniciou um programa de publicações que conciliava traduções feitas por brasileiros e a seleção de textos de acadêmicos nacionais para construir o catálogo da editora.”

Entre as coleções da Difel figuram Corpo e Alma do Brasil, de 1957, e História Geral da Civilização Brasileira, lançada em 1960. A primeira, criada para dar vazão à crescente pro -

dução acadêmica em São Paulo, foi coordenada por Fernando Henrique Cardoso a partir de 1960. Já a outra, dirigida nos anos iniciais pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), inspirava-se na coleção francesa Histoire Génerale des Civilisations, publicada pela Editora Universitária da França (PUF). “A Corpo e Alma do Brasil fez com que a Difel ficasse conhecida por publicações que representavam setores de oposição à ditadura militar”, defende a historiadora. Ao pesquisar os arquivos do Departamento de Ordem e Política Social (Dops), Marchetti localizou a ficha do editor, que militou na rede clandestina do Partido Comunista nos anos 1940, e continuou próximo da agremiação nas décadas seguintes. “Monteil precisou se esconder por um período após o golpe militar de 1964, mas a linha de publicações da Difel se manteve coerente até a morte dele, em 1973”, afirma a historiadora. Três anos depois, a editora foi vendida para a Civilização Brasileira, que, por sua vez, passou a pertencer à Record em 1982. A Livraria Francesa ficou por 70 anos no mesmo endereço. Em 2021, transferiu-se para um espaço menor no bairro Moema. Hoje, mantém suas atividades apenas on-line. l

O projeto e os livros consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Em sentido horário, obras das coleções História Geral da Civilização Brasileira, Corpo e Alma do Brasil e Saber Atual, publicadas pela Difel

memória

O sonho da autonomia

Nos anos 1940, uma ampla campanha de doações permitiu a construção em São Paulo de um hospital para tratar pessoas com câncer

MARIANA CECI

Recém-formado pela Faculdade de Medicina, que mais tarde se integraria à Universidade de São Paulo (FM-USP), Antônio Prudente de Meireles de Morais (1906-1965) embarcou em 1928 para uma especialização em cirurgia plástica na Alemanha. Seu propósito era aprender novas técnicas para correção de marcas deixadas por tumores de pele com o cirurgião Franz Keysser (1885-1942), pioneiro na eletrocirurgia – o uso de bisturi elétrico para remover tumores considerados inoperáveis e cauterizar a região, evitando infecções. Nessa época, na Europa, outras descobertas científicas, como a radioatividade e o raio X, abriram novas perspectivas para o tratamento de algumas formas do ainda misterioso câncer. Prudente voltou três anos depois, trazendo um bisturi elétrico e novas ideias para aprimorar o atendimento a pessoas com câncer no Brasil. Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, já contava, desde 1922, com o Instituto do Radium, primeiro centro médico do país a usar radioterapia no tratamento do câncer, construído com o apoio do governo do estado (ver Pesquisa FAPESP nº 230). No Rio de Janeiro, o médico Mário Kröeff (1891-1983) havia criado em 1937 o Centro de Cancerologia do Serviço de Assistência Hospitalar do Distrito Federal, que mais tarde se tornaria o Instituto Nacional de Câncer (Inca).

Em São Paulo, como em outros estados, a mesma equipe do Serviço Sanitário que lidava com hanseníase e doenças venéreas tratava também de pessoas com câncer, então visto como contagioso.

Nas três décadas seguintes, Prudente pôs em campo uma estratégia que se mostrou original, por ter permitido a construção de um hospital financiado diretamente pela população, por meio de uma ampla campanha de arrecadação de recursos, e que foi o primeiro no país a integrar assistência, pesquisa, ensino e educação popular sobre o câncer. Até então, os hospitais eram ligados ao governo ou a instituições religiosas ou a colônias de imigrantes.

A meta de Prudente alinhava-se com o pensamento dos paulistas na época. Em um artigo publicado em dezembro de 2024 na revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos, os historiadores Elder Al Kondari Messora e André Mota, da FM-USP, evidenciaram a singularida -

de da proposta paulista de combate ao câncer, marcada pela defesa de maior autonomia em relação à federação. Era a mesma motivação do Movimento Constitucionalista de 1932, o conflito armado liderado pelo estado de São Paulo contra a centralização política promovida pelo governo provisório de Getúlio Vargas (1930-1934). “A perspectiva de implantar novas estratégias de combate ao câncer, como a arquitetura e a literatura do início do século XX, expressava o desejo de um estado independente, com voz própria”, comenta Messora, que defendeu em abril

o doutorado sobre a história do câncer em São Paulo, sob a orientação de Mota.

Logo após voltar a São Paulo, Prudente assumiu o cargo de professor assistente na FM-USP e, para conseguir apoio popular para suas ideias e levar seus planos adiante, começou a escrever em publicações voltadas para um público amplo. “A partir da década de 1920, o câncer começou a ganhar espaço nos jornais, nos anuários estatísticos e demográficos”, observa Messora.

Em 31 de outubro de 1933, O Estado de S. Paulo publicou o primeiro de uma série de cinco artigos – republicados dois anos depois no livro O câncer precisa ser combatido –, por meio dos quais Prudente chamava a atenção para a doença, até então discutida apenas entre médicos. Ele defendia o diagnóstico e tratamento nos estágios iniciais e clamava por campanhas educativas que informassem a população sobre os riscos de contrair câncer, como o tabagismo.

A seu ver, caberia ao governo central apenas coordenar as iniciativas estaduais e consolidar o controle estatístico, enquanto o poder público paulista seria responsável por manter a infraestrutura de atendimento. Os serviços de saúde, ele defendia, precisavam estar organizados para garantir o diagnóstico precoce, o

Ilustração do cartunista Ziraldo para campanha de prevenção ao câncer na década de 1990 (à esq.), mantendo as preocupações do início do século XX; anúncio de tratamento de raios X, com aparelho trazido da Europa, final do século XIX (acima). Carmen e Antônio Prudente em 1938

acesso a tratamentos de acordo com as técnicas mais adequadas a cada caso, o desenvolvimento da pesquisa científica e o registro sistemático da doença. Para Prudente, essa engrenagem deveria ser supervisionada por uma inspetoria central, inspirada no modelo já existente para o controle da lepra.

Após alguns esforços frustrados de ganhar adesão pública à sua proposta, Prudente decidiu que o melhor caminho para gerar ações efetivas seria criar o que na época se chamava liga contra o câncer. Em 1935, fundou a Associação Paulista

de Combate ao Câncer (APCC), dirigida por seu antigo professor da FM-USP, Antônio Cândido de Camargo (1864-1947). Formar associações era uma forma relativamente comum de promover campanhas educativas e arrecadar recursos, por meio da filantropia, compensando a incapacidade do poder público para lidar com esse problema. Em 1936, o médico baiano Aristides Maltez (1882-1943) criou a Liga Bahiana contra o Câncer, conseguiu doações com a elite de Salvador, complementada com recursos do governo do estado, e começou a construir um hospital batizado com seu nome, inaugurado em 1952 e ainda hoje uma das referências nessa área na Bahia.

Segundo Messora, o que diferenciou a APCC das outras ligas foi a intensa participação popular e a capacidade de mobilização da jornalista gaúcha Carmen Annes Dias (1911-2001), que transformou também a vida de Antônio Prudente. Eles se conheceram em 1938 a bordo de um navio que levava uma comitiva de médicos brasileiros à Alemanha. Ela era secretária de seu pai, Heitor Annes Dias (1884-1943), médico pessoal de Vargas (1882-1954). Casaram-se em dezembro do mesmo ano, no Rio de Janeiro.

Disposta a ajudar o marido a criar um hospital voltado ao diagnóstico e tratamento do câncer em São Paulo, Carmen

Santa Casa da Misericórdia, um dos primeiros locais a atender pessoas com câncer no Rio de Janeiro, cerca de 1895 (à esq.). Aparelho de eletrocirurgia desenvolvido na Alemanha e aprimorado no Brasil (abaixo)

lançou em 1940 as primeiras ações para arrecadar doações, por meio de festivais culturais e da participação de senhoras da alta sociedade paulistana. Em 1946, fundou a Rede Feminina de Combate ao Câncer, que, em apenas três meses, arrecadou 7,5 milhões de cruzeiros, quase 20 mil vezes o salário mínimo da época. Capital federal, o Rio andou mais rápido, criando em 1941 o Serviço Nacional do Câncer (SNC), que colocaria a doença na agenda de saúde pública nacional. “A criação do SNC resultou de uma ação política muito forte, porque a incidência de câncer no Brasil era muito pequena nessa época”, destaca o historiador Luiz Antônio Teixeira, da Casa Oswaldo Cruz (COC) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um dos coordenadores do livro O câncer no Brasil: Passado e presente (Outras Letras, 2012). Kröeff, em vista de sua atuação nessa área, foi nomeado o primeiro diretor do SNC, cargo que Prudente também ocuparia duas vezes ao longo de sua carreira.

Em São Paulo, Prudente buscava parcerias para implementar suas ideias. Seu primeiro espaço de atuação foi o chamado hospital japonês, criado em 1920 na Vila Mariana pelo governo do Japão para prestar assistência médica a imigrantes que enfrentavam dificuldades com a língua e que foi apropriado pelo governo brasileiro em 1939, após o rompimento das relações diplomáticas dos

dois países por causa da Segunda Guerra Mundial. No então renomeado Hospital Santa Cruz, em 1946, o médico paulista implantou uma clínica de tumores, provavelmente a primeira na capital paulista.

Nas campanhas lideradas por Carmen, qualquer pessoa poderia doar o quanto quisesse. Humberto Torloni (1924-2017) era estudante de medicina quando percorreu fábricas e tecelagens do bairro do Brás, onde dava aula, à noite, e explicava que quem doasse o valor correspondente a um dia de trabalho, se tivesse câncer, seria tratado de graça quando o hospital estivesse pronto. “Também usei a rede escolar, conversava com as professoras, a diretora e as crianças”, ele contou em entrevista concedida em 2014 (ver Pesquisa FAPESP nº 216 ). “Esse trabalho me custou três segundas épocas, porque tinha de estudar, trabalhar à noite e ainda recolher dinheiro.” Com o que arrecadou, Torloni conseguiu uma das vagas oferecidas aos residentes.

Com projeto do arquiteto Rino Levi (1901-1965), um dos expoentes da arquitetura nacional na época, a construção do Hospital Antônio Cândido Camargo, que logo se tornaria conhecido como A.C.Camargo, começou em 1948 em um terreno doado pelo governo do estado no bairro da Liberdade. Em abril de 1953, entrou em funcionamento, com um corpo clínico de 92 especialistas, incluindo médicos, cirurgiões, radioterapeutas e laboratoristas.

O sonho da autonomia do poder público, porém, não se sustentou por muito tempo. Messora, em um artigo publicado em dezembro de 2021 na Revista

Brasileira de História da Ciência , conta que Prudente logo teve dificuldades para cobrir as despesas e, em novembro de 1956, conseguiu uma doação de Cr$ 28 milhões do governo federal para manter o atendimento gratuito a indigentes. Dois anos depois, ele teve de fechar um terço dos leitos destinados a pacientes não pagantes, já que os repasses do governo eram irregulares. “Mais tarde ele precisou recorrer à ajuda do presidente Juscelino Kubitschek [1902-1976], que perdoou as dívidas públicas do hospital”, conta Messora. Em novembro de 1961, o hospital se tornou uma instituição de ensino complementar da USP.

“No início, a principal forma de tratar o câncer eram as cirurgias, geralmente

Acima, sala de cirurgia do Serviço Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, na década de 1950. Rino Levi ( primeiro da esquerda para a direita) e Prudente (terceiro) ao lado de dois homens não identificados, diante das obras do Hospital A.C.Camargo

amplas, por falta de outras formas efetivas de tratamento”, conta o cirurgião Ademar Lopes, 79 anos. Ele chegou ao hospital em 1974, logo depois de se formar na Faculdade Federal de Medicina do Triângulo Mineiro, em Uberaba, Minas Gerais, e foi convidado a continuar. Lopes não conheceu Antônio Prudente, que morreu em 1965, aos 59 anos, no Rio de Janeiro, em decorrência de complicações relacionadas ao diabetes, mas conviveu com Carmen. “Ela chamava a nós, residentes, de ‘os meninos’”, recorda-se. Ele via que, quando faltava dinheiro, ela procurava empresários e outros possíveis doadores, para manter o hospital funcionando.

Rebatizado em 2013 como A.C.Camargo Cancer Center, o hospital tornou-se um dos principais centros de atendimento, ensino e pesquisa no país. Em 2025, seus especialistas começaram a trabalhar com equipes de hospitais públicos no treinamento remoto de médicos para acelerar o diagnóstico de câncer no país.

“O passo primordial do combate ao câncer ainda é o diagnóstico precoce e o início imediato da forma mais adequada de tratamento”, reforça Lopes. As preocupações de Prudente, Kröeff e outros médicos de quase um século atrás continuam vivas (ver entrevista na pág. 22). l

Os artigos científicos e os livros consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

Na onda do K-pop

A tradutora Yun Jung Im migrou da química para letras e ajudou a criar o curso de bacharelado em língua coreana na USP

Nasci em Pohang, cidade portuária na costa sudeste da Coreia, na década de 1960. Quando eu tinha 7 anos, minha família foi morar em Seul para que eu pudesse estudar. Mal tinha começado o quarto ano, quando meus pais resolveram imigrar para o Brasil.

Durante a Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953, parte da população norte-coreana migrou para a parte sul, que inchou. Isso fez com que, no início da década de 1960, o governo coreano praticasse uma política ostensiva de emigração para aliviar a pressão interna. O Brasil foi o primeiro país desse programa a receber oficialmente os coreanos, em 1963.

Minha família chegou mais tarde, em 1973, quando o governo brasileiro não participava mais dessa iniciativa. Era difícil entrar, mesmo para quem tinha visto, como era o nosso caso. Foi um tempo de muita dificuldade e insegurança porque meus pais chegaram a ser deportados para o Paraguai, en -

quanto eu e meu irmão caçula ficamos com uma tia que vivia em São Paulo. A questão do nosso visto só seria resolvida de fato meses depois, com a ajuda de um conhecido, que foi até a embaixada desembaraçar o caso.

Eu queria fazer letras, pois sempre li muito, mas tinha medo dessa escolha porque achava que nunca dominaria perfeitamente o português. Além disso, não tirava da cabeça a frase do meu pai, quando insinuei, aos 10 anos, que queria ser escritora: “Filha, ser escritor é passar fome e frio”. Decidi então fazer química na Universidade de São Paulo [USP], talvez a menos exata das ciências exatas. Em 1986, completei o curso. Não tive coragem de largá-lo.

Durante a faculdade, passei uma temporada pegando carona com um colega de turma, Ivan Pérsio de Arruda Campos [1962-2022], com quem eu dividia o combustível e os “papos-cabeça” sobre livros e músicas. Ivan era filho único do poeta Haroldo de Campos [1929-2003], e

a edição em coreano do romance Ulisses, de James Joyce [1882-1941], foi a deixa para que eu fosse apresentada ao pai dele. Haroldo me pediu que lesse o monólogo de Molly Bloom, personagem do livro. A partir dali, passei a traduzir poesia coreana para o Haroldo.

Encorajada por ele, no último ano de química prestei vestibular para letras, também na USP. Passei um ano fazendo as duas faculdades. No segundo ano de letras, o governo coreano abriu vagas para um programa de bolsas para filhos de coreanos no exterior. Tranquei a faculdade e, em 1987, fui para Seul, onde fiz o mestrado em literatura moderna na Universidade Yonsei. Isso foi possível porque eu tinha a graduação em química.

A literatura coreana moderna começou no século XX e já era bastante estudada. Escolhi pesquisar a obra de um autor menos conhecido, o contista Joo Yo-seop [1902-1972]. Enquanto fazia mestrado, traduzia notícias na rádio KBS, que transmitia conteúdos em várias línguas.

Terminei o mestrado em 1990 e voltei decidida a retomar o bacharelado em letras. Dois meses após minha chegada, na festa de aposentadoria do Haroldo como professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [PUC-SP], ele me dissuadiu da ideia: “Eu sou advogado, o Boris Schnaiderman [tradutor que ajudou a implantar o curso de língua e literatura russa na USP] é engenheiro, não tem sentido você voltar à graduação”.

No doutorado em literatura na PUC-SP, entre 1991 e 1995, fiz a tese “Tradução cultural da poesia: Um olhar sobre o extremo-oriente”. A tradução cultural de poesia busca enfatizar os aspectos culturais da língua que está sendo traduzida, enquanto o estruturalismo e a semiótica, muito em voga na época, lidam mais com a forma.

Foi uma luta fazer o doutorado porque eu trabalhava muito. Entre 1991 e 1994, lecionei em um curso extracurricular de coreano na USP financiado pela Korean Culture and Arts Foundation [Fundação de Cultura e Arte Coreana], ligada ao governo. Era aberto ao público em geral, mas atraía filhos de coreanos ou então brasileiros em relacionamento amoroso com coreanos.

No final de 2004, o presidente da Korean Foundation visitou a USP e sugeriu ao então reitor, Adolpho José Melfi, que abrisse na universidade um curso de coreano. Como já havia visitado a Coreia, o reitor se interessou pela ideia.

Numa primeira fase, o curso extracurricular virou disciplina optativa com créditos, sendo oferecida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas [FFLCH]. Foi Antonio Menezes, professor de chinês na FFLCH, quem acabou por encampar a ideia de um curso regular de coreano na USP. Fazia 40 anos que a faculdade não abria um curso novo.

Ocurso foi aprovado em meados de 2012 e as aulas começaram no ano seguinte. Nasceu com 15 vagas e conseguimos preencher 13 delas. A maioria dos alunos era fã da cultura pop sul-coreana, sobretudo do K-pop, gênero de música que se tornou sucesso mundial. A hallyu [onda coreana] começou no Brasil por volta de 2012, então acertamos o timing Mais tarde, em 2018, fui contratada em regime de dedicação integral. Hoje, o curso, que é feito em quatro anos, oferece 25 vagas.

Além do K-pop, a hallyu abarca também o K-drama, séries de televisão produzidas na Coreia do Sul que atingem um público mais amplo. Para se ter ideia, hoje não temos nenhum aluno coreano matriculado no curso. Em 2023, o coreano foi a habilitação mais concorrida dentre os cursos do Departamento de Letras, com uma nota de corte de 9,2, superando o inglês. É o único curso de bacharelado em língua coreana da América do Sul.

Im com o poeta Haroldo de Campos em 1999, na Casa das Rosas, na capital paulista, e, na outra página, no Bom Retiro, considerado o bairro coreano de São Paulo

SAIBA MAIS

Bacharelado em língua coreana da USP

A inteligência artificial [IA] está cada vez mais presente em nosso campo de atuação. Quem trabalha com o par coreano-inglês já deve estar sentindo algum impacto disso, inclusive em termos financeiros. Minha sorte é que o par português-coreano é mais complicado. O português é uma língua dificílima, mesmo para os nativos. A máquina me ajuda em certas traduções, quando não lembro a palavra exata em português. Aí vejo se a aproveito ou não. Mas há tantos absurdos vindos da IA que os bons tradutores talvez sejam mais valorizados a partir de agora. No Brasil, o trabalho do tradutor literário não é valorizado. Em geral, as editoras pagam um valor fixo por lauda, independentemente de o livro vender 10 ou 10 mil exemplares.

Tenho muito carinho pela tradução que fiz do livro A vegetariana , de Han Kang [vencedora do prêmio Nobel de Literatura no ano passado]. Sou responsável pela primeira versão, lançada em 2013 pela Devir, antes do hype em torno da obra e da autora. Na época, assinei um contrato de tradução com pagamento de direitos autorais. Pelo trabalho, recebi o Prêmio de Tradução Literária pelo Literature Translation Institute of Korea [Instituto Coreano de Tradução Literária], no ano seguinte. Quando o livro ganhou o Man Booker International Prize em 2016, no Reino Unido, a agente literária de Han repassou a obra no Brasil à editora Todavia, que não concordou em me pagar os direitos e acertou com outro tradutor.

No momento, estou começando a preparar minha tese de livre-docência. Nos últimos anos, investiguei temas como a hallyu e a concentração de imigrantes no bairro paulistano do Bom Retiro. Agora, quero retomar a tradução cultural da poesia, questão que estudei no doutorado. Promete ser um bom mergulho. l

DEPOIMENTO CONCEDIDO A MÔNICA MANIR

O Brasil e a identidade latino-americana

ABernardo Ricupero

Editora Alameda

368 páginas

R$ 119,00

identidade da América Latina e o lugar do Brasil no continente são temas clássicos que encontram uma original e feliz abordagem no livro de Bernardo Ricupero. Para ele, tanto a ideia de América Latina quanto a de Brasil não são naturais, fixas ou atemporais, mas construídas historicamente. Sua questão central é como um conjunto de autores refletiu sobre a s identidades latino-americana e brasileira por meio das metáforas da peça A tempestade, de William Shakespeare. Escrito no século XVII, o texto do dramaturgo inglês se prestou a uma variada gama de interpretações, que a partir do romantismo passaram a realçar o contexto colonial americano e a alterar o significado dos protagonistas, em especial Próspero, Ariel e Caliban. O livro de Ricupero possui diversos méritos, destacando-se: a análise do processo de circulação e reelaboração da ideia de América Latina, a reconstituição de importantes debates sobre a identidade continental e, principalmente, uma abordagem a partir do Brasil, analisando como tais discussões repercutiram no ambiente intelectual e politico nacional. São demarcados três grandes momentos do debate identitário. O primeiro deles, denominado Ariel, definido pelas diferenças culturais entre latinos e anglo-saxões; o segundo, Caliban, de crítica radical do colonialismo; e, finalmente, Próspero, de desilusão com a modernidade norte-americana.

A publicação do opúsculo Ariel pelo uruguaio José Enrique Rodó, em 1900, foi decisiva para forjar a identidade latino-americana ao pautar os valores de toda uma geração que formou uma rede intelectual espalhada entre a América Latina e a Europa. O narrador era Próspero, um velho professor que se despedia dos discípulos alertando-os sobre o choque entre as duas grandes civilizações das Américas, desafio a ser enfrentado por meio de valores humanistas. Ele sintetizou o clima ideológico de repúdio aos Estados Unidos, que haviam tomado à força Cuba, Porto Rico, Filipinas e Guam do domínio espanhol, em 1898.

Os latinos foram identificados com a personalidade idealista, culta e racional de Ariel, o gênio do ar; e os anglo-saxões com os atributos negativos associados a Caliban, o escravo deformado: utilitarismo, materialismo e barbárie. Dessa

forma, o uruguaio atualizou e fortaleceu o sentido anti-imperialista da expressão América Latina, criada pelos opositores do expansionismo norte-americano sobre o México e o Caribe, em meados do século XIX.

É muito interessante a análise dedicada ao Brasil no contexto arielista. A Proclamação da República estimulou a aproximação com a América Latina, mas permaneceu a forma ambígua de o Brasil se reconhecer como parte da região, tradicionalmente associada ao atraso e ao caudilhismo. Apesar das raízes culturais ibéricas e de certos problemas comuns aos países, intelectuais brasileiros e hispano-americanos estreitaram laços apenas de forma limitada. Parece, assim, acertada a hipótese de Ricupero de que, mais do que influência recíproca, houve afinidade entre eles, que acabaram trilhando caminhos paralelos e convergentes.

Por sua vez, o terceiro momento é de inflexão, definido pela inversão do significado dos personagens. É demarcado pela publicação do ensaio Caliban , do escritor cubano Roberto Fernández Retamar em 1971. Longe do idealismo arielista, tratava-se de valorizar a figura do escravizado como símbolo da revolta dos oprimidos da América Latina contra o capitalismo e o imperialismo. Não deixa de surpreender a tese de que essa etapa teria se iniciado justamente no Brasil, com o advento do modernismo em busca de uma autêntica cultura nacional. Para Ricupero, ao questionar a Europa a partir da América, o Movimento Antropofágico teria desenvolvido nada menos que uma visão pós-colonial avant la lettre.

Por fim, a última parte se detém no debate em torno da obra do norte-americano Richard Morse, em especial O espelho de Próspero, livro publicado no Brasil em 1988. O historiador constatava uma profunda crise da civilização norte-americana e da própria modernidade ocidental em contraste com as possibilidades de uma outra modernidade, ibero-americana, alimentando as polêmicas sobre as alternativas para o Brasil e a América Latina no contexto da redemocratização. Uma leitura mais que oportuna quando as duas Américas voltam a se chocar.

José Luis Beired é professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Entre Ariel, Caliban e Próspero: Dilemas da identidade (latino) americana pensados a partir do Brasil

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Eu também sou apaixonada e grande defensora da universidade (“Em defesa do diálogo”, entrevista com Maria Hermínia Tavares de Almeida, edição 355). Para quem veio da periferia e é filha da classe trabalhadora, foi na universidade que encontrei o conhecimento, as discussões de ideias, meu salário e minha realização pessoal. Uma pena que hoje seja um lugar tão desvalorizado, como podemos ver nos comentários do Instagram. Para o pobre, estudar ainda é uma revolução.

Marcia Sgarbieiro

VAPES

Sou professora da 1ª série do ensino médio e o tema da redação que estamos trabalhando é exatamente sobre vapes (“Armadilha para jovens”, edição 354). Levarei essa pesquisa para a sala de aula.

Jaíne Marques

COMBUSTÍVEL DE CARBONO

O CO 2 é o produto final e o mais estável da combustão e sua conversão em combustíveis, antes impossível, se dá por uso intenso de energia que somente se justifica se for de fonte renovável, como mostrado na reportagem de Domingos Zaparolli (“Quando o carbono vira combustível”, edição 354). A natureza já faz isso por meio da fotossíntese, e não encontramos ainda catalisador mais eficiente do que a clorofila.

Adilson Roberto Gonçalves

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Seria importante fazer um recorte dos mestres e doutores por área do saber (“Diversidade limitada”, edição 355). Creio que haverá áreas em que tal discrepância racial será maior do que aquela evidenciada no cômputo geral.

Rodrigo Richard da Silveira

PROTESTO INDÍGENA

Belíssima pesquisa, tão interessante quanto necessária (“Um protesto indígena no século XVII”, edição 355). Parabéns à equipe que se dedicou a esse trabalho minucioso. Que outros acervos ainda desconhecidos tragam mais peças para esse quebra-cabeça incompleto que é a história.

Tatiana Bukowitz

VÍDEO

Parabéns ao grupo todo do Cemaden, mas especialmente ao pesquisador Harideva Egas, que puxou esse estudo quando iniciou o mapeamento incrível das cicatrizes do Rio Grande do Sul logo após o desastre de 2024 (“Terras gaúchas ainda frágeis”). É um dado fundamental para entendermos os processos geo-hidrológicos em áreas vulneráveis, como a Serra Gaúcha.

Cláudia de Albuquerque Linhares

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Uma selva de insetos

De cima de uma folha a 1,5 metro do chão, a fêmea de louva-a-deus da espécie Choeradodis rhomboidea observava a passagem de entomólogos armados de lanternas na noite amazônica da Reserva Biológica ZF2 do Instituto Nacional de Pesquisa Amazônica (Inpa), a 80 quilômetros ao norte de Manaus. Acabou coletada, como parte de um levantamento que documenta os insetos nos diferentes estratos da floresta, do chão ao topo das árvores, em um projeto coordenado pelo biólogo Dalton Amorim, do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Além de identificar os animais por estudo morfológico e genético, a iniciativa também envolve a divulgação dessa biodiversidade por meio do perfil @bio_insecta no Instagram.

Imagem enviada pelo biólogo Leandro Magrini, bolsista do Programa Jornalismo Científico na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP

A AMAZÔNIA CONTEMPORÂNEA E OS DESAFIOS DA JUSTIÇA SOCIAL

das 14h às 15h30

EVENTO PRESENCIAL

CHRISTIANE

TAUBIRA

Ex-ministra francesa e economista franco-guianense

Sua atividade parlamentar é marcada por diversas leis, como, por exemplo, a que proíbe as minas terrestres e a assinatura pela França da Convenção Internacional de Ottawa, a que reconhece o tráfico de escravizados e escravização como crimes contra a humanidade e a que reconhece os efeitos dos testes nucleares franceses nas populações civis e militares. Já a atividade ministerial ganhou notoriedade com a lei que permite o casamento entre os casais homossexuais, a lei que reforma as políticas penais e prisionais, a modernização do quadro legislativo de combate à corrupção e lavagem de dinheiro, a criação da Procuradoria Nacional das Finanças (PNF) e a atualização do direito contratual.

É doutora honoris causa da Universidade de Wisconsin-Milwaukee, da Universidade Livre de Bruxelas, da Universidade de Genebra e da Universidade McGill de Montreal. www.fapesp.br/conferencias

Foto:

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