Zika | Microcefalia

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6% março de 2016  www.revistapesquisa.fapesp.br

venda proibida

exemplar de assinante

Pesquisa FAPESP março de 2016

n.241

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Distribuída por 24 cidades, Unesp chega aos 40 anos Brasil tem a maior diversidade de plantas do mundo Especialista nos efeitos da poluição, Paulo Saldiva sugere mudanças na mobilidade urbana Biovidro em próteses evita rejeições e acelera integração com o osso

2012

2013

2014

Zika

2015

32 cm

30,7 cm

microcefalia

Doença de Chagas: sistema de defesa ataca parasitas dentro das células

Sem dados consistentes, país ainda não conhece a dimensão do problema

Figurinos contam a história do teatro brasileiro

34,1%

34,1%

30,3 cm n.241

13,6% 2,1% 0,1%

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FAPESP oferece recursos para Pesquisa em Pequenas Empresas em São Paulo Chamada de Propostas para o Programa FAPESP Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE)

As solicitações de financiamento devem apresentar projetos de pesquisa, que podem ser desenvolvidos em duas etapas: • Fase 1: pesquisa para demonstrar a viabilidade tecnológica de um produto ou processo, com duração máxima de nove meses e recursos de até R$ 200 mil. • Fase 2: pesquisa para desenvolver o produto ou processo inovador, com duração máxima de 24 meses e recursos de até R$ 1 milhão. Se os proponentes já tiverem realizado atividades tecnológicas que demonstrem a viabilidade do projeto, podem submeter propostas diretamente à Fase 2. Condições para participação • Podem apresentar solicitações de financiamento pesquisadores vinculados a empresas de pequeno porte (com até 250 empregados) com unidade de P&D no Estado de São Paulo; • Empresas ainda não constituídas formalmente podem apresentar propostas na condição de “empresa a constituir”, devendo essa formalização ocorrer após a aprovação da proposta e antes da celebração do Termo de Outorga; • O pesquisador proponente deverá demonstrar conhecimento e competência técnica no tema do projeto, mas não é exigido nenhum título formal (seja de graduação ou pós-graduação); • A empresa deverá comprometer-se a oferecer condições adequadas para o desenvolvimento do projeto de pesquisa durante o período de sua execução e envidar os melhores esforços para a comercialização bem sucedida dos resultados. As normas para submissão de propostas estão disponíveis em www.fapesp.br/pipe.

A FAPESP reservou até R$ 15 milhões às propostas consideradas meritórias nesta chamada. Data limite para apresentação de propostas no SAGe 2 de maio de 2016 Previsão de divulgação do resultado da chamada 31 de agosto de 2016

TIRE SUA S DÚVIDA S Participe do “Diálogo sobre apoio à pesquisa para inovação na Pequena Empresa”, reunião organizada pela FAPESP, o CIESP e a Anpei para esclarecimentos sobre a Chamada de Propostas. 28 DE MARÇO DE 2016 das 9h às 12h na sede da FAPESP INSCRIÇÕES www.fapesp.br/eventos/dialogo-2-2016

As solicitacões de financiamento serão recebidas exclusivamente por meio eletrônico, no sítio www.fapesp.br/sage. A FAPESP divulgará o resultado enviando a cada proponente os pareceres técnicos dos avaliadores. Em caso de não aprovação, o proponente poderá aperfeiçoar a proposta, corrigindo as falhas apontadas, e submeter nova solicitação em edital subsequente.

Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia

FAPESP – Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa – São Paulo, SP – CEP 05468-901 • (11) 3838-4000 – www.fapesp.br


fotolab

Habitante da neve polar O fungo azul surgiu na placa de cultura ainda em águas antárticas, no laboratório a bordo do Navio Polar Almirante Maximiano, da Marinha brasileira. “Mesmo os pesquisadores que trabalham há muito tempo na região nunca tinham visto um fungo dessa cor”, conta a bióloga Graciéle Alves de Menezes, que no doutorado orientado por Luiz Henrique Rosa, da Universidade Federal de Minas Gerais, investiga os microrganismos que vivem no gelo e na neve da Antártida no âmbito do projeto MycoAntar. “Ainda não sabemos que espécie é, por que ele tem essa cor ou se tem alguma propriedade anticongelante.” Graciéle espera ter notícias em breve, quando tiver resultados das análises do DNA dos organismos cultivados ou filtrados a partir da neve derretida.

Imagem de Graciéle Alves de Menezes enviada por Luiza Carvalho, responsável pela divulgação do MycoAntar Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 241 | 3


março  241

TECNOLOGIA 68 Novos materiais Duas patentes da UFSCar licenciadas para uma empresa fabricar biovidro devem resultar em produtos para odontologia e medicina 72 Metalurgia IPT desenvolve processo de transformação de terras-raras em metal para uso em ímãs mais potentes para a indústria

14 CAPA 14 Registros atuais e anteriores sobre microcefalia ainda não retratam a realidade do problema no país ENTREVISTA 22 Paulo Saldiva Patologista e especialista nos efeitos da poluição defende melhorias na qualidade do ar e uma nova mobilidade urbana

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 28 Instituição Aos 40 anos, Unesp avança em pesquisa e pós-graduação e se mantém como referência em 24 cidades 34 Internacionalização Workshops promovem a interação entre jovens pesquisadores de São Paulo e do Reino Unido 38 Cooperação Estudo mostra que colaborações científicas no país ainda são influenciadas pela proximidade entre pesquisadores

CIÊNCIA 42 Ecologia Brasil tem a maior diversidade de plantas do mundo, com 46 mil espécies 48 Zoologia Genética ajuda a delimitar populações de tartaruga marinha ameaçada de extinção

52 50 Imunologia Mecanismo recém-descoberto destrói agentes causadores da doença de Chagas 52 Astrofísica Detecção de ondas gravitacionais deverá gerar estudos sobre fenômenos altamente energéticos que emitem pouca ou nenhuma luz

74 Pesquisa empresarial Apis Flora investe em pesquisa e desenvolvimento para obter produtos com alto valor tecnológico feitos à base de própolis

HUMANIDADES 78 Artes cênicas Pesquisador analisa a história dos trajes usados nos palcos brasileiros desde o século XIX 82 Literatura Estudo investiga o significado da prostituta no modernismo brasileiro

56 Entrevista Marcela Carena, diretora de relações internacionais do Fermilab, fala sobre os desafios das novas teorias que tentam estender a compreensão da física de partículas

86 Direitos humanos Pesquisa mapeia as irregularidades da situação das detentas grávidas e com recém-nascidos e apresenta propostas de mudança

60 Geologia Há 600 milhões de anos erupções vulcânicas banhavam de lava o que hoje é a bacia do rio Doce, em Minas Gerais

seçÕes

62 Desastres naturais Levantamento dos últimos 50 anos na América Latina indica que terremotos e vulcões matam mais gente, mas secas e inundações atingem maior número de pessoas

3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta do editor 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 89 Arte 91 Memória 95 Resenhas 97 Carreiras 99 Classificados

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cartas

cartas@fapesp.br

Edição de DNA CONTATOS Site  No endereço eletrônico www. revistapesquisa.fapesp.br

Vi em Pesquisa FAPESP (edição 240) o texto sobre a técnica CRISPR-Cas9. Gostaria de expressar minha satisfação em ler a reportagem, assim como em ser financiada pela FAPESP para desenvolvê-la. Natalia Nardelli Gonçalves

você encontra todos os textos de

Faculdade de Zootecnia e Engenharia de

Pesquisa FAPESP, na íntegra, em

Alimentos/USP

português, inglês e espanhol.

Pirassununga, SP

Também estão disponíveis edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol Opiniões ou sugestões Envie cartas para a

Revista

Que delícia de revista! Obrigado por enviar.

Joaquim Antunes, 727 – 10º andar,

Universidade de Nova York Nova York, Estados Unidos

Tabela periódica

Edições anteriores

O esmero na reportagem “À procura dos números mágicos” (edição 240) deve ser elogiado. Conseguiu conjugar o fato notório da confirmação dos quatro elementos químicos no início do ano com a história da tabela periódica, coroando, ainda, com a reprodução de parte do texto de Oliver Sacks e sua devoção ao tema. Interessante constatar a confirmação mútua, pois a física busca a estabilidade do núcleo, por meio dos números mágicos do título, e a química tinha expectativas quanto à estabilidade do átomo. Ou seja, o elemento 118 que completa o sétimo período deveria ter as mesmas propriedades de um gás nobre, mas para isso seria necessário um conjunto grande de seus átomos para medir essas propriedades. Um ponto importante para a diferenciação entre elemento e substância, confusão frequente em nossos livros didáticos e, portanto, entre nossos estudantes.

Preço atual de capa

Adilson Roberto Gonçalves

acrescido do custo de

Campinas, SP

CEP 05415-012, São Paulo, SP Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h Para anunciar Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office, pelo e-mail julinho@midiaoffice.com.br, ou ligue para (11) 99222-4497 Classificados  Ligue para (11) 3087-4212 ou escreva para publicidade@fapesp.br

postagem. Peça pelo e-mail clair@fapesp.br

Boas práticas

de Pesquisa FAPESP ligue para

Os textos da seção Boas Práticas são os primeiros que leio na revista. Sugiro que, além das pertinentes denúncias, a seção também aborde iniciativas institucionais propositivas. Ou seja, boas notícias sobre boas práticas.

(11) 3087-4212 ou envie e-mail para

Claudia Cunha

mpiliadis@fapesp.br

PUC-SP

Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens

A reportagem “As boas novas da cana-de-açúcar” (edição 239) faz a apologia do programa Proálcool, abordando mais especificamente os aspectos sociais. A abordagem é limitada tendo em vista a questão da biodiversidade e a monocultura da cana-de-açúcar advinda com a im­ plantação dessa política. Além disso, co­mo ficará agora a viabilidade de explo­ração econômica dessa cultura com a queda dos preços do petróleo no mercado global? Geraldo Nonato Telles Campinas, SP

Ruth e Victor Nussenzweig

redação pelo e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua

Aspectos sociais da cana

São Paulo, SP

Vídeos

Excelente o vídeo Drones sobre o campo. Parabéns a todos os envolvidos. Vamos pre­cisar cada dia mais de inovações que auxiliem na otimização da produção agrícola. Régis Vitória Via Facebook

Adorei o vídeo Drones sobre o campo. O vídeo complementa muito bem a reportagem da edição 239: conhecer (um pouco) o funcionamento dos drones e seu sistema de inteligência artificial. Priscila Mary Via Facebook

O vídeo Modos de restaurar a floresta é um sonho. O desafio por si só é grande, mas possível de ser vencido. Há de se ponderar o fato de que convencer o proprietário rural da importância da área de reserva legal e outras áreas verdes não é fácil. Mas tem que começar a ser feito. Francisco Nilton Reis Via Facebook

Correção

Na reportagem “A batalha da Abolição” (edição 240), o primeiro nome do professor Celso Castilho, da Universidade Vanderbilt (Estados Unidos), foi grafado erroneamente como Carlos.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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www . r e v i s t a p e s q u i s a . f a p e s p . b r

A mais vista do mês no Facebook

Rádio A socióloga Angela Alonso fala sobre o livro Flores, votos e balas, e as etapas do movimento abolicionista no século XIX

Memória

O legado de um monge invisível

1.268 curtidas 63 comentários 641 compartilhamentos

Exclusivo no site

Especial

Aedes aegypti, inimigo público

x Pesquisadores concluíram o sequenciamento do genoma de duas espécies silvestres, parentes próximas do amendoim comercial, Arachis duranensis e Arachis ipaensis. O cruzamento entre essas duas espécies resultou no amendoim cultivado hoje. Em consequência desse processo ele tem dois subgenomas, A e B. Um estudo na revista Nature Genetics relata que o genoma de A. ipaensis é

Reunimos no site de Pesquisa FAPESP tudo o que já publicamos sobre os vírus da zika,

praticamente idêntico ao

dengue, chikungunya e febre amarela, transmitidos pelo mosquito Aedes aegypti

subgenoma B do amendoim

bit.ly/1WTEg4r

moderno: as amostras são 99,96% iguais, uma semelhança sem precedentes.  bit.ly/1p30Psi

x A produção contínua de folhas novas, mais ativas em fotossíntese, e não a quantidade de folhas em cada árvore, é a principal responsável pela absorção de gás carbônico (CO2) nas florestas tropicais. A conclusão é de um grupo internacional de pesquisadores, entre eles brasileiros de diversas instituições. Em um estudo na revista Science, eles sugerem que a produção de folhas pelas árvores aumenta durante a estação seca, contribuindo para manter a absorção de CO2.  bit.ly/1RPazjy 6 | março DE 2016

Vídeo do mês

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

Assista ao vídeo:

Avanços tecnológicos ampliam as possibilidades do uso de drones na agricultura

foto 1 wellcome images / wikicommons  2 léo ramos

on-line


carta do editor fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio

Para conhecer um problema

Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Alvaro Felippe Jr., Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Ana Weiss, Christina Queiroz, Claudia Mattos Avolese, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Igor Zolnerkevic, Jayne Oliveira, Luana Geiger, Marco Aurélio Nogueira, Maurício Pierro, Negreiros, Nelson Provazi, Pedro Hamdan, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 38.500 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

A

ocorrência de números aparentemente anormais de microcefalia em recém-nascidos, percebida desde o segundo semestre de 2015, e sua associação com o vírus zika levaram à movimentação frenética de médicos, pesquisadores e autoridades da saúde para entender o que estava acontecendo. Enquanto desenhavam linhas de pesquisa, os cientistas de várias especialidades que começaram a analisar os dados disponíveis se viram diante de uma dificuldade a mais: não havia informações epidemiológicas suficientes que permitissem comparar números de ocorrências antes e depois de a notificação de microcefalia se tornar obrigatória. Sem conhecer a realidade anterior à entrada do vírus no Brasil é difícil saber se o número de casos de microcefalia está de fato crescendo. E, caso esteja, de quanto é o aumento e qual proporção dele se deve ao vírus. Sem essas informações, abre-se espaço para especulação. Além da falta de dados para comparação, os critérios para definir microcefalia foram mudados no início de dezembro e há estudos sugerindo que deveriam ser usados como parâmetros curvas de crescimento mais adequadas à população brasileira. A reportagem de capa desta edição procura prestar um serviço ao reunir e analisar o que se sabe efetivamente sobre essa questão (página 14). *** Levantamento realizado por 575 botânicos brasileiros e estrangeiros indi­ cou que o Brasil é o país com maior diver­sidade de plantas, algas e fungos do mundo, com 46.097 espécies. A pesquisa consta da segunda versão da Lista de espécies da flora do Brasil, publicada em dezembro de 2015 – a primeira foi compilada em 2010. Outras listas serão publicadas no futuro porque cerca de 250 novas espécies são descritas e

apresentadas em revistas científicas a cada ano. As características das plantas começam a ser reunidas no banco de dados Flora do Brasil Online, que deve estar concluído até 2020 para integrar o World Flora Online, com informações sobre todas as espécies conhecidas do mundo. O trabalho a ser realizado ainda é enorme. O Amazonas, por exemplo, aparece no levantamento apenas como o terceiro estado com maior diversi­ dade, atrás de Minas Gerais e da Bahia. A explicação é simples: houve menos coletas lá do que nos demais estados, muito mais conhecidos e frequentados pelos pesquisadores. *** A Universidade Estadual Paulista (Unesp) completou 40 anos em janeiro como um dos pontos de referência em produção do conhecimento e em ensino superior público no interior de São Paulo com seus 24 campi espalhados pelo estado. Em 1976, ano da reunião das faculdades que formariam a universidade, havia 14 campi e foco no ensino. Nos anos 2000, houve um salto na produção científica e na qualidade da pós-graduação, seguido por um forte investimento na renovação dos docentes, com a contratação de mais de mil novos professores. A partir desta edição, Pesquisa FAPESP trará uma série de reportagens sobre a trajetória de uma universidade que soube se transformar para buscar a excelência (página 28). *** Os estudos do patologista Paulo Saldiva sobre os efeitos da poluição urbana e suas propostas para a melhoria da qualidade de vida merecem ser conhecidos. A entrevista concedida por ele apresenta algumas ideias para termos cidades mais saudáveis. Boa leitura. Neldson Marcolin | editor-chefe PESQUISA FAPESP 241 | 7


Dados e projetos Temáticos recentes Projetos contratados em janeiro e fevereiro de 2016  Estudos sobre o uso do bioetanol em células

 Armazenagem, modelagem e análise

 Explorando informação quântica com

a combustível do tipo PEMFC e SOFC

de sistemas dinâmicos para aplicações

átomos, cristais e chips

Pesquisador responsável: Marcelo Linardi

Pesquisador responsável: João Eduardo Ferreira

Pesquisador responsável: Marcelo Martinelli

Instituição: Instituto de Pesquisas Energéticas e

Instituição: Instituto de Matemática e Estatística/

Instituição: Instituto de Física/

Nucleares/SDECTSP

USP

USP

Processo: 2014/09087-4

Processo: 2015/01587-0

Processo: 2015/18834-0

Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2020

Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2020

Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2021

Mulheres na ciência Participação feminina na pesquisa – mundo, regiões e países escolhidos (2013 ou ano mais recente)

Índia

14,3%

Japão

14,6%

Coreia do Sul

18,2%

Leste Asiático e Pacífico

22,6%

França

25,6%

Holanda

26,3%

Alemanha

26,8%

Mundo

28,4%

Chile

31,0%

México

31,6%

América do Norte/Europa Ocidental

32,0%

Suíça

32,4%

China (Macau)

34,5%

Itália

35,5%

Suécia

37,2%

Reino Unido

37,8%

Colômbia

37,8%

Espanha

38,8%

Federação Russa

40,9%

América Latina/Caribe

44,3%

Portugal

45,0%

Uruguai

49,1%

São Paulo*

49,4%

Brasil*

50,0%

Argentina

52,7%

Bolívia

62,7% 0%

5%

10%

15%

20%

25%

30%

35%

40%

45%

50%

55%

60%

65%

* Não há dados para o Brasil e para São Paulo no relatório da Unesco. Há apenas, no caso do Brasil, uma estimativa entre 45% e 55%. Os dados utilizados são do MCTI, para pesquisadores dos grupos de pesquisa do CNPq. 2014 para o Brasil e 2010 para São Paulo, dados mais recentes disponíveis. As frações são calculadas utilizando-se a contagem de indivíduos, sem levar em conta o regime de trabalho. Não há dados no relatório da Unesco para alguns países relevantes para comparações, incluindo Estados Unidos, Canadá e China. Fontes: UIS Fact Sheet 34, “Women in Science”, Instituto de Estatísticas – Unesco, novembro/2015 e Indicadores MCTI (Brasil e São Paulo).

8 | março DE 2016


Boas práticas

ilustração  daniel bueno

Punição rigorosa e inovadora A National Science Foundation (NSF), principal agência norte-americana de apoio à pesquisa básica, adotou uma medida rigorosa e incomum para encerrar uma investigação de má conduta científica. A fim de resolver um episódio que se arrastava havia 12 anos, a agência determinou que os autores de um artigo sobre um processo de síntese de nanopartículas, publicado na revista Science em 2004, não poderiam voltar a pedir financiamento à NSF. Isso, apesar de considerar que os autores não eram culpados por má conduta. Uma investigação mostrou, contudo, que eles violaram uma regra da agência, que é a de reportar todos os achados significativos. E o artigo em questão não pode ser reproduzido por outros pesquisadores, segundo a NSF, porque os autores omitiram dados que permitiriam replicar os resultados. A NSF também inovou ao abrir uma brecha para os autores punidos, três pesquisadores da Universidade do Estado da Carolina do Norte (NCSU, em inglês). Eles poderiam voltar a pleitear financiamento desde que enviassem à Science uma carta relatando os problemas e complementando dados omitidos. Eles fizeram isso e se reabilitaram na NSF, mas a revista optou por retratar o paper, em vez de publicar a carta, por considerar que as omissões comprometiam a lisura do artigo. A decisão chamou a atenção porque, na maioria dos casos investigados pela NSF em que há comprovação de má conduta, os autores enfrentam a suspensão do financiamento federal por um período de tempo e o artigo é cancelado. Já em casos considerados menos graves, como esse, a punição tendia a ser branda.

Em 2006, um pesquisador da NCSU tentou reproduzir um estudo sobre síntese de nanopartículas publicado dois anos antes por Lina Gugliotti, Daniel Feldheim e Bruce Eaton, na época vinculados à universidade. A tentativa fracassou e a hipótese de má conduta foi levantada. Em 2008, uma investigação da NCSU concluiu que os experimentos de microscopia eletrônica para estudar a formação de partículas não haviam sido realizados corretamente. Na mesma época, a Universidade do Colorado também se debruçou sobre o caso, mas considerou que nada de errado havia com a pesquisa. O impasse levou a NSF, que financiou o estudo, a investigar. A conclusão foi de que os autores haviam omitido dados importantes

no artigo. Ao site Chemical & Engineering News, Bruce Eaton, coautor do paper, contestou a decisão da Science de retratar o artigo em vez de corrigi-lo. “Sei que as nanopartículas relatadas no trabalho são reproduzíveis”, afirmou.

Investigação retomada O Instituto Karolinska, na Suécia, decidiu reabrir uma investigação de má conduta científica envolvendo um de seus pesquisadores após o vice-reitor da instituição, Anders Hamsten, reconhecer que tratou o caso com displicência e renunciar ao cargo. Em maio de 2015, uma investigação externa feita a pedido do instituto concluiu que o italiano Paolo Macchiarini omitiu dados de forma deliberada em sete artigos científicos sobre cirurgia de transplante de traqueia artificial. Na época, Hamsten se opôs ao resultado da investigação. Em agosto, o então vice-reitor inocentou Macchiarini, após reavaliar documentos de defesa apresentados pelo pesquisador e seus coautores. Hamsten chegou a reconhecer que os trabalhos não

atendiam aos padrões de qualidade do instituto, mas discordou das acusações de má conduta. No mês passado, mudou de ideia. Em uma carta aberta publicada no jornal sueco Dangens Nyheter em 13 de fevereiro, admitiu não ter observado com atenção “os sinais de alerta” em relação a violações éticas cometidas pelo italiano. Após sugerir a retomada das investigações, Hamsten diz que o julgamento do caso indica má conduta na pesquisa. Os anúncios correspondem a uma crescente pressão por parte de pesquisadores do Karolinska em relação à forma como o caso foi tratado. Em 2014, cientistas do instituto já haviam denunciado possíveis fraudes em experimentos de Macchiarini para a implantação de traqueia artificial em camundongos. PESQUISA FAPESP 241 | 9


Estratégias Pesquisa reconhecida

manter a diversidade genética das colônias de

Um estudo sobre

1

primatas. De acordo com

os mecanismos

o autor do projeto, o

genéticos e metabólicos

senador Lee Rhiannon,

envolvidos no

do Partido Verde, a

amadurecimento

medida asseguraria que

de frutas, liderado por

a Austrália não

Franco Maria Lajolo,

participasse do comércio

professor da

de primatas selvagens

Faculdade de Ciências

capturados para uso

Farmacêuticas da

em experimentação

Universidade de

científica. No entanto,

São Paulo (FCF-USP),

de acordo com

foi o vencedor do

pesquisadores ouvidos

Prêmio Péter Murányi

pela revista Nature, a

2016. O trabalho mostra

legislação australiana já

quais são as vias para

proíbe a utilização de

a transformação do

primatas selvagens.

amido em açúcar e

“Os animais têm que ser certificados e fornecidos

identifica as enzimas que atuam na

em países em

degradação da parede

desenvolvimento,

celular, alterando a

em áreas como

textura da fruta. Parte

educação, saúde,

da pesquisa foi realizada

alimentação e

em laboratórios do

desenvolvimento

Centro de Pesquisa em

científico e tecnológico.

Alimentos (FoRC,

Centro de Pesquisa em Alimentos, da USP, investigou amadurecimento de frutas como banana e mamão

Sem novos primatas

por um criador registrado e credenciado em outro país”, explica James Bourne, presidente

A importação de saguis

do National Non-Human

e macacos usados em

Primate Breeding and

estudos clínicos pode ser

Research Facility Board, da

“O trabalho dialoga

proibida na Austrália,

Austrália. A Federação

na sigla em inglês para

com questões

caso um projeto de lei

das Sociedades Europeias

Food Research Center),

importantes, como o

encaminhado ao

de Neurociência

um dos Centros de

desperdício e a

parlamento do país seja

solidarizou-se com a

Pesquisa, Inovação

segurança alimentar.

aprovado. A proposta

comunidade científica

e Difusão (Cepid)

O prêmio é significativo,

preocupa a comunidade

australiana e publicou um

apoiados pela FAPESP.

porque é uma

científica local, que

comunicado no qual critica

“O estudo tem um

oportunidade de

depende da importação

o projeto do senador.

impacto social grande,

motivar jovens

regular dos animais para

De acordo com o

pois pode ajudar a

pesquisadores a

diminuir os índices de

trabalhar na área de

perda de frutas

alimentos”, afirmou

primatas não humanos,

pós-colheita, mantendo

Lajolo, que dividiu

“continua a ser a base

um padrão de alta

o prêmio de R$ 200 mil

para os avanços médicos

qualidade”, disse Zilda

com dois colegas:

capazes de ampliar a

Vera Murányi Kiss,

Beatriz Rosana

expectativa de vida da

presidente da Fundação

Cordenunsi e João

humanidade”. Rhiannon

Péter Murányi, que

Roberto Oliveira do

defende o projeto como

organiza o prêmio há

Nascimento, ambos da

uma oportunidade de

14 anos. Concedida

FCF-USP. “Somos um

ampliar na sociedade o

anualmente, a honraria

dos poucos grupos

debate em torno do uso

busca reconhecer e

de pesquisa que

de animais na pesquisa

premiar trabalhos

estudam o processo

e dos esforços para

capazes de melhorar

de amadurecimento de

substituir esse modelo

a qualidade de vida

frutas”, diz Beatriz.

por métodos alternativos.

10 | março DE 2016

Projeto de lei quer proibir importação de macacos para testes clínicos na Austrália

documento, a pesquisa 2

com animais, incluindo


fotos 1 léó ramos 2 Tambako The Jaguar / flickr 3 white house  4 Tomas MAY

A vez da medicina de precisão Os Institutos Nacionais

Os projetos selecionados

de Saúde (NIH),

apresentarão propostas

principal organização

para a realização de

de fomento à pesquisa

uma das etapas mais

médica dos Estados

ambiciosas do projeto,

Unidos, anunciaram o

um estudo de

lançamento de vários

acompanhamento

projetos voltados para a

populacional, o chamado

área de medicina de

estudo de coorte. A ideia

precisão, abordagem

é investigar a interação

que integra informações

entre a genética e

clínicas e moleculares

fatores do estilo de vida

sobre doenças para

e de saúde de 1 milhão

gerar tratamentos

de voluntários.

personalizados. Trata-se

“Trata-se do maior e

O objetivo é selecionar

do primeiro passo do

mais ambicioso projeto

79 mil pessoas este

Precision Medicine

de pesquisa já realizado

ano. A expectativa é

Initiative, programa

nessa área”, disse à

de que seja recrutado

lançado no ano passado

revista Science Francis

1 milhão até 2019.

pelo presidente dos

Collins, diretor dos NIH.

A Verily, uma empresa

Estados Unidos, Barack

Uma das instituições

de pesquisa em

no ar dia 18 de março,

Obama, para o qual

participantes, a

ciências da vida

o Portal de Livros Abertos

deverá ser destinado

Universidade Vanderbilt,

pertencente ao Google,

da Universidade de São

cerca de US$ 1 bilhão nos

irá investigar métodos

irá prestar consultoria

Paulo (USP) reunirá obras

próximos quatro anos.

para recrutar voluntários.

ao projeto.

de docentes da instituição

3

Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, durante anúncio do Precision Medicine Initiative, no ano passado

Acesso aberto na USP Programado para entrar

publicadas em acesso aberto, ou seja, que podem ser consultadas livremente por qualquer

Em busca de alimentos funcionais

pessoa pela internet. A princípio, serão disponibilizados 40 livros e manuais técnicos

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope-

em diversas áreas,

cuária (Embrapa) anunciou a criação de

como saúde pública,

uma nova unidade voltada à pesquisa de

odontologia e

alimentos funcionais, aromas e sabores.

comunicação. A iniciativa

A sede será na capital alagoana, Maceió.

será coordenada pelo

A intenção é oferecer aos agricultores

Sistema Integrado de

variedades de produtos com qualida-

Bibliotecas da USP

des nutricionais reforçadas, capazes de atender a novas demandas do mercado. “A Embrapa já disponibiliza variedades

4

Laboratório da Embrapa: reforço nas qualidades nutricionais

biofortificadas, com vitaminas e minerais,

(Sibi-USP). “Já sabíamos que muitos professores da USP publicam livros em acesso aberto, mas

de batata-doce, mandioca, feijão comum,

nutrição de gestantes. “Nenhum país

o alcance é restrito. O

milho e feijão-caupi, que beneficiam

grande produtor e exportador de alimen-

objetivo do portal é servir

aproximadamente 2.500 famílias nas

tos pode ignorar que há um movimento

como um repositório

regiões Nordeste, Sudeste e Sul do Bra-

forte de integração do conceito de ali-

capaz de centralizar e

sil. Estão em processo de melhoramento

mento, nutrição e saúde”, acrescentou.

facilitar a divulgação

variedades de trigo, abóbora e arroz”,

As pesquisas sobre alimentos funcionais

dessa produção”,

disse o presidente da empresa, Maurício

são feitas atualmente em várias das 46

explica André Serradas,

Lopes, que também destacou o sucesso

unidades da empresa espalhadas pelo

coordenador do Portal

de outras iniciativas da Embrapa, como

país. A ideia é coordenar os projetos em

de Revistas da USP.

a produção de alface com quantidades

andamento a partir de Maceió e propor

O portal pode ser

elevadas de vitamina B9, importante na

novas iniciativas.

visitado no endereço: livrosabertos.usp.br PESQUISA FAPESP 241 | 11


Tecnociência Chuva de micróbios no solo No inverno do Planalto

presentes e

Central, quando

da função por eles

praticamente não chega

desempenhada de

água ao chão, de repente

acordo com as estações

chuvas torrenciais

e as características da

despencam do céu como

vegetação. Bactérias

se um imenso balde

resistentes a altas

tivesse entornado.

temperaturas

As consequências disso

predominaram no campo

na vegetação do

sujo e no Cerrado típico,

Cerrado são bastante

em relação às formações

conhecidas, mas não

mais sombreadas.

nos microrganismos

Fungos especializados

que vivem no solo.

em decompor matéria

Os efeitos sobre esses

orgânica se mostraram

seres diminutos começam

abundantes na estação

agora a ser desvendados

seca nas matas de galeria,

Um dos mais

Banhos, da Universidade

pelo grupo de

onde existe maior queda de

exuberantes habitantes

Federal do Espírito Santo,

pesquisa liderado pelo

folhas. O estudo encontrou

da Amazônia e da

em colaboração com

microbiologista Ricardo

nos microrganismos

Mata Atlântica, a

especialistas da

Henrique Krüger, da

uma grande quantidade

harpia (Harpia harpyja)

Universidade Federal do

Universidade de Brasília

de genes relacionados

está perdendo

Amazonas e do Instituto

(PLoS One, 5 de fevereiro).

à parede celular e à

diversidade genética em

Nacional de Pesquisas

O sequenciamento

dormência, interpretados

consequência da redução

da Amazônia, reuniu

do DNA de amostras de

como uma reação ao

ou da fragmentação

72 amostras de sangue,

microrganismos do solo

ambiente inóspito,

das áreas de florestas,

tecidos e penas

coletadas em quatro tipos

e à aquisição de ferro,

o que poderia reduzir a

colhidas de harpias de

de vegetação do Cerrado

comum no solo do bioma.

chance de sobrevivência

florestas brasileiras

em setembro, depois de

A interação com as

e a reprodução dos

depositadas em

mais de três meses sem

plantas sugere que esses

indivíduos (PLoS One,

zoológicos, criadouros ou

chuva, e em fevereiro,

organismos invisíveis a

12 de fevereiro).

museus de 1904 a 2008

quando muita água já

olho nu têm um papel

Para chegar a esses

e analisou os fragmentos

tinha encharcado o chão,

na capacidade do

resultados, uma equipe

de DNA conhecidos

indicou uma variação

Cerrado de reagir às

coordenada por Aureo

como microssatélites, por

grande de micróbios

mudanças climáticas.

Nas árvores mais altas: de dois ovos, em geral apenas um filhote sobrevive

2

Harpias perdem diversidade

Campo sujo, como na serra dos Pireneus, Goiás, é um dos tipos do Cerrado

meio dos quais se pode estimar a variabilidade genética e o fluxo gênico entre as populações. Os pesquisadores propõem medidas urgentes, como a proteção de ninhos e de casais reprodutores e a preservação das áreas de florestas em que as harpias vivem, para evitar o desaparecimento da maior águia da região tropical, com envergadura de 1

12 | março DE 2016

até 2,5 metros.


pesquisadores da

Celular flexível e dobrável

University College London.

fotos 1 Angela de paula / Wikimedia Commons 2 João Marcos Rosa 3 Human Media Lab / Universidade Queen  4 eduardo cesar  ilustraçãO daniel bueno

Segundo os autores do Um celular flexível, que

estilingue virtual, que

trabalho, 10 dessas

pode se dobrar, é a

serve para atingir

associações são inéditas.

novidade apresentada

pássaros e construções.

Duas descobertas

em fevereiro pelo

Outro efeito é a

ganharam destaque:

Human Media Lab da

sensação de folhear

o papel do gene IRF4,

Universidade Queen, no

páginas com a inclinação

presente no cromossomo

Canadá. O aparelho se

do telefone. É possível

6, sobre o processo de

encaixa nos bolsos e se

ter a sensação das

perda de cor dos cabelos

molda de acordo com a

páginas se movendo nos

e o efeito de uma mutação

pressão exercida sobre

dedos com uma vibração

no gene PAX3, encontrado

ele. Segundo seus

do aparelho. Fica

no cromossomo 2, sobre o

inventores, o telefone

facilitada também a

formato das sobrancelhas.

roda aplicativos de

verificação das páginas

O IRF4 participa do

forma mais eficiente.

visitadas por meio de

controle da produção

Dotado de sistema

movimentação tátil.

e do armazenamento

operacional atual, o

A invenção abre

celular, denominado

caminho para o

ReFlex, se mostra mais

desenvolvimento de

interativo em jogos

aplicativos que explorem

eletrônicos. No famoso

o recurso de dobradura.

A análise do DNA de

que uma variante do

Angry Birds, é possível

Os criadores dizem que o

6.357 habitantes do

gene faz com que os dois

dobrar para trás o

ReFlex deverá estar no

Brasil, Colômbia, Chile,

supercílios se juntem

aparelho para acionar o

mercado em cinco anos.

Peru e México forneceu

e formem uma única

pistas importantes sobre

sobrancelha. O estudo foi

a influência de trechos

realizado com habitantes

do genoma humano

da América Latina

em relação à cor, forma

devido a sua grande

e ausência de cabelos

variabilidade genética

e características das

e características capilares.

sobrancelhas e da barba

A parte brasileira do

(Nature Communications,

trabalho foi feita pelo

1º de março). Foram

grupo dos professores

identificadas 18

Francisco Salzano e

associações entre genes

Maria-Cátira Bortolini,

e traços físicos dos

da Universidade

participantes do estudo,

Federal do Rio Grande

coordenado por

do Sul (UFRGS).

O gene do cabelo branco

A flexibilidade colabora com a interatividade, principalmente em jogos

3

de melanina, pigmento escuro presente na pele e nos cabelos. No caso do PAX3, o artigo mostra

4

Fumar é o maior fator de risco para câncer Em 2020 o cigarro deve ser o responsá-

câncer no país (PLoS One, fevereiro de

vel pela maioria dos casos de câncer,

2015). Analisaram dados obtidos entre

sobretudo de pulmão e laringe, entre os

2000 e 2008 sobre dieta, atividade físi-

homens no Brasil, enquanto infecções

ca, sobrepeso e obesidade, infecções e

causadas por vírus e bactérias podem

condições ambientais e ocupacionais de

responder por boa parte dos casos entre

indivíduos com 30 anos ou mais. Em se-

as mulheres. Há algum tempo se sabe

guida, cruzaram essas informações com

que esses e outros tumores resultariam

fatores de risco reportados em estudos

da exposição prolongada a fatores de

epidemiológicos internacionais. Verifica-

risco evitáveis, em geral associados a um

ram que 34% dos casos de câncer entre

infecções, baixo consumo de frutas e

estilo de vida pouco saudável. Pesquisa-

homens e 35% entre mulheres podem

vegetais, excesso de peso e sedentarismo

dores brasileiros e americanos estimaram

ser atribuídos a fatores de risco conhe-

são os fatores que se associam ao surgi-

os fatores mais associados a 25 tipos de

cidos e modificáveis e que o tabagismo,

mento da maioria dos tumores.

PESQUISA FAPESP 241 | 13


capa

Incertezas sobre a microcefalia Registros atuais e anteriores ainda não retratam a realidade do problema no país Ricardo Zorzetto

Facilidade de disseminação do vírus zika (em vermelho no destaque) gerou medo de uma epidemia


fotos 1 RunPhoto / getty images 2 cdc

F

oi preciso atravessar meio mundo para o vírus zika deixar o anonimato. Por quase 60 anos o vírus circulou pela África e pela Ásia praticamente sem ser notado. Ao aportar no Brasil, porém, encontrou condições favoráveis para se espalhar rapidamente e atraiu a atenção internacional ao se tornar o principal suspeito do aumento nos casos de microcefalia, um tipo de má-formação congênita da qual pouco se ouvia falar no país. Microcefalia é um termo de origem grega usado pelos médicos para designar uma condição em que as crianças nascem com a cabeça pequena demais para o tempo de gestação. A maioria delas, segundo especialistas, é saudável. Apenas uma pequena parte nasce com microcefalia em decorrência de problemas de desenvolvimento que deixam o cérebro menor. Nesses casos, não há cura. Um bebê pode nascer com o cérebro pequeno demais por causa de uma série de defeitos genéticos – há ao menos 16 genes conhecidos associados ao problema. Mas também pode ter microcefalia em consequência de razões ambientais, como o consumo de álcool ou exposição a produtos tóxicos na gestação, ou de uma série de infecções, como as causadas pelo vírus da rubéola e do herpes, pelo parasita da toxoplasmose ou pela bactéria da sífilis. A possibilidade de o zika também causar o problema soou o alerta geral pela facilidade com que o vírus se dissemina. Considerado inofensivo por muito tempo, o zika entrou no Brasil entre 2014 e 2015 e, segundo o Ministério da Saúde, já pode ter infectado 1,4 milhão de pessoas. Nesse mesmo tempo, detectou-se um aumento nos casos de microcefalia, em especial na região Nordeste. De 2000 a 2014, o ministério registrou a média anual de 164 casos de microcefalia. Mas, de outubro de 2015 a 20 de fevereiro deste ano, o número de casos confirmados alcançou 583. Em meio ao surto, políticos e autoridades da saúde chegaram a afirmar que o país estaria diante da mais terrível epidemia dos últimos tempos, que, se não fosse contida, poderia deixar toda uma geração de brasileiros com danos neurológicos ou, como disseram, “sequelados”. Começam a surgir evidências, porém, de algo que muita gente já suspeitava: o número de casos

de microcefalia sempre foi subestimado no Brasil. Não conhecer bem a realidade anterior à entrada do zika no país torna mais difícil saber se o problema está de fato aumentando – e, caso esteja, de quanto é o aumento e qual proporção dele se deve ao vírus. Nesse cenário, coletar dados que permitam conhecer como o problema evolui ao longo do tempo é tão importante quanto estudar a melhor forma de combater o vírus e o mosquito. Uma indicação importante de que o sistema de saúde brasileiro não identificava parte dos casos de microcefalia vem de um estudo recente realizado por pesquisadores de Pernambuco e da Paraíba, os dois estados que mais relataram nascimentos de bebês suspeitos de terem a cabeça anormalmente pequena nos últimos meses. Com a possibilidade de se estar diante de um surto do problema, a médica Sandra da Silva Mattos, especializada em cardiologia fetal no Recife, propôs um desafio à sua equipe. Ela coordena uma rede de cardiologia que nos últimos anos acompanhou 100 mil recém-nascidos na vizinha Paraíba. No final de 2015, Sandra recrutou 40 enfermeiras e auxiliares de enfermagem de 21 maternidades paraibanas e pediu que vasculhassem os registros das salas de parto para recuperar informações sobre 10% das crianças. Conseguiu-se mais. Em dezembro, elas revisaram as medidas do tamanho da cabeça (perímetro cefálico) de 16.208 bebês nascidos entre 2012 e 2015 na Paraíba. O levantamento indicou que de 2% a 8% dessas crianças poderiam ser classificadas como tendo microcefalia, dependendo do critério adotado para definir o problema. Isso representa, respectivamente, 320 e 1.300 recém-nascidos e não significa que todos os casos suspeitos de microcefalia estejam necessariamente associados ao vírus zika. O importante é que mesmo o número menor, obtido pelo critério mais restritivo e que representaria os casos mais graves de microcefalia, já somaria cerca de metade da média anual de 164 casos que o Ministério da Saúde registrava para todo o país por meio do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), a base de dados nacional que coleta informações sobre os recémPESQUISA FAPESP 241 | 15


-nascidos brasileiros. Nessa base, há um campo para inserir a medida do crânio, mas, como suspeitam vários pesquisadores, muitas vezes ele não era preenchido – talvez porque a notificação de microcefalia não fosse obrigatória anteriormente. Aumento atípico

Nos últimos quatro meses o Ministério da Saúde identificou um número mais alto de casos de microcefalia, depois de alertado por médicos pernambucanos que haviam detectado um aumento atípico no nascimento de crianças com a cabeça menor que o considerado normal para o tempo de gestação. De 8 de novembro de 2015 a 20 de fevereiro deste ano, nasceram no país ao menos 5.640 bebês com essa característica. Esse número corresponde a uma média de 46 novos casos suspeitos de microcefalia por dia, uma proporção assustadoramente mais elevada do que a conhecida anteriormente. De 2000 a 2014, a média registrada pelo Sinasc era de aproximadamente um a cada dois dias. O aumento dos possíveis casos e a associação deles com a infecção pelo vírus zika durante a gestação alçaram a microcefalia para a posição de principal ameaça à saúde pública nacional. “O estudo da Paraíba é importante por mostrar, usando os critérios de microcefalia adotados pelo ministério, que havia uma cegueira e o Sinasc não estava detectando a maioria dos casos”, afirma o neurologista pediátrico Fernando Kok, professor de neurologia infantil na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Na realidade, a parcela identificada anteriormente pelo Sinasc era ínfima. A cada ano nascem no Brasil aproximadamente 2,9 milhões de crianças e os 164 casos de microcefalia notificados por ano de 2000 a 2014 representam apenas 0,006% desse universo. Esse número é muito baixo quando comparado aos poucos dados conhecidos de outras populações. Os Estados Unidos, por exemplo, adotam um critério semelhante ao brasileiro para definir a microcefalia e apresentam uma proporção de casos mais elevada. Lá nascem por volta de 3,9 milhões de bebês por ano e, segundo uma revisão publicada em 2009 na revista Neurology, os casos identificados de microcefalia beiravam os 25 mil. Isso significa que aproximadamente 0,6% dos bebês norte-

-americanos tem microcefalia e que lá o problema seria 100 vezes mais comum do que por aqui. Convertida em um número um pouco mais concreto para facilitar a comparação, a taxa de 0,006% medida pelo Sinasc indica que apenas 60 recém-nascidos brasileiros em cada grupo de 100 mil teriam microcefalia e deveriam ser encaminhados para mais avaliações. Já pela taxa mais conservadora (2%) encontrada agora na Paraíba seriam 2 mil crianças em cada grupo de 100 mil – ou 58 mil em todo o país. É muito? Talvez não. Depende do critério usado para definir microcefalia. No início de dezembro, o ministério passou a classificar como suspeitas de terem microcefalia aquelas crianças cuja cabeça tem menos de 32 centímetros (cm) de circunferência ao nascer. Médicos, epidemiologistas e estatísticos costumam usar um gráfico bastante simples para verificar se determinadas medidas apresentadas por um indivíduo fogem muito ao padrão da população – em uma parte dos casos essa diferença pode indicar algum problema de saúde. O gráfico é construído ao se colocar no eixo horizontal as medidas das cabeças das crianças de uma população e no vertical o número de crianças. De modo geral, o tamanho da cabeça dos recém-nascidos humanos tem entre 30 cm e 39 cm. Há quase 20 anos um levantamento encomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a um consórcio internacional de pesquisadores tomou várias medidas, entre elas a da cabeça, de 27 mil crianças de diferentes populações, brasileira inclusive. Desse trabalho, resultou um gráfico mostrando como se distribui o tamanho dos crânios na população humana. Ele tem o formato de um sino e é apreciado pelos estatísticos por apresentar propriedades matemáticas bem conhecidas. Uma delas é que a média – nesse caso, a soma total das medidas das cabeças dividida pelo total de crianças – separa o gráfico ao meio, em duas partes simétricas (ver gráfico na página ao lado). Os estatísticos sabem que a área total sob a curva representa toda a população estudada e conseguem facilmente calcular a proporção de pessoas que se encaixa em certas faixas da curva. Médicos e epidemiologistas se baseiam nessas informações para saber se uma determinada medida pode indicar um problema de saúde.

a 2014, e 0 0 0 2 e D de saúd , a m e t s i os etectava d o r i e l i s bra penas a , a i d é em m s de 164 caso alia por ano m icrocef

16 | março DE 2016


Grande, pequeno ou na média Gráfico do tamanho da cabeça dos recém-nascidos tem a forma de um sino e auxilia a triar bebês com possível problema de saúde

proporção dos recém-nascidos

2,3%

40%

dos bebês brasileiros nascem com a cabeça medindo menos de 32 cm e se enquadram na definição de MICROCEFALIA

M – média DP – desvio-padrão

30%

34,1%

34,1%

20%

13,6%

13,6% 10%

0,1%

Meninos Meninas

2,2%

2,2%

-3DP

-2DP

-1DP

30,7 30,3

31,9 31,5

33,2 32,7

M 34,5 33,9

1DP 35,7 35,1

2DP 37,0 36,2

0,1% 3DP 38,3 37,4

(cm)

Fonte OMS, wikipedia

A ideia geral por trás desse tipo de ferramenta é de que tudo o que se afasta muito do observado na maior parte das pessoas pode ser sinal de problema – essas curvas são usadas, por exemplo, para avaliar se uma criança está muito baixa e apresenta problemas de crescimento ou para saber se a concentração de determinadas gorduras no sangue atingiu níveis nocivos à saúde. No caso do tamanho do crânio, os 32 cm adotados pelo ministério representam o ponto de corte para definir se uma criança é suspeita de ter microcefalia. Esse ponto provavelmente foi escolhido por se afastar bastante do tamanho médio da cabeça da maioria dos recém-nascidos. A partir de 37 semanas de gestação, a cabeça dos bebês considerados saudáveis costuma medir algo em torno de 34,5 cm, segundo os dados da OMS. A diferença pode parecer pequena, mas 2,5 cm é bastante para um bebê. Os estatísticos usam uma medida chamada desvio-padrão para ter uma ideia desse grau de afastamento. No gráfico em forma de sino, os 32 cm estão aproximadamente dois desvios-padrão abaixo da média. Com base nas propriedades da distribuição normal, sabe-se que uma parte pequena da amostra, apenas 2,3%, está mais distante da média do que dois desvios-padrão. Isso significa que 2,3% dos bebês nascidos no Brasil – o correspondente a 66,7 mil crianças – poderiam se enquadrar na definição de microce-

falia do ministério. Uma proporção bem menor de recém-nascidos (0,1% ou 2.900 bebês) tem a cabeça menor ainda. O tamanho do crânio deles está três desvios-padrão abaixo da média e, na maioria dos casos, indica problema no desenvolvimento cerebral. “A grande maioria das crianças classificadas com microcefalia em qualquer país que segue a recomendação da OMS [ou seja, aquelas que estão dois desvios-padrão abaixo da média] será normal com a cabeça pequena”, explica o epidemiologista Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ele conta que os casos patológicos, associados ao zika e a outras infecções ou a problemas genéticos, representam uma pequena minoria desses 66,7 mil. “A grande maioria dessas crianças é normal e tem cabeça pequena por motivos genéticos não patológicos. Elas têm a cabeça e o corpo pequenos porque seus pais são pequenos ou porque elas sofreram algum tipo de restrição de crescimento intrauterino, por exemplo, são filhos de mães que fumaram na gestação”, diz Victora. “O fato de o tamanho da cabeça estar abaixo de determinado valor não significa necessariamente que há uma enfermidade”, lembra Kok, que acompanha os casos de microcefalia no Hospital das Clínicas da USP. “É preciso analisar a medida do crânio em conjunto com outras informações. Agora, se a medida se afasta muito da média, é maior a probabilidade de haver algum problema.” microcefalia invisível

Se a medida situada dois desvios-padrão abaixo da média for mesmo um bom indicador de microcefalia – em alguns países da Europa usam três desvios-padrão –, tanto no Brasil como nos Estados Unidos o sistema de saúde está deixando de avaliar muita criança que deveria ser tratada com mais atenção. Sabe-se que uma parte delas é saudável e não vai apresentar problemas de desenvolvimento neurológico no futuro, mas outra parte pode ter alguma enfermidade e mereceria passar por uma avaliação mais detalhada. No Brasil, o biólogo paulista Fernando Reinach foi um dos primeiros a apresentar essas contas para um público mais amplo. Em sua coluna no jornal O Estado de S.Paulo publicada em 6 de fevereiro, ele chama a atenção para a divergência entre os números oficiais e os esperados da microcefalia no Brasil. No texto “Microcefalia que sempre existiu”, ele afirma: “Essas crianças deveriam ter sido identificadas e examinadas com cuidado. Mas não foram, porque a notificação não era obrigatória. Elas seguramente sempre existiram, mas não existem nas estatísticas do Sistema Único de Saúde (SUS). Agora, com a notificação obrigatória, e o pânico causado pelo zika, elas estão ‘aparecendo’. Esse aparecimento PESQUISA FAPESP 241 | 17


súbito pode ser real, e causado pelo zika, ou pode ser uma anomalia causada pela subnotificação no Brasil”, escreveu o biólogo. Dúvida sem resposta

Assim como Reinach, alguns pesquisadores já entrevistados por Pesquisa FAPESP se queixaram da falta de dados históricos confiáveis sobre a microcefalia no país. A carência de informação dos anos anteriores, dizem, torna difícil saber se os números atuais estão crescendo só por causa do zika ou se há outros fatores envolvidos. No final de dezembro, os pesquisadores do Estudo Colaborativo Latino-americano de Malformações Congênitas (Eclamc), um consórcio internacional que acompanha os registros de más-formações em 35 hospitais de sete países, revisaram os dados de microcefalia que haviam registrado de 1967 a 2015 no Brasil e cruzaram com as informações coletadas nos últimos três anos pelo Sinasc. Em um relatório-síntese, disponível no site do grupo, os pesquisadores afirmam que os números do Sinasc estavam subestimados. Segundo os cálculos do Eclamc, são esperados dois casos de microcefalia para cada grupo de 10 mil bebês nascidos no país, mas esse índice deve ser mais elevado no Nordeste, onde o problema é mais comum do que nas outras regiões. Usando o índice de microcefalia observado na Europa, eles calcularam que deveria haver 45 casos entre os 147.597 bebês nascidos em Pernambuco em 2015. Mas, até o fim de dezembro, o estado havia reportado 1.153 casos suspeitos (26 vezes mais). Para os pesquisadores, esses números só poderiam ser explicados se todas as gestantes pernambucanas tivessem sido infectadas pelo vírus – no documento não fica explícito qual proporção das mulheres infectadas poderia transmitir o vírus ao feto. Os pesquisadores do Eclamc suspeitam que boa parte do aumento seja decorrente da identificação ativa de casos e concluem que os dados atuais não permitem avaliar se houve um real aumento da prevalência de microcefalia ao nascimento no Nordeste, qual a magnitude desse aumento e se foi devido à exposição ao zika ou ao aumento de outras causas. A equipe do Eclamc foi procurada, mas não quis dar entrevista. Apesar dessas considerações e da causalidade ainda não demonstrada, em meados de fevereiro

o ministro da Saúde, Marcelo Castro, disse que 40% dos casos suspeitos de microcefalia notificados nos últimos meses estão relacionados à infecção por zika. O informe epidemiológico nº 14, divulgado pelo ministério no final de fevereiro, indica que, dos 5.640 casos notificados de 8 de novembro a 20 de fevereiro, 1.533 já foram investigados e 583 (10,3% dos 5.640) receberam a confirmação de microcefalia. Segundo o documento, exames moleculares detectaram o material genético do zika em 67 dos 583 casos confirmados. Nos 516 restantes a confirmação se deu por exames de imagens do cérebro que permitiram observar lesões anteriormente associadas ao zika. Ainda de acordo com o informe, o ministério suspeita que a maior parte das mães dessas crianças teve zika. No entanto, não deixa claro se nos 516 casos classificados por exames de imagem foi eliminada a possibilidade de outras infecções que provocam microcefalia (toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes e sífilis). O ministério não atendeu às solicitações de esclarecimentos. No informe epidemiológico nº 14 também não há detalhes sobre os 950 casos que foram excluídos. O documento sugere que as crianças não teriam microcefalia de origem infecciosa, mas poderiam apresentar outra forma do problema. Sabe-se que as infecções não são a única causa de microcefalia – e talvez nem a mais comum. Na revisão de 2009 da Neurology, de 15% a 50% dos casos de microcefalia podem ser de origem genética. Há ao menos 16 genes conhecidos que causam o problema quando suas duas cópias encontram-se alteradas. Além disso, fatores ambientais, como o consumo de álcool na gestação ou a exposição a poluentes e produtos tóxicos, também podem causar microcefalia. Quanto cada um deles contribui para o total de casos? “Não conheço estudos que mostrem isso”, diz Kok. Um grupo de médicos e epidemiologistas do Rio Grande do Sul, de São Paulo e do Ceará suspeita que a estratégia de considerar quem nasce com crânio menor que 32 cm um potencial caso de microcefalia está incluindo no pacote muitos bebês que são saudáveis. Em um artigo publicado em fevereiro na revista Lancet, a equipe coordenada por Cesar Victora, da UFPel, levantou várias razões técnicas

inistério M o d o i Critér e para da Saúd icrocefalia definir muitos inclui m udáveis, bebês sa estudo segundo

18 | março DE 2016


O crescimento da microcefalia Entre 16.208 recém-nascidos na Paraíba, de 2% a 8% podem ter o problema; casos graves aumentaram no fim de 2015 Evolução dos casos de microcefalia na Paraíba 14,0% 12,0% 10,0% 8,0% 6,0% 4,0% 2,0% Trimestres 12 4o 20 12 1o 20 13 2o 20 13 3o 20 13 4o 20 13 1o 20 14 2o 20 14 3o 20 14 4o 20 14 1o 20 15 2o 20 15 3o 20 15 4o 20 15

12

3o 20

2o 20

1o 20

12

0,0%

Critério do Ministério da Saúde

Curva de Fenton

Critério de proporcionalidade

Evolução dos casos graves de microcefalia na Paraíba

0,6% 0,5% 0,4% 0,3% 0,2% 0,1% Trimestres 12 4o 20 12 1o 20 13 2o 20 13 3o 20 13 4o 20 13 1o 20 14 2o 20 14 3o 20 14 4o 20 14 1o 20 15 2o 20 15 3o 20 15 4o 20 15

12

3o 20

2o 20

1o 20

12

0%

Critério do Ministério da Saúde

fonte SOARES DE ARAÚJO, J. S. et al. Bulletin of the World Health Organization, 2016

Curva de Fenton

Critério de proporcionalidade

para isso. A primeira é que adotar uma nota de corte única para bebês de ambos os sexos não é adequado, uma vez que as meninas, em média, nascem menores que os meninos. Além disso, os pesquisadores argumentam, 68% dos bebês brasileiros nascem antes de completar 40 semanas de gestação, em parte por causa das altas taxas de cesarianas, e podem ser menores que o normal. Para reduzir o número de bebês que não têm o problema – os chamados falsos-positivos – entre os que passarão por mais avaliações, o grupo sugere que se adotem curvas de padrão de crescimento mais adequadas à realidade da população brasileira e com maior poder de detectar os casos verdadeiramente positivos, como a produzida pelo consórcio Intergrowth 21st, que o grupo de Pelotas ajudou a desenvolver (ver Pesquisa FAPESP nº 225). Atualmente, além dos 32 cm para os bebês que nascem a partir da 37a semana de gestação, o ministério adota uma curva de crescimento produzida com crianças de países ricos, a curva de Fenton, para realizar a triagem daqueles que nascem prematuros.

Para o médico e epidemiologista Eduardo Mas­sad, também professor da FM-USP, a infecção pelo vírus zika pode explicar parte do aumento dos casos de microcefalia. “Exatamente quanto? Não se sabe”, afirma. Na opinião dele, o importante é que se encontrou o vírus em 67 dos 583 casos confirmados, o que reforça a conexão do vírus com o problema, embora ainda não demonstre conclusivamente uma relação de causalidade. “Existe uma associação inequívoca entre a infecção por zika na gestação e o nascimento de bebês com microcefalia e há uma perfeita plausibilidade em se atribuir parte do aumento de casos ao vírus”, diz Massad. “Uma fração de fetos infectados desenvolve microcefalia, mas ainda não se sabe o tamanho dessa fração.” rápido demais

No estudo da Paraíba, o grupo de Sandra Mattos detectou uma elevação principalmente nos casos graves de microcefalia a partir do terceiro trimestre de 2015, que poderia estar associada à circulação do vírus. Ela suspeita, porém, que se esteja concluindo rápido demais que o zika é único causador do problema. “Não queremos eliminar a influência do vírus, mas questionar se não haveria mais fatores envolvidos, como outras infecções e a subnutrição, comuns na população”, diz Sandra, que é diretora da Unidade de Cardiologia Materno-Fetal do Real Hospital Português de Beneficência de Pernambuco. “Precisamos conhecer bem com o que estamos lidando.” As pesquisas epidemiológicas só estão começando. Na Paraíba, o grupo de Sandra participa de um estudo com pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos e do Ministério da Saúde que tem como objetivo verificar o risco de mulheres infectadas terem filhos com microcefalia. Em São Paulo, pesquisadores da Rede Zika, consórcio de cerca de 40 grupos de universidades e institutos de pesquisa paulistas, financiado pela FAPESP, realizarão um estudo semelhante. Os resultados levarão meses para serem conhecidos. Segundo Massad, também são necessárias mais pesquisas e mais longas – que acompanhem toda a população e verifiquem qual proporção das gestantes é infectada pelo vírus e tem filhos saudáveis ou com problemas. n Artigos científicos SOARES DE ARAÚJO, J. S. et al. Microcephaly in northeast Brazil: a review of 16 208 births between 2012 and 2015. Bulletin of the World Health Organization. 4 fev. 2016. ASHWAL, S. et al. Practice parameter: evaluation of the child with microcephaly (an evidence-based review). Neurology. v. 73. p. 88797. 2009. VICTORA, C. G. et al. Microcephaly in Brazil: how to interpret reported numbers? Lancet. 13 fev. 2016.

PESQUISA FAPESP 241 | 19


o e ntr alia e s cef e õ x icro e n co a m s A e a zik

À medida que estudos avançam, acumulam-se evidências de que o vírus atinge o feto de gestantes e causa lesões no sistema nervoso central

1 Zika no mundo

Área com transmissão ativa Área com casos importados Circulação esporádica/surtos

2 O vírus Descoberto em 1947 em Uganda, na África, o zika pertence ao gênero Flavivirus, o mesmo do vírus da dengue e da febre amarela. Seu material genético é uma fita simples de ácido ribonucleico (RNA) que abriga apenas seis genes

3 Formas de transmissão

picada de mosquito O zika se reproduz no sistema digestivo e se instala nas glândulas salivares de insetos. Seu principal vetor são os mosquitos do gênero Aedes

relações sexuais O vírus permanece mais tempo no sêmen que no sangue. Há casos de homens que teriam transmitido zika para parceiros sexuais

Até fevereiro, havia transmissão ativa do vírus em 30 países e territórios das Américas, além de ilhas na costa da África e no Pacífico; em outros países havia casos importados Fontes CDC; CUNHA, M. S. et al. Genome announcements

4 Prevenção e terapia transfusão sanguínea Há ao menos um relato de transmissão por transfusão sanguínea. Um paciente na região de Campinas, interior de São Paulo, recebeu sangue infectado

5 As infecções e seus sinais zika Febre inferior a 38ºC ou ausente, dor muscular e conjuntivite, manchas vermelhas e coceira intensa, dor leve e inchaço moderado nas articulações

Fonte  Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika – Ministério da Saúde

chikungunya Febre superior a 38ºC por dois a três dias, dor e inchaço moderado a intenso nas articulações, dor de cabeça de intensidade moderada

dengue Febre superior a 38ºC por até uma semana, dor muscular, dor de cabeça intensa, tendência de sangramento moderada

eliminar criadouros Manter caixas-d’água e outros reservatórios tampados e o lixo em sacos fechados; eliminar objetos que possam acumular água. Mais dicas em: combateaedes.saude.gov.br Proteger-se de picadas Usar roupas longas, que cubram os braços e as pernas, e aplicar repelentes em crianças com mais de 2 anos e adultos (inclusive gestantes) Praticar sexo seguro Usar preservativo nas relações sexuais, adotar estratégias contraceptivas ou abstinência sexual. Para gestantes, recomenda-se o uso de preservativo ou abstinência sexual Tratamento Não há tratamento específico, nem vacina ou soro. O Ministério da Saúde recomenda acetaminofeno (paracetamol) ou dipirona para controlar a febre e aliviar as dores. Deve-se evitar o uso de ácido acetilsalicílico (AAS, Aspirina) e outros anti-inflamatórios

Fontes  ministério da Saúde e OMS

20 | março DE 2016


infográfico ana paula campos  ilustração  mauricio pierro

6 Conexões mais fortes

Microcefalia

Transmissão materno-fetal Ultrassom feito em 42 gestantes que tiveram zika revelou que os fetos de 12 (29%) apresentavam calcificações no cérebro, restrição de crescimento ou tinham morrido. Em outro estudo, pesquisadores acompanharam nove gestantes dos Estados Unidos infectadas por zika. O bebê de uma nasceu com microcefalia grave. Duas sofreram aborto espontâneo Fontes  Brasil, P. et al. NEJM, 2016 e Meaney-Delman, D. et al. MMWR, 2016

Em dezembro o Ministério da Saúde definiu os novos critérios de classificação dos casos suspeitos de microcefalia por zika:

< 32 cm

◗ bebês com 37 semanas ou mais e perímetro cefálico inferior a 32 cm

Através da placenta Análises da placenta de uma mulher que teve sintomas de zika na gestação e abortou indicam que o vírus pode ser transmitido da mãe para o bebê

◗ bebês com menos de 37 semanas que estejam entre os 3% de menor crânio segundo a curva de Fenton ◗ aborto espontâneo e natimorto cuja mãe teve exantema na gestação Fonte  Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika – Ministério da Saúde

Fontes Instituto Carlos Chagas / Fiocruz

Casos suspeitos no Brasil

As alterações nos bebês

Até 20 de fevereiro, 1.101 municípios registravam 5.640 possíveis casos de microcefalia, a maioria no Nordeste

Especialistas em problemas congênitos examinaram os 35 primeiros casos de microcefalia associada ao zika e viram que:

Fonte Informe epidemiológico nº 14 / Ministério da Saúde

◗ 18% apresentavam problemas oftálmicos

◗ 71% tinham microcefalia grave (crânio inferior a 31 cm)

◗ 11% desenvolveram um problema articular grave (artrogripose) que dificulta o movimento das articulações de joelhos, quadris e cotovelos

● 50 casos ou mais ● 11 a 49 casos ● 2 a 10 casos ● 1 caso ■ UF com casos notificados

◗ 27 bebês passaram por exames de imagem e apresentavam alterações neurológicas. Desses, 74% tinham calcificações

■ UF sem casos notificados Fontes SCHÜLER-FACCINI, L. et al. MMWR, 2015

os números

casos notificados

evolução das mortes

No final de fevereiro, cerca de 73% dos casos suspeitos de microcefalia continuavam em investigação

Em média, 21% dos bebês que morreram com suspeita de microcefalia receberam confirmação do problema ou de alterações no sistema nervoso central

6.000 4.783

5.000

4.180 4.107 3.935 3.893 3.852 3.670 3.530 3.448 3.174 3.381 2.975 2.782 2.401 2.265

140 4.000

120 100

3.000

80

1.761

2.000

60

1.248

1.000

.12 5 09 .20 .0 15 1. 16 201 6 .0 1. 23 20 .0 16 1. 30 20 .0 16 1 06 .20 16 .0 2. 13 20 16 .0 2 20 .20 16 .0 2. 20 16

5

01 .2

.12

26

5

01 .2

.12

26

5

01 19

12

.12

.2

01 .2

.11

.2

01

5

0

.12

05

399 26

0

28

950 765 837 709 282 462 508 583 224 270 404 462

739

40 20

5.640 5.280 5.079

134 102

2

6

22.

10.2

015

22.

11.2

015

22.

12.2

015

6

22.

17

41

41

67

01.2

016

Total de casos relatados Casos em investigação

Total de mortes de fetos ou recém-nascidos com suspeita de microcefalia

Casos descartados

Mortes confirmadas com microcefalia e/ou alteração no sistema nervoso

Casos confirmados de microcefalia Casos confirmados de microcefalia com zika (PCR ou sorologia)

Fonte  ministério da Saúde

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entrevista Paulo Saldiva

Por uma cidade mais saudável Patologista apresenta novas hipóteses sobre os efeitos da poluição urbana e defende melhorias na qualidade do ar

Carlos Fioravanti  |

O

retrato

Léo Ramos

patologista Paulo Saldiva começou a estudar os efeitos prejudiciais da poluição urbana sobre a saúde há 30 anos, avançou bastante em sua car­ reira profissional, mas não se contentou em ver os resultados de seu trabalho sair apenas na forma de artigos científicos. Aos poucos ele levou as conclusões para outros espaços, com o propósito de melhorar a qualidade do ar e da vida nas cidades. Saldiva defende mudanças nas formas de mobilidade urbana: as pessoas devem andar mais, usar transporte público com maior frequência ou, como ele, ir para o trabalho de bicicleta, hábito que vem do tempo em que era estudante de medicina. Desde o ano passado, por meio de um novo e poderoso aparelho de ressonância magnética usado para exames de cadáveres (ver Pesquisa FAPESP nº 229), ele tem enriqueci­ do a antiga linha de trabalho, ao ver que a poluição do ar de­ ve acelerar o envelhecimento de tecidos e órgãos. Também adotou práticas, como a de autópsia minimamente invasiva, que permitem a confirmação do diagnóstico, a checagem do

22 | março DE 2016

idade 61 anos especialidade Patologia formação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (graduação, doutorado) instituição Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo produção científica Participou como autor ou coautor de 580 artigos científicos e orientou 29 mestrados e 58 doutorados


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tratamento médico e a formação de um banco de amostras que pode ser útil pa­ ra médicos, pesquisadores e estudantes. Casado, com dois filhos, Saldiva gosta de tocar gaita e fotografar a cidade à noite, da sacada de seu apartamento no 13º an­ dar de um prédio no bairro da Bela Vista. Quais suas batalhas atuais? Minha maior luta no momento é fazer o Brasil adotar um padrão de qualidade do ar compatível com o conhecimento científico atual. Ainda estamos defasa­ dos. A Organização Mundial da Saúde, a OMS, definiu parâmetros muito res­ tritivos, mas colocou níveis intermediá­ rios como metas como instrumento de gestão. São Paulo e a maior parte das cidades brasileiras são menos poluí­ das do que os municípios chineses e indianos, mas as autoridades do governo bra­ sileiro não definiram ainda o que é preciso fazer para atingir os níveis mais baixos de poluição, que é o padrão ideal. Os coordenadores das agências ambientais como o Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, argu­ mentam que não podemos seguir o padrão internacional de qualidade do ar porque não temos tecnologia para resolver o problema do con­ trole da poluição, quando na verdade devemos pensar de modo inverso: no momento em que se mostra a descon­ formidade entre as metas e a realidade, cria-se o movi­ mento para mudança. Os pesquisadores, médicos e outros profissionais da saúde têm de participar da busca de soluções para esses problemas.

de que havia evidências muito sólidas da redução da expectativa de vida por doen­ças respiratórias e cardiovascu­ lares induzidas pela poluição do ar e também que a exposição à poluição ur­ bana é uma causa do câncer de pulmão, em níveis muito mais baixos do que se pensava. Ou seja, é um risco pequeno, em comparação com o cigarro. O que se tem de levar em conta é que apenas 20% da população de São Paulo fuma, mas todos os moradores da cidade estão sujeitos à poluição. Então o risco atribu­ ível à poluição passa a ser significativo. Nem os efeitos da poluição nem os da mobilidade urbana entraram ainda com a devida importância na pauta de deba­ tes de novas políticas de saúde pública. Existe também uma relação com a ca­

diesel, etanol, eletricidade ou petróleo. Aparecem interesses legítimos, porém conflitantes. É preciso gestão, que é o que falta na área ambiental. Gestão em que sentido? Gestão como liderança, no sentido de decidir o melhor para a maioria das pes­ soas. Um exemplo de liderança é o pre­ feito de Dublin, na Irlanda, que em 1987 proibiu a venda de carvão para aque­ cimento de água. Após o banimento, a poluição foi reduzida e houve um de­ créscimo imediato da mortalidade por doenças respiratórias e cardiovascula­ res. Quando fizeram a conta, descobriu­ -se que houve benefícios para a saúde e também ganhos financeiros, porque as pessoas e o Estado passaram a gastar menos com médicos, remé­ dios e hospitais. Sempre se discutia o quanto custaria mudar uma matriz energéti­ ca, mas até aquele momento não se sabia o quanto custa­ va manter uma fonte ener­ gética suja como o carvão. Com o fechamento de fá­ bricas altamente poluidoras de Pequim antes dos Jogos Olímpicos de 2008, houve redução da poluição, ganhos de peso ao nascer, redução da mortalidade neonatal e de internações por doenças respiratórias. A partir dessas situações é possível calcular o quanto estamos pagando de pedágio de saúde por cau­ sa da poluição das cidades.

O prefeito de Londrina comprou as primeiras academias ao ar livre e depois uma empresa pagou as outras

O que o senhor tem feito para mudar essa situação? Participei de dois pontos centrais da le­ gislação sobre esse assunto. O primeiro foi o estabelecimento dos novos padrões de qualidade do ar da OMS em 2005, quando ajudei a escrever o capítulo sobre ozônio. O segundo foi em 2014. Participei do painel da International Agency for Research in Cancer, Iarc, que determinou a prevalência dos casos de câncer atribuídos à poluição do ar. Nos dois casos, chegamos à conclusão 24 | março DE 2016

pacidade de um jovem se desenvolver intelectualmente, porque as quatro ou cinco horas que teria para descansar e estudar são perdidas no deslocamento entre a casa e o trabalho. Vários estudos mostraram que os problemas de mobili­ dade urbana prejudicam o desenvolvi­ mento do indivíduo como cidadão e sua ascensão social e econômica. Portanto, temos de ter um padrão de mobilidade mais ativo. Apenas a tecnologia não vai resolver esses problemas, mas essa não é uma questão consensual. Não há con­ senso quando se discute o uso do solo, definindo se o espaço público vai ser ocupado por carro, ônibus, transporte sobre trilhos ou bicicleta, ou que tipo de matriz energética devemos usar, se bio­

Qual a solução, então? Para resolver esses problemas, não basta prescrever apenas um remédio. Vários estudos mostraram que os acidentes no corredor das avenidas Francisco Mora­ to e Rebouças [na cidade de São Paulo] produzem em torno de 10 pessoas por mês com incapacidade física permanen­ te, amputadas ou paraplégicas. Quase todos os acidentados são atendidos no pronto-socorro aqui da USP, próximo a essas avenidas. Uma alternativa para melhorar o atendimento seria aumentar o número de leitos de trauma e capacitar mais residentes em ortopedia e neuro­ cirurgia. Seria como, diante do cigarro, aumentar o número de vagas para ci­ rurgia torácica. Não resolve. Temos de


dialogar com as autoridades de trânsito e implantar alternativas de mobilidade urbana para desafogar o trânsito nessas e em outras avenidas. Alguns estudos mostraram que morar a menos de 300 metros de um parque reduz o risco de morte por infarto agudo do miocárdio em 30%. É mais do que a estatina [prin­ cípio ativo do medicamento usado para baixar a taxa de colesterol no sangue], mas qualquer cardiologista vai dizer que parque não tem nada a ver com infarto. Quem desenha os parques também vai dizer que não; já os epidemiologistas dirão que sim. Os mecanismos mais am­ plos e mais eficazes para a redução de infarto são os serviços ambientais dos parques, aumento de umidade e redução de poluentes nas cidades. Além disso, as pessoas utilizam os parques para caminhar e se exercitar. Foi o que aconteceu em Lon­ drina, com as academias ao ar livre [praças com apare­ lhos de ginástica para serem utilizados por quem quiser]. O que aconteceu em Londrina? Em 2009 o prefeito comprou as primeiras academias ao ar livre e depois uma empresa privada de convênio médi­ co pagou as demais. Os em­ presários perceberam que poderiam ganhar dinheiro com isso, já que as pessoas eram mais saudáveis nas re­ giões onde havia academia e, portanto, usavam menos os serviços dos planos de saú­ de. É difícil colocar na esfera acadêmi­ ca a ideia de fazer com que as políticas urbanas sejam centradas em qualidade de vida e saúde. A medicina está prepa­ rada para tratar de questões ambientais relacionadas a doenças com causas con­ cretas, como as transmitidas por insetos, porque sempre foi assim, desde os tem­ pos de Oswaldo Cruz, e ainda não damos a devida atenção para as alterações cau­ sadas pelas novas formas de organização de vida, como o câncer, a obesidade e as doenças mentais.

porque engenheiros, paisagistas e ou­ tros têm a ver com esses problemas. As doen­ças causadas pelo ambiente urbano inadequado são também o resultado da gestão imobiliária, que faz com que a população do centro se mude para a pe­ riferia. É um absurdo uma pessoa perder três ou quatro horas por dia dentro de um trem, de um ônibus ou de um carro para ir de casa para o trabalho e depois voltar. Adotei uma alternativa: venho de bicicleta para a faculdade até hoje, desde os tempos em que era estudante aqui na Medicina, mas sou visto dentro da categoria “comportamento exóti­ co”. Os profissionais da saúde deveriam assumir a liderança e propor atitudes que favoreçam a melhoria da qualida­ de de vida nas cidades. Deveriam dar

Por que a obesidade tem ligação com a mobilidade urbana? Não tem sentido discutir esse assun­ to falando apenas de hormônios ou de dieta, sem discutir a cidade. Em um ar­ tigo publicado na Nature Reviews Cancer em setembro de 2013 [com o título “Air pollution: a potentially modifiable risk factor for lung cancer”], mostra­ mos que a taxa de obesidade em vários países era menor quando a população adotava transporte ativo, como a cami­ nhada, o ciclismo ou mesmo ônibus e metrô. Quem usa transporte coletivo em São Paulo anda de 1 a 3 quilômetros por dia, entre ir para o trabalho e voltar. Sem explicar que o modo de mobilidade tem a ver com a taxa de obesidade, não vou conseguir estudar a história toda, porque uma parte substan­ cial da obesidade é causada pela inatividade das pessoas. Temos de estimular o trans­ porte ativo como forma de promoção da saúde. Como o senhor trabalha essas possibilidades de intervenção? Basicamente, produzindo white papers [artigos cien­ tíficos que possam nortear a elaboração e implantação de políticas públicas]. O artigo da Nature Reviews Cancer mostra o que podemos fa­ zer, do ponto de vista de sus­ tentabilidade das pes­soas e dos países. Não adianta dizer para deixar o carro em casa, tomar banho de canequinha ou viver no escuro. Temos de mostrar que é possível perder 350 calorias por dia andando 4 quilômetros diariamen­ te, usando transporte coletivo. Em ou­ tro artigo, que saiu em julho de 2015 na Lancet [com o título “Mortality risk at­ tributable to high and low ambient tem­ perature: a multicountry observational study”], participamos de um consórcio que examinou a variação de temperatura e de mortalidade em 384 cidades. Esse trabalho mostrou que vivemos melhor em uma temperatura um pouco abai­ xo do que a ideal, porque os mecanis­ mos fi­siológicos de adaptação são mais eficien­­tes para combater o frio do que o calor. Em São Paulo, onde a temperatura média é de 22º Celsius, a mortalidade

Em São Paulo, a mortalidade aumenta se a temperatura vai além de 26oC ou cai para menos de 18oC

O que poderia ser feito? Atacar esses problemas exige montar não só uma equipe multidisciplinar, mas uma rede de órgãos e de profissionais,

mais atenção também às gôndolas de supermercado, que representam outro problema de saúde pública. Os alimen­ tos, principalmente os doces, que uma criança de 2 ou 3 anos de idade vê nas gôndolas e nos caixas favorecem a obe­ sidade e impõem um padrão alimentar inadequado desde o início. Conseguimos apresentar de modo claro e convincen­ te os riscos do cigarro e fazer muitas pessoas pararem de fumar, mas ainda não conseguimos mobilizar as pessoas para se precaverem contra os riscos do consumo de alimentos que favorecem a obesidade, nem sobre as consequências dos padrões inadequados, do ponto de vista da saúde pública, de urbanização e uso do solo.

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aumenta quando a temperatura vai além de 26ºC ou cai para menos de 18ºC. Se passa dos 30ºC, a mortalidade aumenta 50%, principalmente por infarto. Quais as causas, exatamente? Uma das principais são as ilhas de calor [áreas mais quentes] das cidades. Para aumentar a mortalidade em Estocol­ mo, a temperatura tem de cair abaixo de zero, enquanto em Teresina, é im­ pressionante, basta cair abaixo dos 23 graus. Algumas cidades, como Toronto, se tornaram resilientes e construíram um sistema de condicionamento de tem­ peratura que faz com que as pessoas se adaptem ao frio. Cidades mais antigas, como Madri e Londres, se defendem muito melhor do frio do que do calor. Quando esquenta muito em Londres, a mortalidade aumenta duas vezes e meia. O controle adequado da temperatura nas ilhas de calor e a recomposição da cobertura vegetal são importantes para reduzir a mortalidade dos moradores das cidades. Conte um pouco de seu trabalho com as organizações não governamentais [ONGs]. Com equipes de ONGs, como o Institu­ to Saúde e Sustentabilidade, temos feito relatórios em uma linguagem absoluta­ mente transparente sobre a mortalidade e os custos da poluição para a saúde na cidade de São Paulo. Para induzir uma mudança de comportamento, temos de produzir a melhor ciência possível e, de­ pois, fazer com que o conhecimento seja apoderado, em textos mais amigáveis, pela população em geral e pelos gestores. Nesse sentido as ONGs são eficientes. Estruturas acadêmicas também podem ser eficientes em traduzir o conheci­ mento científico para o grande público e instrumentalizar a política. A Univer­ sidade Harvard, dos Estados Unidos, faz isso muito bem. De que modo? A Escola de Saúde Pública de Harvard tem publicações feitas por jornalistas que participam dos debates e colocam os assuntos para os grandes jornais e revistas dos Estados Unidos. Em 2015, o New York Times noticiou um estudo de Harvard mostrando que, quanto pior a mobilidade, menos tempo as pessoas têm para estudar e menos vão ganhar no 26 | março DE 2016

futuro. Essa é uma enorme contribuição para quem estuda e para quem faz polí­ tica urbana, que se está discutindo ago­ ra no Congresso dos Estados Unidos. Fazer essa passagem do conhecimento científico para outros públicos de forma profissional, neutra e eficiente ainda é um grande desafio das instituições aca­ dêmicas no Brasil. Por aqui, a maioria dos pesquisadores ainda acredita que o trabalho acabou depois de publicar na Nature ou na Science. O sistema acadê­ mico recompensa apenas pela pesquisa e pela produção acadêmica. Não existem mecanismos de recompensa pela parti­ cipação em políticas públicas ou em ati­ vidades coletivas. Por que o senhor começou a estudar os efeitos da poluição nos anos 1980? Eu estava acabando a residência em patologia quando conheci um professor muito especial, György Böhm, húngaro radicado no Brasil, que estudava polui­ ção do ar em cidades, e me encantei por esse tema. Nessa época, nos anos 1980, poluição do ar era uma causa à procu­ ra de uma doença. Considerava-se que os padrões estabelecidos nos Estados Unidos nos anos 1970, uma vez atingi­ dos, não teriam efeitos prejudiciais. Conseguimos mostrar, em experimen­ tos com animais e depois em estudos epidemiológicos, uma associação ro­ busta entre poluição, mortalidade, ado­ ecimento, inflamação e formação de tumores malignos em pulmões de ca­ mundongos. O efeito não era devasta­ dor, mas muito claro. Também mostra­ mos, em modelos animais, os efeitos da exposição à poluição durante a gesta­ ção. Em comparação com o grupo-con­ trole, os animais submetidos à poluição intensa durante a gestação nasciam com peso menor, menos alvéolos pulmona­ res e com alterações em algumas áreas do córtex cerebral. A poluição também muda a razão de sexo, fazendo com que nasçam mais fêmeas do que machos. Por causa da poluição há um desequi­ líbrio hormonal e possivelmente um efeito deletério sobre os cromossomos sexuais masculinos, com a sobrevivên­ cia preferencial do X e não do Y. A his­ tória confirmou esses dados. Em 1978 houve um acidente em Cevezo, na Itá­ lia, com um vazamento de policloreto de vinil, e durante um período nasce­ ram apenas meninas.

Como foi sua ida para Harvard, em 1999? Eu tinha virado professor titular em 1996 e era chefe do Laboratório Central do Hospital das Clínicas. Fiquei só fazen­ do isso durante três anos. Estava abso­ lutamente infeliz, não sabia mais se eu sabia dar aula, se eu era pesquisador ou se era administrador. Pensei: “Vou dar um break e fazer um sabático”. Tinha filhos com 11 e 12 anos, pensei que logo mais eles cresceriam e seria mais difícil. Fui para lá sem projeto nenhum, como professor visitante. Cheguei à Escola de Medicina de Harvard e me perguntaram: “Qual sua ideia de pesquisa?”. Respon­ di: “Nenhuma. Digam o que precisa ser feito que ajudarei quem precisar”. Eles tinham muitos experimentos impor­ tantes parados. Preparei as lâminas [de microscópio, com amostras de órgãos e tecidos], comecei a analisar e fiz os meus trabalhos mais citados até hoje, mostrando que o acúmulo de partículas dos poluentes atmosféricos causava uma redução da resistência vascular pulmo­ nar. Foi a primeira evidência estrutu­ ral de que a poluição do ar provocava alterações vasculares em animais, não afetava só o parênquima pulmonar [a camada mais externa dos pulmões], mas também a artéria pulmonar. Em outro trabalho, mostrei a relação entre a po­ luição e a arritmia aguda. Saíram cin­ co publicações nesse ano e montei um sistema experimental que concentrava partículas atmosféricas e me permitiu fazer uma série de estudos importantes depois no Brasil. O que é possível trazer de Harvard para cá? A primeira coisa seria a cobrança de mérito. Em Harvard, quem não conse­ gue dinheiro – porque uma parte dos financiamentos vai para a universida­ de – ou não se torna um dos expoentes em sua área tem de sair, simplesmente. Harvard adota um modelo baseado em competitividade, absolutamente impes­ soal. Outra coisa boa, que poderia aju­ dar a pensar nossa realidade, é que não se perde tempo com burocracia. Se um pesquisador quer um reagente, liga para o responsável pelos reagentes e recebe na sua mesa no dia seguinte. Aqui ainda é um pouco diferente. Passei boa parte do ano de 2014 administrando a obra para instalação de um equipamento de ressonância magnética nuclear de 7 tesla


para autópsia e outros estudos financia­ dos pela FAPESP. Tivemos de seguir um cronograma germânico de importação, enquanto fazíamos as obras de acordo com um cronograma brasileiro, mas, por incrível que pareça, deu certo. Em Harvard, haveria um grupo que faria isso por mim, porque se adota o pres­ suposto de que o pesquisador não deve gastar tempo nessas coisas. A efi­ciência é muito maior e o ambiente de trabalho, muito mais competitivo. Ninguém fica na zona de conforto. E se tem muita li­ berdade. O professor pode usar bermu­ da ou trabalhar no horário que quiser, já não há controle de horário. Assim se forma um ambiente criativo. Aqui, não. Temos indicadores de processo, avalia­ -se o número de horas em sala de au­ la ou de alunos, mas não se pergunta: o que saiu disso, o que você mudou? Como está o trabalho com o novo aparelho de autópsia? Está indo muito bem. O pro­ jeto começou há uns quatro anos, com Edson Amaro, ho­ je professor associado do De­ partamento de Radiologia, quando nos perguntamos: qual nosso nicho de compe­ titividade? O que podemos fazer melhor que Harvard ou Oxford? Temos a maior sala de autópsia do mundo, com 14 mil a 15 mil exames desse tipo por ano de pessoas que morreram por morte natural, porque, além dos casos do Hospital das Clínicas, temos os do Serviço de Verificação de Óbito, ligado à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Vamos então apostar nessa área para ensino, pesquisa e treinamen­ to. Todo mundo se encantou. Foi uma das poucas vezes que uma ideia seguiu na mesma direção aqui na Faculdade de Medicina.

que a poluição do ar, independentemen­ te de outros fatores, faz com que nossos orgãos envelheçam mais rapidamente. Estamos vendo como a poluição pode reduzir a reserva funcional de nossos órgãos, do mesmo modo que o cigar­ ro, que provoca senescência precoce. Estamos também, com o Ministério da Saúde e com o grupo da Global Burden of Disease, comparando a autópsia ver­ bal, uma indicação da provável causa de morte, com a real. Cristopher Murray, professor da Universidade de Washing­ ton e coordenador do Global Burden, esteve aqui em 2015 e ficou sabendo que estamos fazendo também autópsia mi­ nimamente invasiva. Essa abordagem consiste em um exame de imagem e em uma análise anatômica macroscó­

confirmar diagnósticos e avaliar se de fato fizemos tudo o que deveria ser feito pelo paciente. Já estão fazendo isso? Olhe aqui [mostrando uma imagem na tela de um monitor], uma fratura de que­ da de occipital. Vemos a lesão sem abrir a pessoa. Para ver isso na autópsia nor­ mal, seria preciso mutilar o cadáver. E podemos imprimir em três dimensões e usar as imagens em perícias judiciais, não precisamos mais fazer exumação. Aqui [mostra outra imagem], o cora­ ção de um indivíduo com aterosclerose. Podemos fazer angiografia pós-mor­ te fazendo perfusão com um derivado sintético de plasma e iodo, montar um banco de tecidos normais e estudar viro­ ses emergentes, entre outras possibilidades. Podemos fa­ zer diferença em saúde pú­ blica, se conseguirmos pro­ var que é possível fazer co­ letas pós-morte guiadas por imagem. Além disso, temos conversado muito com as fa­ mílias, após a retirada dos tecidos para análise.

A autópsia minimamente invasiva é uma forma mais simples de confirmar diagnósticos

O que pretendem fazer com os novos equipamentos? Agora podemos estudar doenças raras e também ver a diferença entre a idade cronológica e a biológica, já avaliada por exames genéticos e bioquímicos, mas ainda não por meio da avaliação de al­ terações estruturais do organismo. Uma das hipóteses que estamos testando é de

pica. Onde encontramos qualquer sinal de doença, retiramos com uma agulha uma amostra de tecido ou órgão, como o cérebro – que seria impossível com a pessoa viva – com a autorização da fa­ mília. Também estamos comparando os exames feitos por essa técnica e pela au­ tópsia convencional. Em menos de um ano já fizemos 400 autópsias minima­ mente invasivas e queremos completar mil até meados deste ano, comparando com a autópsia normal e vendo quando uma ou outra poderia ser usada. Há uma grande diferença de custo. A autópsia normal custa cerca de R$ 8 mil, consi­ derando horas de trabalho e de análise, e a minimamente invasiva, R$ 1.500. É também uma forma mais simples de

Como é a conversa com as famílias? Primeiramente, explicamos o atestado de óbito, que pou­ cos entendem. Depois, ten­ tamos evitar mortes seme­ lhantes na mesma família. Um dos casos recentes foi o de um homem com aneu­ risma de aorta dissecante, que foi encontrado morto. Conversando com os irmãos, pergun­ tei se eles tinham hipertensão. Todos tinham, e um deles tivera dor no peito 15 dias antes. Falei que eles tinham de controlar a hipertensão, que tinha si­ do uma das causas da morte do irmão deles, e que, quando tivessem dor torá­ cica, dissessem ao médico que tiveram dois casos de morte por aneurisma na família, uma comprovada por autópsia e outra supostamente por exames clíni­ cos. Esse contato tem me dado uma gra­ tificação pessoal muito grande e posso garantir que tem dado um certo alívio para os familiares. Estamos aprovei­ tando para fazer promoção de saúde e prevenir casos semelhantes, evitando outras mortes. n PESQUISA FAPESP 241 | 27


política c&T  Instituição y

a Universidade diversa Aos 40 anos, Unesp avança em pesquisa e pós-graduação e se mantém como referência em 24 cidades Fabrício Marques

28  z  março DE 2016


Esta é a primeira de uma série de reportagens sobre os 40 anos da Universidade Estadual Paulista, a Unesp

fotos  divulgação unesp

O

12º andar do prédio da Reitoria da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no centro de São Paulo, abriga um espaço bastante concorrido. Trata-se de uma sala de reuniões, com vista para a avenida 9 de Julho, dotada de câmeras de vídeo, duas grandes telas planas de TV na parede e um grande logotipo da Unesp ao fundo. Ali, pró-reitores e funcionários da reitoria precisam disputar horários para fazer videoconferências com interlocutores distribuídos pelas 24 cidades que abrigam institutos e unidades da Unesp. A distância física entre os participantes das reuniões virtuais pode chegar a 805 quilômetros – como no caso dos campi de Ilha Solteira, na divisa com Mato Grosso do Sul, e de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba. “O sistema de videoconferência custou caro quando foi implantado, alguns anos atrás, mas teve impacto no dia a dia de uma universidade que nasceu descentralizada”, comenta Marilza Vieira Cunha Rudge, vice-reitora da Unesp.

Num dia, veem-se nos aparelhos de TV os coordenadores de cursos de pós-graduação de certa área. No outro, é a vez de gestores de unidades discutirem assuntos administrativos. “A possibilidade de se reunir a distância, além de reduzir custos e derrubar barreiras, permite compartilhar experiências e vem ajudando a moldar uma identidade para a Unesp”, diz Marilza, que é professora da Faculdade de Medicina, campus de Botucatu. A Unesp, que completou 40 anos no dia 30 de janeiro, demorou para construir essa identidade, observa Marilza. Até alguns anos atrás, alunos e professores ainda não se reconheciam como parte da universidade e diziam pertencer aos institutos isolados ou faculdades de filosofia espalhados por cidades como Jaboticabal, Araraquara, Franca e Assis, cada qual com história e cultura acadêmica particulares, que foram reunidos em 1976 graças a uma lei proposta pelo então governador Paulo Egydio Martins. “Hoje, todos dizem que são da Unesp”, afirma a vice-reitora.

De um consórcio de instituições regionais, a Unesp cumpriu uma trajetória singular, transformando-se numa das principais universidades de pesquisa do país. Manteve-se, porém, como ponto de referência em produção do conhecimento e em ensino superior público no interior de São Paulo, com 37 mil alunos matriculados em 134 cursos de graduação e 3.880 docentes. “Ao traçarmos um círculo com raio de 100 quilômetros ao redor de cada uma dessas 24 cidades, veremos que ocupamos praticamente todo o mapa do estado de São Paulo”, diz o reitor da Unesp, Julio Cezar Durigan. “Se a USP foi criada para ser uma grande universidade e a Unicamp, uma universidade inovadora, a Unesp teve outra proposta: ser a universidade de todo o estado de São Paulo. Isso cria muitos problemas logísticos, mas a interação que temos com todas as regiões é uma riqueza que não tem preço.” pESQUISA FAPESP 241  z  29


A distribuição dos campi Áreas de influência das unidades da Unesp cobrem quase todo o Estado

São José do Rio Preto

Ilha Solteira

Franca Jaboticabal

Araçatuba Dracena Tupã Rosana

Presidente Prudente

São João da Boa Vista

Araraquara Marília

Bauru Rio Claro

Assis Ourinhos

Botucatu Sorocaba

São José dos Campos

Itapeva

Guaratinguetá Registro

São Paulo São Vicente

Responsável por 8% da produção científica brasileira, a Unesp publicou, entre 2011 e 2015, uma média anual de 2.927 artigos científicos, segundo dados da base Web of Science. O patamar é três vezes superior ao do período de 2001 a 2005 (ver gráficos nas páginas 32 e 33). De 2007 a 2014, dobrou o número de artigos publicados em colaborações internacionais. A instituição também é forte na formação de pesquisadores. Seus 141 programas de pós-graduação formaram, em 2014, 1.970 mestres e 999 doutores, contingente superado no Brasil apenas pela Universidade de São Paulo (USP). A qualidade dos programas vem melhorando. Na última avaliação trienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), divulgada em 2014, pela primeira vez mais da metade dos programas da Unesp foi classificada com as notas mais elevadas (5, 6 e 7). A pró-reitora de Pesquisa da Unesp, Maria José Soares Mendes Giannini, ressalta que algumas unidades se destacam pela produção científica, mas que todas têm contribuído para ampliar o protagonismo acadêmico da Unesp. “Os institutos de Química, em Araraquara, de Física Teórica, em São Paulo, e de Biociências, tanto de Botucatu quanto de Rio Claro, estão entre as unidades com pesquisas mais internacionalizadas”, afirma. A úl30  z  março DE 2016

tima edição do Webometrics Ranking of World Universities apontou os cientistas brasileiros mais citados de acordo com o Google Scholar Citations (GSC), indexador acadêmico do Google. Entre os primeiros nomes da lista, há alguns pesquisadores da Unesp, como Sérgio Novaes e Nathan Berkovits, do Instituto de Física Teórica (IFT), José Arana Varela, professor do Instituto de Química de Araraquara e vice-diretor do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, além de Célio Haddad e Mauro Galetti, do Instituto de Biociências de Rio Claro.

E

ntre os 14 campi que se aglutinaram em 1976, vários já tinham pesquisa e ensino de qualidade reconhecida, casos por exemplo de Araraquara, nas áreas de farmácia, odontologia e química, de Botucatu, em medicina, ou de Jaboticabal, em ciências agrárias. Ao longo dos anos, a Unesp chegou a outras 10 cidades depois de criar unidades em municípios como São Vicente e Tupã e incorporar instituições como a Universidade de Bauru, com cursos em ciências, engenharias, artes e comunicação, e o Instituto de Física Teórica, na capital paulista, em meados dos anos 1980. “O IFT era uma instituição de pesquisa res-

peitada internacionalmente que começou a sofrer com a falta de financiamento federal”, lembra Jorge Nagle, reitor da Unesp entre 1984 e 1988. “Com cerca de 15 físicos, tinha uma produção científica superior à de todos os físicos da Unesp. A incorporação foi muito importante tanto para o IFT quanto para a Unesp”, diz. Nagle conta que, em sua gestão, foi possível modificar pela primeira vez a estrutura da jovem universidade. “O poder estava concentrado em um conselho universitário com poucos professores titulares, em geral resistentes a mudanças”, lembra. “Mesmo sob a égide de uma universidade, os institutos ainda se consideravam instituições separadas.” O apoio do então governador André Franco Montoro foi importante para dar um norte para a instituição. “Conseguimos recursos para contratar mais 40 professores titulares e criamos um novo Estatuto, permitindo a participação de alunos e servidores. Isso ajudou a oxigenar o conselho e envolveu mais unidades no processo de decisão.” Obter recursos para a manutenção da universidade era uma missão trabalhosa. “Os reitores tinham de peregrinar em diversas secretarias para conseguir verbas para novos projetos e iniciativas e precisavam negociar o orçamento com o governo todos os anos”, afirma. O panorama mudou em 1989, com o advento da autonomia universitária, no governo Orestes Quércia, que garantiu um quinhão fixo da arrecadação de impostos às três universidades estaduais paulistas. “A autonomia criou uma outra concepção de universidade”, diz o reitor Julio Cezar Durigan. “Antes dela, o reitor não fazia outra coisa senão correr com projetos para justificar os gastos no ano seguinte. Com a autonomia, foi possível planejar o futuro da instituição e isso mudou o perfil da Unesp por meio da corresponsabilidade.” O salto na produção científica e na qualidade da pós-graduação veio nos anos 2000. Com a experiência de quem havia ajudado a criar e a coordenar o bem-avaliado programa de pós-graduação em zootecnia no campus de Jaboticabal, o professor Marcos Macari tornou-se pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação em 2001 e adotou uma estratégia para dar mais consistência aos mais de 180 programas de mestrado e doutorado da instituição. “Eu conhecia bem como funcionavam as regras da Capes, que na época dava notas A, B e C para os programas. Observei


Em outubro de 1975, o governador Paulo Egydio Martins entregou à Assembleia Legislativa de São Paulo o projeto de criação da Unesp (à direita). Em 30 de janeiro de 1976, ele sancionou a lei, num palanque em Ilha Solteira (abaixo)

os resultados apareceram. “Muita gente que não publicava deixou os programas. E muita gente que já produzia conhecimento começou a publicá-lo.”

fotos  divulgação unesp

C

que muitos programas da Unesp eram mal avaliados porque não seguiam essas regras”, recorda-se. O primeiro passo foi reunir dados sobre cada um deles e iniciar uma peregrinação pelos campi. “Havia programas com grupos sólidos, que publicavam em boas revistas, mas se mesclavam com professores com produção científica irregular ou inexistente, que puxavam para baixo a avaliação.” Macari visitou todos os programas e se reuniu com seus professores. Levava transparências que mostravam o desempenho de cada docente. “Eu falava com muita franqueza: esses professores precisam deixar o programa porque não têm produção científica e estão comprometendo a avaliação. Imagine só o tumulto que isso causava”, conta. “Às vezes, o professor havia montado o programa com um esforço enorme e aparecia o pró-reitor dizendo que ele devia ser descredenciado. Eu explicava que minha missão era mostrar como o sistema funciona”, afirma o professor. Em dois anos de trabalho

“Muito professor que não publicava deixou a pós-graduação. E muita gente que produzia começou a publicar”, lembra Marcos Macari

omeçaram a funcionar naquela época os embriões de alguns programas hoje consolidados na Unesp, como a oferta de uma contrapartida da universidade para pesquisadores que conseguissem financiamento para seus projetos de pesquisa. “No começo era de 10%, mas depois tivemos que mudar, quando os pesquisadores começaram a receber financiamentos vultosos, de projetos temáticos ou da Financiadora de Estudos e Projetos, a Finep”, diz. Da mesma forma, a Unesp se propôs a pagar as taxas de publicação de artigos e a tradução dos papers para o inglês. “O pessoal acabou gostando e utilizando esses recursos. E nós brigávamos para que os autores não se esquecessem de informar nos artigos que pertenciam à Unesp. Nessa época, era comum que os pesquisadores se dissessem vinculados à sua unidade, mas não à universidade.” Macari lamenta não ter conseguido viabilizar uma de suas ideias: a criação de grupos virtuais de pesquisa. “Como há campi espalhados por várias regiões, a Unesp tem programas de pós-graduação semelhantes em diversas localidades. Há três programas em veterinária, três em agronomia, três em biologia. A ideia era juntar virtualmente pesquisadores desses programas para que desenvolvessem em conjunto projetos de grande porte. Ninguém aderiu, com exceção de um programa de mestrado e doutorado que reuniu pesquisadores de Presidente Prudente, Araraquara e Bauru por iniciativa do professor José Arana Varela”, recorda-se. pESQUISA FAPESP 241  z  31


O crescimento da produção científica da Unesp Média de artigos publicados por pesquisadores da Unesp em intervalos de cinco anos – Base Web of Science / InCites

31,3%

2927

3000

2500

T

111,3%

Artigos publicados

2229 2000

1500 91,2%

1055

1000 150,6%

552 500

120,2%

20 11 -2 01 5

20 06 -2 01 0

20 01 -2 00 5

19 96 -2 00 0

220

100 19 91 -19 95

19 81 -19 85

Ano

19 76 -19 80

0

19,3%

84 19 86 -19 90

44,5%

58

Artigos publicados por pesquisadores da Unesp em coautoria internacional Base Web of Science / InCites 2500

2000

Artigos

1500

1000

500

19 80 19 81 19 82 19 83 19 84 19 8 19 5 86 19 87 19 8 19 8 89 19 90 19 9 19 1 92 19 93 19 94 19 9 19 5 96 19 97 19 9 19 8 9 20 9 0 20 0 0 20 1 0 20 2 0 20 3 0 20 4 0 20 5 0 20 6 0 20 7 0 20 8 0 20 9 10 20 1 20 1 12 20 13 20 14

0 Ano

Em 2006, Macari se tornou reitor da Unesp e decidiu dividir em duas a Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação. Convidou José Arana Varela, professor do Instituto de Química, campus de Araraquara, para cuidar da pesquisa. “Criamos novos incentivos para que os pesquisadores publicassem em revistas de impacto, como Nature e Science”, diz Varela, que hoje é diretor-presidente do Conse32  z  março DE 2016

“Foi um trabalho árduo e logo se mostrou muito mais difícil do que publicar artigos”, lembra. O núcleo foi o embrião da Agência Unesp de Inovação, criada em 2010, coordenada por Varela depois que deixou a pró-reitoria. “Criamos uma estrutura enxuta e eficiente para a agência, e ela trabalhou de forma proativa. Seu mérito foi criar uma cultura de inovação dentro da universidade.”

lho Técnico-Administrativo da FAPESP. “A cada paper publicado, o pesquisador recebia uma quantia e podia usá-la em qualquer atividade de seu grupo: mandar um aluno para fora, fazer uma viagem ou usar no laboratório.” Nessa época, Varela ajudou a montar o núcleo de inovação tecnológica para auxiliar pesquisadores a obter patentes e fazer acordos de transferência de tecnologia com empresas.

ambém em 2010, vários programas de incentivo à produção científica e à qualidade acadêmica articularam-se no Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) da Unesp, que chegou a ter orçamento de R$ 55 milhões – em 2016, por conta da queda geral na arrecadação do estado, foi fixado em R$ 35 milhões. A intenção do PDI é garantir que programas estratégicos para a universidade tenham recursos reservados e garantidos no orçamento. Há cerca de 20 iniciativas apoiadas. Uma delas buscou induzir a mobilidade dos docentes dos programas de pós-graduação, o que causou certa controvérsia. Os programas com notas 5, 6 e 7 da Capes conquistaram o direito de enviar, durante um mês, um de seus docentes ao exterior, para desenvolver projetos em colaboração, além de trazer um docente estrangeiro para a unidade. O incentivo era ainda maior para os programas com nota mais baixa – os de nota 3 poderiam mandar um docente para fora por até seis meses. “Reclamaram que estávamos protegendo os programas mais frágeis, mas não víamos dessa forma. Para esses programas, passar só um mês no exterior não era suficiente. Era preciso mais tempo para estabelecer laços lá fora”, diz Marilza. Simultaneamente, a universidade investiu em renovação. Só na segunda metade dos anos 2000, mais de mil novos professores foram contratados. Também foram abertas vagas de professor direcionadas para departamentos vinculados a programas de pós-graduação de excelência – a ideia era gerar mais massa crítica e estimulá-los a crescer. A qualificação dos docentes deu resultados. Em 2001, apenas 40% dos docentes da Unesp participavam de programas de pós-graduação. Hoje, são cerca de 80%. Também foram investidos recursos para promover a internacionalização da universidade – em 10 anos, os convênios com universida-


Evolução dos artigos publicados por pesquisadores da Unesp por área Base Web of Science

“Somos jovens e estamos espalhados pelo interior. Temos espaço para crescer”, diz o reitor Durigan

2000

n Ciências da vida

1800

n Ciências físicas  n Medicina

1600

n Engenharia e tecnologia  n Ciências sociais

1400

n Artes e humanidades

1200 1000 800 600 400 200 0 Ano 1980

1985

1990

1995

2000

2005

2010 2014

des estrangeiras cresceram de 30 para 250. Já a criação de escritórios de apoio ao pesquisador em todas as unidades da Unesp buscou liberar os docentes para fazer pesquisa, reduzindo o trabalho de administrar os projetos.

foto  divulgação unesp

C

omo a produção científica da Unesp é fortemente concentrada em ciências da vida, foram criados programas para financiar a pesquisa nas áreas de engenharias e humanidades. Também se investiu no resgate de docentes que, envolvidos com ensino e gestão, tinham deixado de ter produção científica. “Uma das estratégias foi oferecer a eles recursos, incluindo bolsas de iniciação científica para seus alunos, de forma que se engajassem em linhas de pesquisa e programas de pós-graduação”, lembra a pró-reitora Maria José Giannini. No campo da pesquisa, foram criados quatro centros interunidades, dedicados a estudos avançados sobre o mar, bioenergia, biotecnologia e políticas públicas, e está sendo montada uma rede virtual de laboratórios multiusuários. “As instalações desses laboratórios poderão ser utilizadas pela web por pesquisadores de diferentes unidades”, diz a professora. A meta para os próximos anos é expandir o alcance dos objetivos e ações do PDI, criando planos semelhantes no nível das unidades e dos departamentos. “Dessa forma, será possível fazer com que os mesmos estímulos se espalhem em todos os campi”, diz o reitor

Júlio Cezar Durigan. Há outros desafios a enfrentar. A Unesp tem se esforçado em atender cada vez mais estudantes oriundos de escolas públicas – um sistema que reserva 50% das vagas para essa categoria de alunos estará implantado até 2018. Para a vice-reitora Marilza Rudge, também é preciso atrair jovens altamente talentosos para dar mais fôlego e diversidade ao ambiente acadêmico. “Precisamos garantir espaço para esses jovens na universidade”, afirma. O reitor Durigan antevê uma agenda de desafios para os próximos anos. Ele diz, por exemplo, que é necessário mudar a forma de ensinar. “A formação dos estudantes deveria ser mais direcionada para a solução de problemas”, diz, mencionando um projeto-piloto em curso de engenharia civil do exterior que abriu mão de aulas formais e engajou alunos

na busca de solução de problemas práticos, sob orientação de um professor. Durigan também acha que a pesquisa na Unesp precisa se transformar. “Não faz sentido um departamento ter mais de 30 linhas de pesquisa. É preciso ter mais foco, definir no máximo cinco linhas que tenham impacto na sociedade e mobilizar os docentes em torno delas.” E, no campo da extensão, a ênfase deveria ser menor na prestação de serviços à comunidade para privilegiar o que ele chama de “extensão inovadora”, definida como a transferência de conhecimento para a sociedade e o setor privado. Se conseguir superar esses desafios, diz o reitor, a Unesp poderá se transformar na maior universidade do país. “Como somos jovens e estamos distribuídos por várias cidades, temos ainda muito tempo e espaço para crescer”, afirma. n pESQUISA FAPESP 241  z  33


Internacionalização y

Catalisador de parcerias Workshops promovem a interação entre jovens pesquisadores de São Paulo e do Reino Unido

U

ma parceria para estimular a cooperação internacional entre São Paulo e Reino Unido acaba de render novos frutos. No dia 16 de fevereiro, saiu o resultado de mais uma chamada de propostas lançada pela FAPESP e pelo British Council, organização do Reino Unido que promove educação e cultura. As instituições selecionaram dois workshops para promover colaborações entre pesquisadores paulistas e britânicos em início de carreira. O primeiro evento será realizado entre os dias 30 de maio e 3 de junho, no campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Jaboticabal, e tratará de diferentes abordagens de genética molecular em pesquisas com animais. Será coordenado pelos professores John Hickey, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, e por Lúcia Galvão de Albuquerque, da Unesp. O segundo workshop está programado para os dias 6, 7 e 8 de junho na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São 34  z  março DE 2016

Paulo (USP), em Piracicaba, e abordará os efeitos do adubo de fosfato como nutriente do solo. A coordenação será de Elke Jurandy Bran Nogueira Cardoso, da Esalq-USP, e de Paul Withers, da Universidade Bangor, no País de Gales. Ao todo, 23 desses workshops conjuntos já foram realizados no estado de São Paulo desde 2014, envolvendo temas de pesquisa em áreas como meio ambiente, saúde pública, energia e comunicação social. A lista completa pode ser acessada no site da Fundação (fapesp.br/5362). Os eventos são financiados no âmbito do Researcher Links, programa lançado há três anos pelo British Council com recursos do Fundo Newton, instrumento de apoio do governo britânico a colaborações internacionais em ciência e inovação com países em desenvolvimento. O programa está presente em 15 países, entre eles África do Sul, Índia, Turquia e Malásia, e seu objetivo é promover redes de cooperação internacional em diversos campos do conhecimento.

ilustraçãO nelson provazi

Bruno de Pierro


O objetivo dos workshops é estimular pesquisadores em início de carreira a estabelecer colaborações internacionais. Cada evento pode receber 34 participantes, sendo 17 do Reino Unido e 17 de São Paulo. Todos precisam ter título de doutor obtido há menos de 10 anos. “Graças ao workshop, ampliei minha rede de contatos com instituições britânicas”, conta Danilo Rothberg, pesquisador da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, campus de Bauru. Entre dezembro de 2014 e janeiro de 2015, ele fez um estágio de pós-doutorado no King’s College London, na Inglaterra, após conhecer pesquisadores da instituição que participaram de um workshop realizado em São Paulo no âmbito do Researcher Links. O estágio, que teve apoio da FAPESP, investigou a mobilização social de setores que lutam pela preservação ambiental. “O grupo com o qual interagi no Reino Unido já tinha expertise em metodologias de pesquisa em memória social relacionada à sustentabilidade.

Isso contribuiu para aprofundar meu trabalho no tema”, diz o pesquisador, que continuou a parceria com os britânicos após concluir o pós-doc. Não foi o único benefício que ele extraiu do evento. No ano passado, Rothberg também iniciou um projeto em conjunto com Joanne Garde-Hansen, da Universidade de Warwick, na Inglaterra, esse no âmbito do São Paulo Researchers in International Collaboration (Sprint), da FAPESP. Ele passou 10 dias em Warwick no final de 2015. Entre março e abril deste ano, Rothberg irá receber um pesquisador inglês na Unesp. O workshop que ajudou Rothberg a firmar essas parcerias foi organizado em 2014 por Joanne Garde-Hansen e pelo professor Gilson Schwartz, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “O seminário internacional incentivou pesquisadores de ambos os países a se engajarem na formulação de novos projetos de colaboração”, diz Schwartz. Um ano após a realização do evento, que tratou da relação entre mídias sociais e pESQUISA FAPESP 241  z  35


conhecer o que os brasileiros têm a oferecer.” Investigando como micro-RNAs envolvem-se em quadros de resistência à insulina de animais gerados por mães que receberam dieta rica em gordura e açúcar, Vasconcelos diz que a colaboração é determinante para o andamento de seu estudo. “A Universidade de Cambridge é um centro de excelência em ciências biomédicas. O instituto onde trabalho se encontra no Hospital Universitário de Addenbrooke, uma referência mundial em doenças metabólicas”, explica ele. Vasconcelos foi convidado a participar do FAPESP foi uma das primeiras instituições com as quais o British Council se uniu workshop pelo seu orientador de doutorado, para colocar o programa em prática, após Rui Curi, professor do ICB-USP, que coordenou acordo de cooperação assinado durante a FAPESP o evento em 2015 com Susan Ozanne, pesquisaWeek London, realizada na capital inglesa em se- dora de Cambridge. “Eu conhecia o trabalho de tembro de 2013. No ano passado, o conselho bri- Susan, mas nunca havíamos trabalhado juntos”, tânico celebrou acordo também com o Conselho conta Curi. O grupo coordenado por ele passou Nacional das Fundações Estaduais de Amparo a utilizar um modelo de indução de obesidade em camundongos elaborado à Pesquisa (Confap) para levar pela parceira no Reino Unido. a experiência a outros estados “A área que estuda programado Brasil. “O Reino Unido tem ção metabólica é muito forte interesse em trabalhar com o Brasil em todas as áreas do co“O que era uma nos dois países”, afirma Susan Ozanne. “O workshop ajudou a nhecimento, pois reconhece a aproximação consolidar minha relação com qualidade científica e a impora pesquisa brasileira”, avalia. tância estratégica do país”, diz pontual se Outro workshop que rendeu Claudio Anjos, diretor de edufrutos abordou estudos qualicação e sociedade do British tornou uma tativos em controle de infecCouncil no Brasil. De acordo ções relacionadas à assistência com Diego Arruda, gerente do cooperação à saúde, organizado no ano pasFundo Newton no Brasil, o propermanente”, sado por Maria Clara Padovegrama integra uma estratégia ze, pesquisadora da Escola de mais ampla. “A iniciativa diadiz Sérgio Enfermagem da USP, e Stephen loga com um esforço maior do Timmons, da Universidade de governo britânico de fortalecer Salles-Filho, da Nottingham, na Inglaterra. Dua colaboração científica com o rante a realização do evento, Brasil e outros países, por meio Unicamp foram elaborados seis pré-proda Rede Britânica de Ciência e jetos de pesquisa envolvendo Inovação”, conta. Criada pelos pessoal das duas instituições. ministérios de Relações ExteDentre eles, três conseguiram riores e de Negócios, Inovação e Treinamento do Reino Unido, a rede mantém financiamento e atraíram a participação de pesconexão com instituições públicas e privadas de quisadores de outras universidades, como a Federal de São Carlos (UFSCar), a Estadual de Cam28 países. Boa parte dos workshops realizados resultou pinas (Unicamp) e a Unesp, além de instituições em parcerias. Desde setembro, o pesquisador do britânicas, como o King’s College de Londres e a Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP Queen’s University, de Belfast, na Irlanda do NorDiogo Vasconcelos faz um estágio de pós-douto- te. Segundo Maria Clara, os grupos de pesquisa rado com bolsa do Conselho Nacional de Desen- atuam em temas como as infecções cirúrgicas e volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no as urinárias, dentro de uma abordagem multiInstituto de Ciências Metabólicas da Universi- disciplinar. “Um dos grupos está desenvolvendade de Cambridge. O contato inicial com a ins- do pesquisa na área de políticas públicas para a tituição aconteceu sete meses antes, quando ele prevenção e o controle desse tipo de infecção”, participou de uma reunião sobre metabolismo diz. “A interface entre os países ampliou o inno ICB-USP. “No evento, tive a oportunidade tercâmbio entre alunos de pós-graduação. Isso de discutir aspectos do meu projeto de pós-doc mostra que o modelo empregado no workshop diretamente com pesquisadores do Reino Uni- foi eficiente para construir equipes e redes de do”, diz Vasconcelos. “E eles também puderam pesquisa sustentáveis.” memória coletiva, Schwartz foi convidado para ir a Warwick na condição de professor visitante. “Lá ajudei a definir um programa de pesquisa.” De acordo com Marilda Bottesi, assessora da Diretoria Científica da FAPESP para colaborações em pesquisa, o programa também busca estimular a formação de novos grupos de pesquisa. “O objetivo é fazer o jovem pesquisador vislumbrar logo cedo colaborações com parceiros internacionais”, explica.

A

36  z  março DE 2016


Unido, mas o programa não financia projetos de pesquisa conjuntos. “O objetivo é criar condições para que as parcerias se iniciem”, ressalta Marilda Bottesi, da FAPESP. “Trata-se de um modelo eficiente para as pessoas se conhecerem, mas ainda precisamos de chamadas específicas para financiar projetos internacionais”, afirma Marcos Buckeridge, professor do Departamento de Botânica da USP, que coordenou um workshop sobre parede celular de plantas em março do ano passado “O Reino Unido reconhece a no âmbito do Researcher qualidade científica do Brasil”, diz Links. De acordo com Marilda, um dos caminhos é Claudio Anjos, do British Council os pesquisadores submeterem propostas às respectivas agências de fomento de São Paulo e da Universidade de Manchester”, em suas linhas regulares de financiamento. “Nesdiz ele. Em março de 2015, Salles-Filho coordenou sas propostas, os pesquisadores podem informar um workshop sobre avaliação de políticas cientí- que há uma parceria com alguém do exterior e ficas e de inovação em parceria com Jakob Edler, que o projeto é resultado de contato prévio esdiretor do Manchester Institute of Innovation tabelecido no workshop”, sugere. A FAPESP e o British Council estão desenvolResearch, da Universidade de Manchester. Como resultado, Edler convidou pesquisadores paulistas vendo outras iniciativas para ampliar o contato para integrar uma rede global que avalia políticas entre a pesquisa paulista e a britânica. Uma delas de inovação em todos os continentes. “Formou-se é o programa Researcher Connect, cuja primeira um grupo responsável pela coleta e análise dos chamada foi feita em 2015. Trata-se de uma série dados da América Latina”, diz o brasileiro. “O que de cursos de redação e comunicação científica a princípio era uma aproximação pontual, para a em inglês voltados para pesquisadores em todos realização do evento, se tornou uma cooperação os estágios da carreira. Também foi lançada, em sólida e permanente, que hoje envolve várias ações fevereiro deste ano, uma chamada de propostas e pessoas”, reitera. A partir dessa aproximação, os para identificar e apoiar estudantes no âmbito laços entre as duas instituições foram reforçados do FameLab, uma competição internacional de com a realização de cursos e seminários conjuntos comunicação científica apresentada em 2004 no nos últimos meses, além de projetos de pesquisa. Reino Unido pelo Festival de Ciência de Chel­ O alvo do Researcher Links é provocar a cola- tenham, na Inglaterra, e presente em 32 países. A boração entre pesquisadores do Brasil e do Reino etapa brasileira será coordenada pela FAPESP. n Para Sergio Salles-Filho, professor do Instituto de Geociências da Unicamp, os workshops têm força para impulsionar não apenas parcerias pontuais em torno de projetos específicos, mas também proporcionar um ambiente que resulte em cooperações institucionais e de longo prazo. “O principal desdobramento do evento foi a aproximação entre a Unicamp e outros pesquisadores

pESQUISA FAPESP 241  z  37


Cooperação y

A importância de

estar presente Estudo mostra que colaborações científicas no Brasil ainda são influenciadas pela proximidade entre pesquisadores

O

crescimento da colaboração entre pesquisadores brasileiros ainda é bastante influenciado pela proximidade geográfica dos parceiros. O achado, obtido a partir da análise dos dados de mais de 1 milhão de currículos acadêmicos da Plataforma Lattes, sugere que os avanços em tecnologias de comunicação não foram fortes o bastante para derrubar os efeitos da distância na hora de semear parcerias em artigos científicos. O peso da proximidade continua muito importante, indica artigo publicado em janeiro por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do ABC no Journal of the Association for Information Science and Technology. Segundo o estudo, uma distância de 100 quilômetros (km) entre dois pesquisadores brasileiros reduz a probabilidade de colaboração em 16,3% em média. Mas o efeito não é linear. Um aumento de 300 km na distância diminui a probabilidade de cooperação em 41,3%. Observou-se,

38  z  março DE 2016

ainda, que o fenômeno atinge de modo peculiar as colaborações em diferentes áreas do conhecimento (ver gráfico). Por exemplo: uma distância de 400 km entre dois pesquisadores reduz em 40% as chances de publicar um trabalho em colaboração se eles forem das áreas de linguística, letras e artes, enquanto o impacto chega a 65% caso eles pertençam ao campo das ciências agrárias, exatas e da Terra. Segundo o economista Eduardo Haddad, um dos autores do artigo, o contato pessoal e frequente entre pesquisadores facilita interações e amplifica a produtividade dos parceiros. “Veja o caso do nosso artigo. Envolveu grupos de unidades diferentes da USP, que se encontraram facilmente porque bastava atravessar a rua para conversar”, diz Haddad, que é professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e pesquisador do Núcleo de Economia Regional e Urbana da USP. “A produção científica brasileira cresceu nos últimos anos e esse crescimento en-


Quanto mais perto, mais fácil Efeito da distância geográfica na probabilidade de fazer colaboração científica – 2007 a 2009 100%

Probabilidade de colaboração

80%

Letras e Artes •Linguística, Sociais aplicadas •Humanidades •Engenharias •Saúde •Biológicas •Agrárias •Exatas e da Terra •

60%

40%

20%

0% 0

200 400 600 800 1000 1200 1400 1600 1800 2000

ilustraçãO daniel bueno

Distância geográfica (em km)

volveu um aumento notável do número de colaborações”, afirma o pesquisador. Compreender a dinâmica das colaborações, dentro e fora do Brasil, e estimulá-las é importante para aumentar a visibilidade da pesquisa brasileira, afirma Samile Vanz, professora da Faculdade de Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que se dedica ao estudo de colaborações científicas (ver Pesquisa FAPESP nº 169). “É sabido que artigos escritos por vários autores têm mais chance de ser citados do que os escritos por autores isolados. Ampliar a produção científica implica ampliar as colaborações”, diz ela. A pesquisa que deu origem ao artigo foi feita durante o mestrado do economista Otávio Sidone, orientado por Haddad e concluído em 2013, que analisou a distribuição das redes de colaboração científica no Brasil entre 1990 e 2010. “Meu interesse inicial era estudar como o conhecimento produzido pela universidade transborda para a comunidade e tem impacto no desenvolvimento re-

gional, mas no percurso resolvi me concentrar nos fluxos de conhecimento que ocorrem entre regiões brasileiras”, diz Sidone. A análise do efeito da proximidade nas colaborações tornou-se viável com a participação do pesquisador em ciência da computação Jesús Mena-Chalco, que à época fazia estágio de pós-doutorado no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP – hoje é professor da Federal do ABC. Mena-Chalco foi o autor de um estudo, publicado em 2014, que analisou o perfil das colaborações científicas brasileiras com base no cruzamento de dados de 1,1 milhão de currículos Lattes (ver Pesquisa FAPESP nº 218). “No primeiro trabalho, o foco era o pesquisador. Já nesse estudo buscamos compreender como a geolocalização influencia na colaboração. Eu imaginava que essa influência tinha perdido importância, mas não é o que mostrou a análise dos dados ao identificar as cidades onde trabalham os pesquisadores brasileiros que colaboraram entre

si”, diz Mena-Chalco, que atualmente se dedica a criar uma plataforma com a genealogia dos pesquisadores do Brasil, a fim de mostrar a influência de líderes do passado na formação da geração atual. O projeto é financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As chances de cooperar variam segundo outros fatores. Em campos do conhecimento cuja pesquisa depende de investimentos vultosos em infraestrutura, como grandes laboratórios ou hospitais universitários, a proximidade tem peso maior. “Grandes instalações de pesquisa costumam concentrar-se em grandes cidades e os pesquisadores precisam se deslocar até elas para trabalhar juntos. É mais difícil cooperar a distância”, afirma Eduardo Haddad. “Já em áreas ligadas às humanidades e às ciências sociais, é mais viável fazer pesquisa colaborativa de forma não presencial. Eu, por exemplo, preciso apenas de uma boa conexão à internet e acesso a bancos de dados para trabalhar com colaboradores.” pESQUISA FAPESP 241  z  39


Padrões de cooperação distintos Em ciências da saúde os fluxos de colaboração partem de instituições de São Paulo e irradiam para vários estados. Já em ciências agrícolas há polos em Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul – dados de 1992 a 2009 Ciências agrícolas

O

estudo mapeou quais são os pares de cidades brasileiras em que foram contabilizados os maiores índices de colaboração. Metrópoles que sediam grandes universidades aparecem nesse ranking ao lado de cidades vizinhas com tradição muito menor de pesquisa. Na lista mais recente, com dados de 2007 a 2009, São Paulo desponta na companhia de Santo André (que abriga a jovem Universidade Federal do ABC), o Rio de Janeiro aparece na companhia de Niterói (onde funciona a Federal Fluminense) e de Seropédica (sede da Federal Rural do Rio de Janeiro), assim como Porto Alegre com a cidade gaúcha de Santa Maria (também sede de uma federal). Mas há circunstâncias que superam o efeito da proximidade. Os dados mostram que metrópoles que concentram grande produção científica atraem naturalmente mais colaborações, dentro ou fora de sua área de influência. A capital paulista está em seis das nove parcerias de municípios com colaborações mais frequentes entre 2007 e 2009. Sede do campus principal da USP, que responde por 25% da produção científica brasileira, e de instituições como a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Pontifícia Universida-

40  z  março DE 2016

Ciências da saúde

Metrópoles que concentram grande produção científica atraem naturalmente mais colaborações de Católica de São Paulo (PUC-SP), a capital paulista lidera a lista ao lado de Campinas (onde está a Universidade Estadual de Campinas, Unicamp); aparece em 3º lugar ao lado de Ribeirão Preto (em que fica outro campus da USP); em 4º, com o Rio de Janeiro; em 6º, com Porto Alegre; em 9º, com Santo André; e em 10º, com Curitiba. Dados obtidos

para períodos anteriores destacaram parcerias entre São Paulo e cidades paulistas como São Carlos, sede de uma universidade federal e um campus da USP, e Botucatu, que abriga um dos campi da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “As parcerias entre municípios seguem uma espécie de modelo gravitacional e isso explica por que São Paulo e Rio de Janeiro são líderes naturais de colaborações, tanto com instituições de cidades próximas como distantes”, diz Haddad. O padrão espacial da cooperação pode variar entre as áreas de conhecimento. O artigo apresenta dois exemplos, que também ilustram esta reportagem (ver mapas acima): o fluxo de colaborações nos campos de ciências da saúde e ciências agrárias. No caso da pesquisa em saúde, o fluxo principal de colaborações ocorre dentro do estado de São Paulo, em torno de municípios como a capital paulista, Ribeirão Preto e Campinas. “A concentração nesse corredor é impressionante”, diz Otávio Sidone. Partindo da capital, há uma rede de parcerias com cidades nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Já nas ciências agrárias, o perfil é mais descentralizado. Enxergam-se duas redes distintas. A que mais semeia colaborações parte de Viçosa, cidade mineira


que abriga uma das mais importantes universidades dedicadas à agricultura do país, e se ramifica para diversos estados do Nordeste e do Centro-Oeste. Uma segunda rede envolve cidades paulistas onde existem campi da USP (São Paulo, Piracicaba e Ribeirão Preto), da Unicamp (Campinas) e da Unesp (Jaboticabal e Botucatu). “Há uma rede de colaborações partindo de Viçosa que se vincula a unidades da Embrapa espalhadas pelo país e outra rede de parcerias dentro de São Paulo com interesses regionais, como a produção de biocombustíveis”, diz Eduardo Haddad.

O

pesquisador observa que as colaborações científicas crescem de acordo com um padrão e seguem uma hierarquia. “A grande maioria delas nasce da relação entre pesquisadores e seus orientadores, espalha-se por outras cidades à medida que filhos e netos acadêmicos de líderes de pesquisa vão trabalhar em instituições diferentes e cria novos elos por meio de doutorados sanduíche no exterior ou estágios de pós-doutorado”, diz. Segundo Haddad, as parcerias têm vários níveis de interação. A primeira delas envolve os grandes centros de excelência, que conseguem colaborar com instituições internacionais e se apropriam de conhecimento produzido fora do país. Esses grandes centros vão estabelecer colaborações no Brasil primeiro com grupos mais fortes e, em um segundo momento, com regiões menos desenvolvidas, graças, por exemplo, à conexão com filhos e netos acadêmicos ou a parcerias que envolvem coletas de dados. Especialista em geografia da inovação, Renato de Castro Garcia, professor do Instituto de Economia da Unicamp,

O crescimento das parcerias Evolução do número de colaborações científicas entre pesquisadores do Brasil, com base em publicações registradas em mais de 1 milhão de currículos da Plataforma Lattes

14.000.000

12.999.703 12. 000.000 10.000.000

9.166.621

8.000.000 6.000.000

5.395.697

4.000.000

2.657.677 2.000.000

504.082

1.080.844

0 1992-1994 1995-1997 1998-2000 2001-2003 2004-2006 2007-2009

observa que os resultados sobre as colaborações no ambiente acadêmico coincidem com o que se conhece sobre interações entre pesquisadores e empresas. “Nas relações entre universidades e setor privado, as interações frequentes e o contato face a face permitem que aconteça de modo mais fluente o compartilhamento de um tipo de conhecimento que não está em livros e manuais, mas depende da experiência profissional dos interlocutores”, diz. Mas a proximidade geográfica, afirma Garcia, não é o único fator envolvido em interações que produzem inovações. “Também tem peso o que se chama de proximidade cognitiva, que é uma profunda familiaridade compartilhada entre os interlocutores sobre o tema em questão, a proximida-

Os principais laços de colaboração científica entre municípios brasileiros – 2007 a 2009 Campinas (SP) – São Paulo (SP)

76.716

de temporária, que é a possibilidade de interagir com certa frequência, mas não o tempo todo, por meio de reuniões e visitas técnicas, e a proximidade social, que é o vínculo de confiança entre as duas partes que se estabelece ao longo do tempo e permite a troca constante de informações, mesmo a distância.” Segundo Garcia, esses tipos de proximidade são visíveis no ambiente acadêmico e frequentemente se mesclam. “Orientadores e seus alunos podem se afastar geograficamente, mas preservam as proximidades cognitiva, temporária e social”, afirma. Para Samile Vanz, embora as agências de fomento estimulem a pesquisa em colaboração, deveria haver mais ferramentas para disseminar as parcerias num território extenso como o do Brasil. “Participações em bancas de mestrado, doutorado e concursos públicos são momentos que possibilitam o contato entre pesquisadores e podem representar o início de um projeto de pesquisa em colaboração. No entanto, as diárias pagas pelos programas de pós-graduação estão defasadas, o que leva o pesquisador a arcar com parte de suas despesas de viagem.” n Fabrício Marques

Niterói (RJ) – Rio de Janeiro (RJ)

75.224

Ribeirão Preto (SP) – São Paulo (SP)

74.078

Rio de Janeiro (RJ) – São Paulo (SP)

72.500

Seropédica (RJ) – Rio de Janeiro (RJ)

65.348

Porto Alegre (RS) – São Paulo (SP)

47.343

Santa Maria (RS) – Porto Alegre (RS)

39.252

Artigo científico

Santo André (SP) – São Paulo (SP)

35.694

Curitiba (PR) – São Paulo (SP)

32.692

SIDONE, O. J. G.; HADDAD, E. A.; MENA-CHALCO, J. P. Scholarly publication and collaboration in Brazil: The role of geography. Journal of the Association for Information Science and Technology. on-line, 11 jan. 2016.

pESQUISA FAPESP 241  z  41


ciência  ECOLOGIA y

A maior diversidade de plantas do mundo Botânicos registram 46 mil espécies 250 por ano no Brasil Carlos Fioravanti

42  z  março DE 2016

Claudio Nicoletti Fraga / JBRJ

e identificam em média


D

epois de sete anos de trabalho, um gru­ po de 575 botânicos do Brasil e de ou­ tros 14 países concluiu a versão mais recente de um amplo levantamento sobre a diversidade de plantas, algas e fungos do Brasil, agora calculada em 46.097 espécies. Quase metade, 43%, é exclusiva (endêmica) do território nacional. O total coloca o Brasil como o país com a maior riqueza de plantas no mundo – a primeira versão do levantamento, publicada em 2010, listava 40.989 espécies. Esse número não vai parar de crescer tão cedo porque novas espé­ cies são identificadas e descritas continuamente em revistas científicas. Em média, os botânicos apresentam cerca de 250 novas espécies por ano. Os cinco artigos detalhando a segunda ver­ são da Lista de espécies da flora do Brasil foram publicados em dezembro do ano passado na Rodriguésia, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), como forma de prestigiar a revista, que completou 80 anos em 2015. Dali também brota um alerta para as perdas contínuas de varieda­ des únicas de plantas. Enquanto o levantamento era feito, um grupo de botânicos identificou uma espécie nova de bromélia com uma inflorescên­ cia vermelha, a Aechmea xinguana, em uma área de mata já coberta pela água do reservatório da usina de Belo Monte, em construção no norte do Pará. “Alguns exemplares dessa espécie fo­ ram resgatados e estavam na casa de vegetação do reservatório, mas as populações naturais se perderam na área alagada”, disse Rafaela Cam­ postrini Forzza, pesquisadora do JBRJ e coor­ denadora do levantamento. O trabalho não terminou. Neste mês de março os especialistas em cada grupo de plantas de­ vem começar a incluir as descrições, distribuição geográfica detalhada e outras características de cada espécie no banco de dados on-line Flora do Brasil (floradobrasil.jbrj.gov.br) para servir de base para o Flora do Brasil Online, que deve estar concluído até 2020 para integrar o World Flora Online, com informações sobre todas as plantas conhecidas do mundo. Na trilha dos bo­ tânicos, os zoólogos se organizaram e apresen­ taram também em dezembro de 2015 a primei­ ra versão do Catálogo Taxonômico da Fauna do Brasil (CTFB), resultado do trabalho de cerca de 500 especialistas, que começaram a detalhar as informações sobre 116.092 espécies, a maioria artrópodes, com quase 94 mil es­ pécies ou 85% do total (fauna.jbrj. Bromélias Encholirium fragae crescem gov.br/fauna/listaBrasil). sobre um afloramento Elaborado a pedido do Ministé­ de rocha calcária rio do Meio Ambiente, com finan­ do município de ciamento do governo federal, ins­ São Desidério, Bahia pESQUISA FAPESP 241  z  43


Planta feminina de Gnetum leyboldii do Parque Estadual Cristalino, no Mato Grosso, uma das seis espécies de Gnetum da Amazônia: o que parece frutos são na verdade sementes (ao lado); e Rhipsalis flagelliformis, espécie de cacto exclusiva do Rio de Janeiro (abaixo)

tituições privadas e fundações estaduais como a FAPESP, o Flora do Brasil indica que a Amazônia abriga a maior diversidade do grupo das plantas sem frutos e com sementes expostas, as gimnos­ permas, que predominaram de 300 milhões até 60 milhões de anos atrás, quando os dinossauros circulavam pela Terra. Seus representantes mais conhecidos são árvores em formato de cone típi­ cas do clima frio do sul do país, como a araucária, com uma única espécie no Brasil, e quatro espé­ cies de Podocarpus. Dispersas nas matas da região Norte, porém, vivem seis espécies de cipós de fo­ lhas largas do gênero Gnetum, que crescem sob o clima quente e úmido ao redor de árvores. Suas sementes vermelhas ou lilases são tão parecidas com frutos que já confundiram até os botânicos.

O

s quase 50 mil exemplares de espécies nativas colocam o Brasil como o país con­ tinental com maior diversidade de espé­ cies do mundo, seguido por China, Indonésia, México e África do Sul. Em número de espécies endêmicas, perde apenas para grandes ilhas co­ mo Austrália, Madagascar e Papua Nova Guiné, cujo isolamento favorece a formação de varieda­ des únicas, e para apenas uma área continental, o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul. O total de espécies não chega aos 60 mil das es­ timativas mais otimistas, mas é maior que o da Colômbia, antes vista como o país da América do Sul com maior diversidade, e é mais que o dobro das 22.767 espécies descritas na monumental

44  z  março DE 2016

Flora brasiliensis, coleção de 15 volumes e 10.367 páginas escrita por 65 botânicos de vários países sob a coordenação de Carl Friedrich Philipp von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, e publicada de 1840 a 1906. Na Flora brasiliensis, o grupo predominante, com 32.813 espécies, são as plantas com sementes protegidas por frutos carnosos ou secos, as chamadas angios­ permas. Nesse grupo estão as árvores como o ipê e o jacaran­ dá, a roseira e outras espécies ornamentais, o feijão, o amen­ doim, o milho e a maioria dos vegetais usados na alimenta­ ção. Somente de feijões, per­ tencentes aos gêneros Vigna, Canavalia e Phaseolus, a flora brasileira registra cerca de 30 espécies nativas e naturaliza­ das, “a maioria delas com um potencial para a alimentação humana ainda pouco investiga­ do”, comentou Vinicius Souza, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) que participou da produção e organização das infor­ mações desse trabalho. As angiospermas se espalharam quando o clima se tornou quente e úmido, depois da extinção dos dinossauros. As mudanças do clima eliminaram

2

fotos 1 Denise Sasaki / Programa Flora Cristalino 2 Gerardus Oolstrom

1


Novas plantas do Brasi l

Aechmea xi

nguana 2

cinco anos ntificadas nos últimos

Algumas espécies ide

Simaba tocantina

1

gu

Amazônia

X in

3

14.035

Rio

infográfico ana paula campos  fotos e ilustrações botânicas 1 Marcelo Kubo / USP 2 Ana Kelly Koch / IBt-SP 3 Paulo Ormindo 4 Maria Alice Rezende 5 Marcos Vinicius Meiado / UFS 6 João Iganci / USP

Encholirium fragae

espécies

Caatinga 5.780 espécies

Melocactus sergipensis

Cerrado Pantanal

4

espécies

1.518

Bromelia gracilisepala

or es Plantas com fl

13.488

espécies

Mata Atlântica

Total de espécies

5

20.241 espécies

Endêmi cas

Pampa 1.899 espécies

Fungos

5.712 espécies

Angiospermas 32.813 espécies

19.503 endêmicas

124 endêmicas

Algas

4.747 espécies 197 endêmicas

2,2% 4,1% 19,6%

Baccharis nebularis

57,5% 8,7%

6

Gimnospermas 30 espécies

2 endêmicas

Fonte  Grupo da Flora do Brasil  Obs.: O total de espécies por bioma inclui plantas e fungos

Briófitas

1.524 espécies 299 endêmicas

36,7%

Samambaias e licófitas 1.253 espécies

460 endêmicas


a maioria das gimnospermas, hoje raras em todo o mundo: os botânicos encontraram apenas 30 espécies, sendo 23 nativas, desse grupo no Brasil. Por sua vez, as samambaias e as licófitas – plantas sem sementes e sem flores, que se reproduzem por esporos, também com origem antiga – estão representad​as por 1.253 espécies no Brasil​; algu­ mas d ​ elas a​ tingem 20 metros de altura, lembrando as variedades gigantes que marcavam a paisagem terrestre há 300 milhões de anos. Alegria e inquietação

Os botânicos agora convivem com a satisfação de ver mais uma etapa do projeto concluída e, ao mesmo tempo, uma desagradável inquietação, porque eles sabem que a distribuição geográfica das coletas de amostras de plantas, sobre as quais o trabalho foi feito, não era equilibrada: havia muito mais informações sobre as regiões Sul e Sudeste, onde se concentram as coletas, os gru­ pos de especialistas e as instituições de pesquisa, do que nas outras partes do país. Enquanto no Rio de Janeiro havia 5,8 coletas por quilômetro quadrado (km2) e no Espírito Santo, 3,9 por km2, no Pará e no Amazonas essa relação era de 0,10 e 0,17 por km2. Provavelmente por causa do número de cole­ tas aquém do desejado pelos botânicos, o estado do Amazonas aparece em terceiro lugar entre os estados com maior diversidade, seguindo Minas Gerais, em primeiro, e Bahia. Os botânicos não es­ tão satisfeitos com esse resultado. “No Amazonas poderia haver pelo menos mais 20 mil espécies ainda não amostradas”, disse Souza. São Paulo encontra-se em quarto lugar de di­ versidade. Além de ser um espaço bastante per­ corrido por expedições botânicas, o estado apre­ senta uma variedade de relevos, com planícies a oeste e montanhas a leste, e de tipos de vegetação que favorecem a formação de novas espécies. “Tanto as formações vegetais de clima frio que vêm do sul quanto as de clima quente, como o Cerrado, param em São Paulo”, disse José Rubens Pirani, professor do Instituto de Biociências (IB) da USP (ver tabela na página 45). “Infelizmente, mantivemos a distorção do tra­ balho de Von Martius, que coletou principalmen­ te na Mata Atlântica, Caatinga e Cerrado e andou pouco pela Amazônia”, comentou Rafaela. “Pre­ cisamos de um plano nacional de mapeamento das espécies de plantas da Floresta Amazônica para resolver o problema da subamostragem do maior bioma brasileiro, que representa metade do território nacional.” Elaborado com informações mantidas em her­ bários e em bases on-line como o Reflora, atual­ mente com 1.390.218 registros de plantas nativas (ver Pesquisa FAPESP nº 229), o levantamento apontou a Mata Atlântica como o bioma com 46  z  março DE 2016

1, 2 e 3 Pelos laboratórios da empresa circulam 300 pesquisadores 4 Detalhe do prédio feito de concreto aparente e vidro

maior diversidade de angiospermas, samam­ baias, licófitas e fungos, em razão de coletas mais numerosas e da variedade de altitudes, climas e latitudes. Em segundo lugar está a Amazônia e em terceiro, o Cerrado. “Ainda estamos longe dos prováveis números reais”, observou Souza. “Quanto maior o número de coletas por região ou estado, maior o número de espécies.” Uma evidência de sua afirmação é que, por causa das coletas mais numerosas, a diversidade de plantas do Tocantins aumentou 70% e a do Piauí, 40%, em relação ao registrado na primeira versão da Flora, de 2010. “Não estáva­ mos trabalhando lá e as plantas não apareciam”, comentou Pirani. Em 2013, com sua equipe, ele identificou uma espécie nova de arbusto, Simaba tocantina, em uma área de Cerrado pouco conhe­ cida no interior e nas proximidades do parque do Jalapão, leste do Tocantins, marcada por vastos areais como os descritos no livro Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

Em aclimatação na capital paulista: flor e fruto de Euphorbia attastoma, cacto endêmico da serra de Grão Mogol, MG, com látex fosforescente


Flor de japaranduba (Erythrochiton brasiliensis), arvoreta do interior de trechos inalterados da Mata Atlântica úmida

Na região Norte, as áreas menos estudadas são as mais propícias ao avanço das novas plantações de soja e cana-de-açúcar. “O desmatamento é muito mais rápido do que nossa capacidade de conhecer a floresta”, queixou-se a botânica pau­ lista Daniela Zappi, pesquisadora do Kew Gar­ dens, de Londres. “É um desespero. Parece que não vai dar tempo de chegar nessas áreas, prin­ cipalmente no Arco do Desmatamento, entre o norte do Mato Grosso e o sul do Pará.”

fotos  eduardo cesar

A

s cactáceas, um dos grupos em que ela é especialista, apresentam uma elevada diversidade no Brasil – em Minas vivem 103 espécies e na Bahia, 98 –, mas 32% das 260 espécies desse grupo encontram-se em grau va­ riável de risco de extinção. As áreas que ocupam são continuamente substituídas por plantações de eucalipto, agricultura ou mineração. Os cac­ tos são explorados como plantas ornamentais e colhidos para servir como alimento para o gado ou para pessoas, que também os usam como fonte de medicamentos, geralmente sem se preocupar em repor as populações originais. Outro problema é que muitas espécies crescem apenas em áreas específicas. É o caso do Arrojadoa marylaniae, um cacto colunar com anéis de flores vermelhas que cresce apenas sobre uma jazida de quartzo branco de valor comercial no interior da Bahia. O trabalho de identificação e estudo da distri­ buição geográfica de cada espécie está atrelado

a um plano de ação, de modo a estudar e favore­ cer a polinização e germinação de espécies em maior risco de extinção. As ações de preservação incluem a participação de pesquisadores não acadêmicos. Gerardus Oolstrom, um criador de cactos comerciais em Holambra, interior pau­ lista, trabalhou com botânicos acadêmicos na identificação de uma espécie nova, a Rhipsalis flagelliformis, que ele viu pela primeira vez cul­ tivada em um sítio que havia sido do paisagista Roberto Burle Marx no bairro de Guaratiba, na cidade do Rio de Janeiro. “Os colecionadores, quando integrados com os grupos de pesquisa, podem ajudar muito no trabalho de localização e preservação das espécies”, observou Daniela. Rafaela também trabalha com o advogado Elton Leme, um botânico não profissional, na caracte­ rização de três novas espécies do gênero Encholirium, que vivem entre rochas em morros da Bahia e de Minas Gerais. Por sua vez, pesquisadores da Fundação Zoo-Botânica de Belo Horizonte espalharam cartazes com o título “Procura-se” e fotos e informações sobre o faveiro-de-wilson, uma árvore rara, e conseguiram localizar muitos exemplares com a ajuda de moradores do interior de Minas (ver Pesquisa Fapesp no 235). “Não precisamos plantar apenas rosas e aza­ leias”, propôs Pirani enquanto caminhava pelos corredores amplos e ensolarados do herbário do IB-USP no início de janeiro. “Cultivar plan­ tas ornamentais nativas em nossas casas, nas ruas e nas margens de estradas é uma forma de preservar a diversidade.” Em seguida ele apre­ sentou um arbusto de flores azuis, a canela-de­­­-ema, duas bromélias, o gravatá e a macambira, e outras plantas coletadas na serra de Grão Mogol, norte de Minas Gerais, que ele procura adaptar ao clima da capital. “Aqui chove mais do que em Minas, mas, mesmo assim, algumas delas flores­ cem todo ano.” n

Artigos científicos COSTA, D. P. e PERALTA, D. F. Bryophytes diversity in Brazil. Rodriguésia. v. 66, n. 4, p. 1063-71. 2015. MAIA, L. C. et al. Diversity of Brazilian Fungi. Rodriguésia. v. 66, n. 4, p. 1033-45. 2015. MENEZES, M. et al. Update of the Brazilian floristic list of Algae and Cyanobacteria. Rodriguésia. v. 66, n. 4, p. 1047-62. 2015. PRADO, J. et al. Diversity of ferns and lycophytes in Brazil. Rodriguésia. v. 66, n. 4, p. 1073-83. 2015. THE BRAZIL FLORA GROUP. Growing knowledge: an overview of seed plant diversity in Brazil. Rodriguésia. v. 66, n. 4, p. 1085-113. 2015.

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zoologia y

As viagens das tartarugas marinhas Genética ajuda a delimitar populações de espécie ameaçada de extinção Maria Guimarães

48  z  março DE 2016

S

ão animais discretos na água e em terra parecem vulneráveis demais, quando se arrastam pe­ la areia em busca de onde de­ positar os ovos. No mar, as tartarugas­ -de-pente estão em casa e, deslizando debaixo d’água, podem migrar de uma área de reprodução nas ilhas Seychelles, no oceano Índico, para alimentar-se no Atlântico, na região de Fernando de No­ ronha. São pontos com latitudes muito próximas, mas para chegar de um a outro é preciso contornar a África, o que elas parecem fazer quase como se fossem do quarto à cozinha, mesmo que raramente. A geneticista Sarah Vargas, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), quer entender melhor es­

ses trajetos, em parte para indicar áreas que possam ajudar a evitar a extinção da espécie, considerada criticamente ameaçada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). O trabalho da pesqui­ sadora já trouxe uma boa notícia: essas tartarugas, famosas por desovar no lu­ gar onde nasceram, parecem ter alguma flexibilidade em suas rotas, de acordo com artigo que será destacado na capa de uma das próximas edições da revista Journal of Heredity. No ano que passou na Austrália no laboratório da evolucionista Nancy Fitz­Simmons, à época na Universidade de Canberra, Sarah analisou o DNA de amostras de pele dessas tartarugas reco­


lhidas em 13 pontos de nidificação (onde põem os ovos) diferentes dos oceanos Índico e Pacífico, região conhecida como Indo-Pacífico: no Irã, na Arábia Saudita, nas ilhas Seychelles, nas ilhas Chagos, na Malásia, na Austrália e nas ilhas Salomão. “As populações dessa região não estavam caracterizadas”, conta a brasileira, que naquele momento fazia doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais sob orientação do geneticista Fabrício Santos. “Quando amostramos tartarugas presas em redes de pesca no Atlântico, não temos como saber de onde vieram se não conhecermos o maior número possível de populações.”

Rainer von Brandis

C

omo estudar a ecologia desses ani­ mais é uma tarefa que oferece mais desafios do que satisfações (trans­ missores de rádio, que permitem segui­ -las, podem se descolar da carapaça em poucos meses), a genética acaba sendo o recurso possível. Em 2015, já professora da Ufes, Sarah voltou à Austrália como bolsista de pós-doutorado do programa Ciência sem Fronteiras, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí­ fico e Tecnológico (CNPq), e passou 10 meses na Universidade de Sidney ana­ lisando os dados no laboratório do evo­ lucionista computacional Simon Ho. Os resultados derrubaram o dogma de que as tartarugas necessariamente voltam à praia natal para a própria reprodução, ao mostrar que há uma mistura genética entre linhagens maternas com origens distintas, e também indicaram que a se­ paração de populações é mais complexa do que se pensava. Como no oceano não há barreiras geo­ gráficas óbvias, a distância entre áreas de reprodução é tida como a principal separação entre populações – 500 qui­ lômetros (km) seriam suficientes para garantir a diferenciação genética. Mas não é bem o que apareceu nos dados. Nem sempre, pelo menos. As tartaru­ gas que nidificam em duas áreas na cos­ ta iraniana separadas por cerca de 200 km parecem ser de populações separa­ das, mas cada uma delas está em contato reprodutivo com a Arábia Saudita, do outro lado do golfo Pérsico. “Achamos que é porque cada um dos pontos no Irã está mais próximo da Arábia Saudita do que um do outro”, explica Sarah. O con­ trário também surpreendeu: duas áreas na Austrália separadas por 800 km são

“É muito importante caracterizarmos mais áreas para aumentar a resolução na análise”, diz Maira Proietti

homogêneas do ponto de vista genético. “Não deveria haver troca genética entre essas duas populações porque uma delas tem o pico de desova no verão e outra no inverno e na primavera”, diz Sarah. “Essa distinção temporal deveria fun­ cionar como uma barreira reprodutiva.” A explicação possível é que a separação entre essas populações é recente e ainda não está refletida no DNA mitocondrial, o tipo de material genético analisado no estudo, que funciona como um testemu­ nho da história mais antiga. Os resultados permitem identificar oi­ to áreas, entre os 13 pontos amostrados, que precisam estar representadas em unidades regionais de manejo de con­ servação para garantir a manutenção das linhagens distintas das tartarugas dessa espécie no Indo-Pacífico. Agora Sarah pretende caracterizar populações do delta do Parnaíba, entre o Piauí e o Maranhão, tanto da tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata) como da tarta­ ruga-de-couro (Dermochelys coriacea), para saber de onde vêm e há quanto tem­ po estão na região. Outros estudos, como o feito pela ocea­nóloga Maira Proietti, professora da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e publicado em 2014 na PLoS One, mostram que boa parte das tartarugas­

-de-pente que se alimentam em águas brasileiras tem origem doméstica, prin­ cipalmente da Bahia e do Rio Grande do Norte – mas sem excluir trocas com o Caribe e a África. O grupo analisou amos­ tras de 157 tartarugas jovens coletadas em áreas de alimentação no Caribe e no Brasil – incluindo a região costeira do Rio Grande do Sul ao Ceará e os arquipélagos de Fernando de Noronha e São Pedro e São Paulo, respectivamente, a cerca de 350 km e mil km da costa – e detectou uma certa homogeneidade, embora seja possível discernir uma estrutura genética associada às correntes marinhas. “As cor­ rentes parecem influenciar como esses animais se dispersam no oceano”, conta Maira, que comparou os dados genéticos ao rastreamento de boias de deriva lan­ çadas ao mar por projetos internacionais. Para duas das amostras não foi possí­ vel identificar a população de origem. “É muito importante caracterizarmos mais áreas para aumentar a resolução na aná­ lise”, pondera a pesquisadora. Ela não descarta que as tartarugas em questão tenham vindo de áreas distantes, como as estudadas por Sarah. Maira ressalta a importância de se mapear a conexão entre as áreas, já que os impactos ecoló­ gicos em um local podem afetar os ani­ mais muito longe dali.

A

genética pode ser a base para tra­ çar planos de manejo, importan­ tes não só pela proteção das tar­ tarugas em si, que no Brasil é feita de maneira cuidadosa pelo projeto Tamar, mas pela importância ecológica desses animais. As tartarugas-de-pente se ali­ mentam de esponjas, anêmonas, lulas e camarões, e ao controlar a população desses organismos ajudam a manter a saúde de recifes de coral. Apesar de ain­ da haver alguma exploração da tartaru­ ga-de-pente no mundo tanto para uso do casco como para alimento, além da captura acidental em redes de pesca e ingestão de lixo marinho, a legislação as protege. Legalmente, já não se pode fazer pentes com suas carapaças. n

Artigos científicos VARGAS, S. M. et al. Phylogeography, genetic diversity, and management units of hawksbill turtles in the IndoPacific. Journal of Heredity. on-line. 27 nov. 2015. PROIETTI, M. C. et al. Genetic structure and natal origins of immature hawksbill turtles (Eretmochelys imbricata) in Brazilian waters. PLoS One. v. 9, n. 2, e88746. fev. 2014.

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imunologia y

Parasitas cujo DNA aparece como pontos azuis infestam células e, em estágio posterior (vermelho), se preparam para sair da hospedeira

Uma forma de conter parasitas Mecanismo recém-descoberto destrói agentes causadores da doença de Chagas

Q

uando o sistema de defesa humano é avisado de uma infecção por parasitas, como os causadores da doença de Chagas, da leishmaniose e da toxoplasmose, uma operação altamente eficiente impede que os microrganismos se disseminem dentro das células e se espalhem pelo organismo. O mecanismo de ataque a esses parasitas intracelulares acaba de ser desvendado, de acordo com artigo publicado em janeiro no site da revista Nature Medicine. “Esse conhecimento pode nos ajudar a pensar em vacinas mais eficientes na indução dos linfócitos do tipo TCD8, um problema em imunologia”, diz o imunologista Ricardo Gazzinelli, do Centro de Pesquisas René Rachou, braço da Fundação Oswaldo Cruz em Minas Gerais, e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCTV).

50  z  março DE 2016

É sabido que os linfócitos citotóxicos detectam e combatem os patógenos que residem nas células, enquanto os anticorpos vigiam o ambiente fora delas. Mas até agora não se sabia bem como os linfócitos TCD8 atuavam no combate a protozoários e bactérias. “É importante contra vírus”, explica Gazzinelli, “porque destrói a célula infectada da qual eles dependem para se proliferar”. Ocorre que as bactérias e os parasitas são organismos autônomos e, se liberados no meio extracelular, uma vez morta a célula hospedeira, estão aptos a infectar outras células. Especialista nas relações entre o sistema imunológico humano e os parasitas causadores de doenças (ver Pesquisa FAPESP nºs 160, 164 e 221), o pesquisador mineiro passou o ano acadêmico de 2013/2014 nos Estados Unidos, graças a uma bolsa de professor visitante na cátedra Capes/Centro David Rocke-

feller para Estudos Latino-americanos da Universidade Harvard, para a qual foi selecionado. Logo no início, depois de apresentar seu trabalho numa palestra, foi procurado pela física e médica Judy Lieberman, cujo laboratório investiga os mecanismos moleculares pelos quais os linfócitos citotóxicos destroem células infectadas com vírus e bactérias. “Será que funciona da mesma maneira para protozoários?”, ela perguntou. Começou aí a parceria dinâmica que também envolveu o médico Farokh Dotiwala, do laboratório de Judy, e o biólogo Rafael Polidoro, à época estudante de doutorado que acompanhou Gazzinelli a Harvard. O primeiro resultado foi a descrição do mecanismo destruidor de parasitas intracelulares: a microptose. O termo é inspirado na apoptose, a morte celular, por serem aparentemente muito semelhantes: formam-se bolhas


localização

Estratégia letal Mecanismo identificado em células humanas pode explicar infecções assintomáticas

Célula infectada

Núcleo

ataque

1

Parasitas

2

Núcleo

Grânulos citotóxicos

Linfócito TCD8

As células de defesa reconhecem as infectadas por meio de marcadores na membrana

Quando encontram o alvo, os linfócitos liberam grânulos que contêm substâncias proteolíticas

n Perforina n Granulisina n Graenzima

Fonte  RICARDO GAzzinelli

3

infecção é contida

PARASITAS ESCAPAM

Microptose Parasitas morrem

Apoptose Célula infectada morre

foto rafael polidoro / ufmg  infográfico  ana paula campos ilustraçãO pedro hamdan

Em seres humanos, o sistema leva à morte dos parasitas antes da destruição da célula hospedeira; linfócitos de roedores, sem granulisina, não causam microptose

na membrana celular, as mitocôndrias ficam dilatadas, o DNA é danificado e a cromatina, que contém o material genético, aparece condensada. O que diferencia as duas mortes são os atores. No caso da apoptose, os linfócitos reconhecem as células infectadas por meio de marcadores apresentados pelo sistema de defesa e liberam minúsculas bolsas, ou grânulos, contendo uma proteína que faz furos na membrana, a perforina, e uma enzima chamada graenzima. Esta entra na célula e degrada proteínas relevantes para a homeostase, levando à morte celular. Gazzinelli, Judy e colaboradores mostraram que os linfócitos TCD8 humanos (mas não os de roedores) liberam também uma substância antimicrobiana chamada granulisina, que entra na célula infectada e é atraída por membranas com baixo teor de colesterol: a dos parasitas. A granulisina perfura a membrana dos parasitas e bactérias invasores e permite a entrada da graenzima, que gera compostos muito reativos à base de oxigênio (os radicais livres) e desativa os mecanismos de defesa do microrganismo contra o estresse oxidativo. São esses processos

oxidativos que, na maioria das vezes, eliminam o parasita. Quando se examina esse ataque ao microscópio, a aparência é muito semelhante à da apoptose. Mas distinções químicas inerentes ao organismo – a apoptose depende de enzimas chamadas caspases, que não existem nos protozoários – e os atores distintos (granulisina e microrganismos) justificaram a criação do novo termo, microptose. eficiência

“Uma coisa surpreendente é que a morte dos parasitas é mais rápida que a da célula hospedeira, embora seja desencadeada depois”, comenta Gazzinelli. Isso impede que os protozoários escapem e invadam outras células, uma situação que precisaria ser combatida pelo sistema imunológico por meio de macrófagos patrulhando o meio entre as células e devorando os invasores. Era o que, até agora, se imaginava que acontecia. “Isso explica por que os TCD8 são tão eficientes no combate às infecções por protozoários intracelulares”, conclui o pesquisador. Pode ser por isso que muitos casos de doença de Chagas, por exemplo, são assintomáticos.

Também é importante a descoberta de que a granulisina não existe em todas as espécies. “A utilidade de fazer estudos de certas doenças usando camundongos tem que ser revista”, alerta Gazzinelli, embora não os descarte como cobaias. Seu grupo reiterou a descoberta produzindo roedores transgênicos capazes de expressar a proteína, e eles se mostraram muito mais resistentes a infecções por protozoários. Frutífera, a parceria entre os grupo de Minas Gerais e de Harvard deve continuar nos próximos anos. “Pretendemos dissecar o papel dos linfócitos TCD8 no combate a essas infecções”, explica Gazzinelli. “Por que nem sempre funciona? Por que existem pacientes que desenvolvem a doença de Chagas?” Nesse contexto, Rafael Polidoro defendeu sua tese em 2014 e no ano seguinte se mudou para o laboratório de Judy Lieberman, para um estágio de pós-doutorado. No contexto das vacinas, o pesquisador mineiro também pretende rever os testes de uma vacina terapêutica contra a doença de Chagas proposta em 2015 a partir de um estudo publicado na PLoS Pathogens, liderado pelos imunologistas Joseli Lannes-Vieira, da Fundação Oswaldo Cruz, e Maurício Rodrigues, professor da Universidade Federal de São Paulo falecido no ano passado que compartilhava a coordenação do INCTV. “Queremos usar a vacina nos camundongos transgênicos expressando granulisina para ver se é mais eficiente”, conta Gazzinelli. n Maria Guimarães Artigos científicos DOTI WALA, F. et al. Killer lymphocytes use granulysin, perforin and granzymes to kill intracellular parasites. Nature Medicine. on-line. 11 jan. 2016. PEREIRA, I. R. et al. A human type 5 adenovirus-based Trypanosoma cruzi therapeutic vaccine re-programs immune response and reverses chronic cardiomyopathy. PLoS Pathogens. v. 11, n. 1, e1004594. 24 jan. 2015.

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ASTROFÍSICA y

Mais uma janela para o Universo Detecção de ondas gravitacionais deverá gerar estudos sobre fenômenos altamente energéticos que emitem pouca ou nenhuma luz Igor Zolnerkevic

N

o dia 14 setembro de 2015, os instrumentos do Observatório Interferométrico de Ondas Gravitacionais (Ligo), nos Estados Unidos, registraram pela primeira vez a passagem de ondas gravitacionais pela Terra. A observação comprovou a existência dessas deformações do próprio espaço, que Albert Einstein previu há 100 anos usando a sua Teoria da Relatividade Geral, de 1915. Os pesquisadores esperam a partir de agora aproveitar essas ondas para estudar fenômenos astrofísicos altamente energéticos que emitem pouca ou nenhuma luz, o que os torna quase impossíveis de serem observados, mesmo pelos mais potentes telescópios disponíveis. “O que vem a seguir é realmente empolgante”, disse o físico David Reitze, diretor executivo do Ligo, no anúncio à imprensa da descoberta histórica. 52  z  março DE 2016

“Como quando Galileu olhou para o céu com um telescópio pela primeira vez, em 1509, abrimos agora uma nova janela para o Universo.” Após meses de análises e verificações, a equipe internacional de pesquisadores do Ligo concluiu que a origem das ondas teria sido um violento evento cósmico nunca antes registrado por um observatório astronômico: a colisão e a fusão de dois buracos negros ocorridas a 1,3 bilhão de anos-luz da Terra. De acordo com esses cálculos, publicados em 11 de fevereiro na Physical Review Letters, a fusão dos buracos negros teria liberado uma quantidade de energia equivalente à da aniquilação completa de três estrelas com a massa do Sol em menos de 0,2 segundo. O mais surpreendente é que, ao que parece, nada dessa energia foi liberada na forma de luz ou de partículas de matéria. O choque dos buracos negros gerou uma explosão invisível e sua ener-

gia espalhou-se pelo Universo na forma de ondas gravitacionais. A um só tempo, o registro feito pelo Ligo representa a primeira evidência direta da existência de ondas gravitacionais e de buracos negros. Antes, só haviam sinais indiretos. “É uma confirmação espetacular de nossos cálculos feitos a partir da Teoria da Relatividade Geral”, afirmou o físico italiano Riccardo Sturani, do Instituto Sul-americano de Pesquisa Fundamental do Centro Internacional de Física Teórica (ICTP-SAIFR), que funciona em São Paulo em parceria com o Instituto de Física Teórica da Unesp. Sturani faz parte da equipe de mais de mil pesquisadores de 15 países que colaboraram no desenvolvimento tecnológico do Ligo e na análise de seus dados. Ele é especialista em calcular as formas das ondas gravitacionais que resultam de colisões violentas entre corpos celestes densos e compactos, que


imagem S. Ossokine, A. Buonanno (Max Planck Institute for Gravitational Physics), W. Benger (Airborne Hydro Mapping GmbH)

Buracos negros prestes a colidir emitem ondas gravitacionais, visíveis em cores falsas nesta simulação em computador

têm massas semelhantes à de estrelas gigantes concentradas em volumes com uns poucos quilômetros de diâmetro. Os astrofísicos só conhecem dois tipos de objetos assim: os buracos negros e as estrelas de nêutrons. Criadas a partir da implosão do núcleo de uma estrela gigante, as estrelas de nêutrons concentram a massa de 1 a 3 sóis em uma esfera de 20 quilômetros de diâmetro. Os astrônomos observam rotineiramente a luz, as ondas de rádio e os raios X emitidos por estrelas de nêutrons, mas ainda não sabem muito sobre o seu interior. “No centro de uma estrela de

nêutrons existem pressões e densidades altíssimas, mais elevadas do que aquelas no interior do núcleo de um átomo”, explica Cecilia Chirenti, física teórica da Universidade Federal do ABC. Ela investiga como a forma das ondas gravitacionais emitidas por estrelas de nêutrons pode variar de acordo com a composição interna desses astros. “Não sabemos como a matéria se comporta nessas condições. Existem muitos modelos e as ondas gravitacionais podem ajudar a verificar qual representa melhor a realidade.” Desde 1974 os astrônomos observam indiretamente ondas gravitacionais vin-

das de estrelas de nêutrons. Mas essas ondas têm amplitude e frequência baixas demais para serem detectadas pelo Ligo. Assim como as estrelas de nêutrons, os buracos negros também podem ser criados pela implosão do núcleo de estrelas gigantes, de massa ainda mais elevada. Nesse caso, a implosão provoca o colapso total da matéria, que é transformada em energia gravitacional pura. No lugar do antigo núcleo estelar, surge uma superfície esférica no espaço vazio chamada de horizonte de eventos. Nada, nem mesmo a luz, escapa da força gravitacional dessa superfície – daí a origem do nome, buraco negro. pESQUISA FAPESP 241  z  53


Assim como os buracos negros, as ondas gravitacionais são algumas das previsões mais famosas da Teoria Relatividade Geral de Einstein. Ele a formulou em 1915 para explicar a gravitação com base em sua Teoria da Relatividade Restrita, de 1905. Segundo a Relatividade Geral, a gravidade não é uma força de atração que atua instantaneamente entre dois corpos, como havia proposto dois séculos antes o físico e matemático inglês Isaac Newton. A Teoria da Relatividade Restrita proíbe a existência de forças instantâneas, porque, de acordo com ela, nada pode viajar mais rápido do que a velocidade da luz. Para corrigir esse detalhe da teoria de Newton, Einstein teve de reinterpretar a ideia de gravitação, que deixa de ser vista como uma força e passa a ser entendida como uma deformação na geometria do espaço provocada pela massa dos corpos. É mais fácil entender o que acontece quando se imagina uma bala de canhão colocada no centro de uma cama elástica. A bala esgarça a trama e afunda. Se alguém jogar uma bola de bilhar tangencialmente à bala de canhão, verá que a bola menor não percorre uma linha reta. Ela passará, a partir de certo ponto, a descrever círculos ao redor da bala, algo semelhante ao que a Terra faz em sua órbita em torno do Sol. A fonte das deformações no espaço é a presença de uma grande massa como a do Sol ou da Terra. Einstein percebeu que, em certas circunstâncias, um corpo em movimento acelerado também poderia causar deformações passageiras no espaço, que se propagariam na forma de

Sinal de uma colisão cósmica invisível Ondas gravitacionais geradas em galáxia distante viajaram 1,3 bilhão de anos-luz até chegar à Terra

Sentido de propagação das ondas Buracos negros

Espaço deformado

colisão de buracos negros Em uma galáxia muito distante e ainda desconhecida, dois buracos negros emitem ondas gravitacionais enquanto espiralam um ao redor do outro até colidirem e se fundirem, formando um novo buraco negro

ondas viajando à velocidade da luz. Na prática, essas ondulações seriam percebidas como uma força passageira que deforma os objetos que encontra em seu caminho (ver infográfico acima). Einstein notou ainda que, em geral, a deformação (amplitude) dessas ondas seria pequena demais para ser detectada. A partir dos anos 1960, percebeu-se que talvez fosse possível medir as ondas. Logo ficou claro que a maioria das fontes de ondas gravitacionais estaria a centenas de milhões de anos-luz de dis-

Fonte LIGO Scientific Collaboration

tância. Quando elas chegassem à Terra, estariam tão diluídas que provocariam deslocamentos ínfimos. Mesmo assim, grupos de pesquisadores em diversos países se aventuraram a construir detectores de ondas gravitacionais. Por ora, o Ligo é o maior e o mais sensível deles. O projeto foi concebido em 1982 e a construção terminou quase 20 anos mais tarde. Em 2010, uma reforma aumentou em três vezes a sua sensibilidade. Ao ser religado em setembro de 2015 os instrumentos detectaram ondas gravitacionais já nos primeiros dias de operação. O Ligo possui dois detectores gêmeos, um na cidade de Hanford, no estado de Washington, e o outro a 3 mil quilômetros dali, em Livingston, na Louisiana. Os prédios dos detectores têm a forma de “L”, com cada braço medindo 4 quilômetros. Um sistema de lasers e espelhos monitora alterações ínfimas no comprimento de cada braço. Os detectores captam uma quantidade imensa de ruído, como o provocado pelo trânsito de aviões

Os braços em forma de “L” de um dos observatórios gêmeos do Ligo, em Hanford, Washington, Estados Unidos

54  z  março DE 2016


Detector LIGO espelho

ix e

TERRA DISTORCIDA

laser

espelho

di vi so r

do

fe

Ao atravessarem a Terra, as ondas gravitacionais deformam o planeta, ora esticando em uma direção, ora comprimindo em outra

detector O Ligo usa lasers e espelhos para monitorar variações minúsculas no tamanho de seus dois braços perpendiculares

Ondas gravitacionais primeiro esticam um dos braços enquanto encolhem o outro

Em seguida, as ondas fazem o contrário, comprimem o braço que esticaram anteriormente e vice-versa

onda detectada Mudanças na amplitude e na frequência do estica e puxa das ondas revelam detalhes do movimento dos

foto LIGO Laboratory  infográfico ana paula campos ilustraçãO fabio otubo – foto  Caltech/MIT / LIGO Lab

buracos negros

e automóveis ou por ondas sísmicas. Em meio a todas essas interferências, computadores vasculham as variações de tamanho que apenas as ondas gravitacionais seriam capazes de provocar simultaneamente nos detectores gêmeos. “A busca é feita comparando os dados dos detectores com sinais simulados por computador”, explica o físico César Augusto Costa, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Costa pertence ao grupo brasileiro liderado pelo físico Odylio Aguiar, do Inpe, que integra a colaboração internacional do Ligo. A equipe de Aguiar colabora com a pesquisa para eliminar os ruídos e aperfeiçoar os detectores do Ligo, cuja sensibilidade deve aumentar 10 vezes em relação à inicial nos próximos anos. Estranho casal

O Ligo funcionou de setembro de 2015 a janeiro de 2016, mas só os dados coletados nas duas primeiras semanas foram analisados. De acordo com Sturani, a avaliação completa do que foi observado nos quatro meses de medições deve ser publicada em breve. Outro observatório de ondas gravitacionais, o Virgo, situado na Itália, deve começar a funcionar até o final deste ano. O primeiro sinal registrado pelo Ligo é incomum o suficiente para ocupar por meses os astro-

físicos. Essas ondas foram geradas pela colisão de dois buracos com massas 36 e 29 vezes maior que a massa solar. “Eles têm massa elevada demais para buracos negros formados a partir de um colapso estelar”, diz o astrofísico Rodrigo Nemmen, da Universidade de São Paulo. “Acreditávamos que eventos de colisão entre dois buracos negros dessa massa seriam raros.” Quando o Ligo detectou as primeiras ondas gravitacionais, os pesquisadores calcularam que a fonte delas estaria em uma faixa do hemisfério sul celeste e, sigilosamente, alertaram observatórios ao redor do mundo para buscar algo estranho no céu. A câmera do projeto Dark Energy Survey (DES), montada em um telescópio em Cerro Tololo, no Chile, vasculhou o céu durante três semanas sem encontrar nenhum sinal de luz emitida. Naquele momento não estava clara qual era a fonte das ondas detectadas, lembra a física brasileira Marcelle Soares-Santos, do Fermilab, nos Estados Unidos, que coordenou a análise das observações do DES. “Pode haver emissão de luz visível na colisão de um par formado por um buraco negro e uma estrela de nêutrons ou duas estrelas de nêutrons”, ela explica. “Pares de buracos negros são mais raros do que os sistemas com estrelas de nêutrons, por isso no fu-

turo esperamos registrar muitos eventos que o DES e outros projetos poderão observar.” Outro observatório, porém, o telescópio espacial Fermi, da Nasa, registrou um brilho fraco de raios gama 0,4 segundo depois de o Ligo detectar a primeira onda gravitacional. “É possível que essa emissão tenha sido produzida na fusão dos buracos negros, o que seria extremamente inesperado”, diz Nemmen. “Mas, provavelmente, foi apenas uma coincidência temporal e a radiação gama veio de outro lugar.” n

Projetos 1. Pesquisa em ondas gravitacionais (nº 2013/04538-5); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Riccardo Sturani (IFT-Unesp); Investimento R$ 256.541,00. 2. Gravitational wave astronomy – FAPESP-MIT (nº 2014/50727-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Riccardo Sturani (IFT-Unesp); Investimento R$ 29.715,00. 3. Nova física no espaço: ondas gravitacionais (nº 2006/56041-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Odylio Denys de Aguiar (Inpe); Investimento R$ 1.019.874,01. 4. Astrofísica relativística e ondas gravitacionais (nº 2015/20433-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Cecilia Chirenti (UFABC); Investimento R$ 56.109,48.

Artigo científico ABOTT, B. P. et al. Observation of gravitational waves from a binary black hole merger. Physical Review Letters. 11 fev. 2016.

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Entrevista Marcela Carena y

Além do Modelo Padrão Diretora de relações internacionais do Fermilab fala sobre os desafios das novas teorias que tentam estender a compreensão da física de partículas Marcos Pivetta

E

m novembro do ano passado a física teórica Marcela Carena tornou-se a primeira titular de um posto recém-criado: o de diretora de relações internacionais do Fermilab, o principal laboratório de física de partículas dos Estados Unidos, situado em Batavia, nos arredores de Chicago. Predicados acadêmicos que qualifiquem essa simpática argentina de 53 anos para o cargo de embaixadora da instituição não faltam. Ela é chefe do Departamento de Física Teórica do Fermilab e professora na Universidade de Chicago. Já trabalhou em três continentes e fala seis idiomas. “Me lembro da primeira viagem a São Paulo, quando tinha 25 anos, e aprendi a perguntar, em português, se a rodoviária ficava perto ou longe”, diz Carena, que acumula as cidadanias italiana e norte-americana, além da argentina. Em suas frequentes viagens ao exterior, a física dedica atualmente boa parte 56  z  março DE 2016

de seu tempo para procurar parceiros internacionais dispostos a participar de um megaprojeto científico que está sendo gestado no Fermilab: o Deep Underground Neutrino Experiment (Dune), experimento bilionário que tentará descobrir novas propriedades dos neutrinos, uma das partículas elementares mais difíceis de serem detectadas (ver entrevista com Nigel Lockyer, diretor do Fermilab, no número 235 de Pesquisa FAPESP). Mas sempre há espaço em sua agenda para eventos em que a pesquisadora fala mais alto do que a diretora de relações internacionais. Uma dessas ocasiões foi no início de fevereiro, quando esteve na capital paulista para participar de um seminário no Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR), sediado no Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp). No evento, Carena falou das perspectivas da física que tenta preencher os bura-

A física argentina Marcela Carena: novas teorias para tentar explicar eventos para os quais o Modelo Padrão não tem respostas satisfatórias


léo ramos

cos não cobertos pelo chamado Modelo Padrão, teoria que, desde os anos 1960, vem sendo refinada e tenta explicar como as partículas e as forças interagem desde o início do Universo. O Modelo Padrão prevê a existência de dois grandes tipos de partículas, os férmions e os bósons. Os férmions são as partículas de matéria (elétron, múon, tau, três tipos de neutrino e seis de quark). Os bósons são as partículas transmissoras das forças eletromagnéticas, nuclear forte e nuclear fraca, que são absorvidas ou emitidas pelos férmions. Eles incluem o fóton, o glúon e os bósons Z e W. Em 2012, foi descoberta a última partícula

prevista pelo modelo, o bóson de Higgs, que dá massa para as demais partículas elementares. O modelo estava completo, mas era, e ainda é, insuficiente para explicar o Cosmo. Nesta entrevista, Carena aborda algumas das limitações do modelo e menciona teorias, como as baseadas no conceito de supersimetria, que tentam fornecer pistas sobre questões ainda não respondidas. Por que há essa procura por teorias para reformar ou estender o Modelo Padrão? O modelo funciona incrivelmente bem. Agora que conhecemos o bóson de Higgs

e sua massa vemos que essa partícula se encaixa adequadamente nele. Mas isso não quer dizer que não temos mais nada a fazer. O modelo explica tudo muito bem até os níveis de energias que conseguimos acessar. Mas há algumas coisas para as quais não fornece respostas satisfatórias. Ele não explica, por exemplo, a matéria escura [na verdade, o modelo fornece respostas para apenas 4% da composição do Universo conhecido e nada diz sobre a origem de seus 23% de matéria escura e 73% de energia escura]. Também não dá conta da assimetria entre a quantidade de matéria e antimatéria observada no Universo [em tese, depois do Big Bang pESQUISA FAPESP 241  z  57


havia a mesma quantidade de matéria e antimatéria, mas, até agora, os astrofísicos praticamente só encontraram partículas e pouquíssimas antipartículas]. Mas quando o modelo foi proposto a matéria escura ainda não havia sido descoberta. Sim, claro. No Modelo Padrão, os neutrinos são parte da matéria escura, mas uma parte mínima. Deve haver algo mais. Na verdade, não temos uma ideia clara de qual pode ser a composição da matéria escura. Ela pode ser formada por uma partícula, por muitas partículas, por partículas massivas que interagem fracamente, as Wimps [sigla em inglês para weakly interacting massive particles, por ora uma proposta teórica]. Pode ser formada pelos áxions [hipotéticas partículas elementares], que existiriam para explicar alguns problemas de cromodinâmica quântica dentro do Modelo Padrão. Enfim, não sabemos do que é feita a matéria escura. Apenas sabemos que ela está aí. Se não estivesse, não saberíamos explicar muito do que vemos na astrofísica. Os neutrinos são um problema grande para o Modelo Padrão? Podemos dizer que eles estão mais ou menos dentro do Modelo Padrão. Estão previstos, mas sem massa. Como hoje sabemos que eles têm uma massa muito pequena, é possível que essa massa, e somente a dos neutrinos, não venha totalmente do bóson de Higgs. A massa de todas as partículas vem do Higgs, mas é possível que outro mecanismo contribua

58  z  março DE 2016

É possível que a massa dos neutrinos, e somente ela, não venha totalmente do bóson de Higgs

para dar a massa dos neutrinos. Além disso, de acordo com o Modelo Padrão, os neutrinos só poderiam ser de mão esquerda. Mas hoje sabemos que os neutrinos têm massa e, para que suas oscilações ocorram, também devem existir os de mão direita. Os neutrinos são chamados de mão esquerda quando a direção de seu spin e a de sua propagação são opostas e de mão direita se a direção do spin e a da propagação são iguais. Essa ideia de que poderia haver outras formas de dar massa às partículas valeria para todos os tipos de neutrinos? Vamos supor que existam apenas os três neutrinos que hoje conhecemos, o do elétron, o do múon e o do tau. É possível que a massa desses três neutrinos venha em parte do mecanismo de Higgs e em parte de outra coisa. Há uma razão para se pensar assim. Pode ser que os neutrinos de mão direita, em vez de serem muito leves, como se acredita, sejam muito pesados. Nesse caso, seria preciso um mecanismo diferente do de Higgs para gerar essa massa. A ideia dos neutrinos de mão direita pesados já é um tema para além do Modelo Padrão. A própria massa do bóson de Higgs também cria novos problemas? Há um problema conceitual: a massa do Higgs Colisão de prótons [cerca de 125 gigaeléno LHC que pode ter tron-volt (GeV)] é muito gerado o bóson de sensível a qualquer física Higgs: massa da nova que seja relevante partícula é muito sensível a escalas muito menores daquelas que temos provado. Por causa disso, temos de ajustar números gigantes para as coisas funcionarem no Modelo Padrão. Do ponto de vista teórico, essa solução é um pouco desconfortável. Não é muito elegante. Também não sabemos por que, comparativamente, uma partícula como o neutrino tem o tamanho de uma formiga enquanto outra, como o top quark, seria o equivalente a uma baleia-azul. E entre esses dois extremos estão todos os férmions. O que gera tanta diferença? Deve haver uma forma de explicar isso, algo que o Modelo Padrão não faz. Pode ser que estejamos totalmente errados, mas essas questões nos levaram a pensar em teorias supersimétricas e outras propostas que vão além do Modelo Padrão. 1


Em toda essa pletora de teorias, há algumas que são mais bonitas do que outras. Algumas são muito complicadas e preveem muitas outras partículas. E algumas dessas partículas teriam que ser vistas no LHC. Ao escolher uma teoria, a forma com que o Higgs interage com as outras partículas muda e também a quantidade de novas partículas, incluindo o número de novos Higgs.

imagens 1 CMS / CERN 2 Illustris Collaboration

2

O que são essas teorias? Desde o meu doutorado, há mais de 25 anos, tenho trabalhado com teorias supersimétricas. Há dois grandes ramos de teorias supersimétricas. Um deles pretende estender as simetrias entre os bósons e os férmions [cada férmion conhecido teria um hipotético bóson como parceiro supersimétrico, com a mesma massa e demais características, e cada bóson já descoberto seria complementado por um respectivo férmion]. É uma ideia muito elegante e casa bem com a teoria de cordas [essa teoria defende a ideia de que todas as partículas elementares seriam, na verdade, pequenas cordas que vibram e que poderia haver até 26 dimensões do espaço/tempo e múltiplos universos]. Mas, para que tudo funcionasse bem nela, deveríamos ter encontrado algumas partículas supersimétricas a energias não muito acima das com que trabalha o Grande Colisor de Hádrons, o LHC [situado no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, o Cern]. Há dez anos comecei a trabalhar com outro ramo, paralelo à supersimetria, os chamados modelos compostos. Nessas teorias, tudo funciona segundo o Modelo Padrão até um dado nível

Esses novos Higgs teriam que interagir com essas partículas desconhecidas? Sim e também com as partículas já conhecidas. Todas essas novas partículas – Higgs, férmions e bósons extras – estão sendo procuradas. O LHC já as procurou bastante e colocou muitas restrições para nossas previsões. Por exemplo, hoje se acredita que novos férmions devem estar acima de 1 teraelétron-volt (TeV) de energia. Sempre que alguém pensa em estender as teorias para explicar o Universo, acho bárbaro. Mas, como teórica, coloco tudo que gostaria no meu modelo e vejo o que teria de ser observado para sustentá-lo. Se não encontro, o modelo cai. Quando em 1999 eu estava no LEP [Grande Colisor de Elétrons e Pósitrons, Simulação de matéria escura (em o antigo acelerador do Cern azul) e gás (laranja): que antecedeu o LHC], já se sem explicação sabia que o bóson de Higgs no Modelo Padrão tinha de estar entre 114 e 200 GeV.

de energia. Acima de certo ponto, mil vezes maior do que a massa do bóson de Higgs, há interações fortes e tudo muda. Nes­se caso, o bóson de Higgs, em vez de ser uma partícula escalar fundamental, seria composto de outras partículas.

Haveria então mais partículas como o bóson de Higgs? Sim, haveria partículas irmãs. Na verdade, elas são chamadas de Higgs adicionais. Nas teorias supersimétricas, pode haver vários Higgs, mas não apenas um. No momento, há muitas opções de teorias, algumas melhores que outras, algumas acomodam melhor a matéria escura, por exemplo. O importante é que hoje sabemos qual é a massa do bóson de Higgs e também como ele interage com todas as partículas conhecidas do Modelo Padrão. Com essa informação, podemos bancar o detetive e ver que teorias funcionam melhor. Em cada teoria que vai além do Modelo Padrão, a forma como o bóson de Higgs interage com essas partículas difere um pouco.

Você é uma cientista que fez carreira em uma área dominada por homens. Hoje é mais fácil para as mulheres se destacarem na física? Quando comecei, não havia mulheres na minha área em que poderia me espelhar. Hoje essa situação mudou. Minhas alunas já têm pesquisadoras que podem servir de modelo para elas. Sou, por exemplo, amiga da Fabiola Gianotti [física italiana que, neste ano, se tornou a nova diretora geral do Cern]. Acho importante ter mais mulheres na área, mas não se pode contratar um pesquisador somente por ser mulher. Deve-se contratar alguém por ser bom. Hoje muitos comitês científicos querem que 30% dos seus membros sejam mulheres. Isso é bom, mas, como ainda somos poucas, sempre as mesmas acabam sendo chamadas para um número muito grande de comitês. n pESQUISA FAPESP 241  z  59


GEOLOGIA y

Os antigos vulcões de Minas Há 600 milhões de anos erupções vulcânicas banhavam de lava o que hoje é a bacia do rio Doce

60  z  março DE 2016

Q

uem observa a paisagem montanhosa a origem e a história evolutiva do chamado do Sudeste brasileiro não tem como Arco Vulcânico do Rio Doce. “Nosso trabalho desconfiar de que nessa região, há buscou reconstituir a história e o relevo descerca de 600 milhões de anos, havia se conjunto de montanhas”, conta o geólogo uma longa e alta cadeia de vulcões ativos. Na- Antônio Carlos Pedrosa Soares, da Universiquela época, a forma e a posição dos continen- dade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele tes eram distintas das atuais e essa cordilheira e outros 14 pesquisadores descrevem como ficava à beira de um golfo, no extremo de um surgiu e se moldou o Arco Rio Doce em um mar estreito, e se estendia por quase 550 qui- artigo publicado em novembro no Journal of lômetros, indo de onde hoje fica Teófilo Otoni, South American Earth Sciences. Nesse trabalho, Soares e seus colaboradores em Minas Gerais, até quase o Paraná. No auge de sua existência, seus picos podem ter sido tão coletaram rochas que afloram nos arredores dos municípios mineiros de Governador Valadares impressionantes quanto os dos Andes. Mas talvez nunca se saiba ao certo suas di- e Teófilo Otoni, próximos à divisa com o Espímensões. Assim como o mar estreito e o antigo rito Santo, analisaram a sua composição química e a idade dos minerais que continente, essa cordilheira deas formam. A esses dados, eles sapareceu, consumida pela erouniram informações de estudos são. O que resta são fragmentos Pão de açúcar no interior de Minas: anteriores sobre a geologia dos do leito desse mar e das rochas hoje exposto, blocos remanescentes dessa caque formavam a raiz profunda da bloco rochoso foi deia vulcânica para recompor a cadeia de vulcões e hoje afloram parte da raiz região, cujos primeiros indícios em Minas. Esses registros estão do Arco Rio Doce foram identificados nos anos 1960 ajudando os geólogos a entender


A origem de uma cordilheira Crosta de oceano primitivo mergulhou sob continente e gerou cadeia vulcânica, como ocorre nos Andes

Arco Rio Doce

1. Cráton amazônico 2. Cráton do oeste da África 3. Cráton do São Francisco 4. Cráton do Congo 5. Cráton do Kalahari 6. Cráton do Paranapanema-Luiz Alves-Rio da Prata

sedimentos cro

crosta continental

sta

áfrica

2

oce

ân

2

ica

1

3

manto litosférico

4

1

3

manto astenosférico

6

5

américa do sul

630 milhões e 605 milhões 2O mergulho da crosta oceânica 3Entre 585 milhões e 575 milhões 1Entre de anos atrás, a crosta oceânica de anos atrás, parte da crosta se deformou a crosta continental começou a submergir sob a placa continental

próximo ao oceano Adamastor e originou uma cadeia de vulcões

desprendeu e afundou no manto, intensificando o vulcanismo

foto leonardo gonçalves / ufop  ilustração pedro hamdan

fonte tedeschi et al. / jsaes

pelo geólogo Fernando de Almeida, da Universidade de São Paulo (USP). Os dados compilados agora confirmam que existe uma variação na idade das rochas do arco: as rochas mais a leste, próximo à divisa de Minas Gerais com o Espírito Santo, são mais antigas que as mais a oeste, na região entre Teófilo Otoni e Governador Valadares. Essas idades foram determinadas por análises do decaimento de elementos químicos radioativos do mineral zircão feitas em laboratórios da UFMG, da USP, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “É um conjunto de dados muito consistente”, afirma o geólogo. “Análises de laboratórios diferentes, usando métodos diferentes, chegaram às mesmas conclusões.” Da determinação das idades das rochas, aliada ao estudo da composição química e da estrutura de seus minerais, emergiu uma história dividida em três capítulos. O Arco Rio Doce teria começado a se formar há 630 milhões de anos, quando os pedaços de continentes que existiam estavam reunidos em um supercontinente próximo ao polo Sul. De acordo com as análises, em um desses continentes havia uma longa península, formada por um embrião continental muito antigo, envolvendo partes do que hoje é o leste do Brasil e o oeste da África. No interior dessa região, que os geólogos chamam de cráton São Francisco-Congo, havia um mar estreito chamado oceano Adamastor, que era semelhante ao mar Vermelho e se estendia de onde hoje é o estado de São Paulo até a Bahia.

Fechamento de oceano primitivo levou à formação do Arco Rio Doce em três etapas

Entre 630 milhões e 605 milhões de anos atrás, o movimento das placas tectônicas teria feito a crosta oceânica na região do Adamastor mergulhar sob o cráton do Congo e iniciar a formação dos vulcões, fenômeno semelhante ao que hoje contribui para a formação dos Andes e a ativação de vulcões no Chile (ver infográfico). Nos 20 milhões de anos seguintes, à medida que o Adamastor fechava, novas montanhas se formavam e o vulcanismo se expandia em direção ao litoral daquele oceano primitivo. Por fim, entre 585 milhões e 575 milhões de anos atrás, quando esse oceano havia praticamente desaparecido, um grande bloco da crosta oceânica que afundava sob a placa continental teria se desprendido e afundado no manto terrestre. Como provável consequência, houve um aquecimento maior da crosta continental e um último episódio de vulcanismo, mais

intenso que os anteriores. “Esse teria sido o momento derradeiro da evolução do Arco Rio Doce ”, explica Pedrosa Soares, “quando o mar se fechou e as margens dos crátons de São Francisco e do Congo Ocidental se tocaram”. Outros grupos já identificaram remanescentes de cadeias vulcânicas do mesmo período no Brasil e em outros países. Nenhuma delas, porém, apresentava história tão fascinante como a do Arco Rio Doce, formado entre dois con­tinentes, à margem de um mar interior. Por causa dessa configuração única, as rochas no extremo norte do arco têm uma composição incomum. Essas rochas são formadas a partir de magma contendo mais crosta continental derretida do que crosta oceânica e foram descritas pelo geólogo Leonardo Gonçalves, da Ufop, um dos colaboradores de Soares, em um artigo recente na revista Gondwana Research. Segundo a geóloga Mahyra Tedeschi, aluna de doutorado de Pedrosa Soares e primeira autora do artigo no Journal of South American Earth Sciences, falta esclarecer muitos detalhes da história do Arco Rio Doce. “Existem várias formações rochosas que podem integrar o arco, mas ainda precisam ser mais bem estudadas”, ela diz. n Igor Zolnerkevic Artigos científicos GONÇALVES, L. et al. Granites of the intracontinental termination of a magmatic arc: An example from the Ediacaran Araçuaí orogen, southeastern Brazil. Gondwana Research. 29 ago. 2015. TEDESCHI, M. et al. The Ediacaran Rio Doce magmatic arc revisited (Araçuaí-Ribeira orogenic system, SE Brazil). Journal of South American Earth Sciences. 26 nov. 2015.

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Desastres naturais y

50 anos de calamidades na América do Sul Marcos Pivetta

Terremotos e vulcões matam mais, mas secas e inundações atingem maior número de pessoas Marcos Pivetta

62  z  março DE 2016

U

m estudo sobre os impactos de 863 desastres naturais registrados nas últimas cinco décadas na América do Sul indica que fenômenos geológicos relativamente raros, como os terremotos e o vulcanismo, produziram quase o dobro de mortes do que eventos climáticos e meteorológicos de ocorrência mais frequente, como inundações, deslizamento de encostas, tempestades e secas. Dos cerca de 180 mil óbitos decorrentes dos desastres, 60% foram em razão de tremores de terra e da atividade de vulcões, um tipo de ocorrên-

cia que se concentra nos países andinos, como Peru, Chile, Equador e Colômbia. Os terremotos e o vulcanismo representaram, respectivamente, 11% e 3% dos eventos contabilizados no trabalho. Aproximadamente 32% das mortes ocorreram em razão de eventos associados a ocorrências meteorológicas ou climáticas, categoria que engloba quatro de cada cinco desastres naturais registrados na região entre 1960 e 2009. Epidemias de doenças – um tipo de desastre biológico com dados escassos sobre a região, segundo o levantamento – levaram 15 mil


Seca no Nordeste (à esq.) e inundação em Caracas, na Venezuela: esses dois tipos de desastres são os que afetam o maior número de pessoas

3

2

fotos 1 unicef / afp 2 Antônio Gaudério / Folhapress  3 afp

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Efeitos do terremoto de 7.7 graus em 31 de maio de 1970 no Peru: 66 mil mortes no desastre com mais fatalidades dos últimos 50 anos na América do Sul

pessoas a perder a vida, 8% do total. No Brasil, 10.225 pessoas morreram ao longo dessas cinco décadas em razão de desastres naturais, pouco mais de 5% do total, a maioria em inundações e deslizamentos de encostas durante tempestades. O trabalho foi feito pela geógrafa Lucí Hidalgo Nunes, professora do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG-Unicamp) para sua tese de livre-docência e resultou no livro Urbanização e desastres naturais – Abrangência América do Sul (Oficina de Textos), lançado em meados do ano

passado. “Desde os anos 1960, a população urbana da América do Sul é maior do que a rural”, diz Lucí. “O palco maior das calamidades naturais tem sido o espaço urbano, que cresce em área ocupada pelas cidades e número de habitantes.” A situação se inverteu quando o parâmetro analisado foi, em vez da quantidade de mortos, o número de indivíduos afetados em cada tipo de desastre. Dos 138 milhões de vítimas não fatais atingidas por esses eventos, 1% foi alvo de epidemias, 11% de terremotos e vulcanismo, 88% de fenômenos climáticos ou meteorológicos. As secas e as inundações foram as ocorrências que provocaram impactos em mais indivíduos. As grandes estiagens atingiram 57 milhões de pessoas (41% de todos os afetados), e as enchentes, 52,5 milhões de habitantes (38%). O Brasil respondeu por cerca de 85% das vítimas não fatais de secas, essencialmente moradores do Nordeste, e por um terço dos atingidos por inundações, fundamentalmente habitantes das grandes cidades do Sul-Sudeste. Estimados em US$ 44 bilhões ao longo das cinco décadas, os prejuízos materiais associados aos quase 900 desastres con-

tabilizados foram decorrentes, em 80% dos casos, de fenômenos de natureza climática ou meteorológica. “O Brasil tem quase 50% do território e mais da metade da população da América do Sul. Mas foi palco de apenas 20% dos desastres, 5% das mortes e 30% dos prejuízos econômicos associados a esses eventos”, diz Lucí. “O número de pessoas afetadas aqui, no entanto, foi alto, 53% do total de atingidos por desastres na América do Sul. Ainda temos vulnerabilidades, mas não tanto quanto países como Peru, Colômbia e Equador.” Para escrever o estudo, a geógrafa com­pilou, organizou e analisou os registros de desastres naturais das últimas cinco décadas nos países da América do Sul, além da Guiana Francesa (departamento ultramarino da França), que estão armazenados no Em-Dat – International Disaster Database. Essa base de dados reúne informações sobre mais de 21 mil desastres naturais ocorridos em todo o mundo desde 1900 até hoje. Ela é mantida pelo Centro de Pesquisa em Epidemiologia de Desastres (Cred, na sigla em inglês), que funciona na Escola de Saúde Pública da Universidade pESQUISA FAPESP 241  z  63


Inundação é o evento mais comum Registros de desastres naturais nos países da América do Sul entre 1960 e 2009

Inundação

Deslizamento de encosta

Terremoto

Tempestade

Epidemia

Seca

Brasil 101 Colômbia 60 Argentina 45 Peru 39 Bolívia 32 Chile 26 Venezuela 24 Equador 22 Paraguai 15 Uruguai 12 Guiana 6 Suriname 3 Guiana Francesa 1 Total 386

Colômbia 33 Peru 28 Brasil 21 Equador 10 Bolívia 5 Chile 4 Venezuela 4 Argentina 3 Guiana 1 Guiana Francesa 0 Paraguai 0 Suriname 0 Uruguai 0 Total 109

Peru 31 Colômbia 21 Chile 14 Equador 11 Venezuela 7 Argentina 3 Bolívia 3 Brasil 2 Guiana 0 Guiana Francesa 0 Paraguai 0 Suriname 0 Uruguai 0 Total 92

Argentina 17 Brasil 15 Chile 13 Colômbia 7 Uruguai 6 Paraguai 4 Peru 3 Venezuela 3 Bolívia 2 Equador 0 Guiana 0 Guiana Francesa 0 Suriname 0 Total 70

Brasil 15 Bolívia 11 Equador 11 Peru 11 Paraguai 6 Venezuela 6 Argentina 2 Colômbia 2 Chile 1 Guiana 0 Guiana Francesa 0 Suriname 0 Uruguai 0 Total 65

Brasil 15 Bolívia 9 Peru 8 Paraguai 6 Equador 3 Argentina 2 Chile 2 Guiana 2 Colômbia 1 Uruguai 1 Venezuela 1 Guiana Francesa 0 Suriname 0 Total 50

Extremos de temperatura

Vulcanismo

Incêndio

Movimento de massa seca

total

Argentina 7 Brasil 7 Peru 6 Chile 5 Bolívia 3 Uruguai 3 Paraguai 2 Colômbia 0 Equador 0 Guiana 0 Guiana Francesa 0 Suriname 0 Venezuela 0 Total 33

Colômbia 10 Equador 10 Chile 5 Argentina 2 Peru 2 Bolívia 0 Brasil 0 Guiana 0 Guiana Francesa 0 Paraguai 0 Suriname 0 Uruguai 0 Venezuela 0 Total 29

Chile 6 Argentina 5 Bolívia 3 Brasil 3 Colômbia 2 Equador 2 Paraguai 1 Peru 1 Guiana 0 Guiana Francesa 0 Suriname 0 Uruguai 0 Venezuela 0 Total 23

Colômbia 3 Peru 2 Equador 1 Argentina 0 Bolívia 0 Brasil 0 Chile 0 Guiana 0 Guiana Francesa 0 Paraguai 0 Suriname 0 Uruguai 0 Venezuela 0 Total 6

Brasil 179 Colômbia 139 Peru 131 Argentina 86 Chile 76 Equador 70 Bolívia 68 Venezuela 45 Paraguai 34 Uruguai 22 Guiana 9 Suriname 3 Guiana Francesa 1 Total 863

Católica de Louvain, em Bruxelas (Bélgica). “Não há base de dados perfeita”, pondera Lucí. “A do Em-Dat é falha, por exemplo, no registro de desastres biológicos.” Sua vantagem é juntar informações oriundas de diferentes fontes – agências não governamentais, órgãos das Nações Unidas, companhias de seguros, institutos de pesquisa e meios de comunicação – e arquivá-las usando sempre a mesma metodologia, abordagem que possibilita a realização de estudos comparativos. O que caracteriza um desastre

Os eventos registrados no Em-Dat como desastres naturais devem preencher ao menos uma de quatro condições: provocar a morte de no mínimo 10 pessoas; afetar 100 ou mais indivíduos; motivar a declaração de estado de emergência; ou ainda ser a razão para um pedido de ajuda internacional. No trabalho sobre a 64  z  março DE 2016

América do Sul, Lucí organizou os desastres em três grandes categorias, subdivididas em 10 tipos de ocorrências. Os fenômenos de natureza geofísica englobam os terremotos, as erupções vulcânicas e os movimentos de massa seca (como a queda de uma pedra morro abaixo em um dia sem chuva). Os eventos de caráter meteorológico ou climático abarcam as tempestades, as inundações, os deslocamentos de terra em encostas, os extremos de temperatura (calor ou frio fora do normal), as secas e os incêndios. As epidemias representam o único tipo de desastre biológico contabilizado (ver quadro acima com a incidência dos desastres em cada país). O climatologista José Marengo, chefe da divisão de pesquisas do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em Cachoeira Paulista, interior de São Paulo, afirma que, além de eventos naturais,

Fonte  guha-sapir et. al. s/d. Organizada por Lucí hidalgo nunes

existem desastres considerados tecnológicos e casos híbridos. O rompimento em novembro passado de uma barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Mariana (MG), que provocou a morte de 19 pessoas e liberou toneladas de uma lama tóxica na bacia hidrográfica do rio Doce, não tem relação com eventos naturais. Pode ser qualificado como um desastre tecnológico, em que a ação humana está ligada às causas da ocorrência. Em 2011, o terremoto de 9.0 graus na escala Richter, seguido de tsunamis, foi o maior da história do Japão. Matou quase 16 mil pessoas, feriu 6 mil habitantes e provocou o desaparecimento de 2.500 indivíduos. Destruiu também cerca de 138 mil edificações. Uma das construções afetadas foi a usina nuclear de Fukushima, de cujos reatores vazou radioatividade. “Nesse caso, houve um desastre tecnológico causado por um desastre natural”, afirma Marengo.


Ilustrações Luana Geiger

Década após década, os registros de desastres naturais têm aumentado no continente, seguindo uma tendência que parece ser global. “A qualidade das informações sobre os desastres naturais melhorou muito nas últimas décadas. Isso ajuda a engrossar as estatísticas”, diz Lucí. “Mas parece haver um aumento real no número de eventos ocorridos.” Segundo o estudo, grande parte da escalada de eventos trágicos se deveu ao número crescente de fenômenos meteorológicos e climáticos de grande intensidade que atingiram a América do Sul. Na década de 1960, houve 51 eventos desse tipo. Nos anos 2000, o número subiu para 257. Ao longo das cinco décadas, a incidência de desastres geofísicos, que provocam muitas mortes, manteve-se mais ou menos estável e os casos de epidemias diminuíram. Risco urbano

O número de mortes em razão de eventos extremos parece estar diminuindo depois de ter atingido um pico de 75 mil óbitos nos anos 1970. Na década passada, houve pouco mais de 6 mil mortes na América do Sul causadas por desastres naturais, de acordo com o levantamento de Lucí. Historicamente, as vítimas fatais se concentram em poucas ocorrências de enormes proporções, em especial os terremotos e as erupções vulcânicas. Os 20 eventos com mais fatalidades (oito ocorridos no Peru e cinco na Colômbia) responderam por 83% de todas as mortes ligadas a fenômenos naturais entre 1960 e 2009. O pior desastre foi um terremoto no Peru em maio de 1970, com 66 mil mortes, seguido de uma inundação na Venezuela em dezembro de 1999 (30 mil mortes) e uma erupção vulcânica na Colômbia em novembro de 1985 (20 mil mortes). O Brasil contabiliza o 9º evento com mais fatalidades (a epidemia de meningite em 1974, com 1.500 óbitos) e o 19° (um deslizamento de encostas, em razão de fortes chuvas, que matou 436 pessoas em março de 1967 em Caraguatatuba, litoral de São Paulo). Também houve declínio na quantidade de pessoas afetadas nos anos mais recentes, mas as cifras continuam elevadas. Nos anos 1980, os desastres produziram cerca de 50 milhões de vítimas não fatais na América do Sul. Na década passada e também na retrasada, o número caiu para cerca de 20 milhões.

A vulnerabilidade das cidades Algumas metrópoles, como Quito, La Paz e Bogotá, estão expostas a quatro ou cinco fatores de risco, situação mais delicada que a das capitais do Brasil

País

Metrópole

Seca

Terremoto

Inundação

Deslizamento

Argentina

Buenos Aires

4

8

4

8

Vulcanismo 8

Bolívia

La Paz

4

4

4

4

8

Chile

Santiago

4

4

4

8

8

Colômbia

Bogotá

4

4

4

4

8

Equador

Quito

4

4

4

4

4

Paraguai

Assunção

4

8

4

8

8

Peru

Lima

4

4

4

8

8

Uruguai

Montevidéu

4

8

4

8

8

4

4

4

8

8

Venezuela Caracas Brasil

Brasília

4

8

4

8

8

Santos

4

8

4

8

8

Belém Belo Horizonte Campinas

8

8

4

8

8

4

8

4

8

8 8

8

8

4

8

Cuiabá

4

8

4

8

8

Curitiba

8

8

4

8

8

4

8

4

8

8

8

8

4

8

8

4

8

4

8

8

Rio de janeiro

8

8

4

8

8

Salvador

8

8

8

8

8

São Paulo

8

8

4

8

8

Fortaleza Porto Alegre Recife

Fonte  World population prospect, the 2011 revision, recorte para a América do Sul, Organizado por Lucí Hidalgo nunes

Sete em cada 10 latino-americanos moram atualmente em cidades, onde a ocupação do solo sem critérios e algumas características geoclimáticas específicas tendem a aumentar a vulnerabilidade da população local a desastres naturais. Lucí comparou a situação de 56 aglomerados urbanos com mais de 750 mil habitantes da América do Sul em relação a cinco fatores que aumentam o risco de calamidades: seca, terremoto, inundação, deslizamento de encostas e vulcanismo. Quito, capital do Equador, foi a única metrópole que estava exposta aos cinco fatores. Quatro cidades colombianas (Bogotá, Cáli, Cúcuta e Medellín) e La Paz, na Bolívia, vieram logo atrás, com quatro vulnerabilidades. As capitais brasileiras apresentaram no máximo dois fatores de risco, seca e inundação (ver quadro acima). “Os desastres resultam da junção de ameaças naturais e das vulnerabilidades das áreas ocupadas”, diz o pesquisador Victor Marchezini, do Cemaden, sociólogo que estuda os impactos de longo prazo desses fenômenos extremos. “São um evento socioambiental.”

É difícil mensurar os custos de um desastre. Mas a partir de dados da edição de 2013 do Atlas brasileiro de desastres naturais, que usa uma metodologia dife­rente da empregada pela geógrafa da Unicamp para contabilizar calamidades na América do Sul, o grupo de Carlos Eduardo Young, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez no final do ano passado um estudo. Baseado em estimativas do Banco Mundial de perdas provocadas por desastres em alguns estados brasileiros, Young calculou que enxurradas, inundações e movimentos de massa ocorridos entre 2002 e 2012 provocaram prejuízos econômicos de ao menos R$ 180 bilhões para o país. Em geral, os estados mais pobres, como os do Nordeste, sofreram as maiores perdas econômicas em relação ao tamanho do seu PIB. “A vulnerabilidade a desastres pode ser inversamente proporcional ao grau de desenvolvimento econômico dos estados”, diz o economista. “As mudanças climáticas podem acirrar a questão da desigualdade regional no Brasil.” n pESQUISA FAPESP 241  z  65


INFORME PUBLICITÁRIO

ED. 02 - MARÇO 2016

Semana Nacional de Ciência e Tecnologia atinge a marca histórica de mil municípios

A

Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT) alcançou a marca histórica de mil municípios participantes em todo o Brasil em 2015. O número comprova o sucesso das ações de popularização da ciência desenvolvidas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que estão chegando a centenas de municípios do interior do País. Além disso, evidencia a grande capilaridade da SNCT já confirmada pelo crescimento do evento, a cada edição, ano após ano.

“Esse número de mil municípios é importante para a história da divulgação da ciência, tecnologia e inovação (CT&I) no Brasil. A gente verifica um crescimento muito grande da SNCT, justamente em municípios pequenos, com adesão das prefeituras, secretarias municipais e um protagonismo muito grande das escolas de ensino fundamental e médio”, avalia o coordenador nacional da SNCT, Douglas Falcão, diretor do Departamento de Popularização e Difusão de Ciência e Tecnologia do MCTI.

SNCT 2016 Com o tema “Ciência alimentando o Brasil”, a 13a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia acontecerá de 17 a 23 de outubro e será uma oportunidade para discutir o papel da ciência para a melhoria da qualidade da alimentação.

AEB comemora 22 anos com ações que impactam a vida dos brasileiros

A

Agência Espacial Brasileira (AEB) completou 22 anos de atuação em diversos segmentos que impactam diretamente a vida dos brasileiros.

do ar e, inclusive, investigar a migração e a incidência de determinados mosquitos, como o Aedes aegypti, causador da dengue, do zika vírus e da febre chikungunya.

Além de colocar satélites de comunicação na órbita terrestre, a agência tem priorizado investimentos em coleta de dados para fins ambientais e hidrometeorológicos. Por meio dessa tecnologia, o Brasil será capaz de fornecer ferramentas para que pesquisadores possam estudar mais sobre desastres naturais, chuvas, umidade

Outra frente de trabalho da AEB se refere à capacitação e formação de profissionais qualificados no País. A Agência conquistou importantes resultados com um programa de capacitação e formação de recursos humanos voltados ao desenvolvimento e lançamento de satélites de pequeno porte em conjunto com universidades nacionais e do exterior.


INFORME PUBLICITÁRIO

Brics cria fundo de R$ 24 milhões para financiar projetos conjuntos de pesquisa

O

s países que compõem o grupo Brics deram um importante passo na cooperação em ciência, tecnologia e inovação (CT&I). Reunidos em Pequim, em janeiro, representantes do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul fecharam um acordo para criar um fundo de R$ 24 milhões para financiar projetos conjuntos de pesquisa científica. O Brasil vai contribuir com R$ 1,2 milhão. A primeira chamada multilateral deve ser lançada em abril de 2016 e terá a participação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A II Reunião de Agências de Fomento à CT&I e a I Reunião do Grupo de Trabalho sobre Financiamento à CT&I do Brics foram marcadas pela

expectativa de que os editais conjuntos aprofundem a colaboração entre os países em pesquisas de excelência para o conhecimento global e para a criação de produtos e processos inovadores. “A criação de um mecanismo dos países do Brics para o financiamento de pesquisa e inovação é um marco histórico extremamente auspicioso. A reunião na China foi um grande sucesso. A partir de agora, a ciência, a tecnologia e a inovação são elementos centrais da parceria estratégica entre nossas nações”, disse o chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais do MCTI, Danilo Zimbres.

Chamada Universal democratiza acesso a recursos para pesquisa científica

A

Chamada Universal CNPq/MCTI nº 1/2016 foi lançada em 11 de janeiro, durante a cerimônia de sanção do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, no Palácio do Planalto. O edital disponibiliza R$ 200 milhões para apoiar projetos de pesquisa científica e tecnológica, em qualquer área do conhecimento. Dos R$ 200 milhões destinados para a pesquisa científica e tecnológica pela Chamada Universal, R$ 150 milhões são do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e R$ 50 milhões do CNPq. Os recursos disponibilizados para os projetos serão divididos em três níveis, com valores que variam de R$ 30 mil a R$ 120 mil. Os pesquisadores têm até 26 de fevereiro para apresentar suas propostas. Cada pesquisador poderá apresentar apenas um projeto, que deve ser executado em um período de 36 meses, a partir da data de contratação.

deverá possuir título de doutor e ter o currículo cadastrado na Plataforma Lattes, atualizado até a data-limite para submissão da documentação. Além disso, deve possuir vínculo celetista ou estatutário com a instituição de execução do projeto ou, se aposentado, evidenciar no Currículo Lattes a manutenção de atividades acadêmico-científicas na instituição de ensino e pesquisa. Por fim, ele não pode ter projeto vigente aprovado em Chamada Universal anterior. O edital também prevê a concessão de 1.500 bolsas de Iniciação Científica (IC) e outras 1.000 bolsas de Apoio Técnico (AT), também com duração de até 36 meses.

Serão beneficiados projetos desenvolvidos em instituições de ensino superior ou institutos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), públicos ou privados, sem fins lucrativos, além de projetos ligados a empresas públicas nas áreas de ciência, tecnologia e inovação. Os projetos selecionados serão divulgados, a partir de julho, no Diário Oficial da União (DOU) e na página do CNPq na internet. Para ter acesso aos recursos da Chamada Universal, a solicitação deve ser feita pelo coordenador do projeto que, obrigatoriamente, Siga as ações do Ministério e as contribuições da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento do Brasil. Acesse nosso site e nossas páginas nas redes sociais.

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www.mcti.gov.br


tecnologia  Novos Materiais y

Implante com biovidro Duas patentes da UFSCar licenciadas para uma empresa devem resultar em produtos para odontologia e medicina Evanildo da Silveira

A

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) licenciou duas patentes para a Vetra, uma empresa formada por ex-alunos do Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa). A primeira delas trata de um tipo de vidro com nova composição química que o deixa com alta bioatividade para revestimento de implantes metálicos e no tratamento de lesões de pele, por exemplo. A outra é um método de recobrimento de enxertos médicos e odontológicos metálicos ou cerâmicos que garante compatibilidade com o organismo, evita rejeição e acelera a integração com o osso. O vidro comum é um material duro e quebradiço. Com alterações em sua formulação química, como maior quantidade de cálcio e fósforo, ele se torna bioativo e ganha o nome de biovidro, com capacidade bactericida e de acelerar a regeneração do osso e a integração das próteses com o osso. O coordenador da equipe de pesquisa na universidade, Edgar Dutra Zanotto, professor do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV), do DEMa, diz que os biovidros têm várias aplicações na área 68  z  março DE 2016

médica, odontológica e veterinária. “Na forma de pó, eles conseguem, por meio de sua dissolução quando em contato com os fluidos corpóreos, acelerar a regeneração de tecidos lesionados do corpo humano, como fraturas ósseas, feridas da pele, problemas nas cartilagens, esmalte e dentina dos dentes e até nervos”, explica. De acordo com ele, quando implantados, esses materiais desencadeiam uma série de reações que estimulam a proliferação celular, fazendo com que o corpo consiga regenerar lesões complexas que demorariam muito tempo para cicatrizar ou não cicatrizariam. O biovidro surgiu no final da década de 1960. O que muda agora são as novas formulações químicas e as aplicações. O primeiro biovidro foi inventado em 1969 por Larry Hench, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Chamado de Bioglass 45S5, esse material, ainda em uso, se caracteriza por sua capacidade de promover uma rápida e durável ligação química com o tecido ósseo. Mas ele tem limitações – entre elas a baixa resistência mecânica à fratura. Além disso, possui tendência à cristalização, o que impede a produção de peças tridimensionais (3D), fibras


léo ramos

e scaffolds (estruturas altamente porosas que podem servir de suporte para enxertos ósseos). O avanço proposto pelos pesquisadores da UFSCar está no desenvolvimento de uma nova fórmula, que evita a cristalização do material, que pode ser depositado sobre a superfície de implantes dentários ou ortopédicos e até mesmo utilizado para produzir peças em impressoras 3D. Além disso, na forma de fibras longas pode ser tecido para produzir curativos para feridas e queimaduras de pele, por exemplo. O novo biovidro, além de cálcio e fósforo, contém em sua composição óxidos de silício, sódio e potássio, além de outros poucos elementos. O trabalho da equipe da UFSCar foi realizado no âmbito do Centro de Ensino, Pesquisa e Inovação em Vidros (CeRTEV), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), financiados pela FAPESP. De acordo com Marina Trevelin Souza, ex-doutoranda de Zanotto e sócia-fundadora da Vetra, o vidro bioativo que eles desenvolveram, chamado de F18, assim como outros biovidros, representa uma nova geração de biomateriais, muito mais eficazes na regeneração de tecidos do que os de-

Preparação do biovidro em fase líquida no Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa)

mais produtos disponíveis no mercado. “Eles são osteoindutores, ou seja, estimulam a proliferação de células ósseas”, diz. “Esse estímulo é provocado pela liberação de certos tipos de íons que, quando absorvidos pelas células ósseas, ativam genes relacionados ao processo de proliferação celular.” Outra vantagem do material é a de ser totalmente reabsorvível. A nova formulação tem também propriedade angiogênica, que ajuda na formação de novos vasos sanguíneos na área do implante ou lesão. Marina tem como sócios na Vetra, os colegas Clever Ricardo Chinaglia (ex-pós-doutorando de Zanotto) e Murilo Camuri Crovace, pós-doutorando na mesma unidade da UFSCar. Marina e Murilo são apenas sócios fundadores e não desenvolvem atividade na empresa que é gerida por Clever. pESQUISA FAPESP 241  z  69


70  z  março DE 2016

fotos  léo ramos

Malha flexível feita de fibras de vidro bioativo para uso como curativo em feridas e queimaduras

nas primeiras duas semanas é duas vezes mais rápida em relação aos não biofuncionalizados. Além disso, após o processo de osteointegração não se encontrou nenhum vestígio do material bioativo na superfície das próteses. Fundada em 2014, a Vetra pretende, inicialmente, fornecer o vidro bioativo na forma de pós e grânulos para empresas produtoras de biomateriais na área odontológica, médica e veterinária. “Futuramente, a ideia é produzir artigos mais complexos, como fibras, tecidos e scaffolds”, conta Marina. Para colocar o plano em prática, “a Vetra busca captar recursos de fundos de investimento e estabelecer parcerias com clientes que se interessem em inovar e queiram oferecer produtos avançados e de alta performance”. Muitas das tecnologias apresentadas pela empresa já estão desenvolvidas e possuem estudos A segunda tecnologia licenciada clínicos com humanos que para a Vetra é um novo processo de comprovam sua eficácia, recobrimento dos implantes com como, por exemplo, os probiovidro, que a equipe da empresa dutos para hipersensibichama de biofuncionalização. “Com lidade e remineralização ela recobrimos próteses ortopédicas Foi criada uma pós-clareamento dental e odontológicas (metálicas ou cerârede com 64 com biovidro. “Por isso, esmicas) com uma camada de vidro tamos buscando parceiros bioativo em sua superfície”, explica pesquisadores que possam introduzir esMarina. “Isso também acelera o prosas tecnologias inovadoras cesso de osteointegração e previne para os testes no mercado. Os principais infecções. Além disso, essa camada potenciais clientes são emnão compromete as propriedades in vitro, em presas da área da saúde.” do material do implante, porque ela animais e Os testes clínicos estão é totalmente reabsorvida pelo orsendo realizados por váganismo após alguns dias.” Marina seres humanos rios grupos de pesquisa no garante que a solubilidade do bioviBrasil. “Criamos uma redro F18 é maior do que a do Bioglass de chamada Biomaterials 45S5, de uso comercial. Ele começa Research and Technology a se dissolver logo após a colocação Network [Bionetec] com do enxerto no organismo e se integra rapidamente ao osso. De acordo com Murilo Cro- mais de 64 pesquisadores de diferentes univervace, alguns tipos de biovidros comuns, semelhan- sidades envolvidos nos testes in vitro [em tecidos tes ao 45S5, já são explorados comercialmente no biológicos no laboratório], in vivo [com animais] exterior, sendo aplicados clinicamente há quase e clínicos [em humanos] dos nossos materiais. 30 anos, mas ainda não são produzidos no Brasil. Pesquisadores de diversas instituições realizaram inúmeros testes como, por exemplo, as faculdades de Medicina da Universidade Estadual de CamSem vestígios A equipe realizou testes em camundongos, coe- pinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo lhos e cachorros com enxertos e implantes den- (USP) em Bauru, o Centro de Ciências Biológicas tários de titânio biofuncionalizados. O resultado e da Saúde da UFSCar, as faculdades de Odonmais importante foi que, após as análises histo- tologia da USP de Ribeirão Preto e da Universimorfométricas para quantificação de estruturas dade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, ósseas, se descobriu que a formação de osso novo e a Faculdade de Biociências da Universidade sobre os enxertos recobertos com o biovidro F18 Federal de São Paulo (Unifesp)”, conta Marina.


Implante odontológico com cobertura de biovidro, melhor integração com o osso e prevenção de infecções

Vidro bioativo na forma monolítica utilizado como enxerto para regeneração óssea

Camila Tirapelli, professora da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, da USP, especialista em prótese dentária, foi uma das pesquisadoras que realizou testes com um material do grupo da UFSCar, o biosilicato, precursor do F18. “Fizemos testes clínicos aplicando o biovidro na hipersensibilidade dentária causada por tratamento periodontal, ablações e recessões gengivais com cerca de 180 pacientes”, diz Camila. O estudo foi publicado na revista científica Journal of Oral Rehabilitation. “Também fizemos a aplicação do novo material em pacientes com sensibilidade dental decorrente de clareamento. Foram 200 pacientes e o estudo, publicado no Journal of Dentistry. Os resultados foram positivos.” Agora, o grupo de Camila realiza testes do biovidro em seres humanos como material de forramento no tratamento de dentes cariados. “No Brasil ainda não existem vidros bioativos como o desenvolvido pela equipe de Zanotto para serem comercializados, pelo menos dentro da minha área de atuação”, diz Camila, que há vários anos realiza testes clínicos na área odontológica com os biomateriais do DEMa-UFSCar. “No mundo, há raras empresas que eu conheça que façam a mesma coisa. A entrada desses produtos

no país tem um custo alto.” De acordo com ela, esse biomaterial ainda tem uso restrito mesmo em países desenvolvidos. “No Brasil, se restringe ao ambiente acadêmico.” O próximo passo para o uso comercial é a obtenção do registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Vetra está entrando num mercado em que o crescimento é acelerado. “O mercado de biomateriais é um dos que mais crescem no mundo, a uma taxa superior a 15% ao ano”, diz Zanotto. Segundo um estudo da empresa indiana MarketsandMarkets (M&M), de pesquisa de mercado, a previsão para a área de biomateriais, incluindo os tipos de materiais (metálicos, cerâmicos, polímeros) e aplicações (cardiovascular, ortopédica, dental entre outras), atingirá o valor global de US$ 130,5 bilhões em 2020. Em 2015, o faturamento total do setor foi de US$ 62 bilhões. Para a engenheira de materiais Cecilia Amelia de Carvalho Zavaglia, professora do Departamento de Engenharia de Manufatura e Materiais da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, o biovidro desenvolvido pela equipe de Zanotto e licenciado para a Vetra é promissor. “No mundo todo há gente desenvolvendo biovidros”, diz ela. “O que foi criado na UFSCar é inovador, não apenas cópia do que é feito lá fora. O diferencial está na composição.” Agora, ele precisa ser mais bem divulgado entre os profissionais de saúde e estar disponível no mercado, depois da aprovação da Anvisa. n

Projetos 1. CeRTEV – Centro de Pesquisa, Tecnologia e Educação em Materiais Vítreos (nº 2013/07793-6); Modalidade Programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Edgar Dutra Zanotto (UFSCar); Investimento R$ 22.174.519,45 (em cinco anos para todo o CeRTEV). 2. Desenvolvimento e caracterização de tecidos vítreos flexíveis altamente bioativos (nº 2011/22937-9); Modalidade Bolsa no País – Regular – Doutorado; Pesquisador responsável Edgar Dutra Zanotto (UFSCar); Bolsista Marina Trevelin Souza (UFSCar); Investimento R$ 127.215,87. 3. Scaffolds vitrocerâmicos bioativos aplicáveis à ortopedia e odontologia obtidos através de tecnologias tridimensionais (nº 2013/07059-0); Modalidade Bolsa no País – Regular – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Edgar Dutra Zanotto (UFSCar); Bolsista Murilo Camuri Crovace (UFSCar); Investimento R$ 252.448,23. 4. Desenvolvimento de superfícies de titânio com atividade antibacteriana via aplicação de camada de um vidro bioativo (nº 2013/058560); Modalidade Bolsa no País – Regular – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Edgar Dutra Zanotto (UFSCar); Bolsista Clever Ricardo Chinaglia (UFSCar); Investimento R$ 166.051,07.

Artigos TIRAPELLI, C. et al. The effect of a novel crystallised bioactive glass-ceramic powder on dentine hypersensitivity: a long-term clinical study. Journal of Oral Rehabilitation. v. 38, n. 4, p. 253-62. abr. 2011. PINTADO-PALOMINO, K. et al. A clinical, randomized, controlled study on the use of desensitizing agents during tooth bleaching. Journal of Dentistry. v. 43, n. 9, p. 1099-105. on-line. 6 jul. 2015. GABBAI-ARMELIN, P. R. et al. Effect of a new bioactive fibrous glassy scaffold on bone repair. Journal of Materials Science: Materials in Medicine. v. 26, n. 177, p. 1-13. 2015. CROVACE, M. C. et al. Biosilicate®—A multipurpose, highly bioactive glass-ceramic. In vitro, in vivo and clinical trials. Journal of Non-Crystalline Solids. v. 432, p. 90-110. jan. 2016.

pESQUISA FAPESP 241  z  71


Metalurgia y

A primeira etapa do superímã IPT desenvolve processo de transformação de terras-raras em metal para uso em magnetos mais potentes para a indústria

Marcos de Oliveira

U

m passo importante foi dado para o Brasil produzir superímãs no futuro. O desenvolvimento de tecnologia para a produção do didímio – um conjunto de dois metais precursores de ligas para ímãs de maior densidade de fluxo magnético – abre caminho para a fabricação desse produto ainda inédito no país. O didímio é formado por dois elementos de terras-raras, o praseodímio (Pr) e o neodímio (Nd), do grupo dos lantanídeos. Os ímãs de alta potência são utilizados, por exemplo, em motores de veículos elétricos e geradores de eletricidade em turbinas eólicas. A novidade anunciada em fevereiro é fruto de uma parceria entre o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM) e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). No projeto iniciado em 2014, o grupo de pesquisadores do IPT, do Laboratório de Processos Metalúrgicos, sob a liderança do engenheiro metalurgista João Batista Ferreira Neto, desenvolveu tecnologia para transformar o óxido de didí72  z  março DE 2016

mio, um pó de cor semelhante ao de café, em lingotes de metal puro. “Desenvolvemos a etapa da redução, o que significa transformar o óxido [retirar o oxigênio] em metal. Para isso montamos reatores que trabalham a 1.200 graus Celsius (°C) e produzem barras de didímio metálico. Esse material, em uma fase seguinte, da qual também pretendemos desenvolver tecnologia, será usado na produção de uma liga metálica de didímio, ferro e boro para a posterior fabricação do superímã”, explica João. O projeto de desenvolvimento do didímio metálico teve o custo de R$ 9 milhões, sendo R$ 3 milhões da CBMM, R$ 3 milhões da Embrapii e a parte do IPT contabilizada com equipamentos, infraestrutura e a remuneração de sete pesquisadores. campo magnético

Para chegar ao ímã é preciso obter a liga didímio-ferro-boro em pó e fazer o alinhamento das partículas por meio do campo magnético aplicado durante a compactação, seguido de sinterização (solidificar o material) e tratamento térmico, dando assim origem ao ímã. Os ímãs feitos no país são de ferrite, à ba-

se de bário ou estrôncio, presentes, por exemplo, nos pequenos adesivos fixados na geladeira. Os ímãs que contêm neodímio, ferro e boro são pelo menos três vezes mais potentes que os de ferrite em relação ao campo magnético. O mercado de ímãs cresce a cada ano. Em 2010, as vendas foram de US$ 2 bilhões no mundo. Em 2020 devem atingir US$ 5 bilhões e em 2030 a previsão é de US$ 10 bilhões, principalmente pelo aumento da importância da energia eólica. Apenas para fabricar os aerogeradores eólicos, a necessidade de ímãs de didímio ou neodímio é de 600 quilos (kg) a 1 tonelada de ímã por megawatt (MW) instalado (capacidade para suprir 200 residências, em média). A previsão é de que entre 2016 e 2019 sejam instalados mais 10 gigawatts (GW) de energia eólica apenas no Brasil. Atualmente, os ímãs utilizados pela indústria brasileira são importados, embora o país tenha a segunda reserva de terras-raras do mundo, atrás apenas da China. Os chineses são líderes na produção mundial de ímãs e têm a tecnologia tanto de extração e purificação de terras-raras como de produção de ímãs


fotos  eduardo cesar

potentes. “Existe pouca informação fora da China sobre a separação de terras-raras e a produção de ligas metálicas para ímãs”, diz João. Os ímãs comerciais mais potentes utilizados no mundo são de neodímio ou didímio. Nas minas da CBMM em Araxá, Minas Gerais, a produção de terras-raras começa com a separação dos elementos a partir da monazita, mineral encontrado nos rejeitos da exploração do nióbio, entre outros sítios geológicos. O neodímio e o praseodímio sempre aparecem juntos no mesmo mineral.

A CBMM comercializa todos os produtos de nióbio usados pela indústria, como o ferronióbio utilizado em siderurgia, o nióbio metálico puro ou os óxidos especiais desse material. O Brasil é o maior produtor mundial. O nióbio é adicionado aos aços na proporção média de 500 gramas por tonelada. Essa pequena quantidade no aço faz a sua resistência mecânica aumentar sem prejuízo da maleabilidade. Assim é possível utilizar menor quantidade de aço na aplicação final, por exemplo, deixando as chapas de aço mais finas e leves. O nióbio tam-

bém é usado, por exemplo, em câmaras de combustão de motores de avião. “Não vendemos o material na forma bruta, mas transformamos o nióbio de acordo com as necessidades do cliente. Exportamos 96% das 65 mil toneladas produzidas por ano de nióbio, sendo de 22% a 25% para a China”, diz o presidente da CBMM, o engenheiro metalúrgico Tadeu Carneiro. “Desenvolvemos a tecnologia para separar a monazita [que contém terras-raras] dos rejeitos. Na primeira fase da separação atingimos o sulfato duplo que contém as 17 terras-raras, todas com uso industrial; o problema é obtê-las de forma econômica”, explica. Também é difícil separar de maneira econômica o neodímio do praseodímio, por isso a empresa utiliza o óxido de didímio. “Construímos uma unidade semi-industrial para a produção de sulfato duplo com capacidade para 3 mil toneladas por ano”, explica Carneiro. Além disso, a CBMM também construiu uma unidade-piloto para separar quatro produtos de terras-raras a partir do sulfato duplo por meio da tecnologia de extração por solventes. O resultado é a obtenção de óxidos de cério, lantânio, didímio e, do outro lado, o restante das terras-raras. A concentração do didímio representa de 15% a 20% do total de terras-raras na monazita. “Foram gastos R$ 80 milhões nessa linha de separação”, diz Carneiro. A empresa é controlada pelo grupo Moreira Salles em 70%. Os 30% restantes são consórcios de empresas chinesas, japonesas e coreanas. “Esperamos chegar à liga didímio-ferro-boro”, diz Carneiro. “Depois, certamente precisaremos nos unir a empresas que trabalham na área de produção de ligas e ímãs. Estamos investindo no conhecimento, mas na hora de fazer negócio precisaremos de outros parceiros.” n

Acima, amostra do didímio metálico desenvolvido no IPT. Ao lado, o óxido de didímio produzido pela CBMM em Araxá (MG)

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pesquisa empresarial y

Riqueza da colmeia Apis Flora investe em pesquisa e desenvolvimento para obter produtos com alto valor tecnológico feitos à base de própolis Yuri Vasconcelos

Q Experimento para obtenção de sistemas nanoestruturados contendo própolis

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uem um dia procurou tratar uma dor de garganta ou um resfriado com medicamentos à base de mel ou própolis, resina produzida pelas abelhas para vedar e esterilizar as colmeias, deve ter se deparado com produtos da Apis Flora. Com sede em Ribeirão Preto, no interior paulista, a companhia foi uma das pioneiras no país na fabricação de produtos com essas duas substâncias. Criada em 1982 por Manoel Eduardo Tavares Ferreira, engenheiro agrônomo, e Antônio Carlos Meda, químico, a Apis Flora é dona de um portfólio formado por mais de 100 produtos, entre medicamentos, alimentos, insumos farmacêuticos e itens para higiene pessoal. São mais de 6 mil pontos de revenda em todos os estados brasileiros, principalmente farmácias e lojas de produtos naturais. A empresa tem 85 funcionários. Desses, 15 estão na área de pesquisa. “Nossa equipe é formada por químicos, farmacêuticos, biólogos, biotecnólogos e biomédicos. Na pesquisa são seis doutores, um mestre, uma mestranda e dois bacharéis”, diz Andresa Aparecida Berretta e Silva, gerente de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) da Apis Flora. Investir em pesquisa e estabelecer parcerias com universidades para desenvolver projetos na área de apifitoterápicos foi a estratégia da empresa para criar produtos mais sofisticados. “Desde

empresa Apis Flora

Centro de P&D Ribeirão Preto, SP

Nº de funcionários 85

Principais produtos Medicamentos e alimentos à base de mel e própolis


fotos  léo ramos

a sua fundação e até meados da década de 1990, estávamos focados em produtos menos complexos, como xaropes e compostos de mel, geleia real e sprays bucais feitos de própolis. Investimos em pesquisa e inovação e atualmente estudamos e desenvolvemos produtos com maior valor tecnológico, como as micropartículas de própolis”, conta o gerente de planejamento e novos negócios Raul Ferreira. Essas micropartículas são produzidas por meio da transformação da própolis líquida em seca que depois é microencapsulada. O processo mantém a estabilidade dos componentes ativos. Criadas nos laboratórios da Apis Flora, as micropartículas de própolis são o carro-chefe das exportações. Por ano, cerca de 18 toneladas do produto são vendidas para um cliente na China, cujo nome é mantido em sigilo por razões comerciais. “No ano passado, entramos

com um pedido de patente relacionado ao processo de fabricação das micropartículas”, destaca Raul. A Apis Flora vende seus produtos para clientes em outros 15 países, além da China, entre eles Estados Unidos, Canadá, Japão, Coreia do Sul e Argentina. No ano passado, as exportações responderam por 15% de seu faturamento de R$ 25 milhões. No Brasil, a empresa fornece insumos industriais para grandes companhias dos setores farmacêutico, de cosméticos e alimentício, como Johnson & Johnson, Unilever e L’Oréal. “Somos fornecedores certificados da Johnson para sua linha infantil à base de mel. Para a L’Oréal, vendemos extrato de própolis e geleia real liofilizada [secagem a frio]”, diz Raul. O desenvolvimento de um produto inovador como as micropartículas não é um caso isolado na história da empresa.

Pesquisadores da Apis Flora: Franciane Oliveira, Juliana Hori, Hernane Barud, Andresa Berretta e Andresa Rodrigues

Ainda nos anos 1980, a Apis Flora começou a explorar o extrato de própolis, substância conhecida por suas propriedades anti-inflamatória, cicatrizante e antimicrobiana. Ela também criou uma nova linha que misturava em um mesmo produto mel, extrato de própolis e plantas medicinais. “Em 1983, quando começamos a fabricar nosso extrato de própolis, não havia no país uma regulamentação para o produto. Participamos com o Ministério da Agricultura da elaboração do Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade (RTIQ) da própolis, publicado em 2001, que trata de sua padronização”, diz Raul Ferreira. pESQUISA FAPESP 241  z  75


No laboratório da empresa, testes de medicamentos e crescimento de bactérias para experimentos

A primeira parceria da Apis Flora com uma universidade surgiu da necessidade de se conhecer a composição química da própolis brasileira e, assim, estabelecer parâmetros de qualidade. “Há cerca de 20 anos, procuramos o professor Jairo Kenupp Bastos, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, para que ele nos ajudasse nessa caracterização. Até aquela época, não existiam estudos do gênero no país”, diz Andresa Berretta, que trabalha há 16 anos na Apis Flora e foi responsável pelo primeiro produto mais elaborado da empresa, um medicamento à base de extrato de própolis para tratar ferimentos e queimaduras na pele. A formulação do produto foi durante o mestrado e o doutorado de Andre-

A própolis passa por testes em medicamentos contra artrite, candidíase, queimaduras e na produção de etanol sa na USP em Ribeirão Preto. Segundo a pesquisadora, trata-se de um líquido gelado termorreversível que, ao entrar em contato com a pele – que tem temperatura mais elevada –, se transforma em gel, alivia a dor e forma uma camada protetora contra agentes externos. “Realizamos ensaios em feridas de animais e testes clínicos em 32 pacientes do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto,

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Andresa Aparecida Berretta e Silva, farmacêutica, gerente de pesquisa, desenvolvimento e inovação

Universidade de São Paulo (USP/Ribeirão Preto): Graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado

Andresa Piacezzi Nascimento Rodrigues, bióloga, coordenadora do laboratório microbiológico

Universidade de Franca (Unifran): Graduação; Universidade de São Paulo (USP/Ribeirão Preto): Mestrado e doutorado

Franciane Marquele de Oliveira, farmacêutica, pesquisadora

Fundação Hermínio Ometto (FHO-Araras): Graduação; Universidade de São Paulo (USP/Ribeirão Preto): Mestrado, doutorado e pós-doutorado

Hernane da Silva Barud, químico, pesquisador

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF): Graduação; Universidade Estadual Paulista (Unesp/Araraquara): Mestrado e doutorado Universidade Trent (Canadá): Pós-doutorado

Juliana Issa Hori, bióloga, pesquisadora

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar): Graduação; Universidade de São Paulo (USP/Ribeirão Preto): Mestrado, doutorado e pós-doutorado

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sob a coordenação do professor Werther Marchesan. O medicamento aguarda o registro da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para o início das vendas”, conta. Esse trabalho gerou dois dos seis pedidos de patente depositados pela empresa no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). curativos de biocelulose

Outra inovação é um biocurativo feito a partir de membranas de biocelulose impregnadas com extrato de própolis – biocelulose é o nome dado à celulose produzida por bactérias. Essa pesquisa é feita em conjunto com pesquisadores do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, em parceria com os professores Younés Messaddeq (atualmente na Universidade Laval, no Canadá) e Sidney José Lima Ribeiro. “Os nossos biocurativos tratam feridas de difícil cicatrização, como queimaduras e úlceras crônicas de pele. Eles atenuam o tempo de tratamento e a dor de pacientes que sofreram queimaduras de primeiro e segundo grau”, afirma o químico Hernane Barud, coordenador do trabalho. Segundo Ba-


fotos  léo ramos

Biomembranas de celulose obtidas a partir da bactéria do gênero Komagataeibacter, empregadas no tratamento de feridas. Acima, pó com micropartículas que mascaram o sabor e garantem a estabilidade da própolis

rud, que também é professor do Centro Universitário de Araraquara (Uniara), foram realizados testes em animais e ensaios clínicos em humanos, sob a coordenação do professor Marco Andrey Cipriani Frade, da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. No momento, estão em processo de elaboração do processo de registro na Anvisa. Esse é um dos projetos da Apis Flora que recebeu recursos do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. O extrato de própolis também é usado no desenvolvimento de um gel mucoadesivo para tratamento de candidíase vaginal, uma infecção por fungos. “Esse projeto conta com a parceria do professor Gustavo Goldman, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto. Foi ele quem conduziu o estudo que elucidou o mecanismo de ação antifúngica da própolis”, explica Andresa. Com o produto pronto, em março, serão iniciados os testes clínicos com pacientes do HC [Hospital das Clínicas] de Ribeirão Preto”, diz. Também com própolis, a empresa desenvolve um medicamento para a artrite reumatoide, uma doença que leva à deformidade e à destruição das arti-

culações. “Nosso grupo foi o primeiro a mostrar a participação da própolis na inibição de uma das principais vias da inflamação das células, conhecida como inflamassoma, relacionada a doenças autoimunes, entre elas a artrite reumatoide”, diz Juliana Issa Hori, bióloga e coordenadora do estudo na empresa. Esse projeto é desenvolvido em colaboração com o professor Thiago Mattar Cunha, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Em outra linha de pesquisa, o extrato de própolis é estudado para solucionar um problema enfrentado pelos produtores de açúcar e álcool. “A contaminação de processos de fermentação alcoólica por bactérias é comum e causa grandes perdas econômicas. Para evitar essa contaminação, as destilarias utilizam antibióticos”, explica Andresa Piacezzi Rodrigues, coordenadora do laboratório microbiológico da Apis Flora. O problema é que o uso de antibióticos deixa resíduos tanto no açúcar como no álcool e em todos os subprodutos da fermentação. A Apis Flora também desenvolve fitoterápicos a partir da biodiversidade brasileira. O projeto liderado pela far-

macêutica Franciane Marquele de Oliveira, pesquisadora da empresa, visa à criação de um medicamento à base de louro-de-cheiro (Ocotea duckei) para tratamento da leishmaniose visceral e tegumentar, doenças endêmicas no Brasil causadas por protozoários do gênero Leishmania. “Os medicamentos-padrão apresentam uma série de efeitos colaterais e muitos pacientes abandonam o tratamento”, afirma Franciane. “Desenvolvemos um sistema de base nanotecnológica que libera os componentes da Ocotea duckei no tecido infectado”, diz. “Detectamos os componentes com efeito antileishmania e estabelecemos um sistema para levá-los para todo o organismos humano, inicialmente na aplicação nos testes in vivo e os ensaios em humanos.” n

Projetos 1. Desenvolvimento de um medicamento de base nanotecnológica oriundo da biodiversidade brasileira para tratamento de leishmaniose (nº 2014/50410-3); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Franciane Marquele de Oliveira (Apis Flora); Investimento R$ 102.547,75. 2. Desenvolvimento de um medicamento para tratamento de candidíase vulvovaginal (nº 2013/50496-2); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Andresa Aparecida Berretta e Silva (Apis Flora); Investimento R$ 425.262,37 e US$ 123.911,50. 3. Obtenção de um antibiótico de origem natural, obtido por processo biotecnológico, para controle de contaminação de processos de fermentação alcoólica (nº 2012/50215-0); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Andresa Piacezzi Nascimento Rodrigues (Apis Flora); Investimento R$ 124.724,00 e US$ 6.500,00. 4. Desenvolvimento e avaliação de biocurativos obtidos a partir de celulose bacteriana e extrato padronizado de própolis (epp-af) para o tratamento de queimaduras e/ou lesões de pele (nº 2011/51725-0); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Hernane da Silva Barud (Apis Flora); Investimento R$ 273.525,00.

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humanidades   Artes cênicas y

Márcio Ferrari

A naturalidade e a vanguarda dos figurinos teatrais Pesquisador analisa a história dos trajes usados nos palcos brasileiros desde o século XIX Márcio Ferrari

O

estudo sobre os trajes de cena é recente no Brasil. Para o pesquisador Fausto Viana, é até certo ponto compreensível que seja assim, levando em conta que a primeira leva importante de trabalhos acadêmicos sobre teatro se deu apenas nos anos 1970, voltada principalmente para o ator. Depois as atenções passaram para a direção, chegando à parte técnica somente na década de 1990, cenografia à frente. E só em seguida apareceu maior interesse pelos figurinos, segundo o professor da Escola de Ciências, Artes e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e coordenador do Núcleo de Pesquisa Traje de Cena, ligado à Pró-reitoria de Pesquisa. “Nos últimos tempos, o interesse vem crescendo muito”, diz Viana, que também leciona na pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes (ECA-usp). “Há grupos de pesquisa sendo criados pelo país todo. Espero que continuem se multiplicando, para abrir novas frentes de estudo.” A mais nova frente aberta por Viana é a pesquisa “O figurino teatral das renovações cênicas brasileiras”, que teve apoio da FAPESP e está prevista para sair em livro no segundo semestre. O estudo é um desdobramento da tese de doutorado O figurino teatral das renovações cênicas do século XX: Um estudo de sete encenadores (2004), no qual abordou o trabalho de grandes nomes como Constantin Stanislavski e Bertolt Brecht sob o ângulo específico dos trajes de cena. Enquanto a lista de es-


fotos  reproduçÃo

Na página ao lado, o custoso figurino de A dama das camélias, do TBC; nesta página, em sentido horário, cartaz de peça de Eduardo Victorino, Paulo Autran em Leonor de Mendonça, do TBC, a atriz Maria Falcão, da companhia de Victorino, e croqui de A dama das camélias

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trangeiros daquela pesquisa chega a uma diretora ainda viva, a francesa Ariane Mnouchkine, a trajetória brasileira estudada termina nos anos 1960. Viana considera que o período posterior já foi bastante abordado e que é mais urgente analisar as primeiras décadas do século XX. “Estou interessado em resgatar o que pode se perder”, diz. No cenário brasileiro, Viana selecionou sete destaques ligados à criação e à reflexão no campo do figurino: o ator João Caetano dos Santos (1808-1863), o diretor e ator Eduardo Victorino (18691949), a companhia Os Comediantes (1938-1947), o Teatro Experimental do Negro (TEN, 1944-1968), o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC, 1948-1964), Alfredo Mesquita (1907-1986) e a Escola de Arte Dramática (EAD, fundada em 1948) e o artista plástico, arquiteto e cenógrafo Flávio de Carvalho (1899-1973). Entre outros motivos, a escolha desses marcos obedeceu à intenção de desfazer a ideia de que a grande renovação da cenografia e dos figurinos no Brasil foi o trabalho de Tomás Santa Rosa Júnior (1909-1956) para a peça Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, encenada pelo grupo carioca Os Comediantes em 1943. A importância dos figurinos num espetáculo teatral é de integrar a caracterização de um personagem e de algum modo “contar sua história”, de acordo com Viana, para quem os figurinos são parte da cenografia. A diretora de arte em cinema e teatro Vera Império Hamburger, da ECA-USP, acrescenta outro aspecto: “Os trajes têm importância crucial porque são o único elemento visual em movimento, criando narrativas”.

À esquerda, única foto de João Caetano em traje de cena e, acima, o encenador e modernizador Eduardo Victorino

O consagrado Santa Rosa criou figurinos nos corpos dos atores do Teatro Experimental do Negro

OS DESTAQUES

João Caetano, embora muito famoso como ator em sua época no Rio de Janeiro, com boas relações na Corte, culto e conhecedor do teatro francês, só deixou uma fotografia caracterizado em cena, insuficiente para desenvolver análises de seu trabalho como figurinista ou cenógrafo. Por comentários de encenadores posteriores, sobretudo Victorino, e pelo que João Caetano deixou registrado em seu livro Lições dramáticas (1861), depreende-se uma concepção hegemônica na segunda metade do século XIX, inclusive na Europa: o predomínio da beleza do traje, sem maior preocupação com veracidade histórica ou psicológica. 80  z  março DE 2016

No entanto, Elizabeth Azevedo, também do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, encontrou elementos modernizantes em Emilio Doux (1798-1876), português radicado no Brasil que no fim da vida viria a trabalhar com o ator carioca. Segundo Elizabeth, Doux trouxe uma interpretação mais natural do que a usual na época e, se não há registro dos figurinos de seus espetáculos, é possível inferir alguma modernização a partir do apelido dado às peças de temas contemporâneos, chamadas de “dramas de casaca” (o traje usado nas ruas).

Foi o encenador português Victorino, estabelecido no Rio, quem introduziu ideias modernizantes e aparentadas às de seus contemporâneos inovadores da cena europeia, o suíço Adolphe Appia e o inglês Edward Gordon Craig, ao mesmo tempo que se opunha ao estilo declamatório que marcava a interpretação no teatro brasileiro na época, defendendo uma “verdade cênica”. “Em parte por influência de Victorino, os grandes nomes passam por volta da década de 1910 a adotar figurinos adequados a cada personagem”, diz Viana. Foi também por essa época que vários atores começaram a mandar confeccionar e guardar os próprios figurinos, hábito que ainda sobrevivia nos anos 1970. “Contratava-se um ator porque tinha uma casaca”, contou o ator Paulo Autran num depoimento citado por Viana. A primeira encenação do ativista negro Abdias Nascimento (1914-2011) foi na prisão em 1943, em São Paulo, depois de sofrer um processo por indisciplina que se seguiu a sua expulsão do Exército. Na companhia de outros presos, fundou o Teatro do Sentenciado, que apresentou a peça Revista penitenciária, em que os atores faziam papéis masculinos e femininos. O próprio Nascimento cuidou de improvisar figurinos. Dois anos depois, na peça inaugural do TEN, O imperador


À esquerda, O sortilégio, do Teatro Experimental do Negro; acima, O bailado do deus morto, de Flávio de Carvalho

negro, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, os figurinos também foram marcados por extrema simplicidade. Apesar da falta de recursos, a companhia, que pela primeira vez levou ao palco orixás (na peça Sortilégio) e um negro como personagem principal, contava com a simpatia de outros grupos teatrais cariocas, que muitas vezes se associavam a ela em espetáculos conjuntos. O consagrado Santa Rosa se encarregou das roupas e cenários de várias montagens do grupo a partir de 1947. Mais de uma vez, sem dinheiro, criou os figurinos nos próprios corpos dos atores, com lençóis e alfinetes. Em 1949, Aruanda, outra colaboração com Santa Rosa, foi, segundo Viana, “a primeira produção em que efetivamente se privilegiou o traje do negro, das escravas coloniais, da produção têxtil africana”.

fotos  reprodução

LUXO E RIQUEZA

Bem diferente foi a experiência protagonizada pelo paulistano Alfredo Mesquita, considerado pelo pesquisador “uma peça-chave no pensamento do figurino no Brasil”. Homem rico (membro da família proprietária do jornal O Estado de S. Paulo) e bem relacionado, recebia da elite doações de trajes que entraram para o acervo da EAD, da qual foi fundador e que hoje é uma unidade complementar

da USP. Mesquita, que assinou o figurino de muitas peças montadas pela EAD, levou à escola um profissionalismo pouco usual para o teatro brasileiro até então, contratando cenógrafos e figurinistas. Ainda mais luxuoso, o TBC significou um grande salto técnico para o teatro brasileiro com a chegada de um grupo numeroso de profissionais europeus. Seu fundador foi Franco Zampari (1898-1966), que havia vindo da Itália para trabalhar nas indústrias Matarazzo e reunira considerável fortuna. O grupo trazido por Zampari incluía os diretores Adolfo Celi e Luciano Salce e o cenógrafo e figurinista Gianni Ratto. “Na época, anos 1940, São Paulo já era um centro financeiro vigoroso e pôde receber um teatro cujo modo de produção era totalmente europeu”, afirma Viana. Um hábito da Europa trazido para o Brasil foi de fazer uma primeira versão do traje em algodão, experimentar no ator, estudar seus movimentos e só então confeccionar o figurino definitivo. “O TBC se deu esse luxo”, diz Viana. Ele conta também que o figurinista Aldo Calvo, para uma montagem de A dama das camélias, importou 80 metros de tule cristal francês para um único vestido usado pela atriz Cacilda Becker. “A produção quase quebrou o TBC.” O pesquisador decidiu incluir Flávio de Carvalho entre os nomes que conside-

ra os principais da cenografia brasileira no século XX não tanto por ter tido uma atuação duradoura ou influente, mas pela originalidade de seus projetos, que às vezes anteciparam concepções de vanguardistas como o francês Antonin Artaud. Conhecido pela irreverência, Carvalho encenou em 1933 o espetáculo O bailado do deus morto, descrito por ele mesmo como um laboratório no qual “seria experimentado o que surgiria de vital no mundo das ideias: cenários, modos de dicção, mímica, a dramatização de novos elementos de expressão, problemas de iluminação e de som e conjugados ao movimento de formas abstratas”. As figuras em cena surgiam como totens com máscaras e grandes cabeleiras. Igualmente inovadores foram os cenários e figurinos escultóricos criados por Carvalho para o Balé do IV Centenário de São Paulo, em 1954. Para Viana, “o entendimento do que foi o Balé do IV Centenário para as artes plásticas, a dança e o teatro ainda tem uma história a ser escrita, porque pode se tornar a certidão de batismo da cenografia brasileira contemporânea”. n Projeto O figurino teatral das renovações cênicas brasileiras (2013/09333-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Fausto Viana (ECA-USP); Investimento R$ 31.831,12.

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LITERATURA y

A figura poética da prostituta Estudo investiga o significado da personagem no modernismo brasileiro

Christina Queiroz

U

ma das marcas significativas do modernismo brasileiro foi a busca pela natureza da identidade nacional, assunto que orientou uma vasta tradição de estudos acadêmicos em literatura. Contudo, ao investigar o papel da prostituta na produção literária do período, Eliane Robert Moraes, professora de literatura brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), propôs uma reflexão menos atenta às questões nacionais, na tentativa de privilegiar recortes universais. No projeto “Figurações literárias da prostituta no modernismo brasileiro”, desenvolvido entre 2012 e 2015, a pesquisadora verificou que a personagem não só se faz presente nos

trabalhos de quase todos os autores da época como também aparece como elemento estruturante dos próprios textos. No modernismo brasileiro, assim como no europeu, essa protagonista se impõe como o lugar do sexo por excelência e como um espaço vazio no qual se pode alocar toda sorte de fantasias, por mais estranhas e improváveis que sejam. No Brasil, é forte a tradição de crítica literária que interpreta a obra à luz da realidade social do país. De acordo com Eliane, essa perspectiva nem sempre favorece o estudioso da escrita erótica, pois ele trabalha com o imaginário e não com o real. Ao longo da pesquisa, ela constatou que as representações da prostituta não são “documentos sociais”, mas interpretações da realidade atravessadas pelas fantasias de seus criadores. Assim, a figura representada se afasta

das mulheres de “carne e osso” para se tornar uma posição simbólica, um receptáculo de fabulações que, no mundo real, nem sempre podem se realizar. “A personagem da meretriz não representa a si mesma, mas sim o desejo”, sustenta Eliane. Um bom exemplo disso está no poema “A puta”, de Carlos Drummond de Andrade, que começa assim: “Quero conhecer a puta./ A puta da cidade. A única./ A fornecedora./ Na rua de Baixo/ Onde é proibido passar./ Onde o ar é vidro ardendo/ E labaredas torram a língua/ De quem disser: Eu quero/ A puta/ Quero a puta quero a puta”. Eliane explica que o poema articula uma tópica geográfica e outra sexual, de modo a criar um espaço particular para o surgimento do desejo – dinâmica que também observa em outros versos da época. Mas o acesso a esses domínios

Lasar Segall, 1891, Vilna – 1957, São Paulo, Grupo do Mangue na escada, 1928, ponta-seca sobre papel, 24 x 18 cm

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acervo do museu lasar segall-ibram / minc


A crítica que analisa a obra à luz do social favorece pouco o estudo da escrita erótica, diz a pesquisadora

“baixos” – como a “rua de Baixo onde é proibido passar” – só acontece por intermédio da prostituta. Ela é a “guardiã do limiar”, diz Eliane, citando a expressão com que o filósofo alemão Walter Benjamin qualifica a prostituta, por ser figura sagrada e profana ao mesmo tempo. “É ela que guarda a passagem entre a cidade diurna e a noturna, entre o alto e o baixo”, reitera. A pesquisadora recorda que essa mesma posição limiar aparece nas gravuras do lituano-brasileiro Lasar Segall sobre o Mangue, zona portuária e de prostituição do Rio de Janeiro, que sempre apresentam as mulheres nas margens das portas e das janelas dos bordéis, se oferecendo aos marinheiros de passagem pela cidade. 84  z  março DE 2016

O IMPRATICÁVEL

Durante seu estudo, apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Eliane confirmou que o tema do meretrício é recorrente na poesia modernista do país, como já havia notado na pesquisa para a sua Antologia da poesia erótica brasileira, lançada no ano passado. Manuel Bandeira escreveu um dos mais conhecidos versos em “Vou-me embora pra Pasárgada” (onde “tem prostituta bonita para a gente namorar”); Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Vinicius de Moraes também dedicaram poemas às profissionais do sexo. Eliane diz que, apesar dessa recorrência, a crítica tem olhado pouco para esse

aspecto, algo que ela atribui a diferentes fatores. Um deles é a censura – ou autocensura – de autores e editores, que muitas vezes resultou na publicação póstuma de livros de cunho erótico, como O amor natural (1992), de Carlos Drummond de Andrade, ou de poemas como “A morte da puta”, de Murilo Mendes, descoberto recentemente pelo pesquisador Leandro Garcia, na correspondência entre o poeta católico e o crítico Alceu Amoroso Lima, também católico. “O erotismo é um campo que assusta, talvez porque remeta à nossa origem e à própria ‘origem do mundo’”, sustenta Eliane, fazendo referência ao quadro L’Origine du monde (1866), do francês Gustave Courbet, que mostra o sexo de uma mulher. Para ela, a literatura pode trabalhar com o inconfessável, com “nosso fundo escuro”, sem que isso signifique que os escritores aprovem práticas ilegais. “Conceber o inconcebível não é praticar o impraticável”, diz. Eliane considera a discussão ética fundamental e necessária para guiar a conduta, mas não a imaginação. Para ela, o valor ético não deve impedir (como não impediu) o direito de a


romancista e poeta Hilda Hilst escrever, em O caderno rosa de Lori Lamby (1990), as memórias sexuais de uma menina de 8 anos que se prostitui – e gosta disso. O que, em nenhum momento, sanciona o crime de pedofilia. “Não podemos sobrepor esse julgamento à literatura, como aconteceu, nos anos 1990, com o livro de Hilda Hilst”, argumenta. “A literatura deve ser concebida como um espaço de liberdade, no qual podemos elaborar nossos fantasmas e as interdições que nos limitam no plano real.” Eliane destaca que autores anteriores ao modernismo já se valiam da figura da prostituta para construir suas narrativas. Ela cita o romance Lucíola (1862), de José de Alencar, que pode ser lido à luz das relações de poder durante o Império. A cortesã brasileira tem singularidades incontornáveis, pois, diferentemente da Dama das Camélias francesa, Lucíola vive numa sociedade de valores escravocratas. Mesmo assim, a visada histórica deve cruzar com a interpretação das fantasias sexuais que o livro põe em cena. “E essas leituras devem ser combinadas, já que nem uma nem outra podem esgotar o assunto”, defende a professora.

Na página ao lado, Lasar Segall, Casa do Mangue, 1929, xilogravura sobre papel, 31,5 x 42 cm

acervo do museu lasar segall-ibram / minc

MANGUE

Embora “Figurações literárias da prostituta” tenha sido um projeto solo, Eliane contou com interlocutores não oficiais, entre eles Alcir Pécora, professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Até recentemente, as pesquisas nas universidades paulistas se centraram em autores do cânone modernista; o trabalho com o erotismo literário levou luz a autores posteriores como o poeta Roberto Piva e Hilda Hilst, que não apresentam vínculos diretos com as tendências desse movimento e tratam abertamente da sexualidade”, diz ele. Como o núcleo original de interesse de Eliane se relaciona à literatura libertina francesa, Pécora avalia que a pesquisadora produz reflexões incomuns, o que traz um arejamento para os estudos literários no Brasil. Para Camille Dumoulié, professor de literatura comparada da Universidade Paris Ouest Nanterre e um dos principais interlocutores de Eliane em diferentes frentes de trabalho, a colaboração mais significativa da pesquisa foi mostrar como a literatura brasileira, em sua evoca-

Nesta página, Mulher do Mangue sentada, 1942, xilogravura sobre papel, 20,5 x 10,5 cm

ção da prostituta, tem relações de fundo com a literatura francesa. Outro aspecto importante foi evidenciar as especificidades pouco conhecidas da representação da prostituta no Brasil, o que ajuda a rever as matrizes francesas. Ainda como resultado do projeto sobre as figurações da prostituta, Eliane apresentou palestras em países europeus e nos Estados Unidos e, em 2014, atuou como professora convidada na Universidade Paris Ouest Nanterre. A pesquisa também se desdobrou em outro projeto, atualmente em curso, chamado “Mangue: poética e erótica”, que articula relações sobre o tema nas artes plásticas e na literatura ao longo do século XX. Como eixo central, a investigação persegue as particularidades do imaginário da baixa prostituição no

contexto brasileiro. Segundo Eliane, a exemplo do que ocorria no Mangue dos anos 1920-30, na França da belle époque, do pintor Toulouse-Lautrec, as prostitutas e os artistas partilhavam os mesmos ambientes. Porém há uma diferença fundamental na iconografia desses lugares e de suas personagens. Enquanto a francesa é sempre muito branca e marcada pelas olheiras, ou seja, uma mulher da noite, fechada nos cabarés e que não vê a luz do dia, nas imagens do Mangue as prostitutas são negras e mulatas, com outro tipo de integração com a rua. “É um projeto desafiador, que me colocará diante das desigualdades do país. Meu interesse desta vez é conhecer as relações entre o baixo corporal e o baixo social”, diz. n pESQUISA FAPESP 241  z  85


DIREITOS HUMANOS y

A maternidade na prisão Pesquisa mapeia as irregularidades da situação das detentas grávidas e com recém-nascidos e apresenta propostas de mudança Mães detentas e seus filhos em presídio-­modelo em Valência (MG) no ano de 2009

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urante os nove meses em que transcorreu o levantamento de dados da pesquisa “Dando à luz na sombra”, a equipe coordenada pela professora Ana Gabriela Braga detectou uma divisão nas opiniões das mulheres encarceradas grávidas ou que têm filhos na prisão. O estudo – que não é quantitativo – deixou claro que parte das detentas desejava manter as crianças no presídio, ao lado da mãe, enquanto outras preferiam a separação para que os bebês ficassem longe do ambiente da cadeia. O trabalho indicou que entre as duas opções mais frequentes no atual sistema penitenciário brasileiro ambas são vistas como “menos ruim”. “Hoje quase todos os estados têm ou ainda estão construindo apenas um único estabelecimento, geralmente localizado perto da capital, com alas específicas para gestantes ou mães de recém-nascidos”, diz Ana Gabriela, professora de 86  z  março DE 2016

direito penal da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Franca. Portanto, não está sendo cumprido o artigo 89 da Lei de Execuções Penais (LEP), acrescentado em 2009: “A penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 meses e menores de 7 anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa”. A análise de todas essas questões resultou, ao fim do estudo, em 30 propostas de políticas públicas para tentar melhorar a situação de violações constantes. “O problema do exercício dos direitos relacionados à maternidade no sistema prisional não é, na maioria das vezes, criar leis, mas fazer valer as que já existem”, diz Ana Gabriela. Das 30 propostas formuladas pelo estudo, apenas cinco dependem de modificação da legislação

em vigor, das quais três são objeto de projetos de lei em tramitação. “O direito à educação e ao trabalho não é garantido a todas as detentas, não há separação de unidades entre presas provisórias e condenadas e o tempo legal de garantia de permanência das mães com suas crianças não é respeitado”, prossegue a pesquisadora. “O prazo mínimo de seis meses na prática é um prazo máximo, porque é preciso esvaziar espaços para os recém-nascidos.” Na ausência de creches, os bebês são mantidos nas celas com as mães. Quando a criança é tirada da prisão, segue para abrigos ou é entregue a familiares, em geral à avó. A pesquisa coordenada por Ana Gabriela foi realizada no âmbito do projeto “Pensando o Direito”, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O estudo se desenrolou em vários eixos:


Christian Tragni / Folhapress

50 entrevistas formais com especialistas no tema, 80 conversas com presas gestantes ou mães de bebês (baseadas em questionários-guia), criação de um grupo focal de discussões na cadeia de Franca e visitas a presídios femininos de capitais de seis estados e da Argentina, para ouvir detentas e funcionários e verificar instalações. Como conclusão, o trabalho gerou “recomendações de alterações legislativas, procedimentais e propostas de políticas públicas para minimizar o cenário sistemático de violações ao qual está exposta a maioria das mães em situação de prisão no Brasil”. Essas recomendações em grande parte são balizadas pelas emendas à LEP, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelas Regras de Bangkok, conjunto de indicações sobre o tratamento de mulheres encarceradas aprovadas em 2010 pelas Nações Unidas do qual o Brasil é signatário.

A população carcerária feminina vem crescendo significativamente. Segundo dados da pesquisa, enquanto o aumento do ingresso de homens no sistema prisional entre 2000 e 2012 foi de 130%, o de mulheres foi de 246%. O número absoluto de mulheres presas em 2012 era de 35.072, correspondendo a 6,4% do total de pessoas encarceradas no Brasil. Não há estatísticas específicas sobre o número de crianças que estão com suas mães no sistema penal, o que justifica a qualificação de “população invisível” dada pelas pesquisadoras. O perfil da maioria das mulheres em situação prisional é descrito pelo estudo como “jovem, de baixa renda, em geral mãe, presa provisória suspeita de crime relacionado ao tráfico de drogas ou contra o patrimônio”. O fato de o tráfico ser considerado crime hediondo pela legislação vigente é usado, segundo as pesquisadoras, para legitimar uma politica de encarceramen-

to em massa. Ser qualificado de crime hediondo não é impeditivo legal para a concessão de liberdade provisória ou prisão cautelar para acusados ou condenados por tráfico, mas, segundo Ana Gabriela, “a questão moral pesa nas decisões de muitos juízes, que veem incompatibilidade entre ser traficante e boa mãe”. Segundo Luciana Boiteux, professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND-UFRJ), “há juízes que proferem decisões baseadas em argumentos como segurança e defesa da sociedade, contra direitos e garantias previstos expressamente nas leis”. “As mulheres são o alvo mais fácil da política de guerra às drogas”, diz Ana Gabriela. “Sua posição no tráfico é subalterna e costuma se restringir ao transporte e manutenção das drogas em casa, o que permite conciliar a atividade com os cuidados domésticos. No entanto, é a pESQUISA FAPESP 241  z  87


Principais propostas ✸ Ampliação da aplicação de prisão domiciliar, quando não couber liberdade provisória, para mulheres grávidas ou com filhos e ampliação das alternativas penais para desencarceramento de mães em situação prisional.

✸ Instalação de telefones públicos nas penitenciárias de regime fechado e semiaberto para

ponta mais visível do crime organizado, o que as deixa mais vulneráveis.” Segundo as pesquisadoras, as prisões preventivas são numerosas porque se baseiam no testemunho dos policiais que fizeram a abordagem. Outros problemas identificados são a falta de acesso à educação, que impede o direito de redução de pena por estudo, e o acesso precário à Justiça. “O sistema de defensoria pública é muito frágil, e muitas vezes as mulheres nem sequer têm contato com os juízes que decidem o destino da criança”, diz Ana Gabriela. “É comum não saberem onde estão os filhos por não receberem informação do seu destino.” De acordo com a pesquisadora, é frequente a ausência de comunicação entre a Justiça Civil,

facilitar a comunicação da detenta com sua família e permitir o acompanhamento da vida dos filhos, além do acesso à defensoria pública.

✸ Criação de espaços em cumprimento do artigo que prevê seção específica para gestantes em presídios.

✸ Construção ou reforma de espaços para cumprimento do artigo que prevê que os estabelecimentos penais para mulheres sejam dotados de berçário.

✸ Garantia de que mães de bebês iniciem ou continuem atividade educacional ou laboral. Criação da figura das cuidadoras, presas que cuidem dos bebês de outras presas na sua ausência.

bebê com a mãe, de 6 meses para 1 ano de idade, prorrogável por mais seis meses.

✸ Elaboração de medidas que promovam a proximidade e a comunicação do abrigo com o estabelecimento onde está encarcerada a mãe.

✸ Normatização dos procedimentos e determinações internas das prisões, para evitar personalismo nas decisões da diretora e das funcionárias em relação ao exercício de direitos.

✸ Tarja nos processos cíveis indicando que a parte envolvida é ré presa e nos processos criminais indicando a condição de gestante ou mãe de recém-nascido.

Sugere-se que ganhem salário e

Regulamentação do direito de visita

redução de pena.

para garantir a convivência da criança

✸ Possibilidade de que as unidades materno-infantis abriguem não só bebês nascidos no sistema prisional, mas também os filhos de até 1,5 ano nascidos quando a mãe estava em liberdade.

✸ Alteração da lei para aumentar a idade mínima de permanência do

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e do adolescente com a mãe ou o pai privados de liberdade.

✸ Criação de mecanismos pelas secretarias estaduais que garantam o transporte das mulheres e homens para participação nas audiências cíveis envolvendo suas filhas e filhos, como previsto na lei.

onde correm os processos de guarda das crianças, e a Justiça Penal, onde são julgados os crimes dos quais as detentas são acusadas. A assistência médica à mãe e à criança, prevista e detalhada na LEP e nas regras de Bangkok, também é falha, de acordo com dados da pesquisa. “Todas as entrevistadas reclamaram do descaso com que essa atividade era exercida no interior da cadeia”, segundo o relatório final do estudo. “Apesar de a visita do médico ocorrer semanalmente, apenas uma detenta em cada cela pode dirigir-se a ele a cada vez, não havendo medicamentos específicos para determinadas moléstias e nem para todas as mulheres.” ALGEMAS

O trabalho intitulado “Mulheres e crianças encarceradas”, coordenado por Luciana Boiteux, da UFRJ, e Maíra Fernandes, presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, informa que, entre as detentas do presídio Talavera Bruce, no Rio, são comuns as queixas de que os agentes penitenciários desconfiam dos pedidos de atendimento médico e medicamentos. A maioria das detentas (53,7%) afirmou não receber atendimento ginecológico. Houve numerosos relatos de realização incompleta de exames pré-natal: algumas fizeram apenas ultrassonografia e outras só exames de sangue e urina. Além disso, constam denúncias de realização de partos com a detenta algemada. “Nunca deveriam ser feitos partos dentro da prisão, por ausência de condições de higiene e atendimento médico”, diz Luciana. “No Rio de Janeiro, não é sequer permitido o acompanhamento de um familiar durante o trabalho de parto.” As recomendações da pesquisa “Dando à luz na sombra” são resumidas da seguinte forma: “Implementar políticas que tratem da permanência do bebê com a mãe, que privilegiem o desencarceramento e, em casos de manutenção da prisão, que essa convivência se dê em ambiente confortável e salubre para ambas as partes”. As pesquisadoras optaram por apresentar as propostas considerando, em todos os casos, a possibilidade de que sejam encaminhadas pelo Poder Executivo: quando se trata de recomendação de implementação ou alteração de lei, projeto de lei em tramitação ou elaboração de política pública. n Márcio Ferrari


Arte

Um cinema de fragmentos Carlos Adriano mergulha em acervos de imagens do Brasil para encontrar a

Retrato de Santos Dumont em movimento gerado pelo mutoscópio encontrado no Museu Paulista

matéria-prima de seus filmes experimentais

imagens reprodução

Ana Weiss

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arlos Adriano costuma citar Pablo Picasso quando é questionado a respeito do papel histórico de sua produção experimental. “Eu não procuro, eu encontro”, diz a frase do pintor cubista espanhol que o cineasta paulistano usa para explicar o “quase acaso” dos achados que servem de matéria-prima para seus filmes, raridades desconhecidas ou esquecidas. Há quase 20 anos, o cineasta, doutor em ciências da comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), mergulha em arquivos à procura de registros cine­­­matográficos remotos. Em algumas dessas investidas ele encontrou material que mostra, por exemplo, Alberto San-

tos Dumont interessado e envolvido, de certa forma, no nascimento do cinema (1895). Ou, ainda, fragmentos de filmes indicando que o médico José Roberto Cunha Salles pode ter sido o primeiro cineasta brasileiro. E também que o poeta e professor Décio Pignatari realizou algumas inacabadas experiências cinematográficas, filmes de ficção que abandonou no meio e permaneceram desconhecidos até Carlos Adriano descobri-los. Os trabalhos de Carlos Adriano Jerônimo de Rosa são essencialmente experimentais, distantes do circuito comercial, admirados nos meios acadêmicos e em festivais internacionais. Hoje ele faz seu segundo estágio de pós-doutorado na PESQUISA FAPESP 241 | 89


ECA-USP com o projeto “Found footage: Reapropriação de arquivo como método para os estudos de cinema”. O termo found footage (em tradução livre, trecho de filme encontrado) é um procedimento que pode ser considerado como o gênero cinematográfico do qual Carlos Adriano é hoje o principal representante no Brasil. Ele define os elementos do gênero como “filmes que reciclam, reeditam e ressignificam imagens alheias”. Como parte do projeto, o cineasta assume este ano o primeiro curso de found footage da cadeira de cinema da ECA-USP como professor convidado na pós-graduação e orientará oficinas na graduação do curso de cinema. Também está prevista a realização de três filmes.

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oi o terceiro curta de Adriano, Remanescên­ cias, de 1997, que marcou sua entrada no gênero. A obra se desenvolve a partir de 11 fotogramas do que se acredita ser a primeira filmagem feita no Brasil, em 1897, por Cunha Salles. “Embora eu não tenha programado o filme como um manifesto, o formato de Remanescências configurou-se bastante radical e alegórico”, diz. “Mas, passados 19 anos, mesmo reconhecendo toda a radicalidade do filme, eu o faria diferente. Seria mais radical ainda.” Das ruínas à rexistência, de 2007, como outros de seus filmes, registra, ao lado das imagens encontradas, as etapas de pesquisa e produção. Desta vez são os resquícios de filmes de Pignatari produzidos em 1961 e 1962. O cineasta reuniu os trechos de Ruínas para o futuro, sobre a greve dos vidreiros de Osasco (SP) em 1910, e Ponto 90 | março DE 2016

Cena de Das ruínas à rexistência, que recupera filmes inacabados do poeta Décio Pignatari

de encontro, uma história de amor passada entre os trilhos dos trens que ligavam Osasco a São Paulo. “Provavelmente ninguém jamais tinha visto esse material”, diz o diretor. O filme foi selecionado para o Festival de Cinema de Locarno (Suíça) daquele ano. Há também uma intenção de justiça histórica no cinema de Carlos Adriano. “Não me agradava ver a desqualificação que historiadores impingiam à figura de Cunha Salles e seu papel de fundador do nosso cinema”, diz o cineasta. “Por ser prestidigitador, médico e bicheiro, não se reconhecia nem se admitia que o fragmento que Salles havia depositado no Arquivo Nacional poderia ter sido filmado por ele”, diz o cineasta. Em sua tese de doutorado em 2008, que teve apoio da FAPESP, Carlos Adriano voltou ao assunto. Em um trecho, ele afirma: “Se a autoria do filme é questionável, é evidente a apropriação que Cunha Salles fez desses fotogramas”. Por esse raciocínio, se Salles pode não ser o primeiro captador de imagens do cinema brasileiro, ele estaria, como Carlos Adriano, retrabalhando imagens registradas por outros. “O tal nascimento do cinema brasileiro, então, talvez tenha ocorrido com um found footage”, escreve. Santos Dumont: Pré-cineasta?, o filme sobre a máquina pré-cinematográfica do inventor, primeiro longa-metragem de Carlos Adriano originou-se de seu doutorado. A máquina é o mutoscópio, um aparelho encontrado pelo cineasta no Museu Paulista da USP que funciona nos moldes das primeiras experiências mundiais de imagens em movimento. Composto por cartões com imagens estáticas organizadas circularmente, como em um carretel, o mecanismo criava o movimento graças a uma manivela. Para o professor da ECA-USP Ismail Xavier, que orientou Carlos Adriano na pesquisa, o cineasta “recupera procedimentos e a independência radical do cinema americano dos anos 1970, que chamamos de estrutural e que é pouquíssimo conhecido por aqui”. O diretor Cacá Diegues, que estava na primeira exibição de Santos Dumont: Pré-cineasta?, no Festival de Tiradentes (MG) em 2011, escreveu em um artigo para o jornal O Estado de S. Paulo que tinha a “incômoda sen­ sação de estar testemunhando uma outra invenção do cinema, um cinema que estava perdido e foi recuperado pelas mãos mágicas” do autor. n


memória

Fotos 1 Acervo Pessoal Yara Novelli  2 Acervo IO-USP / Reprodução Eduardo Cesar

A primeira viagem: em 1967, de Bergen, Noruega, rumo a Santos. Abaixo, a placa de identificação do navio

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O adeus ao Prof. Besnard Universidade terá de remover navio oceanográfico do porto, mas preserva sua memória documental Carlos Fioravanti, de Santos, SP

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m pé, ao lado de um vaso com rosas e gérberas entre guindastes brancos com largas manchas de ferrugem, no convés principal do navio oceanográfico Prof. W. Besnard, Mario Katsuragawa, um professor de 64 anos do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), disse com voz firme e pausada, no final da manhã de 16 de fevereiro: “A ciência oceanográfica brasileira deve muito a este navio”. Katsuragawa e outros 11 pesquisadores estavam ali para se despedir do navio que fizera parte da formação científica de cada um deles e foi um marco na pesquisa oceanográfica no Brasil. Katsuragawa fez 33 viagens no Prof. Besnard. Segundo ele, a mais dramática, de que não participou, foi uma de 1988, quando o eixo do motor quebrou na passagem de Drake, um longo trecho de mar revolto e ventos fortes na entrada da Antártida, e o navio teve de ser rebocado até o

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PESQUISA FAPESP 241 | 91


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Chile. Lourival Pereira de Souza, técnico do laboratório de oceanografia química, participou de “mais de 50” expedições, disse ele, incluindo três para a Antártida. Na plateia estava também Luiz Bruner de Miranda, aos 78 anos, professor do IO-USP que acompanhou a construção do navio no estaleiro de Bergen, na Noruega, integrou a equipe da primeira viagem, de dois meses, em 1967, rumo ao porto de Santos, e foi pesquisador-chefe de muitas expedições do Besnard. Ancorado ao lado estava um de seus sucessores: o Alpha Delphini, o primeiro barco oceanográfico inteiramente construído no Brasil (ver Pesquisa FAPESP no 208). Com 27 metros (m) de comprimento e espaço para 12 pesquisadores e seis 92 | março DE 2016

Rumo ao sul: o Besnard na primeira expedição à Antártida, em 1983

tripulantes, está em operação desde 2013, quando foi incorporado pelo IO para aumentar a capacidade de pesquisa em oceanografia no estado de São Paulo. Em 2012 o instituto da USP, com apoio da FAPESP, comprou o navio Alpha Crucis (ver Pesquisa FAPESP no 195), que assumiu boa parte das funções do Besnard. Com 64 m de comprimento e capacidade para 19 tripulantes e 21 pesquisadores, o Alpha

Crucis está em reforma em um estaleiro no Ceará e deve retomar suas atividades nos próximos meses. Com 49,3 m de comprimento, podendo transportar 22 tripulantes e 15 pesquisadores, o Besnard foi construído por encomenda do governo paulista, com verbas estaduais e federais, como resultado de intensas negociações iniciadas no final da década de 1950 por Wladimir Besnard, pesquisador russo 4

fotos 1 Acervo IO-USP / Reprodução Francisco Luiz Vicentini Neto 2 e 3 Acervo IO-USP  4 Acervo IO-USP / Reprodução Lourival Pereira de Souza

Em construção: o lançamento do casco (acima), em 1966, e a inauguração (direita), em 1967, do navio cujo nome homenageia Wladimir Besnard (esquerda)


fotos  Acervo IO-USP / Reprodução Eduardo Cesar

radicado no Brasil, à frente do então chamado Instituto Paulista de Oceanografia (IPO), e continuadas por Martha Vannucci, primeira diretora do IO, constituído a partir do IPO. Com mais de 150 viagens, o navio passou por uma ampla reforma de 1994 a 1997. Em 1998 teve de parar outra vez, com problemas no motor, e voltou ao mar em 2000 (ver Pesquisa FAPESP no 59). Em 2008, sofreu um incêndio grave e ficou sem condições operacionais de pesquisa, já que os custos para reformá-lo eram muito altos. Em 2012, a compra do Alpha Crucis, que estava sendo planejada havia muitos anos, trouxe o dilema sobre o que fazer com o histórico navio, continuamente castigado pelo tempo: em fevereiro de 2016, quase toda a estrutura de madeira estava tomada por cupins e o motor inoperante. Nenhuma prefeitura expressou interesse em transformar o navio em museu, nem a possibilidade de doação ao Uruguai avançou. A empresa que administra o porto de Santos solicitou a retirada do navio e a universidade resolveu abrir licitação para sua remoção por alguma empresa interessada, que dará ao

Raridades: o timão, com os comandos de rotação do motor e da hélice (ao fundo), e um sextante sobre uma carta náutica usada em viagens do navio

A bitácula: dentro da coluna de latão e madeira está a bússola

navio o fim que melhor lhe aprouver, encerrando um longo percurso de produção de conhecimento sobre a costa brasileira. Na primeira expedição a equipe do navio identificou uma montanha submarina de 3.500 m de altura e o topo a 194 m de profundidade, perto de uma das menores ilhas do arquipélago de Cabo Verde. O navio explorou principalmente a costa sudeste brasileira, de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, até o Cabo de Santa Marta, no Rio Grande do Sul.

Uma de suas primeiras missões foi uma série de 12 viagens para investigar o potencial pesqueiro da costa do Rio Grande do Sul, em 1968. Seguiram-se mais de 260 viagens, com finalidades didáticas – para a formação de estudantes e pesquisadores – ou científicas, com cerca de 10 mil pontos de coleta de informações sobre correntes, temperaturas, salinidades ou organismos marinhos. O Besnard também teve uma função geopolítica, ao participar do Programa Antártico Brasileiro de 1982 a 1988, ao lado de navios da Marinha como o Barão de Teffé. Agora as equipes do IO se mobilizam para conservar o máximo possível de seus instrumentos e documentos. Engenheiro elétrico de formação e participante de quatro viagens à Antártida com o Besnard, Luiz Nonnato mostra o timão com os comandos de rotação do motor e da hélice e uma coluna de latão e madeira que abriga a bússola, chamada de bitácula, retirados do navio em 2015, depois que seu destino foi decidido, e PESQUISA FAPESP 241 | 93


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mantidos no Laboratório de Instrumentação Oceanográfica do IO. “Bronze puro”, diz o engenheiro mecânico Francisco Vicentini, que fez 51 viagens no Besnard, das quais 21 como pesquisador-chefe, ao puxar com cuidado um dos dois sinos do navio de uma das prateleiras do laboratório. Por ali estão também, em variados estados de conservação, algumas janelas – ou vigias –, luzes de navegação de emergência

a querosene, a placa original do fabricante norueguês e um sextante. Uma das âncoras e instrumentos de maior porte estão à mostra na entrada e no museu do instituto. A bibliotecária Eloisa de Sousa Maia apresenta o acervo de fotos, filmes e documentos mantidos no museu do IO. Em uma das salas refrigeradas da coleção biológica do instituto estão os 68 diários de bordo, que estão sendo catalogados pela equipe do

Outra vez no mar: o Besnard próximo a Ubatuba, no litoral paulista, em 2001, em uma das mais de 260 viagens

museu em busca de informações sobre pesquisas, instrumentos, projetos e pesquisadores de cada viagem. “Os diários são muito úteis”, disse Monica Petti, bióloga do instituto e curadora da coleção, com seis viagens no Besnard. Segundo ela, a coleção deve guardar cerca de 50 mil amostras de organismos marinhos coletadas em viagens do Besnard, muitas ainda à espera de análises detalhadas. n 3

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fotos 1 Acervo Pessoal Yara Novelli 2 Acervo IO-USP / Reprodução Eduardo Cesar  3 Francisco Luiz Vicentini Neto / IO-USP

Tripulantes e pesquisadores na primeira viagem: o início de uma longa história, preservada em 68 diários de bordo como este (direita)


resenhas

Balanço crítico da produção de um mestre Marco Aurélio Nogueira

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eduardo cesar

Professor Oliveiros S. Ferreira – Brasil, teoria política e relações internacionais com sua obra Carlos Enrique Ruiz Ferreira (org.) Edusp 282 páginas | R$ 44

uando as ciências sociais se especializam ao extremo e se tornam mais “quantitativas” e “metodológicas”, os grandes pensadores ganham nova vida. Ainda que possam trabalhar concentrados em uma dada área do saber, eles se distanciam da busca por “provas” e por uma interdisciplinaridade difícil de ser definida e, sobretudo, praticada. Dedicam-se a fornecer parâmetros interpretativos que costuram conhecimentos vários, dialogam com diferentes escolas filosóficas e tradições intelectuais. Oliveiros S. Ferreira (1929) é, com todos os méritos, um dos destacados representantes desta vertente. Formou-se em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e se tornou professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) em 1953. Desde então tem se dedicado à docência nos cursos de graduação e pós-graduação. A esta longa e consagrada trajetória universitária aliou uma rica atividade jornalística como editorialista, redator-chefe e diretor de O Estado de S. Paulo. Fez assim da militância intelectual sua razão de ser. Em seu percurso, cruzaram-se investigações eruditas e análises pontuais sobre diferentes aspectos da vida política brasileira e as relações internacionais. Pensando no lugar ocupado por Oliveiros Ferreira nas ciências sociais brasileiras, um expressivo grupo de cientistas sociais coordenado por Carlos Enrique Ruiz Ferreira organizou, na USP, em conjunto com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), um minicurso dedicado a realizar um balanço crítico da produção intelectual do mestre. As exposições feitas na ocasião foram agora reunidas em livro, fornecendo ao leitor amplo e criterioso panorama da trajetória do importante professor. O livro toma como base os cinco principais livros de Oliveiros, nos quais ele desenvolveu sua teorização. Debatem-se as ideias expostas em Nossa América: Indoamérica (1971), cujo objeto é o pensamento do político peruano Haya de la Torre, em Os 45 cavaleiros húngaros (1986), onde se faz uma leitura dos Cadernos do cárcere escritos pelo marxista italiano Antonio Gramsci, em Vida e morte do Partido Fardado (2000), A crise da política externa: Autonomia ou subordinação (2001) e Elos partidos: Uma nova visão do poder militar no Brasil (2007).

No correr das discussões, salientam-se os núcleos constitutivos de um pensamento original: o Estado, a necessidade da ordem, o poder como dominação e posse de almas, mentes e recursos materiais, a dimensão psicossocial dos fatos políticos, o valor da ação organizada, o projeto nacional. Ao final, em um ensaio inédito, o próprio Oliveiros sintetiza suas proposições. Duas vertentes se destacam em sua trajetória. A primeira alimenta uma teoria da política, dedicada a compreender as relações entre subordinados e dirigentes, os motivos que levam o “grande número” a aceitar a prevalência do “pequeno número”. No centro, portanto, está o problema da dominação, que somente se mantém, no longo prazo, pela organização e por uma ação que busque a hegemonia, ou seja, a afirmação de uma concepção do mundo, de uma cultura. A segunda vertente compõe uma teoria do Brasil, país em que as classes sociais transferiram para o Estado as tarefas típicas que lhes deveriam caber – a organização dos consensos, a modelagem da administração pública, o desenvolvimento, a defesa da soberania. Com isso, uma parte da estrutura estatal – os “militares”, mais bem organizados – terminou por agir com maior desenvoltura política, reforçando as guinadas autoritárias, a democracia imperfeita, a hipertrofia dos vértices. No ensaio de sua autoria, que fecha o livro, Oliveiros argumenta que o processo político-social que se seguiu à redemocratização fez com que se perdesse a “grande política” e as personalidades passassem a magnetizar as atenções. A solução do enigma fundacional do país – o da organização autônoma da sociedade e da articulação entre Estado e mundo da vida social – permaneceu em aberto, sem que surgissem sujeitos capazes de promover “políticas dirigidas para o futuro” e projetos nacionais. O livro é uma bela homenagem a Oliveiros S. Ferreira. Mas não contém nenhuma hagiografia. Trata-o com o respeito que merecem os grandes intelectuais: criticamente, com isenção e objetividade. Ajuda-nos, assim, a ampliar nossa capacidade de explicar o mundo e o país em que vivemos. Marco Aurélio Nogueira é professor de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (Neai) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São Paulo.

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Um testemunho sobre Lasar Segall Claudia Mattos Avolese

Lasar Segall: Múltiplos olhares Celso Lafer Imprensa Oficial 192 páginas | R$ 60

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evocado pelo próprio autor como o fundamento da cultura judaica que compartilha com Lasar Segall. Tal perspectiva se confirma na segunda parte do livro. Esta é, em minha opinião, a mais instigante e inovadora da presente publicação. Nela encontramos uma descrição dos laços e da história de convivência íntima das famílias Lafer e Klabin que não achamos em outras publicações. O autor generosamente compartilha suas memórias, tecendo uma história que importa não apenas porque Celso Lafer é uma figura pública que sem dúvida terá seu lugar na história política e cultural do Brasil, ou porque, como diz Lafer, ela revela a “rede de proteção que criou um espaço de autonomia” para o processo criativo de Lasar Segall, mas acima de tudo porque ela nos ajuda a reconstruir toda uma época, todo um ambiente político-cultural e o modus vivendi de uma parcela importante da elite paulista de origem judaica, da qual os personagens citados foram peças fundamentais. Como diz o autor, as famílias Klabin e Lafer são ligadas por laços de parentesco. Selman Lafer era tio do patriarca Mauricio Klabin, pai de Jenny Klabin, esposa de Lasar Segall. Mauricio foi o responsável por trazer Selman, bisavô de Celso Lafer, ao Brasil. Igualmente, a família de Lasar Segall já tinha vínculos com as famílias Klabin e Lafer antes de sua vinda ao Brasil, uma vez que um dos irmãos de Mauricio, Salomão Klabin, havia se casado com Luba, irmã de Lasar Segall. Celso Lafer conta como a família Klabin/Lafer se estabeleceu no Brasil, fala da criação e das atividades da Cia. Fabricadora de Papel, fundada por Mauricio e da qual seu pai foi diretor por muitos anos. Fala também de seu envolvimento com o projeto e com a criação do Museu Lasar Segall. Outro mérito do livro de Celso Lafer é o de resgatar a figura de Jenny como intelectual, mencionando sua importante atividade de tradutora. De fato, a memória de pessoas e de toda uma época que nos ajuda hoje a entender, entre outros, a própria história do Museu Lasar Segall parece ser o verdadeiro legado deste precioso livro. Claudia Mattos Avolese é professora do Instituto de Artes e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

eduardo cesar

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a história da arte brasileira, poucos artistas receberam tanta atenção dos estudiosos quanto Lasar Segall. Em grande parte, graças à presença ativa do Museu Lasar Segall em São Paulo, mas também pelo mérito de sua complexa e rica obra, nas últimas duas décadas a produção de Segall foi objeto de inúmeras exposições, debates e publicações acadêmicas, tanto no Brasil quanto no exterior. Portanto, parece legítimo nos perguntarmos qual seria a relevância da publicação de mais este livro sobre o artista. Trata-se de uma coletânea de artigos produzidos por Celso Lafer ao longo de um período de 30 anos, durante os quais o autor esteve constantemente envolvido com a obra do artista e com o Museu Lasar Segall. Assim, a maior parte do material presente no livro já foi publicada, como afirma o próprio autor, desculpando-se pelas inúmeras repetições que de fato ocorrem nas 185 páginas da obra, em outros livros, catálogos de exposição, ou proferida em forma de palestra em ocasiões de abertura de eventos e homenagens. Desta forma, para os que procuram uma leitura renovada da produção de Segall ou buscam conhecer melhor os debates acadêmicos gerados em torno de sua obra, este livro não trará muitos benefícios. Ainda assim, a publicação tem sua importância e encontrará seu lugar nas estantes de livros produzidos sobre o artista. Para bem compreender Lasar Segall: Múltiplos olhares não podemos nos aproximar dele esperando uma obra sobre Lasar Segall. O que temos em mãos na verdade é algo bem diferente: trata-se, de fato, de um testemunho. Do testemunho do encontro de Celso Lafer, também ele uma figura de interesse público, com o artista. O tom biográfico do livro permeia todos os textos. Ao aproximar-se da obra, Celso Lafer pensa sempre, e em primeiro lugar, na pessoa singular do artista que ele conheceu e com quem conviveu desde a infância. As obras retratando pogroms e as produzidas em função da expe­riência de duas Grandes Guerras são para o autor, acima de tudo, testemunhos da humanidade de Segall, de sua empatia e capacidade de comunicação desse sentimento na obra. Podemos afirmar, assim, que o conceito fundamental que rege a composição do livro de Lafer é o de zakhor – “lembrar” –,


carreiras

estágio

Nem estudante, nem professor

ilustraçãO negreiros

Pós-doutorado é oportunidade para pesquisadores adquirirem experiência profissional Muito do trabalho desenvolvido por grandes grupos de pesquisa talvez não avançasse sem os pesquisadores pós-doutores. Eles coordenam tarefas no laboratório, escrevem artigos científicos, coorientam alunos de graduação, mestrado e doutorado, além de ajudar o pesquisador principal, seu supervisor, a conceber e executar novas linhas de pesquisa. Não por acaso, os pós-doutores, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, estão se tornando um elemento-chave dentro das equipes de pesquisa no Brasil. Em 2009 o número total de bolsas de pós-doutorado no país concedidas pela FAPESP era de 15.275. Em 2014, esse número subiu para 23.249. O estágio remunerado de pós-doutorado é uma possibilidade atraente para um recém-doutor ainda sem vínculo empregatício. A Coordenação de Aperfeiçoamento

de Pessoal de Nível Superior (Capes) oferece o Programa de Apoio a Projetos Institucionais com a Participação de Recém-doutores (Prodoc) e o Programa Nacional de Pós-doutorado (PNPD). O tempo de duração das bolsas varia de dois a três anos. A FAPESP concede bolsa por dois anos, renovável por um ou até dois anos, caso o pesquisador esteja vinculado a um auxílio concedido em modalidades como Projetos Temáticos e Jovens Pesquisadores. Os valores vão de cerca de R$ 4 mil mensais, no caso da Capes, a R$ 6 mil no da FAPESP, que ainda paga a reserva técnica de 15% do valor da bolsa. O pós-doutorado tem se firmado como etapa determinante na vida profissional de pesquisadores que entendem que o mercado de trabalho acadêmico está muito competitivo. “No pós-doutorado, os pesquisadores podem aprimorar suas habilidades científicas e intelectuais, adquirindo experiência que mais tarde lhes

dará autonomia para estabelecer e gerenciar o próprio laboratório, obter financiamento para seus projetos de pesquisa ou conseguir um cargo dentro da universidade”, explica Elson Longo, coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara. O estagiário de pós-doutorado muitas vezes tem a possibilidade de pesquisar no exterior, onde entra em contato com outros grupos, amplia suas perspectivas e experimenta a rotina de trabalho em centros de pesquisa com equipes às vezes maiores, mais experientes e com estilos e recursos distintos. “A interação com grupos internacionais é importante para que o pesquisador obtenha independência intelectual”, indica Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). A indústria também valoriza profissionais com pós-doutorado por terem formação sólida, conhecimento teórico e frequentemente serem capazes de integrar os interesses do mercado e da universidade. “É fundamental que o pesquisador estabeleça e amplie suas relações em empresas e institutos de pesquisa públicos e privados durante o pós-doutorado”, comenta Marcelo Knobel, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Uma estratégia é tentar entrar em projetos financiados por agências de fomento e empresas privadas. Alinhando suas pesquisas às necessidades da empresa, aumentam as chances de contratação. O biólogo Mateus Lopes, formado pela USP, iniciou um pós-doutorado para concluir o projeto que havia começado no doutorado. Nesse período, direcionou sua pesquisa e suas competências para a área administrativa. Hoje ele é responsável pela área de inovação em biotecnologia da Braskem, do setor químico e petroquímico. “É importante sair da zona de conforto e se arriscar em ambientes fora da esfera acadêmica”, diz. n Rodrigo de Oliveira Andrade PESQUISA FAPESP 241 | 97


A Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou em fevereiro um estudo que indica a perspectiva de aumento do investimento em inovação neste ano por parte do setor industrial. Entre as empresas com 250 ou mais empregados, 46% vão se voltar para a melhoria ou introdução de novos processos e 18% pretendem fazer o desenvolvimento de produtos inovadores. Os setores que mais devem investir em projetos inovadores são o de material plástico, com 57% das empresas, e produtos químicos, 45%. A indústria automobilística é o setor que mais deve lançar novos produtos. Os planos de investimento em inovação estão direcionados mais para o mercado externo e a intenção de aumentar a capacidade instalada no geral da indústria é de 20%, o menor percentual desde 2010.

Ideias criativas da Amazônia Duas startups da região amazônica, ou ideias que possam se transformar em empresa, serão escolhidas para apoio financeiro e treinamento pelo Programa de Promoção da Economia Criativa, uma parceria entre a Samsung e a Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec). Podem participar tecnologias que apresentem soluções para problemas nas áreas de educação digital, saúde, segurança da informação e mobilidade. Os projetos escolhidos receberão R$ 140 mil, terão suporte técnico do Centro de Economia Criativa e Inovação da Coreia do Sul (CCEI Daegu) e serão desenvolvidos na Incubadora de Empresas da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Manaus. Inscrições até 30 de março no site anprotec.org.br. 98 | março DE 2016

PERFIL

Sementes que germinam negócios Engenheiro florestal André Nave tem empresa de produção de mudas e sementes para reflorestamento de áreas degradadas

Em 1998, ainda no mestrado em Ciências Florestais na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), o engenheiro agrônomo André Nave identificou uma oportunidade de negócio em meio às determinações impostas pela legislação ambiental brasileira sobre restauração florestal em áreas de preservação permanente e reserva legal. Das conversas com pesquisadores do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal da universidade nasceu a ideia de criar a Bioflora Tecnologia da Restauração, empresa voltada à produção e comercialização de mudas e sementes de espécies nativas da Mata Atlântica que podem ser usadas para reflorestar áreas degradadas. As mudas e sementes cultivadas pela Bioflora são vendidas para empresas rurais, produtores agrícolas, organizações não governamentais e prefeituras. Após concluir o doutorado em Recursos Florestais, na Esalq-USP, Nave decidiu ampliar as frentes de atuação de sua empresa, com sede em Piracicaba (SP). Hoje, a Bioflora também orienta, elabora e executa projetos de recomposição de áreas

degradadas ou alteradas e oferece cursos de capacitação no Brasil e no exterior, entre outros serviços voltados à restauração ecológica. “Em um deles, avaliamos propriedades rurais e detectamos possíveis não conformidades ambientais”, explica. “Com base nessa avaliação inicial, elaboramos a estratégia mais apropriada e de baixo custo para que a área se adeque à legislação ambiental.” Os trabalhos da Bioflora relacionados a novas metodologias de restauração avançam em parceria com alunos e professores dos laboratórios da Esalq-USP. Muitos dos estudos sobre germinação de espécies nativas e semeadura direta são testados em campos de cultivo da empresa. A ideia, diz ele, é possibilitar que os alunos testem na prática suas hipóteses de pesquisa desenvolvidas em laboratório. Uma das estratégias desenvolvidas pela Bioflora baseia-se no princípio de que a floresta precisa abrigar grande variedade de espécies para poder voltar a ter um funcionamento considerado normal. Para isso, Nave investiu na construção de um viveiro com espécies mais adequadas para reflorestamento. “O viveiro da Bioflora é um dos maiores do estado de São Paulo, com capacidade de produção de 4 milhões de mudas de 200 espécies nativas por ano.” Em 2015, a empresa conseguiu financiamento da FAPESP por meio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) para criar e comparar metodologias de restauração, avaliando sua eficácia a partir dos custos de operação e do potencial de regeneração de áreas florestais. n R.O.A

arquivo pessoal

Inovação no setor industrial


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