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PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014

EDIÇÃO ESPECIAL . DEZEMBRO DE 2014 .WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

USP 80 ANOS EDIÇÃO ESPECIAL USP 80 ANOS

A força de uma bela história institucional dedicada a construir e difundir conhecimento


2窶ウSPECIAL 80 ANOS USP


MIGUEL BOYAYAN

Universidade de são paulo Vista da Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, maior campus da USP, na cidade de São Paulo

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A USP, aos 80 Celso Lafer, presidente da FAPESP

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celebração dos 80 anos da USP é um bom momento para ir além das discussões de farol baixo sobre as suas dificuldades e refletir na perspectiva do farol alto sobre as suas realizações e do que representam para São Paulo e para o Brasil. “O início é mais da metade e alcança o fim”, dizia Políbio. Por isso, vale a pena começar com algumas considerações sobre o projeto dos fundadores da USP, correlacionando-o com as circunstâncias históricas da sua origem. O contexto da década de 1930 trouxe a diminuição relativa do poder de São Paulo na República, a derrota paulista na Revolução de 1932 e ensejou a subsequente acomodação política com Getúlio Vargas, que levou ao governo de São Paulo Armando de Salles Oliveira. Foi Salles Oliveira quem criou a USP pelo Decreto nº 6.283, de 25/1/1934, inspirado pelas ideias de Julio de Mesquita Filho, que contou, na sua reflexão, com o apoio de um grande educador, Fernando de Azevedo. O objetivo dos fundadores da USP foi o de responder ao desafio, para São Paulo, representado pela mudança da realidade brasileira. Partiram, com grande originalidade, da avaliação de que, só por meio de uma universidade, São Paulo poderia vir a ser um laboratório de investigação científica e um centro de alta e irradiante intelectualidade, que singularizaria o nosso estado no país. Foi o que, nestes termos, sublinhou o jornal O Estado de S.Paulo em 27/1/1934. Com efeito, cabia elevar a um nível universitário o que já tinha sido alcançado em São Paulo com suas faculdades, instituições de formação profissional e investigação científica, como dizia o considerando conclusivo do Decreto nº 6.283/34. Nosso estado sempre atribuiu importância ao conhecimento como variável crítica do seu desenvolvimento. O Instituto Agronômico de Campinas data de 1887. A Faculdade de Direito de 1827, a Politécnica de 1894, a Luiz de Queiroz de Agricultura de 1901, a de Medicina de 1913 e a primeira fase da de Farmácia e Odontologia de 1899. Todas se dedicavam à formação de profissionais e o componente de pesquisa era essencialmente o da pesquisa aplicada, como era o caso do Gabinete de Resistência dos Materiais da Poli, criado em 1899, que deu origem ao IPT. A originalidade da USP foi ter ido além da justaposição de unidades preexistentes com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como núcleo irradiador que introduziu os chamados estudos desinteressados de ciência pura e da alta cultura, que tinham como objetivo aprofundar a investigação para aumentar o conhecimento e tornar possível sua eventual aplicação. O lema da USP, Scientia vinces, traduziu desde o seu momento fundacional, o DNA da clara percepção de que a geração de conhecimento pela pesquisa era indispensável para uma contínua atualização da transmissão do conhecimento pelo ensino e para a apropriada formação de especialistas e profissionais em todos os ramos do saber. É esta “ideia a realizar” inerente ao projeto de concepção da USP que está na origem dos passos que a tornaram a grande universidade de pesquisa que é, 4 ESPECIAL 80 ANOS USP


ARTIGO

com um papel irradiador, para o país, do mérito e da qualidade como critérios norteadores da vida universitária. Para o aprofundamento do DNA da pesquisa contribuíram os Fundos Universitários criados na USP em 1942 como parte do esforço de engajamento da sociedade brasileira na Segunda Guerra Mundial. Eles anteciparam o que é uma característica do mundo contemporâneo: a importância de lidar com a velocidade com que o conhecimento, tanto na modalidade de pesquisa básica quanto na das suas aplicações, altera numa dialética de complementaridade as condições de vida, tornando a capacitação científica e tecnológica uma variável crítica para uma sociedade ter condições de encaminhamento dos seus problemas. A experiência dos Fundos levou pesquisadores e docentes universitários paulistas a encaminhar à Assembleia Constituinte estadual a proposta de criação de uma Fundação de Amparo à Pesquisa que deu origem ao art. 123 da Constituição estadual de 1947. Consagrou-se, assim, o pioneirismo de São Paulo no reconhecimento da importância da pesquisa, pois as instituições federais, CNPq e Capes, datam dos anos 1950. As atividades da FAPESP tiveram início em 1962 graças à visão do governador Carvalho Pinto, que contou, na sua implantação, com a liderança de quadros da USP, que formataram a instituição seguindo o lema de Scientia vinces, em todos os campos do saber. Ao longo dos anos, a FAPESP teve importante papel no financiamento de pesquisas na USP: em 2013, por exemplo, R$ 517 milhões foram investidos pela Fundação na USP. Foram também passos relevantes para a consolidação da USP como grande universidade de pesquisa: a ênfase no regime de dedicação integral de seus docentes na década de 1960, a consolidação da pós-graduação na de 70, a autonomia financeira na de 80, a criação da pró-reitoria de pesquisa com o estatuto de 1988. O resultado é que a USP é atualmente responsável por 22,4% de toda a produção científica do Brasil. Somada à produção das duas outras universidades públicas estaduais paulistas, a Unicamp e a Unesp, criadas como emanação da USP, 38% da produção científica nacional deriva delas. Em todos os rankings internacionais respeitáveis a USP sempre aparece como a primeira na América Latina e entre as melhores do mundo. Por exemplo, no ranking da QS (Quacquarelli Symonds), está na 132ª posição, no da U.S. News Best Global Universities, em 77º lugar. Quando se constata que entre as que estão acima dela nessas classificações a maioria tem história muito mais antiga, algumas com séculos de experiência acumulada, percebe-se que foi muito expressivo o que a USP conseguiu em seus 80 anos. Grande parte do valor agregado de conhecimento que distingue o estado de São Paulo no Brasil, na América Latina e no mundo decorre do que tem sido feito na USP. Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 16 de novembro de 2014

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USP faz o Brasil ser um país melhor Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP

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USP faz o Brasil ser um país melhor. Não é pouco. Além disso, no âmbito do ensino superior é certamente a instituição que mais contribui para esse objetivo nacional. Em consequência da estratégia de internacionalização da pesquisa paulista, tenho visitado muitas entidades estrangeiras ligadas à pesquisa. Invariavelmente a USP já é conhecida dos pesquisadores, e existe sempre grande interesse em interagir e colaborar com pesquisadores da USP. Grande é também o interesse em receber estudantes da universidade. Com todas essas realizações, e muitas outras que são mostradas neste suplemento da revista Pesquisa FAPESP, não surpreende que os brasileiros e os paulistas esperem mais ainda da USP. Afinal, daqueles comprometidos com a excelência e capazes de entregar resultados excelentes, espera-se sempre mais e melhores resultados. O problema é que as pressões muitas vezes são antagônicas: uns querem mais vagas, outros demandam mais engenheiros, outros ainda demandam melhores engenheiros. Será que sempre será possível oferecer mais e melhores engenheiros? Qual será o limite do razoável? Alguns setores demandam mais interação com empresas, outros esperam mais apoio da universidade a sindicatos e organizações não governamentais. Quase todos gostariam que mais pacientes fossem atendidos nos hospitais da universidade. Muitas vezes os mesmos que criticam o alto custo da USP a criticam porque não aparece entre as 50 primeiras de rankings universitários internacionais, sem perceber que, nas universidades que costumam aparecer nas melhores colocações, como Berkeley, Davis ou Stanford, o dispêndio anual por professor, para usarmos um indicador intensivo e não extensivo, é de duas (Berkeley, Davis) a cinco (MIT, Stanford) vezes maior do que na USP. Com uma fortíssima interação entre ensino e pesquisa, motor reconhecido da qualidade acadêmica, a USP forma mais doutores do que qualquer universidade no Brasil e é, nisso, uma das primeiras do mundo. Anualmente autores da USP publicam 22% dos artigos científicos com autores no Brasil, o que representa mais que o triplo do que publicam os autores da UFRJ ou da UFMG, que são as maiores universidades federais no país. Representa também um percentual duas vezes maior do que o que o sistema da Universidade da Califórnia representa no total da produção científica dos Estados Unidos. Em termos de impacto científico, os artigos de autores na USP recebem citações na literatura especializada em intensidade bem superior à média nacional, aproximando-se da média mundial, sendo que na área de física, em anos recentes, os autores da USP superaram largamente a média mundial. Anualmente a USP gradua em torno de 7.400 profissionais e responde por 6% do total de engenheiros formados em todas as 111 universidades públicas no Brasil. 6 ESPECIAL 80 ANOS USP


ARTIGO

A interação com a sociedade é intensa, mesmo que algumas vezes pouco reconhecida até mesmo internamente à universidade. Egressos da USP ocupam posições de liderança em todas as esferas da vida nacional, seja na política, nos negócios, na indústria, na agricultura, na pesquisa científica e tecnológica, nas artes e na cultura, no jornalismo, na educação ou na vida acadêmica. Os contratos de pesquisa com empresas representam 5% do total de recursos destinados à pesquisa na universidade, valor igual à média das universidades norte-americanas em 2012. O que faz da USP uma universidade mundialmente reconhecida é seu histórico compromisso com a busca da excelência acadêmica, como acontece nas melhores universidades do mundo. Essa busca aparece em cada pequena ação da universidade, aparece nas intermináveis discussões que precedem as decisões, nas reversões de rumo e nas manutenções de rumo, nas contradições e nas concordâncias. Porque muitas vezes a excelência não é um alvo sólido e concreto, parece mudar à medida que dele nos aproximamos, como se fosse uma miragem. Frequentemente o funcionamento de uma universidade parece, aos que olham de fora, uma confusão sem objetivos. Para quem as conhece é mais fácil ver que o método parece mesmo confuso, mas com objetivos bem definidos e resultados que levam ao progresso acadêmico. A intensidade da atividade de pesquisa, especialmente após a criação do regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa no início dos anos 1960 e com a institucionalização da pós-graduação, no final da mesma década, permitiu à universidade criar um ambiente enriquecedor do ensino e da aprendizagem, fortemente conectado internacionalmente. O regime de autonomia constitucional com vinculação da receita orçamentária à arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de 1989, permitiu novo impulso, com crescimento nas vagas, nas matrículas, no número de concluintes e na qualificação da pesquisa e da pós-graduação. Desde 1989, enquanto o número de professores cresceu 6% (de 5.669 para 6.008), o de alunos de graduação cresceu 82% e o de alunos de pós-graduação, 116%. O número de concluintes na graduação cresceu 97% e o de titulados na pós-graduação aumentou 260%! Após a instalação do regime de autonomia, foi como se a USP criasse dentro de si, e em benefício do contribuinte paulista, o equivalente a uma Unicamp, ou uma UFMG, em termos de resultados educacionais e acadêmicos, sem aumentar o número de professores e o de funcionários. Volto ao início para concluir. A USP faz o Brasil ser um país melhor. Não é pouco, e há muito a comemorar. Parabéns à USP. Nos próximos 80 anos esperamos muito mais do que nos primeiros 80. PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 7


Artigos 4 Celso Lafer A USP, aos 80 6 Carlos Henrique de Brito Cruz USP faz o Brasil ser um país melhor

carta da editora 9 Mariluce Moura Entre elos e quebras do passado e do presente

MemÓRIA 10 Julio de Mesquita Filho,

Armando de Salles Oliveira e Fernando de Azevedo estiveram na linha de frente da criação da USP

CiÊNCIA

Tecnologia

16 Medicina / Cardiologia Pioneirismo no tratamento e na pesquisa tornou o InCor referência na América Latina

54 Engenharias

20 Medicina / Institutos Evolução do conhecimento médico e mudanças no perfil das doenças levaram à criação de unidades especializadas

58 Agronomia Esalq conquista o quinto lugar em ranking internacional de instituições de ciências agrícolas

24 Medicina / Pesquisa básica Com início sob condições modestas, grupos atuantes em ciências biomédicas alcançam posição de vanguarda 28 Biologia / Genética

Institucionalização da genética humana na USP ajudou a formar grupos de excelência no Instituto de Biociências

32 Biologia / Zoologia Estudos com vertebrados e invertebrados, em terra e no mar, buscam entender processos de diversificação das espécies 34 Biologia / Botânica A partir de levantamentos de flora, pesquisadores investigam processos de diversificação das espécies 38 Ciências Exatas e da

Terra / Física e Química Equipes trabalham em novos materiais, moléculas biológicas e energia limpa gerada por fusão nuclear

44 Ciências Exatas e da

Humanidades 64 Ciências Sociais

Núcleo fundador da USP, a FFLCH organizou e sistematizou a prática da pesquisa e mantém um diálogo intenso com o país

68 Filosofia A disciplina na análise do texto é uma das marcas do departamento desde os pioneiros franceses até os pesquisadores atuais 72 Literatura A contribuição da universidade em áreas como teoria literária e crítica de cinema permanece atual 76 Comunicações e Artes

Paulo Emilio Salles Gomes segue como um nome central na trajetória da universidade

79 Arquitetura

Vilanova Artigas e Mendes da Rocha promoveram a ideia de que as cidades devem ser mais humanas e acessíveis

Terra /Astronomia e Geociências Geofísicos, geólogos, geógrafos e astrofísicos trabalham em conjunto para conhecer melhor o interior, a superfície e o exterior do planeta

80 História Abordagens que unem cultura e política são uma das marcas contemporâneas do departamento

50 Oceanografia

Brasileiros procuram por antigos hominídeos na Jordânia

Novo navio oceanográfico impulsiona a pesquisa sobre clima, correntes marinhas, sedimentos e biodiversidade do litoral brasileiro

CAPA  FOTO LÉO RAMOS

8 ESPECIAL 80 ANOS USP

A Politécnica promove soluções tecnológicas para o desenvolvimento do país

82 Arqueologia


CARTA DA EDITORA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO CELSO LAFER PRESIDENTE EDUARDO MOACYR KRIEGER VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ALEJANDRO SZANTO DE TOLEDO, CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, FERNANDO FERREIRA COSTA, HORÁCIO LAFER PIVA, JOÃO GRANDINO RODAS, MARIA JOSÉ SOARES MENDES GIANNINI, MARILZA VIEIRA CUNHA RUDGE, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, PEDRO LUIZ BARREIROS PASSOS, SUELY VILELA SAMPAIO, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO JOSÉ ARANA VARELA DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

ISSN 1519-8774

CONSELHO EDITORIAL Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira COMITÊ CIENTÍFICO Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli COORDENADOR CIENTÍFICO Luiz Henrique Lopes dos Santos

EDIÇÃO ESPECIAL USP 80 ANOS DIRETORA DE REDAÇÃO Mariluce Moura EDITOR-CHEFE Neldson Marcolin EDITORES Carlos Fioravanti, Fabrício Marques, Marcos de Oliveira, Marcos Pivetta, Maria Guimarães, Ricardo Zorzetto; Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) REVISÃO Daniel Bonomo, Margô Negro, Mauro de Barros ARTE Mayumi Okuyama, Marina Oruê (Editoras), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. FOTÓGRAFOS Eduardo Cesar, Léo Ramos COLABORADORES Eduardo Nunomura, Evanildo da Silveira, Gilberto Stam, Igor Zolnerkevic, Márcio Ferrari, Peter Moon, Reinaldo José Lopes, Ricardo Aguiar, Valter Rodrigues

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO PARA FALAR COM A REDAÇÃO (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br PARA ANUNCIAR Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br PARA ASSINAR (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br TIRAGEM 43.200 exemplares IMPRESSÃO Plural Indústria Gráfica DISTRIBUIÇÃO DINAP GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Entre elos e quebras do passado e do presente Mariluce Moura, diretora de redação

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s números são quase sempre exponenciais quando se trata da USP, e os artigos dos professores Celso Lafer e Brito Cruz que abrem este suplemento especial comemorativo dos 80 anos da grande universidade que ela é oferecem uma nítida amostra a esse respeito. Frente a isso, escolher uma quantidade limitada de estudos mais apropriados que outros para lançar alguma luz sobre o que tem sido a produção científica da USP, ao longo de oito décadas, não é tarefa muito fácil e o risco das escolhas equivocadas sempre é alto. De todo modo, o que fizemos para cumpri-la foi antes de mais nada definir que este suplemento seria composto por três partes, digamos, óbvias: ciências, tecnologia e humanidades. Posto isso, estabelecemos que na medida do possível partiríamos de importantes pesquisas atuais, que apresentam resultados relevantes agora, e buscaríamos seguir um fio condutor para o passado até esbarrar, eventualmente, em estudos pioneiros levados a cabo nos primeiros anos de implantação da Universidade de São Paulo. Definimos depois as subáreas de cada parte e tratamos de pôr mãos à obra Ao fim e ao cabo, o resultado final das 80 páginas do suplemento produzidas pela equipe fixa de Pesquisa FAPESP e mais alguns colaboradores sugere que se o fio de continuidade passado-presente é bem visível em algumas subáreas, como genética, cardiologia, ciências sociais ou filosofia, em outras parece que os saltos explicam melhor que a continuidade a alta performance dos estudos contemporâneos, caso dos estudos sobre hipertensão ou sobre arqueologia. Mas será mais profícuo deixar aos leitores as suas conclusões. Longa vida à USP! PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 9


Decreto de criaテァテ」o da USP publicado em O Estado de S.Paulo, no dia 26 de janeiro de 1934

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MEMÓRIA

Um caminho de pedras Julio de Mesquita Filho, Armando de Salles Oliveira e Fernando de Azevedo estiveram na linha de frente da criação da USP

Neldson Marcolin

ESTADÃO CONTEÚDO / AE

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mês de dezembro de 1933 já ia pela metade quando o educador Fernando de Azevedo encontrou-se com Julio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de S.Paulo. Falando em seu próprio nome e no de Armando de Salles Oliveira, interventor federal no governo paulista, Mesquita perguntou a Azevedo se continuava disposto a trabalhar pela criação de uma universidade. “O que solicitava, nesse momento, já não era um novo estudo sobre o problema universitário, de modo geral, mas o próprio decreto-lei que deveria instituir a primeira universidade de São Paulo [USP]”, escreveu ele em artigo de duas páginas para o Estadão do dia 25 de janeiro de 1954. “Pus mãos à obra e, em menos de uma semana, estava concluído o projeto do decreto-lei que nos pareceu conveniente e do maior interesse político submeter ao exame de uma comissão, judiciosamente escolhida, antes de encaminhar à apreciação do interventor do estado”, relatou Azevedo. A comissão era composta, além do autor do projeto, pelos professores Almeida Júnior (Instituto de Educação), Teodoro Ramos e Francisco Fonseca Teles (Escola Politécnica), Raul Briquet e André Dreyfus (Faculdade de Medicina), Vicente Ráo e Waldemar Ferreira (Faculdade de Direito), Henrique Rocha Lima e Agesilau Bitancourt (Instituto Biológico) e Julio de Mesquita Filho. Após uma semana de debates o projeto recebeu algumas modificações e seguiu para Salles Oliveira. Como desejava o governador, o decreto de criação da USP foi assinado no dia do aniversário da cidade PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 11


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de São Paulo, 25 de janeiro de 1934. “Estava ele [Salles Oliveira] disposto a remover todos os obstáculos a fim de abrir, em São Paulo, a maior forja que se aparelhou em nossa terra para a renovação da cultura e para os progressos das ciências no Brasil”, lembrou Azevedo no artigo escrito há 60 anos. A história da criação da USP, vista sob forma tão resumida, parece simples, livre de percalços. Claro que nada foi tão fácil. Instituir uma universidade em São Paulo nos moldes desejados por seus principais criadores, Mesquita, Azevedo e Salles Oliveira, levou tempo e percorreu um caminho cheio de acidentes. ÚLTIMO PAÍS DAS AMÉRICAS

Desde o começo do século XIX havia discussões e propostas sobre a criação de universidades. Em 1823, por exemplo, José Feliciano Fernandes Pinheiro, paulista de Santos, era deputado constituinte pelo Rio Grande do Sul e defendia a criação de uma universidade no Brasil para evitar que a única opção fosse estudar em Portugal, como conta Ernesto de Souza Campos em seu livro História da Universidade de São Paulo, de 1954, reeditado agora pela Edusp. A reivindicação não vingou, mas ao menos instalou-se uma comissão que propôs a criação de uma faculdade de direito em São Paulo e outra em Olinda (PE). Ambas surgiram em 11 de agosto de 1827 por decreto de dom Pedro I. “O Brasil foi último país das Américas a lançar as bases do ensino, sob o regime universitário”, escreveu Souza Campos. Em seu estudo, ele informa o número de organizações do gênero no final do século XIX: 78 nos Estados Unidos, 12 no Canadá, 4 na Colômbia, 4 na Bolívia, 2 no México, 2 no Peru, 2 na Argentina e 1 na Guatemala, Venezuela, Uruguai, Paraguai, Chile, 12 ESPECIAL 80 ANOS USP

Equador, São Domingos, Honduras e Cuba. A Universidade de Bolonha, na Itália, é considerada a mais antiga do Ocidente – data de 1.088 (século XI). Por aqui, a primeira foi a Universidade do Rio de Janeiro, em 1920, e a de Minas Gerais (atual UFMG), em 1927. O desejo de ter uma instituição de ensino superior paulista, que congregasse vários cursos universitários, sempre esteve presente nas conversas de Julio de Mesquita Filho (1892-1969) com seus interlocutores, como Fernando de Azevedo (1894-1974). Seu livro de 1925, A crise nacional, já abordava a deficiência do ensino em todos os níveis. Mesquita cursou direito na Faculdade do Largo São Francisco. Em 1915 começou a editar a edição vespertina do jornal, chamada de Estadinho, que durou até 1921, e em seguida foi secretário de redação do jornal. Quando seu pai, Julio de Mesquita, morreu, em 1927, ele assumiu a direção do Estadão. Além do jornalismo, seus grandes interesses eram a política, a educação e a ciência. Admirava o filósofo Herbert Spencer (18201903), Sigmund Freud (1856-1939) e dizia aprender com os artigos de Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), fundador da Faculdade de Medicina, e nas conversas com o psiquiatra Franco da Rocha (1864-1933). Na política, participou intensamente de todos os movimentos até sua morte, aos 77 anos. Em julho de 1932, foi um dos líderes civis da Revolução Constitucionalista contra Getúlio Vargas – que apoiara na Revolução de 1930 –, pleiteando eleições livres e uma nova Constituição. Com as forças paulistas derrotadas, Mesquita e seu irmão Francisco acabaram presos e mandados ao exílio. Voltaram ao Brasil em 1933, graças às negociações do interventor Armando de Salles Oliveira (1887-1945). A trajetória de Salles Oliveira é curiosa. Ele era engenheiro formado na Escola Politécnica, acionista e presidente da empresa S.A. O Estado de S.Paulo, que edita o jornal, e casado com Raquel, uma das irmãs de Mesquita Filho. Estava, portanto, alinhado aos ideais de 1932 e nunca havia ocupado cargo público. “Dentro dos caminhos tortuosos da política, Getúlio achou melhor reconciliar-se com São Paulo. E nomeou Salles Oliveira interventor em 1933”, conta o historiador Shozo Motoyama, do Centro Interunidade de História da Ciência da USP, no livro USP 70 anos – imagens de uma história vivida (Edusp). Segundo a cronologia histórica do Estadão, disponível no acervo on-line do jornal, o engenheiro só aceitou o posto sob a condição de Vargas conceder anistia a Julio e Francisco, de modo que pudessem retornar ao país e reassumir o diário, e convocar eleições para o ano seguinte – o que realmente aconteceu. O movimento pela criação da universidade havia ganhado corpo na década anterior a esses acontecimentos. Em 1926, além dos debates em torno do assunto, o diretor do jornal pediu a Azevedo que coordenasse um inquérito sobre a questão do ensino. Tratava-se de questionários enviados a especialistas de todas as áreas, como Reynaldo Porchat, Arthur Neiva, Teodoro Ramos e Francisco de Fonseca Teles, entre outros. Ao

FOTOS 1 ARQUIVO FERNANDO DE AZEVEDO / IEB-USP  2 E 3 ESTADÃO CONTEÚDO / AE

Fernando de Azevedo em foto dos anos 1950: autor do projeto de decreto-lei que criou a USP e educador de enorme influência em todo o país


ler as respostas do questionário, Mesquita teve corroborada suas preocupações: “O principal problema com que lutamos, problema número 1, primacial no país, era, sem dúvida alguma, o do seu ensino superior”.

O interventor em São Paulo Armando de Salles Oliveira (1935): em consonância com Mesquita e Azevedo

PESQUISA DE FRONTEIRA

Azevedo, o maior parceiro de Mesquita nessa luta, era de São Gonçalo do Sapucaí (MG). Foi professor de latim e psicologia em Belo Horizonte, ensinou literatura na Escola Normal de São Paulo, lecionou sociologia educacional no Instituto de Educação da USP (que acabou extinto) e tornou-se catedrático de sociologia e antropologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL-USP, atual FFLCH). No Rio, assumiu a diretoria geral de Instrução Pública do Distrito Federal entre 1926 e 1930; em 1933 teve o mesmo cargo em São Paulo. Fundou e dirigiu a Companhia Editora Nacional. Em 1932 foi o redator e primeiro signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação (A reconstrução educacional do Brasil), em que se lançaram as diretrizes e base de uma nova política de ensino. Não admira que o empenho em torno dos mesmos temas e a união de Mesquita, Salles Oliveira e Azevedo tenham dado o impulso definitivo para a criação da USP em 1934, nos moldes diferentes do que vinham funcionando isoladamente as instituições superiores. “Todas as escolas superiores fundadas até o início da década de 1930 eram estabelecimentos com objetivos

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duzir de modo sistemático a pesquisa ‘desinteressada’ e de fronteira no solo brasileiro”, escreveu Motoyama. Sabia-se desde o início que a universidade seria a união das faculdades de Direito, de Medicina, de Farmácia e Odontologia, da Escola Politécnica e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz. Junto com a USP foi criada a FFCL, assim definida por Salles Oliveira: “O grande plano da universidade (...) não podia ser executado de um só golpe. Tinha o governo de começar por partes. E começou pelo principal, organizando imediatamente a Para Julio FFCL, que é uma instituição essencial, em de Mesquita qualquer sistema universitário, já como um foco de cultura livre e desinteressada e de Filho, ensino pesquisas científicas (...)”. Uma das ideias era concentrar os cursos básicos de todas estava entre as outras unidades na FFCL para ter uma base comum de formação dos alunos. Essa os principais batalha, no entanto, foi perdida. problemas O reitor escolhido foi Reynaldo Porchat (1868-1953), ex-diretor da Faculdade de do país 2 Direito, “o primeiro e maior que já tivemos”, escreveu Azevedo em 1954. Para contratar os professores da FFCL, Mesprofissionais, não havendo entre elas quita indicou Teodoro Ramos a Salles Olinenhuma destinada exclusivamenveira. A primeira universidade paulista começou, então, com a união das faculdades te à formação geral e aos estudos tradicionais e em poucos anos ganhou a companhia de natureza desinteressada”, explicou Heladio Cesar de 13 docentes e pesquisadores de talento recrutados Gonçalves Antunha em sua tese de livre-docência na na França, Itália, Alemanha e em Portugal das áreas Faculdade de Educação da USP, em 1971, depois publide física, literatura, filosofia, sociologia, matemática, cada no livro Universidade de São Paulo – Fundação e geologia, mineralogia, química, botânica e zoologia. reforma (CRPE/MEC, 1974). Por estudos de natureza Os numerosos sucessos da USP no ensino, pesquisa desinteressada entenda-se ciência básica em contrapoe extensão, 80 anos depois, parecem ratificar com sição à ciência aplicada, de caráter utilitarista e prático. sobras o acerto dos que lutaram pela sua criação. n “A USP destacou-se como pioneira, no sentido de introPESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 13


CIÊN A identificação em 1965 de moléculas no veneno da jararaca que potencializam a ação da bradicinina é ainda hoje uma das descobertas mais importantes feitas por pesquisadores da USP


EDUARDO CESAR

CIA


MEDICINA / CARDIOLOGIA

Excelência no coração Peter Moon

Amigo do peito: ventrículo artificial pediátrico desenvolvido no InCor


Pioneirismo no tratamento e na pesquisa tornou o InCor referência na América Latina

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LÉO RAMOS

m laboratório com simuladores, prensas e outras máquinas – algumas pesadas, outras de alta precisão – funciona no subsolo do Instituto do Coração (InCor), no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Ali vêm sendo produzidas, em escala experimental, algumas versões nacionais de ventrículo artificial: uma pequena câmara feita de um polímero sintético, dividida ao meio por uma membrana impermeável. Conectado por meio de cânulas ao coração em uma cirurgia, o ventrículo artificial auxilia o bombeamento de sangue nos casos em que o funcionamento do órgão se encontra bastante comprometido. O modelo mais recente produzido no InCor é uma versão pediátrica do ventrículo, capaz de bombear 15 mililitros de sangue a cada batimento. Foi desenvolvido para ser implantado em crianças com pou-

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cos meses de vida que necessitam de evitada com a disseminação de exames suporte circulatório enquanto aguar- diagnósticos e medidas de prevenção. dam um coração para transplante. Hoje Para os pacientes que têm a sorte de reas crianças que necessitam desse tipo ceber um diagnóstico antecipado, o risco de equipamento ficam desassistidas no está no tempo de permanência na fila país. As versões importadas são muito de um transplante de coração. Muitos caras. A primeira foi aprovada por au- morrem durante a espera por um doatoridades de saúde dos Estados Unidos dor compatível e teriam mais chances de em 2011 e custa cerca de US$ 100 mil, sobreviver se pudessem receber um venvalor que torna seu uso praticamente trículo artificial. “O ventrículo artificial inviável pelo sistema público de saúde é indicado ao paciente com uma insuficibrasileiro. “Os desafios ência cardíaca grave”, diz o científicos e tecnológicardiologista Noedir Stolf, ex-diretor do InCor. “O imcos encontrados nesse tipo de projeto, assoplante serve para mantê-lo vivo enquanto aguarda na ciados à especificida- Na Revolução fila por um doador.” de do mercado, difiEm 1993, Stolf fez no Incultam seu desenvol- de 1932, vimento pela indústria Cor o primeiro implante médicos e nacional”, conta Idágede ventrículo artificial da América Latina, procedine Cestari, diretora do alunos Centro de Tecnologia mento que vem sendo reBiomédica do InCor, improvisaram petido de uma a três veque teve a ideia de dezes por ano – nos Estados Unidos são cerca de 2 mil. senvolver um ventrí- hospitais nas A cirurgia só não é mais culo pediátrico no país frentes de difundida pelo alto custo anos atrás, quando tesdos ventrículos importatava um ventrículo ar- batalha tificial para adultos na dos. “O equipamento cusAlemanha. “Nosso venta US$ 100 mil, por causa dos nossos impostos, cada trículo foi desenvolvido com a visão de que tem de atender ao unidade importada não sai por menos de SUS [Sistema Único de Saúde]”, conta. US$ 300 mil”, diz Stolf. Criar um ventríO ventrículo pediátrico do InCor já culo artificial nacional significaria redufoi implantado em porcos e carneiros zir o custo dessa cirurgia. em parceria com a equipe do cirurgião “O uso dessa forma de suporte vem pediátrico Marcelo Jatene e será avaliado aumentando; hoje cerca de 40% dos paclinicamente após a aprovação da Agên- cientes usam o ventrículo artificial antes cia Nacional de Vigilância Sanitária (An- do transplante”, afirma Fábio Jatene, visa). A versão pediátrica é uma evolução de um modelo anterior, que bombeia 60 mililitros de sangue por batida, desenvolvida pelo InCor e aprovada para uso experimental em adultos. Um lote-piloto está pronto para ser avaliado a partir de 2015 por seis hospitais brasileiros.

atual diretor do InCor. “Optamos por começar a desenvolver, com tecnologia própria, os modelos mais simples, para serem usados por semanas.” PIONEIRISMO

O desenvolvimento dos ventrículos artificiais é parte do trabalho pioneiro de cirurgiões e engenheiros do InCor. O pioneirismo, aliás, é uma das características principais tanto do instituto quanto da instituição na qual se originou, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Criada em 1912, mais de 100 anos após a fundação das escolas de Cirurgia da Bahia e do Rio de Janeiro por dom João VI, a então Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo passou a liderar o ensino de medicina e a pesquisa médica no Brasil. Seu fundador e primeiro diretor, Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), seguiu os moldes das escolas de medicina mais avançadas da época, que aliavam o tratamento com a pesquisa médica. Desde o início, a faculdade introduziu as técnicas mais modernas, assimiladas por professores e alunos em viagens de estudo ao exterior. O financiamento para a construção do edifício que abrigaria a faculdade (inaugurado em 1931), a compra de equipamentos, de coleções de livros e periódicos para a biblioteca, e as primeiras bolsas de estudo para médicos brasileiros nos Estados Unidos vieram da Fundação Rockefeller. A contrapartida a esse financiamento seria a construção, pelo governo de São Paulo, de um hospital para atendimento à população.

MORTES EVITÁVEIS

Há pelo menos 20 anos os pesquisadores do InCor perseguem a meta de construir um ventrículo artificial brasileiro. São feitos por ano no país mais de 70 mil cirurgias cardíacas (como as pontes de safena), 15 mil implantes de marca-passo e 300 transplantes de coração. São números impressionantes, mas insuficientes. Ainda hoje, 300 mil brasileiros morrem todos os anos vítimas de doenças cardíacas. Boa parte dessas mortes poderia ser 18 ESPECIAL 80 ANOS USP

Construção do prédio central da Faculdade de Medicina da USP, em 1920


FOTOS  ACERVO DO MUSEU DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP

vos. Com a introdução de imunossupressores no exterior, a taxa de rejeição nas cirurgias caiu e a sobrevida dos pacientes aumentou. O primeiro transplante de fígado bem-sucedido no Brasil só veio em 1985, quando a equipe de Silvano Raia na FM-USP conseguiu prolongar a vida do doente em 18 meses. Três anos mais tarde sua equipe faria o primeiro transplante intervivos: uma mãe doou um terço do fígado para a própria filha. Dominadas as técnicas de transplante, os cirurgiões passaram a combater a rejeição de órgãos. Em 1985, Jorge Kalil Filho criou o Laboratório de Imunologia da FM-USP, contribuindo para a pesquisa de moléculas da superfície de células endoteliais envolvidas em rejeição. No caso das pontes de safena, o desaPrimeira turma: alunos de 1914 e Arnaldo Vieira de Carvalho, o quinto sentado (a partir da direita) fio era ampliar a durabilidade de uma veia safena antes de o paciente ter de Entre a inauguração do edifício-sede O avanço da cirurgia cardíaca no HC substituí-la. A veia é um vaso especialida FM-USP e a do Hospital das Clínicas o tornou um centro de excelência no zado no transporte de volumes peque(HC), em 1944, os professores e alunos Brasil e na América Latina. O aumento nos de sangue sob baixa pressão. A mureceberam o seu batismo de fogo. Nos do número de pacientes, alunos e visi- dança nas condições causa o espessatrês meses da Revolução Constitucio- tantes de outros países tornou neces- mento exagerado da camada de células mais interna, acelerando nalista de 1932, quando os paulistas se sária uma mudança do o acúmulo de placas de insurgiram contra o governo de Getúlio antigo Centro de Clínigordura, que obstruem Vargas, médicos e alunos improvisaram ca Cardíaca, que em 1963 10% das pontes em mehospitais de campanha nas frentes de ba- passou a se chamar Institalha contra as forças getulistas vindas de tuto de Doenças Cardio- Depois dos nos de uma década. Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná. As pulmonares. A reestruFaltava descobrir forcirurgias e os tratamentos de feridos em turação visava aumentar transplantes, mas de atenuar ou impecondições adversas foram lições valiosas a capacidade financeira dir o entupimento precomeça o em termos de organização da instituição, e construir uma sede, coce desses vasos. José que sempre manteve uma forte tradição inaugurada em 1975. Eduardo Krieger e sua esforço para em cirurgia. Entre os cirurgiões formaequipe no Laboratório de Genética e Cardioloobter mais dos na faculdade, uma figura-chave foi TRANSPLANTES Euryclides de Jesus Zerbini (1912-1993), Nesse meio tempo, os cargia Molecular do InCor chefe do antigo Centro de Clínica Car- diologistas continuaram órgãos e estudam esse fenômeno desde 2004. Eles simudíaca do Hospital das Clínicas da USP, a inovar. O passo seguinreduzir a berço do InCor. te foram os transplantes. lam o problema em ratos A primeira cirurgia cardíaca com cir- Em dezembro de 1967, o rejeição cujo fluxo de sangue da artéria carótida é parculação extracorpórea do mundo foi feita sul-africano Christiaan nos Estados Unidos em 1953. No Brasil, Barnard fez o primeiro cialmente desviado para Hugo Felipozzi (1923-2004) a realizou transplante cardíaco da a veia jugular. O aumenem 1956 na Santa Casa de São Paulo. No história. Seis meses depois Zerbini repe- to da pressão aciona nas paredes das mesmo ano, Zerbini e seus alunos Adib tia o feito na América Latina. No mesmo veias genes mais ativos nas artérias, que Jatene (1929-2014) e Delmont Bitten- ano, a equipe de Adib Jatene faria no Ins- favorecem o espessamento das paredes court (1921-1991) foram estudar as téc- tituto de Cardiologia Dante Pazzanese dos vasos. Esse é um sinal de que a veia nicas mais avançadas nos Estados Uni- a primeira operação de revascularização tenta se adaptar às novas condições. O problema é que, em muitos casos, a dos. No retorno, Zerbini fez a primeira do miocárdio, a ponte de safena. Ainda em 1968, foi feito no HC o pri- adaptação foge ao controle e causa o cirurgia cardíaca da FM-USP e do HC. “O Bittencourt e o Jatene voltaram com a meiro transplante de fígado do país pela entupimento. Tais condições favorecem ideia de montar uma oficina no porão do equipe de Marcel Machado. O paciente o desenvolvimento da aterosclerose. O HC para construir válvulas e braçadeiras sobreviveu uma semana. Houve quatro modelo dos ratos corresponde ao que cardíacas para uso nas cirurgias”, conta novas tentativas até 1974. A rejeição ao se vê nos pacientes safenados. A equipe Stolf. Um dos principais projetos foi o da órgão implantado e a falta de doadores de Krieger tenta desenvolver terapias criação de um aparelho coração-pulmão. foram desde o início os grandes impediti- genéticas para reverter o quadro. n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 19


MEDICINA / INSTITUTOS

Os efeitos do crescimento Evolução do conhecimento médico e mudanças no perfil das doenças levaram à criação de unidades especializadas Ricardo Aguiar

O

lítio, substância usada há décadas no tratamento de transtorno bipolar, pode ter uma importante função na prevenção e tratamento da doença de Alzheimer. Recentemente o Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria (IPq) da Universidade de São Paulo (USP), liderado pelos pesquisadores Wagner Gattaz e Orestes Forlenza, demonstrou que o lítio pode atenuar a evolução da doença. Um estudo com pacientes idosos com transtorno bipolar, doença mental grave associada a um risco elevado de desenvolver demência, mostrou que o uso prolongado de lítio confere proteção contra esse desfecho. “Os pacientes tratados com lítio apresentaram um risco cinco vezes menor de desenvolver Alzheimer do que os não tratados”, diz Gattaz. “O risco deles voltou a ser semelhante ao de pessoas sem transtorno bipolar. Adicionar pequenas doses de lítio à água talvez possa ajudar

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na prevenção e tratamento de doenças mentais, incluindo Alzheimer.” Além de investigar o papel neuroprotetor do lítio, Gattaz também estuda a esquizofrenia. Seu grupo detectou anos atrás cerca de 300 alterações genéticas que podem levar ao desenvolvimento do transtorno. Segundo o psiquiatra, os dados tornaram a compreensão da doença mais realista. As contribuições do IPq abrangem também a compreensão e o tratamento de outros transtornos mentais, como o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). O grupo de Euripedes Constantino Miguel obteve evidências, usando técnicas de neuroimagem, de que formas distintas de tratamento – terapia cognitivo-comportamental e uso de antidepressivos – atuavam de maneiras diferentes e complementares no cérebro. Outra constatação foi que o resultado dos tratamentos com medicação e com psicoterapia são semelhantes. O mais


T Projeto do prédio do Instituto de Psiquiatria da USP

importante, de acordo com os pesquisadores, é tratar o problema de forma continuada. Ao acompanhar 158 pessoas com TOC por dois anos, ficou claro que quanto maior a duração do tratamento, mais os sintomas regrediam.

IMAGEM  ACERVO DO MUSEU HISTÓRICO DA FM-USP

A MENTE

Além de produzir pesquisas científicas de nível internacional, o IPq se destaca pelo atendimento à população. Em 2014, tornou-se o primeiro hospital psiquiátrico brasileiro a receber a certificação da Organização Nacional de Acreditação por excelência na qualidade dos serviços. A história do IPq tem raízes no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, fundado e dirigido por Francisco Franco da Rocha no final do século XIX. Lá era realizada

parte do ensino de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Seu sucessor foi Antonio Carlos Pacheco e Silva, que assumiu o hospital em 1923. Com a colaboração de Benedito Montenegro, então diretor da FM-USP, e de Jorge Americano, reitor da universidade, Pacheco e Silva conseguiu do governo do Estado a construção do prédio que se tornaria sede do atual IPq. Com a fundação do IPq em 1952, um centro psiquiátrico universitário moderno, Pacheco e Silva venceu preconceitos e trouxe para perto do hospital geral os casos agudos de transtornos mentais. No instituto prevaleceu a orientação de Pacheco e Silva de que a psiquiatria fosse assentada não só em diagnósticos des-

critivos, mas também no conhecimento e na pesquisa das bases orgânicas e bioquímicas do cérebro. Naquela época, o modelo hospitalar era bem diferente. Baseava-se em internações prolongadas de pacientes com doenças mentais graves, como esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva. O leque de opções terapêuticas era então relativamente pequeno. Com o desenvolvimento da psicofarmacologia e da psiquiatria biológica, a abordagem diagnóstica e terapêutica dos transtornos mentais, bem como o foco dos estudos, mudou. Atualmente o IPq atende aos mais diversos transtornos, como os do humor, de ansiedade, alimentares, do sono e da sexualidade. Além disso, o grau de especificidade dos tratamentos para cada problema é bem maior. Os períodos PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 21


de internação se tornaram menos prolongados, buscando integrar a internação ao tratamento ambulatorial. As linhas de pesquisa do instituto são bastante abrangentes e heterogêneas e respeitam a complexidade dos fenômenos relacionados ao adoecimento mental. Isso inclui o reconhecimento das vertentes biológica, psicológica e social, que devem ser levadas em conta diante das particularidades de cada fase da vida.

B

A CRIANÇA

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C

Cada ponto na imagem representa um aglomerado de proteínas do cérebro de uma pessoa com esquizofrenia: os esquizofrênicos produzem mais proteínas identificadas pela letra S

Um dos diferenciais do instituto é ter especialistas em 17 áreas médicas, todos pediatras de formação. “Dessa forma, nossos pacientes são sempre atendidos por pediatras”, acrescenta Magda. O instituto também conta com um serviço de cirurgia infantil, fundado por Virgílio Carvalho Pinto nos anos 1960. Seu foco tem sido a correção de malformações congênitas complexas dos aparelhos digestivo, urinário e respiratório, e os procedimentos de separação de gêmeos siameses. A experiência desse grupo, hoje coordenado por Uenis Tannuri, contribuiu para que o ICr se tornasse o principal centro no país de transplantes de órgãos e tecidos em crianças. Um dos projetos em curso no ICr, em colaboração com o Instituto do Coração (InCor), envolve a síndrome de DiGeorge, grave doença genética que afeta um em cada 4 mil recém-nascidos. Além de malformações congênitas do coração, essas crianças apresentam defeitos no timo, órgão essencial para o desenvolvimento do sistema imunológico. “O timo é um órgão bastante esquecido nas pesquisas”, diz Magda. “Buscamos entender melhor o funcionamento desse órgão em crianças e aumentar a conscientização dos pediatras sobre as doenças relacionadas a ele.” Para isso, o ICr propôs que o dia 22 de novembro seja o Dia da Síndrome de DiGeorge, já que a doença decorre de uma microdeleção no cromossomo 22.

Outra preocupação do ICr é a prevenção precoce de doenças crônicas que só se manifestam em adultos ou idosos, como a osteoporose. Pelo histórico familiar, é possível saber se uma criança corre risco de desenvolver a doença, que em geral só aparece após a sexta década de vida. Assim, pode-se aconselhar crianças e adolescentes de risco a ter uma alimentação e um estilo de vida adequados para evitar o problema no futuro. A qualidade do atendimento é um dos destaques do ICr. O programa Diagnóstico Amigo da Criança é um exemplo disso. Implantado em 2012, o programa visa reduzir a quantidade de sangue retirada de crianças para exames, diminuir a exposição de crianças a exames com radiação ionizante e reduzir as indicações de anestesia. “Queremos ser um instituto de vanguarda na pesquisa, mas sem esquecer da segurança e do bem-estar do paciente e de sua família”, diz Magda. A REABILITAÇÃO

Uma parte fundamental no tratamento de muitas síndromes, inclusive atendidas pelo ICr, é a reabilitação. A própria síndrome de DiGeorge gera problemas de fala, que podem melhorar com tratamentos adequados. Oferecer a reabilitação para pacientes de diversas condições médicas e realizar pesquisas são os objetivos do Instituto de Medicina Física e Reabilitação (Imrea).

IMAGEM  DANIEL MARTINS-DE-SOUZA / INSTITUTO MAX PLANCK  FOTO  NANCY KEDERSHA / IMUNOGEN / SPL

Se o IPq mudou e evoluiu conforme alterações na medicina e na sociedade, o mesmo aconteceu com o Instituto da Criança (ICr). Fundado em 1976, o ICr teve sua origem no Serviço de Pediatria do Departamento de Clínica Médica, cujo chefe na época era Antonio de Barros Ulhoa Cintra, um dos fundadores da FAPESP e ex-reitor da USP. Eduardo Marcondes, então chefe do Serviço de Pediatria do Hospital das Clínicas, é considerado o principal fundador do ICr. Em seus primeiros anos, o ICr atendia sobretudo casos de diarreia e desnutrição, então as principais causas de mortalidade infantil. Na década de 1970, esse índice ficava entre 60 e 80 mortes a cada mil nascimentos no Brasil. Na década de 1980, houve progressos no tratamento da desidratação causada pela diarreia aguda com a contribuição de Giuseppe Sperotto, do ICr. Ainda elevadas se comparadas às de outros países, as taxas de mortalidade infantil no país haviam caído em 2013 para 15 casos por mil. Hoje as mortes no primeiro ano de vida são consequência principalmente de causas perinatais, malformações congênitas e anomalias genéticas. Acompanhando as mudanças no perfil das doenças infantis, o ICr tem como principal foco de atendimento e de estudo hoje pacientes com doenças graves, complexas e raras – são consideradas raras as doenças que atingem uma em cada 2 mil pessoas. “Nos últimos anos, essa mudança de foco tem sido uma decisão deliberada do ICr”, afirma a pediatra Magda Carneiro-Sampaio, atual presidente do conselho diretor do instituto. O ICr foi o berço de quase todas as especialidades pediátricas no país ao longo dos anos 1960 e 1970, e se tornou uma instituição única no país voltada para o atendimento de crianças e adolescentes com doenças de difícil diagnóstico.


As ações voltadas à medicina física e reabilitação iniciaram-se com a criação do Instituto Nacional de Reabilitação (Inar) em 1958. Em seu início, cuidava principalmente da reabilitação das vítimas de acidentes de trânsito, frequentes na época. De 2000 para cá, o Imrea se consolidou como centro de reabilitação que prioriza o atendimento a pacientes com lesão medular, amputados, paralisia cerebral e dor incapacitante. As linhas de pesquisa do instituto focam na avaliação e no controle neuromotor. Estudos buscam, por exemplo, avaliar novas abordagens de reabilitação e estudar os mecanismos biológicos envolvidos nesse processo. Essa linha gerou o Núcleo de Estudos Avançados em Lesões Encefálicas e é motivada pela hipótese de que o melhor entendimento da plasticidade cerebral e das novas tecnologias usadas na reabilitação resultará em melhores tratamentos. O Imrea também integra o Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão Neuromat, que tem como objetivo disseminar técnicas e sistemas de avaliação e intervenção em reabilitação, estabelecendo maior controle nos estudos clínicos.

“Desse modo, se soubermos qual o melhor protocolo para cada paciente, poderemos aumentar a eficácia de seu tratamento”, diz Linamara Battistella, coordenadora do Centro de Pesquisa Clínica do Imrea. O CÂNCER

Dos oito institutos da FM-USP, o mais novo é o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), inaugurado em maio de 2008. Giovanni Guido Cerri, professor titular de radiologia, coordenou a instalação do Icesp e assumiu sua direção-geral e presidência do conselho diretor. A área de oncologia da FM-USP, porém, nasceu antes, em 1981, quando Ricardo Brentani assumiu a primeira cadeira de professor em oncologia de uma universidade brasileira. Dois anos depois, ele assumiu também a direção do Instituto Ludwig para Pesquisa sobre o Câncer, então instalado no Hospital A. C. Camargo, que nos anos 1990 foi credenciado como entidade associada à Universidade de São Paulo, com ênfase em atividades de pesquisa e pós-graduação. Edificado por Brentani em 2005, o Centro de Oncologia da FM-USP se tor-

Células tumorais (em laranja) ocupam espaço entre células da pele

nou uma estrutura própria para a prática de oncologia, antes fragmentada nas diversas especialidades do Hospital das Clínicas. Brentani participou como membro do primeiro conselho consultivo do Icesp, apesar de não ter atuado diretamente em sua instalação. O Icesp surgiu com o objetivo primariamente assistencial, de atender os pacientes de câncer do Estado de São Paulo. Mas logo se organizou para exercer atividades de ensino e pesquisa. Suas principais linhas de estudo são em epidemiologia, oncologia molecular de biomarcadores e terapia alvo-dirigida. O objetivo é melhorar o diagnóstico e desenvolver e aprimorar terapias. Um dos atuais projetos, liderado pelo pesquisador Roger Chammas, tenta entender por que alguns tratamentos contra tumores falham. A quimioterapia e radioterapia, por exemplo, conseguem eliminar o tumor, deixando espaço aberto no tecido. Esse espaço, porém, é muitas vezes ocupado por novas células tumorais, em vez de células saudáveis. “Pesquisamos maneiras de evitar essa repopulação por células tumorais e de aumentar a eficiência dos tratamentos”, conta Chammas. “Como os vasos sanguíneos de tumores são frequentemente malformados, um dos meios de fazer isso é aumentar o tônus vascular para facilitar a chegada do medicamento. Testes pré-clínicos mostram que a modulação da função de vasos pode ser útil.” Chammas ressalta que a pesquisa sobre câncer produzida pela USP é diversa e importante para a produção nacional.Há pesquisas em todos os campi da universidade, em áreas como física, química e farmácia. “Temos mais de 100 grupos com linhas de pesquisa relacionadas a câncer na USP”, diz Chammas. “Isso faz com que a universidade esteja envolvida em cerca de dois a cada três artigos científicos da área nos últimos cinco anos no país.” Outro aspecto fundamental do Icesp é justamente integrar essas pesquisas, que antes eram difusas, e facilitar a comunicação entre os pesquisadores da área. “Quando a USP fizer 100 anos, quero olhar para trás e ver que o Icesp cumpriu a função de ser o ponto de encontro de todos os grupos de pesquisa em câncer da universidade, gerando conhecimento de ponta e o aplicando eticamente no diagnóstico e no tratamento de pacientes com câncer”, diz Chammas. ■ PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 23


MEDICINA / PESQUISA BÁSICA

A formação de uma escola Reinaldo José Lopes

Coração dilatado: consequência da hipertensão arterial, que em 30% dos casos não cede à terapia com medicamentos

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Com início sob condições modestas, grupos atuantes em ciências biomédicas alcançam posição de vanguarda

SHEILA TERRY / SCIENCE PHOTO LIBRARY

O

médico Eduardo Moacyr Krieger, 86, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), mostra entusiasmo com os resultados preliminares de um dos estudos recentes dos quais participa: uma análise de cerca de 2 mil pacientes hipertensos de todo o Brasil. O objetivo é verificar qual proporção deles é resistente ao tratamento da pressão alta. Em países desenvolvidos, até 30% dos pacientes caem nessa categoria. A boa notícia: “É realmente espetacular a resposta dos pacientes brasileiros ao tratamento da hipertensão. A porcentagem dos que têm hipertensão resistente é muito baixa em relação à média internacional, desde que se dê toda a atenção necessária ao doente. É algo comparável aos melhores resultados obtidos em outros países. Isso vai ser muito útil como norma para o SUS [Sistema Único de Saúde]”, diz o pesquisador, que ainda não pode revelar a porcentagem exata por se tratar de um estudo multicêntrico, com 26 instituições participantes. A trajetória de Krieger e de outros cientistas de sua geração, vários ainda na ativa, ajuda a ilustrar as transformações e os avanços consideráveis pelos quais passou a pesquisa biomédica na maior universidade do país. A partir de inícios modestos, quando os pesquisadores da USP tiveram de enfrentar desafios de infraestrutura e saúde pública ou a perseguição

política durante o regime militar, a universidade conseguiu formar grupos que levam a cabo projetos ambiciosos e de impacto científico e social, atuando em áreas de vanguarda como a terapia celular e a medicina personalizada. INSPIRAÇÃO PORTENHA

Curiosamente em sua origem, vários dos grupos de pesquisa biomédica da USP receberam inspiração e estímulo de pesquisadores argentinos, que já se destacavam como fisiologistas em meados do século passado. Entre essas figuras está o primeiro argentino – e latino-americano – a receber um Prêmio Nobel por suas realizações como cientista: Bernardo Alberto Houssay (1887-1971), laureado em 1947 graças a seus trabalhos sobre a regulação hormonal dos níveis de açúcar no sangue. Por meio de um programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o pesquisador argentino e seus colaboradores visitaram Porto Alegre em 1954. Foi quando Krieger, então médico recém-formado, conheceu um dos discípulos do vencedor do Nobel, Eduardo Braun Menéndez, e foi convidado para passar alguns meses em Buenos Aires trabalhando com a equipe. O ambiente era improvisado. Por causa de sua oposição ao regime militar argentino, Houssay e seus colaboradores tinham sido expulsos da Universidade de Buenos Aires e PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 25


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FOTOS  LUCIANA LIMA / ICB-USP

bertas seminais que, ao longo dos anos 1950 e 1960, pareciam finalmente estar revelando os segredos do funcionamento da vida a partir de suas bases moleculares: a descoberta da célebre estrutura de dupla hélice de DNA; o processo de produção de energia nas mitocôndrias, as “centrais elétricas” das células; como se dava a produção de proteínas nos ribossomos. “Havia circunstâncias muito favoráveis para se interessar pela ciência e grandes professores que mostravam isso para a gente”, resume ele. Segundo Camargo, outro motivo que o atraiu para trabalhar com parasitologia foi a política: quase todos os pesquisadores envolvidos com a área tinham convicções de esquerda. “Era o departamento vermelho da Faculdade de Medicina”, brinca. Entre os colegas esquerdistas Trypanosoma cruzi ao microscópio: forma proliferativa (círculos menores) no interior de uma célula... estavam Luiz Hildebrando Pereira da Silva, morto este ano e um pouco mais forçados a estabelecer o Instituto de Bio- inspirou a carreira do filho, José Eduar­ velho que Camargo, e o catedrático Salogia e Medicina Experimental numa ca- do Krieger, que dirige o Laboratório de muel Pessôa, amigo do militar e líder sa cedida pela abastada família de Braun Genética e Cardiologia Molecular do Ins- comunista Luís Carlos Prestes. A assoMenéndez – cada quarto era um labo- tituto do Coração (InCor). ciação entre engajamento político e paratório diferente. Mas a efervescência rasitologia, à época instalada na sede da intelectual desse entorno era tão grande, REVOLUÇÃO DO DNA Faculdade de Medicina, segundo Krieger, que ele se apaixonou Com efeito, a atmosfera no bairro de Pinheiros, pela pesquisa básica e se aprofundou no daquela época tanto no inera lógica, para muitos conhecimento dos mecanismos funda- terior como na capital endesses pesquisadores, quando se considerava a volvia alguns ingredien- “Ciência se mentais do sistema cardiovascular. ligação entre pobreza e Tal conexão argentina não terminou tes comuns. Um dos mais doenças graves causadas aí. Outro membro do grupo de Houssay, importantes foi o que se aprende com por parasitas. “Samuel diMiguel Covian, foi convidado a se juntar pode chamar de primeiquem sabe, à Escola de Medicina de Ribeirão Pre- ra fase revolucionária da zia que queria resolver o problema do povo brasito, criada em 1951 pelo médico paulista biologia molecular, expli- não lendo um Zeferino Vaz, com a vocação de ser uma ca o parasitologista Erney leiro”, lembra Camargo. instituição dedicada à pesquisa. Por co- Plessmann de Camargo, livro na S e e s s a v i s ã o s e rnhecer Krieger de Buenos Aires, Covian de 79 anos, do Instituto viu como estímulo pao chamou para Ribeirão Preto, onde o de Ciências Biomédicas biblioteca”, ra a produção científida USP, que no início dos jovem médico se estabeleceu em 1957. ca do grupo, também diz Eduardo “Eu costumo dizer que só virei fisio- anos 1970, como consequcolocou seus membros em maus lençóis com o logista porque trabalhei com um Nobel ência de uma adequação Krieger golpe militar de 1964. de fisiologia”, afirma Krieger. “Esse tipo à reforma universitária, Vários parasitologistas de liderança em pesquisa é fundamental passou a reunir docentes da USP foram cassados para a carreira de alguém, porque ciência, e pesquisadores de várias no fundo, se aprende com quem sabe, não cadeiras básicas. Antes distribuídas pelas pelo novo regime, entre eles o prólendo um livro na biblioteca. A formação diferentes faculdades da USP, especia- prio Camargo. Tanto ele quanto Luiz do cientista ainda é muito artesanal: ini- lidades como histologia, parasitologia, Hildebrando chegariam a ser presos cialmente, você se torna um aprendiz. E imunologia e fisiologia, entre outras, hoje mais tarde. Camargo só voltaria defiessas grandes personalidades são as que com importante produção científica em nitivamente à USP nos anos 1980, num entusiasmam, que convencem, que criam nível internacional, migraram para o ICB concurso assistido por cerca de 200 uma espécie de cadeia genealógica de no campus da cidade universitária, no pessoas e que funcionou como uma espesquisadores.” Coincidentemente, no bairro paulistano do Butantã. pécie de desagravo da universidade ao Camargo, responsável por trabalhos pesquisador perseguido. que diz respeito à genealogia propriaPara o parasitologista, embora o ammente dita – não a metafórica, envolven- importantes a respeito da biologia do do mestres e discípulos, mas a literal, de Trypanosoma cruzi, o parasita que causa biente universitário de hoje às vezes papai para filho –, o médico gaúcho também o mal de Chagas, cita várias das desco- reça menos politizado do que o dos anos


1960, as diferenças não são tão grandes quanto se poderia imaginar. “Não acredito que a estrutura intelectual e política da comunidade científica tenha mudado significativamente de lá para cá. O que mudou muito foram as circunstâncias: foi o espectro da Guerra Fria que acabou, foi a opressão física e cultural do regime militar que desmoronou, foi a progressiva, embora lenta, humanização do capitalismo. Tenho quase certeza de que, se algum tipo de opressão retornar, retornará também o não conformismo da comunidade científica, que de novo será chamada de subversiva”, argumenta ele. Camargo hoje se dedica a tentar entender, de maneira ampla, a história evolutiva do grupo dos tripanossomatídeos, ao qual pertence o causador do mal de Chagas. Uma variedade imensa de vertebrados, de peixes a répteis, é afetada por essas criaturas, transmitidas não apenas pelos insetos conhecidos como barbeiro, mas também por carrapatos e sanguessugas. Estudar essa trajetória evolutiva fascinante é, em parte, uma medida do sucesso da parasitologia, afirma ele. “A parasitologia do meu início de carreira tinha terríveis desafios sanitários e político-sociais, ligados à malária, à doença de Chagas, à esquistossomose e às demais verminoses. Era, muito corretamente, uma parasitologia voltada para as doenças humanas. Hoje, esses problemas não têm a dimensão de outros tempos, e com isso a parasitologia se tornou um ra-

mo muito importante da história natural, já que os parasitas constituem o grupo mais numeroso de seres vivos da Terra.” DA BANCADA AO LEITO

Mais ou menos na época em que Krieger se estabelecia em Ribeirão Preto, a dupla formada pelos médicos Maurício Rocha e Silva (falecido em 1983) e Sérgio Henrique Ferreira, hoje com 80 anos, realizava trabalhos que se tornariam a base para algumas das primeiras drogas eficazes para reduzir a hipertensão arterial, analisando, por exemplo, os efeitos de substâncias do veneno da jararaca sobre a bradicinina, molécula produzida naturalmente pelo organismo. Mais tarde, Ferreira elucidaria o mecanismo de funcionamento contra a dor e contra inflamações de substâncias como a aspirina e a morfina. Hoje, colegas mais novos de Ferreira na USP de Ribeirão Preto, como Fernando de Queiroz Cunha, continuam esse trabalho com o objetivo de enfrentar doenças que envolvem mecanismos inflamatórios, como a sepse (infecção generalizada), a artrite reumatoide e a psoríase. “O Maurício Rocha e Silva é meu ‘avô’ científico e o Sérgio Ferreira é meu ‘pai’, podemos dizer”, afirma Cunha, voltando a usar a metáfora genealógica – Ferreira, no caso, foi seu orientador de doutorado. Embora diversos grupos de pesquisa biomédica da USP tenham se preocupado, ao longo das décadas, com a aplicação clínica dos resultados obtidos pela ciência básica, Cunha diz que esse impulso

... e forma extracelular, com flagelo, no sangue de camundongo infectado

se tornou mais forte nos últimos cinco anos, com uma ênfase crescente na chamada pesquisa translacional. A vantagem do campus de Ribeirão Preto nesse aspecto, segundo Cunha, é que ali há um bom hospital e uma área de pesquisa básica bem atuante. Além da farmacologia e da imunologia, destacam-se grupos como o chefiado pelo médico Marco Antonio Zago, atual reitor da USP, que investiga doenças hematológicas e o uso de células-tronco para tratar algumas formas de câncer do sangue. “A questão”, diz Cunha, “é que só agora a indústria farmacêutica brasileira começa a perceber a importância da inovação radical. A fatia do mercado, que é dominada pelas empresas brasileiras da área, é importante e robusta, mas até pouco tempo se preocupava quase exclusivamente com produtos genéricos ou similares.” Graças em parte às agências de fomento, segundo Cunha, vem ocorrendo uma aproximação entre a universidade e o setor produtivo. “Não podemos esperar que a universidade coloque no mercado um novo produto”, diz. Um exemplo dessa iniciativa que pode se concretizar no futuro é um teste imunobiológico desenvolvido por Cunha e seus colegas para pacientes com artrite reumatoide. A maior parte dos pacientes com essa doença autoimune responde bem ao uso do metrotrexato, um dos principais medicamentos antiartrite. Mas cerca de 30% não respondem, fato que só fica claro de três a seis meses após o início do tratamento. O teste desenvolvido pela equipe de Ribeirão permitiria saber desde o começo que o metrotrexato não funciona para certos pacientes. “Assim não se perderia até seis meses de tratamento”, diz. A equipe já obteve o registro da patente do teste e negocia sua fabricação com empresas nacionais. O grupo também avançou na compreensão da sepse, infecção generalizada que pode acometer pessoas internados após cirurgias de grande porte e que no país mata em até 50% dos casos. A sepse é um fenômeno complexo. Parte do risco que ela traz à saúde vem do fato de que, em dada fase, a sinalização do sistema imune fica confusa e “cansada”, impedindo o ataque eficaz às bactérias causadoras da sepse. A equipe de Ribeirão acaba de identificar uma molécula que poderia servir como alvo de medicamentos, restaurando essa sinalização. n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 27


BIOLOGIA / GENÉTICA

Uma linhagem bem enraizada Rodrigo de Oliveira Andrade

Células-tronco embrionárias neuronais formando redes neurais, vistas em microscopia de fluorescência

28 ESPECIAL 80 ANOS USP


Institucionalização da genética humana na USP ajudou a formar grupos de excelência no Instituto de Biociências

RICCARDO CASSIANI-INGONI / SCIENCE PHOTO LIBRARY

“E

les estão nascendo!”, disse eufórica uma das alunas da geneticista Mayana Zatz ao entrar em sua sala no Centro de Estudos do Genoma Humano (CEGH), em um prédio anexo ao Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Ela se referia aos filhotes de duas cadelas da raça golden retriever, ambas portadoras de distrofia muscular, uma doença neuromuscular que leva à fraqueza progressiva dos músculos e à impossibilidade de locomoção. Os cães fazem parte de um estudo com células-tronco, um braço importante dos esforços de pesquisa do CEGH, ao lado de estudos mais tradicionais, como os ligados ao genoma humano. “Injetamos células-tronco nos cães com distrofia na tentativa de reverter os efeitos da doença”, explica Mayana. Em um estudo anterior com cães da mesma raça,

PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 29


seu grupo observou que alguns animais foi orientador de iniciação científica de carregavam genes que neutralizavam os Mayana na década de 1960. À época, ele efeitos negativos da mutação responsável já atendia pessoas com uma variedade de pela distrofia. Os cães tinham a alteração doenças genéticas. “Para ele, os paciengenética associada à doença, o que os im- tes ajudavam a gerar novas pesquisas e pedia de produzir a distrofina, proteína as novas pesquisas tinham de ajudar os importante para a manutenção da inte- pacientes”, conta Mayana. “Frota-Pessoa gridade dos músculos. Nenhum deles, formou todos os geneticistas médicos da contudo, apresentou os sinais clássicos minha geração e da que me antecedeu.” Nascido no Rio de Janeiro em 1917, da distrofia, como dificuldade para andar. As doenças neuromusculares talvez Frota-Pessoa estudou história natural sejam as primeiras a se beneficiar dos na Universidade do Distrito Federal. Em 1941, graduou-se na estudos com célulasantiga Universidade do -tronco, acredita MayaBrasil. Ainda no Rio, cona. No caso da distrofia muscular, ela explica, meçou a colaborar com os há uma degeneração do Crodowaldo geneticistas da USP, lidemúsculo e, apesar de harados por André Dreyfus, um dos responsáveis pever muitos músculos no Pavan ajudou organismo, é mais fácil la vinda ao Brasil do rusa iniciar substituir a área do teciso naturalizado nortedo afetada do que fazer um serviço -americano Theodosius um novo músculo com Dobzhansky, da Univeras células-tronco. Em de genética sidade de Columbia, nos 2012, o grupo de MayaEstados Unidos, introduna concluiu que injeções humana e tor do estudo da genética de células-tronco humadas drosófilas (a moscamédica no IB nas adultas, combinadas -da-fruta) no país. Docom doses diárias de um bzhansky é lembrado cofator de crescimento, pomo um pesquisador que fazia muitas solicitações dem ser uma alternativa possível para o tratamento de distrofias de viagens de estudos, recursos e equimusculares progressivas em camundon- pamentos. Como condição para vir ao gos. No estudo, publicado na revista Stem Brasil, impôs uma viagem para conheCell Reviews and Reports, eles relataram cer e pesquisar a Amazônia. A visita de que a combinação não gerou novos mús- Dobzhansky influenciou Frota-Pessoa culos, mas diminuiu a inflamação e a ao ponto de ele se voltar ao estudo das espécies brasileiras de drosófilas no doufibrose nos existentes. As pesquisas bem-sucedidas de Maya- torado. Nos anos de 1960, Frota-Pessoa na no campo das células-tronco e em foi convidado por Crodowaldo Pavan, outras áreas da genética a transforma- outro membro importante do grupo que ram em uma das cientistas brasileiras de ajudou a institucionalizar a genética no maior visibilidade no mundo. Professora Brasil, a iniciar um serviço de genétido Instituto de Biociências, a geneticista ca humana e médica no Departamento está desde 2000 à frente do CEGH, um de Biologia do IB. “Esse serviço mais dos Centros de Pesquisa, Inovação e Di- tarde se transformou no CEGH”, confusão (Cepid) criados com financiamento ta Mayana. da FAPESP. Ao todo, o grupo de Mayana já atendeu mais de 20 mil pessoas com PASSADO DE EXCELÊNCIA doenças neuromusculares. “É a maior A rede de pessoas que mais tarde possiamostra do mundo estudada em um mes- bilitou a formação de grupos de pesquisa mo centro”, diz. “Estamos hoje seguin- de excelência na USP nos campos da gedo a segunda geração desses pacientes.” nética humana e genômica começou a se O trabalho de pesquisa e atendimento formar nos anos 1930, década marcada assistencial desenvolvido no CEGH é pela criação da USP, em 1934. A históuma das heranças deixadas pelo gene- ria dessas pessoas frequentemente se ticista Oswaldo Frota-Pessoa, morto aos mistura com a da própria universidade 93 anos em 2010. Um dos pioneiros da — André Dreyfus, por exemplo, dá nome genética humana e médica no Brasil, ele ao prédio do IB-USP, onde fica o Depar30 ESPECIAL 80 ANOS USP

tamento de Genética e Biologia Evolutiva. Seus corredores abrigam sinais da história por todos os lados. Por eles estão espalhadas peças do acervo da memória do instituto, incluindo fotos, coleções de fósseis, estátuas e até um dos armários de Crodowaldo Pavan. O Instituto de Biociências foi criado em 1969. Dele faziam parte os departamentos de Biologia, Botânica, Fisiologia e Zoologia, todos criados em 1934, junto com a cátedra de biologia geral, ocupada por André Dreyfus na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Dreyfus foi um dos membros da comissão encarregada de elaborar o projeto de criação da primeira universidade pública de São Paulo. Foi a admiração por ele que levou Harry Miller Jr., da Fundação Rockefeller, a financiar a compra de equipamentos e a pesquisa do laboratório e a trazer Dobzhansky ao país para ministrar um curso de evolução, assistido por quase todos os biólogos da USP e dos institutos Biológico de São Paulo e Agronômico de Campinas (ver Pesquisa FAPESP nº 168). Hoje, no terceiro andar do prédio do IB, está o Laboratório de Genética Molecular, criado em 1996 por meio de um projeto financiado pela FAPESP e desde então chefiado pela geneticista Lygia da Veiga Pereira. Formada em física na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Lygia veio para o Instituto de Biociências motivada pelo que faziam os grupos de Mayana Zatz e da bióloga Angela Morgante, cujo orientador de mestrado e doutorado era Frota-Pessoa. Em 2008, o grupo de Lygia anunciou a obtenção da primeira

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Pavan em seu gabinete nos anos 1950, no sótão do departamento, na alameda Glete


FOTOS 1 ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP 2 EDUARDO CESAR

linhagem brasileira de células-tronco embrionárias, a BR-1. Os pesquisadores obtiveram essas células a partir de um embrião congelado havia mais de três anos. Para chegar à linhagem BR-1, ela conta, foi preciso descongelar 250 embriões, dos quais apenas 35 se desenvolveram até o quinto dia, estágio em que as células são extraídas. “Com isso substituímos a importação de células-tronco e desenvolvemos uma competência técnica própria para a obtenção e manutenção dessas linhagens”, conta Lygia. Seu laboratório até hoje é o único a produzir linhagens de células-tronco embrionárias humanas no Brasil. Recentemente, o grupo de Lygia conseguiu uma verba para a construção do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias, que produzirá linhagens para uso clínico. “A outra parte das células2 -tronco produzidas no futuro laboratório será usada em testes de respostas a me- Biomédico manipula células-tronco que cresceram em estufa a 37 graus dicamentos”, diz. Outro grande projeto desencomplicações distintas. Um ciamento genético de um organismo. Lançado em 1997 por meio do Propode ter um problema carvolvido no laboratório envolve as chamadas díaco, enquanto o outro al- grama Genoma-FAPESP, o trabalho de células-tronco pluripo- O momento guma complicação ocular.” sequenciamento dos 2,7 milhões de baEm estudos com camun- ses do cromossomo da Xylella, segundo tentes induzidas, células maduras que podem de glória dongos geneticamente mo- Menck, contribuiu para que os pesquiser reprogramadas para dificados, os pesquisadores sadores da USP pudessem ingressar em talvez tenha se tornarem outra vez tentam identificar os genes uma nova área do conhecimento: a biocapazes de gerar uma sido o genoma que interagem com o gene informática. “Na época não era evidente série de tecidos diferenresponsável pela síndrome, que o sequenciamento seria um avanço fazendo com que duas pes- para nós. Houve críticas!”, conta o pestes do organismo. “Con- da bactéria seguimos desenvolver soas com a mesma doença quisador. “Mas nos qualificamos em tera técnica usada para a Xylella desenvolvam complicações mos de tecnologias de sequenciamento produção dessas céludiferentes. e de análise de dados, sobretudo em refastidiosa las aqui no laboratório”, lação à bioinformática, cuja comunidaconta Lygia. “Com isso, RECONHECIMENTO de no Brasil inexistia”, diz. “Tudo isso pretendemos construir O momento de glória do representou um grande avanço para os uma biblioteca com céInstituto de Biociências, grupos de pesquisa da USP”, conclui. O lulas pluripotentes que representem a segundo a bióloga e professora titular trabalho recebeu o reconhecimento indiversidade genética brasileira. Quere- no Departamento de Botânica da USP ternacional em 2000 com a publicação mos no futuro poder testar a resposta Marie-Anne Van Sluys, talvez tenha sido de uma reportagem na capa da revista das células derivadas das células plu- o sequenciamento do genoma da bactéria Nature sobre o sequenciamento do córipotentes a medicamentos em experi- Xylella fastidiosa, responsável pela Clo- digo genético da bactéria (ver Pesquisa mentos in vitro”. rose Variegada dos Citros, a “praga do FAPESP nº 55). “Vale destacar o trabalho Desde 1996, o grupo de Lygia dedica amarelinho”, que, à época, afetava 34% de Andrew Simpson, coordenador de parte dos recursos do laboratório também dos pomares de laranja do estado de São DNA do projeto, que nunca esmoreceu, ao estudo da síndrome de Marfan, uma Paulo. Marie-Anne e seu marido, o biólo- aparou arestas do programa e o permitiu desordem genética caracterizada pelo de- go molecular Carlos Menck, do Instituto seguir em frente”, lembra Menck. Para o pesquisador do ICB, ainda que senvolvimento de membros muito longos, de Ciências Biomédicas da USP, fizeram complicações cardiovasculares, oculares parte do grupo de 190 pesquisadores de o projeto tenha deixado heranças ime ósseas, entre outras. As manifestações várias instituições e diferentes discipli- portantes, como a Alellyx, empresa de clínicas da síndrome em seres humanos nas que, por meio de uma rede virtual biotecnologia fundada em 2002 pela são muito variadas, explica a geneticista. de 60 laboratórios, trabalhou no que era Votorantim Novos Negócios, os pes“Membros de uma mesma família, com considerado o maior projeto científico já quisadores da USP não continuaram a mesma mutação, podem desenvolver realizado no Brasil, voltado ao sequen- de forma a se destacarem no campo da PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 31


bioinformática. “Uma das razões, a meu ver, foi a dificuldade para o desenvolvimento da área de bioinformática de genomas, que ainda engatinha na USP.” De qualquer forma, “os projetos genoma tiveram impacto forte na USP, mas poderíamos ir mais longe se mantivéssemos grupos fazendo estudos de análise de sequências, sobretudo do ponto de vista evolutivo”, diz. “Dobzhansky teria gostado disso!” O sucesso do sequenciamento do genoma da Xylella ampliou a abrangência do Projeto Genoma-FAPESP, que logo se engajou em outros projetos de grande interesse social e econômico. Um deles foi o Projeto Genoma Cana — conhecido como Projeto FAPESP Sucest —, responsável pelo mapeamento de 238 mil fragmentos de genes funcionais da cana-de-açúcar. “O Sucest abriu caminho para o uso de marcadores moleculares no melhoramento da cultura da planta”, diz a bióloga molecular Glaucia Souza, professora do Instituto de Química da USP e uma das participantes do Sucest. Cerca de 240 pesquisadores de 22 instituições trabalharam, entre 1999 e 2002, na identificação das Etiquetas de Sequências Expressas da cana-de-açúcar. “O projeto viabilizou o conhecimento sobre o metabolismo da cana”, diz Glaucia, hoje coordenadora do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e do Sucest-Fun, dedicado à análise funcional dos genes da cana e à identificação de genes associados a características agronômicas de interesse. As atividades do grupo visam à geração de plantas transgênicas e à investigação de genes associados ao teor de sacarose, biomassa, tolerância à seca, deficiência em fosfato e mudanças climáticas, entre outros. Os pesquisadores ainda querem entender como esses genes funcionam. Inicialmente, explica Glaucia, o projeto se concentrou apenas no sequenciamento do DNA funcional da cana, ignorando genes sem função conhecida. “Estamos agora tentando identificar trechos do DNA conhecidos como promotores”, diz. Em um acordo com a Microsoft Research Institute para pesquisa em genômica da cana-de-açúcar, seu grupo está trabalhando na anotação e análise da atividade dos genes, o que poderá permitir o cultivo de variedades com maior ou menor quantidade de açúcar e em áreas com pouca água. n 32 ESPECIAL 80 ANOS USP

BIOLOGIA / ZOOLOGIA

História evolutiva em progresso Estudos com vertebrados e invertebrados, em terra e no mar, buscam entender processos de diversificação das espécies

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á mais de 40 anos, o zoólogo Miguel Trefaut Rodrigues se debruça sobre cobras e lagartos para entender sua biologia e evolução. Mas não há nada de antiquado quando ainda hoje se senta nas areias das dunas do rio São Francisco ou em áreas de mata atlântica ou da Amazônia para examinar a forma e os tamanhos de escamas e medir animais capturados por ele ou colaboradores. A pesquisa que lidera acompanha os avanços na ciência evolutiva, enfoque que permeia o Instituto de Biociências e seu Departamento de Zoologia. Atualmente à frente de um amplo projeto financiado pela FAPESP que visa nada menos do que investigar a história evolutiva de répteis e anfíbios no contexto de mudanças ambientais, seu grupo alia o exame tradicional das características físicas a marcadores genéticos e modelos que levam em conta flutuações climáticas de milhares de anos atrás.


pode em alguns casos ser revertida e seguir o rumo oposto, recuperando dedos ou patas (ver Edição Especial 50 Anos da FAPESP). A presença de pálpebras funcionais em um gênero da família dos lagartos ginoftalmídeos, caracterizados por olhos descobertos, alerta para a importância de se reconstruir corretamente a história genealógica dos grupos para entender os processos de seleção natural, conforme artigo de janeiro de 2014 na revista The Anatomical Record. Da terra para o oceano, o grupo de Antônio Carlos Marques segue a mesma linha, e nos últimos três anos analisou um total de 24.671 minúsculos animais marinhos. Os estudos resultaram na reestruturação da compreensão filogenética de todo um filo, os cnidários (que inclui anêmonas-do-mar, corais, águas-vivas, hidras e outros), e estabeleceram um novo conhecimento da evolução do grupo, em termos mundiais. Segundo Marques, a partir do material analisado pelo grupo de pesquisa que ele coordena foram propostas hipóteses de províncias biogeográficas na escala do sul da América do Sul (Atlântico e Pacífico) e toda a Antártida (oceano austral e regiões subantárticas), constituindo a maior análise com dados próprios conhecida. PIONEIROS

Segundo Rodrigues, porém, nem sempre a zoologia da USP teve essa visão evolutiva do mundo. Um importante capítulo que afetou o rumo do departamento ocorreu no final de 1962, quanUm exemplo da amplitude do da aposentadoria do do foco da pesquisa é a inprofessor alemão Ernesdicação, a partir da análise O prédio que to Marcus, que ao lado de 25 vertebrados brasileido colega Paulo Sawaya havia fundado os esturos, de que as mudanças no hoje faz parte clima por volta de 250 mil dos zoológicos no novo do IB foi a anos atrás tiveram umimcampus da Universidade de São Paulo no Butantã pacto diferente na diversi- primeira obra nos anos 1950, abriu-se ficação de espécies endêuma vaga na cadeira de micas, quando se compara do então zoologia. florestas do norte e do sul novo campus A banca escolheu Dido país. No contexto da diversiva Diniz Correa, alinhado Butantã ficação das espécies, o gruda com o foco em anapo também estuda como a tomia e histologia dos evolução de características fundadores, garantindo cruciais para a adaptação a determinados uma sobrevida mais longa à visão pouambientes, como a redução ou perda de co calcada na evolução. A ótica oposta membros em lagartos que serpenteiam era representada pelo cientista-sambisnas areias às margens do São Francisco, ta Paulo Emílio Vanzolini, que diante

MIGUEL RODRIGUES

Calyptommatus leiolepis: exemplo de lagarto das dunas do São Francisco com perda de membros

do resultado atravessou parte da cidade e fincou raízes definitivas no bairro do Ipiranga, no também histórico prédio do Museu de Zoologia da USP. Ele seria diretor da instituição até o início dos anos 1990. “Aquele resultado poderia ter mudado bastante a história”, afirma Miguel Trefaut Rodrigues, ex-diretor do Museu de Zoologia e atual professor livre-docente do Instituto de Biociências da USP (IB-USP), se referindo à alternativa contratação de Vanzolini. Pronto em 1957, o prédio da zoologia, que hoje faz parte do Instituto de Biociências, foi a primeira obra feita no então novo campus do Butantã, contemporânea apenas do edifício do IPT. Mas não foi apenas pela construção do prédio que Marcus e Sawaya puseram a zoologia da USP em pé. Eles abriram várias frentes de pesquisa que não eram conhecidas na época no Brasil. Marcus, quando chegou ao Brasil em 1936 fugindo dos nazistas, vindo da Universidade de Berlim, havia publicado mais de 50 trabalhos científicos na sua carreira. De acordo com Rodrigues, que foi aluno de Vanzolini e é um dos grandes especialistas brasileiros em herpetologia, a história da zoologia da USP tem duas etapas bem distintas. “Nos últimos 30 anos principalmente, o trabalho do Vanzolini, que ligava a zoologia às questões de evolução, gerou resultados tanto no museu quanto no IB. Houve uma convergência.” Não é apenas o passado que tem uma história interessante, afirma Marques. “O bonito dessa história é que abordagens mais recentes foram se agregando às do passado, e não substituindo. O resultado é uma zoologia de alta qualidade, com uma base histórica forte, mas que contextualiza suas perguntas em assuntos relevantes, de ponta, atuais. E o futuro vem aí com excelentes jovens pesquisadores, como os professores Daniel Lahr, Taran Grant, André Morandini e Federico Brown”. Existe um projeto pronto, feito por Rodrigues, para que o Museu de Zoologia da USP tenha um prédio totalmente novo dentro do campus, na chamada praça dos Museus. Mas, por enquanto, o cronograma de entrega das obras não está definido. A primeira data para inauguração de pelo menos parte da praça de Museus era 2013, mas não existem obras do futuro museu zoológico. n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 33


BIOLOGIA / BOTÂNICA

Entre cipós e algas Gilberto Stam

Enredadas: lianas têm ajudado a desvendar origens da biodiversidade amazônica

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A partir de levantamentos de flora, pesquisadores investigam processos de diversificação das espécies

N

LÉO RAMOS

as últimas décadas, a abordagem tradicional de levantamentos de flora e fauna feitos no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) recebeu um reforço importante com o uso de material genético na reconstrução de filogenias, diagramas em forma de árvore que representam as relações de parentesco evolutivo entre as espécies. Mas, na medida em que o conhecimento avançou, ficou claro que para explicar a origem da biodiversidade era necessário dar um novo passo, elaborando uma narrativa completa que incluísse as transformações ecológicas e geográficas que levaram à formação dos grandes ecossistemas, ou biomas. No caso da Amazônia, o local de maior biodiversidade do planeta, detalhes importantes sobre essa narrativa começam a ser revelados.

PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 35


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Astolpho de Souza Grotta examina amostra de planta desidratada no herbário, na década de 1970

36 ESPECIAL 80 ANOS USP

OCEANOS

O conhecimento sobre a biodiversidade, porém, não aumenta apenas em terra. A pesquisa com algas marinhas, também apoiada pelas técnicas de filogenética, estão multiplicando o número de espécies conhecidas em nossos mares. “Nossa diversidade foi bem estudada, porém ainda está subestimada”, conta Mariana Cabral de Oliveira, especialista em algas e chefe do Departamento de Botânica. “Em alguns grupos de algas o número de espécies dobrou, e descobrimos até novos gêneros.” Os pesquisadores estão usando marcadores moleculares, que funcionam como um código de barras, para separar espécies indistinguíveis do ponto de vista morfológico, ou para unificar outras que assumem variações morfológicas em ambientes diferentes. Entre outros achados, o grupo encontrou no litoral brasileiro uma alga com poucos milímetros coletada apenas na Somália e no Quênia nas décadas de 1970 e 1980 por um pesquisador italiano. Essa alga diminuta já era conhecida no registro fóssil e tem um papel importante para explicar a evolução de algas calcárias (Corallinales). Apesar das novas abordagens, os levantamentos de flora ainda são a base fundamental do estudo da biodiversidade. O departamento já listou as floras completas da serra do Cipó e de Grão Mogol, região de campos rupestres e ambas na cadeia do Espinhaço em Minas Gerais, e colaborou na flora de São Paulo, um projeto que conta com a coordenação do Instituto de Botânica de São Paulo. Publicou também a flora de algas marinhas bentônicas (aquelas fixas ao fundo do mar) do Brasil e a flora de algas de Abrolhos, na Bahia. “O levantamento florístico é a base de toda pesquisa sobre evolução das plantas, pois é necessário conhecer a morfologia das plantas para relacionar com os aspectos ecológicos e filogenéticos”, explica José Rubens Pirani, professor do departamento. “Além disso, se presta bem à formação acadêmica, já que cada aluno pode se debruçar sobre uma família ou grupo quando inicia seus estudos.” Os levantamentos também têm desempenhado papel importante em conservação. As floras da serra do Cipó e de Grão Mogol foram argumentos decisivos para convencer as autoridades a fundar parques nessas regiões, e os

FOTOS 1 ARQUIVOS DEPARTAMENTO DE BOTÂNICA 2 EURICO C. DE OLIVEIRA / IB-USP

“Dados obtidos com cipós indicam que a porque Lúcia já havia se debruçado sobre diversificação de espécies na Amazônia a sistemática, ou classificação, das Bigocorreu há cerca de 3 milhões de anos, noniaceae, até então uma grande dor de bem mais recentemente do que se imagi- cabeça para os botânicos. A pesquisadora nava”, conta a botânica Lúcia Lohmann, refez toda a classificação para refletir o especialista na família Bignoniaceae (que parentesco entre as espécies. Esse trabainclui cipós, ipês e jacarandás). “Estudos lho, cruzado com informações de fósseis com aves, primatas e borboletas também e dados sobre a distribuição geográfica confirmam essa data.” das espécies atuais, permitiu identificar Dados geológicos, por sua vez, indi- locais de origem para as diversas linhacam que a formação da bacia hídrica gens e a história biogeográfica do grupo. da Amazônia ocorreu na mesma época. A origem dos cipós, também conheciA Amazônia foi recortada por rios que dos como lianas, deve ter ocorrido há cersepararam populações, interrompen- ca de 50 milhões de anos na região da mado o fluxo gênico e dando origem a es- ta atlântica. Há pouco mais de 40 milhões pécies diferentes em cada lado, num de anos essas plantas chegaram à Amazôexemplo do clássico mecanismo de es- nia, onde se diversificaram enormemente. Dez milhões de anos mais peciação por isolamento tarde, uma linhagem de geográfico proposto por cipós ocupou as regiões Charles Darwin. “No dos campos rupestres e caso das aves, temos alo cerrado, com grandes guns exemplos de grupos Marcadores transformações de hábito terrestres cuja distribuie adaptações ao fogo. Alção atual se encaixa per- moleculares feitamente nos recortes gumas espécies viraram funcionam da bacia hidrográfica”, arbustos e perderam as conta Lúcia. gavinhas, outras ganhacomo um Os cipós são um bom ram um caule enterramodelo de estudo por- código de do que, como um bulbo, permite o rebrotamento que eles são típicos das em caso de fogo. Posteflorestas tropicais e as barras para diferenciam das temperiormente, algumas espéespécies radas. No entanto, só foi cies voltaram a ocupar a possível utilizá-los como mata atlântica, chegando um grupo-modelo no proao número atual de cerca de 400 espécies. jeto integrado de pesquisa


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Apesar da tradição de estudos no departamento, diversidade de algas marinhas ainda é subestimada

A nova abordagem integrativa segue a trilha da tradição florística e de conservação

estudos de Eurico Cabral de Oliveira com algas contribuíram para a criação do Parque Nacional Marinho de Abrolhos e da Reserva Biológica Marinha de Atol das Rocas. TRADIÇÃO

O foco na biodiversidade nativa remonta ao trabalho da anatomista vegetal Nanuza Luiza de Menezes, a primeira a abraçar uma família exclusivamente brasileira, a Velloziaceae, grupo da canela-de-ema e típica dos campos rupestres. Nanuza, que comemorou seus 80 anos junto com a USP, foi aluna de Aylthon Brandão Joly, que nos anos 1940 iniciou no departamento os estudos em biodiversidade. Foi ele quem insistiu para que ela abandonasse o estudo do abacate – era prática comum da época usar espécies introduzidas – e focasse nas plantas brasileiras. Nanuza foi a primeira pesquisadora a visitar os campos rupestres. “Fi-

quei apaixonada pela paisagem e pelas Velloziaceae, e levei meus orientandos para lá”, conta ela. Seus estudos anatômicos são uma das peças que ajudam a entender o quebra-cabeça da história evolutiva das plantas. A nova abordagem integrativa segue a trilha dessa tradição florística e de conservação. “Com o conhecimento que estamos adquirindo, a conservação deixará de ser um discurso para ter embasamento científico de fato”, diz Lúcia. “Será possível definir áreas e espécies prioritárias para conservação.” O projeto coordenado por ela é uma parceria entre a USP e o American Museum of Natural History, de Nova York, e inclui 17 outras instituições do Brasil, Estados Unidos, Argentina, Inglaterra e Canadá. O projeto temático está no terceiro ano e promete estabelecer uma metodologia que servirá de padrão para estudar outros biomas brasileiros. n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 37


CIÊNCIAS EXATAS E DA TERRA / FÍSICA E QUÍMICA

Intimidade com a matéria Igor Zolnerkevic

Vida nova: Pelletron ganha dispositivos que permitirão funcionar com máxima energia

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Equipes trabalham em novos materiais, moléculas biológicas e energia limpa gerada por fusão nuclear

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EDUARDO CESAR

difícil andar pelo Instituto de Física da USP e não notar no trabalho dos pesquisadores e em muitos equipamentos hoje em funcionamento a influência do físico Mário Schenberg (1914-1990), um dos mais importantes cientistas brasileiros do século XX. Sua atuação política e científica foi decisiva para a criação e alcance internacional da instituição, na qual oficialmente ele não trabalhou – Schenberg foi afastado da USP pelo regime militar em 1969, um ano antes da inauguração do instituto. Em 3 de dezembro, uma homenagem ao centenário de seu nascimento reuniu alguns ex-alunos de Schenberg, como o físico Ernst Hamburger, professor emérito da USP e um dos pioneiros da divulgação científica brasileira. “Schenberg era um professor de visão intelectual muito ampla”, disse Hamburger.

PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 39


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Wataghin com aparelho em avião da FAB para medir raios cósmicos na altitude, em 1940

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primeiros assistentes foram alunos recém-formados na Escola Politécnica que convenceu a se dedicarem à física: Schenberg, Paulus Aulus Pompeia e Marcelo Damy de Souza Santos. Pompeia, Damy e Wataghin fizeram uma série de experiências para detectar raios cósmicos — partículas subatômicas criadas na colisão de núcleos atômicos vindos do espaço com núcleos da atmosfera terrestre. A descoberta de que partículas chamadas de mésons eram criadas em uma série de colisões em cascata no céu repercutiu na comunidade científica internacional já nos anos 1930. “A escolha de Wataghin foi perfeita”, avaliou Silvio Salinas, físico da USP, referência nacional em estudos teóricos de mecânica estatística, disciplina que aprendeu inicialmente com Schenberg. “Estudar raios cósmicos era a melhor maneira na época de se buscar por novas partículas elementares.” Damy coordenou a construção do primeiro acelerador de elétrons de grande porte do país e fundou centros de pesquisa em física nuclear em vários centros de pesquisa do Brasil. Um de seus alunos, o físico César Lattes, teve um papel fundamental na descoberta de uma nova par-

tícula, o píon, que deu o Prêmio Nobel de Física de 1950 ao inglês Cecil Powell. A equipe de outro aluno de Damy, o físico Oscar Sala, projetou e construiu dois novos aceleradores de partículas nucleares, considerados tecnologia de ponta nos anos 1950 e 1970. O último deles é o acelerador Pelletron, que funciona até hoje no Instituto de Física. MUITA ENERGIA

O Pelletron passou recentemente por reformas que agora permitem ao grupo de pesquisadores liderado pelo físico Rubens Lichtenthäler Filho criar núcleos atômicos exóticos, uma das atuais fronteiras da física nuclear. Para estudar fenômenos subatômicos ainda mais energéticos, pesquisadores do IF-USP vêm há décadas se associando a colaborações internacionais em torno de aceleradores de partículas mais potentes, como o grupo liderado pelo físico Alejandro Szanto, que colabora na análise de dados e no projeto de novos instrumentos para experiências no acelerador LHC, o mais poderoso do mundo, instalado na fronteira da França com a Suíça pela Organização Europeia para Pesquisas Nucleares (ver Pesquisa FAPESP nos 177 e 213).

FOTOS 1 IF-USP  2 EDUARDO CESAR

“No início dos anos 1950, ele percebeu que a eletrônica seria a base da tecnologia do futuro e usou sua influência política para convencer a USP a adquirir um computador da IBM e a montar um laboratório de física do estado sólido.” Entre os alunos dos alunos de Schenberg, estava lá o físico Adalberto Fazzio, atual diretor do instituto e coordenador de um dos principais grupos de pesquisa em física atômica e molecular no país. Aproveitando o encontro, pesquisadores expuseram os resultados mais recentes de seus trabalhos em áreas como nanotecnologia e spintrônica, um novo campo da eletrônica (ver Pesquisa FAPESP nº 192). Schenberg foi um dos membros de uma primeira turma excepcional de físicos, recrutada pelo físico de origem ucraniana Gleb Wataghin. Em 1934, Wataghin era professor e pesquisador na Itália quando aceitou o desafio de vir para o Brasil e criar o departamento de física da recém-inaugurada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Um ano depois ele publicou sozinho o primeiro artigo de um físico da USP em uma revista científica internacional, a Physical Review, sobre as propriedades térmicas das partículas elementares. Seus


Físicos teóricos e matemáticos querem entender a essência do simples e sistemas complexos como a linguagem humana

Schenberg se destacou dos outros discípulos de Wataghin por suas habilidades matemáticas. Sua fama internacional, aliás, vem de apenas dois artigos escritos em 1940 nos Estados Unidos, um deles em parceria com George Gamow e o outro com Subramanyan Chandrasekhar. Os dois trabalhos formam os pilares da teoria da astrofísica, cujos resultados são usados até hoje por astrônomos para entender o fim da vida das estrelas de grande massa. Schenberg dedicou a maior parte de sua carreira aos métodos matemáticos da física e a relações entre a mecânica quântica, o eletromagnetismo e a teoria da relatividade geral, realizando tentativas originais de unificar essas teorias. Objetivos semelhantes são perseguidos hoje por físicos teóricos e matemáticos da USP, que, além da busca pela essência do simples e fundamental, se aventuram em pesquisas transdisciplinares para tentar entender sistemas complexos como a linguagem humana (ver Pesquisa FAPESP nº 210). A física experimental se diversificou. Do primeiro laboratório de física do esta-

do sólido e baixas temperaturas da USP, inaugurado em 1962 por iniciativa de Schenberg, bem como da consolidação da pós-graduação do instituto nos anos 1970, nas décadas seguintes brotaram novos laboratórios e grupos teóricos atuando em diversas áreas: de manipulações inéditas de partículas quânticas de luz à física das partículas de gás e poeira na atmosfera que influenciam as mudanças climáticas globais, passando pela aplicação da física à medicina, à caracterização de novos materiais e moléculas biológicas, até a busca pela geração de energia limpa por fusão nuclear (ver Pesquisa FAPESP nos164, 217 e 214). Da iniciativa do físico Sérgio Mascarenhas, que enxergou o potencial de transformação tecnológica da física de materiais, se desenvolveu nos anos 1960 o Instituto de Física da USP de São Carlos. Em seus laboratórios se trabalha em estados inéditos da matéria, resfriada quase ao zero absoluto, e se exploram novos fenômenos quânticos com potencial de revolucionar a computação (ver Pesquisa FAPESP nos162 e 220).

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Ribras: equipamento único no hemisfério Sul ajuda a entender as reações ocorridas há bilhões de anos nas estrelas supernovas PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 41


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O antigo laboratório criado por Schenberg permanece na vanguarda, colaborando com mais onze laboratórios do Instituto de Física, da Escola Politécnica e do Instituto de Química (IQ) da USP para desenvolver tecnologias microscópicas, na escala de milionésimos de milímetros, a chamada nanotecnologia. “Toda a caracterização das propriedades físicas das nanopartículas desenvolvidas no IQ são feitas no Instituto de Física e na Poli”, diz Fazzio, que coordena a colaboração em parceria com o químico Henrique Toma, do IQ. EM FERMENTAÇÃO

Junto com o químico Koiti Araki, Toma coordena um laboratório de nanotecnologia onde já se produziu uma molécula que se organiza espontaneamente para formar um filme fino usado como sensor para monitorar a qualidade da produção de vinhos, e um novo tipo de nanopartícula que se conecta a enzimas usadas em processos químicos biotecnológicos, permitindo que as enzimas sejam controladas por campos magnéticos, au42 ESPECIAL 80 ANOS USP

mentando a eficiência de suas reações (ver Pesquisa FAPESP nº 60). Toma iniciou sua carreira na USP em seu doutorado sob a orientação de John Malin, um dos pós-doutorandos norte-americanos que vieram trabalhar no IQ no início dos anos 1970, chefiados pelo canadense Henry Taube, que ganharia o Prêmio Nobel de Química em 1983. Taube e sua equipe se estabeleceram na USP por alguns anos, formando alunos brasileiros e iniciando linhas de pesquisa novas no país, por meio de um programa conjunto do CNPq com a Academia Norte-Americana de Ciências (NAS, na sigla em inglês), idealizado pelo químico Carl Djerassi, famoso por sintetizar uma das moléculas da primeira geração de pílulas contraceptivas. O programa foi apoiado pela FAPESP. Entre os pós-docs trazidos por Taube estava Simon Campbell, que mais tarde descobriria a substância-base do Viagra. “Aprendemos como um time de químicos de primeira linha trabalhava”, diz Toma. Depois do sucesso do programa CNPq/NAS em São Paulo e no Rio de Ja-

neiro, os químicos do país se mobilizaram para a implantação de um programa similar em larga escala, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), do CNPq. “A partir do PADCT, a química explodiu no Brasil, alcançando nível internacional”, afirma. Antes disso, de acordo com Toma, a química ainda era muito tímida na USP, em comparação com a física. Os alemães Heinrich Rheinboldt e Heinrich Hauptmann iniciaram o curso de química da FFCL em 1935, montando laboratórios de demonstração improvisados no anfiteatro da Faculdade de Medicina. O Departamento de Química da FFCL funcionou em salas no palacete da alameda Glete de 1939 a 1965, quando os departamentos de química da FFCL, da Faculdade de Farmácia Bioquímica e da Escola Politécnica transferiram seus laboratórios para o chamado Conjunto das Químicas, um complexo de prédios interligados na Cidade Universitária, que abriga hoje o IQ, criado em 1970. Hoje, os pesquisadores trabalham com equipamentos que aplicam técnicas va-

FOTOS 1 ACERVO DE FAMÍLIA  2 ICASSIUS STEVANI/USP

O início da Química: o palacete da alameda Glette, 463, em 1927


riadas como simulações em computador e espectroscopia em experiências com quase todos os elementos químicos da tabela periódica. A equipe do químico Claudimir do Lago, por exemplo, desenvolve técnicas de análise química miniaturizadas que podem um dia realizar exames de sangue detalhados com apenas uma gota. Outros grupos de pesquisadores sintetizam substâncias luminescentes à base de terras raras e plásticos e géis com propriedades terapêuticas para uso em próteses e curativos em medicina. Equipes do IQ, do Instituto de Química da USP em São Carlos e do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto desenvolvem projetos com o enfoque conhecido como química verde, voltado a tornar processos industriais mais econômicos e menos poluentes (ver Pesquisa FAPESP nos 86, 161, 83 e 190).

a química Vanderlan Bolzani, chefia um doenças respiratórias no município de centro de produtos naturais no Instituto Cubatão, em São Paulo, nos anos 1980. de Química da Universidade Estadual Um dos ex-alunos de Bechara, Cassius Stevani, pesquisa atualmente as mesmas Paulista (Unesp) em Araraquara. A bioquímica moderna brasileira ga- reações químicas para desvendar como nhou força por meio de outra iniciativa, fungos bioluminescentes geram sua luz, o programa Bioq/FAPESP, que finan- um conhecimento que poderia servir para ciou a vinda de professores visitantes a produção de sensores químicos de cone projetos de pesquisa de 1970 a 1978. trole de poluição ambiental (ver Pesquisa Os projetos eram avaliaFAPESP nºs 92 e 168). Muitos outros grupos dos por uma comissão de pesquisa cresceram que incluia o bioquímico e se multiplicaram deMarshall Nisenberg, Prêmio Nobel de Medicina Um grupo da pois do Bioq/FAPESP, e Fisiologia de 1968. Foi como os liderados pelos com o auxílio do Bioq, por Química faz discípulos do biólogo e exemplo, que a equipe de bioquímico Franscisco substâncias Walter Colli, bioquímico Lara: Rogério Meneghido IQ, descobriu e descre- luminescentes ni, Walter Terra e Huveu as moléculas de açúgo Armelin. Meneghini descobriu detalhes imcar que ajudam o organis- e géis para uso portantes sobre a estrumo causador da doença de Chagas, o Trypanoso- em próteses tura e funcionamento do DNA, enquanto seu ma cruzi, a se instalar em e curativos cole-ga Sérgio Verjoski células humanas. PROTOZOÁRIOS E GENES continua a explorar a atiFoi também por meio Na mesma época do programa CNPq/ NAS, iniciativas da FAPESP fortalece- desse programa que o quívidade de milhares de geram a química em São Paulo. Inaugura- mico Giuseppe Cilento nes sobre doenças como câncer de próstata (ver do em 1967, o Laboratório de Química desenvolveu experimende Produtos Naturais ganhou projeção tos pioneiros de geração química de luz Pesquisa FAPESP nº 74). Terra e seus cointernacional com o bioquímico Otto por organismos vivos. Anos mais tarde, laboradores desvendam a relação entre a Gottlieb, que dirigiu o laboratório até um dos ex-alunos de Cilento e professor bioquímica de insetos transmissores de 1990. Gottlieb foi indicado duas vezes do IQ, o bioquímico Etelvino Bechara, doenças para seres humanos e pragas na ao Prêmio Nobel por sua descoberta de ajudou a provar que reações químicas agricultura. Armelin estuda a química uma classe de substâncias vegetais com provocadas por radicais livres da polui- envolvida no crescimento e ciclo de vida propriedades anti-inflamatórias, as ne- ção industrial eram as responsáveis pe- das células de animais. Mari Cleide Sogayar, uma das discíoligninas. Uma das alunas de Gottlieb, lo aumento de casos de anencefalias e pulas de Armelin, coordena o Núcleo de Terapia Celular e Molecular (Nucel), cuja equipe desenvolveu microcápsulas que aumentam drasticamente as chances de sucesso do transplante de células do pâncreas para pacientes diabéticos (ver Pesquisa Fapesp nº 182). Transferido em 2012 do IQ para a Faculdade de Medicina da USP, o Nucel funciona agora em um prédio construído ao lado do Hospital Universitário, com o objetivo de se tornar um centro de referência internacional em pesquisas de medicina translacional. Uma das jovens colaboradoras de Sogayar no Nucel, a pós-doutora Ana Claudia Carreira, que concluiu seu doutorado com Verjovski em 2006 e já é considerada pesquisadora de nível 1A pelo CNPq, busca novas terapias com biofármacos e células-tronco. 2 A nova geração de excelência parece estar garantida. n Mycena fera: cogumelos brilham o tempo todo, mas são vistos somente no escuro PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 43


CIÊNCIAS EXATAS E DA TERRA / ASTRONOMIA E GEOCIÊNCIAS

Sobre um passado sólido Carlos Fioravanti

Na vanguarda da astrofísica mundial: o telescópio Soar e o Gemini (ao fundo), nos Andes, ambos com participação brasileira

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Geofísicos, geólogos, geógrafos e astrofísicos trabalham em conjunto para conhecer melhor o interior, a superfície e o exterior do planeta

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RICARDO ZORZETTO

o início da tarde de 17 de novembro de 2014, Igor Gil Pacca encontrou Gelvam Hartmann em um dos corredores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) e, com delicadeza, antes de qualquer pergunta, lhe disse: “Estou vendo suas figurinhas”. Pacca, aos 85 anos, um dos mais antigos professores do instituto – “Venho para cá todos os dias” –, se referia a um artigo científico que estavam preparando, mas seu comentário, de modo mais profundo, expressava uma rede de pessoas, desejos, máquinas e instituições que começaram a se encadear há pelo menos meio século. Hartmann, um físico de 35 anos agora no pós-doutorado, trabalha em paleomagnetismo, uma técnica de análise das variações do polo

PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 45


magnético da Terra e de determinação dos polos magnéticos das rochas há milhares ou milhões de anos. Como integrante da equipe de seu ex-orientador de doutorado, Ricardo Trindade – cuja orientadora de doutorado, Márcia Ernesto, fez o doutorado sob orientação de Pacca –, Hartmann passa boa parte de seu tempo no laboratório de paleomagnetismo, examinando amostras de tijolos para descobrir, confirmar ou corrigir as datas das construções do Brasil e de países vizinhos, associando-as com as respectivas intensidades magnéticas. Em um de seus trabalhos, ele concluiu uma possível data – entre 1561 e 1591 – para uma das mais antigas construções do Brasil, a Catedral de São Salvador, na capital da Bahia (ver Pesquisa Fapesp nº 185). Pacca foi um dos primeiros pesquisadores a ingressar nesse campo, na década de 1960, quando novas ideias, como a teoria das placas tectônicas, davam consistência à geofísica. Ele ainda estava no Instituto de Física, onde havia feito a graduação e o doutorado, com Cesar Lattes. Já como professor, ele montou um dos primeiros laboratórios de paleo-

magnetismo no Brasil, em 1971, no Insti- em uma casa na avenida Paulista, ao latuto de Física da USP. Dois anos depois, do do atual Museu de Arte de São Pauele reinstalou os equipamentos no IAG, lo – onde o sismógrafo não funcionava para onde se mudou, como professor, direito por causa dos bondes cruzando a convidado pelo primeiro rua –, até ganhar um esdiretor, Giorgio Giacaglia, paço mais adequado, no para formar um grupo de Parque da Água Funda. pesquisas em geofísica. Pacca participou da PROMESSA CUMPRIDA criação e da estruturação “Abrahão, No final dos anos 1960, do IAG, cujas origens reo então diretor Abrahão de Moraes queria aprometem ao interesse do ge- vou lutar por ólogo norte-americano Orveitar a reforma univeraquele ville Derbi, do engenheiro sitária para transformar Theodoro Sampaio, do bo- instituto que o IAG de instituto comtânico sueco Alberto Loefplementar em unidade de ensino, mas morreu gren e de outros homens à você queria”, em 1970. “No enterro do frente da Comissão GeoAbrahão de Moraes, o gráfica e Geológica em es- disse o reitor, reitor Miguel Reale cotudar o clima do estado de em 1970 São Paulo, no final do sécumentou: ‘Abrahão, vou lutar por aquele instilo XIX, para identificarem as terras mais favoráveis ao tuto que você queria’”, cultivo do café. Os equipadisse Pacca, que testementos meteorológicos e astronômicos munhou a cena. “Grande parte da exisforam instalados em uma torre de ma- tência do IAG como unidade de ensino deira do Jardim da Luz, depois no teto da e pesquisa da USP”, acrescentou, “está Escola Normal, na praça da República, e ligada a esse discurso e a esse momen-

O início das medições: estação meteorológica na torre do Jardim Botânico da Luz, em operação de 1888 a 1894

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FOTOS  INSTITUTO ASTRONÔMICO E ASTROFÍSICO – PAULO MARQUES DOS SANTOS

O IAG em espaço próprio: um dos prédios do Observatório Astronômico de São Paulo em 1947, no bairro da Água Funda

to”. O IAG ganhou o desejado status de unidade de ensino e pesquisa da USP logo depois, em 1972. Logo depois, Pacca convidou o físico Marcelo Assumpção, então no Instituto de Física, para ser contratado no IAG, em seguida fazer doutorado em sismologia na Universidade de Edimburgo, na Escócia, e depois reforçar o grupo de professores de geofísica do IAG. Assumpção foi, voltou e deu muitas aulas. Como pesquisador, examinou, entre outros temas, a variação da espessura da crosta terrestre no território brasileiro, em conjunto com colegas de outras universidades do Brasil, reunindo informações que ajudam a prever e a explicar a ocorrência de terremotos. Uma de suas ocupações atuais é o fortalecimento da rede sismográfica brasileira, formada por instituições de vários estados, em fase final de instalação, para monitorar os tremores do território nacional e gerar informações sobre a estrutura interna da terra. Recém-saídos da graduação em matemática, Pedro Leite da Silva Dias e sua futura esposa, Maria Assunção Faus da Silva Dias, também saíram para fazer pós-graduação, neste caso em ciências atmosféricas nos Estados Unidos, para depois reforçarem o corpo de professo-

res do IAG. Os dois se tornaram líderes de grupos de pesquisa em meteorologia e mudanças climáticas. Além do intenso trabalho científico, Dias é diretor do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. Depois de sete anos no cargo, sente falta de seu papel de professor e aguarda o momento de volta à sala de aula. “A USP é o que existe de mais próximo da fonte da juventude”, ele comentou. “Dar aulas e descobrir novos talentos! E cultivá-los...” OLHANDO LONGE

Em 1974, recém-formado em física, João Evangelista Steiner começou o mestrado com José Antônio de Freitas Pacheco, um dos físicos que Abrahão de Moraes enviou para fazer a pós-graduação na França. Depois de voltar, Pacheco criou a pós-graduação no IAG, “um passo relevante, que acelerou o fortalecimento da astrofísica, porque os estudantes não tinham mais necessariamente de sair do Brasil para fazer a pós”, disse Steiner, que se tornou um dos líderes da organização da pesquisa atual nessa área no país. Ao voltar do pós-doutorado nos Estados Unidos em 1982, Steiner entrou em longas batalhas pela melhora das con-

dições de infraestrutura dos estudos astronômicos. A primeira foi a criação do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), “para todos os astrofísicos do país usarem, em igualdade de condições”, disse ele. “O LNA viabilizou a formação de uma comunidade forte de astrofísicos, que facilitou a entrada do Brasil em dois telescópios internacionais, o Gemini e o Soar, que estão hoje na vanguarda da pesquisa astronômica.” Steiner, ao lado de Jacques Lepine, da USP, e de colegas de outras instituições, participou das negociações da participação brasileira nos observatórios Gemini e Soar, ambos em funcionamento no Chile. “Estamos agora começando uma nova etapa da astrofísica brasileira”, diz Steiner, referindo à construção do Giant Magellan Telescope (GMT), que começará a ser construído em 2015, nos Andes chilenos, com apoio financeiro da FAPESP, e deverá entrar em pleno funcionamento em 2021, com uma área coletora de luz 100 vezes maior e uma resolução espacial 10 vezes maior que o telescópio espacial Hubble. “Estamos deixando uma herança para as próximas gerações de astrofísicos.” Há vários exemplos de como os pesquisadores do Departamento de Astrofísica do IAG olham longe. Beatriz Barbuy PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 47


identificou algumas das estrelas mais antigas da Via Láctea, com idade de 12,5 bilhões de anos, e Augusto Damineli, depois de trabalhar com obstinação durante décadas, elucidou a estrutura da estrela Eta Carinae e, com sua equipe, as possíveis razões da perda de seu brilho, a cada cinco anos e meio (ver Pesquisa FAPESP nos 203, 206 e 191). AS IDADES DA AMÉRICA DO SUL

Muitos professores do IAG colaboram com os do Instituto de Geociências (IGc), nascido do curso de geologia, oferecido no palacete da alameda Glete, 463, uma das primeiras instalações da USP, e formalizado em 1969 como unidade de ensino independente, já no campus da Cidade Universitária, em São Paulo. “Começamos juntos”, diz Umberto Cordani, geólogo que deu aulas nos primeiros tempos do IAG enquanto ajudava a criar os primeiros laboratórios do seu próprio instituto, o IGc. Cordani ainda trabalha muito, aos 76 anos. Em julho, foi a Rio Branco, no Acre, para, com base nos trabalhos de Marcelo Assumpção, falar em uma das apresentações da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) sobre os terremotos de foco profundo, que se originam a 600 quilômetros (km) abaixo da superfície e podem ser sentidos pelos moradores do oeste da Amazônia. Cordani acompanha estudos como o de seu estudante de doutorado Carlos Ganade de Arau-

jo, atualmente pesquisador do Serviço ra, com os grupos de Thomas Fairchild, Geológico do Brasil, cuja tese resultou ClaudioRiccomini e Marly Babinski, em um artigo na Nature Communication entre outros. publicado em outubro deste ano. Nesse Em 1964, Cordani e Kawashita eram trabalho, Araujo, Cordani e outros geólo- praticamente recém-formados quangos propõem que a erosão de uma cadeia do entraram na primeira equipe do de montanhas com pelo menos 2.500 recém-inaugurado laboratório de geokm de extensão ao longo do Nordeste cronologia, hoje Centro de Pesquisas brasileiro e da África Ocidental pode- Geocronológicas do IGc, implantado ria ter gerado os nutrientes necessários na alameda Glete por meio de um finanpara a até agora pouco ciamento concedido pela explicada explosão de National Science Foundaformas de vida ocorrida tion (NSF), dos Estados há 600 milhões de anos. Unidos, a John Reynolds, As amostras de roda Universidade da Calichas da África e do Bra- A classificação fórnia em Berkeley. “O laboratório foi o embrião sil usadas nesse trabade tudo o que aconteceu lho foram analisadas no de relevo de depois, e depois foi muita Laboratório de GeocroRoss sucedeu coisa”, disse Cordani. nologia de Alta ResoluPor meio de datações ção, um prédio de vidros a de Ab’ Saber, de amostras de rochas e espelhados à direita da medidas de paleomagneentrada do IGc, mais que sucedeu a conhecido pela sigla tismo, pesquisadores do Shrimp, de Sensitive Hi- de Azevedo, IGc, incluindo Benjamim Bley de Brito Neves, Wilgh Resolution Ion Mitodos da USP croprobe. Inaugurado son Teixeira e Colombo em 2010, o laboratório, Tassinari, e do IAG, coum dos mais sofistificamo Igor Pacca e Manoel D’Agrella, reconstituíram dos da América do Sul para datação de minerais, representa a a história geológica de supercontinentes continuação de uma linha de trabalho antigos hoje desfeitos, como Rodínia e que ele e o físico Koji Kawashita come- Gondwana, e da ainda visível América çaram a formar há 50 anos, a geocrono- do Sul, formada a partir de núcleos rologia, e hoje constitui uma das linhas chosos de 3 bilhões a 3,5 bilhões de anos, principais do instituto, em pararelo a hoje localizados na Bahia e no Pará, aos outras, como a de vida primitiva na Ter- quais se avizinharam outros, mais novos, de 600 milhões de anos, que hoje formam grande parte do Nordeste, Sudeste e Sul brasileiros, e outros ainda mais recentes, de 10 milhões de anos, como os encontrados no arquipélago de Fernando de Noronha (ver Pesquisa FAPESP nº 188). CLIMAS DO PASSADO E DE HOJE

Equipamento único na América do Sul: Shrimp, usado para determinar a idade de minerais

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Pesquisadores do IGc trabalham também com colegas dos institutos de Biologia e de Oceanografia com o propósito de reconstituir a variação do clima na América do Sul em uma escala de tempo mais modesta, os últimos milhares de anos. O geólogo Francisco Cruz, representante da nova geração de professores e pesquisadores do IGc (foi contratado em 2009), examina a variação da proporção de isótopos de oxigênio de rochas de cavernas para ver, por exemplo, as oscilações da pluviosidade de acordo


FOTOS  LÉO RAMOS

com a insolação de verão e as condições climáticas sobre os oceanos de milhares de anos até poucas décadas atrás (ver Pesquisa FAPESP nº 111). Quem trabalha com o clima atual não pode esquecer de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, geógrafo que ajudou a criar as bases da climatologia no Brasil, sintetizadas no livro Clima e excepcionalismo (Ed. UFSC, 1991). Esse e outros livros resultam de 40 anos de trabalho pioneiro, concluídos em 1987, quando Monteiro se aposentou da USP (ver Pesquisa FAPESP nº 171). Com raízes francesas – os primeiros professores foram Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig, ainda na década de 1930 –, o Departamento de Geografia da USP continua abrigando pesquisadores e professores que examinam não apenas o clima, mas também as formas e as possibilidades de ocupação do território nacional, por meio de mapeamentos ou de abordagens conceituais como as oferecidas pelo geógrafo Milton Santos (morto em 2001 aos 75 anos) em uma série de livros como A natureza do espaço (Hucitec, 1996) e, em paralelo, por Antonio Carlos Robert de Moraes, outro autor de livros hoje considerados indispensáveis como Geografia: pequena

história crítica (Hucitec, 1994) e Ideologias geográficas – Espaço, cultura e política no Brasil (Hucitec, 1988). AS FORMAS DO RELEVO

Nos próximos meses, o governo do Paraná deve apresentar o plano de zoneamento ecológico e econômico, definindo as áreas do estado que poderão ser ocupadas por indústrias, agropecuária e cidades, “com base nas potencialidades e fragilidades de cada região”, comentou Jurandyr Ross, geógrafo e professor da USP que participou da equipe responsável por esse trabalho. Ross começou a trabalhar como professor contratado em novembro de 1982, ocupando a vaga e o laboratório de geomorfologia deixados por Aziz Ab’ Saber ao se aposentar três meses antes (Ab’ Saber morreu em 2012). Aproveitando o conhecimento adquirido ao longo de 15 anos no projeto Radambrasil, um mapeamento pioneiro de todo o território nacional, Ross refez a classificação do relevo do Brasil e em 1990 publicou sua própria versão, mais detalhada que a de Ab’ Saber, bastante disseminada a partir de 1958, por sua vez sucedendo uma anterior, dos anos 1940, de Aroldo de Azevedo, professor da USP e autor

Professores d ​ o IGc e IAG​​que formaram muitas gerações: (em pé, da esquerda para a direita) Celso de Barros Gomes, Vicente Antonio Vitorio Girardi, Adolpho José Melfi, Antonio Carlos Rocha Campos, Georg Robert Sadowsky, Benjamim Bley de Brito Neves, Umberto Giuseppe Cordani e Igor Ivory Gil Pacca; (sentados) Setembrino Petri, Kenitiro Suguio, Marta Silvia Maria Mantovani, José Moacir Vianna Coutinho e Jorge Silva Bettencourt

de livros didáticos muito usados no ensino básico. Ross criou uma classificação das formas de relevo, com seis táxons ou unidades de classificação, das mais gerais às mais específicas. Essa abordagem foi aplicada inicialmente no mapeamento geomorfológico do estado de São Paulo, com sua colega da USP Isabel Cristina Moroz, e apresentada em 1998 (ver Pesquisa FAPESP nº 35). “Essa taxonomia de relevo foi usada depois no mapa geomorfológico do estado do Paraná e na bacia do Alto Paraguai”, disse Ross, que nos anos seguintes foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, onde às vezes encontrava seu colega Robert de Moraes, também consultor, em mais uma indicação de que o conhecimento gerado na USP espalhava-se pelo país. n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 49


OCEANOGRAFIA

Reforço duplo: o Alpha Delphini (menor) ao lado do Alpha-Crucis, ancorados no porto de Santos

De volta ao mar

O

Carlos Fioravanti e Fabrício Marques

dia 30 de maio de 2012 no porto de Santos, litoral paulista, marcou o início de uma nova etapa da pesquisa oceanográfica paulista. Nesse dia foi apresentado publicamente e inaugurado o navio oceanográfico Alpha-Crucis, adquirido pela FAPESP para o Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo (USP). O novo navio substituirá o Professor W. Besnard, o primeiro navio oceanográfico da USP, que realizou dezenas de viagens, incluindo seis à Antártida nos anos 1980, de 1967 até 2008, quando foi desativado. A história da compra do Alpha-Crucis começou em 2009, quando Michel Mahiques as-

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sumiu a direção do IO e encontrou um cenário desanimador: o Prof. Besnard tinha sofrido um incêndio e estava fora de operação. Como reformá-lo não era viável e não havia dinheiro para comprar um navio novo, Mahiques optou por comprar um navio usado e adaptá-lo para uso em pesquisa oceanográfica. Na 19ª visita a navios de pesquisa à venda em vários países, ele encontrou o Moana Wave, que havia servido à Universidade do Havaí, fora comprado por um estaleiro em Seattle, Estados Unidos, e alugado para a NOAA, agência federal norte-americana para meteorologia, oceanos, atmosfera e clima. O preço era razoável, US$


Novo navio oceanográfico impulsiona a pesquisa sobre clima, correntes marinhas, sedimentos e biodiversidade do litoral brasileiro

FOTOS  EDUARDO CESAR

Antes de partir: equipe prepara cilindros de coleta de água

O Alpha-Crucis partiu para seu pri4 milhões. Um grupo de engenheiros e tripulantes do IO visitou o navio quan- meiro cruzeiro internacional na tarde do estava ancorado no litoral do Chile e do dia 1º de dezembro de 2012. A bordo gostou do que viu. A FAPESP aprovou estavam 20 pesquisadores, liderados por o pedido de compra, com a contrapar- Edmo Campos, do IO, e 19 tripulantes. A tida de a USP assegurar a tripulação e viagem integrava um programa internaa manutenção. O custo final do navio cional chamado Samoc (South Atlantic foi de US$ 11 milhões, entre recursos Meridional Overturning Circulation), da FAPESP e da USP. cujo propósito principal era desenvolver Com 64 metros de e implantar um sistema de comprimento por 11 monitoramento das variametros de largura, o ções do transporte merinavio foi rebatizado dional de massa e calor – de Alpha-Crucis – a Areia e lama e do clima em geral – no estrela que representa Atlântico Sul. “Qualquer o estado de São Paulo do rio da Prata, variação na quantidade de na bandeira do Brasil calor no oceano, ainda que a 2 mil km –; reformado, ganhou ínfima, tem uma grande equipamentos novos e de distância, influência sobre o clima teve de vencer uma budo planeta”, disse Campos, pouco antes de partir para rocracia inimaginável chegam até a expedição. antes de zarpar de Se“Finalmente vamos meattle. “Às vezes, eu pen- o litoral de sava que não conseguidir a variabilidade da corSão Sebastião ríamos retirar o navio rente, em um projeto fidos Estados Unidos, nanciado por três países tantos foram os obstá[Brasil, Argentina e Estaculos que tivemos de dos Unidos] em um navio vencer”, recorda Mahiadequado”, comentou a ques. O IO, criado em 1946 como Insti- pesquisadora argentina Silvia Garzoli, tuto Paulista de Oceanografia, incorpo- cientista-chefe do laboratório oceânico rado à USP em 1951 como unidade de e meteorológico da NOAA. Era também pesquisa e transformado em unidade a primeira viagem do Alpha-Crucis para universitária em 1972, ganhou novo fô- coleta de amostras de água e de medições lego com o navio, usado por sua próprias de temperatura em águas profundas, com equipes, de dois programas da FAPESP, até seis quilômetros abaixo da superfície o de Mudanças Climáticas Globais e o (ver Pesquisa FAPESP nº 203). Mahiques liderou uma das expedições, Biota-FAPESP, e de outras instituições paulistas (ver Pesquisa FAPESP nº 195). em fevereiro de 2013, para coletar sedi-

mentos do fundo marinho, ao longo do litoral paulista, para resgatar a história climática, ambiental e evolutiva da região. Ele e pesquisadores da Alemanha e do Uruguai verificaram que os grãos finos de areia, a lama e o material orgânico, carregados pelo rio da Prata e embalados pelas correntes marinhas, viajam quase 2 mil quilômetros e chegam até o litoral de São Sebastião (ver Pesquisa FAPESP nos 206 e 215). Um ano depois de entrar em operação, o Alpha-Crucis ganhou o reforço do barco oceanográfico Alpha Delphini, construído inteiramente no estaleiro Indústria Naval do Ceará (Inace), também com apoio da FAPESP, para aumentar a capacidade de pesquisa em oceanografia no estado. Em julho de 2013, um mês antes de chegar a São Paulo, o Alpha Delphini fez sua primeira expedição científica no litoral de Pernambuco, entre a ilha de Itamaracá e o arquipélago de Fernando de Noronha, passando pela zona costeira de Recife. O objetivo da expedição foi avaliar o papel das regiões oceânica e costeira de Pernambuco como absorvedoras ou liberadoras de carbono e identificar quais zonas atuam de uma forma ou de outra. As equipes do Instituto Oceanográfico investigaram, ainda, outros temas, como as correntes marítimas, a evolução geológica e os impactos da poluição nas águas da ilha de São Sebastião, a origem e as consequências da erosão das praias e a diversidade de baleias e golfinhos ao longo do litoral paulista (ver Pesquisa FAPESP nºs 51, 92 e 218). n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 51


TECNO Primeiro chip feito no país foi elaborado por alunos e professores da engenharia elétrica da USP 52 _ ESPECIAL 80 ANO USP


LÉO RAMOS

LOGIA PESQUISA FAPESP MAIO DE 2014

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ENGENHARIAS

Estruturas do conhecimento Evanildo da Silveira e Marcos de Oliveira

Engenharia naval: tanque reproduz condiテァテオes do mar em escala reduzida para testes de plataformas e navios

54窶ウSPECIAL 80 ANOS USP


Politécnica promove soluções tecnológicas para o desenvolvimento do país

linhada às demandas de desenvolvimento tecnológico do país, a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) buscou conhecimento e soluções para os temas da atualidade em cada fase dos seus 120 anos de existência. Hoje, o atual tema da sustentabilidade é frequente em seus 103 laboratórios e 15 departamentos. Principalmente na construção civil, a Poli tem projetos para que este setor tão dependente de matérias-primas com origem em recursos naturais possa se adequar aos novos tempos. O objetivo é que as empresas e os engenheiros civis possam incorporar práticas mais eficientes e limpas, para melhor aproveitar os insumos, reduzir os resíduos e o desperdício, além de reciclar produtos e sobras dos processos de construção.

Na consolidação dessas novas tendências está o Departamento de Engenharia de Construção Civil (PCC) da Poli, que teve papel fundamental nesses últimos anos no caminho da sustentabilidade. Muitas das inovações da construção civil hoje usadas no Brasil são consequência do trabalho de seus pesquisadores. “Podemos citar a incorporação de fibras vegetais no lugar de amianto em telhas ou um novo tipo de cimento, desenvolvido no final da década de 1990, no qual a escória, um resíduo muito poluidor das usinas siderúrgicas, é a base da sua composição”, diz o engenheiro civil Vahan Agopyan, professor da Poli, hoje ocupando o cargo de vice-reitor da USP. Ele liderou esse trabalho feito com financiamento da FAPESP. A escória não tinha aproveitamento e se acumulava

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Pranchetas, esquadros, lápis e compasso, a engenharia civil antes dos computadores e ainda sem uma visão científica dos materiais, abordagem que viria depois dos anos 1970

à USP em 1934, tão logo a universidade foi criada. A tradição dos cursos e a excelência em pesquisa no país também premiaram outras três engenharias da Poli no ranking da Folha em 2014. Ficaram em primeiro lugar, além da civil, a engenharia elétrica, a mecânica e a química. No total, entre sete cursos de engenharia do ranking, a Poli ficou em primeiro lugar em quatro e em outros dois, em segundo, engenharia ambiental e de produção. No sétimo, de controle e automação, a Poli não se enquadra. SISTEMAS ELETRÔNICOS

Na elétrica, mais precisamente no Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos (PSI) existe uma grande variedade de projetos em andamento, como o do cardiochip (um chip para monitorar os sinais do coração), um circuito eletrônico que poderá colaborar para que surdos escutem, um software para celulares de baixo custo, além de uma infraestrutura de realidade virtual para a Marinha e um sistema de cinema 3D com movimentos integrados das cadeiras. Foi no PSI que começou, há mais de 40 anos, o desenvolvimento – quando o departamento ainda não tinha seu atual nome – dos primeiros circuitos integrados, mais conhecidos como chips, e até o primeiro computador nacional, batizado de “Patinho Feio”, sob a coordenação do professor Antônio Hélio Guerra Vieira.

Quem conhece bem essa história, porque fez parte dela, é o engenheiro eletrônico João Antônio Zuffo, graduado na Poli em 1963, na terceira turma do curso, e hoje professor aposentando, mas ainda em plena atividade. “Em 1960 havia sido criado o Departamento de Engenharia Elétrica com duas opções, eletrônica e eletrotécnica”, lembra. “Em 1962 e 1963 fui bolsista da FAPESP, como aluno.” Pouco depois, no final dos anos 1960 e início dos 70 foram criados os laboratórios de Microeletrônica (LME) e Sistemas Digitais (LSD) e, mais tarde, em 1975, o de Sistemas Integráveis (LSI), que existem até hoje. Antes disso, em 1971, Zuffo desenvolveu o primeiro chip brasileiro. “Era tão rápido quanto os mais rápidos existentes na época, mas não chegou a ser fabricado industrialmente, embora fosse viável”, conta. O ano de 1972 marca um trunfo do PSI, com a construção do Patinho Feio. Seu desenvolvimento começou com os professores do curso de engenharia elétrica. Foi montada uma oficina e a própria equipe fabricou os componentes e os circuitos integrados da memória do computador, que chegou a oito bits. A máquina foi apresentada ao público em julho de 1972. “Tanto o chip quanto o patinho não foram em frente porque na época não havia uma indústria para isso. Os investimentos necessários eram muito altos e deveriam vir de uma empresa”, diz Zuffo. No caso específico do LSI, o objetivo inicial foi o desenvolvimento mais acentu-

FOTOS 1 ARQUIVO ESALQ 2 MIGUEL BOYAYAN  3 LÉO RAMOS

em montes de até 30 metros de altura nos arredores das siderúrgicas, causando grandes problemas ambientais. Hoje esse tipo de cimento é largamente utilizado na construção civil. “Com o tempo, sua fabricação acabou com a escória que se amontoava pelo país”, conta. “A incorporação desse material ao cimento já existia em outros países, mas nós aqui fizemos um estudo no sentido de entender os aspectos químicos e o funcionamento da mistura do cimento com a escória.” A origem dessa nova atitude do setor de construção civil em relação à sustentabilidade é antiga. Segundo Agopyan data do início da década de 1970. “Nessa época houve uma mudança de abordagem, passando de uma visão empírica da construção civil para uma científica”, diz. “A partir daí, livros estrangeiros começavam pouco a pouco a trazer uma visão científica dos materiais. Quando fui fazer meu doutorado no King’s College, em Londres, entre 1979 e 1982, tive a oportunidade de ser um dos primeiros brasileiros a estudar com professores que tinham essa visão científica.” A primeira e principal consequência dessa mudança de abordagem foi os engenheiros passarem a entender os materiais de construção. “Começamos a estudar como o funciona o concreto, por exemplo. Com isso conseguimos aumentar sua resistência de 20 megapascais (MPa) para até 120 MPa [Pascal é a unidade padrão de pressão e tensão e equivale a força de 1 Newton (N) aplicada uniformemente sobre uma superfície de 1 m²], o que facilitou a construção de grandes prédios, como os que vemos em São Paulo. Essa marca aconteceu em paralelo em todo o mundo.” O que muda são os materiais e a matéria-prima usada em cada país. “Entre os trabalhos atuais está o estudo da otimização da produção de concretos objetivando a redução do consumo de cimento”, diz Agopyan. O ensino e a pesquisa na construção civil levaram a Poli a figurar em primeiro lugar no ranking de universidades brasileiras da Folha de S.Paulo em 2014. A civil é uma das tradições da Poli que teve como principal idealizador e primeiro diretor Antonio Francisco de Paula Souza, que ministrou aulas de resistência de material e estabilidade das construções logo na primeira turma da engenharia civil em 1894, um ano depois de ter sido implementada. A Poli foi incorporada


ado das pesquisas na pós-graduação, pareA adequação da Poli às deado com o que havia de mais avançado no mandas recentes do país estão mundo. “Quando fizemos nosso chip havia presentes também na exploraapenas 12 anos que o primeiro tinha sido ção do petróleo em águas profeito nos Estados Unidos”, lembra Zuffo. fundas e ultraprofundas, como “Não haviam muitos países fazendo isso. as do pré-sal. A parceria entre Nem o Japão tinha ainda uma indústria o Departamento de Engenhade microeletrônica.” Em suas bancadas ria Naval e Oceânica (PNV), da foram realizados os primeiros projetos Poli-USP, e a Petrobras contride realidade virtual e processamento de bui para o sucesso dessa explodados em paralelo. “Nesse último caso, o ração em mares fluminenses e resultado foi um supermicrocomputador paulistas. A criação do Tanque fabricado mais tarde pela Itautec”, conta. de Provas Numérico (TPN), em O sistema de TV digital do Brasil, que 2002, e a inauguração de um 2 se espalha por toda a América Latina, te- tanque físico, em 2009, chave forte contribuição do LSI, principal- mado de Calibrador Hidro- Patinho Feio foi o primeiro computador feito no Brasil com base mente para que o sinal pudesse ser capta- dinâmico (CH), semelhante em um projeto de pesquisa. Na engenharia elétrica foi montada do por celulares e outros a uma piscina uma oficina e os próprios alunos fizeram os componentes aparelhos móveis. A Caultrassofisticaverna Digital não tem essa da, de 14 por 14 metros, sadores e hoje temos cerca de 2.500”, conta abrangência, mas sua imcom quatro de profundi- Kazuo Nishimoto, que foi chefe do deparportância científica pode Simulações dade, capaz de produzir tamento de julho de 2010 a julho de 2014. ser até maior. É uma sala ondas e outras condições Antes de começar a exploração propriacom cinco lados de proje- no tanque do mar em escala reduzida mente dita, toda operação é simulada nos foram fundamentais para computadores do TPN, algumas calibradas ção – as quatro paredes, numérico são a Petrobras na explora- no CH e visualizadas numa sala de realimais o teto – acionada por um supercomputador pa- essenciais ção do petróleo da cama- dade virtual. No TPN, simula-se desde a ralelo, desenvolvido pelos da pré-sal, que pode estar ancoragem dos navios-tanque, conhecidos próprios pesquisadores na exploração a uma profundidade de sei por FPSOs (sigla em inglês para Floating do laboratório. Até seis quilômetros (km), da qual Production, Storage and Offloading), ou pessoas podem estar em do pré-sal pelo menos três km são de sistemas flutuantes de produção, armaseu interior e interagir lâmina d’água. Um siste- zenamento e descarga, em alto-mar por com um mundo simulama complementa o outro meio de linhas (riser), que os prendem ao e juntos são capazes de si- fundo do oceano, até a perfuração da cado por computador. Mas ela não é apenas uma curiosidade. Suas mular diversas condições ambientais e de mada de sal, abaixo da qual se encontra o aplicações se estendem a vários campos operação de navios e plataformas. “Exis- petróleo. “Sem o TPN e essas simulações de pesquisa, como engenharia, medicina, tem muitos tanques físicos na Noruega, seria impossível a exploração do pré-sal.” astronomia, astrofísica, biologia e quí- na Holanda e no Japão, porém não existe Antevendo a evolução da exploração mica e até entretenimento, como jogos, um laboratório que acople um físico e nu- marítima de petróleo, o professor Celio visualizações fotorrealísticas e filmes in- mérico como o cluster computacional que Taniguchi, então chefe do departamento, temos aqui. Começamos com 120 proces- cargo que ocupou de 1984 a 1992 – mais terativos. tarde ele viria a ser diretor da Poli de 1994 a 1998 –, firmou um acordo de cooperação com o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello (Cenpes) da Petrobras, para o desenvolvimento de tecnologia e de estruturas oceânicas para águas profundas. “Até então nosso departamento tinha foco na parte de navios”, lembra Nishimoto. “A partir do convênio com o Cenpes, começamos a trabalhar com as plataformas de perfuração e produção de petróleo em alto-mar, linhas para sua ancoragem e dutos submarinos de escoamento de óleo. Por essa razão, ainda em 1986 o PNV, que até então se chamava Departamento de 3 Engenharia Naval, ganhou o acréscimo da expressão ‘e Oceânica’.” n Em 1971, o primeiro chip feito no Brasil. Tão rápido quanto os chips fabricados na época PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 57


AGRONOMIA

Entre as melhores do mundo Dinorah Ereno

Cultivo de mudas de eucalipto in vitro no laboratテウrio de biotecnologia

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Esalq conquista o quinto lugar em ranking internacional de instituições de ciências agrícolas

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EDUARDO CESAR

ascida da inspiração e determinação de Luiz Vicente de Souza Queiroz, que em 1892 doou ao governo do Estado de São Paulo a fazenda São João da Montanha para que fosse criada uma escola agrícola – inaugurada oficialmente em 3 de junho de 1901 –, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) foi classificada, em novembro deste ano, como uma das cinco melhores faculdades do mundo na área de ciências agrícolas pela editora norte-americana U. S. News and World Report. À frente da Esalq ficaram a Wageningen University and Research Center, na Holanda, as universidades da Califórnia em Davis e Cornell, ambas nos Estados Unidos, e a Universidade da Agricultura da China. Entre os fatores que contribuíram para a classificação estão reputação global e regional, número de publicações e de citações, além de colaborações

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60 ESPECIAL 80 ANOS USP

FOTOS 1 ARQUIVO ESALQ  2 EDUARDO CESAR 3 HERALDO NEGRI / BUG

internacionais. No campus instalado em uma área de 3.825 hectares, que abriga 250 professores, 550 funcionários e mais de 3 mil alunos de graduação e pós-graduação, árvores altíssimas e construções centenárias remetem a uma viagem no tempo. Com mais de 13.900 profissionais formados, é a primeira instituição de ensino superior brasileira a superar a marca dos 11 mil engenheiros agrônomos. As ações e pesquisas desenvolvidas na universidade têm repercussão mundial. “Em alguns meses recebemos até 35 visitas de comissões estrangeiras de instituições de ensino e pesquisa, que querem conhecer os nossos trabalhos e aprender com o que fazemos aqui”, diz o professor Carlos Eduardo Cerri, presidente da 1 Comissão de Pesquisa da Esalq e espeAlunos da Esalq em sala de aula estudam pragas agrícolas, como a do algodoeiro cialista na área de ciências ambientais. “Recebemos o tempo todo convites para parcerias em projetos.” Algumas das tante contribuição da ins- tares de plantações em todo o Brasil são linhas de pesquisa desentituição para o agronegó- controlados com essa vespinha importada de Trinidad Tobago em 1971”, diz Parra. cio brasileiro. volvidas atualmente tive- Instituição ram início na década de O controle biológico, Outra pesquisa iniciada por Parra com a 1980. São séries históricas foi pioneira que utiliza inimigos natu- vespa parasitoide do gênero Trichogramde avaliações, a exemplo rais para reduzir a infesta- ma também na década de 1980 resultou em utilizar de estudos sobre o balanção de pragas em culturas no lançamento no mercado da T. galloi, agrícolas, é outra linha de nome em homenagem ao pioneirismo de ço de carbono do solo, da inimigos pesquisa em que a institui- Gallo, pela empresa Bug Agentes Biológivegetação e da água. Na biosfera terrestre o car- naturais para ção tem uma importante cos, de Piracicaba. contribuição, pelo seu pioEm 2012 a startup, criada em 2001 por bono pode estar fixado no solo, na água e na forma controlar neirismo e excelentes re- alunos de pós-graduação da Esalq, foi eleigasosa, quando constitui sultados. “O Departamento ta uma das 50 companhias mais inovadopragas um problema ambiental, de Entomologia e Acaro- ras do mundo, segundo ranking elaborado porque os gases de efeito logia tem tradição nessa pela revista norte-americana de tecnoestufa, como o dióxido de área”, diz o professor José logia Fast Company. A ação da T. galloi é carbono, o metano e o óxiRoberto Postali Parra, ex- diferenciada porque a vespa ataca os ovos do nitroso, contêm carbono e nitrogênio e -diretor da instituição e responsável pelo da broca-da-cana inoculando neles seus podem causar mudanças climáticas. Por laboratório de controle biológico, que faz próprios ovos e impedindo que o inseto, outro lado, atividades como a agricultura, parte do departamento. “Nas décadas de na sua fase de lagarta, ecloda e ataque a a silvicultura e a pecuária têm a capacida- 1940 e 1950, o professor Domingos Gallo planta. A inovação da Bug foi desenvolver de de retirar carbono da atmosfera. “São começou a trabalhar com moscas brasi- um método eficiente e economicamente muitos os fatores que interferem nesse leiras que parasitavam a broca-da-cana viável de multiplicar a espécie T. galloi. A cana-de-açúcar também está no fobalanço e precisamos estabelecer padrões (Diatraea saccharalis) para atacar um tipo para tentar ajudar a aprimorá-lo, com o de praga existente nos canaviais”, relata. co de pesquisas lideradas pela professora objetivo de sequestrar mais carbono da at- “Ele criou a cultura do controle biológico e Helaine Carrer, do laboratório de biotecmosfera e emitir menos gases”, diz Cerri. nós continuamos o seu trabalho.” Naquela nologia e coordenadora do Programa de Experimentos que avaliam o que entra e época, o controle era feito de forma arte- Pós-Graduação Internacional em Biolosai de carbono do solo, da vegetação e da sanal, com a soltura das moscas no campo. gia Celular e Molecular Vegetal da Esalq. água são feitos em diferentes regiões do O grupo de Parra desenvolveu dietas “Com a engenharia genética temos a pospaís. “Essa é uma contribuição da Esalq artificiais para criar o inseto no laborató- sibilidade de fazer alterações nas vias meque considero bastante importante, por- rio e também recorreu a outros inimigos tabólicas da planta e potencial de produzir que a partir de pesquisas realizadas no naturais de pragas da cana, que foram im- novas plantas, com características difepassado outras instituições também des- portados. Na década de 1980, ele come- renciadas”, ressalta. Uma das pesquisas pertaram para o assunto.” A introdução e çou a trabalhar com a Cotesia flavipes, conduzidas no laboratório resultou em adaptação de raças de animais para leite, uma vespinha que parasita ovos da broca. uma planta modificada geneticamente carne e ovos foram também uma impor- “Hoje, cerca de 3 milhões e 300 mil hec- mais tolerante ao estresse hídrico do que


as variedades usadas atualmente. “Ela conseguiu sobreviver à total falta de água por duas semanas a mais do que as variedades comerciais, um resultado bastante importante”, diz Helaine, que participa do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). As plantas geneticamente modificadas estão sendo testadas atualmente em casas de vegetação. Para conseguir resistência ao estresse hídrico, os pesquisadores utilizaram o gene da planta Arabidopsis. A introdução de novos genes nas plantas é feita com o auxílio da bactéria Agrobacterium tumefaciens, encontrada no solo. Na natureza, ela utiliza esse artifício para que a planta produza compostos de seu interesse. “Como essa bactéria não tem muita afinidade com plantas como a cana, o trigo e o arroz, podemos recorrer a outra estratégia para introduzir os genes dentro das suas células”, relata. Um processo físico é capaz de realizar essa tarefa. Fragmentos de DNA envoltos em finíssimas partículas de ouro são colocados em um equipamento e introduzidos dentro das células da cana em grande velocidade e, dessa maneira, se integram ao genoma da planta. As plantas obtidas dessa maneira carregam um novo gene. “A biotecnologia, uma das áreas relevantes na Esalq, tem contribuído para o desenvolvimento da agricultura”, ressalta Helaine. “É uma nova metodologia que vem agregar valores ao melhoramento genético clássico.” Na instituição, cerca de 20 laboratórios trabalham com biotecnologia, em estudos de genética, interação de plantas com insetos, microrganismos, formação de fibras nas plantas, resistência a doenças, estresse hídrico e bioquímica

da formação de compostos. Os indicadores de preços para commodities agrícolas, referência no mercado, são fruto de pesquisas diárias conduzidas pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), parte do Departamento de Economia, Administração e Sociologia, sobre as principais cadeias de matérias-primas agropecuárias e seus derivados. A Esalq conta com sete cursos de graduação – administração, ciências biológicas, ciências dos alimentos, ciências econômicas, engenharia agronômica, engenharia florestal e gestão ambiental – e 16 programas de pós-graduação, dos quais um deles, em bioenergia, com a USP, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Recentemente lançado, o primeiro programa de pós-graduação entre três universidades é uma linha de ação inovadora no estado de São Paulo”, diz Cerri. Como a USP foi escolhida para ser a universidade-sede, coube à Esalq abrigar o programa. A Esalq também abriga o Programa de Pós-graduação Internacional entre a USP e as universidades americanas Rutgers (New Jersey) e do Estado de Ohio. Cerri ressalta que, dos 16 cursos de pós-graduação, boa parte recebe nota máxima da Capes, entre 6 e 7, ou seja, são considerados de nível excelente. Entre eles estão os programas de pós em entomologia, genética e melhoramento de plantas, ciência animal e pastagem e solos e nutrição de plantas, com nota 7. “Temos orgulho desse resultado, fruto de conquistas obtidas ao longo dos anos.” Pioneira na implantação de programas de pós-graduação na USP, a Esalq iniciou seus cursos em 15 de setembro de 1964,

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Cotesia flavipes parasitando a broca-da-cana

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Diaphorina citri, inseto que ataca as plantações de laranja e causa a doença greening

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nas áreas de experimentação e estatística; fitopatologia; genética e melhoramento de plantas; mecânica, motores e máquinas agrícolas; nutrição de plantas; solos. Desde 1966, quando ocorreu a primeira defesa de mestrado, já foram outorgados mais de 5.500 títulos de mestrado e 2.700 de doutorado. “A Esalq tem algumas peculiaridades, que a aproximam de instituições de países desenvolvidos, como os Estados Unidos, que é a doação de grandes áreas para pesquisas feitas por ex-alunos”, diz Parra. Uma das fazendas doadas, por exemplo, na cidade de Londrina, no Paraná, tem 2 mil alqueires e 6 mil cabeças de gado. Outra área, nas proximidades do campus, tem 20 hectares preservados com espécies nativas. “Ela foi doada com a condição de que fosse utilizada para pesquisas pelos alunos de gestão ambiental”, diz. Os resultados obtidos em uma série de pesquisas conduzidas na instituição são utilizados para tomadas de decisões de políticas públicas. “Alguns programas do governo federal foram estabelecidos em função dos resultados de dissertações de mestrado, teses de doutorado e de publicações que saíram daqui da instituição, em grande parte com apoio da FAPESP”, diz Cerri. Um deles é o Programa para Redução da Emissão de Gases de Efeito Estufa na Agricultura – ou Programa ABC, destinado aos produtores rurais. “Também participamos na formatação de programas da FAPESP, como o de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, o Biota e o Bioen.” ■ PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 61


HUMAN  62 _ ESPECIAL 80 ANO USP


EVELSON DE FREITAS / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

IDADES

PESQUISA FAPESP MAIO DE 2014

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CIÊNCIAS SOCIAIS

O peso da sociedade Márcio Ferrari

Manifestações contra a Copa em Brasília: estudos para saber como a democracia funciona

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Núcleo fundador da USP, a FFLCH organizou e sistematizou a prática da pesquisa e mantém um diálogo intenso com o país

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se mantêm. Atualmente, o Departamento de Sociologia continua a desenvolver as linhas-mestras de que se ocuparam, nos anos 1950 e 60, Florestan Fernandes e seus discípulos Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, entre elas as relações raciais e o sindicalismo. “Naquele período estudavam-se os grandes temas, com uma abordagem macrossociológica – o preconceito racial, por exemplo, estava sendo ‘descoberto’ do ponto de vista acadêmico”, diz Brasílio Sallum, chefe do Departamento de Sociologia, graduado em 1970. “Agora as pesquisas se especializaram e restringiram seu escopo. As relações raciais são estudadas sob o aspecto das classes sociais ou da religião ou do trabalho, separadamente.” Na sociologia política, diz Sallum, privilegia-se a relação entre sociedade e Estado, como ele próprio fez

VALTER CAMPANATO / ABR

omo núcleo fundador da Universidade de São Paulo (USP), a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), criada em 1934, foi desde o início um centro de irradiação de metodologia e espírito investigativo, num país em que a atividade de pesquisa ainda era incipiente e desorganizada. Os cursos de sociologia e política (que passaram a ser departamentos com a reforma universitária de 1968 e o fim do sistema de cátedras), ainda que contassem entre seus fundadores com uma maioria de estrangeiros – ou em parte por isso mesmo –, tinham a preocupação de “descobrir o Brasil” de um ponto de vista científico e sistemático. Com tudo o que, nesses 80 anos, mudou no país e em suas possíveis abordagens, dentro e fora da universidade, a tradição investigativa e o diálogo permanente com a sociedade

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como coordenador da recente pesquisa não são suficientes para evitar os abu- “Nos anos 1970, todo o curso de socioCrise política e impeachment, sobre o sos”, diz Moisés. logia era montado para estudar o rumo governo Collor, que em breve será puOutro exemplo de diálogo e interação da revolução burguesa no Brasil”, diz com a sociedade é o Núcleo de Estudos Adorno. A expressão “revolução burgueblicada em livro. Já no Departamento de Ciência Polí- da Violência (NEV), fundado em 1987 e sa” não significa, no entanto, orientação tica, atua-se em duas grandes áreas, teo- um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação exclusivamente marxista. “O marxismo ria e instituições políticas comparadas, e Difusão financiados pela FAPESP. “No nunca foi hegemônico no departamento, segundo Fernando Limongi, professor e início os trabalhos eram mais ensaísticos que oferecia uma formação sociológica ex-chefe do departamento, graduado em e defendiam hipóteses”, diz o cientista mais ampla, com presença igualmente 1982. “Em ambas, a preocupação central político Sergio Adorno, coordenador do forte da obra de Max Weber.” Nos dias de é com o funcionamento do sistema polí- NEV e diretor da FFLCH. “A acumulação hoje, diz Adorno, ganha destaque “uma tico democrático”, diz Limongi. “Temos dos estudos empíricos nos fez ver que linha de interpretação que não enfatiza uma entrada muito mais empírica hoje a questão sobre a desigualdade frente à tanto as estruturas, mas os atores; não só do que no passado. Mas um fato muda Justiça passa pelas agências de coorde- o modo de organização, mas as relações tudo: não mais pensamos na democracia nação de políticas públicas.” As questões interativas também”. ou no regime político estável que quere- que motivam as pesquisas do núcleo têm mos. Já os temos. Trata-se agora de saber um papel cada vez maior na discussão RIGOR ACADÊMICO como a democracia funciona e que resul- dos rumos das instituições democráti- “As marcas de outras gerações de profestados podemos esperar de um governo cas brasileiras. “A violência dificulta a sores e pesquisadores ainda são muito democrático.” plena consolidação dos presentes no nosso departamento”, diz É esse o foco de alguns direitos humanos, e falar Eunice Ostrensky, graduada em filosofia dos projetos principais de direitos humanos é fa- em 1993 e hoje professora do Departado departamento, como lar em democracia”, diz mento de Ciência Política. “Em teoria Adorno. O NEV se preo- política moderna, embora o modo de Instituições políticas, padrões de interação Exe- As instituições cupa desde o início em abordar os temas e conceitos discutidos criar metodologias que tenha se beneficiado de estudos mais recutivo-Legislativo e caproduzam relatórios em centes, o interesse pelos autores canônipacidade governativa, do democráticas organismos internacio- cos da área é o mesmo que motivou os próprio Limongi, e o trae a violência balho que vem sendo denais, como a ONU, e tem estudos dos professores Célia Quirino e contato permanente com Oliveiros Ferreira [cujos primeiros trasenvolvido em torno dos no país são instituições semelhantes balhos datam dos anos 1950].” 25 anos de democracia em diversos países. política do Brasil no Nú- alguns dos Oliveiros, tido como um dos pensaA politização é uma dores políticos mais originais da histócleo de Pesquisa de Polímarca tanto do Depar- ria do departamento, hoje professor da ticas Públicas (Nupp), co- temas atuais ordenado pelo professor tamento de Ciência Po- Pontifícia Universidade Católica de São das pesquisas José Álvaro Moisés, que lítica quanto do Depar- Paulo, graduou-se em 1950 em sociolose graduou em 1970. “Os tamento de Sociologia. gia e trabalhou como jornalista de O Esestudos têm por finalidade mensurar a qualidade da democracia brasileira, abordada por um olhar duplo: para os valores que expliquem o comportamento da sociedade e para o lugar que as instituições ocupam não só no imaginário, mas também na organização do período.” O trabalho indica, de acordo com Moisés, que “do ponto de vista eleitoral a democracia está consolidada, mas ainda resta aproximar representantes e representados”, tanto para que o sistema político reflita a sociedade (são gritantes as sub-representações das mulheres e dos afro-brasileiros, por exemplo) quanto para que haja meios que tragam transparência às instâncias político-administrativas. “O exemplo mais claro dessa carência é a corrupção, um fenômeno que evidencia que os instrumentos de controle, monitoramento e fiscalização Lévi-Strauss em visita à USP em 1985: um dos fundadores da moderna antropologia 66 ESPECIAL 80 ANOS USP

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ponto extremo pelas cassações de professores nos anos 1960, os cursos de sociologia e ciência política formaram quadros de primeira importância na esfera pública, como o ex-presidente Fernando Henrique, o deputado constituinte Florestan, o ex-ministro da Cultura Francisco Weffort (sociólogo), o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, professor licenciado do Departamento de Ciência Política, e o sociólogo Glauco Arbix, membro do Conselho Nacional de Tecnologia entre 2007 e 2011 e responsável pela “Carta ao povo brasileiro” de 2002, marco do início da campanha do Partido dos Trabalhadores à presidência da República.

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FOTOS 1 ANDRÉ DUSEK / ESTADÃO CONTEÚDO / AE 2 ANTONIO LÚCIO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE  3 ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

Florestan Fernandes discursa na USP em 1958: formador de gerações de sociólogos

tado de S.Paulo de 1953 até 2000. É um exemplo de uma das marcas principais dos intelectuais oriundos dos departamentos de Sociologia e Ciência Política da FFLCH, a de combinar rigor acadêmico com a atenção ao público leigo, sem se encasular nos gabinetes acadêmicos. Um dos pioneiros da faculdade, Roger Bastide, autor do clássico As religiões africanas no Brasil (1958), escreveu intensamente para a imprensa paulista sobre arte, crenças e relações raciais – temas fundamentais da tradição do Departamento de Sociologia. Como a grande maioria dos integrantes da missão estrangeira na USP, Bastide não veio impor uma visão cosmopolita e definitiva, mas investigar. Numa resenha escrita para a Pesquisa FAPESP, um dos principais sociólogos brasileiros, José de Souza Martins, que se graduou na FFLCH em 1964, disse que seu professor “vinha de uma Europa saturada de razão e dela cansada”. Segundo Martins, o Brasil era para Bastide “o laboratório da descoberta de um lado da condição humana que a razão escondera e reprimira”. Havia todo um país a conhecer e, com o tempo, além de pensá-lo, cresceu o desejo de torná-lo mais moderno e menos injusto. Mesmo com o período da ditadura militar, e seu esforço de inibir a produção intelectual crítica, demonstrado em seu

pioneiros: “Claude Lévi-Strauss, fundador da cadeira de sociologia e um dos fundadores da moderna antropologia, era filósofo de formação. Seu sucessor, Roger Bastide, fez uma sociologia com fortes conexões com a antropologia e a psicanálise. Florestan Fernandes, sucessor de ambos, fez mestrado e doutorado com pesquisas sobre temas antropológicos (...). A bela sociologia de Antonio Candido apoia-se no diálogo com a antropologia, a história e a literatura”. Antonio Candido é um filho típico da efervescência intelectual instalada em São Paulo pela FFLCH. Hoje conhecido como o principal estudioso da literatura brasileira, ele foi “antes de tudo um soPROJETO CIVILIZADOR ciólogo”, segundo Sergio Adorno. CanTudo isso remete ao projeto inicial da dido é autor de uma das obras seminais FFLCH e seu projeto civilizador. O pri- da sociologia no Brasil, Os parceiros do meiro diretor da instituição, Theodoro rio Bonito, sobre os caipiras paulistas em Augusto Ramos, matemático da Politéc- situação de marginalização, sua tese de nica, foi encarregado de contratar deze- doutorado, de 1954. nas de professores da França, da Itália, Não obstante toda a heterogeneidade da Alemanha e de Portugal. Na época a de formações e interesses, preocupoufaculdade abrigava também os núcleos -se em estabelecer a fundamentação e de ciências naturais, a distinção dos saquímica, física e maberes, como observa Álvaro de Vita, gratemática. Com o tempo, essas áreas foram duado em 1981, em sendo desmembradas relação ao Deparaté que a faculdade tamento de Ciência ficou concentrada nos Política, do qual é estudos de humanichefe. “As três grandades. Hoje, congrega des áreas de pesqui11 departamentos: sa do departamento – política brasileira, Letras Clássicas, Leteoria e pensamentras Modernas, Letras Orientais, Linguística, to político e relaTeoria Literária, Filoções internacionais – começaram a gasofia, História, Geografia, Antropologia, nhar forma definida Sociologia e Ciência já sob a cátedra de 3 Política. política criada por Nas áreas de ciên- O francês Roger Bastide em 1938: interesse nas Paul Abousse-Bascias sociais e filosofia, religiões africanas e relações raciais no Brasil tide [nos anos 1930] a “missão estrangeie que teve por figura intelectual central, ra” era quase totalmente francesa – tanto que o francês, nos anos 1950 e início dos 60, Lourival nos primeiros anos, era o idioma predo- Gomes Machado”, diz De Vita. “Já estaminante nas salas de aula. Em sociologia vam presentes preocupações de natureza chegaram nomes que já se encontravam teórico-metodológica, com a autonomia estabelecidos em seus países de origem da ciência política em relação ao direito ou viriam a desenvolver uma obra e, especialmente, à área-irmã, a sociointernacionalmente conhecida, como logia. Foram passados para as gerações Claude Lévi-Strauss. seguintes os mesmos compromissos com O mesmo José de Souza Martins, num o rigor no estudo da política, brasileira texto de 2011, destacou o caráter huma- ou internacional, e da teoria e do pensanista e multidisciplinar da geração de mento político.” n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 67


Platテ」o e Aristテウteles (ao centro) no quadro Escola de Atenas, de Rafael: ideias dos dois grandes nomes da antiga filosofia grega sテ」o alvo de estudos

68窶ウSPECIAL 80 ANOS USP


FILOSOFIA

O rigor da leitura A disciplina na análise do texto é uma das marcas do departamento desde os pioneiros franceses até os pesquisadores atuais

Márcio Ferrari

O

WIKIMEDIA COMMONS

s três projetos temáticos em curso na área de filosofia da Universidade de São Paulo, todos com apoio da FAPESP, são suficientes para indicar a amplitude das atividades do departamento, que integra a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Um é sobre filosofia grega clássica; outro sobre ciência, tecnologia e sociedade; e o terceiro sobre a evolução das ideias do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951). “Uma das características de nossas pesquisas é um balanceamento entre as áreas e épocas de estudo”, diz Roberto Bolzani Filho, chefe do departamento, que se graduou em 1985. Bolzani é um dos pesquisadores do projeto temático Filosofia grega clássica: Platão, Aristóteles e sua influência na Antiguidade, coordenado pelo professor Marco Zingano.

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Wittgenstein: projeto sobre evolução das ideias do filósofo

Esse projeto tem como objetivo central mapear e estudar as teses centrais de Platão e Aristóteles, que tiveram uma influência marcante na Antiguidade, segundo dois eixos centrais: a metafísica e a ética. Ambos os filósofos dividem teses importantes sobre a natureza do conhecimento, do mundo e da ação e, em linhas gerais, sustentam uma perspectiva realista de cunho eminentemente racionalista. No entanto, Aristóteles, que foi aluno de Platão, rompeu com o antigo mestre e tornou-se um crítico feroz do platonismo. Sua filosofia é uma alternativa ao pensamento de Platão. O projeto estuda a oposição entre aristotelismo e neoplatonismo até o momento em que o ecletismo ganha corpo e se tenta harmonizar essas duas filosofias. Um segundo temático, Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade, trata de temas que estão nas fronteiras entre a epistemologia, a ética e a política. “O projeto está interessado em temas atualíssimos, como a hegemonia do agronegócio e da agricultura transgênica, e a proposta de alternativas sustentáveis, como a agroecologia”, diz Pablo Mariconda, pesquisador res70 ESPECIAL 80 ANOS USP

ponsável pelo temático. “Também temos interesse em questões ligadas às fronteiras entre conhecimento público e privado, o aspecto anticientífico das práticas tecnocientíficas das multinacionais na saúde e na agricultura e os problemas éticos ligados à eugenia nas práticas da genética humana.” Segundo Mariconda, as pesquisas não defendem apenas posições críticas a essas questões. Também contribuem com o debate de forma propositiva: propõem a reinstitucionalização da ciência com o objetivo de torná-la mais adequada ao desenvolvimento de alternativas alinhadas com a sustentabilidade social e ambiental e menos dependentes dos interesses do capital e do mercado. Uma descrição detalhada da evolução das ideias de um dos mais importantes pensadores do século passado é o objetivo central do projeto temático Wittgenstein em transição, que está sediado no Departamento de Filosofia da FFLCH, embora seu coordenador, Bento Prado Neto, filho de Bento Prado Jr., lecione na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Prevista para encerrar em meados de 2015, a iniciativa está detalhando a evolução da filosofia de Wittgenstein no início dos

MAUGÜÉ E OS FRANCESES

Os temáticos ajudam a entender uma parcela significativa das pesquisas feitas atualmente na Filosofia da USP. Mas traços importantes do departamento vêm de longe, e alguns remon1 tam aos primeiros anos do curso, que esteve a partir de 1935, ano seguinte ao da sua fundação, sob a responsabilidade de uma figura marcante, Jean Maugüé, que só deixou o posto em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, para juntar-se às tropas francesas no norte da África. Sua aluna e futura professora de estética do departamento Gilda de Mello e Souza disse em 1973 na aula inaugural do curso de filosofia que “Maugüé não era apenas um professor – era uma maneira de andar e falar” e “um modo de abordar os assuntos”. Em outras palavras, foi um “estilo”, como define Bolzani, que estabeleceram no departamento Maugüé e seus compatriotas posteriores, sobretudo Martial Guéroult, que lecionou na USP entre 1947 e 1953. Criou-se, nas palavras de Gilda, o hábito “de uma exposição de um assunto preciso, apoiado numa bibliografia moderna, fornecida com lealdade ao aluno”. Nada de manuais, mas leitura estrutural e direta dos textos filosóficos. “Na época a ideia de livre pensamento levava a uma filosofia muito eclética, uma espécie de veleidade de literários e humanistas”, diz Bolzani. “Foi preciso estabelecer uma disciplina do pensamento. Hoje há vários métodos de estudo no departamento, mas a ideia de disciplina persiste.”

FOTOS 1 PHOTO RESEARCHERS / LATINSTOCK 2 MATUITI MAYEZO / FOLHA IMAGEM

Alguns traços da filosofia da USP vêm de longe e remontam ao início do curso nos anos 1930

anos 1930. As mudanças ocorridas nesse período servem para uma melhor compreensão do Tractatus logico-philosophicus, obra de 1921, da fase inicial do filósofo, e da filosofia madura do pensador austríaco. Essa segunda inicia com o Livro azul, que foi ditado em 1933 por Wittgenstein a seus alunos na Universidade de Cambridge, e atinge seu ápice na elaboração das Investigações filosóficas, obra publicada após a morte do filósofo.


“A influência ensaística e mais ligada à história das ideias, própria da filosofia francesa, sempre esteve presente no departamento”, diz Pablo Mariconda, pesquisador responsável pelo projeto temático Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade, que se graduou em 1971. No projeto, previsto para terminar em julho de 2016, a tradição, até pela contemporaneidade do tema, se alia a tendências atuais. “De modo bem característico, parte dos pesquisadores e professores possui uma espécie de formação híbrida que combina a análise conceitual e linguística com a análise epistemológica e histórica, característica da corrente francesa.” FILOSOFAR A CÉU ABERTO

A presença francesa incluiu no período pós-guerra outros nomes fundamentais para a história do departamento, como os de Gilles-Gaston Granger, Victor Goldschmidt e Claude Lefort (deu aulas entre 1953 e 1954). Gérard Lebrun lecionou na FFLCH durante vários períodos entre 1960 e meados da década de 1990 e aqui escreveu obras importantes sobre Kant e Hegel – isso sem falar nas palestras dadas por Michel Foucault na USP em

Presença francesa influenciou os rumos da Filosofia da USP, sobretudo nas primeiras décadas

meados dos anos 1960 e especialmente lética para a recuperação de uma teoria em 1973. Segundo Bolzani, Lebrun “ins- com fortes aportes da psicanálise, outros pirou muito o pensamento originado no ainda se enveredaram pelas articulações departamento, tanto quanto Bento Prado entre Marx e Espinosa. É verdade que Jr.”. Bento, como ficou conhecido entre o ceticismo de Porchat ficou sem seguicolegas e alunos, foi uma figura cardeal dores no departamento.” O próprio Sana geração que, ao realizar uma crítica fatle se dedica, entre outros interesses, relativamente moderada aos métodos à obra frankfurtiana e à do psicanalista dos pioneiros e influenciada pelos es- Jacques Lacan. Uma marca deixada ainda pelo estitudos de Marx no início dos anos 1960, é considerada a primeira a estabelecer lo que os pioneiros franceses legaram, uma tendência original no departamen- com suas defesas contra o pensamento to. Bento, segundo Paulo Eduardo Aran- diletante – que, segundo Arantes, tamtes (também ele membro dessa geração, bém provocava o efeito “profilático” de embora tenha sido aluno do primeiro) levar o departamento a preservar-se da no livro Um departamento francês de ul- “febre novidadeira do Brasil” –, teria sido tramar (1994), “ousava filosofar a céu a formação de historiadores e comentaaberto, longe, mas não muito, dos textos”. dores de filosofia, mas não de filósofos Fazem parte dessa geração outros no- propriamente ditos. “Há de fato uma dimes célebres como José Arthur Gian- ficuldade em dar esse passo adiante”, diz notti, Ruy Fausto, Marilena Chauí, todos Bolzani. “Mas é melhor esse problema marcados pelo estudo de Marx. Marilena do que o oposto, porque o modelo atual Chauí, aliás, coordenou um projeto te- não impede que se acrescente a atividade mático, encerrado em 2013, que estudou filosófica à formação pela leitura dos texas relações entre natureza e história da tos.” Outra crítica que se costuma fazer filosofia no século XVII, seu legado e ao departamento é certa resistência ao as retomadas e críticas que a ilustração estudo da filosofia contemporânea mais francesa, o iluminismo alemão e alguns recente, embora Safatle aponte um esfilósofos contemporâneos fizeram a essas forço em curso no sentido contrário, “em concepções seiscentistas. Além deles, um especial quanto à filosofia desenvolvida filósofo original e independente em sua nos últimos 40 anos”. n filosofia cética, Oswaldo Porchat. O regime militar provocou a primeira inibição às atividades intelectuais do grupo – o AI-5, em 1969, aposentou compulsoriamente Bento e Giannotti. Um segundo desafio viria entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990, com a queda dos regimes comunistas do Leste Europeu. “Com o retraimento do pensamento marxista, professores do departamento passaram a repensar sua filosofia”, diz Bolzani. “O debate em torno do dito marxismo uspiano desdobrou-se de várias formas”, diz o professor Vladimir Safatle, que se graduou em 1994. “Alguns acompanharam a guinada neopragmática da Escola 2 de Frankfurt, outros procuraram desdobrar a dia- Gérard Lebrun: aulas nas USP durante vários períodos PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 71


LITERATURA

Entre mestres e aprendizes LÉO RAMOS

Eduardo Nunomura

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A contribuição da universidade em áreas como teoria literária e crítica de cinema permanece atual

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alnice Nogueira Galvão foi sua primeira assistente e ainda hoje se lembra de detalhes de anos de convívio, como quando aprendeu que uma aula bem dada deveria estar contida em quatro páginas datilografadas. Celso Lafer recorda com carinho do empenho com o qual sempre cuidou da formação dos que com ele estudaram. Maria Augusta Bernardes Fonseca o reverencia como um conversador brilhante e que consegue acolher a fala de seu interlocutor com respeito e atenção. O personagem é Antonio Candido, crítico e ensaísta, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP ). Ou apenas “mestre”, como preferem chamar Walnice, Lafer, Maria Augusta e tantos outros que conviveram

PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 73


com um dos pensadores fundamentais legiam de algum modo o estudo da obra Bosi estudara algum tempo em Flopara o país. de Antonio Candido em seus trabalhos. rença, entre 1961 e 1962, e, segundo conMaria Augusta obteve a sua livre-doFoi da disciplina de graduação Teo- ta, assistira à passagem da influência cência em teoria literária pela USP em ria e Análise do Romance, criada por de Benedetto Croce (1866-1952), “um 2006 e no ano seguinte passou a coor- Candido nos anos 1960, que se origi- historicista hegeliano de fôlego”, para denar projetos de pesquisa sobre o le- nou o Departamento de Teoria Literá- a de Antonio Gramsci (1891-1937), “um gado da obra de Antonio Candido. Fo- ria e Literatura Comparada da FFLCH marxista profundamente interessado ram três até agora, o primeiro sobre seus e a sua revista Literatura e sociedade. O na complexidade da cultura, sobretudo presidente da FAPESP, literária”. “De regresso ao Brasil, e retoensaios, o segundo focanCelso Lafer, foi um dos mando a leitura assídua de Otto Maria do nas entrevistas e o teralunos desse curso. “A Carpeaux e Antonio Candido, também ceiro e atual investiga os sua autoridade intelec- fiz essa passagem, sem perder de vista prefácios escritos por ele. “Como se vê, são facetas Formação da tual é a de um grande as riquezas do culturalismo e das leie objetos diferentes, cada mestre que, no correr turas estilísticas de texto. Talvez tenha qual contendo o húmus de literatura dos anos, tornou-se um ficado desse momento sincrético, sensua criatividade e versaponto de referência da sível à multiplicidade dos olhares crítibrasileira, cultura brasileira”, cos, um desejo de abertura à riqueza de tilidade crítica”, explica a afirmou Lafer, em artigo perspectivas diferenciadas, que procupesquisadora. obra seminal publicado na edição rei transmitir aos alunos, inicialmente Desde o primeiro procomemorativa dos 90 como professor de literatura italiana”, jeto, vem coletando tam- de Candido, anos de Candido em afirma Bosi, que formulou essa abordabém verbetes a partir de Literatura e sociedade, gem em O ser e o tempo da poesia, obra conceitos do “mestre” so- foi publicada em 2009. Nele, discorre publicada em 1977. bre a arte literária. O priem 1959 sobre o papel da FaculA professora emérita da USP Walnice meiro contato da jovem foi com Formação da literatudade de Direito na traje- Nogueira Galvão, referência obrigatória ra brasileira, obra seminal tória de Antonio Candi- para os estudos das obras de Euclides da de Candido, publicada pela do. Sim, o “mestre” fez Cunha (1866-1909) e Guimarães Rosa primeira vez em 1959 e até e passou, em 1939, nos (1908-1967), afirma que Antonio Candihoje uma reflexão fundamental para a exames vestibulares das faculdades de do foi o melhor professor que já teve em criação de uma consciência sobre o país. Filosofia e de Direito, formando-se em “cinco continentes”, de quem se tornou Foi durante seu mestrado, nos anos 1970, ciências sociais na primeira e não con- amiga. Tem a preocupação de visitá-lo com foco em Serafim Ponte Grande, de cluindo a segunda, embora tenha estu- semanalmente e quando viaja ao exteOswald de Andrade, que Maria Augusta dado até o quinto ano. rior faz questão de vê-lo tanto na ida teve a oportunidade de assistir às suas “Somos filhos do nosso tempo e de quanto na volta. Com 40 livros publicaaulas expositivas, “longas, mas incan- nossa formação”, diz Alfredo Bosi, pro- dos, Walnice lembra-se da época de sua sáveis para os 200 alunos que lotavam fessor emérito de literatura brasileira da tese de livre-docência, em 1972, quando a sala”. A pesquisadora passou a vê-lo USP, referindo-se ao eclético amcomo um “manancial crítico”, dada a biente universitário que conhevariedade e pluralidade dos aspectos ceu no final dos anos 1950. “O que aborda em seus ensaios. E isso ser- curso de letras nos dava a dupla ve de lição também para os orientandos dimensão histórica e estética dos de Maria Augusta que querem estudar o textos literários, aliada ao respeimodernismo brasileiro. “Impossível não to pela erudição filológica, o que ler Antonio Candido quando temos pe- era um bem, pois não ficávamos la frente obras de Oswald de Andrade, aprisionados em nenhum sisteMário de Andrade, Manuel Bandeira, ma prévio. Mas à medida que Carlos Drummond de Andrade, Aníbal o clima político dos anos 1960, Machado e outros mais”, afirma. ainda antes do golpe militar, se aquecia alimentando projetos de reformismo à esquerda, também LITERATURA E SOCIEDADE O atual corpo docente de teoria literária a nossa concepção de literatura e e literatura comparada da FFLCH já não de cultura ia transitando de uma é composto por professores formados na fusão de existencialismo e ideamesma linhagem crítica e voltada para lismo para uma visada em que a as relações entre literatura e sociedade, consideração das determinações como até hoje defende o “mestre”. Mas sociais passava a pesar e a ocu1 não faltam pesquisadores, como Joaquim par o primeiro plano da reflexão Alves de Aguiar, Betina Bischof e Ana sobre a natureza e a função da Walnice Nogueira Galvão: Antonio Candido foi seu melhor professor “em cinco continentes” Paula Pacheco, que se dedicam ou privi- literatura.” 74 ESPECIAL 80 ANOS USP


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Roberto Schwarz: crítico da obra de Machado de Assis e influência presente nos departamentos de Teoria Literária, Literatura Brasileira e Letras Modernas

Candido, mesmo sem ser especialista no autor, se empenhou em ajudá-la na busca de referências sobre Euclides da Cunha. “Antonio Candido sempre se preocupou em formar gente, e fazia isso passando o amor que tinha pela literatura.”

FOTOS 1 EDUARDO CESAR 2 MIGUEL BOYAYAN

CRÍTICA DIALÉTICA

Embora tenha orientado inúmeros discípulos de expressivo reconhecimento no meio intelectual, como a própria Walnice, Davi Arrigucci, João Luiz Lafetá e José Miguel Wisnik, Antonio Candido teve em Roberto Schwarz o seu mais reconhecido herdeiro. Professor de teoria literária e literatura comparada na USP (até 1968) e de teoria literária na Unicamp (1978-1992), ele absorveu do “mestre” o método de crítica que procura apreender as complexas relações entre forma literária e processo social. Foi seu aluno ainda na graduação em ciências sociais, em 1958, mesmo ano em que participou do icônico grupo do seminário de O capital, de Karl Marx, constituído pelos intelectuais Ruth e Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Fernando Novais, Paul Singer e José Arthur Giannotti. Roberto Schwarz, ao

lado de Leôncio Martins to na produção cultural”, Rodrigues, Francisco Weafirma. ffort, Gabriel Bollaffi, MiMaria Elisa explica que a obra de Schwarz, chael Löwy e Bento Pra- “Somos filhos um dos maiores crítido Júnior, estava entre os alunos mais assíduos. Em do nosso cos de Machado de Asentrevista à revista Pessis, ainda se faz presentempo e quisa FAPESP, em abril te nos departamentos de de 2004, Schwarz afir- de nossa Teoria Literária, Literamou que o seminário de tura Brasileira e de LeMarx foi decisivo para a formação”, tras Modernas da USP . sua formação por “aposA professora já publicou artigos em francês e intar na reflexão crítica so- diz Alfredo bre a sociedade contemcapítulos de livros Bosi, professor glês, e organizou um livro de porânea” e, ao mesmo reflexão sobre Um mestempo, se distanciava da emérito “compreensão bisonha” tre na periferia do capique os partidos comunistalismo, de 1990, um dos ensaios mais emblemátitas da época faziam de Marx. Maria Elisa Cevasco, professora cos de Schwarz. “Seu modo de ler tem a titular do Departamento de Letras Mo- capacidade de demonstrar que a forma dernas da USP, lembra da importância literária se configura como uma abstraque a crítica dialética de Schwarz exercia ção das relações sociais efetivamente sobre os jovens estudantes já nos anos existentes”, explica Maria Elisa. “Esse 1970, contribuição que permanece até tipo de análise permite verificar que a hoje para o pensamento uspiano. “Sua forma artística é uma síntese que nos obra continua a nos ensinar a construir permite uma compreensão intuitiva do uma crítica que nos ajude a decifrar o todo social, dando-nos assim os elemenmovimento real da história como escri- tos necessários para julgá-lo.” n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 75


O crítico Paulo Emílio com seus gatos, em 1972 76 76 ESPECIAL _ ESPECIAL 80 80ANOS ANOSUSP USP

SERGIO ARAKI / AGÊNCIA ESTADO / AE

COMUNICAÇÕES E ARTES


Referência histórica Paulo Emilio Salles Gomes segue como um nome central na trajetória da universidade

Eduardo Nunomura e Fabrício Marques

O

escritor, crítico e professor de cinema da USP Paulo Emilio Salles Gomes (19161977) é um nome central na cultura e na formação de novas gerações da universidade desde o fim dos anos 1950. “Admirava a consciência aguda de seu lugar de fala, que expressava uma preocupação muito grande de fazer reflexão sobre a cultura em conexão com a realidade social”, diz Ismail Xavier, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “Por meio da provocação, ele me fez vencer a timidez e a inibição, e em um momento em que eu nem sabia escrever em português”, lembra Jean-Claude Bernardet, crítico, cineasta e professor aposentado da ECA. Paulo Emilio é considerado pelo professor Antonio Candido como o responsável por levá-lo à militância política, segundo entrevista dada por este último em 2001 para a Revista Brasileira de Ciências Sociais. Alinhado aos comunistas na década de 1930, Paulo Emilio deles se afastou por conta do stalinismo; sempre foi um militante de esquerda. Em 1941, aos 23 anos, estreou como crítico literário na revista Clima, um marco acadêmico da crítica paulistana que reuniu nomes de referência na intelectualidade brasileira. “Uma esplêndida constelação que marcaria duradouramente o panorama cultural do país”, lembrou Walnice Nogueira Gal-

vão, em uma das homenagens pelos 90 anos de Candido, em 2008. Além de Paulo Emilio e Antonio Candido, faziam parte desse grupo de amigos da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP Décio de Almeida Prado (que enveredou para o teatro), Lourival Gomes Machado (artes plásticas), Ruy Coelho (antropologia) e Gilda de Moraes Rocha (estética), que se casou com Candido. Essa geração da revista Clima tinha uma conexão muito forte com o modernismo brasileiro no plano da reflexão, dos ensaios, da visão histórica e da crítica em geral. E eram educadores, no sentido exato da palavra, sempre preocupados em formar as novas gerações de pensadores do país. “Na crítica cinematográfica nunca apareceu alguém que tivesse a extensão da cultura de Paulo Emilio”, lembra Walnice. Bernardet atribui a Paulo Emilio a mudança de rumo em sua vida, quando em 1958 participou de um curso do crítico em que ele dizia que “o cinema não existe, existem os filmes”. Até então havia um jeito dogmático de se pensar a sétima arte por meio de seu enquadramento em uma narrativa predominantemente norte-americana. “Ele abria uma liberdade de pensamento sobre os filmes e isso mudou a minha forma de refletir”, diz Bernardet. Aproximou-se do “mestre”, trabalhando na CinematePESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 77


ca Brasileira, dirigida por Paulo Emilio, JORNALISMO E TELENOVELA o que gerou frutos, como o de se tornar A Escola de Comunicações e Artes da crítico de cinema de jornais como A Ga- USP foi criada em 1966 com o nome de Escola de Comunicações Culturais. “A zeta e O Estado de S.Paulo. Neste último, Paulo Emilio já era um Faculdade de Filosofia deveria ter redos mais respeitados críticos e colunistas cebido essa nova área do conhecimento, do renomado Suplemento Literário. Ber- mas havia um grupo que não queria isso”, nardet foi convidado por ele a formar o lembrou, em entrevista à Pesquisa FAprimeiro quadro de docentes do curso de PESP em 2012, o professor José Marques cinema da Universidade de Brasília, em de Mello, um dos primeiros diretores da 1965. Dois anos depois, começou na ECA, escola, responsável pela implantação do atividade interrompida pelo Ato Institu- Departamento de Jornalismo e Editocional nº 5. Na ocasião, e como forma de ração. Marques de Mello trabalhara em driblar o decreto baixado pelo governo Recife nos anos 1960 com Luiz Beltrão, militar em dezembro de 1968, o “mes- pioneiro na pesquisa em comunicação, tre” passou a organizar seminários em e trouxe essa experiência para São Paulo sua casa, com alunos e pesquisadores de – uma das missões que recebeu foi criar pós-graduação. Ismail Xavier fazia parte um jornal-laboratório na ECA. Também desse grupo e lembra que uma geração ajudou a instalar um Centro de Pesquisa de críticos cinematográficos nasceu dali. em Jornalismo, com o objetivo de analiPaulo Emilio continua sendo objeto de sar a produção de veículos de imprensa. estudos e publicações, como no livro que Em 1992, observou Marques de Mello, deverá ser publicado em 2015 na França uma lacuna na pesquisa da ECA foi preencom a colaboração de Ismail Xavier. A chida, com a criação do Centro de Estudos obra é uma coletânea dos artigos de Paulo de Telenovela, liderado pela professora Emilio no suplemento do Ana Maria Fadul. “QuanEstadão e textos inéditos do fui diretor da Escola, de pesquisadores brasiverifiquei que o curso de rádio e televisão ensinava leiros e estrangeiros. Outudo, menos telenovela, tro professor que tem Com a criação o principal produto de uma grande afinidade exportação de nossa incom o “mestre” é Carlos do Centro de Augusto Calil, também dústria cultural”, diz ele. Estudos de da ECA, que trabalhou A ECA, hoje, é uma refecom ele na Cinemateca. Telenovela, rência nessa linha de pesCalil foi organizador das quisa. Em 1995, um grupo obras completas do críti- uma lacuna na de 10 pesquisadores inico, que saiu primeiro peciaram o projeto temála Cosac Naify, e depois pesquisa da tico Ficção e realidade: teve os direitos adquiriA telenovela no Brasil, o ECA foi Brasil na telenovela, consdos pela Companhia das Letras. Bernardet e Xa- preenchida tituído de nove diferentes estudos. Coube a Maria vier lamentam que, na Immacolata Vassallo de área cinematográfica, Lopes, professora titular Paulo Emilio venha se da ECA, coordenar um tornando uma referêndos estudos, cujo objeticia apenas histórica para as gerações mais novas. Isso porque sua vo era pesquisar a recepção da telenoforte marca nacionalista vem perdendo vela num universo de quatro famílias de espaço na atualidade. “O pensamento está condições sociais diferentes. Anos mais ligado ao momento histórico, e a questão tarde, Maria Immacolata tornou-se codo subdesenvolvimento não é mais re- ordenadora da rede de pesquisa internaferência nessa época de globalização”, cional Observatório Ibero-Americano da afirma Bernardet. “E hoje há uma dife- Ficção Televisiva (Obitel), criado com a rença muito grande, porque o professor participação de nove países, envolvendo acadêmico tem menos possibilidades de instituições acadêmicas e braços ligados se projetar na esfera pública da mídia”, ao mundo da pesquisa de empresas de diz Xavier. O pensamento crítico, tão caro comunicação, como a Rede Globo e a a Paulo Emilio, tem se tornado rarefeito. mexicana Televisa. 78 ESPECIAL 80 ANOS USP

Os novos rumos da telenovela no Brasil também foram analisados no âmbito do projeto temático Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo, coordenado por Sergio Miceli, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – e resultaram no livro O Brasil antenado, de Esther Hamburger, professora da ECA. Uma das conclusões é que a telenovela já não ocupa na sociedade brasileira o lugar que tinha nos anos 1970 e 1980. Esther Hamburger também está à frente de um projeto no âmbito do Programa de Infraestrutura da FAPESP, para a digitalização, preservação e organização de arquivos da teledramaturgia da extinta TV Tupi. A digitalização das 100 horas de material já rendeu estudos acadêmicos – um deles aborda a importância da novela Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso, que renovou o gênero em 1968. Um tema de pesquisa que entrou recentemente no campo de interesse da ECA é o chamado net-ativismo, termo que reúne novos modelos de participação utilizando os meios digitais. O sociólogo italiano Massimo Di Felice, coordenador do Centro de Pesquisa Atopos da escola, liderou um estudo sobre o tema apoiado pela FAPESP, em que identificou três momentos distintos para o ativismo digital. O primeiro, na década de 1990, relacionou-se a movimentos internacionais temáticos, por exemplo na Austrália e na Índia, cuja atuação se dava nas artes e na política. No segundo momento encontrou expressão na luta zapatista, no México, e inspirou o Fórum Social Mundial. Assim despontaram práticas de protesto internacional, em cidades como Seattle (em 1999) e Davos (em 2001). O terceiro momento começou em 2000 e está em curso. Nele, o pesquisador destaca um novo ativismo, que, em muitos casos, provocou processos radicais de transformação – caso da Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos (2011), e as jornadas de junho, no Brasil (2013). Para Di Felice, a chave para a evolução do movimento está na passagem da web 1.0 para a web 2.0. Antes, a internet era uma rede de computadores conectados por modems e linhas telefônicas, permitindo apenas a troca de textos e de imagens. Agora, tornou-se uma plataforma com muito mais mobilidade e agilidade.


LÉO RAMOS

MÚSICA E ARTES PLÁSTICAS

Na área de música, um destaque recente é o projeto temático Móbile, concluído no ano passado e coordenado pelo professor Fernando Iazzetta. A ideia foi reunir pesquisadores das áreas de música, artes visuais, artes cênicas, ciência da computação e engenharias para o desenvolvimento de novos processos musicais centrados na interação entre esses vários setores aparentemente desconectados. Em especial, o projeto buscou questionar o fetiche da tecnologia, após os modelos iniciais de experimentalismo focados nos estúdios e nos equipamentos de ponta. “Muitas vezes, muita tecnologia pode até atrapalhar(…) A articulação mais complexa tem que ser o pensamento artístico e não a engenharia”, disse Iazzetta em entrevista à Pesquisa FAPESP. Os pesquisadores de Móbile fizeram uma turnê internacional que exibiu os resultados do projeto. O espetáculo era composto por seis cenas em que se misturavam obras “tradicionais”, com instrumentos e partituras, outras que usavam improvisação e três baseadas nas buscas pela interação entre música, tecnologia e outras artes. Já no campo das artes plásticas, um dos destaques da ECA é o trabalho da professora Regina Silveira, hoje aposentada. Artista plástica intermídia, seu trabalho circula por meios artísticos diversos, da fotografia à pintura, passando pela arte postal e pela intervenção sobre a arquitetura das cidades. Nos anos 1960, estudou pintura com Iberê Camargo em Porto Alegre. Na década de 1980, como parte de seu projeto de doutorado em artes na USP, produziu a série de gravuras e desenhos Anamorfas, sobre as distorções da perspectiva. “Pode parecer paradoxal, mas ser da academia e ser uma artista transgressora não foram para mim termos (ou atitudes) incompatíveis, em qualquer momento”, disse Regina em 2010. “A academia, pelo contrário, foi um bom ‘nicho’ para exercer minha liberdade de experimentar e transgredir. Em primeiro lugar, pude produzir muitas obras e projetos que foram realmente novos e experimentais, graças ao respaldo de bolsas de pesquisa, obtidas de órgãos de fomento à pesquisa, como a FAPESP e o CNPq. Eu não teria tido a chance de arriscar, como fiz, se essas obras precisassem entrar nos canais do mercado de arte que, pelo menos no período, era incipiente e conservador”, disse. n

ARQUITETURA

Progressista e social Vilanova Artigas e Mendes da Rocha promoveram a ideia de que as cidades devem ser mais humanas e acessíveis

J

oão Batista Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha foram professores da FAU-USP e defensores de uma arquitetura progressista, socialmente responsável e que deixou uma agenda de país. Artigas é considerado a figura central da chamada “arquitetura paulista”, que floresceu nos conturbados anos 1960 e 1970. Foi responsável pelo simbólico prédio da FAU, construído como um edifício que não pode ser fechado e promove o convívio entre as pessoas. “Você fica contaminado pela forma e quem estuda ali não faz uma arquitetura tacanha, mesquinha”, afirma o professor Alvaro Puntoni, que trabalhou na Fundação Vilanova Artigas. O “mestre” de Puntoni foi formador de uma maneira única e humanista de ensinar a disciplina, baseada no princípio de “convocar os saberes necessários (filosóficos e tecnológicos) e com uma ideia muita clara de generosidade e compartilhamento desse conhecimento com as novas gerações”. Já Mendes da Rocha, um

dos continuadores mais reconhecidos da obra de Artigas, foi o segundo brasileiro a ganhar o Prêmio Pritzker, em 2006, o mais importante da arquitetura mundial – o primeiro foi Oscar Niemeyer. A premiação serviu de reconhecimento da importância da arquitetura paulista, que valoriza mais uma construção inteligente e menos as formas exuberantes. O professor Milton Braga, também da FAU, já trabalhou em parceria com Mendes da Rocha em projetos que vão do corredor Rebouças, em 1995, até o prédio em construção do Sesc 24 de Maio, no centro histórico de São Paulo. “Ele sempre teve uma preocupação com a construção técnica do país. Se, no século XX, havia a desorganização regional, no XXI a agenda persiste com foco nas grandes cidades”, explica. Em outras palavras, os ensinamentos de “mestres” como Artigas e Mendes da Rocha deixaram para as gerações seguintes a lição de que não basta construir casas, mas equipar as cidades de transporte adequado, calçadas acessíveis e um belo ambiente urbano que permita desenvolver cidades mais humanas. n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 79


HISTÓRIA

A arte do poder Marcos Pivetta

1

Mapa italiano de 1556, de autoria de Giacomo Gastaldi e Giovani Battista Ramusio, do Brasil colonial

O

cruzamento da cultura e das artes com a trajetória política do Brasil tem sido uma das vertentes mais marcantes da produção acadêmica recente, das últimas duas ou três décadas, do Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH). Estudos que destacam o papel dos meios de comunicação, da música, do cinema, do teatro e de outras manifestações artísticas durante a ditadura militar (1964-1985) foram tomando corpo numa disciplina que, como a FFLCH, deu seus primeiros passos na USP sob forte influência da missão francesa que aqui desembarcou nos primórdios da universidade. “Até os anos 1960 a influência da história econômica foi muito grande no departamento. Em seguida, houve um predomínio de uma história mais social, que era um grande guarda-chuva

80 ESPECIAL 80 ANOS USP


Abordagens que unem cultura e política são uma das marcas contemporâneas do departamento 2

FOTOS 1 REPRODUÇÃO  2 ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

Peça Roda viva: estudos históricos sobre a arte na ditadura

de temas e metodologias. A partir dos tico. Nesse contexto, a historiadora Lauanos 1980 ou 1990, uma história cultural ra de Mello e Souza, que recentemente e política se desenvolveu com força”, diz se aposentou da USP e agora leciona na Maria Helena Capelato, professora do Universidade Paris-Sorbonne, coordenou departamento, que tem se dedicado a entre 2005 e 2010 o projeto temático da pesquisas sobre a atuação dos meios de FAPESP Dimensões do Império Português. comunicação no Brasil e na América Lati- Uma das questões desenvolvidas pelo prona durante a última onda jeto foi mostrar que a adde governos autoritários ministração colonial porno continente. tuguesa não podia ser reNessa linhagem de essumida simplisticamente como uma máquina butudos, uma das contribui- O Brasil ções mais importantes rocrática monstruosa, são os trabalhos de Mar- colônia e as emperrada e ineficiencos Napolitano, também te, com um centro autorelações com professor do departaritário e colônias submismento, que tem se debru- a metrópole sas. Lisboa, que esteve à frente do mais longevo çado sobre os caminhos império europeu moderda música popular bra- também são sileira, e com menor ênno, sabia usar de forma inteligente o seu poder, fase da produção audio- fonte de “superando os limites da visual, durante o regime importantes separação oceânica entre militar. “Essa abordagem a metrópole e suas colôcultural ganhou terreno estudos após o fim da ditadura”, nias”, conforme disse à afirma Napolitano. AinPesquisa FAPESP em reda no campo dos estudos portagem publicada em culturais, a FFLCH pernovembro de 2012. Dendeu neste ano um dos seus expoentes, o tro da temática sobre o sistema colonial, historiador Nicolau Sevcenko, que mor- os trabalhos de Fernando Novais, hoje reu em agosto passado. Sevcenko tinha professor emérito da USP e docente das como uma das marcas de seu trabalho Faculdades de Campinas (Facamp), são usar a literatura como fonte de pesqui- outra referência obrigatória. Embora haja linhas dominantes de sa histórica. Outra vertente de pesquisa no departa- pesquisa na história da USP, a produção mento são os estudos sobre a história do atual do departamento é marcada por Brasil colônia, suas relações com a me- uma diversidade de temas e épocas. Há trópole portuguesa e a questão do Atlân- estudos sobre a Antiguidade, o Medievo,

a Modernidade e a Contemporaneidade. “O objeto da história é hoje pulverizado e multifacetado”, comenta Napolitano. Um projeto temático tocado pelo departamento ilustra bem a atual abertura da disciplina para assuntos os mais diversos: coordenado pelo professor Gildo Magalhães dos Santos Filho, a pesquisa estuda a implantação de energia elétrica no estado de São Paulo entre 1890 e 1960 e vai gerar também um banco de dados para consulta pública. Desde seus primórdios, a história da USP é pioneira na introdução de temas e abordagens. Professor da USP entre 1935 e 1937, Fernand Braudel, um dos expoentes da chamada segunda geração da École des Annales, difundiu a noção de “tempo longo”, mais lento que o dos acontecimentos circunstanciais, e da história das mentalidades e das ideias. Sua influência se estendeu por décadas na FFLCH. Posteriormente, outros nomes de peso tiveram papel importante sobre o perfil das gerações seguintes de historiadores formados no departamento. Tendo escrito Formação do Brasil contemporâneo – Colônia, em 1942, obra-chave de sua produção intelectual, Caio Prado Jr. difundiu uma historiografia de caráter marxista. Autor do clássico Raízes do Brasil, livro de 1936, Sérgio Buarque de Holanda assumiu em 1958 a cadeira de história da civilização brasileira na USP com a tese Visão do paraíso – Os motivos edênicos no descobrimento e na colonização do Brasil. “Sua produção é muito respeitada até hoje”, diz Capelato. n PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 81


ARQUEOLOGIA

De Lagoa Santa a Zarqa Brasileiros procuram por antigos hominídeos na Jordânia

ntre outubro e novembro passado, o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), se dedicou ao trabalho de campo de um novo projeto: ao lado de colegas brasileiros, italianos e do Oriente Médio, fez escavações na região do vale do rio Zarqa, um afluente do famoso rio Jordão que cruza o planalto central da Jordânia. Com cerca de 50 cavernas pré-históricas, algumas com indícios de indústria lítica humana muito antiga, essa área deve ter sido habitada pelos primeiros hominídeos que deixaram a África em direção à Ásia e possivelmente à Europa há cerca de 1,8 milhão de anos. “Fazer pesquisa no Oriente Médio sempre foi um sonho meu”, diz Neves. Ousadia nunca faltou ao pesquisador da USP que, com seus trabalhos conduzidos nas duas últimas décadas em Lagoa 82 ESPECIAL 80 ANOS USP

Santa, nos arredores de Belo Horizonte, tem defendido uma nova teoria sobre o processo de colonização das Américas. A partir da análise das características anatômicas de mais de 80 ossadas humanas encontradas nessa região mineira rica em sítios arqueológicos, com destaque para os estudos sobre o crânio de Luzia (com 11 mil anos de idade), Neves sustenta a ideia de que nosso continente foi colonizado por dois grupos distintos de Homo sapiens vindos da Ásia. A primeira leva migratória teria ocorrido há uns 14 mil anos e incluía indivíduos semelhantes a Luzia, com morfologia não mongoloide, similar à dos atuais australianos e africanos. Esse grupo não teria deixado descendentes. A segunda onda teria entrado aqui há uns 12 mil anos e seus membros apresentavam o tipo físico peculiar dos asiáticos, dos quais os índios modernos derivam. A tese foi e continua sendo polêmica, mas

atualmente quase todos os trabalhos internacionais que tratam do processo de povoamento das Américas têm de ao menos citá-lo – nem que seja para refutar as ideias de Neves. SAMBAQUIS

Além do debate em torno do povo de Luzia, a arqueologia da USP tem dado outras contribuições importantes a esse campo de estudo. Grupos de pesquisa do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) e a equipe de Sabine Eggers, do IB-USP, têm pesquisado ao longo da costa brasileira um tipo de vestígio arqueológico conhecido como sambaquis, montículos de conchas onde os povos pré-históricos enterravam seu mortos. Uma das descobertas mais interessantes foi Luzio, apelido dado ao esqueleto humano de 10 mil anos de idade descoberto em 2000 em um sambaqui fluvial do Vale do Ribeira, em São Paulo. n

ASTOLFO ARAUJO

E

Trabalho de campo no vale do rio Zarqa: local de passagem dos hominídeos que deixaram a África



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