
4 minute read
"POÉTICA DO ABISMO" de Carlos Guedes
from LITTERA 2
Poética no abismo
.Sou o viajante que surgiu sobre as cordas dos sonhos, na corda de aço ensaio meus passos, na linha de angústia vou detalhando um resto de sombras, sei que é difícil caminhar sobre o abismo da existência, lá embaixo, o público aplaude dentro de seu medo, minha queda terá um preço de liberdade, um pedaço estraçalhado da existência, desacredito que no ar minha vida se refaz em desespero, sei me transformado em fogo e indiferença, um perdido incêndio feito palavra e ódio e minha metamorfose será mais importante que meu destino nesta corda bamba, sombras que me reservam para esta estrada, em que cada passo busco o equilíbrio, meu sistema nervoso explodindo todas as formas de um grande desastre, minha mulher esperando o espetáculo terminar, o show , para comprar seu remédio, fraca, nervos doentios, e minha estrada de cordas de aço, são deslizadas de grandes angústias, e as palavras se perdem na altura em que me encontro, perco de ser em ser , meu precipício tem tonalidades escuras, o princípio de uma grande fatalidade que um dia há de se cumprir, a dor dentro de meu tempo, a esperança é uma lembrança morta, minhas primeiras lições de andar sobre cordas foi com os macacos de um circo, fui sempre aumentando minha altura, já estava nos cinquenta metros de altura, talvez um dia atravessasse o Niágara, mas a minha esperança fica na indiferença do tempo, a ventania aumenta, balança os galhos das árvores, as cordas dançam dentro de um equilíbrio, exigem a precisão dos passos, e minhas palavras são como pássaros negros escondidos dentro desta vida sem rumo de encontros, estou alojado de lembranças viajante, meu destino quebrado de cristais em lembranças, um fruto da realidade se esconde dentro destes abismos que recrio em cada apresentação, meu sustento refeito no soar das cordas como um pedido de socorro, a traição de uma vida que revia em mistérios, eram as ruas.
Advertisement
Poética no abismo o asfalto, os ipês amarelos, saber que meu andar estava pairando acima de tudo, o acrobata em mim vivia da sorte esvaziada de minha realidade , o tremor de saber que tudo tem o princípio do fim , era uma teia no espaço em que os tentáculos da aranha eram meu guia, cego me esticava com o saber de onde pisar, era a solidão de estar sobre cordas e abaixo a negritude de um grande abismo e minhas palavras, meus sussurros não eram de preces, mas de sentir o peso de um mundo que perdeu seu significado, queria estar perto de um desconhecido céu em que pássaros voassem ao meu redor, pé após pé ia seguindo, o pensar no equilíbrio, na altura tudo se transforma em matéria de memória, poderia cair dentro de um mito, escrever na corda o mistério do medo, as metáforas de uma caminhada entre a ponte que me separava de meu silêncio e os gritos, novos aplausos, ali estava o público, morando em cada ansiedade, tenso em cada escorregada, leve chuvisco umedecendo as cordas, minha vida esparramada num grito interior, fico achando que a lógica do tempo está dentro de cada agonia de quem assiste, a cada momento estou inundado de reflexões montadas sobre o aço das palavras que fazem parte de meu universo, penso no desenlace, na minha destruição, na amargura de tentar desistir de minhas ilusões, da amargura de tentar me reconstruir numa nova vida, desistir das lembranças, do último adeus de minha família em seguir um grupo cigano, um pedaço de aço que perfura minhas veias doentes de indiferenças e que me conduz para um nada, a ventania aumenta, sinto a dificuldade de me equilibrar, tudo balança, meus olhos percebem o esparramar da multidão...meus olhos se turvam e sinto que estou apagando dentro da ventania e de um céu azul e sei que vou c a ir...o corpo s e divide entre espasmos...agora talvez o infinito de se dissolver entre o vento e a queda, último momento do viajante equilibrista em retornar à sua vida e voar junto aos pássaros.