(Des)Prazer da norma

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Prefácio | 37

de sujeitos e rupturas conjugais que mostram como nas disputas em torno do tempo dedicado ao cuidado dos filhos convergem disparidades que revelam as expectativas sociais generificadas em relação a pais e mães. O tempo, que geralmente pensamos como sucessão de acontecimentos, adquire o seu sentido preciso nas relações interpessoais, nas experiências do cuidado dos outros e de si. O tempo que a criança toma, quando contado, é descontado, sobretudo, do tempo que os pais, as figuras paternas, teriam para si mesmos. Para eles, usualmente, o “tempo para si” acontece sem a necessidade de sistematicamente disputá-lo, sem que um grande peso afetivo-moral sobre eles se abata. O mito ao redor da “maternidade correta”, aquela propagada a partir da figura da mãe sacrificial, é acionado nas relações para justificar abusos, para provocar o assujeitamento das mães à conversão contínua do “tempo para si” em tempo dedicado ao cuidado do outro, dinâmica que opera com maior eficácia nos casos dos sujeitos atravessados por vulnerabilidades sociais. Essas assimetrias que reverberam no interior de territórios existenciais podem tanto ser negociadas quanto se cristalizarem como desigualdades. As múltiplas possibilidades de uso do tempo, quando facultam às mulheres movimentos no sentido da agência e da mobilidade social – tais como o de “cuidar menos”, o de partilhar o cuidado dos filhos com terceiros e o de cuidar de si –, configuram-se como uma política dos pequenos atos que (re)estruturam no cotidiano relações e afetos, ou como preferimos dizer, tratam-se de pequenos gestos que movimentam o mundo a duras penas. O que não quer dizer que a figura da mãe sacrificial deixe de resistir no interior desses movimentos gerando constrangimentos, encargos de consciência e avaliações de cunho moral. Debora, principal interlocutora de Fernandes, ao reivindicar o “tempo para si” se viu obrigada a mobilizar justificativas, como se a aquisição de “tempo para correr atrás” fosse moralmente questionável. A autonomia relativa que ela angariou está longe de ser simplesmente individualista, pois permanece relacional. Assim, a autora discute a usurpação do tempo feminino, as “prisões” instauradas pelo cuidado das crianças, os gestos de partilha do cuidado entre mulheres, os diferentes valores atribuídos ao trabalho realizado em casa e na rua, os alívios acompanhados de sofrimento. Tempos generificados nas batalhas do dia a dia.


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