Mundus N⁰11

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número 11 - 1º trimestre de 2020

edição digital

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índice

A sigla LGBTQI+ será usada nesta edição para designar o grupo de pessoas Lésbicas (L), Gays (G), Bisexuais (B), Transsexuais (T), Queer (Q), Intersexo (I), e outras minorias sexuais (+).

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para uma história do reconhecimento lgbtqi+

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perfil mundus - Eduarda ferreira

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transgénero em portugal: do "vazio" à autodeterminação da identidade de género

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terrorismo "antigênero";

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entre não-binarismos: a abolição do género


para uma história do reconhecimento lgbtqi+

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Para uma história do RECONHECIMENTO LGBTQI+ Em 2019, Portugal assinalou o 20º aniversário da ocupação do espaço público através de uma marcha, a Marcha do Orgulho em Lisboa. A história começara bem antes, no 1º de maio de 1974, a dar os seus primeiros passos. Recordemos que durante os primeiros 8 anos do regime democrático – entre 1974 e 1982 – a homossexualidade era ainda um crime punível com pena de prisão até 2 anos. Nos anos iniciais de vazio jurídico, era preciso sublinhar a diversidade sexo-genérica como identidade que importava reconhecer e salvaguardar. O argumentário em torno de se nascer num corpo errado ou de a orientação sexual ser inata e não escolhida correspondia a uma necessidade histórica. Sabemos hoje que a experiência humana é riquíssima, complexa, dinâmica, que não nascemos coisa nenhuma, antes nos tornamos – diria Simone de Beauvoir – num processo de formidável devir. Com tal legado, a primeira parte da história do reconhecimento sexual e de género sublinhou uma política de identidade como forma de agregar e de dotar de peso político reivindicações que careciam de respaldo jurídico e social. Era este o tempo da identidade que, em Portugal, corresponde ao período situado entre 2001 e 2010. Durante essa década, graças à mobilização bem-sucedida de narrativas identitárias coesas acompanhadas de estratégias de ativismo sincrético (Santos, 2013, 2018)1 por parte do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bisexuais e Transsexuais) português, assistimos a uma aceleração sem precedentes dos direitos de cidadania íntima, sexual e reprodutiva. Mas o tempo da identidade, inspirado pelas políticas de identidade que chegaram tardiamente ao contexto português, não considerava as significativas diferenças internas não só entre os grupos agregados sob a sigla LGBT, mas também no interior de cada um deles, alimentando um imaginário coletivo e homogéneo acerca de cada categoria. Paralelamente, esta era uma estratégia que fomentava o autocentramento na causa única (single issue) e com dificuldade em olhar para experiências de discriminação cumulativa e em consolidar alianças agregadoras. Uma segunda temporalidade corresponde à época de austeridade imposta com a entrada da Troika e o desmantelamento do Estado Social. Era urgente reagir. Este estado de exceção com caráter de emergência con-

“Recordemos que durante os primeiros 8 anos do regime democrático – entre 1974 e 1982 – a homossexualidade era ainda um crime punível com pena de prisão até 2 anos.” duziu-nos, a partir de 2011, ao tempo da solidariedade, em que as questões da liberdade e da autodeterminação sexuais se interligavam com o direito ao emprego e à habitação. Nesta altura, líderes do movimento LGBT passam para a linha da frente da denúncia da precariedade e da exigência de um outro mundo que se afirmava possível. Todas e todos éramos nesta altura tudo: especialistas em economia alternativa, representantes do trabalho a recibo verde e das/os bolseiras/os sem direitos, defensoras/es da educação informal, porta-vozes das plataformas agregadoras dos movimentos sindicais, ambientalista, anti-racista, feminista, dinamizadoras/ es da resistência ao empreendedorismo, à bibliometria obstinada e a demais formas predatórias de exploração. Foi um tempo rico e exigente que, de alguma forma, esgotou os já de si frágeis recursos humanos que constituíam o braço visível da diversidade sexual e de género no país. E, de facto, durante os anos daquele tempo da transversalidade, não se registaram avanços significativos nos direitos (ainda) LGBT. E logo chegou 2014, um novo ciclo governativo com a recuperação do Estado Social e, com ele, da esperança e da possibilidade de um outro tempo, desta vez mais disponível para acolher a diversidade interna sem medo de se perder ou descaracterizar. Será porventura cedo para conseguirmos reconhecer este tempo que se seguiu, aquele em que nos encontramos. Imaginar cada curva da estrada que estamos a percorrer é um exercício de imaginação sociológica, quase especulativo. Podemo-nos deter brevemente nos indícios que permitem suportar a hipótese de que um novo tempo se avizinha paralelamente à crescente diversidade que, muito lentamente, começa a ser visível desde logo no ativismo. À medida que o enquadramento jurídico se alargava,

1. Santos, Ana Cristina (2013), Social Movements and Sexual Citizenship in Southern Europe. Basingstoke: Palgrave-Macmillan; Santos, Ana Cristina (2018), “Luta LGBTQ em Portugal: Duas décadas de histórias, memórias e resistências”, Revista TransVersos, 14, 36-51.

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acompanhado de um maior conhecimento psicossocial sobre diversidade de género e sexual, abria-se também o espaço para formas de pertença identitária e conjugações interseccionais que atravessavam as múltiplas pertenças de cada pessoa. Essa abertura teve reflexo na transformação da sigla, primeiro de GLBT para LGBT (para sinalizar a importância do combate à dupla discriminação que afetava as mulheres lésbicas por via do sexismo e da lesbofobia), mas depois para permitir integrar pessoas assexuais, pessoas intersexo, pessoas queer, até se estabilizar o uso do + como forma de reconhecer que nenhuma sigla será jamais completa. Passo a passo, muito por via da afirmação do transfeminismo e do feminismo negro com participação organizada em momentos de visibilidade LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bisexuais, Transsexuais, Queer, Intersexuais, +), a partir de 2016, surgem em Portugal projetos coletivos que colocam a tónica no triplo combate ao heterossexismo, ao racismo e à precariedade – Coletivo Zanele Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras (2016), FEMAFRO — Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes (2016) e INMUNE — Instituto da Mulher Negra (2018). É durante este tempo que se cria um bloco Trans na Marcha do Orgulho de Lisboa, e que associações que trabalham sobre temas intersexo e trans assumem maior relevo político, nomeadamente em 2017 e 2018, no âmbito da discussão parlamentar visando as alterações à Lei de Identidade de Género. Por fim, também na Academia, registamos uma abertura da própria agenda de investigação LGBTQI+, integrando temas como o bullying ou o envelhecimento, centrais em projetos europeus em curso no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – Diversity and Childhood (2019-2021) e CILIA Vidas LGBTQI+ (2018-2021), respetivamente. Terá chegado, finalmente, o tempo da interseccionalidade? Ana Cristina Santos, cristina@ces.uc.pt Socióloga, Investigadora Principal em Estudos de Género no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC) Esta publicação foi possível graças ao financiamento obtido pela Comissão Europeia ao abrigo do Programa Rights, Equality and Citizenship (ref. 856680) e pela agência europeia NORFACE via FCT (ref. NORFACE/0001/2016).

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“a partir de 2016, surgem em Portugal projetos coletivos que colocam a tónica no triplo combate ao heterossexismo, ao racismo e à precariedade”


perfil mundus - Eduarda ferreira

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Perfil MUNDUS O espaço (físico e simbólico) das mulheres lésbicas em Portugal

Eduarda Ferreira acompanhou o ativismo LGBTQI+ em Portugal desde os seus anos iniciais: esteve nomeadamente na criação do Clube Safo e ajudou a organizar a Primeira Marcha do Orgulho. Hoje, é uma figura incontornável ligada à defesa dos direitos das mulheres lésbicas no nosso país. Passando das ruas aos livros, Eduarda enveredou pela Academia. Hoje, é investigadora integrada do CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Não desligando o seu ativismo da sua investigação, os interesses principais de Eduarda relacionam-se com questões relativas à (des)igualdade de género. Com um especial foco nas dinâmicas socioespaciais de inclusão/ exclusão, Eduarda é membra-fundadora da Rede de Estudos de Geografia, Género e Sexalidade Ibero Latino-Americana (REGGSILA) e tem vindo, nos últimos anos, a desenvolver pesquisas sobre a (in)visibilidade espacial de mulheres lésbicas e de outras minorias sexuais. Com formação em Psicologia Educacional, Eduarda Ferreira é ainda psicóloga educacional na Escola Secundária Sebastião da Gama, em Setúbal, onde trabalha junto de crianças, jovens e adolescentes por forma a sensibilizá-los para a educação sexual e as questões de género. Uma versão mais longa desta entrevista será publicada no nosso Patreon. Esta parte da entrevista foca-se nas questões das mulheres lésbicas, nas opressões específicas sentidas por este grupo minoritário e no movimento ativista lésbico em Portugal.

uma conversa com Eduarda Ferreira

bells hooks refere que a academização do feminismo, pelo menos nos EUA, acabou por dar mais espaço para mulheres heterossexuais, que, como ela diz, tinham “credenciais chiques” e eram “mais respeitadas”, mesmo quando estas não tinham qualquer envolvimento com o movimento feminista fora da Academia. Qual a importância da militância, e principalmente da militância pelos direitos das mulheres lésbicas, dentro de espaços formais? É extremamente importante porque é uma questão da visibilidade das próprias pessoas. Ainda estamos aí. O ideal seria chegarmos a um momento em que já não interessa a identidade de cada pessoa. Mas a verdade é que ainda estamos num momento em que há uma ausência da presença de mulheres assumidamente lésbicas na Academia, e no espaço público em geral, aliás. Em Portugal, a situação é um bocado diferente do que aconteceu em outros países anglo saxónicos, onde houve grandes confrontos e dificuldades entre o movimento feminista e o movimento lésbico. Nós temos um movimento associativo diferente: tardio, já apanhámos o final da segunda vaga. Portanto, o nosso movimento é muito diferente da história linear que se conta nos livros académicos sobre o movimento feminista. Em Portugal, as questões das lésbicas têm conseguido uma maior visibilidade dentro do movimento feminista do que propriamente dentro do movimento LGBTQI+. Isto pode ser polémico, mas acho que é a realidade. Isto porque o movimento LGBTQI+ acaba por ser também um reflexo da sociedade em que estamos inseridos, isto é, uma sociedade onde há um determinado tipo de sexismo. Como tal, as questões ligadas à(s) sexualidade(s) dos homens acabam por estar mais presentes do que

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“A nossa sociedade ainda está organizada, em quase tudo, numa divisão entre homens e mulheres. Este sistema binário é estrutural. Romper com ele, ou simplesmente questioná-lo, é muito complicado.”

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propriamente as das mulheres. Não digo que isto seja feito de forma intencional, mas é o que tem vindo a acontecer. Assim, as questões específicas das lésbicas não estão tão presentes no movimento LGBT, mas sim no movimento feminista. Por exemplo, associações como a UMAR [União de Mulheres Alternativa e Resposta] ou a FEM [Associação Presença Feminina] inscrevem na sua ação as questões lésbicas, de forma quase sistemática. Também é interessante constatar que noutros países, os que têm a narrativa dominante e hegemónica, tem havido um confronto entre as mulheres lésbicas e as questões trans. Nós cá, pelo menos do que eu conheço, não temos esse movimento. Ser mulher não é uma questão biológica. Quem se diz mulher, quem se sente mulher, é mulher. Numa pesquisa sua sobre a situação do movimento lésbico em Portugal, publicada há 5 anos, refere que uma das possíveis formas de evolução no movimento lésbico é promover ações conjuntas com o movimento feminista, trans e queer, assim como com movimentos emergentes que questionem os binarismos normativos de sexualidade e de género. Hoje, como avalia a interação do movimento lésbico com essas outras frentes? Eu acho que não existe propriamente movimento lésbico em Portugal [risos]. O Clube Safo, que está agora a tentar reativar-se, é a única associação em Portugal

com uma pauta específica sobre os direitos das lésbicas, só que agora ainda está muito parado. Então, a verdade é que não há um movimento lésbico estruturado em Portugal. Há várias mulheres lésbicas em vários movimentos a fazer várias coisas. O que não é necessariamente mau: nós não temos de andar sempre todos “na nossa capelinha”, pois obviamente ninguém é só lésbica, ninguém é só negra, ninguém é só precária, etc.. Somos várias coisas ao mesmo tempo e, por isso mesmo, é normal que nos juntemos e que nos identifiquemos com várias lutas e movimentos. Esta mistura de pautas, de ativismos e de movimentos acontece, nomeadamente quando há Marchas do Orgulho ou Marchas de Mulheres/Feministas. Mas, fora disso, no movimento anti-racismo, por exemplo, praticamente não se fala da orientação sexual das pessoas não-brancas. Também não vemos muitas pessoas não-brancas no movimento LGBTQI+ ou no movimento feminista… De modo geral, aliás, não há muitas pessoas não-heterosexuais nos outros movimentos. Ou seja, ainda assim, ainda com a mistura de que falei, há alguma dificuldade. Porque é que esses cruzamentos entre movimentos são importantes? Será que o importante é entender que o género atravessa todas as opressões? Isso é interessante. Há quem defenda – e eu sou um pouco defensora disso também – que a questão de género é claramente dominante. “Dominante” no sentido


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em que está sempre presente. Desde o racismo à classe social, à orientação sexual, passando pelo acesso ao poder político, o “género” está presente e faz diferença. A nossa sociedade ainda está organizada, em quase tudo, numa divisão entre homens e mulheres. Este sistema binário é estrutural. Romper com ele, ou simplesmente questioná-lo, é muito complicado. Avançou-se muito nos últimos anos, com a conquista da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2010, e da adoção de crianças por casais LGBTQI+, em 2016. Quais são os atuais desafios da militância? Sim, houve um avanço incrível. Do ponto de vista da identidade de género, temos uma lei incrível. Esta lei permite que, por exemplo, nas escolas, as pessoas possam utilizar o nome que quiserem mesmo sem terem efetuado a mudança de nome no documento de identificação civil. Eu acho que a nível legal até chegámos a um vazio porque muita coisa foi já aprovada. Por isso mesmo, mais do que mudanças da lei, deveríamos era garantir que estas são cumpridas. Para além das mudanças legislativas, o Estado deveria promover projetos concretos de intervenção e de educação nas escolas, de modo a sensibilizar opinião pública para estas questões, em particular dos mais jovens. Isto porque a maior parte das associações em Portugal vivem do voluntariado. Temos pouquíssimas associações LGBT ou feministas com recursos para ter alguém a trabalhar a tempo inteiro. Portanto, seria necessário ganharmos um pouco mais de apoio estatal. À semelhança do que acontece em outros países, deveria ser o desígnio do governo apoiar as forças da sociedade que se movem para promover a mudança. Mas, apesar disso, se as associações se unissem, seria mais fácil estas implicarem-se diretamente na definição das políticas públicas. Para que haja grupos de pressão, é primeiro necessário que haja união. Mas há uma questão de protagonismo no ativismo, as pessoas têm dificuldades em negociar, em fazer coisas em conjunto, em trabalhar em rede. Ora, nós devíamos apostar mais nisso, especialmente porque somos ativistas e associações dentro de uma contracorrente. Devia ser a marca desta contracorrente contrariar os traços desta sociedade, para mostrar que é possível trabalhar em rede, que é possível ter lutas comuns em torno de objetivos comuns. Uma frente que abarque as questões do racismo, as questões de classe social, as questões da

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orientação sexual seria uma plataforma grande e forte – este deveria ser o caminho a seguir. Érica Sarmet, no livro Explosão Feminista, refere que houve uma desmobilização do ativismo lésbico no Brasil, concomitantemente com a popularização das pautas e dos debates nas redes sociais e com a conquista de alguns direitos. Considera que o mesmo aconteceu em Portugal? É verdade que há quem pense que já não há nada fazer... Mas as pessoas não estavam nas associações apenas a lutar pelas mudanças na lei. As associações são um espaço de encontro, de convívio, de rede, de relações. A internet, ao permitir essa rede de relações sem ser através da presença física em determinados locais, veio esvaziar aquela necessidade de ir às associações, de participar nos encontros, etc. Enfim, o digital veio mudar a vida de todos nós a todos os níveis. E ainda estamos a aprender a lidar com isso. As associações em Portugal têm muito que aprender para poderem tirar proveito da enorme força que é o online: a possibilidade de estarmos em vários lugares ao mesmo tempo, a possibilidade de, num segundo, conseguirmos informar inúmeras pessoas. Por exemplo, agora, é possível organizarmos uma manifestação para hoje à tarde porque algo aconteceu. Apesar de ser licenciada em Psicologia, a Eduarda enveredou pela geografia humana. De que forma o espaço urbano pode demonstrar – ou até perpetuar – a invisibilidade das mulheres lésbicas, nomeadamente no contexto português que conhece melhor? Eu fui justamente para a geografia porque o espaço é uma dimensão extremamente importante na vida das pessoas que sofrem algum tipo de discriminação, nomeadamente discriminações relacionadas com a orien-

“Uma frente que abarque as questões do racismo, as questões de classe social, as questões da orientação sexual seria uma plataforma grande e forte – este deveria ser o caminho a seguir.”

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perfil mundus - Eduarda ferreira

tação sexual. Porque a orientação sexual tem um aspeto particular: a possibilidade da invisibilidade. Quando estamos na rua, só se tivermos certo tipo de comportamentos é que as pessoas percebem. Podemos decidir mostrar ou não mostrar. Por isso é que se fala em “sair do armário”. Quer dizer, ninguém fala que uma mulher tem de sair do armário enquanto mulher, ou que a cor da pele tem de sair do armário. Está à vista. Pode haver alguns casos em que não é tão visível, mas, em geral, a maior parte das discriminações que existem na nossa sociedade são visíveis, não há a opção de esconder. Na orientação sexual, não. A orientação sexual é uma característica que tem a ver com a identidade, e a identidade é uma coisa fluida. Portanto, é uma coisa que é possível esconder, é fluida, não fixa. Pela minha experiência enquanto lésbica no espaço público, percebi que o espaço público, essencialmente urbano, é um espaço de grande dificuldade. As pessoas escondem, têm medo de dar a mão, de dar um abraço, um beijo – que é o que os torna visíveis. E isto ainda acontece hoje em dia, mesmo mulheres jovens! Apesar de ter havido muita mudança, ainda existe algum receio ou, pelo menos, a consciência de que alguém pode estar a olhar. As dinâmicas generificadas do espaço urbano são bem conhecidas; ora, juntando, género e orientação sexual, a situação é ainda mais específica. Então, eu queria proporcionar mais espaços seguros, onde as pessoas se possam sentir seguras. Foi essencialmente sobre isso: como ter espaços públicos seguros para as mulheres lésbicas. Entrevista por

Bibiana Garcez & Mariana Riquito, Mestrandas em Jornalismo (FLUC) e em Relações Internacionais (FEUC), respetivamente Ilustração: Vika Pigatto


transgénero em portugal: do "vazio" à autodeterminação da identidade de género

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Transgénero em Portugal: do “vazio” à autodeterminação da identidade de género Quando falamos de “transgénero”, falamos da identificação e/ou expressão de género de modos não expectáveis face ao sexo atribuído à nascença. A atenção às questões trans a nível social e, especificamente, das ciências sociais e das políticas públicas, é ainda recente. É sobretudo a partir dos anos 1990 que se começa a constituir um corpo de trabalho na área dos “estudos transgénero” e a consolidar a categoria institucional de “identidade de género” para abarcar este fenómeno. Desde então, tem-se vindo a assistir a uma mudança de paradigma na interpretação do transgénero, desde a sua localização exclusiva no âmbito da medicina, com as suas diversas formas catalogadas como doenças mentais, até à sua entrada na esfera dos Direitos Humanos, como estabelecido nos Princípios de Yogyakarta, em 2007, pela Aplicação das Leis dos Direitos Humanos em Relação à Orientação Sexual e à Identidade de Género. Estabelecido internacionalmente o “direito à identidade de género” como um novo direito fundamental da humanidade, os Estados são interpelados a tomar medidas que o concretizem e que protejam, nas diversas esferas, as pessoas com identidades e/ou expressões de género trans. Portugal, onde um “vazio” social relativo ao transgénero permaneceu até ao início da presente década, tem vindo, desde essa altura, a percorrer um caminho de forma célere e sustentada. Quer na Academia, onde as identidades trans extrapolaram as fronteiras das ciências psico-médicas e se instalaram de pleno direito nas ciências sociais, contribuindo para a sua legibilidade, não como patologia, mas como “identidades de género socialmente minoritárias”; quer ao nível político, com impacto na legislação e nas políticas públicas. Em cerca de uma dezena de anos, o “vazio” foi sendo preenchido, primeiro com uma lei, inovadora à época da sua aprovação, que regulava a alteração do nome e menção ao sexo na documentação para pessoas maiores de idade com diagnóstico de “perturbação de identidade de género” (Lei 7/2011). Seguiu-se-lhe a entrada da identidade de género no Estatuto do Aluno (2012), no Código Penal (2013), no Código do Trabalho (2015). O processo culminou na lei de autodeterminação da identidade e expressão de género (Lei 8/2018), que marca um novo e significativo patamar, ao implicar, entre outras coisas, a autossuficiência das próprias pessoas no processo de reconhecimento legal da sua identidade de género. Ao nível das políticas públicas, a identidade de género

“Mesmo que as condições reais de vida das pessoas trans em Portugal não tenham evoluído ao ritmo da legislação e da inscrição nas políticas públicas, e mesmo que estas tenham ainda muitas insuficiências, estes avanços devem ser notados e celebrados” é contemplada, pela primeira vez, no Plano Nacional para a Igualdade 2011-2013 e, em 2018, transita para o Plano de Ação para o Combate à Discriminação em razão da Orientação Sexual, Identidade e Expressão de Género, e Características Sexuais. Já em 2019, foi criado um despacho sobre as medidas a adotar pelas escolas face a crianças e jovens trans (Despacho n.º 7247/2019) e uma Estratégia de Saúde para as Pessoas LGBTI (DGS, 2019). Todo este processo contou com – e/ou foi mesmo impulsionado pelo – o trabalho individual e coletivo das pessoas trans, que se tornaram cada vez mais visíveis e capacitadas para reivindicar os seus direitos e propor soluções. Mesmo que as condições reais de vida das pessoas trans em Portugal não tenham evoluído ao ritmo da legislação e da inscrição nas políticas públicas, e mesmo que estas tenham ainda muitas insuficiências, estes avanços devem ser notados e celebrados, tanto mais se comparados com a situação vivida em outros países do mundo e até no contexto europeu. Tendo a segunda década do século XXI constituído o período que inaugura a aquisição de direitos relativos à identidade de género em Portugal, é forçoso continuar a trabalhar para garantir que os próximos dez anos sejam marcados pelo impacto destas e de novas conquistas na vida destas pessoas, traduzindo-se na experiência escolar, no acesso aos cuidados de saúde e ao emprego, bem como, em geral, na vivência do espaço público livre de discriminação. Sandra Palma Saleiro, Investigadora do CIES-IUL e Professora Auxiliar Convidada do ISCTE-IUL

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terrorismo "antigênero"

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Terrorismo "antigênero" “Ideologia de gênero”. Já ouviu essa expressão? Se já, não a use em vão. Se não, não entre em pânico. Aprender sobre “ideologia de gênero” é muito “perturbador”, de acordo com um Pastor em Cascais. De antemão, é preciso desfazer os equívocos que tal expressão carrega e constrói na forma de uma espiral infinita, porque cria um paradoxo interno e contínuo. Como demonstram os estudos do sociólogo brasileiro Rogério Junqueira, tal noção surge com a Igreja Católica no livro L’Évangile face au désordre mondial (1997), do Monsenhor Michel Schooyans. Mais tarde, o Conselho Pontifício para a Família publicou, em 2003, o Lexicon: Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Os documentos teciam uma crítica ao aborto, ao “antifamilismo”, ao “colonialismo sexual”, à “ideologia da morte” e defendiam a “dignidade do matrimônio”, já que este traduz o “modelo natural de casal universal, composto por um homem e uma mulher heterossexuais”, único capaz de “transmitir a vida”. Por conta disso, dever-se-ia garantir o direito das crianças de serem criadas por uma “família de verdade”, enquanto os outros direitos ligados à ideologia deveriam ser barrados e a primazia (ou a exclusividade) da educação moral e sexual das crianças seria da família. Nas últimas décadas, tal sintagma tem vindo a ser cada vez mais utilizado diferentemente em certos contextos. No caso do Brasil, foram os evangélicos a apoderarem-se dele. Algo, aliás, não muito diferente do que tem acontecido em Portugal. São algumas Igrejas Evangélicas (em que os líderes não são brasileiros) que têm organizado eventos sobre o tema, porém sempre de forma ecumênica, pois estrategicamente evocam a ideia de que Portugal é um país cristão e nem todos os oradores e os participantes são protestantes. O primeiro equívoco é que o termo “ideologia de gênero” é redutor, pois condensa um campo de estudos e ativismos abrangente, seja ele o dos feminismos, das questões de sexualidade e de gênero. “Gênero” seria uma “falsidade ideológica”, porque as teorias de gênero seriam refutadas pela biologia, para esse movimento

“Os estudos de gênero (principalmente transfeministas e queer) não querem que ninguém seja transgênero (ou cisgênero), querem apenas que estas pessoas não vivam em condições precárias e que sejam reconhecidas ética e juridicamente como humanas.” religioso. Essa estratégia retórica é muito rica: utilizam ideias científicas, supostamente neutras, para embasarem a noção de que o sexo biológico cria uma coerência inescapável entre sexo, gênero e sexualidade. Não há espaço suficiente para aprofundar o que filósofas, sociólogas e pesquisadoras das áreas biológicas têm demonstrado, refutando muitas ideias simplistas e desonestas, mas em suma: cada corpo é significado de uma forma em um contexto espacio-temporal por meio de limitações em relações de poder (com Estado, família, mídias, ciências) e ele opera sua forma de agir entre aquilo que deseja e aquilo que lhe constrange. Haja em vista que há um recente pânico com pessoas trans, há outro equívoco derivado daquele. Primeiramente, pessoas trans existem e são constantemente violentadas por terem de suportar uma sociedade que pressupõe que o seu corpo e a sua expressão de gênero devem seguir um guião. Os estudos de gênero (principalmente transfeministas e queer) não querem que ninguém seja transgênero (ou cisgênero), querem apenas que estas pessoas não vivam em condições precárias e que sejam reconhecidas ética e juridicamente como humanas. Não são os corpos das pessoas que estão equivocados São sim as expectativas colocadas sobre estas pessoas que estão equivocadas, e que só conduzem a mais sofrimento.

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Em segundo lugar, há um apagamento de pessoas intersexuais. A condição intersexo é aquela segundo a qual um dos elementos do sexo (genitais, cromossomos, hormônios, caracteres sexuais secundários, gônadas) não se encaixa exatamente no esperado para um corpo “fêmea” ou “macho”. Hoje, a cirurgia em genitais do bebê não é mais permitida em Portugal pela última Lei de Identidade de Gênero, porque se reconhece que tais cirurgias são meramente estéticas e que trazem diversos sofrimentos físicos e mentais para os corpos mutilados quando crianças. A grande questão é: onde está a voz da criança? Esses movimentos falam muito de si, dos pais, de seus desejos, de sua forma de dar educação. Quem é a criança? Um recipiente de informações pronto para ser formatado e controlado. Ao ser vigiada pelas normas de gênero encara sempre o perigo das sanções, as proibições, a violência física, o castigo, a raiva. Ela não seria agente de sua própria história, sujeito produtor de conhecimento e com potencial para mudar o mundo em que vive. Para entender o problema, mobilizo a noção de “educação sexual” para refletir sobre as possibilidades de resolução desse conflito levantado pelos pais (não pelas crianças). Encontro três esferas diferentes que têm suas formas específicas de ação: educação, política e direito. A educação sexual pode ser intencional (formal ou não-formal) ou informal. A informal é aquela que ocorre em todos os espaços, na casa, com amigos, na escola e com as mídias. São os significados compartilhados em diversos atos (de fala ou não) sobre relacionamentos, o corpo, os prazeres, os comportamentos esperados para

seu gênero e as atividades sexuais. Já a educação sexual intencional é aquela organizada para se discutir tais significados, mas facilitada por alguém capacitado para tal ação (professores, educadores sociais, profissionais da saúde, acadêmicos etc.). No campo político, a confusão que se faz é por conta de partirem do pressuposto que a criança é inocente e refutarem (sem argumentações) pelo menos um século de trabalhos acadêmicos demonstrando que não existe uma inocência pré-discursiva. Os professores não poderiam ensinar e conversar sobre alguns assuntos (como a homossexualidade ou a identidade de gênero) porque isso iria contra as crenças dos pais. Tratam abstratamente o espaço público, portanto, como uma sociedade de indivíduos que vivem com suas famílias e que seguirão à risca todos os comportamentos de gênero esperados até os 17 anos e 364 dias, sem possibilidades de dissenso com as próprias crianças. Ilusão. Estrategicamente, requerem que apenas seus filhos sejam retirados das aulas como “objetores de consciência”, ou que o Tribunal Constitucional reconheça que não se pode falar de identidade de gênero nas escolas por ser “ideológico” e já estão pensando em como atacar a nova disciplina de Desenvolvimento e Cidadania. Ao mesmo tempo, muitos reforçam que não estão contra os professores, mas sim contra a “falsa ideologia de gênero”. Argumentam que os pais são os únicos responsáveis pela educação sexual da criança, porque têm seu direito à liberdade religiosa de educar os filhos como bem lhes entende. Esses idealizadores de uma educação que não


terrorismo "antigênero"

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“Constroem um pânico moral em torno das transgeneridades sem respeitar tanto essas possibilidades de identificação, quanto os corpos intersexuais. Por isso, constroem um terrorismo contra o gênero a partir desse “sexo” ideologicamente limitado por uma concepção estreita.” fala de sexualidade e de gênero não compreendem que seu direito não é violado em momento algum. Ninguém os impede de educar como querem. As crianças são sujeitos da sua história, por isso têm direito a uma plataforma de discussão orientada sobre o mundo da vida – que foi institucionalizada como escola. Ao negarem a existência da educação sexual informal no discurso, também apagam as possibilidades de jovens conversarem sobre como gênero e sexualidade são representados nas mídias, entre pares e em casa (lembrando que a maior parte das violações sexuais acontecem no seio familiar). Ademais, crianças e jovens que não se identificam, comportam ou desejam das formas esperadas para alguém cisgênero heterossexual, devem ser escutadas. Nesse discurso antigênero, os pais falam apenas de si, nunca da vivência holística dos filhos. Constroem um pânico moral em torno das transgeneridades sem respeitar tanto essas possibilidades de identificação, quanto os corpos intersexuais. Por isso, constroem um terrorismo contra o gênero a partir desse “sexo” ideologicamente limitado por uma concepção estreita. Apenas seu “sexo biológico” te define – como se não fôssemos constantemente vigiados para nos vestirmos e comportarmos de acordo com códigos. Nesse sentido, o horizonte de dissensos e possibilidades de reconstituição dos sentidos dos conteúdos sobre gênero e sexualidade deve-se manter aberto para discussão nas escolas, no âmbito macropolítico e para uma juridicidade de uma educação sexual abrangente. G u s tavo B o rg e s M a r i a n o , Mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra e Doutorando no programa Human Rights in Contemporary Societies no Centro de Estudos Sociais (CES/UC)

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Entre não-binarismos: a Abolição do Género

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Quando a comunidade LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bisexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais, +) obtém visibilidade, a qual é muito limitada em si, esta tende a focar-se em representações estereotipadas da homossexualidade (em que homens gays são afeminados e mulheres lésbicas masculinizadas). Muito raramente assistimos a representações da bissexualidade (que é vista como sinónimo de promiscuidade e de infidelidade), ignorando não só expressões de conduta diferente entre LGB’s, como a questão Trans e Queer. É perfeitamente normal que algumas pessoas pensem que, por vezes, as suas atitudes não se enquadram com o género ao qual se associam. Isso acontece porque, na verdade, ninguém consegue cumprir com os estereótipos de género que nos são impostos quotidianamente: ninguém consegue ser a fêmea sexy, mas que ao mesmo tempo é graciosa e do lar; ou adotar o papel de macho bruto, mas galante e carismático. Para quem achar que o consegue, apenas posso dizer que lamento, pois não deve ser nada confortável ter de se provar 100% heteronormativo a toda a gente, a toda a hora! Na minha opinião, nós não precisamos de ser rotulados por um género. Fazê-lo significa limitar a nossa existência a uma identidade fechada, o que, na maior parte das vezes, pode contribuir para frustrações e infelicidades. O género é uma forma de controlo social cujas raízes se estendem ao nosso ambiente, cultura, educação e crescimento. Este permite a divisão não só do trabalho como também de comportamentos. Assim se constitui a disparidade salarial, se divide o trabalho doméstico, o trabalho emocional, bem como os nossos comportamentos afetivos, sexuais, formas de vestir e de falar. A categoria “género” enquanto forma de controlo social permitiu, historicamente, que o saber científico fosse igualmente masculinizado: por exemplo, a pílula feminina é muito mais difundida que a pílula masculina. É também pelo género que se dita quais produtos são culturalmente aceites consumirmos e quais corpos são

“Muito raramente assistimos a representações da bissexualidade (que é vista como sinónimo de promiscuidade e de infidelidade)”

objetos (quase sempre os femininos), e quais corpos são sujeitos. Por sua vez, esta divisão de tarefas varia igualmente conforme as necessidades presentes do sistema social: conforme este precise de homens mais brutos (aptos em caso de guerra, por exemplo) ou de homens mais carismáticos (para convencer as massas de sua boa-vontade); ou das mulheres, ora ensinando-as a ser mais submissas e não contestar (mantendo-se como cuidadoras e domésticas), ora a ter comportamentos que falseiam seu empoderamento (como as representações femininas na política, que são permitidas para evitar uma tomada de consciência e contestação das mulheres e respondem, aliás, a lógicas masculinas de dominação, sendo o caso mais emblemático o período belicista do Thatcherismo no Reino Unido). O género é o produto do heteropatriarcado e o heteropatriarcado é o fruto das relações de exploração, laborais e sócio-políticas que nos rodeiam. O heteropatriarcado é a estrutura de discriminação machista que oprime todas as mulheres, não heterossexuais e homens biológicos que não se conformem ao género masculino. Ele afeta todos e todas de maneiras diferentes, mas de forma constante. O género serve assim o propósito de garantir - através de expectativas sociais - que as futuras gerações de mão-de-obra para o sistema económico explorador sejam reproduzidas, educadas para o emprego, e guiadas sem demasiadas convulsões sociais e questionamentos. Então, porquê participar nisto? Devemos tratar sempre o género como algo que - apesar de todas e todos o podermos desconstruir - é uma realidade material que co-produzimos ao participarmos e interagirmos com ele. De nada serve dizermo-nos desconstruídos e desconstruídas se mantivermos opressões patriarcais contra nossos irmãos e irmãs. Se, enquanto pessoas biologicamente nascidas homens, continuarmos a reproduzir opressões contra mulheres, de nada serve dizer que somos aliados não-binários. Da mesma maneira que auto designar-se como uma mulher que ultrapassou o género não serve de muito se perpetuamos uma rivalidade competitiva entre mulheres. Mas, se podemos escolher, o que significa ultrapassar o género? Existem muitas expressões do não-conformismo de género e muitas formas de luta contra o paradigma do binarismo. Todas as pessoas que, de alguma forma, não se comportam de acordo com o sistema estão, de facto, a criar um bug não previsto. Desde que esse


entre não-binarismos: a abolição do género

1º trimestre de 2020

“... importa entender que as pessoas nascidas mulheres sofrem opressões específicas por terem corpos percecionados como femininos e que, portanto, deveriam ter direito a espaços exclusivos onde se organizar.” bug tenha em atenção não limitar a liberdade daquele/ as que nos rodeiam e de não cair em lógicas de dominação, ajuda à eliminação do sistema de género. Isto compreende desde actos simples, como usar roupa fora do padrão, a outras formas mais radicais de quebrar o género. O que importa é que aquilo que façamos seja simultaneamente fora da nossa zona de conforto, e não destrutivo e agressivo para com nossos corpos. Como resume Orfiso, “os [nossos] comportamentos podem ser tão disruptivos para nós como para a sociedade envolvente, tendo em conta que os nossos corpos foram educados dentro deste padrão [de género], não tendo de assumir hábitos que já temos: é preciso questionar o conforto e a imagem que criámos das nossas possibilidades”. Algumas formas de luta são eficazes, outras nem tanto, pelo que importa sempre discutir como o fazer, junto de outras pessoas que não se conformem com os padrões de género impostos pela estrutura social dominante. Uma possível proposta para a abolição de género, tecida a partir da minha própria experiência, implica reconhecer as opressões significativas que cada pessoa sofre a partir da sua posição e aquela em qual o sistema pretende nos encaixar (e que aumenta o quão mais afastado estamos do padrão aceite). Ou seja, importa entender que as pessoas nascidas mulheres sofrem opressões específicas por terem corpos percecionados como femininos e que, portanto, deveriam ter direito a espaços exclusivos onde se organizar. Pessoas L, G, B, e T - e/ou movimentos que se queiram unir à luta contra o heteropatriarcado - devem igualmente poder fazê-lo em espaços exclusivos. Entre essas propostas, acredito que o adoptar de um género oposto, fluído ou agénero, também tem a sua importância para quebrar normas, mas, invariavelmente, cai na reprodução de estereótipos de gênero que nos deixam agrilhoados e agrilhoadas. Isto deve ser uma revolução e não uma reforma, o género é já um sistema

moribundo e cabe a nós dar um golpe final, antes que este possa se reerguer. Reconheço que essa parte do movimento LGBTQ+, que assume posições mais tímidas quanto ao género, sofre a sua dose de opressões e que devemos, portanto, lutar juntas e juntos por nossos direitos, mas isso apenas será possível se encararmos todo o sistema patriarcal como um inimigo, e isso inclui o género. Temos de ferir o patriarcado onde lhe dói mais: ou seja, sendo radicalmente quem desejamos ser sem precisar de seus rótulos. Dani Martins Estudante de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e militante da RELL (Resistência Estudantil Luta e Liberdade) Agradecimentos à companheira Shiva Orfiso, que tanto ajudou na realização deste artigo.

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mundus

Pediram-nos para ficar em silêncio pelos corredores das sombras, que a vida não nos pertence, que sabotaram a nossa data de nascimento propositadamente e que isso ajudou o céu em alguma coisa de elementar na dimensão espaciotemporal. Que do macaco evoluímos para o verme, que somos parte das pedras retalhadas ao sabor do sexo indisposto. Poucos nos fixámos nas memórias intercetadas a partir do núcleo afetivo, o mesmo que por unanimidade neurológica apagou os arrepios prolongadamente ácidos onde faltou envergadura e frio no lugar das máscaras derretidas por erosões autobiográficas. Adormecemos involuntariamente nesta floresta azul fluorescente e interminável; apagamo-nos a abraçar os ramos como se nos despedíssemos outra vez do som; já depois de termos trocado os caixões de infinitude para redefinir as medidas.

O teu retrato Super 8 a esfarelar os grãos de tinta em estado quântico: reproduzíveis. Uma parede projetada numa dieta simples de dança e rituais de fitas colorizadas. Torpedos anacrónicos vomitam estrelas decadentes na única composição possível para um ensaio de céu limitado à estabilidade do tédio inevitável. O lixo como carácter de referência. Nada se mantém proporcional, o que é da vida é o erro e a sensação do quase: apontada à cabeça. Viajamos humildemente pela casca de todas as neuroses, purificamos aquilo que resta da paisagem numa cor que não existe. O teu rascunho favorito pregado à parte mais alta do teu próprio quarto só para podermos ser uma ilusão que acontece. Uma fenda homogénea: escondida em todas as estátuas. Pedro Vaz Associado da Secção de Escrita e Literatura da Associação Académica de Coimbra (SESLA)

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