nĂşmero 9 - abril 2019
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jornal mundus
Repressão
índice
(do latim medieval repressio,
“ato de fazer recuar”) 1. Ação ou resultado de reprimir ou reprimir-se. 2. Ato de impedir, deter de se manifestar ou desenvolver. 3. Ato de conter, de oprimir, de forma violenta, ações políticas ou sociais.
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editorial testemunhos:
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AURORA RODRIGUES
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ÁLVARO Moreira
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Antoine Boudinet
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Larry
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SANTIago Sierra
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mulheres presas. castigos de género
editorial
abril 2019
editorial "Histórias" de violência e repressão O conjunto de textos que o Jornal Mundus reúne nesta edição é marcado pela sua heterogeneidade. São vários os contextos geográficos, políticos, sociais e até históricos em que cada um dos artigos se insere ou relaciona. As experiências individuais são, também elas, marcadas por uma notável variedade. Em comum, todos, exceto um, são escritos na primeira pessoa, partindo de uma narrativa individual que se prende com acontecimentos mais ou menos remotos no tempo e na memória de cada um. Que pode a história dizer-nos sobre cada um deles na sua relação com o presente, seja aqueles que reportam a episódios contemporâneos ou os outros que, ainda que organizados numa temporalidade diferente, são-nos, hoje, apresentados através da forma como determinados indivíduos situam eventos passados na produção de um discurso presente? (Em rigor, todos eles estabelecem uma distinção entre o passado e o presente, pelo acto de recordar, ao mesmo tempo questionando-se acerca da real dissociação, artificialmente produzida, entre o que foi e o que é, entre o passado e o presente, no fundo). Não se pode pedir à história mais do que ela pode dar. O truísmo significa que a história não nos oferece as soluções prontas-a-usar no presente. Fazê-lo, implicando a obliteração dos contextos históricos, pretéritos e coevos, seria negar a própria história. Dito isto, olhar para estes testemunhos como parte de processos conturbados, contingentemente produzidos, não impede que se os procurem entender na sua relação com aquilo que foram as políticas e práticas da violência e da repressão no passado. Como algumas das suas facetas persistiram, se adaptaram, foram contestadas ou simplesmente eliminadas. Mais uma vez, ao invés de procurar rupturas totais ou persistências absolutas, melhor seria procurar de que forma instrumentos, reportórios e idiomas usados no passado são entendidos, e reproduzidos, por afirmação ou oposição, no presente. Importa, ainda, recordar que estamos perante testemunhos. A própria categoria de testemunho deve ser pensada e situada historicamente. Primeiro, mais do que afirmar a veracidade ou inveracidade do testemunho, é mister entender que a perfeita compreensão de um determinado evento ou processo histórico, por muito que possa beneficiar de diferentes evocações pessoais de experiências passadas tem, também, necessariamente de procurar inserir as experiências individuais em contextos mais vastos,
negando lógicas de causa única ou estribadas em simples binómios, sejam estes a precedência do económico sobre o político, a violência privada versus violência estatal, entre outras formas simplistas de caricaturar a história. Sim, o testemunho pode ser um meio de estudo do passado e um objecto de estudo do presente. Em ambos os casos, tem de ser cuidadosamente tratado enquanto objecto de análise. Partindo daqui, há duas ideias que gostaríamos de desenvolver a propósito deste número. A primeira tem que ver com a forma como o testemunho adquiriu um poder crescente nas formas de agir política, cultural e socialmente. Não se trata apenas do testemunho se ter tornado, por direito próprio, objecto historiográfico. Trata-se, antes, de perceber como o testemunho se tornou também um “actor” historiográfico. Ao lermos os textos aqui presentes, compreendemos facilmente como a capacidade de transmissão de uma experiência individual, relacionando-a com processos de denúncia e protesto político, se tornou extraordinariamente mais fácil e rápida no tempo presente se a confrontarmos recuando às realidades de há pouco mais de um século. Se aprofundarmos essa viagem, maior ainda será a distância. Pense-se, por exemplo, naquela que pode ser considerada a primeira grande campanha transnacional em torno de um projecto político e social, a abolição da escravatura. O poder simbólico e mobilizador do testemunho foi, desde muito cedo, percebido. Era visível, por exemplo, na medalha, produzida pelo movimento abolicionista britânico, onde um escravo, negro, perguntava se não era, afinal, também ele um homem e um irmão. De forma ainda mais evidente, o poder do testemunho foi visível no impacto do relato, escrito, de Olaudah Equiano, um antigo escravo que se tornou uma das mais icónicas figuras do movimento abolicionista. Todavia, o caso de Equiano é a brutal excepção de um negro numa luta que dizia sobretudo respeito a negros dentro de uma história que ainda, especialmente na sua forma vulgarizada, reserva o panteão das figuras abolicionistas a filantropos brancos como William Willberforce ou William Pitt. Histórias como as da revolução de finais de século XVIII no Haiti, por motivos vários, não produziram o mesmo tipo de testemunhos (ou, melhor, estes não foram audíveis, à época) e só já no século XX começou a receber alguma atenção historiográfica e enquanto elemento de debate público, muito atrás das lon-
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gas narrativas epopeicas abolicionistas que cada estado imperial europeu (ocidental, na verdade) desenvolveu sobre si próprio. No início do século XX, a questão do testemunho adquiriria já outro poder, ainda que sempre dependente dos caprichos produzidos por uma ordem global profundamente racializada. O poder do testemunho é visível, por exemplo, na grande campanha internacional contra o Congo do rei belga Leopoldo II (um condomínio privado que não implicava o Estado belga até ao início do século XX, quando foi integrado no império). Para a sua difusão contribuíram seguramente as intervenções de filantropos como E.D. Morel ou John e Alice Harris, ou escritores como Mark Twain e Joseph Conrad. A fotografia, em particular, fornecia novos instrumentos de denúncia. Fundamentais, também, foram as próprias vítimas, que com grandes riscos providenciaram as provas das atrocidades belgas. Menos sonantes, os seus nomes não entram frequentemente nos panteões do humanitarismo. Menos conhecidos ainda são os testemunhos dos povos nama e herero que, sensivelmente na mesma altura, eram exterminados pelos governantes e militares alemães. À medida que o século avançou, o potencial de denúncia também se expandiu, e os testemunhos multiplicaram-se, ainda que a desigualdade da ressonância pública destes continuasse dependente de factores amiúde pouco altruístas. Tratou-se, em grande medida, de um processo que acompanhou os avanços tecnológicos e científicos, especialmente nos sectores de transportes e comunicações. Mas tratou-se também do resultado de uma crescente concepção do mundo como um espaço uno, onde um cada vez maior número de problemas foi sendo visto como só sendo passível de resolver através de uma acção coordenada entre os vários estados. E cujas consequências afectavam toda a humanidade. A afirmação de um regime de direitos humanos no século XX é, em grande medida, a resposta encontrada para esse trajecto. Não se trata de uma evolução linear, seguramente. Nem uma que se situa acima da história e da política. A história das campanhas dos direitos humanos pode ser vista também como a história do desencanto com os projectos de emancipação colectiva, fossem o socialismo ou o terceiro mundo, ou, seguramente, como a história de assimetria entre as violações dos direitos humanos que eram publicitadas e as que eram remetidas à indiferença ou ao silêncio. É, porém, incontornável que o poder simbólico e “comprovativo” do “testemunho” aumentou, a facilidade de o recolher também. A muitos é difícil, hoje, perceber, por exemplo, como durante tanto tempo, tantos afirmaram ignorar as violências várias exercidas pelo Estado soviético ao longo de décadas. O efeito “revelador” do Arquipélago do Gulag é dificilmente compreensível nos dias que correm. Da mesma forma, os próprios textos que aqui são reunidos demonstram essa diferença na capacidade de produção do testemunho e da sua mais fácil circulação. Não se trata de celebrar o presente ou qualquer evolução histórica linear
editorial
das sociedades ocidentais, antes de recordar que o testemunho que hoje abunda, durante anos foi uma raridade, comportando inúmeros riscos. Há, claramente, novos riscos associados a essa facilidade, à capacidade de escrutínio, tanto pelos media como pelos próprios cidadãos e, por outro lado, aprimoraram-se as formas retorcidas através das quais se pode fazer o testemunho condicionar as opiniões públicas de modo intencional. Um segundo aspecto a partir da qual a história pode interrogar estes textos tem que ver com os limites geográficos estabelecidos. Portugal, Dinamarca, Espanha, Itália, França. Correspondem a estados e sociedades onde os debates sobre o seu passado têm, cada vez mais, se centrado na sua relação com o mundo “não-ocidental”. Tirando o caso da referência à guerra colonial portuguesa, os outros textos não dialogam, nem é o seu objectivo, com essa faceta das suas histórias nacionais. E, todavia, ela é fundamental para recuperar a longa história da violência e da repressão. A Dinamarca, por exemplo, tem procurado pensar nessa forma clássica de violentação da liberdade alheia que foi a escravatura. Em Espanha, a violência colonial não se resumiu à remota ocupação das américas. Por exemplo, nas sucessivas guerras de libertação cubanas, o recurso a campos de concentração foi uma realidade, tal como a violência punitiva, aliás, repetida mais tarde nas guerras do Rife, onde Franco se destacou. Em Itália, a violenta ocupação da Líbia após 1911 foi marcada pela edificação de mecanismos de repressão tão mais violentos quanto a população colona italiana era diminuta e o estado se revelava incapaz de contrariar o vasto interior. Em França, a guerra de libertação nacional na Argélia marcou e marca de forma indelével a sua memória colectiva bem como alimenta muitas das clivagens políticas, através de processos de reconfiguração de imaginários e políticas do medo. Finalmente, em Portugal, importa dizê-lo, a violência não só das guerras coloniais como também das mais longínquas guerras de pacificação, e, sobretudo, a violência e repressão quotidianas que marcaram o domínio português em África durante um século continua ainda sem merecer o devido lugar no espaço público português. Esforços de relativização ou simples obscurecimento ainda são lugares comuns. E, contudo, pensar a história do século XX português, dos mecanismos de violência aplicados pelo Estado (mas não só) e das suas lógicas de repressão não pode ser feito sem pensar na mútua constituição das histórias de Portugal e do seu império. E nos seus múltiplos legados e feridas.
Miguel Bandeira Jerónimo & J o s é P e d r o M o n t e i r o, Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra
AURORA RODRIGUES - testemunho
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AURORA RODRIGUES, hoje com 67 anos, foi presa pela PIDE na sua juventude. Submetida à tortura do sono, a espancamentos violentos, a vexames, a ameaças, a simulações de asfixia por afogamento, ao isolamento, nunca colaborou. Quase 5 décadas depois, conta ao Mundus a sua microhistória que se entrelaça com a nossa macro-história. Nasci no dia 20 de Janeiro de 1952, num “monte” do Vale da Azinheira, Mina de S. Domingos, concelho de Mértola, margem esquerda do Guadiana. Para ir à escola teria de andar vários quilómetros a pé, como a minha irmã mais velha chegou a fazer, e, por isso, quando tinha 5 anos, os meus pais decidiram que nos mudaríamos para Castro Verde, onde o meu pai continuou a ser cantoneiro da Junta Autónoma de Estradas e a minha mãe cuidava de nós e da casa. Foi aí, em Castro Verde, que, com 6 anos, pela mão da minha mãe, vi passar e ser aclamado Humberto Delgado no largo dos correios, no ano de 1958. Terminada a escola primária, ficaria por ali, como as crianças da minha idade e da minha condição social. Mas calhou não ser assim, porque um grupo de democratas criou uma cooperativa de ensino em Castro Verde, a que não podiam chamar cooperativa e puseram o nome de Externato Dr. António Francisco Colaço, onde eles próprios eram os professores, de acordo com as sua habilitações ou apetências. Mais tarde, numa espécie de milagre que veio através de uma bolsa de estudo de um benemérito particular, coisa rara na época, fui para o Liceu de Beja. Depois, fui para a Faculdade de Direito de Lisboa, onde cheguei com 17 anos. Aí, juntei-me aos que, como eu, eram contra o fascismo e contra a guerra colonial e, no dia 12 de outubro de 1972, na Faculdade de Económicas, em Lisboa, onde decorria uma reunião contra a repressão e a guerra, um “pide” entrou armado no anfiteatro cheio de estudantes e assassinou a tiro José António Ribeiro Santos, meu colega de Direito, meu camarada e meu amigo. Tudo passou a correr mais depressa e no dia 3 de Maio de 1973 fui presa e levada para o Forte de Caxias, nos arredores de Lisboa, onde fui separada das pessoas que tinham sido presas comigo e permaneci isolada numa cela do Reduto Norte daquele Forte. No dia 16 de maio, vieram e levaram-me a uma cela de tortura do Reduto Sul, só para me avisarem de que me iam buscar na semana a seguir. O medo era construído assim. Sempre me avisaram primeiro do que iam fazer a seguir. No dia 23 de maio, de tarde, precisamente oito dias depois, vieram buscar-me e levaram-me para a cela de tortura onde fui encontrar de novo o “inspector do meu processo”, Américo da Silva Carvalho.
“O medo era construído assim. Sempre me avisaram primeiro do que iam fazer a seguir.” Apontando para as grades da janela, disse-me: “Estás a ver aquelas grades? Por ali não passas, a não ser feita em puré. Por esta porta não passas, que nós não deixamos. Tens duas vias, a via da colaboração e a via do sacrifício. Se escolheres a via do sacrifício, levas mais tempo mas o resultado é o mesmo”. Antes de se ir embora ainda perguntou: “Então, que via é que escolhes?”. Havia uma mesa no meio da sala, com uma cadeira e do lado oposto um banco sem costas para mim. Quando fui presa, tinha uma música, uma canção na cabeça, que ainda tenho de vez em quando, do José Mário Branco, a “Ronda do Soldadinho”. No meio da tortura, apesar dos “pides”, cantava para mim “um e dois e três era uma vez um soldadinho, um menino lindo que nasceu no roseiral” e por aí adiante. Quando acabava, voltava ao princípio, quantas vezes eu quisesse, como se eles não estivessem lá. A tortura ia continuando, eram dias e noites sem dormir e eu estava ali. Dessa primeira vez, foram 16 dias de tortura do sono, e é muito tempo. Houve pelo meio um espancamento que me fez perder os sentidos e a asfixia da água. Alternaram-se os “pides maus” com os “pides bons”, de acordo com o papel que tinham no plano de tortura para aquela presa, que era eu. Estava sempre presente uma “pide mulher” e ficavam, por turnos, eles e elas. Até tive direito ao “pide intelectual”, chamado Óscar Cardoso, que entrava a meio das noites, bem vestido e perfumado a querer falar de filosofia com uma estudante universitária, que durante todo aquele tempo estava privada de sono e impedida de tomar duche, lavar os dentes, mudar de roupa, o que só por si era uma forma de humilhação. Só mudei de roupa uma vez, quando a camisola que vestia ficou cheia de sangue em virtude do espancamento. AURoRA RODRIGUES
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ÁLVARO MOREIRA deu “o salto” durante a ditadura do Estado Novo. Atualmente é membro da Associação de Exilados Políticos Portugueses, que reúne antigos desertores, refratários e exilados e que tem como principal objetivo divulgar as suas memórias e testemunhos. Uma geração idealista
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Não sei muito bem se a expressão certa será chamar-lhe uma geração idealista ou uma geração de idealistas, mas essa não é questão que me preocupe, porque não tenho a mínima dúvida de que efectivamente a nossa foi uma geração idealista de idealistas, passe o pleonasmo. Fomos criados, despertámos e vivemos o tempo dos nossos 20 anos num país e numa sociedade bentinha, castrada, amordaçada, em que pensar era proibido e falar sem olhar para o lado quase um suicídio. No horizonte de todos nós, rapazes, estava garantido o fantasma da Guerra Colonial; ter de ir matar à terra deles só porque eles queriam que deles fosse; termos de matar para não ser mortos em nome de uma invenção inteligente chamada “pátria”; pátria essa que mais não era que defender os negócios e as fortunas de uma oligarquia que dominava este país de pobretanas e beija-mão. Foi esta realidade opressiva e sufocante que nos fez reagir, idealizar e lutar por um objetivo – derrubar esse poder opressivo, construir uma sociedade onde se pudesse pensar e ser feliz. Uns mais cedo, outros por esses arrastados, outros muitos sem saber muito bem como, percebemos que era preciso ir para fora para poder um dia voltar e ao mesmo tempo ajudar os que cá continuavam. Aprendemos a viver na clandestinidade, algo que hoje já ninguém consegue imaginar como era… Aprofundámos a consciência e a formação política e só pensávamos na terra prometida da igualdade entre todos, a utopia dos “ismos”, que pintávamos das mais diversas cores, como as camisolas dos clubes de futebol. Todos a adorar aquilo que o tempo, a experiência e a sabedoria da vida nos vieram mostrar ser afinal uma miragem - a miragem dos ídolos de pés de barro. Fomos a geração que teve a força, a saudável loucura e a coragem de bater com a cabeça contra a parede, conseguimos derrubá-la, mas ela caiu-nos em cima… E o que nos ficou? Para além daquela amargura de vermos o País e a sociedade atual, que afinal não era o que queríamos ou sequer imaginávamos, ficou-nos um profundo orgulho de termos tido a coragem e a ousadia de pensar e agir, de termos sido, apesar de tudo, consequentes sem sermos heróis e de termos aberto as avenidas da liberdade. Hoje ninguém consegue imaginar o quão difícil e doloroso era naquele tempo tomar a decisão de partir, porque partir era para SEMPRE, era deixar TUDO, a família, a terrinha, os amigos, os livros,
os discos, era sentir o roer da saudade… mas o duro era saber que NUNCA mais cá voltaríamos, porque ninguém imaginava que iria acontecer um 25 de Abril! Cheguei à Dinamarca, o meu país de acolhimento, que ficou para sempre a minha segunda pátria – porque me receberam, me ensinaram a língua, me deram muito do pouco que lhes pedia. Fiz o que o “sonho proletário” exigia: trabalhei a abrir buracos nas ruas, fui metalúrgico numa linha de montagem, nos altos fornos e aprendi os segredos da tipografia e da impressão para poder trabalhar na imprensa clandestina que vinha para o país. Do muito que por lá vivi, houve vários episódios marcantes. Um deles foi uma aventura complicada e pessoal. Os meus pais, apesar do seu profundo desgosto, sempre me apoiaram e, quando havia um portador, coisa rara, lá me mandavam uns maços de “Português Suave”, um frasquinho de bagaço, um chouricito... Era uma festa! Nas férias de Natal e de Verão, alugavam um andar na cidade de Vigo, ali juntinho à fronteira, onde vinha passar uns dias com eles. A primeira vez que tal aconteceu, no Natal, fui de avião até Paris, de comboio até à fronteira França/Espanha, junto a Andorra e de lá apanhei o comboio espanhol até Barcelona, onde aluguei um carro para, num dia e numa noite (ainda não havia autoestradas), conduzir até Vigo - ou seja, atravessar toda a Espanha. Nada de especial, a não ser que ao chegar à estação ferroviária de Barcelona, havia polícia como nunca tinha visto. O que era, o que foi? Acabara de acontecer o atentado que tinha feito ir pelos ares o almirante Carrero Blanco, donde veio o refrão “¡Arriba Franco, màs alto que Carrero Blanco!”. Estava um dia e noite de intensa tempestade e já no final da viagem, ao percorrer toda a estrada junto à fronteira portuguesa ao longo de Trás-os-Montes, volta e meia lá estavam as placas “Portugal – x km”. Era um arrepio que aquilo dava… sobretudo quando, por entre a chuva e a ventania, no escuro de breu, apareciam de repente os fantasmagóricos “carabineros” a saltar na frente dos faróis, quais morcegos gigantes de arma apontada! Valeu-me o passaporte da Convenção de Genebra, mas os sustos, muitos, esses foram terríveis – e se eles percebiam que eu era português, agarravam em mim e me levavam até ali ao lado e me entregavam aos da PIDE? Nunca esqueci esse Natal, diferente de todos os Natais. No regresso, à cautela, preferi o comboio. Regressei a Portugal no dia 16 de maio de 1974 e
ÁLVARO Moreira - testemunho
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de imediato me fui apresentar no quartel de Braga, a minha terra, e em julho estava em Mafra a vestir a farda e a fazer uma tropa muito interessante no coração dos palcos das decisões do PREC. Nunca mais voltei à Dinamarca, talvez para manter uma certa imagem nostálgica de um tempo que foi difícil, que à luz da análise objetiva que hoje necessariamente faço, teve muita coisa boa e menos boa, mas que foi marcante no resto da minha vida – fui consciente, com a consciência do sonho e da ilusão de uma geração. Á lva r o M o r e i r a , Texto facultado pela AEP61-74, que ofereceu os dois volumes de « Exílios » ao Mundus.
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Aos 26 anos,
ANTOINE BOUDINET
perdeu a mão direita numa das manifestações dos “gilets jaunes” em França. A sua “ferida de guerra”, causada pela utilização de uma granada GLI-F4 pela polícia do Estado francês - único país europeu a utilizar este tipo de granadas para fins de “manutenção da ordem pública - motivou-o a participar na criação do “Coletivo Contra as Repressões Policiais”. O movimento dos “gilets jaunes” começou a 17 de novembro de 2018. Em finais de fevereiro, a ação da Polícia tinha já causado 3 800 feridos. No dia 31 de janeiro, contavam-se 144 feridos muito graves (amputações, coma, perda de olho, etc.), segundo a agência de fact-checking “Check News”. Contam-se 10 mortes entre novembro e abril, segundo a estação FranceInfo. Falámos com o Antoine na segunda-feira, dia 18 de março de 2019. Nesse mesmo sábado, o Estado francês autorizou os militares a intervir e a “abrir fogo” se necessário.
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Tinha perdido o hábito de ir manifestar, há muito tempo que não ia a uma manifestação porque tinha a impressão que era sempre apenas um passeio, de um ponto A a um ponto B, que não mudava nada. Quando o movimento dos “gilets jaunes” começou, não sabia o que pensar. Visto que a primeira reivindicação era a anulação da taxa sobre o combustível, e eu sou fundamentalmente ecologista, não me quis mobilizar. A partir do dia 1 de dezembro, as coisas mudaram. Os estragos e as tensões em Paris aumentavam e as reivindicações alargavam-se. As pessoas pediam um aumento dos salários e das pensões, mais justiça social, objetivos que iam ao encontro das minhas ideias. Então, no sábado seguinte, em que se realizava também a Marcha Pelo Clima, decidi ir manifestar com o meu irmão. Os dois cortejos misturaram-se e a multidão gritava e cantava. Quando chegámos à ‘Place de la Bourse’, o caos instalou-se: os polícias esperavam-nos com uma fileira de camiões que bloqueava toda a praça, formando uma espécie de fortaleza. As forças de ordem começaram a lançar jatos de água e gás lacrimogéneo. Não conseguíamos ver nada para lá de dois metros. Fartos de respirar o ar saturado, fizemos uma pausa num café. Quando voltámos, passado uma hora, o cenário tinha mudado completamente. A praça parecia um campo de batalha, com barricadas em fogo e os CRS [Companhia Republicana de Segurança] a bloquearem todas as passagens. Ingénuo, avancei. Queria ver de perto o que se passava, mas os meus amigos e o meu irmão ficaram para trás. Pelos vistos, aproximei-me demais. Um objeto ci-
líndrico caiu perto dos meus pés, baixei os olhos para ver o que era… Pareceu-me reconhecer uma granada de gás lacrimogénio. Sem vontade de levar com o gás todo na cara, peguei nela para a lançar para longe, não para perto dos polícias, apenas para longe de mim. No momento em que lancei, a granada explodiu. Senti um choque gigante, mas não foi doloroso - o médico explicar-me-ia mais tarde que o cérebro “apaga” quando as dores são insuportáveis, para que o corpo não entre em paragem cardíaca. Comecei a correr para trás para junto dos manifestantes, pegando no meu braço (na altura, não consegui perceber até que ponto era grave). Quando cheguei perto da maioria das pessoas, toda a gente se dispersou com um ar amedrontado, horrorizados pelo facto de ter a minha mão pendurada com o osso saído. Perante o olhar das pessoas, olhei para a minha mão e comecei a gritar. Não foi um grito de dor, mas sim um grito de medo, de terror… Um grito que dizia “perdi a minha mão”. Fiquei paralisado. Oficialmente, as granadas, bem como todos os outros tipo de armas utilizadas pelas forças de ordem, como, por exemplo, os flash-balls, devem ser lançadas a uma distância mínima de 5/10 metros das pessoas e devem almejar o chão, para não ferir. O objetivo deste tipo de armas é chocar os manifestantes e fazer com que eles dispersem. O objetivo não é magoá-los. Contudo, durante os protestos recentes, a história tem sido diferente: várias vezes as granadas têm sido lançadas demasiado perto dos manifestantes, que não têm tempo de reagir. Quem pega nos projéteis, como foi o meu caso, fá-lo por reflexo. Com todo o gás lacrimogénio, todos os gritos, todos os disparos, todos os flash-balls que “voam”, a pessoa está num estado de instintividade. Várias pessoas me disseram que fui “estúpido” por ter pegado na granada, mas a verdade é que se eu tivesse demorado dois segundos para pensar melhor, ela teria explodido à mesma e eu teria perdido o pé, por exemplo. Se eu soubesse que tipo de explosivo era, claro que me teria afastado. Aqui está todo o problema: culpabilizamos as vítimas. Dizemos-lhes “não deverias ter ido à manifestação”. Para mim, isso é do mesmo nível que dizer a uma mulher que foi violada que a culpa é dela porque usou uma saia e estava na rua sozinha à noite. Chega a um ponto em que temos de dizer “não”! Uma rapariga é
antoine boudinet - testemunho
violada, a culpa é do violador. Um rapaz perde a mão por causa de uma granada, a culpa é da granada e de quem a lançou. Acho alucinante que ainda haja pessoas que defendem a utilização de TNT [carga explosiva de tolite] contra manifestantes. Somos nós as vítimas. Eu sou vítima. Sobretudo por esta granada ter sido reconhecida como perigosa e o Estado ter previsto parar de a usar. No entanto, recentemente, os polícias receberam uma circular que permite o seu uso de forma a “acabar com os stocks” existentes. Afinal, é esta a definição de ecologia segundo Macron: acabar com os stocks violentando os cidadãos. Até ao início dos protestos dos “gilets jaunes”, a granada GLI-F4 não era muito utilizada em manifestações, sendo de uso mais recorrente nas ZAD [Zonas a Defender], por exemplo. Esta prática e as suas consequências eram ocultadas. Só quando começaram a haver vários feridos é que a população ficou a saber que a França utiliza granadas explosivas. Fui ingénuo ao pensar que o Estado não seria capaz de disparar explosivos capazes de ferir severamente os seus cidadãos. Claramente, isto muda a tua vida. Mas eu prometi a mim próprio que não me tornaria dependente de ninguém e que não me poderia deixar dominar pelo medo, não podia deixar que o medo ditasse a forma como vivo e como conduzo as minhas lutas. Se eu parasse de manifestar significaria que “eles” teriam ganho, significaria que “eles” teriam conseguido assustar-me. O Estado francês continua a justificar a utilização destas armas com o argumento da violência dos manifestantes. Contudo, as manifestações em França - dos “gilets jaunes” ou de outros movimentos - não são particularmente mais violentas que noutros países da Europa. Só que, nesses países, a polícia não usa flash-balls, não usa granadas explosivas, não usa nenhuma das armas que as forças de segurança francesa usam. Em França, a violência dos manifestantes é provocada pela violência e pela repressão estatal e policial. Isto é, a resposta repressiva da polícia provoca a cólera e a raiva dos “gilets jaunes”, que, por sua vez, respondem também de forma violenta. Cria-se, assim, um círculo sem fim, sobretudo porque o Estado não se compromete a travar a ação da polícia e a praticar o que se chama de “desescalada”. O governo enveredou pela solução oposta: a “escalada” contínua da violência. Desde o dia 1 de dezembro, a cada sábado que passa, a repressão policial aumenta. Cada ato de violência da parte dos manifestantes é recebido com uma violência desproporcionada por parte da
“Fui ingénuo ao pensar que o Estado não seria capaz de disparar explosivos capazes de ferir severamente os seus cidadãos.”
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polícia. Temos assistido a um aumento brutal dos casos de amputações, de prisões preventivas, etc. Em 2008, Sarkozy levou a cabo uma política que consistia em despedir 1 em cada 2 funcionários públicos e impôs quotas aos polícias (prender X pessoas, fazer Y controlos policiais, etc.). Hoje em dia, a polícia trabalha em sob-efetivos. Além do mais, as forças de ordem têm imensos problemas de formação. A BAC [Brigada Anti-Criminalidade], por exemplo, não recebe formação para usar os LDB [Lançadores de Balas de Defesa] e, no entanto, utilizam-nos na mesma. Supostamente, esta secção da polícia é apenas responsável por certos bairros (ditos mais “violentos”) e não tem por função estar nas manifestações. A política da BAC nos bairros pelos quais é responsável é “primeiro bater e depois perguntar”. O problema é que ela tem aplicado esta mesma estratégia nas manifestações dos “gilets jaunes”. A própria cultura da polícia, uma cultura virilista e de grupo, que tem por código de honra não denunciar o colega, mesmo quando se sabe que este fez merda, reproduz este tipo de comportamentos violentos. Finalmente, muitas vezes, a aplicação da lei é suficientemente maleável e subjectiva: é possível jogar com o “fluido” e a “incerteza” de alguns textos. Por exemplo, o texto da nova lei anti-casseurs é suficientemente dúbio para que uma ‘máscara’ seja considerada uma arma, quando é claramente um instrumento de proteção. É isto que é perverso: as pessoas querem manifestar, mesmo sabendo que a polícia vai atacar, por isso protegem-se, mas tudo está feito para impedir que os protestos continuem. Por princípio, sou contra a ideia de haver polícia. Mas, se é para termos um Estado que utiliza o principio da polícia, então que este seja bem aplicado, que sejam respeitados os princípios inscritos na Constituição. Segundo o “princípio da absoluta necessidade”, as forças de ordem devem agir simplesmente quando é estritamente necessário, ou seja, não é quando há 3 caixotes do lixo no chão e alguns gritos que se lançam explosivos. Também vigora o “princípio da proporcionalidade”, segundo o qual se deve usar apenas a força necessária e proporcional, não mais que isso. Neste momento, a polícia francesa envia granadas contra pessoas que manifestam pacificamente. É por eles não respeitarem estes princípios que as pessoas se sentem em cólera, em raiva. É tanto mais frustrante ser-se agredido quando, ainda por cima, não se fez nada. Eu perdi a mão e tudo o que eu fiz foi avançar-me um pouco mais.
Testemunho traduzido do francês por Mariana Riquito a partir da transcrição de uma conversa com Antoine.
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No dia 7 de fevereiro de 2019, o Asilo Ocupato de Turim é fechado e os seus habitantes expulsos, após 24 anos de ocupação do edifício auto-gerido.
LARRY foi detido aquando as manifestações contra o encerramento do Asilo. Vários militantes, incluíndo ele, foram acusados de “associação subversiva”, um delito que permite estender a duração da detenção preventiva até dois anos. O manifestante, agora atrás de grades, relata na seguinte carta os eventos da noite de 10 de fevereiro de 2019.
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O jantar de domingo pode ser especial. Especial, quando a auxiliar passa para te distribuir a mesma ração de caldo frio. E uma mão-cheia de batatas cozidas e salteadas na frigideira, para nos dar a impressão que elas são diferentes das que comemos ao meio-dia. Menos especial, quase ordinário, quando ninguém passa para te dar a gamela, e tudo o que te resta é um pequeno lanche químico e alguns frutos metidos de lado nos dias anteriores. O jantar de domingo pode ser especial se, quando acabas de comer, te começas a perguntar como vais passar as próximas horas. Escolhendo um livro entre aqueles aceites pela administração penitenciária; escrevendo a alguém na esperança de encontrar um selo antes da cantina de terça-feira; trocando dois dedos de conversa com outro prisioneiro, através do buraco da fechadura da porta blindada, pelo menos até que um guarda ordene o silêncio porque o jogo de futebol vai começar, ou simplesmente porque tem vontade. Não, esperem, estou a perder o fio à meada… desculpem, eu recomeço. O jantar de domingo pode ser especial quando, no fim da refeição, te começas a interrogar sobre como vais passar as horas seguintes. E, de repente, os teus pensamentos são interrompidos por uma detonação ao longe. Ouvem-se assobios e gritos cada vez mais próximos. Uma segunda detonação. E toda a prisão acorda. Tentamos acompanhar os gritos e os slogans, mas sem muito sucesso, então inventamos outros, ou berramos apenas. Batemos nas grades com os objetos que encontramos, porque todas as ocasiões são boas na esperança de que tudo colapse. As cabeças que se encontram deste lado das barras escondem com dificuldade a surpresa face ao número de pessoas reunidas em frente à prisão. Alguém se lança nas apostas: “Oh, mas achas que eles são quantos? Quinhentos?!”. Quando os guardas, até então escondidos pelas muralhas, se aproximam dos manifestantes, começamos a vaiar. O bloco onde estão retidas as mulheres encontra-se demasiado longe para que elas possam ouvir as
palavras proferidas ao megafone e os slogans, mas os gritos e os ecos dos prisioneiros chegam até lá. E sobretudo o barulho constante das explosões de petardos, seguido de ovações. O espetáculo pirotécnico anuncia, como de costume, o fim da manifestação. Ainda estávamos a comentar entre nós o que se tinha acabado de passar, quando uma nova vaga de gritos irrompe, desta vez vinda do interior da Vallette (nome da prisão), abrindo a pista para a segunda parte da noite: “Fogo! Fogo!”. Mesmo que ainda não saibamos exatamente o que se está a passar, a reação é ainda e sempre a mesma, uma batucada barulhenta nas barras das celas, à qual toda a gente adere rapidamente. Os guardas correm os blocos da prisão de uma ponta à outra. Enquanto as chamas atingem o segundo andar do edifício. Num clima de incredulidade, de pânico e gargalhadas, sucedem-se três explosões que iluminam os pátios. Não nos conseguimos impedir de ter esperança, “tutti liberi!”. Os holofotes perfilam-se no horizonte. Luzes azuis. O protocolo habitual. São sempre os ‘bófias’ que se lançam primeiro em todas as situações e são sempre eles os primeiros a chegar. Chegaram sem os canhões de água, que tinham ocupado as ruas de Aurora e de Turim nos últimos dias, de modo a manter à distância todos aqueles que se queriam aproximar do Asilo e que não tinham nem uniforme nem brasão. E quem sabe se alguns dos bombeiros, que tinham finalmente chegado, não tinham também estado no bair-
“Num clima de incredulidade, de pânico e gargalhadas, sucedemse três explosões que iluminam os pátios. Não nos conseguimos impedir de ter esperança, “tutti liberi!”. ”
larry - testemunho
ro de Aurora, a destruir portas e barricadas, a encher inutilmente colchões, a cegar durante toda a noite todos aqueles e aquelas que resistiam no telhado¹. As chamas são controladas, o fumo entra pelas portas e pelas janelas cobertas de cuspo. Aqueles que se queixam de problemas respiratórios são ignorados ou ameaçados. As células continuam fechadas durante todo este tempo. Se se tratasse de uma situação de perigo real, provavelmente um dos guardas teria simplesmente atirado as chaves pelo corredor antes de ir embora a correr, como já aconteceu em outras ocasiões. As escavadoras chegam - sem Salvini - para retirar o que ardeu… apenas escombros!!! No entanto, por agora, continuamos todos aqui fechados. Na manhã seguinte, falar-se-á de foguetes de Bengala, curto-circuito e cocktail molotov, botija de gás que não respeita as normas de segurança e atelier de pastelaria destruído. Mas já é segunda-feira e aqui dentro, hoje, já não há nada de especial. Lá fora, tal como sempre, estão vocês. Obrigado. Liberdade para todos, Liberdade para todas. 1. ndt: Durante a expulsão do Asilo Ocupato, os militantes passaram 30 horas refugiados no telhado da casa para tentar impedir o desalojamento, tendo finalmente sido retirados de helicóptero.
Larry, prisão da Vallette (Turim), Segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019 Esta carta e outros textos de militantes italianos foram compilados e traduzidos em francês numa brochura intitulada “Uma Faísca Através da Garganta”, para servir de suporte às iniciativas e redes de solidariedade internacional. traduzido do francês por Catarina Silva
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jornal mundus
Em fevereiro do último ano, a peça do artista espanhol
SANTIAGO SIERRA , “Presos políticos na Espanha contemporânea”, foi retirada da feira de arte ARCO de Madrid. A decisão gerou uma onda de incredulidade e de acusações de censura. As fotografias de Santiago Sierra consistiam em imagens de detidos relacionados com o processo independentista catalão ou de ativistas presentes em movimentos sociais como o 15M. Santiago disponibilizou ao Mundus o seu discurso de inauguração da exposição em Amesterdão.
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Num graffiti libertário encontrado na fachada de um centro social em Madrid, podemos ler que: “Todos os prisioneiros são políticos porque são prisioneiros do Estado e das suas políticas”. Talvez se trate de uma opinião difícil de assumir, mas merece que nos detenhamos nela por uns momentos, visto que revela uma visão do mundo que, apesar de não ser dominante, não é por isso menos legítima e justificável. O argumento parte do pressuposto de que o sistema em que vivemos é por definição injusto, não solidário e desigual no que toca às oportunidades e ao tratamento que recebemos em função da nossa posição social. Somos excessivamente generosos com as categorias pré-estabelecidas e presumimos imediatamente que vivemos numa democracia que é, no mínimo, imperfeita. Ou que o conceito de justiça se refere a um tipo de realidade etérea e incontaminada pela política e pela economia, que não pode ser interpretada. Ou que as próprias leis obedecem a uma necessidade objetiva de preservação da sociedade, e não à manutenção de certos privilégios de alguns indivíduos sobre os outros, de algumas classes sobre as outras. Ou ainda que a ordem social segue um princípio lógico, e não é o resultado de múltiplos conflitos e relações de poder. Seguindo este ponto de vista, poderíamos ir mais longe: não só todos os presos seriam políticos, como seríamos todos virtualmente presos políticos. Isto porque todos vivemos confinados num sistema hierárquico, segregador e violento, expostos à ditatura da lei cega, que penaliza a divergência com mais vigor do que a traição ao interesse público e o abuso de poder, com medo de que as nossas opiniões possam contrariar a paz artificial. Não serão prisioneiros do capital todos os trabalhadores precários e as centenas de milhares de pessoas desalojadas do meu país? Não serão prisioneiros políticos todos aqueles que são inocentemente mantidos nos chamados Centros de Internamento de Estrangeiros? O próprio recurso universal à instituição penitenciária é, por si só, um indicador do fracasso e da impotência da
sociedade em construir um espaço de coabitação saudável que respeite a soberania pessoal. A presença de presos políticos dentro de celas constitui a pedra de toque que desacredita qualquer governo que pretenda definir-se como democrático. Assim, nenhum governo admite a sua existência, camuflando os encarceramentos políticos através de penas vagas como perturbação à ordem pública, incentivo ao terrorismo, rebelião, etc. O Estado espanhol não é excepção à regra. Em 2016, quando o dirigente basco Arnaldo Otegui se qualificou a si mesmo como “preso político”, depois de cumprir vários anos de prisão, o ministro da justiça Rafael Catalé apressou-se a declarar que “em democracia não há presos políticos” e que em Espanha “estes não existem há muitos anos”. Não obstante, basta um olhar superficial sobre o panorama penitenciário espanhol para identificar várias pessoas que foram condenadas pelas suas ideias, especialmente ativistas do meio independentista e anarquista, ainda que não exclusivamente. Os critérios para definir um preso político estão sujeitos a um debate ideológico e não são consensuais em todo o mundo. Em Espanha, estes critérios são ainda mais confusos, devido à tradição instaurada pela ditadura militar franquista e à prolongação dos conflitos nacionalistas após a Transição, que geraram um contexto em que praticamente qualquer atividade (exercício da liberdade de expressão e de reunião, militância em organizações revolucionárias, luta pelos direitos das pessoas presas, etc.) pode ser considerada como um ato de “terrorismo”. De qualquer forma, há uma série de condições acordadas pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa que permitem identificar um preso enquanto político. Estas condições fazem referência à violação de direitos fundamentais estabelecidos pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como a liberdade de pensamento, de expressão e associação, mas também aos casos em que “a detenção é imposta por motivos puramente políticos” ou em que “a sua duração ou condições sejam claramente desproporcionais face ao delito cometido” ou “discriminatórias em comparação com outras pessoas”. Se fizermos uma breve análise das pessoas incluídas nas peças expostas na exposição “Presos políticos en la España Contemporánea”, que foi retirada da última feira ARCO por causa de um suposto “desajuste conceptual”, podemos dar-nos conta de que todas elas cumprem pelo menos um dos requisitos mencionados.
santiago sierra - testemunho
A resistência de muitos a aceitar este argumento e a polémica gerada em torno da instalação são consequências de uma construção mediática enviesada, com base em acusações da procuradoria que, uma vez desmontadas, não são esclarecidas perante a opinião pública, precisamente por causa dos interesses políticos em jogo. Desde que a ETA abandonou a luta armada, o governo continua a reproduzir as mesmas estratégias, agitando o fantasma do terrorismo, com um vigor ainda maior que nos anos mais sangrentos da Transição. A recente entrada em vigor da Lei de Segurança Cidadã, conhecida popularmente como “Lei Mordaça”, ampliou a gama dos supostos delitos, que abarcam hoje as opiniões e atos de desobediência como, por exemplo, as intenções de parar coletivamente os despejos. A lei multiplicou exponencialmente as denúncias e sanções por desobediência civil ou resistência à autoridade. O artigo 155 da Constituição, aplicado contra o referendo de autodeterminação convocado pela Catalunha, é deliberadamente ambíguo e impreciso na sua redação de forma a blindar a unidade nacional, tendo desencadeado uma onda de detenções, que levaram à prisão e ao exílio de vários representantes eleitos precisamente para tentarem levar a cabo o seu programa.
“Desde que a ETA abandonou a luta armada, o governo continua a reproduzir as mesmas estratégias, agitando o fantasma do terrorismo, com um vigor ainda maior que nos anos mais sangrentos da Transição. ” Tudo isto se passa num contexto europeu onde assistimos à reemergência com força da extrema-direita. A crise económica internacional, os fenómenos migratórios e a corrupção das instituições, cozinharam um caldo propício ao avanço dos discursos fascistas, que voltam a infiltrar a população sob o disfarce do populismo. Ainda que, em Espanha, a ferida deixada pela ditadura não esteja completamente cicatrizada, sendo que é demasiado cedo para o surgimento de um partido fascista com
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força suficiente para entrar no Parlamento, é com extrema preocupação que vemos a forma como a veia patriótica e xenófoba atravessa os discursos de alguns partidos emergentes, que se situam à frente nas sondagens. Em Espanha, fala-se frequentemente do “franquismo sociológico” para exprimir a forma como certas características sociais e formas de pensar, instauradas durante mais de quarenta anos, perduram nas consciências e reaparecem em certos momentos. Hoje, observamos também nas ruas, de forma crescente, um sentimento de exaltação da unidade nacional que se opõe aos imigrantes e aos independentistas, assim como um sentimento de decepção face à construção de uma “Europa comum”. Neste cenário, a nossa peça adquiriu uma dimensão desconhecida para uma obra de arte. A nossa intenção era apenas de tornar visível uma realidade que ninguém queria ver, “tornar a vergonha ainda mais vergonhosa, publicando-a”. O ato de forçar a retirada da exposição confirma de maneira precisa que os presos políticos existem, uma vez que reconhecê-lo suscita um pânico atroz. Pensamos que se esta preocupação não tivesse estado presente em todas as consciências, a peça não teria gerado tais respostas e expectativas. Santiago Sierra, Traduzido do espanhol por Catarina Silva
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jornal mundus
Mulheres [presas]. Castigos de género
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As mulheres constituem uma proporção mínima da população penitenciária em Espanha: 7,6% (3792), segundo dados da Secretaría General de Instituciones Penitenciarias, de dezembro de 2017. Como afirmou Lidia Falcón no imprescindível En el infierno (1977), devido ao seu número, as mulheres sofrem uma repressão particular, recebendo punições baseadas no género, que revelam uma visão androcêntrica e claramente discriminatória. Mencionarei neste artigo três aspetos principais. Em primeiro lugar, são muito poucos os estabelecimentos penitenciários exclusivos para mulheres no Estado espanhol (Madrid I em Alcalá de Henares, Alcalá de Guadaira em Sevilha e Brieva em Ávila). Na maioria dos casos, as mulheres encontram-se nas designadas prisões “mistas”, que, na realidade, são estabelecimentos para homens, com um anexo destinado para as albergar. Assim, estão separadas de muitas das atividades e serviços disponibilizados aos homens e submetidas a uma dispersão endémica e a um afastamento do lugar de origem, por causa da escassez de instalações para mulheres. Em segundo lugar, o tratamento penitenciário é paternalista e estereotipado, pelo seu caráter moralizador e ressocializador de género, como defende Elisabet Almeda em Mujeres Encarceladas (2003). Muitos dos programas educativos, formativos e laborais dentro das prisões continuam a reforçar o papel tradicional da mulher (tinturaria, costura, bordado, etc.) e as atividades culturais e recreativas são muito feminizadas (maquilhagem, cozinha, macramé, etc.). Finalmente, o terceiro problema é que não se aborda estas situações sob uma perspetiva de género, o que faz com que se negligencie as necessidades específicas das mulheres que se encontram atrás das grades. Uma visão com “lentes roxas” permite-nos, desde cedo, observar o peso do estigma. Tal como descrevem diversas criminologistas feministas anglo-saxónicas e espanholas, as mulheres identificadas como delinquentes são consideradas “más mulheres”, tendo não só transgredido as leis, como também as normas associadas ao seu sexo. Assim, elas estão sujeitas a sanções particulares, que são evidentes na falta de credibilidade que recebem por parte do pessoal penitenciário, na falta de possibilidades para refazer as suas vidas quando saem da prisão e na profunda deterioração da sua autoimagem.
“o tratamento penitenciário é paternalista e estereotipado, pelo seu caráter moralizador e ressocializador de género” Por outro lado, é importante mencionar a questão da maternidade, a imensa culpa que carregam as mães presas e a sua resistência ao facto de serem consideradas “más mães”. Estudos como o de Igareda sobre a maternidade nas prisões calculam que 80% das mulheres presas são mães. Para além disso, uma análise sob o prisma de género acerca das mulheres presas tem de ter em conta a alta prevalência de vítimas de violência sexista. Não existem estudos específicos : apenas uma investigação levada a cabo pela SURT, uma fundação catalã de apoio a mulheres, que concluiu que 88% das mulheres que se encontram presas já sofreram violência sexista de alta gravidade em algum momento das suas vidas, por parte do seu companheiro ou de outros homens. Enquanto esta perspetiva não for tida em consideração, não poderemos agir em conformidade, de modo a mudar a situação das mulheres dentro das prisões. A política penitenciária para a igualdade de género não passa de um programa denominado “Ser Mujer”, que trata, principalmente, da prevenção de violência de género, consistindo em seminários sobre a igualdade entre homens e mulheres, com vista a um questionamento dos papéis sociais. Um plano claramente insuficiente para as vítimas de violência de género nas prisões. Em 2008, foi implementado em Espanha o Plano de Ações para a Igualdade nos Centros Penitenciários ao abrigo da Lei para a Igualdade Efetiva entre Homens e Mulheres. Porém, tal como quase todas as medidas que foram adotadas, até 2011, para atenuar as desigualdades entre homens e mulheres nas prisões, este plano praticamente não foi usado. Entre as medidas contempladas pelo plano estava a formação dos funcionários e outras ações para abordar a violência de género atrás das grades. Tendo em conta a discriminação que as mulheres sofrem no sistema prisional, a negligência das suas necessidades e as (re)vitimizações, torna-se evidente a necessidade de um processo urgente de despenalização
mulheres presas. castigos de género
e articulação com medidas alternativas à prisão. As mulheres criminalizadas e estigmatizadas, as mães na prisão, violentadas ao longo das suas vidas, são o cúmulo do que Naredo denominou de “absurdo penitenciário” (1999). O custo pessoal, familiar e social de manter mulheres presas é desproporcional e injustificável, especialmente se tivermos em atenção que a imensa maioria não cometeu delitos graves e não atentou contra a integridades de outras pessoas. É necessária uma revisão profunda das dinâmicas que levam à criminalização dos grupos mais desfavorecidos da nossa sociedade tal como Angela Davis teoriza há várias décadas (e agora, mais recentemente, em 2016, no seu texto “A Democracia da Abolição”). De forma concreta e imediata, as Regras de Banguecoque, adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2010, que visam reformar o tratamento das mulheres reclusas, propõem dar prioridade a medidas substitutivas ao aprisionamento, devido, precisamente, à grande desproporção entre o dano cometido e o castigo recebido.
E s t i ba l i z d e M ig u e l Ca lvo , Doutorada em Sociologia pela Universidad del País Vasco Traduzido do espanhol por Pedro Cosme
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“As mulheres criminalizadas e estigmatizadas, as mães na prisão, violentadas ao longo das suas vidas, são o cúmulo do que Naredo denominou de “absurdo penitenciário””
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