Jornal Mundus Nº5

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número 5 - junho 2018

preço livre - 350 exemplares

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Arte: Uma conversa com Adriana Calcanhoto Cultura: Até que ponto influenciamos a estrutura que nos condiciona? Legalidade e legitimidade: Quando as leis se figuram como injustas, até onde pode ir a desobediência civil?


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índice Hei de chegar aos subúrbios navegando neblinas. Juntos conquistaremos a urbe Com os passos seguros

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fronteiras invisíveis

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perfil mundus adriana calcanhotto

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perpetuamos a submissão

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criminalização da solidariedade

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Sci-Hub: democratização do saber?

da inocência sobre o terror quotidiano. Havemos de julgar impunes com penas de abraços forçados; abrir prisões a quem, inseguro, teme a Liberdade. Havemos de renovar personagens em cada rua; traidores, heróis, anónimos suicidas entregando-se à espiral do desespero útil; líderes tímidos e velhos adolescentes calejados de normas. Na penumbra elevar-se-á a sombra esguia da Utopia com um crescendo de um sax. Anunciará o Apocalipse, a nova harmonia dos puros e a luz será limpa e clara como na noite fria e o ar será quente e denso como o ventre das estrelas.

Alexandre Valinho Gigas


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Fronteiras Jerry Prokosch: Whenever I hear the word “culture,” I bring out my checkbook. Fritz Lang: Some years ago - some horrible years ago the Nazis used to take out a pistol instead of a checkbook. Jean-Luc Godard, Mépris Crescemos a ouvir falar da globalização, um fenómeno capaz de alterar a nossa perceção do espaço e do tempo, caracterizado por fluxos constantes de bens, capitais e pessoas. Vários teóricos apressaram-se a prever uma erosão das fronteiras que daria lugar a um mundo de circulação livre, onde o ativismo global se faria ouvir com mais expressão. Contudo, à medida em que processos de homogeneização cultural são postos em prática, o mundo cria novas barreiras, como reação à lógica agregadora, ou como incentivo ao capitalismo globalizado, que sempre se alimentou e cresceu a partir das margens. As fronteiras determinam a forma como os processos de inclusão e exclusão são institucionalizados. Linhas imaginárias que permitem distinguir o Eu do Outro. Hoje, elas vão para além dos limites dos Estados, e são também virtuais ou, simplesmente, impalpáveis. Desenhar fronteiras pode também ser considerado um processo cognitivo humano, pois a construção da identidade depende de um sentimento de diferenciação em relação aos outros. Qualquer ímpeto revolucionário ou movimento social e político é criado em oposição a um ordem delimitada, com membros bem estabelecidos. A lógica marxista, por exemplo, assenta numa fratura entre a classe dominante, os burgueses, e a oprimida, os operários - uma linha que determina quem pode participar na construção da Utopia. As palavras de Mao Tse Tung, em 1926, são elucidativas: “Quem são os nossos inimigos? Quem são os nossos amigos? Esta é uma questão de extrema importância para a revolução”. As margens não são locais fixos nem no tempo nem no

espaço, são antes um processo. Elas surgem através das práticas discursivas que despertam a consciência para a sua existência. A cultura e o poder são elementos-chave para perceber qual a origem destas linhas divisórias, e como é que estas se desenvolvem. Segundo a teoria difusionista, quando um objeto cultural atravessa fronteiras, ele é modificado e adapta-se à realidade que existe do Outro Lado. Também os próprios indivíduos sofrem alterações quando passam para lá do espelho. A personalidade torna-se mais híbrida e fluída quando o Eu se confunde com o Outro. O filósofo francês Michel Foucault afirmava poeticamente que, na margem, conseguimos refletir sobre a nossa própria história, ao mesmo tempo que nos tentamos desprender dela. Assim, os limites são dotados de uma cultura própria, rica e dinâmica. Estes espaços são terrenos férteis para o cultivo da poesia, da arte e dos mitos. Os marginais representam a ideia de que é possível viver longe da lógica agregadora e uniformizante do centro e, por isso, foram romantizados e glorificados, como é o caso do casal de criminosos Bonnie e Clyde, cuja delinquência foi explorada pela indústria cinematográfica a partir dos anos 60. Década esta que marca o aparecimento do capitalismo tal como o conhecemos, assim como o surgimento de vários movimentos de contracultura nos países que constituíam o núcleo industrializado. Coincidência... ou talvez não. O conceito de contracultura serve para designar um conjunto de ideias, práticas e crenças contrahegemónicas. Ou seja, um sistema de valores alternativos que, partindo de uma minoria, acaba por ganhar expressão através da música, da arte, e das lutas socioculturais. Os movimentos de contracultura, que pautaram o século XX, pretendiam produzir uma transformação radical da consciência. Entre os exemplos podemos destacar o Maio de 68, a Primavera de Praga, os hippies dos anos 60, e a cultura punk dos anos 80. Estes foram sobretudo levados a cabo pela juventude, que usava a transgressão como arma política, como forma de se opor à ação repressiva da modernização autoritária.

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Ora, o sentimento de rebeldia que marcou os anos 60 também se tornou o modo cultural do mundo empresarial. A televisão começava apenas naquela época a ultrapassar as revistas como fonte de informação. Com ela, a indústria da publicidade dava asas à imaginação, usando os movimentos da juventude como fonte de inspiração - o apelo à liberdade para vender mais carrinhas Volkswagen “pão-de-forma”. As sapatilhas Nike começaram a vir acompanhadas das palavras de Iggy Popp ou Gil Scott-Heron. Afinal, the revolution was televised. Os hippies tornaram-se os filhos devotos dos meios de comunicação, tal como os movimentos que os sucederam. No final, todos perderam significado com a massificação. O movimento empresário estadunidense não viu a contracultura como um inimigo a abater, mas como um sinal de esperança. Ou seja, um aliado simbólico na procura por novos mercados. A economia passou por grandes transformações a partir dos anos 80, e a indústria da cultura assumiu o centro da ação económica de muitos países. Os produtos culturais passaram a circular além-fronteiras e cresceu uma preocupação para com os inquéritos de consumo, o marketing, e a caracterização dos nichos de mercado. Abriram-se assim as portas para uma lógica de libertação das minorias pelo capital.

Um exemplo ilustrativo desta tendência é a capitalização do movimento LGBTQ+. O ímpeto social do movimento, tal como o conhecemos hoje, começou a intensificar-se a partir da década de 70. As pessoas saíram à rua para reclamar os seus direitos civis e o potencial transformador das reivindicações não passou despercebido. Elas punham em questão categorias, normas e papéis que estruturavam a hierarquia social conservadora, tal como qualquer contracultura. Contudo, a utilização da bandeira LGBTQ+ como estratégia de marketing das grandes empresas leva-nos a questionar até que ponto estas se podem aliar a um movimento político sem lhe retirar a força revolucionária. Desde a versão “Pride” do AppleWatch, às várias playlists no Spotify dedicadas a este público-alvo, passando pela edição especial do hambúrguer Whooper do Burger King (uma sanduíche exatamente igual à tradicional, mas revestida com um papel colorido), a conclusão é só uma: a massificação do simbolismo associado ao movimento social e político torna-o numa marca que pode ser aplicada a qualquer produto para aumentar as vendas. Hoje em dia, a cultura é colocada ao serviço da inovação. A criatividade já não desafia as normas sociais, e torna-se a chave para a coesão social. Isto é, a cultura deve ser dinâmica o suficiente para trazer


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constantemente novos produtos para o mercado, mas não suficientemente dinâmica para questionar os seus fundamentos. O bem social torna-se aliado do crescimento económico, o que sugere que nunca há conflito entre os dois objetivos. A apologia à criatividade passa unicamente pela valorização da sua utilidade instrumental. Onde pára, então, a arte enquanto ferramenta da contestação e da emancipação? Para além de terem servido de fonte de inspiração ao mundo empresarial, cuja tendência tem sido, desde aí, alimentar-se a partir das margens, na procura de novos públicos-alvo e de novas oportunidades de produção, os movimentos de contracultura do século XX constituíram a base conceptual da “Nova Esquerda”. Esta difere da esquerda tradicional porque está menos orientada para o ativismo trabalhista, e afasta a sua crítica da luta entre classes, sem deixar de refletir acerca do seu papel económico. Preocupa-se, por sua vez, com questões mais identitárias como a etnia, o género, e a sexualidade. A “Nova Esquerda” apropriou-se de reivindicações que começaram no campo do que era considerado apolítico, ou seja, de movimentos que se assumiram espontaneamente com transcendentes às fronteiras políticas. A corrente parte do pressuposto que as lutas identitárias abrem a possibilidade de novas articulações, para além do binarismo tradicional entre classes. A emancipação de um grupo torna-se a base necessária para a libertação de outro - a luta do Eu confunde-se com a luta do Outro. A lógica é a de uma “cadeia de equivalências”. Por exemplo, a luta da identidade negra é equivalente à luta da identidade gay porque ambas sofreram opressão, estando as duas, consequentemente, preocupadas com a expansão das liberdades e da igualdade. Os dois particularismos têm interesse em se apoiar mutuamente, e devem formar coligações para derrubar as barreiras existentes. Ora, este objetivo, ainda que pertinente, torna-se difícil de alcançar quando o capitalismo global se esforça por alimentar estes “essencialismos” como nichos de mercado. As categorias culturalistas e diferencialistas criam fronteiras difíceis de ultrapassar, ainda para mais quando a lógica de mercado deturpa a identidade , associando-a a um símbolo simplista que pode ser comercializado. Neste quadro, a política de esquerda promete uma expansão da igualdade de oportunidade, sem debater formas de igualdade mais radicais, e promete direitos vãos, sem discutir como é que as

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pessoas podem ganhar controlo sobre as suas condições de existência individuais ou coletivas. A globalização chegou com a promessa de abolir fronteiras. Se é verdade que veio incorporar tudo na mesma lógica, os limites não deixaram de existir, tornando-se apenas mais fluídos e dinâmicos. A televisão e a publicidade criaram um mundo de espetáculo, e o ativismo tradicional, inevitavelmente, fez parte do elenco como um dos protagonistas. É necessário repensar a ação política, adaptá-la a um sistema que vive em permanente evolução e que tudo engole. Devemos procurar ter consciência dos nossos desejos e alimentar o desejo de ter mais consciência. Devemos estar atentos ao que se passa nas margens do Sistema Internacional (SI) porque, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, “não faltam alternativas no mundo, o que falta é um pensamento alternativo para pensar [coordenar] estas alternativas”. Hoje, as estruturas de compreensão do mundo são mais fluídas, revelando um mundo mais móvel e instável, em que o ativismo e os movimentos sociais podem parecer adormecidos, pelo menos nos países que constituem o centro do SI. O futuro torna-se mais difícil de diagnosticar quando, até na ciência, se admite a incerteza e o aleatório. A experiência da temporalidade é hoje em dia atrofiada pelo jogo produzido pela instantaneidade, pela aceleração do tempo, pelo império da sincronia. Se tudo isto gera confusão, encontremos âncoras nas interações reais e locais, sem ceder à lógica mediática e mercantilista. A porosidade entre a estrutura internacional e o nível local é uma das caraterísticas mais flagrantes do nosso tempo, uma das consequências do dinamismo do mundo e das suas margens. Por isso, a abolição das fronteiras começa aqui.

catarina silva, Estudante de Relações Internacionais na FEUC

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PERFIL MUNDUS adriana Calcanhotto

Poucos dias após o fim da Queima das Fitas, a Mulher do pau-brasil recebeu o Mundus em seu gabinete e falou sobre sua passagem por Coimbra, sobre sua carreira e suas inspirações artísticas, e sobre os papéis da arte e da educação no mundo contemporâneo. A entrevista foi dividida em três partes pelo que este excerto corresponde a sua terceira parte. As partes restantes estarão disponíveis na íntegra no site do jornal. Gabriel Rezende: Acha que a arte tem sido marginalizada, no sentido de ser um tópico menos relevante para os cidadãos? Adriana Calcanhotto: Marginalizada você diz em que sentido?

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GR: Não se dá tanto valor à obra, ou não se dá tanta atenção à arte. AC: Depende do país em que você está, de que cultura você está. No Brasil se dá menos e menos, mas eu acho que marginalizar não é bem a palavra. Eu acho que é antes disso. É uma falta de compreensão de para que é que serve a arte. As pessoas acham que precisa servir para alguma coisa para que tenha valor. Acho que de certa forma falta um pouco de marginalidade a um tipo de trabalho. Acho que as pessoas andam muito só querendo estar no mainstream. É uma impressão que eu tenho, pode estar completamente enganada. Evidentemente as vanguardas tiveram seu papel e cumpriram o seu papel. Hoje, do jeito que as coisas estão, com a internet, com a polarização das coisas, com a democratização dos meios de produção cultural, não se vai esperar que as vanguardas tenham o mesmo papel que tinham antes, então fica muito difícil fazer um comentário sobre isso. Eu vejo muitas vezes no Brasil um comentário assim: “Quem é esse artista? Quanto ele vende? ”. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Você só é um artista de valor se você vender muito? Isso é um equívoco enorme! É uma falta de entendimento sobre o assunto, é uma inversão de valor total. Agora, em alguns tempos, para cabeça de políticos, para um tipo de pensamento, a arte é altamente ameaçadora. É e deve ser.

“Quando eu vejo as pessoas na minha geração que não entendem ainda que o planeta não é inesgotável, dá vontade de abandonar e trabalhar só para crianças”. GR: Esse pensamento tem muito a ver com a cultura de massas. AC: Tem a ver com a cultura de massas. Tem a ver com o fato de que ameaça os poderes estabelecidos. A arte desequilibra tudo, é por isso que em alguns sistemas, em alguns regimes, a arte não é bem-vinda. GR: Nós vimos há alguns meses um movimento contra a liberdade de expressão artística após a exposição Queermuseu, promovida pelo Santander Cultural na sua cidade natal. A mostra retratava “questões de gênero e diferença”. Enquanto artista, o que pensa sobre esse tipo de movimento? Acredita que exista um limite para o que se possa retratar por meio da arte? AC: Claro que não! Aquilo ali é uma desculpa. Na minha cabeça é uma desculpa; você enfia questões de gênero, de sexualidade, vê coisas onde não tem porque a principal ameaça está na arte. Acho um absurdo, acho uma vergonha, francamente. A gente não pode fugir a essas questões. A gente não pode negar que haja uma tribo que pensa assim e que acha que não precisa de arte, que acha que a gente pode sobreviver sem arte, que pode evoluir sem arte. Que fazer? Arte! É o que a gente pode fazer como resposta. GR: Coimbra foi palco de movimentos de resistência durante o Estado Novo. Os seus estudantes se utilizavam da música, da poesia e de outras formas de arte para se manifestarem. O mesmo aconteceu durante a ditadura militar, no Brasil, período em que muitos artistas foram exilados do país por fazerem o mesmo. Como vê o papel político da arte na contemporaneidade?


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“Você só é um artista de valor se você vender muito? ”

AC: Como eu estou te dizendo, é mais polarizado. A gente está vivendo esse tempo, então é difícil dizer, não tenho distanciamento para dizer nada, mas aqui aconteceu exatamente isso. Os livros que eram proibidos em todo o país, em todo Portugal, estavam aqui nessa biblioteca aqui do outro lado [apontando para a Biblioteca Geral, visível através janela do seu gabinete], à disposição. Isso é muito importante, parece pouca coisa, mas não é. Os nossos bravos compositores e artistas continuaram resistindo, mesmo saindo por segurança, até física, e alguns que foram obrigados a sair, alguns que saíram por opção, resistiram no plano das ideias e isso foi maravilhoso. A gente sabe o quanto isso nos forma até hoje, como cidadãos, como artistas, como brasileiros, com pensamentos independentes e de independência. É incrível o que aconteceu. Tenho muito orgulho disso. GR: Você acredita que a arte tem se tornado menos politizada, nos dias atuais? AC: Depende do que que a gente vai considerar porque as pessoas ficam muito marcadas com as canções de protesto. As canções de protesto parece que são politizadas; as que não são de protestos parece que não são. Na minha opinião, não é assim que funciona. Eu acho que existe essa confusão de artistas com celebridades. É isso que eu estava te dizendo “Quem é ele? Ele é um artista? Mas quanto ele vende? ”. Estão relacionados, mas não deveriam estar. Eu acho que tudo no Brasil está relacionado

à educação. A gente não pode também exigir das pessoas, se elas não têm educação para nada. Tudo, quando a gente vai pensar na situação do Brasil, tem a ver com a educação, desde que a educação começou a decair. Essa tragédia foi anunciada há muitos e muitos anos por pessoas que pensaram o Brasil das mais diferentes formas. A resistência do poder estabelecido é muito grande. Ninguém quer ver os pobres na universidade. Ninguém quer ver os negros na universidade. Ninguém quer ver os negros viajando de avião. Ninguém quer nada disso! Ninguém... O poder que está estabelecido. Então a gente tem muito, muito que batalhar. Não são só as canções de protesto que vão fazer isso; é produzir arte como um todo. Eu não desisti. Eu acho que é isso: é continuar fazendo. GR: A educação pode, então, mudar esse pensamento. AC: A educação é a única coisa que pode mudar. Evidente que a gente tem um lapso, tem gerações perdidas. Isso já aconteceu, é fato e não podemos nada quanto a isso. Isso é uma das coisas pelas quais eu trabalho para crianças porque acho que mais legítimo, é mais útil. Quando eu vejo as pessoas na minha geração que não entendem ainda que o planeta não é inesgotável, dá vontade de abandonar e trabalhar só para crianças. Às vezes dá um desânimo muito grande, mas eu acho que a nossa função é não desistir, por mais duro, trabalhoso que seja. E difícil.

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GR: Podemos afirmar que ser artista é resistir.

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AC: Sem dúvida. Eu acho que na situação que a gente vive no Brasil hoje, ser brasileiro é resistir, ser cidadão, pensar o futuro do Brasil. A gente tem que pensar no futuro do Brasil. A gente tem que pensar nas crianças que não estão na escola hoje e que as crianças precisam estar na escola amanhã. Os políticos que falam sobre educação, dizem “Eu vou construir prédios escolares”. Não adianta construir prédios escolares se os negros não têm acesso à educação. Prédios escolares não são relativos à educação; políticas de educação são relativas à educação. Prédios constroem-se, mas no momento precisamos mais de presídios, onde as pessoas estão aglomeradas em condições subumanas. Isso é produto da falta de educação, desse lapso, desse descompromisso com a educação que está a serviço de alguma coisa porque interessa a alguém que o Brasil não seja educado, não seja sequer alfabetizado, não tenha saneamento básico. A quem interessa isso, afinal de contas? Nota: o Congresso Nacional Brasileiro aprovou a Emenda Constitucional 95/2016 que cria o Novo Regime Fiscal. Trata-se de um plano de austeridade que congela os gastos em setores essenciais como educação, saúde e segurança públicas pelo prazo de 20 anos, a contar da sua entrada em vigor. Adriana Calcanhotto é cantora, compositora e lecionou o curso “Como Escrever Canções” na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC).

Entrevista por

Gabriel Rezende, Estudante de Jornalismo na FLUC Fotografia por Isabella Rabassi

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maginemos esta cena: uma rapariga magra de cabelos longos aparece em cena com seios vistosos e um vestido micro com um limite de apenas 7 cm abaixo da curvatura da anca; calça uns saltos altos e encontra-se desamparada depois do seu carro ter avariado. Pois bem que chega o macho viril pronto a ajudar – e qual o agradecimento necessário a uma ação tão máscula perante a indefesa rapariga: acabará com esta de joelhos, a dar prazer ao homem e, chegando ao ato final, este explode na sua cara. Com o corpo descoberto e rasgado, ferido, ela sorri - pois ela garante que ele tinha o que merecia após o seu heróico feito. Esta é uma cena recorrente no meio do cinema erótico - imagens semelhantes são todos os dias multiplicadas e vistas por milhares de pessoas: um terço do tráfego da Internet é utilizado para busca de pornografia ou conteúdos explícitos. A pornografia é baseada na ideia de transgressão, que passa por ultrapassar limites. A violação das regras é um campo propício ao desenvolvimento de fetiches. A ideia de que o sexo está associado a uma transgressão das normas sociais é excitante. A pornografia remete, muitas vezes, para relações em que o homem assume um papel dominante face à mulher, como mostram os temas “estudante-professor”, “padrasto-filha”, “paciente-enfermeira”, “chefe-secretária”. Estes cenários conjugam comportamentos que veiculam as diferenças de género, contra as quais a sociedade contemporânea diz querer lutar, normalizando os comportamentos retratados na vida real. Assim, a indústria pornográfica encontra-se, hoje em dia, com um problema a resolver: como se adaptar a um mundo que, cada vez mais, questiona os papéis de género? Além da óbvia base dos filmes pornográficos se sustentar na criação de excitação sexual a partir do voyeurismo, ela não passa só por isso. Como qualquer tipo de arte, seja ela cinema, teatro, música, literatura, trespassa ideologias e formas de pensar. Não é obsoleta de conteúdo. Pelo contrário, ela é promotora de um


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mos são discurso que irá ser absorvido, seja de forma explícita ou implícita. As cenas pornográficas têm um impacto direto na forma como percecionamos o mundo, pois na era da pós-verdade, onde o apelo às emoções tem mais força do que o recurso aos factos, as imagens comunicam simbolicamente com as audiências, mais do que nunca. A maior parte das imagens que remetem para a sexualidade não se limitam à indústria pornográfica. As marcas de moda ou a indústria alimentar, que são reconhecidas mundialmente, espelham também, a partir da publicidade, claros estereótipos de género e dos papéis sociais associados a estes, tendo um impacto direto no consumidor, que assimila os códigos e sinais subliminares.

“…a indústria pornográfica encontra-se, hoje em dia, com um problema a resolver: como se adaptar a um mundo que, cada vez mais, questiona os papéis de género?” Um estudo foi realizado e publicado na revista científica ‘Psychology Today’ com a intenção de compreender a perceção do cérebro quando deparado com imagens ultra sexualizadas do corpo de várias mulheres. Entende-se que existem dois grandes hemisférios que subdividem o nosso cérebro em zonas – um racional, o qual permite um controlo da personalidade, planear e atuar de forma moral e ética – e um emocional, que reflete a capacidade de sentir prazer, medo, desejo, etc. Os investigadores partiram da observação de ondas cerebrais dos participantes do estudo, de modo a entenderem qual a zona do córtex cerebral que se

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iluminaria quando lhes eram mostradas imagens de partes do corpo de mulheres nuas (expostas tanto a homens como a mulheres). O hemisfério emocional foi a zona que ‘’acendeu’’, ou seja, o cérebro ativou a capacidade de se sentir atraído e de provocar desejo sexual, enquanto a zona do cérebro que define as barreiras morais e éticas, que nos leva a autorregular as ações, manteve-se “adormecida”. Quando mulheres aparecem nuas em cartazes publicitários, quando uma mulher com roupas justas passa na rua, ou quando uma mulher aparece num filme pornográfico, a mente, inconscientemente, separa a pessoa da sua individualidade e passa a objetifica-la. Mas como o estudo sugere, o entendimento de que a mulher é um ser capaz de ter sentimentos e respostas emocionais fortes, faz os autores determinarem que a perceção da mulher tem semelhanças na forma como se perceciona os animais - a animalização é a nova objetificação! Visto que a zona do cérebro que regula o comportamento de acordo com pressupostos morais e éticos permanece inativa, os limites da ação não são considerados, sendo possível explorar a fonte de prazer, isto é, a mulher. Para tornar mais fácil esta ação, a mente, quando confrontada com estas imagens, recorre a um processo cognitivo que faz com que a mulher apareça como um ser incapaz de ter um pensamento complexo e, por isso, menos capaz de racionalizar a dor – assumimos a mesma postura perante os animais. E assim é tida em conta a mulher que se encontra vestida de forma sexy – um animal ao qual é possível fazer o que quiserem, como resposta ao prazer ou ao desejo, sem limitações éticas ou morais. Esta animalização da mulher não se esconde só nas imagens mundanas, mas também é clara na pornografia, que é um dos casos que, afirmando a sua abertura à sexualidade e ao lado erótico, não esconde todos os erros de promoção de um discurso machista e potenciador de estereótipos. Não esconde ainda que promove papéis submissos, passivos, em que o corpo é um instrumento que deve ser abusado sem qualquer consideração pelo seu conteúdo e pela pessoa que o habita. É esperado do macho alfa assumir o controlo e seduzir quem quiser. Das mulheres, é esperado uma ideia de castidade em que estas devem ignorar as suas próprias necessidades e sentimentos, em prol da vontade do homem. Por isso é que é tão fácil serem categorizadas como algo de baixo valor no discurso pornográfico – ‘’puta’’, ‘’vaca’’, ‘’cabra’’. A linguagem utilizada associa frequentemente a mulher a um animal, e estas categorias discursivas encontram-se enraizadas

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“E assim é tida em conta a mulher que se encontra vestida de forma sexy – um animal ao qual é possível fazer o que quiserem, como resposta ao prazer ou ao desejo, sem limitações éticas ou morais. ”

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na nossa linguagem, reproduzindo a hierarquia social com base nos papéis de género. São necessárias lentes críticas para a visualização destes vídeos, que expõem realidades deturpadas acerca do que deve ser o género e o papel social de cada indivíduo – a pornografia atual é um espelho claro de uma sociedade que submete ainda as mulheres a um controlo abstrato através de normas e regras de conduta, que são perpetuadas através de um discurso falacioso. Erika Lust é uma das mais importantes diretoras feministas de cinema erótico e grita por uma mudança dentro da própria indústria pornográfica. Ela defende que se deve assumir a sexualidade, pois ela é um instrumento poderoso para o empoderamento da mulher. A ideia passa por começar a defender a pornografia como algo que está diretamente relacionado às nossas necessidades básicas e que não deve ser constrangido num mundo evoluído, em que cada um tem o direito de se expressar livremente e de assumir a sua individualidade. Como Lust refere na sua palestra do Ted-X “A pornografia pode manter-se suja e violenta, os seus valores é que têm de se manter e sustentar através de um discurso igualitário e pacífico”. A pornografia feminista tem vindo a assumir-se lentamente, mas a intenção de libertação sexual e corporal que advém da terceira onda feminista representa um boom na própria produção de conteúdo sexual – o que muda, então, é a forma como

o enredo se desenvolve, a forma como cada personagem assume o seu papel. Ou seja, a forma como o próprio sexo é encarado diverge, tanto por parte do/a diretora, como dos protagonistas: o sexo torna-se um veículo para a libertação do corpo e da mente, e não uma mera fonte de prazer carnal e de subjugação. O paradigma tem de mudar, as novas correntes própornografia têm demonstrado um enfoque gigante em expor todos os casos que promovam mitologias, códigos impostos e absorvidos de forma pouco consciente. A pornografia feminista vem encetar esta luta, por uma maior abertura do que significa o sexo e das proporções que este pode tomar. Ela não castra o erotismo, fetiches, fantasias. Ela abre-se sim a todos os possíveis caminhos alternativos do que pode vir a ser a sexualidade, derrubando consigo todos os pressupostos que até agora viveram enraizados na sociedade.

sofia dias, Estudante de Jornalismo na FLUC


criminalização da solidariedade

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Criminalização da solidariedade

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m outubro de 2013, perante a emergência humanitária no estreito da Sicília, o governo italiano lançou a Operação Mare Nostrum. O objetivo era salvaguardar as vidas humanas em risco no mar e trazer à justiça os traficantes e contrabandistas que conduziam os migrantes nas travessias, através da projeção de meios marítimos e aéreos no Mediterrâneo. Os custos de quase 9 milhões de euros por mês desta operação de busca e salvamento foram suportados na totalidade pelos italianos, com a exceção de uma contribuição de 1,8 milhões de euros por parte de um fundo de emergência comunitário. Durante a missão, a Itália pediu incessantemente à União Europeia (UE) que providenciasse uma ajuda mais alargada, através da cooperação com os restantes Estados Membros. Contudo, esse apoio nunca chegou. Em outubro de 2014, o governo italiano pôs fim à Mare Nostrum, coincidindo com o início da Operação Tritão, uma iniciativa comunitária coordenada pela Frontex, a Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas. No entanto, as missões divergiam, tanto nos objetivos, como nos meios utilizados. A campanha levada a cabo pela marinha italiana tinha um caráter proativo de busca e salvamento, estendendo-se quase até à costa da Líbia. Por sua vez, a operação da UE, com um orçamento mensal de menos de 3 milhões de euros, não possuía meios para substituir a Mare Nostrum, levando à redução da área patrulhada e a uma mudança de abordagem – deu-se a introdução de um discurso mais rígido e militarista, assente na necessidade de combater o fator de atração das missões de salvamento, que, alegadamente, funcionam como incentivo para que cada vez mais migrantes arrisquem a travessia nas águas do Mediterrâneo. Assim, as prioridades mudaram, passando de uma missão humanitária para uma missão de securitização das fronteiras europeias. Na sequência de vários desastres de grande escala na rota migratória central, em abril de 2015, a Operação Tritão foi expandida e dotada de mais meios. Na mesma altura, diversas ONG começaram a efetuar missões de busca e salvamento no Mediterrâneo para fazer face à insuficiência da missão da UE. Desde então, estas organizações tornaram-se nos principais prestadores

de socorro. Um desses casos é o Aquarius, um navio operado pelas ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) e SOS Mediterrâneo, que está nas bocas do mundo depois de as autoridades italianas e maltesas terem recusado acolher nos seus países os 629 migrantes socorridos pelos voluntários das organizações. Esta decisão surge numa altura em que o novo governo italiano, e, em especial, o Ministro do Interior Matteo Salvini, está a delinear estratégias anti-imigração cada vez mais restritivas e repressivas. Parte das estratégias passam por limitar cada vez mais a atuação das ONG que prestam apoio e assistência aos migrantes, durante a travessia para a Europa e na sua integração. Os seus voluntários providenciam socorro, abrigo, comida e roupa, aconselhamento legal, apoio médico, aulas de línguas, entre muitas outras coisas, constituindo uma autêntica rede autónoma de solidariedade e resistência, face à negligência e militarização das fronteiras que tem vindo a ser conduzida pelos países da UE. Assim, a existência destes movimentos e associações é, por si só, percecionada como uma ameaça ao Estado, por não se encaixar na solução por ele implementada. Em consequência, um pouco por toda a Europa, tem vindo a verificar-se uma criminalização da solidariedade, isto é, a tática policial de deter e acusar indivíduos que prestam apoio a migrantes em situação irregular. Em termos legais, esta criminalização baseiase numa diretiva da UE de 2002 para estabelecer uma política comum de combate à imigração ilegal, que declara que cada Estado deve aplicar sanções a todas os indivíduos que ajudem outras pessoas, não nacionais de Estados Membros da UE. A diretiva ressalva que os Estados podem decidir não aplicar as sanções em casos em que o objetivo seja a ajuda humanitária. Ainda assim, escudados por esta norma, os Estados têm vindo a reprimir e a pressionar a comunidade pan-europeia de voluntários, que surgiu na sequência da crise migratória, confundindo-os propositadamente com traficantes e contrabandistas. Neste contexto, surgem histórias de resistência e desobediência, à volta do Mediterrâneo e em alto-mar. Junto à fronteira entre França e Itália pode-se observar um ambiente de solidariedade humanitária, com

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“…a existência destes movimentos e associações é, por si só, percecionada como uma ameaça ao Estado”

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diversas organizações e indivíduos a prestar assistência aos migrantes que decidem atravessar a zona dos Alpes para escaparem aos controlos fronteiriços mais a sul. Um desses casos, na zona de Briançon, é Benoît Ducos, um membro da associação Tous Migrants e antigo socorrista que trabalhava nos Alpes. Depois de um migrante ter ficado sem dois pés, amputados após ficarem congelados devido às temperaturas negativas, Ducos e outros colegas começaram a fazer rondas pelas várias rotas que contornam os postos policiais da zona, para auxiliar pessoas em situações de risco. Em março deste ano, ao socorrer uma mulher grávida nigeriana e a sua família, Benoît acabou por ser interpelado pela polícia, por estar a transportar migrantes sem documentos. O francês arrisca-se, segundo a lei francesa, a uma pena de prisão de 5 anos. No Vale de Roya, uma zona onde se tem vindo a verificar uma contestação maior pela inação do Estado, a resposta das autoridades francesas foi o estabelecimento de um cerco militar e policial na zona – uma verdadeira caça ao homem. Em fevereiro deste ano, Cédric Hérrou, agricultor e um dos líderes do movimento Roya Cittoyenne, foi condenado a 4 meses de pena suspensa por ajuda à migração clandestina, apesar da sua assistência se enquadrar no domínio humanitário. Também em alto-mar, no Mediterrâneo, pescadores tunisinos têm vindo a salvar migrantes que ficam à deriva na travessia para o Sul de Itália. Os pescadores da zona de Zarzis, junto à fronteira com a Líbia, criaram uma associação que providencia formação a pescadores para efetuarem os salvamentos, desafiando as milícias líbias que controlam o tráfico de migrantes e mesmo a polícia tunisina que já ordenou o fim destes resgates. Importa então perguntar o que leva estas pessoas a resistir? Estas histórias têm em comum a simplicidade e a espontaneidade da solidariedade – a vontade de ajudar outros que estão em risco. Enquanto que a resposta militarista da UE desumaniza e mascara esta crise humanitária, os movimentos autónomos tornam o problema visível através da sensibilização, e prestam apoio essencial, respondendo às necessidades vitais dos migrantes. Estas associações contestam o discurso alienante utilizado pela UE, que se refere aos migrantes como ilegais e que prioriza questões securitárias à salvaguarda do seu bem-estar e direitos. A política da UE passa por dois vetores essenciais: a institucionalização da negligência e o reordenamento das fronteiras internas e externas. A primeira faz-

se através da falta de planeamento e de assistência, e da criminalização da solidariedade, levando à desumanização dos migrantes. A segunda é mais complexa, consistindo nas ações que procuram estancar os fluxos migratórios, internamente, através do restabelecimento de controlos em fronteiras e da criação de zonas de patrulhamento intensivo, como no Vale de Roya, e, externamente, através de atividades como a operação Tritão e os acordos informais com a Turquia, Líbia e Afeganistão. Estes entendimentos, que não passam pela aprovação do Parlamento Europeu, têm como objetivo impedir que os migrantes cheguem ao território europeu, forçando-os a ficar retidos ou serem deportados para estes países. Deste modo, a UE é conivente com as condições desumanas que estes países oferecem aos refugiados. Segundo um relatório da Amnistia Internacional, a UE apoia ativamente a Líbia na intercetação de migrantes em alto-mar, antes da chegada a águas europeias. Isto resultou na prisão em massa de migrantes, de forma arbitrária e por tempo indefinido, em centros de detenção sobrelotados. Nestes verdadeiros campos de concentração, está montado um ciclo de exploração e abuso: os guardas extorquem os migrantes, encaminham-nos para os traficantes para depois os intercetarem de novo em alto-mar. Foi também perante uma política repressiva e militarista que, no séc. XIX, Henry David Thoreau se opôs à administração dos EUA, nomeadamente pela participação ativa no esclavagismo e pela invasão ao México. No ensaio “On the Duty of Civil Disobedience”, Thoureau, um convicto abolicionista, argumentou que as pessoas têm o dever de resistir e desobedecer às leis e práticas injustas do governo, mesmo que isto leve à sua prisão. O americano foi um dos indutores do pensamento moderno acerca da desobediência civil, apelando às populações para não serem passivas e agirem conforme dita a sua consciência. É neste quadro que indivíduos como Benoît Ducos e Cédric Hérrou se levantam contra a força esmagadora do Estado. Durante um interrogatório, os agentes da polícia fronteiriça questionaram Ducos se voltaria a prestar assistência a migrantes ilegais, ao que o francês respondeu prontamente que sim. Por sua vez, Cédric Hérrou provoca o Estado a agir, dizendo que a única alternativa para o impedirem de continuar a dar apoio a migrantes é colocarem-no na cadeia. Hérrou afirma que é o dever do cidadão agir, face aos milhares de pessoas morrem a tentar passar as fronteiras. A irreverência destes ativistas vai ao encontro do que Thoreau


criminalização da solidariedade

afirmava já há dois séculos atrás: “numa sociedade que prende injustamente, o único lugar para um homem justo é a prisão”. Thoreau afirmou que o Estado não possui superioridade moral ou intelectual face aos cidadãos, estando apenas dotado de uma força física avassaladora – escudada na legitimidade conferida por uma maioria. Existem leis injustas e, ao pactuar com elas, o cidadão comum está a ser um agente da injustiça. Por este motivo, o apelo de Thoreau, quando evoca a ação pela consciência, é que se ultrapasse a tensão entre legalidade e legitimidade. É legítimo ajudar e organizar o apoio aos migrantes. Não é legítimo erigir barreiras, interna e externamente, ignorando as pessoas que esbarram nelas enquanto se debatem com dificuldades. É a partir desta tensão que se estrutura a dinâmica polarizadora na Europa, entre a agenda humanitária dos ativistas e das ONG e a agenda securitária das elites políticas. O que sobressai no âmbito desta crise é uma União Europeia em decadência, paralisada pelo confronto entre o poder normativo e geopolítico. Como consequência, a comunidade europeia não consegue responder a uma das maiores crises humanitárias do século. No passado dia 24, teve lugar uma mini cimeira preparatória sobre a crise migratória, com os países da UE. O evento ficou marcada por acusações entre superegos, mantendo-se o impasse que prolonga a situação insustentável que se vive no Mediterrâneo e na Europa. É imperativo que a UE chegue a um consenso e enverede por uma política humanitária, nomeadamente através da reforma do Regulamento de Dublin – as normas que regem o processo de requerimento e atribuição de asilo a refugiados – em moldes mais solidários. Contudo, esta perspetiva é ameaçada pela emergência de governos e partidos com agendas anti-imigração. Por este motivo, a sociedade civil tem um papel fulcral, não se podendo associar às políticas draconianas da UE.

junho 2018

Por toda a Europa têm surgido movimentos autónomos e espontâneos de assistência humanitária que se são confrontados com a criminalização da sua atuação. Na ponta da Europa, a realidade aqui retratada pode parecer um pouco distante. Porém, não nos devemos alhear do problema. Como Thoreau afirmou, temos de usar as nossas vidas como atrito para a máquina do governo. Agir em consciência, estimulando uma resposta solidária. Hoje, dia 29 de junho, os líderes europeus terminam a cimeira que poderá ditar um novo Regulamento de Dublin, com novas normas acerca das quotas de distribuição de refugiados, impedimentos ou incentivos para contrariar “movimentos secundários” (para fora do país de asilo), etc. As propostas em mesa divergem – a Presidência do Conselho, encabeçada pela Bulgária, apresentou um regulamento muito mais restritivo do que aquele que foi proposto pela Comissão Europeia e, sobretudo, do que aquele que foi aprovado com uma larga maioria no Parlamento Europeu. Não é muita a esperança de que os líderes europeus cheguem, subitamente, a um consenso solidário e que contrariem os ventos dos anos 30 que se fazem sentir novamente no Velho Continente. Ainda assim, fica a certeza que os “heróis” de Thoreau, que se batem contra o Estado, continuarão a construir redes paralelas que resistem à negligência e à repressão.

“O que sobressai no âmbito desta crise é uma União Europeia em decadência, paralisada pelo confronto entre o poder normativo e geopolítico.” pedro cosme, Estudante de Relações Internacionais na FEUC

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jornal mundus

Sci-Hub:

democratização do saber?

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A revolução digital foi dos contributos mais relevantes para a disseminação e democratização da informação. Com esta, a distribuição do conhecimento deixou de ser marcada por obstáculos materiais à sua propagação. Para o mundo académico, em específico, isto apresentouse como um marco significativo. Os investigadores passariam a ter a capacidade de publicar o seu trabalho sem a necessidade de recorrer a um intermediário oneroso – as editoras. Os académicos representam o todo da indústria científica: eles produzem, processam e consomem. As editoras apenas oferecem um serviço, exigem a qualidade dos artigos, asseguram que estes são revistos e comentados por outros investigadores e vendem o produto final a bibliotecas. Este era um papel de extrema importância na era pré-digital; as editoras eram responsáveis por difundir a informação ao público. Assim, seria de esperar que o poder e influência destas se tornasse progressivamente diminuto num mundo cada vez mais virtual. Contudo, essa mudança de paradigma não se concretizou. Alexandra Elbakyan, uma jovem programadora proveniente do Cazaquistão, insatisfeita com o formato das publicações académicas fundou, em 2011, o site SciHub. Este é uma plataforma gratuita e de livre acesso a milhões de artigos académicos que, se acedidos pelos meios tradicionais – entenda-se legais – seriam pagos. A indústria de divulgação científica é singular. Um investigador é pago pelo capital cultural institucionalizado que produz na sua totalidade: o que leciona, o que publica e as dissertações que orienta. Adicionalmente, estes profissionais não publicam em troca de dinheiro, mas acreditando na validade da sua contribuição para a evolução da ciência, bem como em troca da reputação que daí advém. Os artigos são compilados e publicados em formato de jornais científicos que, posteriormente, são vendidos por preços bastante elevados. Ou seja, para que estudantes e académicos tenham acesso a certos artigos, satisfazendo a necessidade compulsória de se manterem atualizados, é preciso que as suas universidades paguem, por vezes,

milhões de euros a uma editora. Elbakyan argumenta que, enquanto os investigadores não ganham nada com as suas publicações, as editoras fazem margens de lucros gigantes ao publicarem conteúdo que não é da sua autoria, enquanto cobram taxas de subscrição exorbitantes. A ironia da situação apresenta-se quando o trabalho publicado não é tornado acessível a outros investigadores, ou até aos próprios autores. Elbakyan acrescenta que “toda a gente deveria ter acesso ao conhecimento, independentemente do seu rendimento ou afiliação (...) a ideia de que o conhecimento pode ser propriedade privada de alguma empresa comercial é um conceito absolutamente estranho para mim.” Para a programadora, os movimentos políticos e a ciência têm uma missão partilhada, a de se oporem à propriedade intelectual detida pelas editoras, defendendo que o conhecimento deve ser público e não objeto de lucro para alguns. Apesar de existirem plataformas alternativas legais de livre acesso, a comunidade académica ainda assume uma postura conservadora face a estas, sendo que a maior parte dos profissionais, quando confrontados com a escolha de partilhar os seus artigos numa

“…para que estudantes e académicos tenham acesso a certos artigos, satisfazendo a necessidade compulsória de se manterem atualizados, é preciso que as suas universidades paguem, por vezes, milhões de euros a uma editora.”


Sci-Hub: democratização do saber?

plataforma de livre acesso ou publicá-los num jornal científico influente, preferem a última opção. Várias revistas académicas influentes são opositoras à existência do Sci-Hub, tendo em conta que dependem de subscrições para gerar lucro. Se estudantes, professores e investigadores pudessem aceder à informação gratuitamente, as instituições universitárias não teriam de pagar para tornar os conteúdos e artigos disponíveis. Marcia Mcnutt, Presidente da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos e ex-editora-chefe da Revista Science, contra-argumenta a posição de Elbakyan, alegando que, atualmente, as publicações digitais são tão dispendiosas como as publicações impressas. Estas declarações foram recebidas com ceticismo por parte de investigadores e peritos que consideram os custos exigidos pelos jornais inaceitáveis e de difícil justificação. Em 2016, a Revista Science trabalhou em conjunto com Elbakyan, compilando dados com o propósito de compreender se a grande maioria dos utilizadores estava a recorrer ao site por necessidade ou por conveniência. Os dados comprovaram que os países com maiores números de downloads eram países desenvolvidos, sendo que os EUA ocupavam o quinto lugar na lista, a seguir à Rússia, e que um quarto das solicitações de artigos provinham de 34 membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), ou seja, os países com suposto maior acesso a jornais científicos. Apesar da análise dos dados ter demonstrado que os usuários mais frequentes do site são provenientes de países desenvolvidos, o SciHub tem-se afigurado vital para facultar uma educação mais completa nos países menos desenvolvidos onde, frequentemente, universidades não têm capacidades financeiras para adquirir uma panóplia diversa de artigos. Uma das editoras científicas mais influentes do mundo, a Elsevier, iniciou, em 2015, uma ação judicial contra o site de Elbakyan, ganhando o caso a junho de 2017 e exigindo o pagamento de uma indemnização de 15 milhões de dólares em danos. A programadora cazaque esteve novamente envolvida em controvérsia quando a Sociedade Americana de Química processou o Sci-Hub a junho de 2017, obrigando-o ao pagamento de 4,8 milhões de dólares em danos, bem como exigindo que os serviços fornecedores de Internet sejam proibidos de facilitar os serviços do site. Recentemente, a administração Trump alargou a

junho 2018

“…é legítimo encará-lo como um ato de justiça ilegal contra um sistema legal mas injusto.” capacidade dos fornecedores de Internet controlarem o acesso dos seus clientes a certos sites revogando, assim, a neutralidade da Internet; prática que é considerada ilegal na União Europeia. Não obstante este desenvolvimento, podemos afirmar que o Sci-Hub veio para ficar. O número impressionante de downloads diários que o site regista, bem como o número crescente de académicos a aceder ao mesmo, torna provável a tão desejada mudança estrutural da indústria de publicação científica. É fácil encarar o trabalho de Elbakyan como corrupto. Contudo, se o enquadrarmos de outra forma, é legítimo encará-lo como um ato de justiça ilegal contra um sistema legal mas injusto.

sofia seguro, Estudante de Relações Internacionais na FEUC

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jornal mundus

c a r t o o n − r at s b y t o p h

Direção: Catarina Silva / Mariana Riquito Equipa Mundus: Gabriel Rezende / Joana Mateus / Cláudio Valério / Sof ia Dias / Sof ia Seguro Design Gráfico: Hugo Vale Pereira Fotografia: Isabella Rabassi Ilustrações: Joel Almeida e Luísa Amado

Depósito Legal: 431927/17 Impressão: FIG - Indústrias gráficas, sa

agradecimentos:

f a l a c o n n o s c o , a p o i a-n o s e j u n t a-t e a n ó s jor nalmundus@g mail.com f a c e b o o k . c o m /j o r n a l m u n d u s jor nalmundus.pt


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