Jornal Mundus Nº10

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nĂşmero 10 - setembro 2019

preço livre - 350 exemplares

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jornal mundus

índice “A Natureza, e a forma como a tratamos, é o que determina a existência humana. Como

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desenvolvimento (in)sustentável

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Limites e transgressões: os desafios do clima

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alterações climáticas: nova fonte de instabilidade política mundial

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evolução do movimento ambientalista em Portugal

a Natureza é sagrada e deve ser cuidada, as relações entre as pessoas e a Natureza tornam-se o padrão da sociedade e das relações sociais” Mary Graham

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a luta pelo planeta... de Coimbra ao mundo

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de onde vem a sua comida?

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A vida em sociedade sob uma nova perspectiva: 30 dias em Tamera


desenvolvimento (in)sustentável

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DESENVOLVIMENTO (in)SUSTENTÁVEL Vivemos tempos de incerteza em relação ao futuro do nosso planeta e, consequentemente, ao bem-estar da humanidade. Vários são os estudos que demonstram esta realidade e que evidenciam a crise ecológica pela qual estamos a passar. Por exemplo, um estudo de um think-tank australiano concluiu que, em 30 anos, pelo efeito das alterações climáticas, a humanidade vai sofrer uma ameaça existencial, podendo até vir a extinguir-se neste período de tempo. Já um grupo de investigadores canadianos concluiu que podemos estar a ingerir até 50 mil partículas de microplástico, por ano, através do consumo de vários alimentos, como o peixe, o sal ou a água, o que não é surpreendente, pela ilha de plástico existente no Pacífico Norte, com 17 vezes o tamanho do nosso país, ou pelo relatório do Fórum Económico Mundial, que afirma que, se não forem tomadas medidas urgentes, em 2050 existirá mais plástico do que peixes nos oceanos, uma vez que a cada ano são despejados pelo menos 8 milhões de toneladas de plástico para os oceanos, o equivalente a despejar um camião de lixo no oceano, por minuto. No entanto, continuamos a assistir ao desenvolvimento de práticas insustentáveis, procedentes do modelo de desenvolvimento capitalista em que (sobre)vivemos, onde o objetivo é lucrar com a natureza e, não, viver em harmonia com a mesma. Em vez de se atingir um equilíbrio entre o desenvolvimento da vida humana e a natureza, que permita a sustentabilidade do planeta e, consequentemente, da vida humana, desenvolvem-se práticas que perpetuam um sistema em desequilíbrio, onde a natureza é um meio - em vez de um fim em si mesma -, utilizado para satisfazer as necessidades humanas (supostamente) ilimitadas. Com este artigo, pretendo demonstrar que, a fim de se atingir um verdadeiro desenvolvimento sustentável, que tenha em consideração o bem-estar das gerações presentes e das futuras e, por isso, estabeleça uma relação positiva com a natureza, é fulcral existir uma mudança estrutural das práticas desenvolvidas pelos atores privados e, também, pelos Estados. Não obstante, pretendo clarificar que a sustentabilidade do planeta também passa pela responsabilidade individual. Ou

seja, pelo reconhecimento de que, nós, enquanto seres humanos que habitam este planeta e que partilham a vida com muitas outras espécies, temos o dever de preservar a natureza e, para tal, diariamente, podemos desenvolver práticas mais ecológicas, que permitam a sustentabilidade do planeta e do desenvolvimento humano. A crise ecológica que estamos a atravessar é uma consequência direta daquilo que, desde o início da década de 80, se tem vindo a realizar: práticas capitalistas “sustentáveis”. Nesta década, a Assembleia Geral das Nações Unidas cria a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Mais tarde, em 1987, a Comissão lança o Relatório Brundtland que define o conceito de “desenvolvimento sustentável” como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprirem as suas próprias necessidades”. Sachs, economista que pensa o desenvolvimento como uma combinação entre crescimento económico, aumento igualitário do bem-estar social e preservação ambiental, afirma que foi a partir daqui que o adjetivo “sustentável” se tornou um imperativo na retórica mundial. De facto, tentou dar-se resposta à necessidade de as gerações futuras poderem suprir as suas necessidades, da mesma forma que nós, hoje, as suprimimos. O grande problema foi a sustentabilidade do planeta ter passado pela sustentabilidade da economia de mercado. Neste sentido, desenvolveram-se estratégias para submeter a problemática ambiental aos interesses da globalização, minimizando a intervenção estatal e indicando o mercado e as políticas neoliberais como a solução para resolver os problemas ecológicos. Desta forma, deu-se início à massificação da produção e do consumo, o que levou a que as pequenas empresas se tornassem em grandes multinacionais prontas para desflorestar, poluir e destruir, numa procura incessante por recursos naturais, a fim de maximizarem a sua produção e, consequentemente, poderem aumentar os seus lucros. Por outras palavras, o “desenvolvimento sustentável” passou pela continuidade do sistema de

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produção capitalista, onde o objetivo era proporcionar mais quantidade de bens e, não, mais qualidade de vida. Segundo dados de um relatório da organização Rainforest Action Network (RAN), dezenas de marcas, como, por exemplo, McDonald’s, Mars, Kellogg’s, Procter & Gamble, Pepsico, Unilever e Nestlé, destroem ilegalmente a floresta da ilha de Samatra, na Indonésia, para localizarem as suas plantações de óleo de palma. Este impacto ambiental negativo aumentou os conflitos entre os seres humanos e os animais, uma vez que estas plantações estão a fragmentar os seus habitats. Outro estudo levado a cabo pela iniciativa “Break Free from Plastic”, que procedeu à limpeza das costas de 42 países, concluiu que, num total de mais de 187 000 peças de plástico, mais de 65% correspondem a embalagens de grandes multinacionais, como a Coca-Cola, Pepsi, Nestlé, Danone ou Colgate-Palmolive. Para além disso, o relatório da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos (IPBES), publicado pela ONU, conclui que em 8 milhões de espécies no mundo, cerca de 1 milhão de espécies de animais e plantas está sob ameaça de extinção, algo sem precedentes na história da humanidade. Paul Leadley, um dos coordenadores do relatório, afirma que a humanidade está a enfrentar uma crise de biodiversidade. O autor dá o exemplo do impacto negativo que o desaparecimento dos animais polinizadores causa sobre a polinização de alimentos como frutas, legumes ou até mesmo chocolate. O estudo adianta ainda que as cinco principais ações impulsionadores da situação atual do planeta têm envolvimento humano. Desta forma, torna-se clara a necessidade de uma mudança estrutural no modelo de desenvolvimento existente, dado que o mesmo resulta de práticas capitalistas que destroem o frágil equilíbrio entre os diferentes ecossistemas com quem partilhamos a vida neste planeta. Na minha opinião, nem as multinacionais, nem os Estados e as Organizações, capazes de terminar a priori com estas práticas destrutivas, têm apresentado respostas suficientemente rápidas e eficazes para alterar este paradigma. Portanto, deve ser da responsabilidade dos atores civis, capazes de alterar os seus estilos de vida subjacentes a este modelo, desenvolver um movimento social mais coeso, capaz de alterar o status quo ambiental e de provocar a mudança estrutural de que tanto precisamos. Este movimento social apela a que todos e todas sejam capazes de alterar o estilo de vida consumista e de desperdício em que fomos habituados a viver, com o objetivo de diminuir a pegada ecológica e, consequentemente, contribuir para um planeta mais sustentável. Para tal, o impacto das ações quotidianas

desenvolvimento (in)sustentável

sobre o planeta deveria ser uma preocupação central de cada um. A nível individual, são muitas as práticas que se podem desenvolver para atingir este objetivo, como reduzir o consumo de carne, dado que, segundo dados do Diário de Notícias, a produção intensiva de gado contribui em 18% para o aumento do aquecimento global, ultrapassando até o setor dos transportes (13,5%); utilizar sacos de pano ou reutilizar sacos de plástico que já possuímos quando vamos às compras, em vez de estarmos sempre a utilizar um novo; preferir produtos locais e orgânicos, assim como produtos higiénicos feitos à base de bambu ou madeira; utilizar uma garrafa/copo de água reutilizável, para não estar sempre a adquirir garrafas de plástico; ou, ainda, reduzir a compra de vestuário, optar por roupa em segunda mão e/ou preferir marcas sustentáveis, dado que o poliéster, principal fibra sintética utilizada na indústria têxtil, gasta 70 milhões de barris de petróleo, por ano, para ser produzido e demora cerca de 200 anos para se decompor. Para além disso, há, ainda, a necessidade de os indivíduos desenvolverem práticas coletivas, de forma a que haja, novamente, uma ligação social entre todos e todas. Ou seja, terminando com uma lógica de vida individualista, integrar o movimento ecológico já existente, com o objetivo de construir um movimento social suficientemente coeso e capaz de pressionar Estados, Organizações e multinacionais. Mais ainda, porque não devemos apenas delegar o nosso poder às grandes instituições, uma vez que os factos nos mostram que a maioria das organizações não toma decisões em que o planeta e a humanidade sejam uma prioridade. Assim, deve ser também nossa responsabilidade aproximarmo-nos destes atores e, em conjunto, formular a mudança pretendida. Concluindo, após a análise objetiva que foi apresentada, fica o desafio subjetivo de repensarmos o nosso estilo de vida e passarmos a viver com o essencial, aproximando-nos cada vez mais de um modo de vida “desperdício zero”. O rápido crescimento populacional, aliado à escassez de recursos e mau-aproveitamento dos mesmos, faz com que seja ainda mais necessário diminuirmos o consumo de todo o tipo de produtos, a fim de garantirmos a sustentabilidade do nosso planeta. Não obstante, esta pode não ser a solução ótima para a crise ecológica que estamos a atravessar, no entanto é a que está mais próxima de nós. Está nas nossas mãos alterar o modo de vida inconsciente em que vivemos, pois, até agora, o mesmo tem contribuído apenas para a insustentabilidade do planeta. CAROLINA VEIGA SIMÃO, Licenciada em Relações Internacionais na FEUC


LIMITES E TRANSGRESSÕES: os desafios do clima

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LIMITES

E transgressões: OS DESAFIOS DO CLIMA Durante os últimos 1.2 milhões de anos o sistema Terra, regulado por mecanismos de feedback biogeofísicos e por fatores externos (como variações na órbita da terra), tem permanecido limitado entre extremos glaciares e interglaciares. Apenas no início do Holoceno, período interglaciar iniciado há cerca de 11.700 anos, com a estabilização climática e o derretimento das camadas de gelo que cobriam parte do território europeu e asiático, foi possível o desenvolvimento da agricultura, o que eventualmente permitiu a sedentarização, o surgimento das cidades, o desenvolvimento da escrita e das civilizações. Durante o Holoceno, apesar de terem havido mudanças regionais do clima (como no Período Medieval Quente e na Pequena Idade do Gelo), a temperatura média da Terra não variou mais de 1ºC relativamente aos 13,9ºC, a temperatura média no século XX. A quasi-estabilidade climática que permitiu o florescer da civilização é devida a mecanismos de feedback biogeofísicos, que se encontram hoje ameaçados – como os próprios sistemas terrestres e oceânicos de absorção de carbono. Alguns destes mecanismos de feedback, uma vez cruzado um certo limiar – designado por tipping point, levam à transição do subsistema para um novo estado que se autoperpetua. Estas novas condições influenciam todo o sistema. A sobrevivência dos múltiplos subsistemas, e dos biomas que constituem - tal como a dos animais -, depende da sua capacidade de adaptação a mudanças no sistema. Ou seja, necessitam de tempo. Caso a mudança climática seja demasiado abrupta, um tipping point pode ser ultrapassado, provocando mudanças irreversíveis no bioma. Os mecanismos de feedback dos diferentes subsistemas não têm necessariamente tipping points iguais. Ainda que, por exemplo, a subida da temperatura média entre 1 e 3ºC em relação ao período pré-industrial possa desencadear o colapso simultâneo de vários subsistemas como os recifes de coral, a Antártida Ocidental e a gronelândia, o degelo da Antártida Oriental

“Uma vez que o dióxido de carbono (CO2) e outros gases de efeito estufa armazenados debaixo do gelo são libertados para a atmosfera, é esperado um aumento da temperatura e consequente continuação do degelo.” 5

só deverá surgir após um aumento da temperatura superior a 5ºC, conforme estimado pelos modelos actuais. Contudo, é de notar que as mudanças num ou mais subsistemas podem ser suficientes para instigar o aumento da temperatura de forma a interferir com subsistemas regulados por mecanismos de tipping point mais elevado - um fenómeno conhecido por tipping cascade. Transpor alguns tipping points pode desencadear reações repentinas, como a conversão de áreas da floresta amazónica em savana, enquanto noutros casos surgem respostas mais graduais mas autoperpetuantes, de que é exemplo o degelo do pergelissolo. Uma vez que o dióxido de carbono (CO2) e outros gases de efeito estufa armazenados debaixo do gelo são libertados para a atmosfera, é esperado um aumento da temperatura e consequente continuação do degelo. O degelo do pergelissolo pode levar à exposição de hidratos de metano e consequente libertação do metano (1m³ de hidrato de metano liberta para a atmosfera 160m³ de CH4), um gás que nos primeiros 20 anos após libertação é 84 vezes mais potente que o CO2 enquanto gás de efeito estufa. Neste momento, as emissões de gases de efeito estufa antropogénicas são o fator determinante na estabilidade climática. As alterações que a atividade humana tem causado ao Sistema Terra levaram o Working Group on


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AlTERaÇÕ

A NOVA FONTE DE POLÍTICA INTER

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the Anthropocene da British Society of Geomorphology a recomendar em 2017 a formalização do Antropoceno como uma nova época geológica. Contudo esta nova época, que se iniciou pela ação do ser humano, parece estar rapidamente a fugir-lhe ao controlo, com a transposição de muitos tipping points a parecer cada vez mais próxima. Os modelos da International Panel on Climate Change mostram que ainda que os cortes nas emissões de gases de efeito estufa acordados em Paris em 2015 sejam implementados, está longe de estar revertido o risco de que estas tipping cascades levem a Terra em direção a condições climáticas imprevisíveis e a uma biosfera profundamente diferente. No processo de descer das árvores e começar a derrubá-las, o Homem tornou-se uma força geológica determinante para o futuro do Sistema Terra. Apesar de reconhecermos que as diferentes sociedades do mundo têm contribuído de forma diferente para as pressões no Sistema Terra, a gestão ponderada da futura relação da humanidade com o restante sistema exige uma discussão que sublime fronteiras. Num cenário em que a redução das emissões de gases de efeito estufa é claramente insuficiente, uma profunda transformação com base na reorientação fundamental dos valores humanos, do comportamento, das instituições, das economias e das tecnologias visa-se necessária à sobrevivência do que conhecemos.

RITA AMADO DIAS, Licenciada em Farmácia Biomédica na FFUC

Qualquer mudança na dinâmica de poder do Sistema Internacional (SI) resulta, inevitavelmente, em conflito. À medida que os efeitos das alterações climáticas se tornam cada vez mais notáveis, novas tensões políticas vão emergir. As instabilidades derivadas das alterações climáticas vão ter diferentes origens. Provavelmente, o assunto mais urgente será a escassez de alimentos. À medida que o planeta aquece, a desertificação fará com que muitos Estados percam parte da sua terra arável. Um estudo publicado pelo jornal Environmental Research Letters, ainda em 2011, afirma que a quantidade de terra arável a nível mundial poderá diminuir entre 0,8% e 4,4%. Apesar destes números não representarem uma grande proporção da terra arável mundial, a questão torna-se bem mais inquietante quando analisamos o impacto assimétrico deste processo. Enquanto alguns Estados, como a Rússia, podem esperar ganhar mais terra arável à medida que o planeta aquece, outros países, nomeadamente nos continentes africano, sulamericano e euro asiático, podem vir a perder até 18%, 21% e 17% das suas terras cultiváveis, respetivamente. A perda derivada da desertificação poderá exacerbar a pressão no fornecimento nacional de alimentos, especialmente em países que já enfrentam problemas de segurança alimentar. Simultaneamente, a água doce também irá tornarse um bem escasso. Tal como a escassez de alimentos, a falta de água já afeta algumas regiões do mundo e, à medida que a pressão e a competição por estes recursos básicos aumentam, aumenta também a propensão para conflitos internacionais. Os Estados que são obrigados a partilhar bacias hidrográficas, vão ter de encontrar formas de cooperar para preservar as suas fontes


alterações climáticas: a nova fonte de instabilidade política internacional

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ÕES CLIMÁTICAS

E INSTABILIDADE RNACIONAL de água. No entanto, à primeira vista, parece difícil conseguir impedir um clássico cenário de “tragédia dos comuns”. Por exemplo, o Lago Chade faz fronteira com o Chade, os Camarões, o Níger e a Nigéria e fornece água potável a cerca de 30 milhões de pessoas. Apesar da sua importância, um relatório publicado pela ONU, em 2007, mostra que o tamanho deste lago foi reduzido em 95%, devido à má administração dos recursos hídricos ou às conseqüências das mudanças climáticas provocadas pela poluição, que tem vindo a tornar o clima mais seco. Para além disso, outros Estados, como a Arábia Saudita, que dependem quase inteiramente de plantas de dessalinização para obter água doce, também irão enfrentar desafios. De acordo com o Jornal Internacional de Desenvolvimento de Recursos Hídricos, cerca de 50% da água potável na Arábia Saudita provém da dessalinização, e 40% da mineração de água subterrânea não renovável. Em breve, o país terá de construir uma nova infraestrutura de energia para abastecer as estações de tratamento de água, que são insuficientes e insustentáveis. O governo saudita pondera usar energia nuclear para alimentar estas fábricas. A administração Trump parece estar mais do que disposta a ajudar os sauditas a construir o programa nuclear, apesar do impacto desestabilizador que este poderá ter na região, especialmente considerando a competição entre a Arábia Saudita e o seu principal rival geopolítico, o Irão. As alterações climáticas vão também provocar outras consequências menos óbvias, mas que, mesmo assim, vão levar os Estados a adotar medidas cada vez mais contenciosas. Por exemplo, o degelo massivo no Ártico, devido ao seu potencial económico, vai fomentar a competição entre os países que fazem fronteira com

esta região do globo. A Rússia, o Canadá, a Dinamarca, a China e os Estados Unidos da América vão tomar todas as medidas necessárias para preservar, ou até mesmo expandir a sua influência na região. Isto porque, o desaparecimento da calota polar significa o surgimento de reservas de petróleo, até agora inexploradas, ou mesmo a abertura de novas rotas comerciais. A Rússia tem sido especialmente pró-ativa nos esforços para manter a sua predominância na região, tendo já construído várias bases militares topo de gama, bem como quebra-gelos modernos, alimentados com energia nuclear, para patrulhar as águas que reclama. Até agora, os conflitos no Alto Ártico permaneceram relativamente equilibrados, visto que a maioria dos Estados sempre optou por defender as suas reivindicações através dos canais diplomáticos existentes para o efeito, como por exemplo, a ONU. Contudo, à medida que a região se torna mais militarizada, o cenário pode agravar-se. À medida que as alterações climáticas moldam o cenário internacional atual, torna-se importante estar atento às tensões que podem surgir neste mundo em mudança. A comunidade internacional vai ter sem dúvida dificuldade em resolver os problemas venturos, nomeadamente a gestão de recursos escassos, a segurança humana e a competição por novas oportunidades económicas. Resta saber se as instituições diplomáticas vão conseguir resistir à tempestade que está para vir.

K ay l e Va n ' t K lo o s t e r , Licenciado em Relações Internacionais pela Universidade de Calgary (Canadá) Traduzido do inglês por Mariana Riquito

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EVOLUÇÃO DO MOVIMENTO AMBIENTALISTA EM PORTUGAL

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O movimento ambientalista, inserido nas lutas sociais que emergiram a partir de 1960, tem se vindo a construir desde o início da Revolução Industrial e dos impactos que esta revelou ter na acelerada degradação do ambiente. Apesar destas preocupações, que se manifestavam em protestos sociais localizados e de pequena dimensão, o movimento tardou a institucionalizar-se no meio académico internacional até ao início dos anos 70. Desde então, o ideal do “ecologismo” inspirou novos comportamentos sociais, ações coletivas e políticas públicas do campo doméstico ao global. A globalização e os novos meios de comunicação foram fundamentais para a disseminação deste ideal. Em Portugal, só com a deposição do regime salazarista em abril de 1974, a consequente democratização e ganhos de direitos políticos e sociais, é que se começou a dar espaço à emergência de um movimento ambientalista organizado. Antes deste período, existiram algumas formas de resistência à degradação do ambiente, ainda que pontuais e pouco organizadas. Ainda assim, a primeira associação ambientalista portuguesa foi fundada em 1948 - a Liga para a Proteção da Natureza - sob a orientação de um pequeno grupo de professores da Faculdade de Ciências de Lisboa. Esta pretendia impedir a destruição da mata do Solitário, na Arrábida. Apesar do seu impacto positivo na criação de áreas protegidas, esta associação estava à margem da sociedade civil uma vez que a sua organização apenas contava com o apoio das elites intelectuais do país, não promovendo uma ação social coletiva que abrangesse as camadas populares. Apesar da abertura na agenda política proveniente da deposição do regime ditatorial, o processo de democratização sobrepôs-se a outras preocupações. Ao mesmo tempo, a fragilidade dos movimentos sociais que se verificava devia-se ao reduzido peso das novas classes médias e ao facto de as populações rurais apenas se mobilizarem quando os seus interesses materiais e imediatos estavam ameaçados. Além disto, segundo Eugénia Rodrigues, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em 1995, verificase uma “presença excessiva de politização e uma incapacidade das estruturas associativas coordenarem esforços organizativos e conjugarem o necessário pragmatismo com objetivos de mobilização política”

por parte das organizações de movimentos sociais no período pós-Salazarista. Isto levou a que, em detrimento da mobilização popular, se passasse a uma tentativa de influenciar por dentro o aparelho do Estado. A 15 de Março de 1976 surge o primeiro confronto no campo político da democracia portuguesa contra o projeto de instalação de uma central nuclear no concelho de Peniche apresentado pelo Governo Provisório. Este confronto dá origem a um dos maiores protestos sociais de cariz ambiental até à data, em Ferrel, que se repetiram por cerca de uma década. Apesar do fervoroso ambiente associativista que se fazia sentir a heterogeneidade das posições das organizações ecologistas presentes, nomeadamente o Movimento Ecológico Português revelou-se um fator impeditivo para uma ação coesa. Em 1979 surge a “Associação Portuguesa de Ecologistas/ Amigos da Terra”, que se revelaria uma força dinâmica do movimento, levada a cabo por camadas mais jovens da sociedade. A nível partidário, surge, em 1982, o Partido Ecológico «Os Verdes», associado ao Partido Comunista Português. Este contribuiu para a projeção das questões ambientais sobretudo a partir de 1983, por influência da constituição do grupo parlamentar por parte do partido alemão “Die Grünen”. Em termos de impacto público, as iniciativas organizadas centravamse em manifestações, protestos, marchas, feiras e festivais, contra o “desarmamento nuclear”. Em 1984, na Foz do Arelho, e 1985, em Tróia, aquando do Encontro Nacional de Ecologistas, eram já cerca de 20 organizações não-governamentais, entre outras personalidades, que demonstravam uma vontade política de aumentar a eficácia da intervenção ambiental. Porém, fruto da pluralidade ideológica dos movimentos que participavam nestes encontros, não

“Esta será a luta social mais importante do último século juntando várias camadas sociais numa batalha conjunta contra sistemas de opressão e de exploração.”


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evolução do movimento ambientalista em Portugal

“(...) os protestos contra a construção da barragem de Foz Côa vieram abrir um espaço mediático para as causas ambientais e evidenciaram o impacto que a mobilização popular pode assumir.” se verificaram resultados práticos, assistindo-se apenas a um importante debate teórico das várias posições políticas apresentadas e a uma internacionalização da temática pela participação de organizações políticas de Espanha, Itália e Alemanha. A partir da segunda metade da década de 80, organizações como a Quercus, a Liga para a Proteção da Natureza e o Geota, começaram a delinear atitudes e programas de intervenção em moldes mais pragmáticos. A entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, em 1986, foi um marco histórico das políticas ambientais nacionais, pois promoveu a criação de legislação e tornou mais visível a política ambiental. Ainda assim, segundo Viriato Soromenho-Marques, figura de peso na temática ambiental em Portugal, dois fatores estavam na origem da dificuldade do Movimento Ambientalista português em ganhar relevância: “a refundação da democracia e o combate à pobreza, e pelo facto do movimento ser ainda muito fragmentado e individual”. No entanto, a partir de 1995, os protestos contra a construção da barragem de Foz Côa veio abrir um espaço mediático para as causas ambientais e evidenciou o impacto que a mobilização popular pode assumir. O novo milénio veio confirmar esta tendência: os canais televisivos e os jornais nacionais mais populares, começaram a dar ênfase a questões como o elevado número de lixeiras a céu aberto, construção de barragens, esgotos em lençóis de água, etc., fomentando a contestação social. Para além disto, a partir da viragem do século assiste-se a uma mudança discursiva no movimento ambiental, deixando de se focar tanto na transformação radical do sistema institucional, e passando a ter como principal foco políticas públicas de carácter ambiental. Parece, então, que o que se assiste é um amenizar das reivindicações mais amplas deste movimento social e a sua adaptação e flexibilização para causas mais específicas. Pretendem, neste sentido, impedir ou fomentar práticas particulares como o fazem, por exemplo, os recentes movimentos “anti-fracking”, movimentos de restrição ao uso de plástico, movimentos anti-exploração de lítio, de limpezas de praias, entre outros. Atualmente, assistimos a algumas mudanças do paradigma desde o campo político, às práticas da

sociedade civil. Muitas das mesmas surgiram devido à crescente preocupação da população, em especial as camadas mais jovens, com os impactos negativos das práticas insustentáveis das grandes empresas e com os seus próprios comportamentos. A criação de partidos com carácter ecológico - como o Bloco de Esquerda (1999), o partido Pessoas-Animais-Natureza e o LIVRE (2014) - e a maior preocupação internacional com a temática da sustentabilidade fomentaram também estas mudanças. Além do papel relevante destes atores, também os movimentos sociais de cariz ecologista são exemplo desta mobilização coletiva e crescente preocupação social. Alcançando rapidamente uma grande visibilidade internacional graças ao papel fulcral dos media e das redes sociais, as mais recentes manifestações estudantis contra as alterações climáticas revelam também o poder destes meios na grande visibilidade destes movimentos sociais. Nestes protestos é possível observar um dinâmico envolvimento de uma multitude de atores, que constroem entre si uma vasta rede de apoio que permite a mobilização social e de recursos para causas comuns. A evolução do movimento ambientalista em Portugal fica marcada pelo papel importante de personalidades nacionais na luta pela conservação do património natural. Graças à preocupação destas pessoas foram organizados muitos protestos sociais como forma de resistência à degradação ambiental. Hoje, estes protestos servem de alerta à população em geral e às esferas económicas e políticas, sobre a necessidade de mudanças estruturais e de comportamentos individuais, sendo levados a cabo principalmente pelas camadas mais jovens por todo o mundo. Apesar dos alertas e das consequências visíveis das alterações climáticas parece haver ainda alguma resistência por parte de indivíduos, agentes económicos e políticos à implementação destas mudanças tão necessárias. Esta será a luta social mais importante do último século juntando várias camadas sociais numa batalha conjunta contra sistemas de opressão e de exploração.

eduardo vidinha, Licenciado em Relações Internacionais na FEUC

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a luta pelo planeta... de Coimbra ao mundo

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“Capitalismo não é verde”, “Se o clima fosse um banco já teria sido salvo”, “O Nosso Futuro está a Arder” foram alguns dos dizeres presentes na segunda greve climática estudantil de Coimbra, a 24 de maio, depois de uma primeira greve em março que, a nível nacional, juntou cerca de 20.000 estudantes. A maioria dos presentes eram estudantes do ensino básico e secundário, à semelhança do que acontece a nível do movimento internacional, alavancado pela jovem Greta Thunberg. Numa altura em que se aproxima a nova greve climática em Portugal, a 27 de setembro, desta feita também com o envolvimento de sindicatos laborais e autarquias, o Jornal Mundus foi falar com alguns ativistas pelo clima. Carolina Silva, organizadora da greve em Coimbra, salientou-nos algumas das reivindicações do movimento, desde o “melhoramento eficaz da rede de transportes” e a promoção de “circuitos curtos de consumo, de forma a incentivar a agricultura local e diminuir a emissão de gases com efeitos de estufa” com vista a alcançar a “neutralidade carbónica até 2030”. Em específico para o país, os e as jovens pedem a “proibição da exploração de combustíveis fósseis e o cancelamento de todas as concessões existentes, incluindo os contratos em Batalha e em Pombal, e o projeto do gasoduto de Guarda a Bragança”, bem como “o encerramento das centrais termoelétricas de Sines e do Pego, ainda movidas a carvão, com a devida requalificação dos trabalhadores para empregos para o clima”. A estudante da Universidade de Coimbra destacou também o modelo organizativo associado: “O movimento é horizontal, descentralizado, pacífico, não violento e apartidário. As decisões são feitas em conjunto com todos os elementos de todas as localidades envolvidas, cá em Portugal, e de todos os países”. Esta horizontalidade civil parece estar em voga na luta climática como destaca Rubi Girão, há vários anos radicada em Londres, ao falar do sistema de assembleia dos Extinction Rebellion (ER). O grupo aposta maioritariamente na ação direta, tendo sido exemplo a interrupção do discurso do Primeiro Ministro António Costa nas comemorações de aniversário do seu partido, num protesto contra o novo aeroporto no Montijo, do qual os peritos prevêem fortes impactos ambientais. A ação aconteceu em Abril, meses depois da criação dos

ER em Londres, provando como movimentos pelo clima estão a rapidamente solidificar-se internacionalmente. A emigrante detalhou-nos o seu envolvimento com os ER: “Estive presente na Rebelião Internacional em Abril, que durou duas semanas. Participei em várias atividades de desobediência civil e fiquei muito surpreendida pela organização de todo o movimento”. Nesse ato, cinco pontos essenciais de acesso automóvel ao centro foram tomados ocupados, causando grande disrupção no normal funcionamento de Londres. Rubi Girão comentou o ambiente social sentido ao longo dessas semanas: “As pessoas eram convidadas a vir para a Rebelião Internacional com a sua família, plantas, animais, música ou qualquer boa disposição. Em todos o acampamento, havia tendas onde uma pessoa podia obter toda a informação sobre o movimento e juntar-se ao mesmo, participar em Assembleias ou servirse de comida comunitária. Havia uma atmosfera muito positiva com atividades sustentáveis a substituírem o habitual tráfego automóvel”. À medida que proliferam estes e outros movimentos pró-clima, é de notar que não há consenso geral na forma de luta a seguir. Vasco Côrte-Real, da Assembleia Estudantil de Solidariedade de Coimbra (ASEC), projeto embrionário que deu os primeiros passos no ano letivo passado, destaca que “Temos tido a perceção de que grande parte dos movimentos estudantis ambientais foca-se na culpabilização individual e na mudança de hábitos pessoais, sendo esta, a nosso ver, uma estratégia ineficaz - apenas direcionada aos sintomas de um sistema que ignora a sustentabilidade em prol do lucro. Tentamos, portanto, ter uma abordagem mais ampla, com vista a consciencializar a população para a necessidade de combater os causadores da poluição em grande escala, como as grandes indústrias e as corporações, e a estrutura económica que as suporta.” Das eventuais diferenças na ação pró-clima, há contudo uma certeza: é preciso agir pelo clima, e já! E os jovens estão na linha da frente desta ação. Cabe ao resto da sociedade seguir-lhes o exemplo.

Cl áudio Valério Estudante de Relações Internacionais na FEUC


a luta pelo planeta... de Coimbra ao mundo

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Fotografias de

ANA SOARES da greve climรกtica em Coimbra

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DE ONDE VEM A SUA COMIDA? O consumo de produtos provenientes da agricultura familiar gera impacto positivo social, ambiental e economicamente, mas a aproximação da produção local ainda precisa de investimentos.

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As escolhas que fazemos, por menores que sejam, têm impactos para além da nossa vida particular. Quando fala-se em alimentação, é necessário ainda mais atenção: come-se, idealmente, pelo menos três vezes por dia. Este tipo de consumo é de curto prazo, ou seja, em poucas horas ou dias, uma nova compra terá de ser feita, considerando o sistema vigente. Já que é necessário realizar essa troca comercial, é importante pensar: para quem e para onde vai este dinheiro? Em que será investido? De onde vem o alimento? Por quem ele é produzido? Em Portugal, predomina largamente a agricultura familiar. Segundo o Presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Alfredo Campos, no total, há 350 mil explorações agrícolas no país. A grande maioria delas é caracterizada como familiar, cerca de 300 mil. O que define a prática, usualmente de pequena e média escala, é que pelo menos metade da mão de obra seja realizada por pessoas da família. No entanto, a agricultura familiar “se confronta e é esmagada pelo grande agronegócio internacional”, afirma o Presidente da entidade. Nas grandes superfícies, onde boa parte das pessoas garante os seus mantimentos, vê-se que os produtos vêm justamente destas enormes companhias, que dominam o mercado globalmente. É por este motivo que se entende que há uma necessidade de “discriminação positiva” da agricultura familiar. A importância deste tipo de cultivo é patente em diversas áreas. É o que Alfredo Campos define como multifuncionalidade da prática: “É a agricultura familiar que ocupa o território, é a sua existência que permite combater a desertificação humana, que preserva a biodiversidade e os recursos naturais, que perpetua a cultura e as tradições culturais populares e, por essas funções, que não são de produção, é que consideramos que deve ser compensada, valorizando a sua atividade”. No sentido da conservação do meio ambiente, Campos reforça

“O movimento Slow Food, cujo nome procura opor-se ao conhecido e preocupante Fast Food, «acredita num mundo onde todos possam ter acesso e consumir a alimentos bons para quem come, bons para quem produz e bons para o planeta (...)»” que “é uma relação entre o agricultor e a natureza da sua região. O agricultor é o principal interessado em preservar o seu meio ambiente, os seus modos de trabalho, as suas sementes”, afinal, ele depende da saúde daquele bioma para poder trabalhar. O movimento Slow Food, cujo nome procura oporse ao conhecido e preocupante Fast Food, “acredita num mundo onde todos possam ter acesso e consumir a alimentos bons para quem come, bons para quem produz e bons para o planeta”, segundo definição própria. O lema do grupo, que é contra “o poder ilimitado das multinacionais da indústria alimentícia e da agricultura industrial”, é de que o alimento deve ser “bom, limpo e justo”: produtos frescos e sazonais, com poucos aditivos, produzidos em pequena escala e próximo dos consumidores. Os preços devem ser justos para estes últimos, mas especialmente devem oferecer remuneração adequada a quem os produz. Atualmente, conforme o Presidente da CNA, baseado em dados do Gabinete de Planeamento e Políticas do Ministério da Agricultura, “o agricultor, em média, apenas recebe 20% do que o consumidor paga. Desses 20%, 75% são custos de produção. Isso quer dizer que, de cada 100 euros que o consumidor paga, o agricultor, para viver com a sua família, apenas recebe cinco euros”. É necessário aproximar os envolvidos neste processo – quem produz e quem, depois, compra. O comércio direto de produtos que tenham sido cultivados


de onde vem a sua comida?

setembro 2019

Fotografia de

bibiana Garcez

localmente é essencial nesse sentido. “Se eliminarmos os parasitas intermediários, o produtor pode vender melhor e o consumidor pode comprar mais barato um produto fresco da sua região.uitas vezes em cidades e em vilas mais pequenas, o consumidor até conhece pessoalmente o produtor, sabe como é que ele trabalha, confia no que estão a vender”, explica Campos. O Estatuto da Agricultura Familiar, criado em agosto de 2018, define que o acesso “aos mercados e aos consumidores, concretizado através do apoio à criação e reativação de mercados de proximidade e de circuitos curtos de comercialização” é um direito garantido pelo título de reconhecimento do estatuto. A CNA, apesar de tecer fortes críticas ao documento, por entender que o Estado não efetiva as políticas necessárias, defende que o investimento nos mercados é essencial. Segundo o presidente da Confederação, Alfredo Campos, trata-se de uma “obrigação” dos governos. Isto permitiria uma “relação mais direta entre o produtor e o consumidor, de modo a evitar que as mais-valias caiam nas mãos dos negociantes, dos comércios, dos intermediários”, afirma. No Mercado Municipal Dom Pedro V, localizado na Baixa de Coimbra, na região centro de Portugal, há espaços para venda de produção local. No entanto, não se vê muitos agricultores. Na verdade, não se vê muita gente de uma forma geral: já há alguns anos que o mercado enfrenta uma grande crise. Dos 430 locais de venda, poucos são ocupados. De acordo com a Câmara

Municipal de Coimbra (CMC), gestora do espaço, são cerca de 100 pessoas que trabalham no local atualmente, número que pode flutuar conforme a época do ano. Os comerciantes que lá estão, em sua maioria, trabalham como intermediários entre o mercado abastecedor, que fica em Taveiro, e os consumidores. Alguns vendem poucos produtos de cultivo próprio, em pequena escala. A situação para estes que seguem lá é bastante grave: no caso de Paulo Dinis, proprietário de um talho e presidente da Associação do Comércio dos Mercados de Coimbra, os rendimentos caíram em média 70% no últimos anos. A CMC promete uma reabilitação do espaço - o projeto, que prevê a instalação de postos de restauração, é discutido há pelo menos três anos, mas aguarda aprovação para a garantia de recursos do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional. Se esta alternativa funcionará como uma forma de aproximar a produção familiar dos consumidores, não é possível saber, pelo menos até a realização das obras. Mas os consumidores, por si só, podem procurar formas de reduzir o seu impacto. 45% dos portugueses entendem que apoiar o consumo local é um dever, de acordo com pesquisa do Observador Cetelem. O dinheiro é um forte instrumento político. Você sabe para quem está indo o seu?

BIBIANA GARCEZ, Mestranda em Jornalismo na FLUC

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A vida em sociedade sob uma nova perspectiva 30 dias em tamera

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Chega-se perto do momento em que as alterações climáticas, fortemente relacionadas com as explorações perpetuadas pelo sistema capitalista, não serão reversíveis. Por isso, pequenos grupos unem-se para viver fora do modelo social vigente e propor uma nova forma de sociedade, em comunidades autossustentáveis. Localizada no Alentejo, Tamera é uma das que existem em Portugal. A brasileira Letícia Iszczuk, de 22 anos, esteve imersa na realidade do local durante um mês a estudar permacultura e conta a sua experiência.

“Em relação ao meio ambiente, Tamera fez um projeto de reflorestamento dos quase 150 hectares de propriedade, que em 1995 estavam em processo de desertificação.”

Encontrava-me perdida e profundamente frustrada com a cultura individualista e competitiva exaltada pelo sistema vigente, via-me como impotente diante do sistema e estava sem perspectiva de futuro. Até que uma amiga da Austrália me contou sobre Tamera, uma comunidade alternativa fundada por alemães em 1995, localizada em Monte Cerro, no sul de Portugal. Um dos aspectos que mais me encanta sobre o local é o fato de que eles não são uma comunidade composta por pessoas que decidiram se isolar do sistema no meio da natureza. Pelo contrário, é um sistema aberto, que se autodenomina um centro de investigação e de educação para a paz. Com projetos nas mais diversas áreas, o objetivo principal é a criação de uma nova cultura, em que os próprios membros são o objeto de estudo e anseiam ser um modelo para a criação de outras comunidades ao redor do mundo, como já é o caso da Nature Community, fundada em 2016 no sul da Alemanha. Durante o mês que passei em Tamera, conheci inúmeras pessoas que querem criar algo parecido em seus respectivos países e foram até lá para aprender como funciona essa nova cultura na prática. De forma simples e resumida, é a mudança de um sistema de exploração para um sistema de cooperação. Dessa maneira, a essência para essa mudança é, no meu entendimento, o que eles chamam de “Biótopos de

cura”. Biótopo nada mais é do que o habitat onde todas as formas de vida coexistem na sua diversidade. A cura, nesse caso, passa por restaurar a integridade da vida e superar a desunião, causada pela própria sociedade nos últimos séculos, quando o ser humano deixou de se considerar parte do meio e passou a se considerar dono e explorador dele. Assim, aqueles que participam deste projeto acreditam – e eu também - que a nossa relação com a natureza e entre nós mesmos está doente, e, por isso, a cura é necessária em todos os setores da vida. Em relação ao meio ambiente, Tamera fez um projeto de reflorestamento dos quase 150 hectares de propriedade, que em 1995 estavam em processo de desertificação. Além disso, desenvolveram um sistema de retenção de água, que não só trouxe autossuficiência para toda a comunidade, durante todo o ano, como teve influência na vegetação e oferecimento hídrico para a comunidade local. O processo de agricultura é orgânico, baseado nos princípios da permacultura. Não há exploração de nenhum animal, já que a alimentação é completamente vegana. Eles também possuem banheiros de compostagem, que juntamente com os resíduos alimentares transformam-se em adubo. E, apesar de possuírem capacidade de autossuficiência em relação a produção de comida, eles não produzem 100% do que é consumido, uma vez que o intuito deles é influenciar


30 dias em tamera

setembro 2019

“Ter tido o privilégio de viver essa nova cultura me trouxe esperanças.” o sistema, e não se isolar dele. Dessa maneira, devido à demanda da comunidade, os produtores locais começaram a produzir alimentos orgânicos. Os membros de Tamera defendem ter uma boa relação com os vizinhos, uma vez que a criação de regiões autônomas descentralizadas, as quais fazem trocas entre si, é um dos elementos fundamentais de cura para um futuro regenerado e não-violento. A vida em comunidade é baseada em transparência, confiança, respeito e empatia pelo próximo. O amor e a sexualidade são livres de tabus e preconceitos, e acredito que toda essa dinâmica funciona por causa de uma frase que ouvi nos meus primeiros dias lá: “o que é humano não me é estranho”. Se eu sou humana, o que vem de outro ser humano não me deve ser estranho, portanto, os julgamentos, os preconceitos e as recriminações não existem e as pessoas podem ser livres para serem quem são. Ter tido o privilégio de viver essa nova cultura me trouxe esperanças. As relações lá são realmente diferentes. Poder confiar nas pessoas ao seu redor e viver em um ambiente de cooperação com o próximo e com a natureza é algo que eu desejo para todos. É uma sensação única, impossível de ter em um sistema competitivo, hostil e violento como o nosso, no qual o simples fato de confiar no outro é visto como um fator de vulnerabilidade. Porém, Tamera é a prova de que outros modelos existem - e a criação de uma nova realidade é possível e necessária.

Letícia Iszczuk

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