Jornal Mundus Nº8

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número 8 - fevereiro 2019

Portugal: um país racista? Uma análise de Matías Toplas acerca do tratamento dado às populações racializadas e imigrantes.

preço livre - 350 exemplares

Europa: um olhar sobre o projeto comunitário nas vésperas das eleições europeias e uma revisita à crise da Crimeia.

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Que futuro queremos? Reflexões sobre experiências sociais e tecnologia, e como elas moldam o mundo de amanhã.


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índice 3

esta europa que nos deprime

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crimeia: segurança e conflitualidade no espaço europeu

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futuro imperfeito

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rendimento mínimo, um novo ciclo de experiências

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médico legislativo

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xenofobia e racismo em portugal


esta europa que nos deprime

fevereiro 2019

Esta Europa que nos deprime Como fazer valer o debate político e a democracia quando as regras do jogo são disformes?

Algumas das circunstâncias que rodeiam as próximas eleições europeias têm sido repetidamente assinaladas: a emergência do que se convencionou chamar “populismo”, expressões de hostilização do acolhimento humanitário dos refugiados, a ausência de uma cultura mobilizadora e inclusiva, a fragmentação e o sentimento de perda e de regressão... Mais do que sobre as questões económicas, que só por simplificação se podem separar das restantes, interrogo-me neste texto sobre as formas de economia política que a Europa foi estabelecendo e que ajudam a compreender o quadro europeu e, porventura, as perplexidades, os dilemas e as tensões que observamos e que as eleições vão refletir. Voltemos, por um instante, aos fundamentos do projeto europeu do pós-guerra. Há muitas maneiras de interpretar acontecimentos e decisões tão cruciais, isso é claro. Uma delas é reconhecer que foi essencialmente um projeto de paz. O fumo das cinzas da guerra ainda pairava no ar e o continente carecia de ideias e processos que estabelecessem um horizonte de esperança e de bem-estar e capacitassem as pessoas. A fórmula foi a da integração. Primeiro, entre próximos, os seis do clube inicial, a que porventura podemos chamar um clube de ricos. Depois, entre diferentes, assumindo a heterogeneidade e reconhecendo as clivagens de rendimento e de capacidades. Daí a

“O resultado é uma lógica de governação cada vez mais uniforme, distante dos problemas e dos sujeitos, redutora da vida política e da democracia, visto que a estas cabe cada vez menos espaço.”

chegada às periferias geográficas, económicas, sociais e até políticas, visto que muitos países, em diferentes momentos, estavam a sair de regimes não democráticos. Sendo fácil discutir estes passos iniciais, é mais difícil tratar da natureza que o projeto europeu foi assumindo e do que passou a dominar a sua evolução. Pois, de facto, muita coisa ganhou intensidade e isso começou a diferenciar internamente o que se pretendia convergente. Tal como fiz para compreender os fundamentos iniciais, também podemos agora recorrer a um exercício de interpretação das consequências das diversas acelerações da integração, olhando para os dia de hoje. Pretendo sublinhar um aspeto: o que temos é, no meu entender, fruto da fixação europeia numa rapidíssima aceleração institucional que sobrepôs à vida material uma superestrutura burocrática poderosa e disforme. Mais ainda, na génese dos dilemas atuais está a passagem de uma ideia de Europa assente na transformação dos modos de criação de riqueza e de bem-estar, de qualificação das pessoas e de desenvolvimento dos territórios europeus para uma outra ideia em que tudo isto se considera uma consequência de disposições regulatórias que, normativamente, devem estabelecer um determinado modelo de economia e de sociedade. A arquitetura institucional da União Económica e Monetária (UEM) é o ponto cimeiro desta visão que, naturalmente, foi influenciando todas as outras formas de estruturação da ação pública, tanto comunitária como nacionais. Ela consiste numa visão normativa, autoritária e condicionadora, em vez de construtora, da vida coletiva. O conceito básico em que assenta é o de condicionalidades ex-ante. A ação comunitária estabelece princípios e critérios gerais politicamente determinados sem que para isso tenha havido uma deliberação democrática e participada. Depois, considera as sociedades como o objeto a quem cabe satisfizer a norma ou o padrão previamente estabelecidos. Foi assim com a participação na UEM dos que asseguraram a satisfação dos critérios (nominais) de convergência em

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que ela assenta. É assim em múltiplos outros aspetos da ação comunitária. O resultado é uma lógica de governação cada vez mais uniforme, distante dos problemas e dos sujeitos, redutora da vida política e da democracia, visto que a estas cabe cada vez menos espaço. Os processos de decisão são exercidos longe do debate e do povo e travestidos de poder burocrático. O carácter disforme da arquitetura institucional e política da Europa vê-se na nova intensidade da condição periférica dos seus espaços do sul, na calibragem muito mais poderosa dos centros, na reemergência das assimetrias e em novas fraturas. São, evidentemente, as antigas diferenças entre sistemas produtivos e capacidades para criar riqueza, entre níveis de bemestar e de acesso à provisão essencial. Mas são também as novas relações instituídas pelos capitais financeiros, pela forma como circulam e como, através do crédito, reforçam o poder de alguns países, tornados credores e mais dominantes através de endividamento e da dependência de outros. Este fenómeno é novo. Voltemos às eleições europeias e ao que as rodeia. Vamos ver nelas um debate sobre a reconfiguração de uma Europa que reconstrua o seu lugar no mundo, não pelo domínio mas pela sua autoestruturação, depois de se ter tornado um aluno apressado de tendências mundiais assentes na liberalização e na financeirização? Vamos discutir nesse debate propostas para reassumir a condição europeia através da inclusão dos seus povos e de uma vida material capaz? Vamos saber, nesses modos de a Europa se assumir, qual é o lugar para os diferentes planos de que a democracia precisa, o comunitário, o nacional e o regional e local? A política e a democracia, quando são saudáveis e robustas, dependem muito de serem manifestação de uma comunidade transparente, obviamente com tensões internas e expressões do contraditório, mas também capaz de revelar coerência e finalidades. As eleições europeias vão decorrer como é hábito e mostrarão o que de novo vai atravessando a Europa. Duvido, pelas razões que apontei, que sejam um momento para robustecer a democracia, lançar um projeto europeu renovado e fazer os países reencontrarem-se consigo mesmos e com o que os une.

esta europa que nos deprime

José Reis, Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC). Investigador do Centro de Estudos Sociais (CES/UC). Autor do livro A Economia Portuguesa: Formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017). Coimbra: Almedina, 2018


crimeia: segurança e conflitualidade no espaço europeu

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Crimeia: segurança e conflitualidade no espaço europeu A Ucrânia ocupa um lugar central no xadrez geoestratégico europeu, constituindo o último reduto entre a União Europeia (UE) e a Rússia. Por força desta condição, mas também por outras dinâmicas domésticas, a agenda de política externa ucraniana tem oscilado entre o vetor europeu e o vetor russo, consoante os seus interesses e perceções nos diferentes momentos. Esta postura de equilíbrio nos alinhamentos estratégicos tem sido alimentada pela própria UE e pela Rússia, que reconhecem a primordialidade da proximidade da Ucrânia para o sucesso dos seus respetivos projetos regionais. Estas dinâmicas tornaram-se mais visíveis a partir de meados dos anos 2000, no decurso do alargamento europeu a leste e da materialização de uma agenda de política externa russa mais assertiva e pragmática. As tensões inerentes a esta disputa foram sendo geridas de forma relativamente pacífica entre os atores envolvidos, não obstante picos de crise política (dos quais as chamadas guerras do gás no espaço póssoviético e o discurso de Vladimir Putin na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, são os exemplos mais visíveis). O momento de viragem dá-se em 2013, face à controversa decisão do então Presidente ucraniano, Viktor Yanukovitch, de não assinar o Acordo de Associação (AA) com a UE. Em alternativa, Yanukovitch preferiu aceitar um (generoso) pacote de ajuda financeira negociado com Moscovo, que lhe permitia gerir no curto prazo a débil situação económica em que a Ucrânia se encontrava. Na prática, isto implicava um reforço do vetor russo na política externa ucraniana e o conseguinte afastamento da órbita de influência europeia. Esta tomada de posição foi recebida com enorme descontentamento por parte da sociedade civil ucraniana, que rapidamente se mobilizou no movimento que ficou conhecido por Euromaidan. O elemento agregador deste movimento foi a reivindicação de um processo de reforma política institucional interno que

foi identificado com uma maior aproximação à UE e aos princípios que lhe estão associados. Este movimento despoletou uma resposta violenta das forças policiais associadas ao governo de Yanukovitch, dando início a uma crise política que se estenderia até fevereiro de 2014, quando o país assumiu de forma mais clara o seu compromisso com o processo de integração europeia. Estes eventos foram recebidos com enorme desconfiança em Moscovo, que os interpretou como parte de um esquema ocidental para atrair a Ucrânia para a sua esfera de influência, o que colide com interesses russos na região. Por esse mesmo motivo, a Rússia envolveu-se nesta crise, nomeadamente através de apoio político e militar aos movimentos separatistas no Leste e no Sul do país. Neste contexto, a anexação da Crimeia a 18 de março de 2014 constituiu o ponto mais significativo e disruptivo da estratégia russa para a região. Esta situação apanhou a sociedade internacional desprevenida, multiplicando-se acusações de violação das normas e do Direito Internacional por parte da Rússia e espalhando-se o medo pela possível reprodução desta estratégia em outros pontos do espaço póssoviético. Esta surpresa é, no entanto, expressão de duas grandes dinâmicas: a não consideração, por parte da comunidade euro-atlântica, dos interesses vitais da Rússia naquela que continua a percecionar como a sua área de interesses privilegiados; e um profundo desconhecimento sobre as manobras políticas de Moscovo na região. Com efeito, a Rússia encara com suspeição a aproximação de outras potências à sua vizinhança. Nos anos 1990, a sua frágil situação interna não lhe permitiu travar o avanço das instituições euroatlânticas para leste, resultando na perda material de uma fatia significativa da sua esfera de influência. Contudo, a Rússia de Putin tem capacidades e interesses diferenciados e bem definidos, onde o espaço póssoviético ocupa uma posição central. Daqui decorre que qualquer tentativa de expansão destas instituições

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crimeia: segurança e conflitualidade no espaço europeu

“Neste sentido, a anexação da Crimeia pode ser vista não como uma agressão, mas como um movimento reativo”

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seria vista como um ataque à própria Rússia. Foi o que sucedeu quando se colocou em cima da mesa a adesão da Ucrânia e da Geórgia à OTAN (com repercussões claras na Guerra entre a Rússia e a Geórgia, em agosto de 2008) e o que sucedeu também com a tentativa da UE reforçar o seu poder no leste europeu através da negociação de AA (aqui com ligações à desestabilização da Ucrânia e à anexação da Crimeia). Neste sentido, a anexação da Crimeia pode ser vista não como uma agressão, mas como um movimento reativo, despoletado pelo percecionado avanço de forças externas no tradicional espaço de interesses de Moscovo. Por outro lado, uma leitura atenta das políticas russas para a região há muito deixava antever a materialização do “cenário Crimeia”. A península tem um peso estratégico considerável para Moscovo, uma vez que é aqui que se encontra estacionada a frota russa no Mar Negro. Esta importância estratégica é parte dos motivos que levaram o Kremlin a patrocinar uma russificação da região a partir dos anos 2000, nomeadamente através da denominada política de passaportização, do controlo dos principais cargos políticos, mas também das estruturas económicas, sociais e de comunicação da região. Este processo visava, sobretudo, criar pressões ao governo de Kiev para que não se aproximasse das estruturas euro-atlânticas. Contudo, na falha desta estratégia, este processo facilitou a realização do referendo que justificou a anexação da Crimeia e a transição de poder a que se assistiu posteriormente. Ainda que a Crimeia não seja reconhecida legalmente (de jure) como parte do território russo, na prática (de facto) é a Rússia que se assume como o soberano da península, não tendo a Ucrânia qualquer poder sobre a mesma. Mas mais do que um sintoma, a Crimeia revelou ser o catalisador de uma série de dinâmicas que colocam em risco a segurança europeia, em sentido lato. Por um lado, exacerbou a desconfiança e o medo dos países dos espaço pós-soviético em relação às ambições regionais da Rússia. Por outro, relembrou a sociedade europeia alargada da fragilidade da paz

“Mas mais do que um sintoma, a Crimeia revelou ser o catalisador de uma série de dinâmicas que colocam em risco a segurança europeia” neste espaço. Com efeito, não só assistimos à eclosão de um conflito armado em solo europeu, como a sua solução não parece estar próxima. Por fim, esta situação teve ressonância no plano mais macro desencadeando uma rota de securitização das políticas externas, quer na Rússia, quer na UE, apenas agravada pela crescente demonização do outro e uma dificuldade cada vez mais acentuada na manutenção de linhas de diálogo. Na prática, as relações entre o Ocidente (entenda-se a UE) e a Rússia atingiram um nível de tensão a que possivelmente não se assistia desde a Guerra Fria. Resta saber se as lideranças políticas vão ser capazes de aprender com a história, parecendo claro que qualquer tentativa para resolver esta situação e afirmar novamente a Europa como um espaço de paz tem que passar necessariamente pelo reconhecimento mútuo, pelo diálogo e pela primazia dos valores coletivos.

Vanda Amaro Di as, Professora Auxiliar na Universidade Portucalense, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) e Investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES/UC).


futuro imperfeito

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Futuro Imperfeito Algumas reflexões sobre o impacto de tecnologias de segurança disruptivas “My point is not that everything is bad, but that everything is dangerous, which is not exactly the same as bad. If everything is dangerous, then we always have something to do. So my position leads not to apathy but to hyper- and pessimistic - activism.” ¹ A China implementa um sistema de controlo social em que os cidadãos são individualmente classificados num esquema de créditos sociais, com pontos e deméritos atribuídos pelos seus comportamentos, monitorizados por um sistema massivo de vigilância que liga as suas actividades online, compras, e comportamento em espaços públicos. Milhões de vídeo câmeras e sensores, com reconhecimento facial, bem como milhares de drones que simulam pássaros, asseguram que todos os comportamentos são vigiados, gravados e avaliados. O “mau comportamento” resulta em restrições de crédito, impossibilidade de comprar bilhetes de avião ou comboio, multas, ou outras penalidades mais graves. Para a minoria muçulmana no Leste do país, a prática da sua religião resulta no internamento em campos de re-educação. Um militante do ISIS é assassinado num ataque por drone na Síria, após ter sido identificado há uma semana na Europa e ter sido seguido via monitorização por satélite, marcado com um spray incolor e inodoro, que permanece na pele e nas roupas, e que pode ser usado para o seguir a milhares de quilómetros de distância por deteção remota. A panóplia de tecnologias securitárias descritas acima - que podemos descrever como tecnologias de segurança disruptivas - pode parecer retirada da literatura ou do cinema de ficção científica, com tons claramente distópicos, mas cada vez mais elas constituem o tecido social, político e económico das sociedades em que vivemos. Este é o futuro que todos os dias construímos. As principais origens dos desenvolvimentos tecnológicos a que temos assistido recentemente nos campos da inteligência artificial (AI) e aprendizagem automática (machine learning), automação, big data, e nanotecnologia (para mencionar apenas alguns),

encontram-se indiscutivelmente no contexto da governança de ameaças securitárias - primariamente a guerra, mas também a actuação das forças policiais e serviços de informações. O período pós-Guerra Fria viu o discurso e a prática da segurança por parte dos governos ser transformado, focando-se cada vez mais em fluxos e ameaças (armas, migrações, terrorismo, etc.) em vez de tradicionais inimigos, e aplicando uma lógica de risco, probabilística, procurando discernir padrões e prever comportamentos através do processamento de conjuntos cada vez mais alargados de informação, por mecanismos heurísticos cada vez mais avançados. A forma como têm evoluído as respostas securitárias dos Estados na Guerra contra o Terror, na Guerra contra as Drogas, ou na luta contra a criminalidade organizada, mostram bem como cada vez mais tentamos governar eventos e ameaças futuras através de tecnologia. Mas estas sinergias não se têm circunscrito ao domínios da segurança militar ou policial dos Estados. A tendência inexorável, pelo menos desde o 11 de Setembro, tem sido para a disseminação destas tecnologias (e das lógicas políticas que lhe estão associadas) para domínios cada vez mais alargados das sociedades contemporâneas, tornando-se fundamentais para o funcionamento do sistema capitalista. Basta-nos, para entender isto, ponderar de forma crítica alguns fenómenos recentes: a transformação dos drones, de uma tecnologia de guerra por excelência para uma miríade de serviços comerciais e aplicações domésticas; a gradual emergência de uma

“A forma como têm evoluído as respostas securitárias dos Estados (…) mostram bem como cada vez mais tentamos governar eventos e ameaças futuras através de tecnologia. ”

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“De permeio, avançamos miopicamente para noções de pré-crime e do pós-humano”

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economia baseada no extrativismo de dados (o que Soshana Zuboff prescientemente identifica como uma nova fase do capitalismo, o capitalismo de vigilância, surveillance capitalism); o impacto das redes sociais e de estratégias de micro-direccionamento (micro-targeting) em processos eleitorais (pensemos no caso Cambridge Analytica e as suas implicações para a eleição de Donald Trump ou para o Brexit, ou as mais recentes eleições presidenciais no Brasil); ou mesmo os debates em torno da automação, seja em termos da ética da guerra (drones, sistemas automatizados de definição dos alvos), seja em termos das transformações do mercado de trabalho que nos esperam. Em si, isto não é novo, e a disseminação de tecnologias securitárias para usos civis é um fenómeno razoavelmente bem estudado - recordemos as origens e a popularização da tecnologia nuclear, radar, sonar, GPS, ou micro-ondas. No entanto, na sociedade de informação em que vivemos, e desde o advento da Internet, o potencial disruptor de algumas destas inovações é extraordinário, e deve forçar-nos a pensar de forma cuidadosa e crítica as transformações sociais, políticas e económicas que presenciamos. Consideremos, por exemplo, o uso generalizado de tecnologias de vigilância (videovigilância, reconhecimento facial, colecta de dados e meta-dados electrónicos, vigilância por satélite, etc.), e como isso criou aquilo que alguns intelectuais têm chamado de “sociedade da vigilância” (David Garland, David Lyons), “sociedade da transparência” (Byung Chul Han), ou “capitalismo de vigilância” (Zuboff ). Consideremos também as questões éticas levantadas pela crescente interacção das neuro-ciências, dos big data, e de novos sistemas algorítmicos de decisão (p. ex. neuro-marketing, micro-direccionamento de mensagens eleitorais, software predicativo em plataformas comerciais e publicitárias), que muitas vezes agregam tantos dados e analisam de forma tão profunda o comportamento humano que chegam a produzir um entendimento mais completo e íntimo de um cidadão / consumidor / paciente do que ele tem de si próprio. Consideremos, por último, as questões éticas, legais e políticas que advêm da utilização generalizada de tecnologias de inteligência artificial para quase tudo, desde diagnóstico médico e modelos preditivos de policiamento, desde marketing à detecção de fraudes nos benefícios sociais. De permeio, avançamos miopicamente para

noções de pré-crime e do pós-humano, subvertemos a assunção de inocência, apagamos cada vez mais a distinção público-privado, circunscrevemos o direito à privacidade, e entrincheiramos algoritmicamente vieses e discriminações (raciais, de classe e de género) nas nossas instituições. À medida que a sociedade e a vida dos indivíduos é cada vez mais transparente e permeável à nova capilaridade do poder e da governação, esta forma de governo via tecnologia de segurança tornase menos questionável, menos escrutinável. Urge, portanto, como tarefa essencial do séc. XXI, pensar de forma crítica como podemos avaliar o impacto social e político destas tecnologias securitárias disruptivas que têm vindo a colonizar de forma paulatina mas irremediável as nossas vidas, pensar o sentido da liberdade, da cidadania e da resistência. Em particular, devemos desenvolver novas formas de pensar criticamente este futuro que estamos a construir, cruzando áreas disciplinares como os estudos críticos de segurança, ramos recentes da ética (bio-ética, ética da vigilância), estudos de tecnologia e ciência (STS), entre outros, e encorajar a emergência do que Bruce Schneier chama de “tecnologistas do interesse público”. 1. A citação provém de Michel Foucault, “On the Genealogy of Ethics: An Overview of Work in Progress.” Afterword, in Hubert L. Dreyfus and Paul Rabinow, Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics, 2nd ed. Chicago: University of Massachusetts Press. (1983).

Daniel Pinéu, Docente e Tutor de Relações Internacionais na Amsterdam University College


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Rendimento Mínimo, um novo ciclo de experiências

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A reemergência das experiências sociais, desde o início dos anos 2000, deve-se em grande parte aos trabalhos do Poverty Action Lab, criado no MIT pelas economistas Esther Duflo e Abhijit Banerjee, autoras do livro Poor economics. A radical rethinking of the way to fight global poverty, publicado em 2012. As investigadoras utilizaram um método de avaliação aleatório controlado, inspirado diretamente nos ensaios clínicos e utilizado em dois ciclos da história dos Estados-Unidos, entre 1920-1930 e 1960-1970. O rendimento mínimo está em parte relacionado com estas experiências. Durante a segunda vaga de ensaios, várias tentativas foram conduzidas de forma a racionalizar os sistemas de segurança social, no quadro dos programas de War on Poverty do Presidente Johnson ou nos debates em torno do Family Assistant Plan do seu sucessor Nixon. Hoje em dia, uma nova vaga de experiências sociais atravessa o mundo, servindo de catalisador para o rendimento mínimo universal. Os dirigentes das empresas de Silicon Valey, por exemplo, têm vindo a desenvolver vários projetos neste sentido. Acusados de agravarem as desigualdades sociais, os empreendedores promovem programas sociais baseados em ajudas monetárias diretas, para prevenir ou evitar a regulação do mercado pelo Estado. Esta estratégia, que se inscreve na tradição neoliberal postulada pelo livro de Milton Friedman, Capitalism and Freedom, defende veemente a liberdade económica. Várias personalidades, como Mark Zuckerberg (Facebook), Elon Musk (Tesla) ou Sam Altman (Y Combinator) defendem a instauração de um rendimento mínimo universal que responda ao risco de desemprego tecnológico, causado pela robotização e pelo desenvolvimento da inteligência artificial. O cofundador do Facebook, Chris Hughes, chegou mesmo a criar um think tank consagrado ao rendimento mínimo, o Projeto de Segurança Económica (ESP). A ONG Give Directly, por exemplo, leva a cabo desde 2016 uma experiência na aldeia queniana de Rarieda, que tem como objetivo promover a ideia de que a ajuda direta aos habitantes é mais eficaz do que a ajuda ao desenvolvimento tradicional. A organização anunciou que o programa vai ser estendido a 295 aldeias que

“Acusados de agravarem as desigualdades sociais, os empreendedores promovem programas sociais baseados em ajudas monetárias diretas, para prevenir ou evitar a regulação do mercado pelo Estado.” acolhem aproximadamente 15 000 famílias. 100 aldeias vão constituir o grupo de controlo; os habitantes de 40 aldeias vão receber subsídios suficientes para fazer face às necessidades básicas (cerca de 0,75$ por dia por adulto) durante 12 anos; os residentes de 80 aldeias vão receber o mesmo mas apenas durante 2 anos; e os das últimas 70 aldeias vão obter uma alocação única de 500$ por adulto. A avaliação do impacto da iniciativa vai ter em conta os efeitos económicos (rendimento, nível de vida…), a gestão do tempo (trabalho, educação, participação comunitária…), a tomada de riscos (migração, criação de empresas…), a emancipação das mulheres, as aspirações e os projetos de vida. Silicon Valley tem vindo também a fomentar experiências em torno do rendimento mínimo universal nos Estados Unidos. O acelerador de startups californiano, Y Combinator, que impulsionou a Airbnb, a Dropbox ou a Pinterest, lançou um projeto piloto interativo, que irá decorrer em três fases na região de Oakland. A primeira fase consistiu em testar a atribuição de um rendimento mínimo de 1 500$/mês durante um ano a dez pessoas tiradas à sorte. Isto permitiu verificar que é possível recolher dados privados das pessoas sujeitas à experiência e que o pagamento da ajuda direta influenciava ligeiramente o seu percurso. A segunda fase alargou a experiência a 80 pessoas, mas o montante do rendimento diminuiu. A terceira pretende alargar o ensaio a dois Estados e a 3 000 participantes, com idades compreendidas entre os 21 e os 40 anos, e cujos rendimentos familiares sejam inferiores ao rendimento


rendimento mínimo, um novo ciclo de experiências

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“Quaisquer que sejam os desfechos, este novo ciclo testemunha o desenvolvimento de uma sociedade de experiências que procura esclarecer o debate democrático através de uma abordagem científica. ” médio estadunidense. A última fase do projeto vai analisar o impacto de um rendimento mínimo de 1 000$/ mês, durante três anos, na gestão do tempo, na saúde física e psicológica, no bem-estar, na situação financeira, na tomada de decisões, nos comportamentos políticos e sociais, nos níveis de crime e nas crianças. Contudo, a Silicon Valley não detém o monopólio das experiências sociais. Nos países do Sul, várias ONGs alemãs evangélicas testaram o rendimento mínimo universal, entre 2008 e 2012, nos 1 200 habitantes da aldeia Otjivero, na Namíbia. Por sua vez, a UNICEF financiou durante um ano e meio, a partir de 2012, vários projetos neste sentido, levados a cabo pelo sindicato da Associação de Trabalhadoras Autónomas, em várias aldeias dos Estados de Madhya e Pradesh na Índia. Na Europa, uma experiência foi conduzida na Finlândia entre 2017 e 2018, junto de 2 000 desempregados. As coletividades territoriais também apresentam projetos, como em França, onde 18 departamentos reclamam ao Estado central o direito de experimentarem o rendimento mínimo universal, de forma a adaptar a proteção social às mutações das desigualdades e do mercado de trabalho. Quaisquer que sejam os desfechos, este novo ciclo testemunha o desenvolvimento de uma sociedade de experiências que procura esclarecer o debate democrático através de uma abordagem científica. Contudo, os paradoxos metodológicos (o peso da engenharia social, os efeitos de vizinhança ou contágio, as causalidades simplificadas…) e éticos (a relação entre o cientista e o político, o impacto da experiência sobre as pessoas testadas…), limitam à partida o alcance e o potencial do rendimento universal básico.

Timothée Duverger, Professor Associado em Sciences Po Bordeaux. Autor do livro: L’invention du revenu de base, la fabrique d’une utopie démocratique (Le Bord de l’eau, 2018) traduzido do francês por Catarina Silva

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Médico Legislativo

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Muitos somos documentados e legais e, quando estamos um pouco mais adoentados e tememos pelo nosso bem-estar, procuramos um médico. Quando a situação o exige, pela indicação do médico que nos atendeu de bom grado, vamos à farmácia e compramos o medicamento recomendado. Assim, horas ou dias depois, seguimos com a nossa vida, normalmente e sem preocupações, sabendo que quando precisarmos de recorrer novamente ao Sistema Nacional de Saúde (SNS) o poderemos fazer, supostamente, sem problemas. Ora, esta realidade difere do quotidiano dos imigrantes que são continuamente encostados à parede, não por falta de vontade, mas por medo e receio pela sua vida e pela dos seus entes queridos, visto que não têm a opção de recorrer a um médico quando a situação o exige. A única opção para aqueles que se distinguem como imigrantes (e que, na verdade, forçados pela vida, são verdadeiros cidadãos do mundo) é serem esperançosos o suficiente para que o problema passe sem grandes consequências. Contudo, a verdadeira questão, que não pode ser combatida com este positivismo ingénuo e que continua a ser ignorada pelo governo português, é que a saúde dos imigrantes reflete também um problema de saúde pública. Isto é, a dificuldade de acesso à saúde daqueles que, legalmente ou ilegalmente, vivem em território nacional, não os afeta isoladamente, afeta toda a população a uma escala nacional. De acordo com a base de dados PorData, em 2017, existiam 416 000 imigrantes em situação legal e com um estatuto de residência permanente em Portugal. Os imigrantes europeus representam a maior fatia desta população, constituindo um total de 182 000 pessoas. Para além destes números, contam-se ainda os imigrantes que não estão registados em território nacional, estando em situação irregular. A narrativa europeia estipula que o continente é a casa dos valores de hospitalidade. De facto, teoricamente, o acesso à saúde é um direito de todos. Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, “[…] toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários […]” ( n.º 1 do

“Isto é, a dificuldade de acesso à saúde daqueles que, legalmente ou ilegalmente, vivem em território nacional, não os afeta isoladamente, afeta toda a população a uma escala nacional.” seu artigo 25.º). A Constituição da República Portuguesa também reconhece este direito no artigo 64º “1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover. 2. O direito à protecção da saúde é realizado pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito, pela criação de condições económicas, sociais e culturais (...)”. No entanto, esta hospitalidade, que deveria ser incondicional, é cercada por condicionantes (políticas e sociais), que impedem que o Outro, o estrangeiro, o imigrante, tenha acesso aos mesmos direitos e serviços. Se é verdade que o Estado português permite o acesso à saúde aos imigrantes, este acesso é acompanhado de condicionantes burocráticas. Com efeito, Portugal oferece acesso à saúde aos imigrantes legais, mas apenas se estes apresentarem um documento que comprove que estão no país há mais de noventa dias. Caso contrário, se não forem titulares de um documento comprovativo de autorização de residência, devem ser encaminhados “para um Centro Nacional de Apoio ao Imigrante ou para um Centro Local de Apoio à Integração dos Imigrantes para que procedam à regularização da sua situação.” Atualmente, estes processos de regularização são bastante morosos e difíceis de empreender. A burocracia, supostamente pensada para tornar as etapas mais rápidas e eficazes, acaba por tornar casos administrativos simples em casos que se arrastam, às vezes, durante anos. Contudo, a doença não é burocrática e não espera um prazo de 30 dias para se agravar. Muitas vezes, os próprios profissionais de saúde veem-se incapacitados e impedidos de socorrer quem precisa.


médico legislativo

O imigrante ilegal dentro do território nacional é um indivíduo à margem, não existe enquanto cidadão com plenos direitos. Incluem-se neste grupo as pessoas cujo nascimento não está registado, que fugiram sem papéis ou que perderam a documentação. No entanto, a realidade nacional mantêm-se nos hospitais. Isto é, a lei portuguesa obriga as pessoas a andarem identificadas. Desta forma, o apoio médico não se apresenta como um direito humano, mas sim como um direito limitado à nacionalidade. Segundo um relatório da OCDE publicado em 2015, que avalia a integração de imigrantes, a maioria dos inquiridos revelaram que já necessitaram de cuidados de saúde que não chegaram a receber. Em Portugal, as “necessidades não satisfeitas de consulta médica” devem-se, em grande parte, aos custos dos serviços de saúde, considerados muito altos. Assim, compreendemos que população imigrante está sujeita a uma dupla exclusão. A primeira provém do arrastar dos processos administrativos, que acabam por marginalizar os indivíduos. A segunda acontece devido às dificuldades socioeconómicas que estas minorias enfrentam em Portugal, que se encontram muitas vezes associadas a um risco acrescido de pobreza. A população, quer nacional quer estrangeira, está muito desinformada em relação ao SNS. Recentemente, com a aplicação das taxas moderadoras, o acesso à saúde até mesmo para cidadãos portugueses tem-se tornado conturbado. Por exemplo, as taxas para os serviços de urgência básicos podem chegar aos 14 euros. Isto é, mesmo para os cidadãos legais, a saúde tem um custo. O mágico poder de compra é uma condição prévia para um direito inalienável, podendo até mesmo falar-se de uma verdadeira mercantilização da saúde. De acordo com um recente estudo estatístico realizado pelo Observatório das Migrações sobre o acesso à saúde dos residentes em Portugal, 72% dos inquiridos

“Desta forma, o apoio médico não se apresenta como um direito humano, mas sim como um direito limitado à nacionalidade.”

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afirmaram que nos últimos 12 meses precisaram de uma consulta médica que nunca realizaram, devido à falta de disponibilidade financeira. A lei estabelece que algumas pessoas podem estar isentas do pagamento das taxas moderadoras. Contudo, para tal, é necessário encetar um longo processo burocrático. A dispensa de pagamento de taxas moderadoras a requerentes de asilo, refugiados e correspondente família direta é atribuída mediante a apresentação de uma declaração comprovativa de pedido de asilo ou de autorização de residência provisória válidas (sendo que os pedidos de asilo com decisão positiva não correspondem ao número real de refugiados e imigrantes no país). A realidade portuguesa espelha que o medicamento não é grátis, o medicamento não tem compaixão. O imigrante, por sua vez, muitas vezes, não tem dinheiro, mesmo quando se submete a condições desumanas de trabalho. Descobre-se que a saúde não é para todos (nem mesmo dentro da população nacional). A saúde é para todos aqueles que conseguem dispor dos meios suficientes para usufruir desse serviço. E o Outro, quem quer que seja, frequentemente, não se pode dar a esse “luxo”. Esta é a realidade dos imigrantes que se encontram em solo português, perante uma legislação que, ao não reconhecer o direito à saúde de modo incondicional, revira os olhos, faz-se de desentendida, agravando ainda mais o problema a nível nacional. Fala-se muito do sujeito humano, da dignidade humana e do respeito pela vida humana, mas a realidade dos Direitos Humanos para as pessoas que vivem ao nosso lado, no nosso país, difere muito da nossa.

Maria Martins, Estudante de Estudos Europeus na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC)

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Xenofobia e Racismo em Portugal Do assassinato de Alcindo Monteiro aos acontecimentos recentes no Bairro da Jamaica

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Que a verdade seja dita: Portugal é um país racista e xenófobo. Sua violenta história marcada pela invasão de territórios e a escravização (quando não extermínio) de povos nativos dos continentes sul-americano, africano e asiático deixou, sem sombra de dúvidas, sequelas na sociedade portuguesa contemporânea. Toda a construção de um imaginário imperialista durante os séculos de colonialismo reflete-se nas relações entre “portugueses” e tudo aquilo que não se enquadra no padrão estético de europeu branco. A naturalização da xenofobia explícita e do seu racismo estrutural pelos media tradicionais e pela própria sociedade evidencia uma problemática séria que se reflete na atribuição dessas práticas a terceiros, visto que é recorrente a negação e/ou o não reconhecimento de práticas discriminatórias e violentas contra pessoas e comunidades não brancas e/ou não europeias. Os media “democratas” passam a ideia de que não transmitem qualquer tipo de conteúdo abertamente discriminatório, acabando, assim, por relativizar violências. Essa normalização, sobretudo da extremadireita, ficou muito clara quando o ex-militar neonazista e criminoso condenado, Mário Machado, foi convidado a participar do programa “Você na TV!” do canal TVI. A dupla de apresentadores do programa, Maria Cerqueira Gomes e Manuel Luís Goucha, em nome da “liberdade de expressão”, nada mais fez do que tornar o ambiente confortável para o líder racista, não o contrapondo com uma argumentação sólida e séria, o que criou, assim, simpatia com uma figura pública portadora de um discurso antidemocrático: Machado chegou a dizer durante o programa que faz falta em Portugal “um novo Salazar”. O episódio rende questionamentos: o que faz um assassino num programa da manhã? Estariam os senhores diretores da rede televisa preocupados com o teor persuasivo que poderiam tomar (e tomaram) as palavras proferidas pelo fascista? Os media tradicionais ainda se lembram de Alcindo Monteiro e das mortes nas periferias? A resposta para as perguntas resume-se a um simples

facto: os falso-democratas não se lembram de Alcindo Monteiro. Esqueceram-se que na madrugada do dia 10 de Junho de 1995, enquanto se celebrava a conquista da Taça de Portugal pelo Sporting, o jovem português, nascido em Cabo Verde, que tinha subido ao Bairro Alto para dançar, seria espancado até à morte por um grupo de extrema-direita do qual fazia parte o violento Mário Machado. Foi o mesmo para os assassinatos de Manuel António Tavares Pereira (conhecido no Bairro da Bela Vista como Toni) e do MC Snake por agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP). Não é preciso dizer que o sentimento antipolicial se intensificou nos últimos anos nas comunidades marginalizadas de imigrantes. A violência econômica e a discriminação das quais são vítimas essas comunidades e a brutalidade de policiais racistas demonstram o despreparo por parte do Estado Português em lidar com a imigração. Em 2016, o Observatório de Migrações emitiu um relatório que indicava que os portugueses apresentam um risco de pobreza e situação de privação material severa de 24,5%, enquanto que a percentagem para os estrangeiros residentes eleva-se aos 45,6%. Os acontecimentos do dia 20 de janeiro deste ano, no Bairro da Jamaica, que resultaram no ferimento de cinco civis e de um agente policial, levaram à realização de uma manifestação em frente ao Ministério da Administração Interna. Aos gritos de “Não ao racismo”, e “Não à mortalidade policial”, os manifestantes foram

“A violência econômica e a discriminação das quais são vítimas essas comunidades e a brutalidade de policiais racistas demonstram o despreparo por parte do Estado Português em lidar com a imigração.”


xenofobia e racismo em portugal

“a raça é, pois, a construção histórica e social que serve de matéria-prima para o discurso das nacionalidades.” confrontados por agentes da PSP, que terminaram por deter quatro pessoas, reforçando a noção de que a criminalização das lutas é uma tática muito utilizada pelos Estados quando os seus líderes se apercebem que há pressão popular a favor de lutas reivindicativas contrárias aos interesses das elites. A repressão contra movimentos, ativistas e militantes tem servido como tentativa de silenciar o conflito racial existente em Portugal. Entre os inúmeros casos de perseguição, cito o do dirigente do SOS Racismo, Mamadou Ba, que tem sido alvo de ameaças e insultos, inclusive por parte de generais da reserva que desejam a sua expulsão do país. Parafraseando a antropóloga brasileira Lilia Moritz Schwarcz, a raça é, pois, a construção histórica e social que serve de matéria-prima para o discurso das nacionalidades. Tendo em conta que o racismo é uma ideologia que reduz os indivíduos a elementos pertencentes de um grupo que compartilha características fenotípicas, faz parte da construção do ideal nacionalista reforçar essa suposta diferença. De forma inegável, a biologia, principal ciência do Ocidente durante século XIX, foi instrumentalizada pelas elites europeias para justificar a sua narrativa “civilizadora” que visava naturalizar uma hierarquia construída por questões políticas e históricas de forma a reduzi-la a uma suposta relação natural e biológica. Daí provém a matriz filosófica que serviu para justificar relações de poder construídas por meio de marcadores sociais de diferença – tais como sexo, género, raça, nacionalidade, religião e idade – que se relacionam e se retroalimentam. Vamberto Miranda, doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo,

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salienta a necessidade de se obter informação acerca da composição étnica da população. Os censos demográficos em Portugal não recolhem dados étnicoraciais, o que dificulta ainda mais o desenvolvimento de investigação sobre as problemáticas apontadas (embora recentemente tenha ficado provado que as forças policiais usam ilegalmente critérios étnicos para ‘avaliar o risco de zonas urbanas sensíveis’) . A um nível mais local, Vamberto defende que a Universidade de Coimbra deveria ter políticas efetivas na recepção de estudantes, visto que esta se declara como uma instituição plural e internacionalizada. Isso implicaria que a instituição reconhecesse que há discriminação, desigualdade e hierarquias entre os próprios estudantes e que tivesse a possibilidade de responder às diferentes demandas e necessidades da sua comunidade estudantil. De constantes imitações satíricas de sotaques às agressões policiais e à violência por parte do Estado português, o preconceito contra as comunidades não brancas e/ou não europeias faz parte da realidade portuguesa e encontra-se em todos os espaços – da Academia elitista aos ambientes de trabalho mais precarizados, as agressões estão presentes e são naturalizadas. A ilusão de que leis baseadas na universalidade e igualdade podem salvaguardar direitos elementares é intrínseca à lógica legalista, que ignora as componentes ideológicas do determinismo e do darwinismo racial que nortearam as políticas de metrópoles imperialistas europeias durante os séculos de colonização, exploração e barbárie, e que ainda se manifestam nas relações de poder contemporâneas. Deve-se ir muito além da visão legalista, afim de se reconhecer as violências racistas e xenófobas presentes na sociedade portuguesa, reforçadas pelo sistema econômico e pelas instituições a seu favor.

MatÍas Alejandro Toplas, Estudante de Economia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC)

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