Mary jo putney anjos caídos 05 mary jo putney arco íris partido

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Arco-íris Partido Shattered Rainbows

Mary Jo

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S ÉRIE OS ANJOS CAÍDOS 5 Disponibilização e Pesquisas: Yuna, Gisa, Mare e Rosie Tradução e Formatação: Gisa Revisão: Adma Brum Revisão Final: Sky PROJETO RE VIS ORAS TRADU ÇÕES Quando Catherine Melbourne, filha e esposa de oficiais, percebeu que entre ela e o oficial e cavalheiro Michael Kenyon nascia um amor impossível decidiu afastar-se, fugir, resistir. Não sabia, certamente, que o destino é capaz de vencer qualquer vontade. Um sonho inalcançável Ela seguiu o exército inglês pela Espanha na guerra contra os franceses e acompanhou Wellington durante a batalha de Waterloo. Chamava-se Catherine Melbourne e era a esposa de um oficial da cavalaria. Era conhecida como "Santa Catherine", pois atendia aos feridos, confortava os moribundos e consolava os vivos. E apesar de sua grande formosura, de uma beleza embriagadora, nunca permitiu que nenhum homem se aproximasse com a palavra "amor" nos lábios. Um desejo proibido Michael Kenyon sabia. Sabia que não podia esperar amor daquela mulher de olhos verde mar e presença perturbadora. Sabia que devia afastar-se dela, esquecer que lhe devia a vida e só ver naquela mulher, quando muito, uma amiga. Mas, vencido Napoleão, de volta a Londres, Catherine se verá obrigada a pedir um favor quase impossível a seu "amigo" Michael. De novo o destino unirá suas vidas, possivelmente, quem sabe, para sempre. Prólogo


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Londres, junho de 1816 «Preciso de um marido, e preciso rápido.» Abafando uma risada histérica, Catherine Melbourne olhou por cima do ombro o edifício do qual acabava de sair; a vista do escritório do advogado a fez recuperar a seriedade imediatamente. Não, não era um sonho; na meia hora recém passada tinha adquirido um avô do qual jamais tinha ouvido falar e a possibilidade de receber uma herança que daria uma mudança total a sua vida: em lugar de ter que procurar um emprego com o qual escassamente poderiam manter-se ela e Amy, haveria dinheiro suficiente para viver com folga. Também havia uma casa antiga, uma ilha, um patrimônio. Claro que também haveria responsabilidades, mas isso era normal. Toda sua vida tinha sido carregada com pesadas responsabilidades. Só havia um problema. Devia convencer a esse avô recém encontrado de que ela e seu marido eram dignos de ser o seguinte lorde e lady Skoal. Novamente sentiu que lhe subia a histeria à garganta, mas desta vez sem risada. O que podia fazer? Apertou os lábios; estava muito claro que ia mentir. Já tinha deixado passar o momento de dizer que Colin tinha morrido quando falou com o senhor Harweil em seu escritório; o advogado lhe havia dito francamente que seu avô não consideraria a possibilidade de fazê-la sua única herdeira. Torquil Penrose, o vigésimo sétimo senhor de Skoal, acreditava que uma mulher não era digna de governar sua ilha. Teria que encontrar um homem que fizesse o papel de seu marido e fosse capaz de fazê-lo bem para persuadir a seu avô moribundo de nomeá-la sua herdeira. Mas a quem poderia pedir isso? A resposta lhe chegou imediatamente: lorde Michael Kenyon. Michael tinha sido um bom amigo e tinha a qualificação essencial de nunca haver-se acreditado apaixonado por ela. Além disso, a última vez que se viram lhe tinha dado carta branca para ir a ele se alguma vez precisasse de ajuda. Sabia exatamente onde encontrá-lo. Sendo filho de um duque e herói de guerra, seu nome aparecia regularmente nas notícias da sociedade. «Lorde M. K., está na cidade para a Temporada, hóspede do conde e a condessa de S.» «Se viu lorde M. K. passeando em sua carruagem pelo parque com a senhorita F.» «Lorde M. K. acompanhou à formosa lady A. à ópera.» Catherine tinha lido compulsivamente estes ecos da sociedade. Se Michael estivesse disposto a ajudá-la, teria que passar com ele um tempo considerável, o que significava dominar rigidamente seus sentimentos. Mas em Bruxelas, a primavera passada, tinha conseguido fazer isso muito bem, de modo que poderia voltar a fazê-lo. O pior era que teria que lhe mentir. Michael se sentia em enorme dívida com ela, e se chegasse a saber que estava viúva e que se encontrava em uma terrível situação econômica, era possível, e até provável, que pensasse que a melhor ajuda que podia lhe oferecer era casar-se com ela. A idéia do matrimônio lhe produziu uma peculiar agitação em algum lugar sob as costelas. Mas Michael jamais aceitaria o tipo de matrimônio que tinha tido com Colin; nenhum homem normal o faria. Tampouco podia lhe revelar seu horrível defeito; só a idéia lhe formou um nó no estômago. O mais simples, o mais seguro, era lhe fazer acreditar que Colin ainda estava vivo. O trajeto até Mayfair era longo; quando chegasse ali já teria todas as suas mentiras preparadas. Depois de um dia de horrorosas comoções, Michael Kenyon entrou na casa Strathmore e o mordomo lhe entregou um cartão: — Há uma senhora esperando para vê-lo, milorde. 2


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Sua reação imediata foi indescritível. Depois olhou o cartão: Senhora Colin Melbourne. Deus santo, Catherine; a única coisa que faltava. Mas o pensamento de que ela estava ali, sob o mesmo teto, produziu-lhe tal impaciência que lhe faltou tempo para perguntar ao mordomo onde o esperava. Tão logo ouviu a resposta, dirigiu-se a grandes passadas para o salão pequeno e abriu a porta. — Catherine? Ela estava olhando pela janela, mas se voltou ao ouvi-lo entrar. O estilo simples com que penteava seus cabelos escuros e seu modesto vestido cinza só realçavam sua beleza. O dia que se despediram, ele tinha feito uma silenciosa oração pedindo que jamais voltassem a encontrar-se. Esse ano tinha gasto considerável energia e tempo tentando esquecê-la. Entretanto, ao vê-la ali lhe importou o mínimo quanto lhe custaria depois; vê-la era como inspirar uma brisa de ar fresco em uma mina de carvão. — Sinto muito lhe incomodar, lorde Michael-disse ela, indecisa. Ele esteve um momento dominando-se e logo atravessou a sala. — Como é que me trata com essa formalidade, Catherine? — disse com naturalidade. — Me alegra vê-la. Está tão linda como sempre. Agarrou-lhe as mãos e por um efêmero instante temeu fazer algo imperdoável. O instante passou e lhe deu um beijo ligeiro na face; o beijo de um amigo. Soltou-lhe as mãos e se retirou a uma distância prudente. — Como está Amy? — Deliberadamente se obrigou a acrescentar— : E Colin? — Amy está maravilhosamente bem — respondeu ela sorrindo. — Quase não a conheceria. Juraria que cresceu oito centímetros desde a primavera passada. Colin... — titubeou um instante— ainda está na França. Seu tom era neutro, como era sempre que se referia a seu marido. Michael admirou sua serena dignidade. — Estou esquecendo minhas maneiras —disse. — Sente-se, por favor. Ordenarei que nos sirvam chá. Ela olhou as mãos fortemente entrelaçadas. Seu perfil tinha a doce claridade de uma Santa do Renascimento. — Melhor que diga primeiro minha parte. Preciso de uma ajuda bastante especial. É possível que... é possível que deseje me expulsar desta casa quando souber do que se trata. — Jamais — disse ele docemente. — Lhe devo a vida, Catherine. Pode me pedir qualquer coisa. — Atribui-me mais mérito que o que mereço. — Ergueu a vista, seus incríveis olhos cor verde mar penetrantes em seu marco de pestanas escuras. — Mas temo que... acontece que necessito um marido. Um marido temporário.

PRIMEIRA PARTE: O CAMINHO AO INFERNO CAPÍTULO 1 Salamanca, junho de 1812 O cirurgião de cabelos grisalhos limpou cansativamente a testa, deixando uma mancha de sangue. Contemplou o homem estendido na tosca mesa de operações. — Certamente você está como uma ruína, capitão — disse o cirurgião com o característico sotaque escocês. — Ninguém lhe disse alguma vez que não pode parar com o peito uma descarga 3


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de canhão? — Creio que não — conseguiu sussurrar lorde Michael Kenyon, fazendo um esforço. — Em Oxford me ensinaram os clássicos em lugar de coisas práticas. Talvez devesse ter ido à nova escola militar. — Será um verdadeiro desafio extrair todas as partes — comentou o cirurgião com alegria macabra. — Tome um pouco de brandy e começarei o trabalho. Um ordenança lhe aproximou uma garrafa dos lábios. Michael se obrigou a beber todo o possível do ardente líquido. Era uma lástima que não tivesse nem tempo nem brandy suficientes para agarrar uma boa bebedeira. Quando terminou de beber, o cirurgião lhe tirou o que restava de paletó e camisa. — teve uma sorte extraordinária, capitão. Se os atiradores franceses tivessem carregado bem a pólvora, não ficariam partes suficientes de você para identificá -lo. Ouviu-se um feio ruído de metal arranhando metal; depois o cirurgião lhe extraiu um pedaço de chumbo do ombro. A rajada de dor lhe obscureceu o mundo. Michael mordeu os lábios até que sangraram. — A batalha... está ganha? — perguntou, hesitante, antes que o cirurgião voltasse ao ataque. — Creio que sim. Dizem que os franceses vão fugindo apressados. Seus homens os têm obrigado a voltar. O cirurgião começou a escavar para tirar a parte seguinte. Foi um alívio render-se à escuridão. Michael voltou em si pouco a pouco, flutuando em meio a dor que lhe adormecia os sentidos e lhe nublava a visão. Cada respiração lhe produzia dores de estiletes cravados no peito e pulmões. Estava deitado em uma maca de palha no canto de um celeiro transformado em hospital de campanha. Estava escuro, e do teto as nervosas pombas arrulhavam em protesto pela invasão de sua casa. A julgar pela mescla de gemidos e fôlegos, o chão de terra devia estar coberto de homens feridos, deitados cotovelo a cotovelo. O abrasador calor do meio-dia espanhol tinha sido substituído pelo cortante frio da noite. Sobre seu torso enfaixado havia uma manta áspera que não necessitava porque estava ardendo de febre da infecção, e a sede era pior que a dor. Recordou sua casa em Gales e pensou se alguma vez voltaria a ver essas verdes colinas. Provavelmente não; um cirurgião lhe havia dito uma vez que só um homem em cada três sobrevivia a uma ferida grave. Na perspectiva de morrer encontrava uma certa paz; não só se liberaria da dor mas também, afinal, tinha vindo a Espanha com o amargo conhecimento de que a morte o liber taria de um dilema sem solução. Seu desejo tinha sido esquecer Caroline, a mulher a quem ama va mais que a sua honra, e a terrível promessa que tinha feito sem pensar jamais que poderia ver-se chamado a cumpri-la. Com vaga curiosidade se perguntou quem sentiria falta dele. Seus amigos do exército, certamente, mas eles estavam acostumados a essas perdas; em um dia ele passaria a ser «pobre Kenyon», um a mais entre os caídos. Ninguém de sua família lamentaria, além da irritação de ter que deixar de lado a roupa elegante para usar a roupa negra de luto. Seu pai, o duque de Ashburton, diria algumas prerrogativas a respeito da vontade de Deus, mas secretamente se sentiria contente de ver-se livre de seu desprezado filho mais novo. Se alguém ia sentir verdadeira aflição por sua morte, seriam seus velhos amigos Lucien e Rafe. Também Nicholas, é claro, mas não suportava pensar em Nicholas. Seus negros pensamentos foram interrompidos pela voz de uma mulher, tão fresca e clara como um manancial de montanha gaulesa. Era estranho a ouvir falar com uma dama inglesa nesse 4


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lugar. Devia ser uma dessas intrépidas esposas de oficiais que decidiam seguir o exército, acompanhar seus homens em todas as penúrias e perigos da vida de campanha. — Quer água? — perguntou ela docemente. Incapaz de falar, fez um gesto de afirmação. Um braço firme lhe levantou a cabeça para que pudesse beber. Dela emanava o aroma fresco de tomilho e lavanda das colinas espanholas, perceptível ainda em meio da fetidez das feridas e dos mortos. A luz era muito tênue para lhe ver a face, mas sentia a cabeça apoiada em uma suave curva. Se pudesse mover-se enterraria a cabeça nesse bendito e suave corpo feminino e depois poderia morrer em paz. Tinha a garganta muito seca para engolir, e a água lhe caiu da boca ao queixo. — Perdoe — disse ela tranqüilamente, — não deveria lhe haver dado tanta. Voltemos a tentar. Inclinou o copo para que só lhe caíssem umas gotas entre os lábios rachados. Ele conseguiu engolir o suficiente para aliviar o ardor da garganta. Pacientemente, foi dando mais, pouquinho a pouquinho, até que saciou a tremenda sede. — Obrigado, senhora — sussurrou, quando pôde falar. — Estou... muito agradecido. — Não há de que. Pôs-lhe a cabeça na maca e depois se levantou e se aproximou da do lado. Passado um momento ali disse com pena, em castelhano: — Vaya con Dios. (Vá com Deus) — Era a despedida espanhola, mais apropriada para os mortos e para os vivos. A mulher se afastou e Michael voltou a adormecer. Estava vagamente consciente quando chegaram os ordenanças e retiraram o corpo da maca contigua. Pouco depois puseram outro ferido em seu lugar. O novo ferido estava delirante e murmurava uma e outra vez «Mamãe, mamãe, onde está?». Sua voz revelava que era muito jovem e estava muito assustado. Michael tentou não ouvir as dolorosas súplicas. Não conseguiu, mas a voz cada vez mais fraca indicava que o menino não ia durar muito mais tempo. Pobre diabo. — vá procurar à senhora Melbourne — ouviu dizer aos pés de sua maca. Era a voz do cirurgião escocês. — Você mesmo a enviou para casa, doutor Kinlock — respondeu indeciso o ordenança. — Estava muito cansada. — Não nos perdoará se souber que este menino morreu assim. Vá procurá-la. Transcorreu um tempo indefinível, e Michael ouviu o característico frufru de saias femininas. Abriu os olhos e viu a silhueta de uma mulher aproximando-se entre as macas. Junto a ela vinha o doutor com uma lanterna. — chama-se Jem — disse o médico em voz baixa. — É de alguma parte do Leste de Anglia, Suffolk, creio. O pobre moço recebeu um tiro de canhão nas vísceras. Não vai durar muito mais. Ela assentiu. Embora Michael ainda tivesse a visão nublada, acreditou ver os cabelos escuros e o rosto ovalado de uma espanhola; mas sua voz era a da mulher que lhe tinha dada água. — Jem, filho, é você? Cessou a litania do menino chamando sua mãe. — Ah, mamãe, mamãe — disse com um estremecimento de desesperado alivio. —-me alegro tanto que esteja aqui. — Sinto ter demorado tanto, Jemmie — disse ela; ajoelhou-se junto à maca e se inclinou para lhe beijar a face. — Sabia que viria. — Jem esticou torpemente a mão para agarrar a dela. — Agora que está aqui não tenho medo. Fica comigo, por favor. Agarrou-lhe a mão entre as suas. 5


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— Não se preocupe, filho. Não o deixarei sozinho. O cirurgião pendurou a lanterna em um prego em cima da maca do menino e partiu. A mulher, a senhora Melbourne, sentou-se na palha com as costas apoiada na parede, agarrou a cabeça de Jem, colocou-a em seu regaço e lhe acariciou o cabelo. O menino lançou um profundo suspiro de satisfação. Ela começou a entoar uma doce canção de berço. Em nenhum momento lhe cortou a voz, mas as lágrimas brilhavam sobre suas faces à medida que a vida de Jem ia se apagando lentamente. Michael fechou os olhos, sentindo-se melhor que antes. O carinho e o generoso espírito da senhora Melbourne eram um aviso do bom e verdadeiro. Enquanto existissem anjos terrestres como ela, poderia valer a pena viver. Dormiu, abrigado por sua doce voz, como por uma vela que desafia a escuridão. O sol estava aparecendo sobre o horizonte quando Jem exalou seu último e dificultoso suspiro e ficou imóvel. Catherine colocou sua cabeça sobre a maca, com uma pena que as lágrimas não conseguiam expressar: era tão jovem... Quase lhe dobraram as pernas intumescidas quando ficou de pé. Apoiou-se na áspera parede de pedra e esperou que os músculos se recuperassem; olhou o homem que estava jogado na maca à esquerda. A manta tinha deslizado, deixando descoberto as ataduras empapadas de sang ue sobre seu largo peito. O ar ainda estava frio, de modo que se agachou e lhe arrumou a manta sobre os ombros. Depois lhe tocou a testa; surpreendida comprovou que já não tinha febre. Quando lhe deu água não teria dado um pêni por suas possibilidades. Mas era um homem alto e forte; talvez tivesse a força para sobreviver as suas feridas. Oxalá. Cansativamente caminhou até a porta. Durante seus anos de seguir o exército tinha aprendido muitíssimo de enfermaria e algo mais de um pouco de cirurgia, mas jamais tinha conseguido acostumar-se à visão do sofrimento. A austera paisagem estava aprazível depois do ensurdecedor estrondo do dia anterior. Quando chegou a sua tenda, já havia passado grande parte de sua tensão. Seu marido Colín ainda não tinha retornado de suas obrigações, mas seu criado Bate estava dormindo fora, guardando às mulheres do capitão. Esgotada até a medula dos ossos, agachou-se para entrar na tenda. A escura cabeça de Amy apareceu entre as mantas. — É hora de partir, mamãe? — perguntou com a despreocupação de uma veterana. — Não, filha. — Catherine lhe beijou a testa. Depois dos horrores do hospital de campanha, abraçar o corpinho sã de sua filha era um céu. — Supondo que hoje ficaremos aqui. Sempre há muito que fazer depois de uma batalha. — Precisa dormir — disse Amy olhando-a severamente. — se vire para eu desabotoar o vestido. Catherine obedeceu sorrindo. Seus escrúpulos por levar sua filha à guerra compensava o conhecimento de que a vida tinha produzido esse milagre de menina: muito mais resistente, valente, sensata e capaz do que poderia esperar-se de sua idade. Antes que Amy pudesse lhe desabotoar o manchado vestido se ouviram cascos de cavalo, seguidos pelo tinido dos arreios e o som destemperado da voz de seu marido. Ao fim de um momento, Colin entrou na tenda. Tinha a enérgica personalidade de um oficial de cavalaria e era impossível não dar-se conta de sua presença quando estava perto. — bom dia, senhoras. — Acariciou negligentemente os cabelos de Amy, despenteando-a. — soube da carga de cavalaria de ontem, Catherine? — Sem esperar resposta revolveu no cesto, tirou uma coxa de frango assado e deu uma dentada. — Foi a manobra mais preciosa em que participei. Lançamo-nos rugindo contra os franceses, como um raio, e os varremos do campo. Não só fizemos 6


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milhares de prisioneiros e um montão de armas mas também além disso capturamos duas águias! Jamais se tinha visto algo igual. Os estandartes dourados do exército francês chamados águias eram feitas imitando os da Roma imperial, e capturar dois deles era uma façanha assombrosa. — Inteirei-me — respondeu Catherine. — Nossos homens estiveram magníficos. — E ela havia passado a noite atendendo o preço da vitória. Tendo comido toda a carne. Colín jogou o osso fora da tenda. — Perseguimos os franceses, mas sem sorte. Um desses malditos generais espanhóis desobedeceu a ordem do velho Hóquei de pôr uma guarnição no rio, e depois não teve o valor de reconhecer seu erro. Catherine não fez caso dos palavrões; era impossível proteger da linguagem forte uma menina que vivia no meio de um exército. — compreende-se a atitude do general. Eu não gostaria de reconhecer um erro como esse diante de lorde Wellington. — Muito certo. — Colin tirou o poeirento casaco. — Que mais há para comer? Comeria um dos cavalos franceses mortos se estivesse bem cozido. — Mamãe precisa descansar — interveio Amy, olhando-o com expressão de recriminação. — Esteve no hospital quase toda a noite. — E seu pai brigou uma batalha ontem — disse brandamente Catherine. — vou preparar o café da manhã. Passou junto a seu marido para sair; sob os aromas de cavalo e barro percebeu o aroma almiscarado de perfume. Uma vez acabada a perseguição aos franceses, Colin deve ter visitado sua atual amiga, uma robusta viúva de Salamanca. A criada para todo serviço era a esposa de um sargento da companhia de Colin e demoraria ao menos uma hora em chegar, de modo que, esgotada como estava, Catherine se ajoelhou junto ao fogo e jogou raminhos secos sobre as brasas, perguntando-se por que sua vida era tão diferente de seus sonhos. Quando se casou com Colin, aos dezesseis anos, acreditava no amor romântico e nas grandes aventura. Mas só tinha encontrado solidão e meninos moribundos como Jem. Impaciente, levantou-se e pendurou o bule sobre o fogo. Em sua vida não havia lugar para a auto-piedade. Se havia pena em seu trabalho de enfermeira, também havia a satisfação de saber que estava fazendo algo verdadeiramente importante. Embora não tinha o matrimônio que tinha sonhado, ela e Colín tinham aprendido a levar-se bastante bem. Quanto ao amor, bom, tinha Amy. Era uma lástima que não tivesse tido mais filhos. Apertou os lábios e se disse que era uma mulher muito afortunada. Capítulo 2 Penreith, Gales, março de 1815 Michael Kenyon acabou de pôr suas marcas de aprovação na lista. As novas máquinas para a mina estavam funcionando bem; o administrador que tinha contratado recentemente estava fazendo um excelente trabalho e outros negócios estavam de vento em popa. Posto que tinha realizado seus outros objetivos, era o momento de procurar uma esposa. Levantou-se de sua mesa e foi contemplar a paisagem coberta pela névoa. Do momento que a viu tinha amado muito esse lindo vale e essa velha casa senhorial de pedra. De qualquer modo, não se podia negar que no inverno era um lugar solitário, inclusive para um homem que finalmente tinha encontrado a paz consigo mesmo. Tinham transcorrido mais de cinco anos desde que estivera encalacrado com uma mulher; 7


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cinco anos longos e difíceis da doentia obsessão que tinha destruído todo seu direito à honra e a dignidade. Essa loucura lhe tinha sido útil durante seus anos guerreiros, mas lhe tinha deformado a alma. A prudência lhe tinha voltado só depois de ter estado perigosamente perto de cometer um ato que teria sido imperdoável. Desviou seus pensamentos, porque era muito doloroso recordar como tinha traído suas crenças mais profundas. Mas as pessoas a quem tinha feito mal o tinham perdoado com prodigalidade. Era hora de deixar de açoitar-se e olhar o futuro. Isto o levou novamente ao assunto de uma esposa. Suas expectativas eram realistas; embora não fosse nenhum modelo de perfeição, tinha boa aparência, bom berço, e possuía uma fortuna mais que adequada. Também tinha seus defeitos, os suficientes para que qualquer mulher que se respeitasse sentisse receios de melhorá-lo. Não aspirava a uma grande paixão; Deus santo, isso era a última coisa que desejava. Era incapaz desse tipo de amor; o que considerava uma grande paixão tinha sido uma obsessão torcida, patética. Em lugar de procurar um romance, procuraria uma mulher simpática e inteligente que fosse uma boa companheira, uma mulher com experiência de vida, e embora tivesse que ser suficientemente atraente para levá-la para cama, não era necessária uma beleza extraordinária. Na verdade, segundo sua experiência, uma beleza extraordinária era mas uma desvantagem. Graças a Deus já havia passado sua primeira juventude e a idiota vulnerabilidade que a acompanhava. A personalidade e a aparência eram fáceis de avaliar; o mais difícil, mas essencial, eram a honestidade e a lealdade. Tinha aprendido, da forma difícil, que sem honestidade não há nada. Posto que nesse canto de Gales havia poucas mulheres elegíveis, teria que ir a Londres passar a Temporada. Seria agradável passar uns meses sem outro objetivo que o prazer. Com sorte, encontraria uma mulher agradável com quem compartilhar sua vida. Se não, haveria outras Temporadas. Sua concentração foi interrompida por uma batida na porta. Deu permissão para entrar e apareceu seu mordomo com um alforje sujo pela viagem. — chegou uma mensagem de Londres para você, milorde. Michael abriu o alforje e tirou uma carta lacrada com o selo do conde de Strathmore. Rompeu o lacre; a última vez que Lucien lhe enviou uma mensagem com essa urgência era uma chamada a unir-se em uma complicada missão de resgate. Talvez Luce inventasse algo igualmente interessante para animar a última etapa do inverno. A alegria se desvaneceu quando percorreu as lacônicas frases da mensagem. Voltou a lê-la e se esticou. — Se encarregue de que atenda bem ao mensageiro de Strathmore e diga à cozinheira que possivelmente não deverei jantar. Vou a Aberdare. — Sim, milorde. — Sem poder reprimir a curiosidade, perguntou:— Más notícias? Michael sorriu sem humor: — O pior pesadelo da Europa acaba de tornar-se realidade. A notícia enchia de tal modo sua cabeça que apenas sentiu a fria névoa enquanto atravessava o vale em direção à grandiosa mansão que albergava os condes de Aberdare. Quando chegou a seu destino, desmontou, entregou as rédeas ao cavalariço e entrou na casa subindo de dois em dois os degraus. Como sempre que visitava Aberdare, invadiu-o a sensação de maravilha por poder novamente entrar na casa de Nicholas com tanta soltura como quando eram estudantes em Eton. Três ou quatro anos antes isso teria sido tão impensável quanto o sol nascesse no oeste. Posto que era praticamente um membro da família, o mordomo o enviou diretamente ao salão. Ali encontrou lady Aberdare sentada junto a um berço magnificamente esculpido em que 8


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estava seu filho Kenrick, um bebê. — Olá, Clare — saudou Michael sorrindo à condessa. — Vejo que não suporta não ter a sua vista o visconde Tregar. — Olá, Michael — disse ela lhe oferecendo a mão e dando uma piscada. — É bastante humilhante; sinto-me exatamente como uma gata custodiando suas casas de jogo clandestino. Minha amiga Marged me assegura que dentro de um ou dois meses estarei mais sensata. — Sempre é sensata. — Michael lhe beijou a face com muito afeto. Só por sua existência. Clare era um exemplo de tudo o que é bom e verdadeiro no sexo feminino. Soltou-lhe a mão e olhou o berço: - É incrível que possam ser tão pequenos os dedos. — Mas têm uma força incrível — disse ela orgulhosa. — lhe dê uma oportunidade de demonstrá-lo. Michael se inclinou sobre o berço e tocou com muito cuidado a mão do bebê. Kenrick fez uns gorjeios e fechou fortemente o punho em miniatura ao redor da ponta do dedo de Michael. Essa diminuta parte de humanidade era uma prova vivente do amor de Clare e Nicholas, com o malicioso e encantador sorriso de seu pai e os olhos azul vivo de sua mãe. Kenrick, chamado assim por seu avô paterno, era uma ponte entre o passado e o futuro. Poderia ter havido um filho seu também, que agora teria quase cinco anos... Incapaz de suportar esse pensamento, Michael soltou brandamente seu dedo e se ergueu. — Nicholas está em casa? — Não, mas pode chegar a qualquer momento. — Clare franziu o cenho: - aconteceu alguma coisa? — Napoleão escapou de Elba e desembarcou na França — respondeu sinceramente Michael. Clare colocou a mão no berço em um gesto instintivo de amparo. Da porta chegou o som de uma repentina exclamação abafada. Michael se virou. Ali estava o conde de Aberdare, o cabelo escuro perolado pela umidade da névoa, seus traços desacostumadamente imóveis. — sabe-se algo sobre como o receberam os franceses? — Aparentemente lhe deram as boas-vinda com vitórias e aclamações. Há muitas possibilidades de que na próxima semana o rei Luis fuja para salvar sua vida e Bonaparte se instale em Paris e volte a chamar-se imperador. Não parece que Luis se preocupou de fazer -se amável a seus súditos. — Tirou a carta do bolso. — Lucien enviou isto. Nicholas leu a carta com o cenho franzido. — Em certo modo é uma surpresa — comentou. — Mas, por outro lado, parece absolutamente inevitável. — Isso é exatamente o que pensei — disse lentamente Michael. — É como se estivesse esperando esta notícia, mas sem saber. — Não creio que as potências aliadas vão aceitar isto como um fato e deixem que Napoleão siga no trono. — Duvido. Terá que voltar para a batalha. — Michael pensou nos longos anos de guerra já transcorridos. — Quando derrotar Boney desta vez. Deus queira que tenham a sensatez de executá-lo ou pelo menos desterrá-lo a algum lugar muito longe da Europa. Clare levantou a vista da carta e o olhou. — vai voltar para o exército, não é? Ninguém como Clare para adivinhar um pensamento que apenas estava se formando em sua mente. — Provavelmente. Imagino que do Congresso de Viena vão chamar Wellington para pô-lo no comando das forças aliadas que vão se reunir para lutar contra Napoleão. Com tantas de suas tropas de primeira categoria ainda na América, vai precisar de oficiais experientes. 9


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— Por sorte, batizaremos Kenrick dentro de dois dias — suspirou Clare. — Seria uma pena fazê-lo sem seu padrinho. Ainda estará aqui, não é? — Não perderia o batismo por nada do mundo — respondeu Michael sorridente e brincalhão, com o desejo de lhe tirar a preocupação dos olhos. — Só espero que um raio não me parta quando prometer renunciar a Satanás e a suas pompas para poder guiar o desenvolvimento espiritual de Kenrick. — Se Deus fosse terminante nessas coisas — riu Nicholas, — todas as fontes batismais da cristandade estariam cheias de buracos e queimaduras. Clare não se deixou distrair e disse em um tom quase zangado: — Alegra-o voltar para a guerra, não é? Michael pensou no enredo de emoções que tinha sentido ao ler a carta de Lucien. Preponderavam a comoção e a raiva contra os franceses, mas também havia sentimentos mais profundos e difíceis de definir: o desejo de expiar seus pecados, a intensa sensação de viver experimentada quando a morte era iminente, o tenebroso entusiasmo por praticar novamente suas artes letais, nas quais se distinguia. Não eram sentimentos dos quais desejasse falar, nem sequer com Clare e Nicholas. — Sempre lamentei estar impossibilitado em casa e perder a última ofensiva da Península na França. Lutar contra os franceses uma última vez me daria a sensação de dever cumprido. — Todo isso está muito bem — disse Nicholas secamente, — mas trate de não se deixar matar. — Os franceses não conseguiram antes, portanto suponho que tampouco conseguirão agora. — Titubeou um instante e acrescentou— : Se algo me acontecesse, o contrato de arrendamento da mina recairia em vocês. Não quero que caia em mãos desconhecidas. — Viu que o rosto de Clare ficava rígido diante essa alusão a sua possível morte. — Não tem por que preocupar-se disse em tom tranqüilizador. — A única vez que me feriram com gravidade foi quando não levava comigo meu amuleto da sorte. Asseguro-lhe que não voltarei a cometer esse engano. — Que tipo de amuleto? — perguntou ela, curiosa. — É algo que desenhou e construiu Lucien em Oxford. Eu o admirava tanto que me deu de presente. Na verdade, tenho-o aqui. — Tirou um tubo de prata do bolso interior do casaco e o passou a Clare. — Lucien inventou a palavra «caleidoscópio», usando as palavras gregas que querem dizer «ver formas luminosas». Olhe por esse extremo e aponta-o para a luz. — Céu santo — exclamou Clare, seguindo as instruções. — É como uma estrela de vivas cores. — Gire lentamente o tubo. Verá como mudam as formas. Clare o fez girar e se ouviu um estalar de dedos. Lançou um suspiro de prazer. — É precioso. Como funciona? — Creio que só são pedaços de vidro coloridos e alguns espelhos. De qualquer modo, o efeito é mágico. — Sorriu ao recordar sua sensação de maravilha a primeira vez que olhou dentro. — Sempre imaginei que o caleidoscópio contém um arco íris quebrado; se olha as partes da maneira correta, finalmente vai encontrar uma forma. — Por isso se transformou para você em símbolo de esperança — murmurou Clare. — Supondo que sim. Clare tinha razão; na época em que sua vida lhe parecia quebrada sem remédio, tinha encontrado consolo em observar as preciosas figuras sempre cambiantes do caleidoscópio; do caos, ordem; da angústia, esperança. Nicholas agarrou o tubo das mãos de Clare e olhou dentro. — Mmm, maravilhoso. Tinha-o esquecido. Se Lucien não tivesse tido a desgraça de nascer 10


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conde teria sido um engenheiro de primeira classe. Todos se puseram a rir. Com a risada era fácil não preocupar-se do que poderia trazer o futuro. CAPÍTULO 3 Bruxelas, abril de 1815 O ajudante indicou com um gesto a Michael que entrasse no escritório. Dentro estava o duque de Wellington olhando um dossiê de papéis com o cenho franzido. O duque levantou a vista e sua expressão se alegrou. — Comandante Kenyon, que alegria lhe ver. Já era hora que esses idiotas da Guarda Montada enviassem alguém competente, em lugar destes homens que não têm outra coisa que influência familiar que os recomende. — Custou-me meu, senhor — respondeu Michael. — Mas ao final consegui convencê-los de que podia ser útil. — Mais tarde lhe darei um regimento, mas no momento vou deixá-lo aqui para trabalho de estado maior. As coisas são um caos. — O duque se levantou e foi à janela olhar carrancudo uma tropa de soldados flamencos que ia passando. — Se tivesse aqui meu exército peninsular, isto seria fácil. Em seu lugar há muitos soldados britânicos sem experiência, e os únicos flamencos com experiência são os que serviram sob as águias de Napoleão e não sabem muito bem que lado querem que ganhe. Provavelmente vão se passar ao outro lado ao primeiro sinal de ação. — Soltou um latido de risada. — Não sei se este exército vai assustar Bonaparte, mas Por Deus, a mim sim assusta. Michael reprimiu um sorriso. Esse sarcasmo demonstrava que o duque permanecia imperturbável diante de uma situação que intimidaria a qualquer homem inferior. Falaram durante alguns minutos a respeito das tarefas que Wellington tinha pensado; depois, o duque acompanhou Michael até a sala de espera grande. Vários ajudantes de campo estiveram trabalhando ali, mas nesse momento estavam agrupados no outro extremo da sala. — encontrou alojamento, Kenyon? — Não, senhor. Vim diretamente aqui. — Entre os militares e os frívolos da moda, Bruxelas está a arrebentar. — Olhou a sala. Ao ver aparecer um pedaço de musselina branca entre os oficiais, acrescentou: - Aí há uma possibilidade. É a senhora Melbourne que está distraindo meus ajudantes de seu trabalho? O grupo se dissolveu, e uma mulher sorridente saiu do centro. Michael a olhou e se paralisou da cabeça aos pés. Era uma mulher muito linda, linda para parar o coração e embriagar a mente. Tão linda como tinha sido sua amante, Caroline, e vê-la o afetou do mesmo modo. Sentiu-se como um peixe que acabasse de abocanhar um anzol letal. Quando a senhora se aproximou e estendeu a mão ao duque, Michael se recordou que tinha trinta e três anos, bem passada a idade de apaixonar-se instantaneamente por um rosto bonito. Mas a mulher era suficientemente bela para armar uma revolta em um monastério. Usava seus brilhantes cabelos escuros presos atrás, com uma simplicidade que realçava a perfeição clássica de seus traços, e sua graciosa figura tinha a exuberância sensual que atormentaria os sonhos de qualquer homem. — Sinto ter distraído seus oficiais — disse a Wellington em tom divertido. — Passei por aqui para deixar uma mensagem ao coronel Gordon. Mas partirei em seguida, antes que fique prisioneira por ajudar e instigar o inimigo. — Isso jamais — repôs galantemente Wellington. — Kenyon, conheceu a senhora Melbourne 11


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na Península? Seu marido é capitão do terceiro batalhão dos Dragões. — Creio que nunca tive esse prazer — respondeu Michael, surpreso da calma de sua voz. — A cavalaria e a infantaria nem sempre têm muito que dizer-se. — Certo — riu o duque, — mas à senhora Melbourne também é chamada Santa Catherine, por seu trabalho atendendo aos feridos. Senhora Melbourne, o comandante lorde Michael Kenyon. Ela se voltou para Michael e em seus olhos brilhou um pequeno brilho que se desvaneceu ao esticar a mão lhe dirigindo um sorriso amistoso. Seus olhos eram tão extraordinários como o resto, de uma cor verde mar claro, diferente de todos os olhos que tinha visto em sua vida. — Senhora Melbourne. Ao inclinar-se sobre sua mão, as palavras do duque despertaram uma lembrança. Deus santo, podia essa mulher elegante e frívola ser a mesma que tinha visto no hospital de campanha depois da batalha de Salamanca? Era difícil de acreditar. Enquanto ele se erguia, o duque disse à mulher: — O comandante Kenyon acaba de chegar a Bruxelas e necessita alojam ento. Há lugar para outro oficial no lar que levam você e a senhora Mowbry? — Sim, temos lugar — disse ela fazendo uma careta de cômica tristeza. — Quer dizer, se você puder tolerar conviver com três crianças e um número variável de animais domésticos. Além de meu marido e o capitão Mowbry, temos outro solteirão, o capitão Wilding. Desta vez Michael reconheceu a voz doce e tranqüilizadora que tinha cantado ao menino moribundo até seu descanso final. Essa elegante criatura era na realidade a dama de Salamanca. Extraordinário. — Wilding é amigo dele, não é? — comentou o duque. Na cabeça do Michael soou uma advertência, lhe dizendo que seria um estúpido se vivesse sob o mesmo teto com uma mulher que o afetava dessa maneira. Mas se ouviu dizer: — Sim, e eu também adoro crianças e animais domésticos. — Então lhe convido a unir-se a nós — disse ela amavelmente. — Tal como está se enchendo a cidade, teremos que admitir alguém cedo ou tarde, de modo que bem poderia ser agora. — Feito, então — disse Wellington, antes que Michael tivesse tempo de voltar a pensar ou de declinar educadamente o convite. — O verei pela manhã, Kenyon. Senhora Melbourne, espero vêla na próxima semana em uma pequena festa que darei. — Estarei encantada — sorriu ela. Quando o duque voltava para seu escritório disse a Michael: —Vou a caminho de casa, comandante. Acompanho-o? Está na Rue da La Reine, não longe da porta Namur. Quando saíram do edifício, Michael viu que fora não havia nem carro nem criada esperandoa. — Não irá sozinha, não é? — É claro que sim — respondeu ela. — eu adoro caminhar. Ele supôs que uma mulher que tinha seguido o exército a Bruxelas pareceria muito civilizada, mas nenhuma mulher tão linda deveria andar sozinha por uma cidade cheia de soldados. — Então, me permita que a acompanhe. Seu criado e seu ordenança o esperavam perto, a cavalo, com sua bagagem, de modo que se deteve para dizer que os seguissem. Quando puseram-se a andar pela Rue Royale, a senhora Melbourne agarrou em seu braço; não havia nada de paquera nesse gesto; era mas bem o gesto tranqüilo de uma mulher agradavelmente casada que estava acostumada a estar rodeada de homens. Decidindo que era hora de deixar de atuar como um boi pasmado, comentou-lhe: 12


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— É muito amável de sua parte me permitir compartilhar seu alojamento. Imagino que é difícil encontrar uma boa casa. — Kenneth Wilding estará feliz de ter outro oficial de infantaria sob o mesmo teto. — Suponho que saiba que um oficial de infantaria harmoniza facilmente com dois oficiais de cavalaria — disse ele sorrindo. — Só porque a cavalaria britânica é famosa por perseguir o inimigo com tanto empenho como correm atrás das raposas não é motivo para ser cáustico — disse ela rindo. — E, por favor, chame-me de Catherine; depois de tudo vamos viver juntos como irmãos durante um tempo indefinido. Como irmãos. Ela era tão inconsciente do perturbador efeito que tinha sobre ele que começou a relaxar-se. Tinha compartilhado casa com casais casados antes e poderia fazê-lo agora. — Então, chame por meu nome também. Está muito tempo em Bruxelas? — Só duas semanas, mais ou menos. Mas Anne Mowbry e eu compartilhamos casa antes, e já temos feito uma ciência do manejo da casa. — Olhou-o com expressão divertida. — Dirigimos uma boa pensão, diria eu. Sempre há comida preparada para um homem que trabalhou horas extras. O jantar se serve para qualquer um que esteja em casa e está acostumado a haver suficiente para um ou dois comensais inesperados. Em troca, Anne e eu exigimos que qualquer farra com licor se celebre em outra parte. As crianças precisam dormir. — Sim, senhora. Há alguma outra regra que deva conhecer? Ela titubeou um instante e logo disse com desconforto: — Agradeceremos que pague sua parte de gastos prontamente. Isso queria dizer que o dinheiro era um pouco ajustado. — Feito. Diga-me quanto e quando. Ela assentiu e logo olhou seu uniforme verde de fuzileiro. — Acaba de retornar da América do Norte? — Não. No ano passado deixei o exército depois da abdicação de Napoleão e depois levei uma tranqüila vida de civil. Mas quando me inteirei de que o imperador tinha voltado para os maus hábitos... — deu de ombros. — Uma vida de civil — disse ela com nostalgia. — Me pergunto como será saber que alguém pode viver em uma casa para sempre. — Alguma vez viveste assim? Ela negou com a cabeça. — Meu pai estava no exército, de modo que esta é a única vida que conheci. Não era estranho então que tivesse aprendido a criar comodidade em qualquer lugar que fosse. Seu marido era um homem afortunado. Continuaram conversando com facilidade, porque os anos na Península lhes tinham dado experiências em comum. Tudo era muito natural, fora do fato de que ele era muito consciente da ligeira pressão dos dedos enluvados sobre seu braço. Pensando que devia mencionar seu primeiro encontro, disse-lhe: — De certo modo nos conhecemos faz três anos, Catherine. Ela franziu o cenho e apareceu uma encantadora ruguinha entre suas sobrancelhas. — Perdoa, creio que não recordo. — Feriram-me em Salamanca. No hospital de campanha me deu água quando eu estava desesperado de sede. Jamais havia sentido mais gratidão por algo em minha vida. Ela se voltou a lhe olhar atentamente o rosto, como tentando recordar. — Não havia nenhum motivo para que me recordasse entre tantos homens. Mas talvez sim recorde do menino que estava na maca contigua à minha. Chamava sua mãe e pensou que era 13


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você. Ficou com ele até que morreu. — Ah... — exclamou como em um suspiro e seu alegre encanto deu passo à ternura da mulher que tinha consolado Jem. — Pobre menino. Era tão pouco o que eu podia fazer, tão condenadamente pouco. — Olhou para outro lado. — Supondo que deveria ter me acostumado a essas cenas, mas jamais consegui. Sua beleza o havia emocionado como um golpe no coração. Sua compaixão foi como um segundo golpe, mais forte, porque os anos de guerra o tinham feito apreciar a amabilidade como um tesouro. Fez uma inspiração lenta e profunda antes de responder: — A insensibilidade é mais fácil. Entretanto, embora fira mais, é muito o que se pode dizer a favor de lembrar o valor de cada pessoa cuja vida toca as nossas. Dirigiu-lhe um olhar avaliativo. — Entende, não é? A maioria dos soldados preferem não fazê-lo. — Em tom mais alegre acrescentou: - Nosso destino é essa casa da esquina. Os aluguéis são baixos em Bruxelas, por isso pudemos agarrar uma casa com um simpático jardim para as crianças, bastante espaço para estábulo e inclusive um carro, por um preço ridiculamente baixo. A casa grande e bonita estava rodeada por um muro. Michael se adiantou a lhe abrir a porta e logo fez um gesto a seus criados, que cavalgavam a passo atrás deles. Seu jovem ordenança, Bradley, tinha os olhos arregalados olhando Catherine. Michael não podia menos que compreendê-lo perfeitamente já que ele se sentia igual. Sem fazer caso da expressão embevecida do menino, Cat herine explicou tranqüilamente a disposição da casa e logo fez um gesto aos dois homens para que fossem ao estábulo que estava na parte de trás. Desaparecido todo rastro da vulnerabilidade que tinha revelado antes, voltava a ser a bem organizada esposa de um capitão do exército. Quando conduzia Michael ao interior da casa, desciam correndo três crianças e dois cães, em uma correria de pés pequenos mas ruidosos. — terminamos nossas lições, mamãe — disse uma alegre voz de soprano, — podemos ir brincar no jardim? Enquanto as crianças e um cão desengonçado giravam em torno de Catherine, o outro, um cão de manchas irregulares e raça indefinida, começou latir a Michael. — Silêncio, por favor — disse Catherine reprimindo a risada, — ou vamos enviar o comandante Kenyon a procurar outro alojamento— Clancy, para de latir. A opinião de Michael se elevou ainda mais ao ver que não só as crianças, mas também o cão ficaram bruscamente em silêncio. Catherine rodeou com um braço à menina mais alta, que aparentava ter uns dez anos. — Esta é minha filha Amy. Amy, comandante lorde Michael Kenyon. Se alojará aqui. — Senhorita Melbourne — saudou ele inclinando-se muito sério. — Um prazer, comandante Kenyon — disse a garota fazendo uma graciosa reverência. Tinha os extraordinários olhos verde mar de sua mãe e o cabelo escuro. — E estes são a senhorita Molly Mowbry — continuou Catherine— e o senhor James Mowbry. As duas crianças eram ruivas e tinham expressões animadas. Molly teria uns oito ou nove anos e seu irmão uns dois anos menos. Igual a Amy, tinham maneiras impecáveis. — você é um lorde? — perguntou Molly depois da reverência. — Só é um título de cortesia — respondeu ele. — Meu pai é duque, mas eu não serei um verdadeiro lorde, já que tenho um irmão mais velho. — Ah. — Molly digeriu isso. — O capitão Wilding está nos ensinando a desenhar. Sabe você algo útil? 14


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— Não faça essas perguntas —sussurrou Amy lhe dando uma cotovelada. — fui descortês? — perguntou Molly abrindo muito seus grandes olhos castanhos. — Não — sorriu Michael, — só que parece que não tenho nenhuma habilidade interessante. — Não? — disse a menina decepcionada. Michael tentou pensar o que poderia ser de interesse para uma menina. Certamente não as estratégias de mineiro nem de investidor. — Bom, sei dizer quando se aproxima uma tormenta, mas não creio que possa ensinar isso a ninguém. — Mas poderia tentar — repôs ela entusiasmada. — O comandante precisa instalar-se — interveio Catherine. — Vocês três vão para fora e levem Clancy e Luis o Preguiçoso. — Luis o Preguiçoso? — repetiu Michael confundido enquanto as crianças saíam obedientes. — É o cão de caça comprido e entorpecido — disse uma voz do alto da escada. — Dorme a maior parte do tempo. Esse é seu único talento. Michael levantou a vista e viu uma ruiva bonita e miúda que vinha descendo a escada. — Sou Anne Mowbry — disse ela sorrindo. Depois das apresentações, estavam falando a uns minutos e bastou para que ela dissesse com franqueza: — Perdoa, por favor. Novamente estou em modalidade família e na fase em que a única coisa que desejo fazer é dormir. Michael achou graça de sua franqueza. Era uma mulher atraente, simpática e amistosa; e, graças a Deus, não o fazia perder a cabeça como Catherine. Depois que Anne partiu, Catherine começou a subir a escada. — Seu quarto é aqui em cima, Michael. Conduziu-o pelo corredor até um quarto ensolarado que dava à rua lateral. — O quarto de Kenneth é o da frente. Já há lençóis limpo na cama, porque sabíamos que se ocuparia logo. Voltou-se a olhá-lo. O movimento a pôs em meio a luz do sol que entrava pela janela. Assim iluminada parecia uma deusa, muito linda para ser da terra. Mas também tinha uma simpática capacidade de gerar paz e felicidade a seu redor que lhe recordou Clare. Atrás dela estava a cama. Teve a fugaz e louca fantasia de dar um passo, agarrá-la em seus braços e jogá-la sobre o colchão. Beijaria esses lábios brandos, exploraria os tesouros ocultos de seu corpo. Em seus braços descobriria o que esteve desejando... Seus olhos se encontraram e entre eles houve um estranho momento de conhecimento. Ela sabia que ele a admirava; mas embora certamente estivesse acostumada à admiração masculina, desceu a vista e se concentrou em tirar as luvas. — Se precisar de algo, simplesmente pede a Anne, a mim ou a Rosemarie, a chefe do serviço. Ele se obrigou a olhar o anel de ouro que brilhava em sua mão esquerda. Estava casada; era intocável. A esposa de um oficial irmão... tinha que fazê-la sair de seu quarto imediatamente. — Seguro que estarei muito cômodo. Não estarei aqui para o jantar desta noite, mas espero conhecer os outros depois. — Depois enviarei uma criada com a chave da casa — disse ela sem olhá-lo. Dito isso desapareceu no corredor. Ele fechou cuidadosamente a porta, deixou-se cair na poltrona e esfregou as têmporas. Depois do desastre de Caroline, tinha jurado que jamais, em nenhuma circunstâncias, voltaria a tocar outra mulher casada. Mas Catherine Melbourne poderia ter sido designada pelo demônio para tentá-lo. 15


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O claro egotismo dessa idéia o fez sorrir. Se havia uma lição em seu encontro com Catherine, era uma recriminação por sua presunção. Havia se sentido muito seguro de que a idade e a experiência o protegeriam das loucuras do amor. Não era para ele a idiotice de ficar embevecido diante de um rosto bonito. Evidentemente tinha sido muito estúpido acreditar-se imune. Mas embora não lhe fosse possível controlar sua reação diante de Catherine, sim podia controlar seu comportamento, e o faria. Não diria nenhuma palavra, não faria nenhum gesto que pudesse se interpretado mal. Comportaria-se com ela como se comportava com Clare. Não, assim não; não poderia haver beijos nem abraços afetuosos entre ele e Catherine. Esse alojamento não podia durar mais de algumas semanas, e certamente se dominaria durante esse tempo. Afinal, no dia seguinte pela tarde estaria muito ocupado para estar apaixonado. Mas ficou uma sensação de desassossego. Levantou-se e foi olhar pela janela. Todos os soldados têm uma veia de superstição, uma crença no não visto. Talvez a linda Catherine fosse uma prova. Tinha acreditado fazer as pazes com o passado, mas talvez algum juiz divino tivesse decretado que se enfrentasse com a mesma situação que lhe tinha produzido aflição antes e que desta vez dominasse seus impulsos desonrosos. Uma coisa tinha decidido implacavelmente: não voltaria a cometer o mesmo erro que tinha cometido antes. CAPÍTULO 4 Catherine caminhou lentamente pelo corredor sem ver nada. Depois de todos os anos passados entre soldados, deveria estar acostumada ao feito de que quase todos os h omens eram bonitos com uniforme. Sabia de jovenzinhas sensíveis que desmaiavam de admiração ao ver Colin vestido com todos os seus ornamentos militares. Inclusive assim, o comandante Kenyon tinha alguma coisa especialmente atraente. O uniforme verde escuro dos fuzileiros era mais austero que o dos outros regimentos; entretanto, fazia um maravilhoso jogo com seus olhos, que eram de um matiz de verde de verdade. O uniforme também complementava a largura de seus ombros, seus cabelos castanhos e seu corpo magro e potente... Mas era algo mais que simplesmente de aparência agradável; como Wellington, tinha o tipo de presença irresistível que lhe permitia dominar uma sala sem dizer uma palavra. Suspeitava que essa qualidade provinha de uma segurança em si mesmo muito profundamente arraigada. Embora tivesse gostado de falar com ele, achava-o inquietantemente perspicaz. Deveria preocupar-se de que o comandante Kenyon não tivesse nenhuma oportunidade de ver sob a lustrosa superfície que tanto esforço lhe havia custado aperfeiçoar. Era estranho que pensasse nele de um modo tão formal. Normalmente preferia tratar com os oficiais que a rodeavam. Certamente seus instintos lhe queriam dizer que não se permitisse ficar muito intima. Por sorte era uma perita em manter os homens a uma distância prudente. Movendo a cabeça se dirigiu a seu quarto a remendar a roupa que enchia uma cesta. Não há nada como cerzir para descer à terra. Catherine estava a ponto de descer à cozinha para ver como ia o jantar quando entrou seu marido. — Há vários cavalos novos no estábulo — comentou, tirando o casco negro de pele e atirando-o na cama. — E bons cavalos também. Temos um novo hospede? Ela assentiu e deu um ponto pequeno e preciso. — O comandante lorde Michael Kenyon, dos fuzileiros. Retirou-se do exército no ano 16


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passado, mas a fuga de Napoleão o persuadiu a voltar. Pertence ao pessoal diretor do duque, ao menos no momento. Colín elevou as sobrancelhas. — Um dos oficiais de alto berço de que gosta velho Hóquei porque sabem dançar tão bem como combatem. — tirou o casaco e a camisa. — Poderia ser útil conhecê-lo. Agiu como fosse se derreter por você? Ela desceu a vista e cortou um fio com os dentes, desejando que Colín não fosse tão descarado em seus interesses próprios. Era certo que uma esposa at raente era uma vantagem para um oficial, mas detestava que a apressasse a paquerar com seus superiores. A primeira vez que o fez ela resistiu, mas ele se apressou a lhe fazer ver que era o dever de uma esposa promover a profissão de seu marido. A implicação tácita era que ela era uma esposa insatisfatória em outros aspectos. Depois, fazia o que ele desejava. Embora lorde Michael tenha admirado visivelmente sua aparência, resistia a expô-lo às especulações de Colín. — O comandante Kenyon não mostrou o menor indício de estar embevecido por meus infames encantos — disse em tom indiferente. — Não sei nada de seus dotes de bailarino, mas participou da maioria das batalhas importantes na Península. — Dá a impressão de que é uma boa aquisição para a casa. Se mostre encantada com ele; já me toca uma ascensão a comandante, e Kenyon deve ter influência com o duque. — Sua promoção chegará logo — suspirou ela. — Nos próximos meses haverá amplas oportunidades para a glória. — Isso espero, certamente. — Começou a vestir o uniforme de gala e de repente franziu o cenho. — Kenyon... o sobrenome me soa. — Estalou os dedos. — Agora recordo. Depois da batalha da Barossa fez cunhar uma medalha comemorativa para os homens que comandava. Disse que tinham feito um trabalho sobressalente e mereciam essa honra. — pôs-se a rir. — Imagina fazer isso por uma companhia de soldados bêbados? — Creio que tem razão — disse Catherine olhando-o com frieza. — A valentia excepcional deve celebrar-se. Os fuzileiros são os melhores soldados do exército, e parte do motivo é que os oficiais se animam a conhecer e respeitar seus homens. — Os soldados rasos não são como nós. Provavelmente seus preciosos soldados venderam as medalhas para comprar bebida. — Colín passou o pente por seus cabelos castanho claro. — Vou jantar com uns amigos. Provavelmente ficarei até muito tarde, assim que esta noite não voltarei. Ela pensou com indiferença quem seria a mulher. As damas de Bruxelas eram muito hospitaleiras com os oficiais aliados que tinham vindo salvá-las de ter que suportar novamente o jugo do imperador. Levantou-se e recolheu a camisa e a roupa interior para a cesta da lavanderia. — Que tenha uma noite agradável. — Terei — respondeu ele alegremente. Ela não duvidou. Michael jantou com amigos do exército que estavam destinados na área. Era agradável vêlos, embora o pusesse bastante nervoso o fato de que aparentemente não podia manter-se afastado do exército. Como era de esperar, a conversação se centrou na situação militar. Embora oficialmente ainda houvesse paz, ninguém duvidava de que tão logo Bonaparte consolidasse sua posição em Paris, partiria contra os aliados. Voltou tarde para seu novo alojamento e entrou silenciosamente. No vestíbulo e no corredor de cima tinham deixado velas acesas. Certamente Catherine e Anne dirigiam uma boa pensão. 17


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Sob a porta do quarto da frente aparecia uma fresta de luz, de modo que bateu ali em lugar de entrar em seu quarto. A conhecida voz de barítono de Kenneth Wilding lhe disse que entrasse. Entrou e encontrou seu amigo ocupa do em um caderno de desenho. Kenneth era caricaturista e projetista de primeira classe, arte que lhe tinha servido em seu trabalho de oficial de reconhecimento na Espanha. Kenneth abriu os olhos muito grandes ao levantar a vista de seu desenho. - Bom Deus. De onde saiu? — Não lhe disseram nossas formosas caseiras que agora ocupo o quarto da frente? — perguntou Michael rindo. — Não. Cheguei recentemente e todo mundo já tinha ido à cama. — levantou-se e lhe estreitou a mão. — Mas me alegra vê-lo, maldito seja. Moreno, de constituição larga e feições marcadas, Kenneth Wilding tinha mais aspecto de operário que de oficial e cavalheiro. Era um dos estranhos oficiais em ascensão desde soldado raso, honra geralmente reservada para os atos de valentia suicida. Quando ainda era sargento, tinha salvado Michael de dificuldades quando era um subalterno muito novato em seu primeiro posto de comando. A amizade tinha nascido a partir do respeito mútuo. Michael observou atentamente o rosto de seu amigo enquanto se estreitavam as mãos, e se alegrou de ver que dela tinha desaparecido parte da terrível tensão deixada pela campanha na Península. — Tenho um pouco de uísque em meu quarto. Trago-o? — Não bebi nem um gole desse raticida desde que saí da Espanha — disse Kenneth com um brilho de humor em seus olhos cinzas. — Sinto muita saudade. O uísque faz o conhaque parecer excessivamente civilizado. Michael foi procurar a garrafa e quase tropeçou com Luis o Preguiçoso, que estava deitado diante de sua porta. Quando voltou para o quarto de Kenneth, o cão o seguiu, e deitou de forma que a mandíbula ficasse repousando sobre sua bota. Olhou-o divertido. — Esta besta acolhe assim a todos os recém chegados, ou simplesmente eu tenho má sorte? Kenneth tirou dois copos e serviu um pouco de uísque em cada um. — Se considere bento. Tendo Luis de guarda, qualquer possível atacante vai morrer de ri r. Depois de conversar um momento trocando notícias, Michael perguntou: — Catherine e Anne são reais ou são produtos de minha imaginação febril? — São incríveis, não é? Tive a sorte de compartilhar um castelo com elas em Toulouse. Quando soube que estavam em Bruxelas vim de joelhos perguntar se havia um quarto para um fuzileiro. São peritas na arte de manter alojados, bem alimentados e felizes os homens. — Como são seus afortunados maridos? — perguntou Michael, sabendo que não devia parecer tão interessado. Kenneth bebeu um bom gole de uísque. — Você gostará de Charles Mowbry. É calado, mas muito capaz, e tem um gracioso senso de humor. — E Melbourne? — Diante da vacilação de seu amigo, comentou— : Há algo detestável em seu silêncio. Kenneth olhou atentamente seu copo de uísque. — Não conheço bem Melbourne. É um tosco oficial de cavalaria até a medula. Já conhece o tipo, não lhe falta inteligência, mas nã o vê nenhum motivo para usar sua mente. De qualquer modo, é um bom oficial, pelo que ouvi. Bastante intrépido. — Na cavalaria é comum a valentia. É o julgamento que é estranho. É digno da admirável Catherine? 18


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— Não estou em posição de dizê-lo. — Kenneth se inclinou a coçar as longas orelhas caídas de Luis. — Evidentemente ela pensa que sim. Na Espanha, ganhou o apelido da Santa Catherine, tanto devido a sua virtude como pelo trabalho de enfermaria que fazia. A metade dos homens que conhece se apaixonam por ela, mas ela jamais olhou ninguém que não seja seu marido. Isso pôs Michael em seu lugar; só era mais um na multidão. De qualquer forma lhe alegrou saber que era tão boa quanto linda. Em outro tempo não tinha acreditado que existissem essas mulheres. Teria gostado de saber o que guardava Kenneth, mas já tinha feito suficientes pergunta. Apanhou o caderno de desenho de seu amigo na mesa. — Posso? — Se quiser. Michael sorriu ao ver a caricatura na qual Kenneth esteve trabalhando. — Engenhoso o modo de desenhar Bonaparte como uma gárgula lasciva. Deveria vendê-la a uma imprensa para que a reproduzam. Kenneth descartou a sugestão com um dar de ombros. Sempre repelia os elogios dizendo que seu talento não era outra coisa que uma manha sem importância para o desenho. Michael passou as páginas. Depois de vários estudos arquitetônicos de uma casa parlamentar com excelentes ornamentos barrocos, encontrou um desenho de Amy Melbourne com as crianças Mowbry brincando. Com umas poucas linhas rápidas, Kenneth tinha capta do os fluidos movimentos de uma brincadeira de corrida, mais o caráter de cada criança. Jamais deixava de lhe surpreender que as mãos grandes de seu amigo pudessem desenhar com tal sutileza e elegância. Este é um bom desenho das crianças — comentou. Ao virar a página, acrescentou— : A primeira coisa que me disse Molly foi que lhes estava ensinando a desenhar. — As duas garotas são boas alunas — disse Kenneth sorrindo. — A Jamie não interessa nada que não tenha quatro patas, crinas e cauda. Depois de mais desenhos das crianças e um de Anne Mowbry, virou a página e se encontrou olhando Catherine Melbourne. O coração lhe oprimiu diante de sua imagem, de pé em uma praia rochosa, com expressão de outro mundo. O ar marinho lhe desdobrava os cabelos como uma bandeira e lhe moldava a túnica clássica nas curvas de sua esplêndida figura. Contemplou o desenho com avidez, de uma maneira que teria sido grosseira para a mulher real. Tentando parecer indiferente, comentou: — Bom retrato de Catherine. Representa aqui uma deusa grega ou talvez a legendária sereia cujas canções seduziam os homens para sua perdição? — A sereia — respondeu Kenneth. Franziu o cenho. — Mas esse não é um bom retrato. Seus traços são tão regulares que é difícil de desenhar. Além disso, em seus olhos há uma expressão atormentada que não consegui captar. Michael olhou o desenho com mais atenção. — Na realidade sim captou algo disso. O que poderia atormentar uma mulher linda? — Não tenho a menor idéia. Apesar de sua naturalidade no trato, Catherine não revela muito de si mesma. Certamente havia algo que seu amigo não queria lhe dizer, justamente pelo bom motivo de que a vida privada de Catherine Melbourne não era assunto dele. De qualquer modo, ao virar a página, disse em tom despreocupado: — Se alguma vez fizer um desenho que não queira, eu gostaria de tirá-lo de suas mãos. Kenneth lhe dirigiu um olhar penetrante, mas se limitou a dizer: — Fica com esse se quiser. Como te disse, não estou satisfeito com ele. 19


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Michael tirou a folha e continuou passando as páginas do caderno. Era um condenado imbecil por pedir o retrato de uma mulher que jamais formaria parte de sua vida. Mas quando estivesse velho e grisalho, se vivesse até então, gostaria de recordar seu rosto e o que o tinha feito sentir. Wellington tinha razão ao dizer que a situação era caótica. Tão logo apareceu Michael no quartel general à manhã seguinte, puseram-lhe diante uma montanha de trabalho referente a aprovisionamento e equipamento. Como observou astutamente o duque, o comandante Kenyon talvez não fosse um intendente, mas ao menos sabia o que necessitavam os combatentes. O trabalho exigia concentração total, e ao terminar o dia, sua intensa reação diante de Catherine Melbourne não era mais que uma lembrança imprecisa. Dirigiu-se à casa da Rue de La Reine pensando que seria agradável voltar a vê-la. Era uma mulher linda e encantadora, mas não havia nenhum motivo para comportar-se como um jovenzinho louco de amor. Um segundo encontro com ela o curaria dessa incipiente obsessão. Catherine lhe havia dito que o costume da casa era reunir-se para tomar xerez antes do jantar. Depois de trocar-se, desceu ao salão e se encontrou com Anne Mowbry e um cavalheiro. — Me alegro de que pudesse estar aqui para jantar esta noite, Michael —disse Anne, girando a cabeça e fazendo dançar seus cabelos castanho avermelhado. — Este é meu marido, o capitão Charles Mowbry. Mowbry o saudou com um amistoso aperto de mãos. — estive admirando seus cavalos, comandante Kenyon. Não me parece justo que esses cavalos de primeira classe se esbanjem em um oficial de infantaria. — Tem razão, sem dúvida — riu Michael, — mas tenho um amigo que é meio cigano e os cavalos que cria são maravilhosos. Tenho a sorte que me permitisse comprar dois. Normalmente renunciaria a eles só em troca de um filho primogênito. — Valeria a pena trocar Jamie por esse cavalo castanho, não lhe parece? — brincou Mowbry, olhando Anne. — Não me pergunte isso hoje — respondeu ela revirando os olhos. — depois de quão difícil esteve, estou disposta a considerar qualquer oferta. Todos riram e quase imediatamente estavam conversando como velhos amigos. De repente apareceu Catherine Melbourne na porta, com um reluzente vestido cor verde mar que realçava seus extraordinários olhos. — boa noite a todos — saudou alegremente. Michael a olhou e sua segurança de que era imune a sua beleza se despedaçou. O melhor que podia dizer era que a sensação de ser ferido no coração que experimentou já não era uma surpresa. Contemplou-a enquanto atravessava a sala em direção aos outros. Sua atração transcendia a beleza e a simpatia, embora essas duas coisas tinha em abundância. Kenneth, com seu olho de artista, tinha visto a atormentada vulnerabilidade que se ocultava sob a deslumbrante superfície, e nesse momento Michael também pôde vê-la. Catherine era a mais perigosa das criaturas, uma mulher que despertava tanta ternura como desejo. - Boa noite a saudou. Em menino tinha aprendido a ocultar suas emoções, e nesse momento invocou a toda uma vida de autodomínio para que ninguém, e muito menos ela, suspeitasse o que sentia. — Agradeço minha estrela da sorte ter encontrado este alojamento. É o único que tive em minha vida que inclui um cão para dormir em minha cama. Os olhos do Catherine brilharam peraltas. — Muito interessante. Se eu fosse o cão teria pensado duas vezes antes de incomodá-lo. É evidente que Luis é mais preparado. Já o conquistou. Enquanto Michael pensava se seria certo que parecesse tão intimo, os Mowbry começaram a 20


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contar histórias de Luis o Preguiçoso. Certamente era um cão que causava impressão em qualquer lugar que fosse. Kenneth não viria jantar, mas passados uns minutos apareceu Colin Melbourne. Era muito bonito, com a segurança que provém de uma total falta de dúvidas de si mesmo. Catherine se aproximou de seu marido e lhe agarrou o braço. Os dois formavam um belo casal. — Colín, quero que conheça nosso novo alojado. — Alegra-me lhe conhecer, lorde Michael — disse animadamente Colin depois das apresentações— Enquanto estivesse desocupado esse quarto corríamos o risco de que se alojasse alguém pouco conveniente. Outro chamado oficial em ascensão de soldado raso. Os Mowbry e Catherine se moveram incômodos, mas a Michael o alívio temperou a indignação. Tinha temido detestar Melbourne por ser o marido de Catherine, mas agora poderia detestá-lo por seu descarado esnobismo. Não era de estranhar que Kenneth se guardasse de falar dele. — Alguém como Kenneth Wilding, por exemplo? — perguntou com voz afiada. — Não foi minha intenção ofender ninguém — disse Melbourne, repentinamente cauteloso. — Para um homem de sua classe, Wilding faz bem imitando as maneiras de cavalheiro. De qualquer modo, nada pode substituir a boa criação. Você estará de acordo, sendo o filho do duque de Ashburton. — Não posso dizer que tenha visto uma forte relação entre a criação e o caráter — repôs Michael. — Afinal Kenneth teve o mau gosto de estudar em Harrow. A gente teria esperado algo melhor do único filho de lorde Kimball. — Apurou o que restava de seu xerez. — De qualquer forma, inclusive um velho etoniano1 como eu tem que reconhecer que os harrovianos 2 estão acostumados a oferecer aparência de cavalheiros. Melbourne ficou com a boca aberta. Posto que Harrow era tão prestigiosa como Eton, nem um tosco oficial de cavalaria podia deixar de notar o sarcasmo. Refazendo-se, Melbourne disse com encantadora tristeza: — Perdoem, acabo de me fazer de tolo, não é? Nunca falei muito com o Wilding, e cometi o engano de supor que não era mais que um sargento arrivista. Fez bem, embora seu encanto não conseguisse superar sua grosseria. — Provavelmente — respondeu Michael, — o travesso senso de humor de Kenneth o induziu a manter seus prejuízos. — Se na realidade é o honorável Kenneth Wilding — atravessou Melbourne carrancudo, — por que se alistou como soldado raso? Michael sabia por que, mas isso não era assunto de Melbourne. —Kenneth gosta de desafio — se limitou a dizer. — Foi meu sargento quando eu era um ajudante novato. Para mim foi uma sorte o ter. Depois que ele e seu batalhão capturaram um grupo de franceses que os triplicavam em número, recomendei-o para uma promoção. — Deixou sua taça na mesa com um clique audível. — Na realidade me surpreendeu que o exército tivesse a sensatez de fazê-lo oficial. Esse comentário provocou uma animada conversação sobre a idiotice dos altos comandos do exército, tema que manteve ocupado o grupo até bem avançado o jantar. Foi um jantar agradável, com excelente comida e boa conversação. Nem sequer Colin Melbourne era má companhia, embora evidentemente jamais em sua vida tivesse tido um pensamento original. Mas quando acabou o jantar, Michael não conseguiu recordar nenhum só dos bocados que 1 2

Etoniano = estudantes de Eton Harrovianos = estudantes de Harrow

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tinha comido. O que recordava era o elegante perfil de Catherine, sua risada sonora, a cremosa textura de sua pele. Resolveu jantar fora sempre que o fosse possível. Capítulo 5 Já era bem passada a meia-noite quando Michael abriu a porta da cozinha, e se deteve em seco. — Perdão, não esperava encontrar ninguém aqui. Catherine Melbourne levantou a vista do fogão, onde estava alimentando o fogo. — Não há nenhum motivo para que o esperasse. Todos os cidadãos cordatos estão na cama. — levantou-se e esfregou as mãos para limpar-se O duque deve tê-lo ocupado. Está aqui uma semana e creio que só o vi uma vez. Michael pensou que talvez fosse mais prudente retirar-se, mas isso seria uma grosseria imperdoável. Entrou. — A maioria das noites tenho feito presença nas festas oferecidas pelos elegantes ingleses que vieram a Bruxelas em busca de emoções. — Supunha-o. Wellington sempre gostou que seus oficiais superiores atirem-se às funções sociais importantes, e com maior razão agora, imagino, que não quer que os civis se alarmem muito pela situação militar. — Sorriu travessa. — Seguro que é muito solicitado, para que acrescente seu brilho aristocrático a todos os bailes e reuniões sociais. — Temo que sim — disse ele com uma careta. — Mas por que não vi você? Wellington também adora a companhia de damas atraentes, por isso imagino que você, Anne e seus maridos estarão na lista de convidados principais. — Normalmente nos convidam, mas Colin está acostumado a... estar ocupado em outras coisas. — Agarrou uma colher de madeira e removeu uma panela que fervia em fogo lento sobre o queimador. — Quando Anne e Charles assistem estou acostumada a ir com eles, mas ultimamente Anne está se sentido muito cansada para a vida social, de modo que não sai. Além das festas do duque, é obvio. Todo mundo vai a elas. Michael vacilou um instante antes de lhe fazer a oferta que com qualquer outra mulher teria sido automática e sem complicações. — Se precisar de acompanhante, seria uma honra para mim fazer esse serviço. Ela levantou rapidamente a cabeça e olhou atentamente sua expressão. — Obrigado — disse, aparentemente, satisfeita com que viu. — Há algumas funções às quais eu gostaria de assistir, mas prefiro não ir sozinha. — Estupendo. Diga a minha ordenança Bradley a que funções deseja assistir e estarei a sua disposição. — cobriu a boca com a mão para tampar um bocejo. — Mas hoje fui a cavalo até Gante e voltei. Não comi nada no café da manhã, assim decidi assaltar a despensa. Também você veio em busca de comida? Ela se endireitou e jogou para trás uma longa trança. Sobre o esbelto pescoço se enroscavam jubas de lustroso cabelo escuro. — Não podia dormir. Desci para esquentar um pouco de leite, mas esta sopa cheirava tão bem que mudei de idéia. Por cima do roupão de algodão azul aparecia o lado claro de uma camisola de dormir. Embora estes objetos a cobriam mais completamente que um vestido normal, o efeito era inquietantemente íntimo. Pior ainda, a cozinha só estava iluminada por duas velas e o fogo, e a penumbra lhe dava mais aspecto de quarto... 22


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Michael desviou a vista. — Há algum regulamento especial para os roubos à despensa a meia-noite? — Na verdade, não, qualquer coisa que encontre é prisioneira justa. Geralmente há sopa fervendo suave no queimador. Esta é uma bastante boa de frango com verduras. — Indicou-lhe a despensa. — Também há frios, queijos e pão.Se sirva enquanto preparo a mesa. — Não deveria me servir. — por que não? — Foi a um armário e tirou pesados pratos brancos dos criados. — Sei onde estão as coisas nesta cozinha e não tive um dia tão árduo como você. — Pensei que criar filhos fosse o trabalho mais árduo que existe. Ela elevou as sobrancelhas. — supõe-se que os homens não sabem isso. — Uma vez uma mulher se desmoronou e me revelou o segredo. — Imagino que as mulheres estão sempre lhe contando segredos — disse ela olhando-o pensativa. Pensando que era melhor manter impessoal a conversação, Michael apanhou a vela e entrou na despensa. — Os queijos locais são fabulosos, não é? E os pães também. — Os mantimentos são tão bons que é fácil entender por que os franceses acreditam que este país deveria pertencer a França. Quer vinho? Aqui há uma jarra de vinho ordinário muito decente. — Fantástico, embora lhe advirto que bebo dois copos e caio dormido sobre a mesa. — Se isso acontecer o cubro com uma manta — disse ela muito serena. — Esta é uma casa muito prática. Quando Michael saiu da despensa, a mesa de pinheiro já estava posta e as tigelas fumegantes estavam em seus lugares. Kenneth tinha razão: Catherine era uma perita em ter felizes e bem alimentados os homens; seria um prêmio excepcional até no caso de que não fosse linda. Quando começou a cortar o queijo ouviu um gemido canino. Olhou debaixo da mesa e encontrou com Luis que o olhava com olhos tristes. Sorriu e lhe atirou um pedaço de queijo; o cão o agarrou no vôo. — Para ser uma besta chamada Luis o Preguiçoso é extraordinariamente bom para aparecer onde seja que haja pessoas ou comida. — É de uma velha raça de caçadores franceses chamada basset, porque são muito baixos. Igual aos soldados franceses na Península, é um farejador de primeira classe. Ele a gata da cozinha estão sempre competindo pelos melhores bocados. Um educado miau anunciou que uma roliça gata listrada acabava de materializar-se junto à cadeira de Michael; em interesse da justiça, deu-lhe uma fatia de presunto, antes de aplicar-se a sua comida. Durante os minutos seguintes reinou o silêncio. Mas face à at ividade de comer e à vergonhosa quantidade de comida, Michael era muito consciente de Catherine ao outro lado da mesa. Inclusive achava erótico o movimento de sua garganta ao engolir. Entretanto, paradoxalmente, sua presença era tranqüila. Caroline, sua amante, tinha sido muitas coisas, mas jamais tranqüila. — Quer mais sopa? — perguntou Catherine ao ver a tigela vazia. — Por favor. Ela agarrou a tigela e se dirigiu ao fogão, que era de tamanho suficiente para assar um bezerro. Quando se inclinou sobre a panela seus exuberantes seios oscilaram sob o tecido suave da bata. Michael ficou rígido e não conseguiu afastar os olhos. Luis se levantou e a seguiu esperançado. 23


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— Saia, cão —disse ela com firmeza enquanto servia sopa na tigela. Sem fazer caso da ordem, Luis gemeu e se levantou sobre as patas traseiras, golpeando a cabeça contra a tigela. Esta se inclinou e a sopa caiu sobre o fogão. — Faz-lhe falta um bom repasse em maneiras, Luis. O cão desceu a cabeça com uma cômica atitude de culpa. Michael sorria olhando a cena. Estava desfrutando mais que em qualquer das brilhantes funções sociais da semana, e conseguia manter controlada sua atração por Catherine. Catherine encheu de novo a tigela e se voltou para ele. Completamente atento a o seu rosto, levou-lhe um momento ver as chamas que lhe subiam pelo lado esquerdo do roupão. O lado do roupão deve ter tocado as brasas acesas quando retrocedeu. O coração lhe deu um baque de terror; levantou-se de um salto e deu a volta à mesa. — Catherine! Seu roupão está ardendo. Ela se olhou e abafou uma exclamação de pânico. Caiu a tigela no chão; Luis saltou para um lado, mas ela não se moveu; paralisada, olhava as chamas alaranjadas que estavam consumindo com crescente avidez o magro tecido. Nos segundos que demorou Michael em atravessar a cozinha, o fogo já chegava quase ao cotovelo. De um puxão soltou o cinturão e tirou o roupão puxando para trás pelos ombros; o movimento quase a jogou no chão. Segurando-a com a mão esquerda, com a direita o lançou ardendo no fogão. As faíscas saltaram até a chaminé. Sem fazer caso de seus nódulos chamuscados, Michael a afastou do fogão e lhe virou o rosto para ele. — Encontra-se bem? Pergunta estúpida. Catherine estava emocionada, com o rosto tão branco como a camisola. Temendo que desmaiasse, estreitou-a em seus braços; o coração lhe pulsava tão forte que quase o sentia contra suas costelas, e parecia não notar sua presença. — Está a salvo, Catherine —disse energicamente. — Está a salvo. Ela escondeu o rosto em seu ombro e começou a soluçar, enquanto ele a segurava abraçada e lhe sussurrava palavras de consolo. A sedosa trança escura deslizou sedutoramente sobre o dorso de sua mão; sentindo-se culpado, Michael era plenamente consciente de cada centímetro daquele corpo apertado contra o seu, e do perfume de água de rosas, e da pressão de seus seios contra seu peito. Estava tão perto dela como jamais estaria, e entretanto não podia saboreá-la porque era impossível sentir prazer em sua proximidade se ela estava angustiada. As lágrimas foram acabando-se paulatinamente, mas ela continuava assustada e sua respiração era rápida e superficial. Brandamente a guiou até uma poltrona e a fez sentar. Ela enterrou a cabeça entre suas mãos, deixando descoberta a frágil curva de sua nuca. Enquanto tirava o casaco, Michael viu que os mamilos estavam tenuemente visíveis através da musselina branca da camisola. Essa sedutora visão o fez começar a excitar-se. Deus santo, que tipo de animal era para sentir desejos por uma mulher que estava tremula de medo? Por decência e para abrigá-la, pôs-lhe o grosso casaco de lã sobre os ombros. O casaco era muito grande, de modo que cruzou pela frente, com o maior cuidado de não lhe roçar os seios com os dedos. Ela o olhava muda, paralisada. Ajoelhou-se diante dela e lhe agarrou as mãos. A cor verde escura do casaco intensificava o matiz verde mar de seus olhos. — Quer que vá procurar seu marido? — Colin não está em casa esta noite — disse ela com voz tremula. — Quer que desperte Anne? — Na verdade estou bem — tentou sorrir. — Não há nenhuma necessidade de incomodar 24


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ninguém mais. — Mentirosa. — Começou a lhe mover os dedos frios. — Nunca vi alguém que estivesse menos bem. — Sou uma vergonha para o exército, não é? — disse ela com risada chorosa. Empunhou as mãos. — Normalmente sou bastante sensata, mas... bom, meus pais morreram em um incêndio. Ele estremeceu. Isso explicava sua estranha reação diante do acidente. — Sinto muito. Quando ocorreu isso? — Eu tinha dezesseis anos — respondeu vacilante. — O regimento de meu pai estava posicionado em Birmingham. Alugamos uma encantadora casa de campo que esteve coberta de rosas todo o verão. Eu pensava que seria maravilhoso viver ali para sempre. Chegou o inverno e uma noite se acendeu a chaminé; despertei com o cheiro de fumaça; gritei para despertar meus pais, mas o fogo já estava descontrolado. Meu quarto estava no andar de baixo e consegui escapar pela janela. — Fechou os olhos e estremeceu. — Meus pais dormiam em cima; continuei gritando até que a metade do povoado estava ali, mas meus pais... não despertaram nunca. Michael lhe apertou as mãos e ficou de pé. — Há brandy no aparador da sala de jantar? — Sim, mas na realidade não é necessário. — Estará bem enquanto vou procurar a garrafa? — perguntou ele sem fazer caso dessa afirmação. — Pode estar seguro de que não vou a nenhuma parte — disse ela com um indício de humor. Ele agarrou à gata de debaixo da mesa e a colocou em seu regaço. — Toma, há poucas coisas mais consoladoras que um gato ronronando. — Apanhou uma vela e saiu com passos largos e silenciosos. Catherine se apoiou no respaldo da poltrona, acariciando a suave pelagem felina. Foi bom que Michael lhe tivesse dado a gata, porque sua frágil paz mental desapareceu junto com ele. Só quando ele saiu caiu na conta do quão segura que a fazia se sentir. Desceu a vista e ao ver o lado chamuscado da camisola voltou a sentir pânico. Ajustou mais a jaqueta de Michael sobre os ombros; ainda tinha seu perfume corporal. Recordou que quando ele a colocou sobre os ombros, a ternura desse gesto quase a fez chorar de novo. Não havia se sentido tão cuidada desde que era menina. Asperamente se recordou que tinha escapado ilesa e que não havia nenhum motivo para ficar histérica. Sobre o braço da poltrona pendurava uma toalha; agarrou-a e assoou o nariz. Depois se concentrou em acalmar à nervosa gata. Quando Michael voltou a gata estava ronronando e ela tinha recuperado a aparência de tranqüilidade. — Bebe, necessita-o. Michael serviu brandy em dois copos, passou um a ela e se sentou na poltrona em frente. Tranqüilamente apoiou um braço no joelho levantado, mas dirigiu seu olhar vigilante ao rosto dela. — Obrigado. — Catherine sorveu um pouco de brandy e agradeceu o calor que lhe levava aos ossos. — Como não podíamos viver sem fogo tive que reprimir o medo que tinha. Não sabia quanto terror levava dentro de mim. Se não estivesse aqui, provavelmente teria ficado ali, imóvel como um coelho assustado enquanto me queimava. — Tem direito a seu medo — disse ele docemente. — Além da tragédia de seus pais, são muitas as mulheres que morreram ou ficaram terrivelmente lesadas em acidentes exatamente iguais ao seu. — Graças a você, isso não aconteceu. Reclinou-se na poltrona, acariciando o pescoço da gata com um dedo enquanto bebia. Era 25


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estranho que o mesmo fogo que a aterrorizasse fosse tão agradável nesse momento, formando reflexos avermelhados no cabelo de Michael. Quando o conheceu tinha achado inquietante sua boa aparência; tinha-lhe recordado uma espada bem afiada, qualidade que tinha vislumbrado em outros homens que eram guerreiros natos. Muito em breve tinha descoberto seu humor, mas tinha sido necessária uma quase catástrofe para reconhecer sua amabilidade. Só quando ele se levantou para servir mais brandy nos dois copos se deu conta de que tinha esvaziado o seu. Olhou o copo duvidosa. —vai me embebedar. — Talvez, mas com sorte vai dormir profundamente. Recordou os pesadelos que tinha tido depois da morte de seus pais e bebeu um gole comprido. Desejou falar de algo que não fosse penoso. — Charles Mowbry me disse que foi membro de um grupo chamado os Anjos Caídos. É um clube? — Não é mais que uma etiqueta tola que nos pregou a sociedade elegante, nós quatro que fomos amigos desde Eton — explicou ele com um gesto de desaprovação. — A causa foi que dois temos nomes de arcanjos e os outros dois, Lucien e Nicholas, puseram-se os sinistros apelidos Lúcifer e Diabo Nick. — Ao longo dos anos conheci muitos oficiais jovens — comentou ela sorrindo, — e pelo que observei, apostaria que vocês gostavam de ter reputações diabólicas. — Sim, claro — disse ele com olhos risonhos, — mas agora que sou um adulto respeitável eu não gosto de reconhecê-lo. — Continuam sendo amigos? — E muito. — Com expressão irônica acrescentou— : Clare, a esposa do Nicholas, diz que nos adotamos mutuamente porque nossas famílias eram menos que satisfatórias. Supondo que tem razão; geralmente tem. Esse comentário inspirou a Catherine a curiosidade por saber como seria sua família. Pensando bem, sempre que se falava de seus nobres familiares ele se mostrava lacônico, seco, quase vizinho da má educação. Mas não era difícil vê-lo como um anjo caído, bonito e perigoso. — Como são seus amigos? Ele sorriu. — Imagine um enorme e comprido muro que fecha o caminho até onde a gente pode ver, em ambas as direções. Se Nicholas chegasse a ele, daria de ombros e decidiria que na realidade não precisaria ir por ali. Rafe procuraria até localizar a quem quer que fosse o encarregado do muro e arrumaria para passar. Lucien encontraria algum modo furtivo de passar por debaixo ou por um lado sem ser visto. — E você? — Como um carneiro louco na primavera — sorriu tristemente, — arremeteria contra o muro golpeando-o com a cabeça até que caísse. — Bom traço para um soldado — riu ela. — Na realidade esta é minha terceira volta ao exército. Aos vinte e um anos comprei minha primeira comissão. Mas achei muito frustrante a situação militar e a vendi ao final de dois anos. Ela fez cálculos mentais do que lhe tinha contado a respeito de suas experiências em batalhas. — Deve ter comprado outra comissão depois, quando Wellington foi à Península. Ele assentiu. — Achei atraente saber que por fim estava se fazendo verdadeiro progresso contra Napoleão. — Sua expressão escureceu. — Além disso, tinha... outros motivos. 26


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Dolorosos, por sua expressão. — Assim vendeu sua comissão quando o imperador abdicou, e agora volt ou novamente. — Inclinou a cabeça. — por que os homens brigam? Olhou-a surpreso. — Já deveria saber a resposta, havendo passado toda sua vida entre soldados. — Pois não. — Bom, o exército e a armada são profissões honoráveis para cavalheiros, especialmente para filhos mais novos como eu que precisamos de alguma coisa para não nos colocar em problemas. — Sim, mas isso não explica por que muitos homens sentem prazer em alg o que é tão terrível. — Pensou nos hospitais de campanha em que tinha trabalhado e estremeceu. — A metade dos soldados que conheço estão ansiosos por outra oportunidade de ser destroçados. — Não há maior horror que a guerra — repôs ele agitando o brandy, pensativo. — E, entretanto ao mesmo tempo nunca se sente mais vivo. É de uma vez uma intensificação da vida e um escape dela. Isso pode se transformar em droga. — transformou-se para você? — Não, mas houve o perigo de que se transformasse. — Trocou sua expressão. — por que me pus a falar assim? Deve estar morta de aborrecimento. — Não, de maneira nenhuma. Ensinaste-me mais sobre a essência da guerra que o que aprendi em toda uma vida rodeada por soldados. — Suspirou. — Sua resposta explica por que sempre há mais homens ansiosos por lutar até ao risco de morrer. No silêncio que seguiu, Catherine apoiou a cabeça no respaldo alto da poltrona, contemplando ociosamente os traços de Michael iluminados pelo fogo. A verdade é que era extraordinariamente atraente, todo músculos finos, de felino selvagem. Podia ficar horas contemplando-o, memorizando as finas rugas nos cantos dos olhos, e o modo como sua camisa branca destacava a largura de seus ombros. Vendo seus longos dedos bronzeados acariciar as orelhas de Luis, perguntou-se como seria senti-los nela... Horrorizada se deu conta de que esse calor úmido que sentia nas pernas era desejo. Esqueceu-se de como era senti-lo. Felizmente não tinha uma natureza apaixonada. Até mesmo aos dezesseis anos, quando se acreditava apaixonada por Colin, seu bom senso controlava firmemente seu comportamento. Uma vez que o matrimônio a fizera ver que a paixão era uma armadilha perversa, jamais havia sentido a tentação de ceder diante dos homens que desejavam seduzi-la. Muito cedo tinha compreendido que sua aparência podia incitar aos homens a conduzir-se como idiotas, o qual não só era embaraçoso, mas também perigoso. Em duas ocasiões Colin desafiou em duelo os homens que a acossavam; felizmente estes apresentaram desculpas e não houve duelos, mas esses incidentes lhe fizeram ver que tinha que achar o modo de obrigar os homens a comportar-se. Aos dezenove anos já tinha aprendido o truque. Parte de seu método foi criar uma fama de virtude inquebrável, acompanhada de uma atitude fraternal e a ausência absoluta de paquera. Compreendendo que jamais poderiam ser amantes, os homens ou a deixavam em paz ou se transformavam em amigos ou protetores. Fazia muitos anos que nenhum homem lhe causava verdadeiros problemas, e Michael era muito cavalheiro para alterar isso. Desejando ouvir novamente sua voz, disse-lhe: — Disse-me que um de seus amigos dos anjos caídos se casou. Os outros também estão casados? — Lucien se casou na véspera do Natal passado. — Michael sorriu com carinho. — Sua esposa Kit é como uma gazela, pernas longas e olhos tímidos. Mas tem a mente rápida como um 27


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estoque e o valor de uma leoa. Não sei se Rafe vai se casar algum dia. Creio que prefere sua vida tal como está. — E você? Imediatamente lamentou ter falado. Só a quantidade de brandy que tinha bebido podia explicar que tivesse feito essa pergunta tão pessoal. Mas Michael respondeu imperturbável: — ia passar a primavera em Londres, com vistas a explorar o mercado casamenteiro, mas Napoleão jogou por terra meus planos. — Prejudicou os planos de muitas pessoas. — Haverá outras temporadas — disse ele dando de ombros. A idéia de Michael procurando esposa entre as mais radiantes beldades da sociedade lhe produziu uma estranha pontada de pesar. Tinha conhecido Colin pouco antes da morte de seus pais, e se casou com ele um mês depois do duplo funeral, acreditando que sua força e amor a apoiariam, sustentariam-na em sua aflição, mas não demorou muito tempo em dar-se conta de que seus sentimentos não eram profundos e que ela era mais forte q ue ele em muitos aspectos. Não tinha nenhum direito de queixar-se, mas havia vezes em que ansiava ter alguém em quem apoiar-se. Seu instinto lhe dizia que se tivesse se casado com um homem como Michael, teria um marido que compartilharia as cargas da vida, um homem que a sustentaria quando se sentia muito cansada para continuar. Consciente de que não devia pensar essas coisas, levantou -se e depositou brandamente à gata no meio do assento da poltrona. — Será melhor que vá para cama enquanto ainda sou capaz de subir a escada. Deu um passo, fraquejaram-lhe as pernas e começou a lhe dar voltas a cabeça. Imediatamente Michael estava ao seu lado para sustentá-la. Ela se apoiou em seu ombro até que lhe clareou a cabeça. — Perdoa, não tenho cabeça para o brandy. Ele a guiou para a escada segurando-a pelo cotovelo. — Sou eu que devo pedir perdão por corrompê-la com bebidas fortes. Seu contato a fez recordar o que havia sentido quando ele a teve entre seus braços. Como era possível que recordasse isso com tanta claridade quando nesse momento estava chorando desconsolada? — Tolices — disse, tentando lhe tirar a importância. — Me chamam Santa Catherine, sabe? Sou absolutamente incorruptível. Ele sorriu agradecido, e com uma faísca de humor em seus olhos verdes. Ao ver essa expressão de simpatia íntima Catherine sentiu que voltavam a lhe fraquejar as pernas. Com uma sensação de apreensão se deu conta de que nunca havia se sentido tão atraída por um homem, nem sequer quando tinha dezesseis anos e estava enamorada por Colin. Graças a Deus que Michael não tinha intenções impróprias com ela. Poderia admirar sua aparência, mas era um desses homens honoráveis aos quais não interessam as mulheres casadas. Supôs que quando se casasse seria também um marido fiel. Sua futura esposa seria uma mulher afortunada. Posto que ela e Michael nunca poderiam ser amantes, devia fazê-lo seu amigo. De longe isso seria melhor, porque a amizade é mais duradoura e dói menos que a paixão. Mas enquanto ele a acompanhava ao seu quarto, compreendeu que, se algum homem podia desencaminhá-la, esse era Michael. CAPÍTULO 6 À tarde seguinte Michael decidiu jantar em casa para ver como ia Catherine. Chegou quando 28


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já estavam no aperitivo. Anne Mowbry sorriu e lhe ofereceu sua mão quando entrou. — Não posso acreditar! Esta noite estão todos nossos valentes oficiais. Tinha começado a acreditar que o tinha imaginado, Michael. — Pensei que seria melhor fazer presença, para que não se esquecessem de minha existência e alugassem o quarto a outro. Ela riu e se voltou para Kenneth Wilding, com o qual esteve falando. Michael se aproximou de Catherine, que estava lhe servindo xerez, tão serena como sempre. — Algum mau efeito da noite passada? — perguntou em voz baixa ao receber a taça. — Uma dor de cabeça por meus excessos, mas nenhum pesadelo. — Olhou para os carvões acesos na lareira. — E sou capaz de olhar as chamas sem cair prisioneira do pânico. — Estupendo. Ia se afastar quando lhe disse: — Continua em pé a oferta de me acompanhar? Lady Trowbridge vai oferecer um programa musical e eu gostaria de assistir. Assegurou-me que o quarteto de cordas que contratou é extraordinário. — Será um prazer. Enquanto acertavam a hora, anunciaram o jantar. O mesmo transcorreu agradavelmente. Michael estava se acostumando ao doloroso desejo que sentia cada vez que estava perto de Catherine. Graças a Deus ela o considerava só um amigo. Se tivesse havido algum indício de interesse por sua parte, a situação seria dificílima; teria que procurar outro alojamento, embora isso significasse viver em uma lenheira. Depois do jantar teve que fazer presença em duas recepções, mas das duas partiu tão logo foi possível. Necessitava uma boa noite de sono; a noite anterior tinha sido uma tortura, pensando em Catherine. Cada vez que fechava os olhos via seus cândidos olhos verde mar, cheirava a íntima fragrância de água de rosas e de mulher em sua pele acetinada, sentia a sedutora pressão do corpo dela contra o seu. Finalmente tinha conseguido dormir, um sono desassossego, e só para sonhar que fazia amor em um mundo onde ela era livre e podiam estar juntos sem desonra. Ao despertar estava esgotado e deprimido. Por que demônios não podia obcecar-se por uma mulher que fosse elegível? Porque nunca em sua vida tinha feito nada da maneira fácil. Seu amigo L ucien lhe havia dito isso em várias ocasiões. Quando entrou na casa da Rue de La Reine, tudo era silêncio e quietude, embora alguns abajures dispersos a iluminavam tenuemente. Estava a ponto de subir a escada quando ouviu uma voz masculina. Acreditou que era de Kenneth e caminhou pelo corredor que dividia em duas a casa. Ao chegar à intercessão olhou para o corredor da esquerda; deteve-se em seco, sentindo-se como se lhe tivessem dado um murro no estômago. Na penumbra do extremo do corredor estava Colín Melbourne abraçando sua esposa, devorando-a com a boca e com a mão lhe sustentando a saia levantada. Catherine tinha as costas apoiada na parede e só lhe via o cabelo escuro e as dobras claras do vestido. Enquanto Michael os olhava paralisado. Colin desabotoou a calça e logo a penetrou. Ela gemeu de prazer. De repente Michael teve dificuldade para inspirar ar suficiente. Sem dúvida os Melbourne mereciam ser invejados por ter uma relação tão apaixonada depois de tantos anos de matrimônio, mas vê-los juntos lhe produzia náuseas. Graças a Deus estavam tão absortos em si mesmos que nenhum dos dois sentiu sua presença. Começava a voltar por onde tinha vindo quando ouviu um sorriso feminino: — Ah, mon capitain, mon beau Anglais... Parou em seco e se virou. Colin tinha a frente apoiada na parede, deixando descoberto o 29


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rosto de seu par. A mulher não era sua esposa, a não ser uma das criadas belgas, uma moça de cabelo moreno da mesma altura de Catherine. Tinha a cabeça arremessada para trás e a boca aberta, deixando ver uns dentes irregulares. As náuseas deram passo a uma onda de intensa ira. Como podia o asqueroso bastardo trair e humilhar assim sua esposa, sob o mesmo teto? Merecia um turno de açoites. Necessitou de todo seu autodomínio para dar meia volta e partir dali. Com o sangue fervendo nas têmporas, subiu a escada de dois em dois degraus. Tinha a intenção de ir a seu quarto, mas viu luz sob a porta de Kenneth. Bateu e entrou sem esperar a resposta. Seu amigo levantou a vista da carta que estava escrevendo. — O que aconteceu? Tem cara de querer assassinar alguém. — Assim me sinto. — Arrojou seu chapéu sobre a cama, e quase lhe rompeu a pluma. — Colin está lá em baixo no corredor oriental pegando uma das criadas. Será que não tem decência esse homem? — Não muita — respondeu calmamente Kenneth. — Dizem que é capaz de montar qualquer coisa com saias. Normalmente é bastante discreto, mas se uma empregada está disposta, e não vai dizer não, embora seja em sua própria casa. — Como pode? — grunhiu Michael. — Como pode um homem procurar em outra parte tendo uma mulher como Catherine? — Eu não pretenderia imaginar. Mas por que se escandaliza tanto? A sociedade está cheia de homens com a moral de um gato, e de mulheres que não são melhores. Michael passeou pelo quarto sabendo que Kenneth tinha razão, mas ainda furioso. —Catherine sabe como se comporta seu marido? — Surpreenderia-me se não soubesse. É uma mulher inteligente e conhece o mundo; neste caso, bastante melhor que você. Se pensar lhe dizer o que viu, não o faça. Não lhe agradecerá isso. — Supondo que tem razão — disse Michael a contra gosto. — Mas Catherine merece algo melhor que um caipira mulherengo e de olhar estreito. — Sejam quais forem suas faltas, Melbourne as acerta para ter satisfeita a sua mulher. Que tenha um regimento de rameiras não é seu assunto, Michael. — Franziu o cenho. — Talvez convenha que lhe repita isso: não é seu assunto. Michael foi à janela e contemplou a noite. Kenneth também tinha razão nisso. Ninguém é capaz de entender um matrimônio de fora, e ele não tinha nenhum direito de intrometer-se, nem que fosse por motivos bem intencionados. Só Deus sabia como suas boas intenções o tinham levado ao inferno antes. «Mas desta vez é diferente.» Diferente? Não seria simplesmente uma manifestação de seu perigoso talento para enganar a si mesmo? São Michael ao ataque, para matar todos os dragões errados. — Está casada, Michael — sussurrou Kenneth atrás dele. — Acredita que não sou consciente disso a todo momento? — exclamou com os lábios apertados. Fez várias respirações profundas e se voltou para seu amigo. — Não se preocupe, não vou lhe pôr nem um dedo em cima, nem a ele tampouco, se for por isso. Só gostaria, por seu bem, que seu marido fosse decente e respeitável, como Charles Mowbry. — Poderia ser que ela fosse o tipo de mulher boa que acha irresistível um homem mau — disse secamente Kenneth. — Nunca vi nela o menor indício de que lamente sua escolha de marido. — Há um atiçador em sua lareira — sorriu Michael sem humor. — Quer me golpear com ele na cabeça se por acaso ainda não captei a mensagem? — Vou me abster, a não ser que o veja ir atrás de Melbourne com sangue no olho. — Molhou 30


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a pluma no tinteiro e distraidamente desenhou uma diminuta doninha na margem da carta. — Como certo, falando de Melbourne, esteve incrivelmente educado comigo estes últimos dias. Michael se deixou cair em uma poltrona. — Culpa minha. Irritou-me tanto que contei de seu nobre berço. Perdoa. — Sim, vai ter que fazer algo com esse teu gênio — comentou Kenneth com os lábios apertados. — Pensei que o tinha dominado, mas Colin Melbourne é capaz de esmigalhar minhas boas intenções. — Ah, bom, é divertido vê-lo tentando vencer sua anterior grosseria com a esperança de que eu lhe seja útil algum dia. Pouco sabe que perda de tempo é isso. — tivestes notícia, você ou os outros oficiais de inteligência, do que pretende Napoleão? — perguntou Michael, desejoso de deixar de pensar em Catherine e seu marido. — O diabo sabe. Não ter permissão para pôr um pé em território francês é condenadamente limitador. Oxalá alguém declarasse a guerra e tudo se fizesse oficial. Têm algum bom rumor no quartel general? — O duque não comunica seus pensamentos a seus subordinados, mas não precisa ser um gênio para ver que há problemas por todo lado. — Franziu o cenho. — Os prussianos estão se pondo difíceis; o príncipe Blücher é sensato, mas a maior parte de seus oficiais desconfiam dos britânicos, por isso seu quartel general está a bons oitenta quilômetros de Bruxelas. Isso cria uma grave brecha entre os exércitos. — Brecha que o imperador vai se apressar a explorar se decidir invadir a Bélgica. — Exatamente. Minha opinião pessoal é que Napoleão vai partir para o norte muito em breve. São tantos os veteranos franceses que se agruparam para combater sob as águias imperiais, que provavelmente o exército de Bonaparte vai ser mais numeroso que o de Wellington e muitíssimo mais experiente. — As forças aliadas combinadas vão superar com muito em número aos franceses — observou Kenneth. Michael arqueou as sobrancelhas com expressão sardônica. — Acredita que Boney vai dar aos aliados a oportunidade de agrupar um grande exército? Sempre preferiu atacar, e na atual situação a audácia é sua única esperança. Quanto mais se atrasar, mais tempo terá Wellington para transformar este exército em farrapos em uma verdadeira força combatente e para fazer voltar da América seus veteranos. — Em qualquer batalha equilibrada, eu daria o triunfo a Wellington sem pensar duas vezes — concedeu Kenneth. — Mas agora o duque está na má posição de tentar fazer tijolos crus sem palha. — Também aconteceu isso na Península, e o duque jamais perdeu uma batalha. — Michael sorriu. — Eu estou a ponto de me transformar em um punhado de palha. Fizeram-me tenente coronel e me deram um regimento de soldados novatos com a ordem de fazer deles o que possa. — Esse é um melhor aproveitamento de sua capacidade que ser cavaleiro aprovisionador de pessoal. Qual é o regimento? — Um batalhão provisório chamado cento e cinco. Está formado por um punhado de regulares britânicos experientes, postos ali para amadurecer uma mescla de soldados novatos e milicianos meio treinados. O duque acredita que os veteranos vão contribuir suficiente com a massa para tornar eficaz todo o regimento. — Tem o trabalho feito a sua medida. — Não tenho que lhes ensinar nada difícil, como fazer escaramuça ou reconhecimento de terreno. Quão único terão que fazer será estar em um lugar e disparar seus mosquetes, 31


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preferivelmente não entre eles. — Enquanto os canhões deixam sem cabeça seus camaradas, os guardas imperiais partem para eles ao som de tambores da morte e a cavalaria pesada arremete sobre enormes cavalos com ferraduras de ferro. O que poderia ser mais simples? — resumiu Kenneth com ironia. — Exatamente. Não há nada complicado no assunto. Comparado ao reprimir-se diante de Catherine, transformar em soldados os recrutas novatos seria facílimo. Depois de vestir-se com esmero, Catherine desceu a escada para ir ao programa musical. Michael a esperava no vestíbulo; o uniforme verde escuro de fuzileiros o vestia como uma luva. Jamais tinha visto outro homem que se vestisse tão bem com esse uniforme. — Faz-me ilusão esta noite— disse, para não ficar olhando-o com a boca aberta. — Além das funções oferecidas pelo duque, saí muito pouco. — O prazer é meu. — Ofereceu-lhe o braço e no profundo de seus olhos apareceu um sorriso. — Está muito bem. Ela o segurou no braço e saíram para o carro. As longas pernas de Michael roçaram as suas quando se acomodou no reduzido espaço. Sentiu um zumbido de atração nas veias, e desta vez a reconheceu em seguida. Conhecê-la fazia menos inquietante que a noite na cozinha. De fato, viu possibilidade de desfrutar da sensualidade, já que sabia que seu acompanhante não lhe poria a mão na coxa nem tentaria beijá-la à força. Seu desejo simplesmente se parecia com a ânsia de comer morangos frescos; real, mas não perigosamente potente. A casa de cidade de lady Trowbridge não era grande, e a fila da recepção estava no mesmo salão onde os convidados estavam conversando e rindo antes do programa musical. A sala de teto alto estava resplandecente de velas em candelabros, oficiais de vários países com vistosos uniformes e damas igualmente chamativas. — Uma cena brilhante — comentou Michael. — Bruxelas tem estado louca por todo militar. — Quando voltar a paz, o exército vai passar de moda novamente — disse ela asperamente. — Não há nada como o perigo para que todo mundo ame um soldado. Ele a olhou com expressão de triste compreensão. — Mas quando Napoleão for derrotado, retirarão os oficiais com a metade do pagamento e os soldados rasos retornarão à vida civil com muito pouco que demonstre seus serviços além das cicatrizes. — Até a próxima guerra. — Catherine olhou com mais atenção o salão lotado. — Pode ser que seja minha imaginação, mas acho estranho o ambiente esta noite, há uma espécie de animação frenética. — Assim ocorre em todas as casas elegantes de Bruxelas, e a febre aumenta dia a dia — comentou em voz baixa Michael. — Nós dançamos valsas ao lado do vulcão. Como na guerra, a possibilidade de perigo aumenta a intensidade da vida. — Mas o perigo é uma ilusão — respondeu ela com a voz embargada pela emoção. — Se Napoleão se aproximasse de Bruxelas, a maioria dessas pessoas brilhantes voltaria voando a suas casas na Grã-Bretanha. Não ficariam para enfrentar os disparos nem atender aos feridos nem a procurar os corpos de seus entes queridos no campo de batalha. — Não — disse ele, em voz ainda mais baixa. — Poucas pessoas têm o valor que tem você e as demais mulheres que seguem o exército. Pertence a uma irmandade de elite, Catherine. — Orgulho-me disso, suponho — disse ela, olhando as mãos enluvadas. — Mas é uma honra a qual não me incomodaria renunciar. Chegou-lhes o turno de saudar a anfitriã. — Que maravilhoso vê-la, Catherine — exclamou lady Trowbridge. — Seus admiradores vão 32


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ficar extasiados. O que faz para estar tão linda? — Olhou Michael sorrindo. — Catherine é o único diamante puro que conheço que os homens adoram e ao mesmo tempo cai bem às mulheres. — Por favor, Helen, não me faça ruborizar —rogou Catherine. — Não sou esse modelo de virtudes, absolutamente. — E, além disso, modesta — exclamou lady Trowbridge revirando os olhos. — Se não a amasse tanto, Catherine, juro que a odiaria. Vá agora, verei-a depois. Com as faces ruborizadas, Catherine agarrou o braço de Michael e avançou. — Helen é uma exagerada. — Parece-me que há um que de verdade — comentou ele ao ver que vários convidados, homens e mulheres, se aproximavam impacientem. — Dá a impressão de que não vai precisar de mim até que seja hora de ir para casa. Não se importa que a deixe sozinha, não é? — Estarei muito bem —assegurou ela. — Que passe bem. Fez-lhe uma inclinação de cabeça e se afastou e ela o seguiu um instante com o olhar, pensativa. Não teria se importado continuar em sua companhia, mas era prudente por sua parte não revoar a seu redor. Isso provocaria falatórios, inclusive a respeito da «Santa Catherine». À sociedade gosta dos pés de barro. Chegaram vários de seus amigos oficiais e a envolveram em animada c onversação. Muito em breve estava desfrutando totalmente. Talvez fosse tolice não assistir sozinha a esse tipo de noitada, mas quando tinha tentado havia se sentido patética. Passados uns minutos se aproximou lady Trowbridge agarrada ao braço de um homem. — Catherine, conhece lorde Haldoran? Acaba de chegar de Londres. Lorde Haldoran, a senhora Melbourne. Haldoran era um homem bonito de uns quarenta anos, com a for te constituição de um esportista. Quando Helen se afastou, Catherine lhe ofereceu a mão. — Bem vindo a Bruxelas, lorde Haldoran. — Senhora Melbourne — Se inclinou sobre sua mão com elegância praticada e com um significativo aperto igualmente praticado. Sabendo por experiência que devia deixar clara sua posição imediatamente, lhe dirigiu o melhor de seus glaciais olhares. Quando ele se ergueu ela viu que a mensagem tinha sido recebida e compreendida. Por um momento pensou que ia fazer uma tolice completa, mas a lânguida expressão mudou para um olhar que raiava a descortesia. — Tanto se nota que meu vestido foi refeito várias vezes? — perguntou ela docemente. — me perdoe, senhora Melbourne — disse ele repondo. — Uma mulher de sua beleza poderia estar vestida com tecido de saco e nenhum homem o notaria. Simplesmente me surpreenderam seus olhos. São muito pouco habituais; nem azuis nem verdes, e tão transparentes como uma pedra preciosa. — ouvi isso antes, mas posto que os olhos de meus pais eram iguais, creio que os meu não têm nada fora do comum. Pelo rosto dele passou fugazmente uma estranha expressão. — Nada em você poderia ser comum. — Tolices — disse ela sem alterar-se. — Simplesmente sou a esposa de um oficial que seguiu o exército, aprendeu a levar a casa quando os pagamentos se atrasam meses e ensinado minha filha a reconhecer os melhores frangos num mercado espanhol. — Afortunado marido e afortunada filha — sorriu ele. — Tem mais filhos? — Só Amy. — Preferindo uma conversação menos pessoal, perguntou— : Está em Bruxelas em busca de emoções, milorde? — Naturalmente. A guerra é o esporte definitivo, não lhe parece? Quando era menino pensei 33


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em pedir a meu pai que me comprasse uma comissão nos Décimos Húsares. Os uniformizes eram muito chamativos e a caça excelente. — Aspirou um pingo de rapé de uma caixinha esmaltada. — Mas mudei de opinião quando o regimento foi transladado de Brighton a Manchester. Uma coisa é arriscar a vida pelo país e outra muito diferente ser banido de Lancashire. Esse frívolo comentário estava em harmonia com uma pessoa que tinha desejado entrar nos Décimos Húsares, o regimento de cavalaria mais elegante e caro. Mas apesar do tom de brincadeira, Haldoran estava olhando-a com inquietante intensidade. — É uma lástima que não estivesse nele quando o regimento foi enviado à Península — disse ela secamente. — Seguro que tivesse achado um fabuloso esporte em perseguir criaturas que podiam disparar também. É muito mais emocionante que caçar raposas. — Tem razão — riu ele. — Caçar franceses teria me assentado maravilhosamente. Era certo que a caça era um passatempo muito popular na Península. Catherine sabia de certo que uma vez Wellington ia conferenciando a cavalo com um general espanhol quando passou uma matilha de cães atrás de uma lebre. Imediatamente o duque fez virar o cavalo e se uniu à caçada. Depois de matar a lebre, voltou onde estava o surpreso espanhol e reatou a conversação como se nada tivesse acontecido. Mas Wellington ganhou o direito de divertir-se. Lorde Haldoran parecia ser do tipo que nunca fez nada útil em sua vida, e o que fez, fez a preços muito caros. Do outro extremo da sala, lady Trowbridge anunciou que o concerto estava a ponto de começar no salão da frente. — Sentamo-nos juntos, senhora Melbourne? — disse Haldoran. — Obrigado, mas já assumi de me sentar com uns amigos. — Dirigiu-lhe um amplo e falso sorriso. — foi um prazer conhecê-lo. — Estou seguro de que voltaremos a nos ver — disse ele com uma inclinação. Talvez, mas enquanto se afastava por entre a multidão, pensou que não o lamentaria se isso não acontecesse jamais. CAPÍTULO 7 O tempo primaveril era excepcionalmente agradável, o que se somava ao ar de férias que revoava por toda Bruxelas. Mas Catherine gostava desse tempo por motivos mais maternais: permitia as crianças brincar fora. Um dia, a última hora da tarde, estava senta da sob o castanheiro do jardim de trás, cerzindo e vigiando Amy e os pequenos Mowbry, quando apareceu Michael Kenyon a cavalo no caminho da entrada. Chegava cedo a casa. Catherine o observou desmontar e levar seu cavalo ao estábulo. Caminhava belamente, sem um só movimento a mais. S entiu um desses baques no coração que lhe produziam sempre que ele aparecia. Nas últimas semanas tinha sido seu acompanhante várias vezes. Nos bailes sempre lhe pedia uma animada dança regional, jamais uma valsa, e depois se mantinha afastado até que chega va a hora de voltar para casa. Mas em uma ocasião, quando um alferes bêbado a tinha encurralado em um canto com a intenção de lhe declarar seu amor, apareceu ele e levou a jovem com a firmeza com que o teria feito um irmão mais velho. Lástima que seus sentimentos não fossem igualmente fraternais. Michael saiu do estábulo, titubeou e depois entrou no jardim e caminhou para ela, com o chapéu na mão. O sol encontrou reflexos avermelhados em seus cabelos castanhos despenteados. — Boa tarde, Catherine. — Olá. — Esticou a mão para a cesta e tirou uma anágua rasgada de Amy. — Parece 34


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cansado. — Comandar um regimento de novatos é pior que cavar trincheiras. — Com um gesto indicou o lugar onde as crianças brincavam de esconderijo. — Ouvi as crianças e pensei que seria agradável ver outros correr durante um momento. Na distância, Amy saiu sigilosamente detrás de um rododendro e se escondeu atrás de outro. — Fez muito bem — comentou Michael, aprovador. — Não levaria muito tempo transformar sua filha em uma escaramuçadora de primeira classe. — Não vá dizer isso a ela! É terrivelmente pouco feminina; deveria vê-la com uma bola de críquet. E terá que dissuadi-la de que diga a Wellington que se na Espanha as mulheres lutaram com os guerrilheiros por que as inglesas não podem fazer o mesmo. — Começou a pregar um babado descosturado. — Como se comportam seus homens? — Tenho sérias dúvidas sobre se souberem por que extremo do mosquete sai a bala. — Não será para tanto — riu ela. — Exagero, mas muito pouco. Tentei convencê-los de que o mais perigoso que podem fazer os soldados na batalha é pôr-se a correr, por isso estarão melhor guardando seu terreno. Se aprenderem isso poderia ser de certa utilidade. Graças a Deus por meus sargentos; se não fosse por eles renunciaria agora mesmo. — Vejo que ainda usa seu uniforme de fuzileiro em lugar do escarlate de infantaria, — O motivo oficial é que não tive tempo para visitar um alfaiate — os olhos brilharam de humor. — Mas isso é só um pretexto. A verdade é que não quero renunciar a meu verde de fuzileiro. — É bom que ao duque importe o mínimo o que usam seus homens. Asseguro que nunca vi dois oficiais que andem vestidos iguais. — Sorriu provocadora. — Recorda todos os esfarrapados que se viam ao fim de uns meses na Península? Sabia-se que um homem era recém-chegado porque ainda se podia identificar seu uniforme. Repentinamente saiu Jamie Mowbry como um estampido de entre os arbustos e apontou para Michael com um ramo. — Bang, Bang! Catherine estava observando Michael e assim pôde ver a reação instintiva que em uma batalha teria tido um efeito letal; a reação desapareceu com a mesma rapidez que tinha vindo e Michael caiu espetacularmente sobre a relva. — Estou acabado, homens, cuidem de meu cavalo Thor. Esperneou um pouco e ficou imóvel. Jamie correu para ele com Clancy nos calcanhares e com o ramo triunfalmente no alto. — Te peguei! Te peguei, sapo asqueroso! Tão logo o menino esteve ao seu alcance, Michael o agarrou e começou a lhe fazer cócegas nas costelas. — Quem agarrou quem? Nunca confie que um inimigo esteja tão morto como parece, Jamie. Ruborizado e revolvendo-se de risada, o menino rodou pelo chão com seu ex-prisioneiro. Catherine os observava divertida, surpreendida da facilidade com que Michael tinha entrado no mundo do menino. A briga acabou quando chegou Amy correndo. — Olá, coronel Kenyon. — Tocou Jamie. — Agora é você! Partiu correndo com Jamie e Clancy presos em seus calcanhares. Michael continuou escancarado no chão. — Deus, que agradável é estar brincando ao sol e não ter nada que fazer na hora seguinte. — Fechou os olhos e desabotoou o casaco. 35


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— esteve bom o tempo, não é? — disse Catherine. — Mas não deixo de pensar que é como a calma antes da tempestade. — E estão juntando nuvens negras sobre o horizonte. O comentário de Michael os deixou em silêncio. Por isso sabiam, Napoleão já estava partindo para o norte para recuperar seu império. Luis o Preguiçoso, que esteve dormitando junto a Catherine, levantou-se pesadamente sobre suas curtas patas e foi deitar-se junto a Michael. — Estou ciumenta — brincou ela. — Luis só é meu amigo quando você não está. — Tolices — disse ele sem abrir os olhos. — O que quer este teimoso animal é arruinar minha reputação. Posto que se diz que os cães e seus donos se parecem, vão supor que sou tão preguiçoso e inútil como ele. Diga-lhe que se vá. A ordem foi rebatida pelo modo como acariciava as orelhas do cão. Luis gemeu de prazer e colocou as patas para cima. — Se assim for como comanda seus soldados, coronel, o cento e cinco está em dificuldades — disse ela rindo. De um extremo do jardim, não visível, chegou um chiado de Molly e o grito do Jamie: — Te peguei! Michael abriu os olhos. — Jamie estava um pouco pálido. Esteve doente? — Sofre de asma às vezes — respondeu Catherine. — Anne diz que os ataques são aterradores. Ontem teve um forte. Parece que a primavera é o pior tempo. — Eu tinha ataques de asma ocasionais quando era menino, mas com o tempo os superei bastante. Jamie também o fará sem dúvida. — Direi isso a Anne — disse ela contemplando sua robusta figura. — Se sentirá melhor sabendo que um menino asmático pode converter-se em um homem forte como você. Que causa os ataques? — Não sei se alguém sabe — respondeu ele passado um momento, — mas creio que acostuma ser uma combinação de coisas: umidade, mantimentos ou plantas que cheiram mal. — colocou o braço sobre os olhos para proteger do sol e ocultar sua expressão. — Creio que também há um componente emocional. — Quer dizer emocionar-se muito? Jamie é muito nervoso. — Isso, ou estar assustado ou angustiado. As emoções dolorosas podem às vezes desencadear um ataque em coisa de momentos. — Compreendo. —teria gostado de saber mais, mas o tom proibia fazer perguntas. — Como se sentiu Anne estes dias? — muito melhor. Neste momento está dormindo a sesta, mas diz que é nesta fase da gravidez quando vai passar do cansaço a uma energia sem limites. Na próxima semana vai estar entusiasmada por voltar a dançar. — Fez um arremate e cortou o fio. Tendo Anne por companheira já não precisaria de Michael como acompanhante. Sentiria falta passar um tempo com ele; sentiria muitas saudades. — Então já não terá que me acompanhar. — te acompanhar foi um prazer, não uma carga. Quando Charles não est iver disponível, posso acompanhar às duas. Serei a inveja de todos os homens de Bruxelas. Abafou um bocejo e ficou em silêncio. Apesar do ruído que faziam as crianças e as carruagens que passavam pelo caminho que levava a porta Namur, adormeceu e sua respiração se fez lenta e uniforme. Havia uma preciosa intimidade na situação. Catherine continuou costurando. Era muito boa para ocultar seus sentimentos e nem sequer o observador mais desconfiado adivinharia a tranqüila alegria que sentia em seu coração. A 36


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presença de Michael alimentava essa parte de sua alma que estava a anos faminta. Possivelmente deveria sentir-se culpada por seus sentimentos, mas não, não se sentia culpada. Ninguém sofreria nenhum dano e muito em breve seus caminhos se separariam, talvez para sempre. Mas quando isso acontecesse, teria a lembrança de umas poucas horas douradas para levar no coração. Terminou de arrumar a anágua de Amy, dobrou-a e a pôs na cesta, e começou a cerzir as meias de Colin. Quando terminou, deu-se permissão para contemplar a bronzeada mão direita de Michael, que estava relaxada na relva a escassos sessenta centímetros dela. Tinha os dedos longos e capazes. Uma cicatriz longa e magra lhe cruzava a palma, fazendo uma curva que chegava até o pulso. Sentiu uma urgência quase entristecedora de colocar sua mão sobre a dele; de tocá-lo, embora só fosse de modo superficial; de sentir a vida que vibrava em seu potente corpo. Como seria estar deitada junto a ele, sentir seu calor em seu corpo em toda sua longitude? Com o rosto quente, agarrou outra meia. Desejou que quando se encontrasse diante de são Pedro lhe julgassem a vida por suas obras, não por seus pensamentos. Quando acabou os remendos, guardou as tesouras e o fio e se apoiou no tronco do castanheiro, observando Michael através das pálpebras cerradas. A paz foi interrompida por uns agudos gritos das crianças e um angustiado uivo de Clancy. Catherine se ergueu ao notar que esse não era o ruído de uma brincadeira normal. Nesse mesmo instante Michael abriu os olhos. — Mamãe, vêem rápido — gritou Amy. Michael se levantou de um salto e lhe agarrou a mão para ajudá-la a levantar-se. Tão logo ficou de pé, os dois correram pelo jardim, com o coração acelerado pelo medo do que poderiam encontrar. As crianças estavam na fonte de pedra, onde uma toninha bailarina cuspia água em um pequeno lago. Oprimiu-se o coração de Catherine ao ver o sangue que cobria às duas meninas. O sangue emanava de uma ferida na cabeça de Molly. Amy tinha tirado a faixa e estava tentando corajosamente estancar o sangue. Jamie estava de pé a uns passos, com a cara lívida sob seu cabelo avermelhado, olhando sua irmã que soluçava desconsolada. Clancy dava nervosos saltos ao redor, estorvando e aumentando a confusão com seus agudos latidos. Catherine se ajoelhou junto a Molly e continuou a tarefa de estancar o sangue da ferida. — O que aconteceu, Amy? — Jamie a empurrou e ao cair bateu na fonte. — Não era minha intenção! — gritou Jamie. Suas respirações, rápidas e superficiais, começaram a fazer-se sonoras, como estranhos assobios. Michael, que tinha estado tranqüilizando o nervoso cão, levantou a vista para ouvir o som. — Amy, vá procurar Anne — ordenou Catherine. Quando Amy empreendeu a carreira. — vou morrer? — perguntou Molly com mórbida curiosidade. — Claro que não — se apressou a responder Catherine. — As feridas na cabeça sangram muitíssimo, mas esta não é profunda. Ficará bem em poucos dias. Se ficar alguma cicatriz ficará oculta por seus cabelos. — Não era minha intenção! — gritou Jamie angustiado. De repente pôs-se a correr, movendo freneticamente braços e pernas. Instintivamente Catherine quis segui-lo, mas não podia, tendo ainda Molly em seus braços, 37


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sangrando. Olhou Michael suplicante, mas aliviada viu que ele já ia correndo atrás do menino, embora atrasado por ter que desembaraçar-se de Clancy e dar a volta na fonte. Jamie tropeçou e caiu escancarado na terra. Os muros que rodeavam o jardim ecoaram seu terrível fôlego. Molly, esquecida de sua ferida, tentou levantar-se. — Jamie está sofrendo um de seus ataques? — Não se preocupe — respondeu Catherine segurando-a com firmeza. — O coronel Kenyon vai cuidar de seu irmão. Rogou que suas palavras fossem certas, porque ela não sabia o que fazer. Antes que Michael conseguisse alcançá-lo, Jamie se recuperou o suficiente para levantar-se. Pôs-se a correr outra vez, e com os olhos aterrorizados se meteu em um matagal onde não pudesse segui-lo um adulto. Saiu do outro lado e caiu no chão, desesperado por respirar. A cinqüenta metros de distância, Catherine viu que tinha o rosto horrivelmente arroxeado. Jamie estava tentando fracamente levantar-se quando Michael chegou a seu lado e o agarrou em seus braços, depois de dar a volta no matagal. — Não aconteceu nada, Jamie —disse em tom tranqüilizador. — Molly não está muito ferida. Levou nos braços o menino até a fonte. Embora sua expressão fosse preocupada, falou-lhe com voz tranqüila. — Foi um acidente. Sabemos que não tinha a intenção de fazer mal a sua irmã. Segurando-o em posição sentada, tirou seu lenço e o molhou na fonte. Com o lenço molhado lhe deu batidinhas no rosto congestionado, ao mesmo tempo em que continuava dizendo palavras tranqüilizadoras. — Sabe respirar, Jamie, simplesmente o esqueceste durante um minuto. Olhe-me nos olhos e recorda como se respira; inspira lentamente. Relaxe. Agora espira lentamente. Repete comigo. Inspirar, pausa... Vamos, sabe fazê-lo. Catherine observava, como hipnotizada, enquanto os lábios de Jamie foram formando as letras junto com o Michael. Pouco a pouco regularizou a respiração e foi voltando a cor ao rosto. Quando Amy chegou correndo com Anne, Catherine já tinha uma tosca bandagem feita na cabeça de Molly e Jamie estava quase normal. Anne estava tão pálida que nas maçãs do rosto se viam umas estranhas sardas. — Há Por Deus, certamente tivestes problemas os dois. Ajoelhou-se entre seus filhos e os atraiu para ela. Jamie se pegou a seu lado e lhe rodeou a cintura com os braços. Molly também se apertou contra ela quanto pôde. No repentino silêncio, ouviu-se o som de cascos de cavalos. Passado um momento. Charles Mowbry gritou do estábulo. — Problemas? — um pouco — respondeu Anne, com a face aliviada. — Molly feriu a cabeça e Jamie teve um ataque, mas agora tudo está bem. Quando Catherine ficou de pé viu Charles e Colin caminhando para eles, seus casacos escarlate brilhando em contraste com a relva. Nesse dia tinham uma simulação de batalha, recordou. Charles chegou primeiro com a expressão controlada, à exceção de seus olhos. Agachou-se e agarrou Jamie, apertando-o em seus braços. — Está bem, meu velho? — Não podia respirar, mas o coronel Kenyon me recordou como fazê-lo explicou seu filho. — Então foi fácil. — Muito amável por sua parte — ele disse com voz rouca. — Recordará como fazê-lo na próxima vez? 38


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Jamie assentiu energicamente. Anne e Molly ficaram de pé. Charles alisou o cabelo de sua filha, com cuidado de não mover as ataduras ensangüentadas. — Já sei que você não gosta deste vestido, mas, não seria melhor que se liberasse dele rasgando-o que o manchando de sangue? — Ai, papai, que tolo é — disse a menina, iluminando com um sorriso seu rosto choroso. Reprimindo um sorriso, Catherine se perguntou o que pensariam os homens da companhia de Charles se ouvissem isso. — É hora de entrar em casa e lavar-se — disse Anne as crianças; dirigiu um comovido olhar a Catherine e Michael— : Graças aos dois por estarem aqui. Quando os Mowbry caminhavam para a casa, Catherine rodeou com um braço os ombros de Amy. — Amy esteve fabulosa. Colín. Estancou o sangue da ferida de Molly e foi procurar a Anne. — É como eu e sua mãe — disse ele aprovador. — Bom soldado e boa enfermeira. — Olhou Catherine. — Posso levar Amy para tomar um sorvete em recompensa por sua valentia? Na realidade já estava muito próxima a hora do jantar, mas Amy merecia um prêmio, e tinha visto muito pouco seu pai nesse último tempo. — Muito bem, mas, Amy, primeiro troque o vestido. Diga a uma criada que o ponha em água fria para que não grude a mancha de sangue. Amy assentiu e foi saltando com seu pai. Uma vez a sós com Michael, Catherine se sentou ao lado da fonte e esteve um momento com o rosto enterrado entre as mãos. — me desculpe, por favor, enquanto tenho um ataque de histeria. — E eu também. — Michael se sentou cansativamente junto a ela. — Sempre é pior quando a crise já passou, não é? — Cada vez me transformo em um tremulo pudim — disse ela tentando ri – a vida de família exige ter nervos de aço. — Mas seu marido tinha razão. Amy se comportou fabulosamente. — É o mais incrível. Eu pensava que seria um engano levá-la à Península, mas se aproveitou de estar ali. — Sorriu irônica. — Nisso se parece com o pai. Eu sou mais do tipo caseiro, covarde. — Talvez você acredite nisso — disse ele com quente afeto na voz, — mas se alguma vez eu precisar de cuidados, espero que esteja disponível. Ela olhou para outro lado antes que seus olhos revelassem muito. — E você é um homem que vale a pena ter por perto durante os desastres domésticos, dos quais ultimamente tivemos mais do que nos corresponderia. Fogo, sangue, asma. Anne tinha razão, esses ataques são aterradores. — senti-los é pior, como bandagens de aço ao redor dos pulmões. Quanto mais tenta respirar, menos se inspira. A pior parte é o pânico, que pode destroçar a mínima pitada de prudência e domínio que alguém tenha. Recordo ter feito exatamente o mesmo que fez Jamie, correr até cair por terra, depois levantar-me e pôr-me a correr tão logo pude me sustentar em pé. — Fez um gesto de pena. — Como o levam Anne e Charles? Deve ser horrível ver um filho desesperado para respirar. — Suportam-no porque não tem mais remédio, igual a seus pais. — Eles eram feitos de outro pano — disse ele asperamente. — De fato, a maioria de meus ataques meu pai os desencadeava. Quando dava um em presença de minha mãe, ela me deixava aos cuidados da criada mais próxima. Minha presença era muito incomoda para sua delicada constituição. — Lhe endureceram os traços. — Se não me tivessem enviado a Eton provavelmente 39


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não teria chegado a completar dez anos. — Agora entendo por que nunca fala de sua família — disse ela com pena. — Não há muito que dizer. — Passou os dedos pela água e jogou algumas gotas em Luis, que novamente estava dormindo a seus pés. — Se a meu pai dessem a escolher entre ser Deus e ser o duque de Ashburton, perguntaria qual é a diferença. Minha mãe morreu quando eu tinha treze anos. Ela e meu pai se desprezavam; é incrível que tenham tido três filhos, mas suponho que se sentiram obrigados a continuar até ter um herdeiro e um de reposição. Minha irmã Claudia é cinco anos mais velha que eu; quase não nos conhecemos e os dois preferimos assim. Meu irmão Stephen é o marquês de Benfield e herdeiro do nobre título Ashburton e da exorbitante riqueza Kenyon. Conhecemo-nos um pouco, o que é mais do que deseja cada um de nós. Suas palavras sem expressão produziram calafrio na coluna de Catherine. Recordou o que lhe havia dito de como ele e seus amigos anjos ca ídos se transformaram em família porque precisavam ter uma. Com repentina paixão desejou ter o direito a estreitá -lo entre seus braços e lhe compensar de tudo o que lhe tinham negado. Mas disse: — Sempre lamentei não ter um irmão ou uma irmã. Talvez tivesse sorte. — Se quiser posso lhe emprestar Claudia e Benfield. Garanto-lhe que em dois dias estará agradecida de sua estrela da sorte por ser filha única. — Como sobreviveu? — perguntou em voz baixa. — Pura teimosia. Ela colocou sua mão sobre a dele, tentando transmitir sem palavras sua simpatia e compaixão, e sua admiração pela força que o tinha permitido resistir. Em lugar de amargurar-se, tinha aprendido a ser compassivo. Ele pôs a outra mão sobre a dela, apertando os dedos. Não se olharam. Catherine era intensamente consciente de que sua perna permanecia só a centímetros da sua. Que natural seria aproximar-se mais e apertar seus lábios contra sua face. Então ele giraria o rosto e sua boca encontraria a sua... Horrorizada se deu conta do quanto se aproximou do fogo. Retirou a mão e a empunhou, para impedir de acariciá-lo. — Quando melhorou da asma? — perguntou, ouvindo remotamente sua própria voz. Ele demorou um instante em responder. — Não sei se alguém melhora completamente; tive vários ataques suaves em adulto, mas foram muito poucos depois dos treze anos. —retesou o rosto. — O pior veio em Eton. Dessa vez soube, estive totalmente seguro, de que ia morrer. — O que o provocou? — Uma carta de meu pai. — esfregou a têmpora como querendo apagar a lembrança. — Me dizia que minha mãe tinha morrido repentinamente. Dava-me a entender com bastante claridade que... que se alegrava haver-se libertado dela. — Fechou os olhos e fez várias respirações lentas e profundas. — O ataque começou imediatamente e caí ao chão, resfolegando como um cavalo de corrida na hora do tiro. Há algo especialmente horroroso nisso de morrer totalmente consciente, mas impotente, incapaz de se mover. Por sorte no quarto contiguo estava meu amigo Nicholas e me ouviu. Veio em seguida e me ajudou a superar me falando, tal como eu fiz com Jamie. O truque é abrir passo por entre o pânico da vítima e obter que se concentre em respirar bem. — Mas seu amigo seria de sua mesma idade — exclamou ela surpreendida. — Soube o que fazer porque ele também tinha asma? Michael esboçou um sorriso. — Nicholas sempre teve algo um pouco mágico. É meio cigano e conhece as formas ciganas tradicionais de curar. Ele nos ensinou a sussurrar aos cavalos e a tirar peixes do rio com a mão. 40


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Contente ao ver que relaxava a expressão, Catherine lhe disse: — Dá a impressão de que foi um bom amigo para você. Talvez fosse um engano lhe dizer isso, porque lhe crisparam as mãos entrelaçadas e em seus pulsos se incharam os tendões. — Foi, melhor do que eu fui para ele. — Agitou a cabeça. — meu Deus, por que lhe conto tudo isto? — Porque sabe que me importa — disse ela, desejando que o motivo fosse que a considerava especial, — e que farei honra a sua confiança. — Talvez seja esse o motivo. — Sem olhá-la, acrescentou em voz baixa— : Me alegra haver lhe conhecido, Catherine. Quando no futuro pensar em Bruxelas, talvez esqueça os bailes, os rumores e as diversões frenéticas, mas a recordarei sempre. Catherine teve a impressão de que o ar que os separava se condensava, fazendo-se tão evidente que temeu que ele sentisse os batimentos de seu coração. — Sua amizade significa muitíssimo para mim também —disse com voz meio tremula. — A amizade e a honra são talvez as duas coisas mais importantes da vida. — agachou-se para agarrar uma margarida de entre a erva. — Amizade para não estar sozinhos. Honra porque o que outra coisa fica ao homem ao fim de seus dias fora a honra? — E o amor? — perguntou ela em voz baixa. — O amor romântico? — deu de ombros. — Não tenho a experiência para comentá-lo. — Alguma vez te apaixonaste? — insistiu ela, cética. — Bom — disse ele com voz mais alegre, — quando eu tinha nove anos, a irmã de meu amigo Lucien me propôs matrimônio e eu aceitei entusiasmado. Elinor era um anjo caprichoso — acrescentou, com um brilho de carinho nos olhos. — Não sub-valorize esses sentimentos simplesmente porque foram pequenos. As crianças sabem amar com uma espécie de pureza inocente que nenhum adulto pode igualar. — Talvez. — Fez rodar a margarida entre o polegar e o indicador. — E posto que Elinor morreu dois anos depois, o amor entre nós nunca foi colocado a prova. Nem teve a possibilidade de apagar-se naturalmente, pensou ela. Supôs que em algum lugar de seu interior, Michael ainda teria o sonho de encontrar um anjo caprichoso. — Se amou assim uma vez, pode voltar a amar igual. A mão dele se fechou convulsivamente sobre a margarida, triturando-a. fez-se um longo silencio. — Uma vez amei — disse ele finalmente, — ou me obcequei por uma mulher casada. Esse romance destruiu a amizade e a honra. Jurei não voltar a fazê-lo nunca mais. A amizade é menos perigosa. Para um homem como Michael, pensou Catherine, ter faltado a seu código de honra deve ter sido aniquilador. Esse engano catastrófico explicava também por que jamais lhe havia dito nem feito nada impróprio. Nesse momento soube que jamais o faria. — A honra não é competência exclusiva dos homens — disse docemente. — Uma mulher também pode ter honra. Os juramentos, terá que cumpri-los; as responsabilidades terá que as assumir. — ficou de pé e olhou seus olhos verdes insondáveis. — É uma sorte que a honra e a amizade sejam compatíveis. Olharam-se durante um momento, o tempo detido, no qual se disseram tudo e nada. Depois ela se virou e caminhou para casa, com passos firmes para que ninguém pudesse suspeitar que tinha os olhos cheios de lágrimas. Michael ficou sentado no jardim durante um longo momento, os olhos desfocados, a respiração lenta e deliberada. Às vezes lhe convinha ter que prestar especial atenção ao ar que 41


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entrava e saía de seus pulmões, porque esse esforço mantinha a dor a raia, ao menos durante um momento. Era fácil obcecar-se por Catherine. Não só era linda, mas também admirável, de verdade. Sua mãe, sua irmã e Caroline combinadas não poderiam ter igualado nenhuma fração de seu afeto ou sua integridade. Era perfeita em todos os sentidos, mas inalcançável. Estava irremediavelmente casada. Entretanto, entre eles havia algo real. Não amor, mas sim um reconhecimento de que em outras circunstâncias as coisas poderiam ter sido muito diferentes. Pensou se quando era mais jovem poderia ter havido outro caminho a seguir, um que o tivesse conduzido a Catherine nesse dia terrível em que ficou órfã. Igual a Colin, ele teria se apressado a lhe oferecer amparo. A diferença de Colin, jamais teria dado as costas a sua mulher para ir atrás de outras mulheres. Essas especulações eram estúpidas. Jamais tinha visto outro caminho à parte do que tinha seguido, que o conduziu a esse amor pervertido que lhe sujou a alma. Levantou-se com uma sensação de esgotamento como se tivesse combatido uma batalha. Mas sob a pena sentia-se orgulhoso de que ele e Catherine tivessem forjado algo puro e honrado do que poderia ter sido sórdido e mal. Claro que seu marido era um soldado que estava ao lado da guerra... Desprezou esse pensamento, consternado de que lhe houvesse passado pela cabeça. Seria obsceno desejar a morte de um oficial colega. Também era ridículo tentar olhar além das semanas vindouras. Chegado o momento da batalha, ele tinha tantas possibilidades de morrer como Melbourne. Não há nenhuma certeza na vida, o amor nem a guerra. À margem de que sua vida pudesse medir-se em dias ou décadas, jamais deixaria de desejar Catherine. Capítulo 8 Na noite seguinte Catherine estava vestindo-se para o jantar quando Colin entrou no quarto. — Poderia me abotoar o vestido? — pediu-lhe, em lugar de tocar a sineta para que viesse sua criada. — É claro. Sentiu os dedos em suas costas, peritos mas indiferentes. Surpreendeu-a a estranha maneira como habitavam na mesma casa, compartilhavam o mesmo quarto, como marido e mulher, mas jamais se tocavam afetivamente. Sua relação era feita de lei, cortesia, conveniência e hábito. Quase nunca brigavam, porque cada um sabia exatamente quanto, e quão pouco, podia esperar do outro. Uma vez abotoado o vestido, Colin se afastou e começou a trocar de roupa. Notou um ar de inquietação, que reconheceu. — Aconteceu alguma coisa? — perguntou. — Não. — deu de ombros. — Bom, sim, ontem à noite perdi cem libras jogando whist. — Ah, Colin. Deixou-se cair em uma poltrona consternada. Nunca tinham suficiente dinheiro, e cem libras era uma quantidade enorme. — Não me olhe assim — exclamou ele na defensiva. — Na realidade fiz bastante bem. Tinha perdido trezentas, e depois recuperei a maior parte. Ela tragou saliva, tentando não pensar o que teriam feito se tivesse perdido tanto. — Supondo que deveria agradecê-lo, mas até mesmo cem libras nos vão causar problemas. — Você arrumará — disse isso despreocupado, — sempre o faz. Além disso, valeu a pena 42


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perder um pouco. Estive jogando com vários oficiais da Guarda Real, homens de famílias influentes. — A influência poderia ser útil para o futuro, mas temos que pagar nossa parte dos gastos da casa agora. —peça mais ao seu amigo lorde Michael; todos sabem que os Kenyon são ricos como nababos. — tirou o colarinho e o atirou sobre a cama. — Pelo modo como a esteve acompanhando, é evidente que gosta de você. Já tentou te levar para cama? — Que tolice! — exclamou ela zangada. — Sugere que me comportei indecorosamente? — É claro que não — respondeu ele em tom risonho, mas com uma ponta de amargura. — Quem sabe isso melhor que eu? Produziu-se uma repentina tensão no quarto, em que vibraram todos os problemas que os separavam. Compreendendo que sua reação ao despreocupado comentário de Colin tinha sido exagerada, Catherine disse placidamente: — Michael é agradável, mas me acompanhou por cortesia, não porque pretenda me levar para cama. — E se suas palavras não eram a verdade completa, aproximavam-se o bastante. Aceitando essa afirmação em seu sentido literal, Colín lhe disse: — Tenta conquistá-lo no tempo que ficar na casa. Estive pensando no futuro. — O que quer dizer? — perguntou ela com o cenho franzido. — Depois que seja derrotado Boney o governo vai reduzir o exército a uma fração do que é agora. Há muitas possibilidades de que me retirem com a metade do pagamento. É hora de começar a procurar outra ocupação, preferivelmente um agradável posto governamental que pague bem e deixe abundante tempo para a caça. — colocou uma camisa limpa. — Para obter um posto assim vai ser necessário influencia. Felizmente esta primavera Bruxelas está a transbordar de aristocratas. Quando se acotovelar com eles, se mostre especialmente encantada com q ualquer um que possa nos ser útil chegado o momento. — Muito bem. — A idéia não a entusiasmava nada, mas posto que seu futuro dependesse de que Colin encontrasse um posto decente, devia fazer sua parte. — Vai jantar aqui? — Não, vou reunir-me com amigos. — Trate de não perder mais dinheiro — suspirou ela. — Posso esticar um xelim até que se rompa, mas não sou fazedora de milagres. — Esta noite não haverá jogo. Isso significava que estaria com uma de suas mulheres. Desejou-lhe uma noite agradável e desceu. Era cedo, e a única pessoa que estava no salão era Kenneth. Estava olhando pela janela, seus ombros tão largos como os de um ferreiro. — boa noite, Kenneth —saudou alegremente. — estiveste tão ocupado como Michael. Estou começando a acreditar que a infantaria trabalha mais que a cavalaria. — Pois claro — disse ele voltando-se para olhá-la, — isso todo mundo sabe. Catherine sorriu. — É tão injusto como meu pai. Esteve na infantaria, sabe? — Parece mentira! — exclamou ele em tom horrorizado. — Como é que uma garota tão boa como você se casou com um oficial da cavalaria? — Os motivos normais. — Serviu duas taças de xerez e ficou junto a ele na janela. O sol estava oculto pelas árvores, mas tingia as nuvens de cores ocre e carmesim, e convertia as agulhas das Igrejas de Bruxelas em espetaculares silhuetas. — Que lindo está o céu. Em momentos como este eu gostaria de saber pintar. — Eu também — demarcou ele depois de beber um pouco de xerez. 43


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— Não sabe pintar? Eu supus que devia saber, já que desenha tão bem. — Desenhar é simples manha — disse ele dando de ombros. — Pintar é outra coisa muito distinta, da qual não sei nada. Ela olhou seu perfil severo. Algo em seu tom sugeria que lamentava isso, mas um exército em campanha teria apresentado poucas oportunidades para aprender, sobre tudo nos anos anteriores a que recebesse uma comissão. Fora, as cores se foram apagando e no horizonte estavam se agrupando nuvens cor violeta. Com que rapidez caía a noite. — Não falta muito, não é? — disse em voz baixa. Ele entendeu exatamente o que queria dizer. — Temo que não. O imperador fechou as fronteiras do norte da França. Não podem passar diligências, navios pesqueiros nem nenhum documento, à parte, é claro, das informações falsas que os agentes de Napoleão estão propagando alegremente. Dizem que as autoridades não esperam que a campanha comece antes de julho, mas eu creio que a guerra poderia chegar a qualquer momento. — Tenho a sensação de que... de que todos estamos vivendo em uma bolha de cristal que está a ponto de estalar — disse ela com intensidade. — Tudo parece maior que a vida. Estes dois meses passados me parecem um tempo especial que não vai voltar. — Todos os tempos são especiais, e nenhum volta jamais — repôs ele tranqüilamente. Entretanto, lhe parecia humano querer reter a noite. — Poderia me fazer um favor? — perguntou Impulsivamente. — É claro. Que deseja? — Poderia fazer desenhos de todos os que vivem na casa? Anne e Charles, Colin, as crianças, os cães, você, Michael. — «Michael, sobre tudo.» Ao ver o perplexo olhar de Kenneth, apressou-se a acrescentar— : Lhe pagarei, é claro. Ele arqueou as sobrancelhas. — Por Deus, Catherine, não fala a sério, não é? Ela olhou fixamente sua taça de xerez. — Perdoa. Supondo que terá parecido um insulto, como se fosse comerciante. — Na verdade foi um completo — disse ele, marcando as rugas ao redor dos olhos. — Seria meu primeiro desenho profissional por encargo, só que não posso aceitá -lo. — Claro que não. Sinto muito, não deveria ter-lhe pedido isso. Ele interrompeu a desculpa com um rápido gesto. — Não disse que não farei os desenhos. A verdade é que já tenho vários que serviriam, mas deve aceitá-los como um presente. — Ao ver que ela ia agradecer ele se apressou a acrescentar— : Não é necessário que o agradeça. Você e Anne têm o dom de apanhar um sortido de peças mal ajustadas e criar um lar com elas. — Olhou para o céu que já estava quase escuro. — Já passou muito tempo desde que tive um lar; muitíssimo tempo. Sua tristeza a induziu a colocar sua mão em cima da dele, gesto que era tão fácil com ele como complicado com Michael. — Quando fizer os desenhos não esqueça o auto-retrato. — Se tentar fazer um, o papel poderia desintegrar-se espontaneamente — respondeu ele secamente. — Como diria Molly, que tolo é. — Os dois puseram-se a rir. Retirando a mão, continuou— : Vai ao baile da duquesa de Richmond na próxima semana? Supõe-se que vai ser a festa mais grandiosa da primavera. — Não, graças a Deus — respondeu ele com um rebuscado estremecimento. — Não sou tão 44


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importante para merecer um convite. Mas sim estarei no baile do duque o vinte e um. Posto que se comemora a batalha da Vitória, vai querer que assistam todos os seus oficiais. — Espero dançar contigo — disse ela sorrindo brincalhona. — Absolutamente não. Estou muito disposto a lhe dar meus desenhos ou minha vida, mas dançar é outra coisa muito distinta. Voltaram a rir. Catherine se virou e viu Michael de pé na porta. Ao ver que ela o olhava ele entrou na sala com expressão impenetrável. Ela sentiu ânsias de aproximar-se e lhe agarrar as mãos, mas preferiu pôr sua cara de Santa Catherine e ir servir outro xerez. Era mais fácil ser uma Santa que uma mulher. Nessa tarde Kenneth ficou a revisar seus desenhos, e a escolher os que poderiam agradar Catherine. Surpreendeu-lhe a quantidade de desenhos que tinha feito; só precisaria fazer um ou dois mais. Separou alguns para Anne também. Havia um francamente bom de toda a família Mowbry no jardim. Distraidamente apanhou seu lápis e começou a desenhar os amantes Tristan e Isolda. Tristan, o potente guerreiro, e Isolda, a princesa curadora casada com o tio de Tristan. O romance tinha terminado em tragédia, logicamente; não seria uma lenda se os dois fossem viver em uma casinha no campo, ela tivesse tido nove filhos e ele se transformasse em um corado latifundiário aficionado à caça. Não se deu conta do que estava fazendo até que o desenho estivesse terminado. Então viu que o atormentado guerreiro tinha a cara de Michael, e que a princesa de cabelos escuros que tinha em seus braços tinha a atormentada doçura de Catherine Melbourne. Soltou um assobio. De modo que por aí foram os tiros. Não era a primeira vez que seus desenhos lhe revelavam algo que não tinha visto conscientemente. Maldit o seja, será que Michael não tinha sofrido já o bastante? E Catherine também, pagando eternamente esse estúpido matrimônio contraído aos dezesseis anos? Sabendo por amarga experiência que a felicidade é fugaz, se ele estivesse apaixonado jogaria ao vento a moralidade e aproveitaria a sorte que pudesse. Gostaria de acreditar que Michael e Catherine estavam fazendo exatamente isso, mas os dois eram condenadamente nobres. O mais provável era que ambos ocultassem seus sentimentos e talvez até mesmo que os ocultassem de si mesmos. Atirou o desenho na lareira e aproximou uma vela acesa até que começou a arder. Ficou observando como se convertia em cinzas, pensando que oxalá recebessem sua recompensa no céu já que não era provável que isso ocorresse na terra. No dia anterior ao baile da duquesa do Richmond, Michael e Kenneth assistiram a um jantar de boas-vinda a vários oficiais do noventa e cinco que acabavam de chegar da América. Indevidamente, a conversação se decantou para a época em que estiveram na Espanha. Foi uma noite agradável, mas quando os dois cavalgavam para casa, Michael comentou secamente: — Não há nada como a distância para fazer parecer românticos a má comida, o mau vinho e o mau alojamento. — O verdadeiramente romântico é que fomos jovens e sobrevivemos — riu Kenneth. — meu Deus, lembra-se quando celebramos o banquete de aniversário dos fuzileiros à borda do Bidasoa? — Estar sentado com as pernas metidas em uma trincheira e usar a terra de mesa e cadeira não são o tipo de coisas que se esquecem. Entraram na Rue de La Reine a passo lento. — aproxima-se uma violenta tormenta, para os próximos dias — disse Michael ao desmontar. 45


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Kenneth o olhou interrogante. — Literal ou metafórica? — Talvez as duas. — Inconscientemente esfregou o ombro esquerdo, que lhe doía antes de uma mudança importante no tempo. — vai desatar uma feroz tempestade. Talvez isso seja tudo, mas lembra como estava acostumado a haver tormentas antes das batalhas na Península? — Tempo de Wellington — assentiu Kenneth. — Era extraordinário. Talvez devesse dizer ao duque. — Expulsaria-me de seu escritório — riu Michael. — Ele é homem de feitos não de fantasias. — Sem dúvida tem razão, mas direi a minha ordenança que tenha preparado meu equipamento se por acaso tivermos que sair depressa. — Eu farei o mesmo. Conduziram os cavalos ao estábulo. No interior havia uma lanterna acesa, que iluminava Colin Melbourne escancarado em um monte de feno, roncando sonoramente. Seu cavalo estava perto, ainda selado e com expressão de aborrecimento. Kenneth se ajoelhou a olhar o homem adormecido. — Bêbado como um lorde. — O que disse? — perguntou Michael em tom glacial. — Bom — sorriu Kenneth, — bêbado como alguns lordes. Jamais vi você tão inconsciente. — Não, e jamais verá. — Terá que reconhecer um mérito ao homem também. Conseguiu manter-se na sela o suficiente para chegar em casa. Uma honra para a cavalaria. Depois de desencilhar e acomodar seu cavalo para a noite, Michael fez o mesmo com o de Melbourne; não tinha nenhum sentido deixar sofrendo o animal porque seu amo tinha abusado do álcool. Quando terminou, Kenneth agarrou seu companheiro bêbado e o pôs de pé. — O que? Estou em casa já? — perguntou Colín meio adormecido. — Quase. Só falta caminhar até a casa. — A maldita infantaria ao resgate. Servem para algo às vezes, companheiros. Deu um passo e quase caiu de cabeça no chão. Kenneth conseguiu segurá-lo a tempo. — me dê uma mão, Michael. Vamos ter que levá-lo entre os dois. — Poderíamos deixá-lo aqui — sugeriu Michael. — A noite está temperada, e no estado em que está, não vai importar. — Catherine poderia preocupar-se se o espera em casa esta noite. Dado que isso era indubitavelmente certo, Michael passou o braço direito de Colin sobre o ombro. Misturado com o aroma do porto se sentia um forte cheiro de perfume. O bastardo esteve com uma mulher. Tentou não pensar que esse imbecil bêbado era o marido de Catherine, nem em que tinha o direito de acariciá-la e possuí-la com seu corpo promíscuo... Com os dentes apertados, agüentou sua parte do considerável peso de Colin e com Kenneth o tiraram do estábulo. Reanimado pelo ar fresco da noite, Colin virou a cabeça e deu uma piscada a Michael. — Ah, é o coronel aristocrata. Muito agradecido. — Não faz falta — respondeu Michael com brutalidade. — Faria o mesmo por qualquer um. — Pois não —corrigiu Colin. — O faz por Catherine, porque está apaixonado por ela. Michael ficou rígido. — Todos estão apaixonados por ela — disse Colin com voz de bêbado. — O honorável sargento Kenneth, o fiel Charles Mowbry, e até o maldito duque a adora. Todos a amam porque é perfeita. — Arrotou. — Sabe quão difícil é viver com uma mulher tão perfeita? 46


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— Basta, Melbourne! — ladrou Kenneth. — Aposto que sua nobre senhoria não gostaria de nada tanto quanto derrubar Catherine no feno e fazer de mim um cornudo. Michael parou em seco, empunhando a mão com fúria. — Pelo amor de Deus, homem, cale-se! Insulta sua mulher apenas por sugerir isso. — Ah, eu sei que não o faria —assegurou Colín. — Não é em vão que a chamam Santa Catherine. Sabe por que fizeram Santa à a Santa Catherine original? Porque a estúpida... Antes que acabasse a frase Kenneth se virou e lhe deu um murro na mandíbula. — Pensei que era melhor fazer isso antes que o assassinasse — explicou Kenneth enquanto o peso morto de Colin caía entre eles. Maldito seja, Kenneth via muito, pensou Michael. Continuou sua parte do trabalho, arrastando Melbourne para dentro de casa e depois subindo até seu quarto. Quando chegaram, Kenneth golpeou brandamente a porta. Passado um minuto, Catherine a abriu. Usava o cabelo solto sobre os ombros e jogou apressadamente um roupão em cima, que deixava ver muito da camisola. Via-a delicada, tenra e adormecida, e imensamente apetecível. Michael desceu os olhos com o sangue lhe zumbindo nas têmporas. — O que aconteceu? — Não se preocupe, não está ferido — disse Kenneth em tom tranqüilizador. — Está um pouco bêbado, e creio que machucou o queixo ao cair no estábulo, mas não é nada grave. Ela se fez a um lado segurando a porta. — Deixem na cama, por favor. Enquanto entravam com Colin, Michael notou que a ela se agitavam brandamente as narinas ao lhe chegar o cheiro da mistura de álcool e perfume. Nesse momento compreendeu que Kenneth tinha razão: Catherine sabia das outras mulheres de seu marido, mas fossem quais fossem suas faltas, aceitava-as com dignidade. Admirou-a, embora seguisse desejando transformar Colin em um mingau sangrento. Puseram Melbourne na cama e Kenneth lhe tirou as botas. — Pode continuar você sozinha com o resto, Catherine? — Ah, sim. Não é a primeira vez. — Suspirou e logo acrescentou com bom humor forçado. — Por sorte isto não ocorre freqüentemente. Obrigado por trazê-lo. Essas palavras foram dirigidas aos dois, mas não olhou Michael. Desde o dia no jardim, os dois evitavam olhar-se nos olhos. Desejaram-lhe boa noite, saíram do quarto e caminharam em silencio para a outra ala. Em seu interior, Michael reconheceu que sua fúria não foi unicamente porque os comentários de Colin tivessem sido grosseiros, vulgares e indignos de um cavalheiro. A parte verdadeiramente inquietante era que tudo o que havia dito o bastardo era certo. CAPÍTULO 9 Na manhã seguinte cedo, Michael estava terminando de tomar um café da manhã rápido quando Colin entrou na sala de jantar. Não havia ninguém mais na sala, de modo que era impossível não dar-se por informado de sua presença. Colin foi direito para a cafeteira. — Não lembro nada — disse, — mas minha mulher diz que você e Wilding me trouxeram para casa ontem à noite. Obrigado. — Seu cavalo merece a maior parte da honra, por trazê-lo para casa — respondeu Michael, 47


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feliz de que o outro não recordasse nada. — César é o cavalo mais preparado que tive. — serviu-se uma taça de fumegante café com mão tremula. — Tenho a cabeça como se a tivesse golpeado um canhão perdido, e mereço a dor. A minha idade deveria saber que não poderia beber cerveja, brandy e vinho na mesma noite. Sorriu, com uma expressão de tristeza tão divertida que Michael não pôde deixar de lhe devolver o sorriso. De repente teve a incômoda compreensão de que se não estivesse casado com Catherine, Colin poderia lhe cair bastante bem. Pelo menos seria mais tolerante com suas faltas. — Essa parece ser uma má combinação — disse em tom agradável, desejando tratá-lo como se Catherine não existisse. — Tem sorte de poder se mover esta manhã. — Que remédio. — Acrescentou açúcar e leite ao café e bebeu um gole longo. — Tenho que ir ao regimento e depois chegar aqui a tempo para levar minha esposa ao baile de Richmond. Pelo visto era impossível esquecer Catherine. — Alegrá-la-á que possa assistir — disse com voz neutra. Colin fez uma careta de desagrado. — Detesto essas funções, mas esta é muito importante para não ir. — Veremo-nos lá então — disse Michael acabando seu café e levantando-se. Ao sair da sala de jantar pensou que era irônico que desprezasse Melbourne e entretanto, pelo bem de Catherine, desejasse que seu marido fosse amável, decente e digno de confiança. Por que a vida tinha tantos embrulhados tons de cinzas? Em branco e negro seria mais fácil. Ao sair da casa olhou o agradável céu matutino e esfregou o ombro esquerdo. A tormenta estava mais perto. — Capitão e senhora Melbourne — entoou o lacaio— ; capitão e senhora Mowbry. Catherine pestanejou ao entrar no salão de baile. A cena era deslumbrante; a luz dos brilhantes lustres de lágrimas se refletia nas deliciosas cores dos cortinados e o papel rosa e os retratos da parede, pulverizando-se depois até a Rua da Blanchisterie através das janelas abertas. — O ar está que queima de tensão — murmurou Anne a seu lado. — Já todo mundo sabe dos três mensageiros que chegaram rapidamente esta tarde até o quartel general do duque — respondeu Catherine. — É evidente que vai acontecer alguma coisa. A pergunta é o que e onde? A melhor hipótese era que Napoleão ia invadir a Bélgica. Inclusive era possível que nesse momento seu exército estivesse partindo para a capital. Muito rápido todos saberiam a verdade. Olhou seu marido; Colin estava tenso como uma corda de harpa, quase vibrando de espera diante da ação por vir. Jamais se sentia tão vivo como quando estava na batalha. Talvez sua perseguição e conquista de mulheres era sua maneira de captar algo da mesma emoção na vida mundana. Depois de acordar danças para mais tarde com Colín e Charles, dispôs-se a desfrutar do baile. Só Deus sabia se ia haver outra ocasião semelhante. Estavam presentes todos os diplomáticos, oficiais e aristocratas importantes de Bruxelas, de modo que não havia escassez de par. Até viu o cirurgião de Wellington, o doutor Hume, espreitando em um canto. Posto que era um velho amigo desde sua estadia na Espanha, animou-o a sair à pista. — Isto só faço por você, senhora Melbourne — disse ele com expressão de mártir, — e só porque é você uma enfermeira tão boa. — Mentiroso — sorriu ela afetuosamente. — O está fazendo bem. Ele riu e assentiu justo antes que as figuras do baile os separassem. Quando voltaram a estar juntos lhe disse: — Seu amigo o doutor Kinlock chegou hoje a Bruxelas. — Ian está aqui? Que fantástico! Mas eu pensava que tinha deixado o exército depois de dois anos na Península. 48


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Cintilaram os olhos de Hume. — foi trabalhar no hospital Bart de Londres, mas não pode resistir à perspectiva de um belo sortimento de feridas. Com ele chegaram vários outros cirurgiões. — Teria que tê-lo suposto — disse ela sem poder evitar o sorriso. — Certamente são uns macabros os cirurgiões. — Sim, mas úteis. — ficou sério. — Muito em breve vamos precisar de todos os homens que saibam usar uma faca. Esse era outro aviso da guerra em uma noite saturada pela sensação de desastre iminente. Mais avançada a noite, advertiu que vários oficiais de regimentos situados mais longe partiam furtivamente. Mas não tinha chegado o homem que mais desejava ver. Enquanto dançava não deixava de passear discretamente a vista pelo salão em busca de Michael. Ele tinha a intenção de assistir, mas e se já tivesse tido que sair a reunir-se com seus homens? Era possível que não voltasse a vê-lo nunca mais. Aproximou-se a pedir uma dança lorde Haldoran, o cavalheiro esportivo que tinha preferido não entrar no exército para não ir a Manchester. Continuava achando-o inquietante, e não só pela expressão predadora que tinha visto às vezes em seus olhos. Mas não lhe tinha feito nenhuma insinuação indecorosa e suas anedotas eram divertidas, pelo qual lhe dirigiu um educado sorriso. — Faz um calor horroroso aqui —disse abanando o acalorado rosto. —importaria que nos sentássemos durante esta dança? — Encantado — repôs ele. — Os criados estão orvalhando com água as flores para que não murchem. É muito pouco amável por parte da duquesa não fazer o mesmo com os convidados. Rindo, Catherine se sentou em uma cadeira perto de uma janela aberta. — Wellington deveria chegar logo. — Quando é possível que os franceses já estejam na Bélgica? — Haldoran agarrou duas taças de champanha da bandeja de um lacaio e ofereceu uma a Catherine antes de sentar-se a seu lado. — Certamente o duque deveria estar no campo, com seu exército. — Pois não. Vindo aqui demonstra confiança e mitiga o pânico entre a população civil. — Bebeu um gole do frio vinho espumoso. — Além disso, estando no baile todos os altos comandos, será fácil conferenciar com eles discretamente. — Bom argumento. — Haldoran franziu o sobrecenho. — O imperador tem fama de atacar com enorme velocidade. Se avançar sobre Bruxelas, têm programado partir para Amberes você e a senhora Mowbry? — Meu lugar está aqui. Além disso, isso é discutível. O duque não permitirá jamais que Napoleão entre na cidade. — É possível que não tenha outra alternativa — disse ele com expressão séria. — Você é uma mulher valente, senhora Melbourne, mas vai expor sua filha aos perigos da ocupação por um exército? — Os franceses são gente civilizada — respondeu ela tranqüilamente. — Não fazem guerra as crianças. — Sem dúvida tem razão, mas eu não gostaria de ver sofrerem danos você e a senhora Mowbry e suas famílias. — Tampouco eu, lorde Haldoran. Catherine contemplou atentamente os cortinados em forma de tenda que caíam em grandes dobras douradas em escarlate e negro, e desejou que Haldoran deixasse de falar sobre seus próprios temores secretos. Embora não acreditasse que Amy estivesse em perigo, a incerteza era suficiente para pôr nervosa qualquer mãe. Terminou a música e se aproximou Charles Mowbry para levá-la a próximo dança. 49


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— Obrigado, lorde Haldoran, por compreender meu cansaço. — levantou-se. — Até a próxima vez? — Até a próxima vez — disse ele sorrindo e segurando a taça vazia. Charles não só era um dos amigos mais queridos de Catherine, mas também um dançarino excelente. Foi um prazer dançar o cotillón com ele. Acabavam de terminar quando um som de gaitas de fole perfurou o ar. — Bom Deus! — exclamou Charles. — Aí vêm esses demônios com saias. Catherine riu encantada. — Esse som sempre me impulsiona a ficar rígida e fazer uma saudação. Voltaram-se para ver entrar os soldados dos regimentos escoceses das Highlands, movendo as saias e as boinas emplumadas ao compasso da exuberante música da gaita de fole. Em um traço de genialidade animadora, a duquesa de Richmond tinha pedido aos soldados das terras altas da Escócia que dançassem essa noite. Os convidados retrocederam para os lados do salão e os escoceses começaram a girar e chutar o chão em suas danças tradicionais: reels, strathspeys e uma incrível dança com espadas. O contraste de elegância e esplendor primitivo seria inesquecível para Catherine. Entretanto, até mesmo na estranha magia do momento, seus inquietos olhos não deixavam de procurar Michael. A preparação de seu regimento para partir manteve Michael ocupado todo um longo dia. Era tarde quando chegou ao baile de Richmond. O salão bulia de animação. Wellington, uma ilha de calma, estava sentado em um sofá conversando amavelmente com uma de suas amigas. Michael deteve um amigo, oficial da Guarda Real, que saía do salão. — O que aconteceu? — O duque diz que o exército estará em marcha pela manhã. Agora vou a caminho de meu regimento. Sorte. O tempo estava se esgotando. Talvez fosse auto-complacencia vir ao baile, mas desejava ver Catherine uma última vez. Deteve-se junto a um pilar circundado por flores e esquadrinhou o salão. Não foi difícil encontrá-la. Dado que seu orçamento para roupa e jóias era modesto, vestia-se com relativa simplicidade, mantendo uma aparência de estilo trocando expertamente o corte de seus poucos vestidos. Portanto, ninguém a olhava para comentar o esplendor de seus vestidos nem o luxo de seus adornos; o que viam e recordavam era sua impressionante beleza. Essa noite usava um vestido de cetim branco gelo e umas brilhantes pérolas que destacavam sua perfeição, cabelos escuros acetinados e sua pele impecável. Em uma sala cheia de vistosos uniformize, destacava como um anjo emprestado pelo céu. Junto a ela estava Colin, com uma possessiva mão sobre seu cotovelo. Era evidente, a julgar por sua presumida expressão, que sabia muito bem quanto o invejavam outros homens por possuir à mulher mais bela de um salão cheio de mulheres belas. Com o rosto imperturbável, começou a abrir passo por entre a multidão. Depois de apresentar seus respeitos à anfitriã, dirigiu-se para Catherine. Colin tinha se afastado, mas os Mowbry tinham se reunido. Os olhos dela se iluminaram ao vê-lo aproximar-se. — Alegra-me que tenha podido vir, Michael. Pensei que talvez já o tivessem enviado para longe. — Atrasei-me, mas jamais teria perdido uma ocasião como esta. Começou a música. — Posso dançar contigo esta dança Anne, e a seguinte contigo, Catherine? 50


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As duas aceitaram e Anne esticou a mão para ele. Adivinhava uma certa tensão em seus olhos, mas os anos de esposa do exército lhe tinham ensinado a dominar -se. Quando ocupavam seus postos para o baile popular escocês, lhe disse: — Lhe cai muito bem esse vestido, Anne. Não está muito cansada com o baile? Ela sorriu e moveu seus cachos castanhos avermelhados. — vou transbordar de energia outras seis ou oito semanas até que tenha o tamanho e a forma de uma carruagem. Continuaram o fio de um bate-papo despreocupado à medida que as figuras da dança os reunia e separava. Mas tão logo a devolveu a Charles, ela se esqueceu de tudo que não fosse seu marido. Olhando-se aos olhos os dois avançaram para a pista. Michael elevou uma oração silenciosa rogando que Charles sobrevivesse a iminente campanha; um amor tão forte e sincero como o deles merecia durar. Voltou-se para Catherine e fez uma inclinação formal. — Crê que esta é minha dança milady? — É, milord — sorriu ela e se inclinou em uma graciosa reverência. Só quando soaram os primeiros compassos da música ele se deu conta de que tinha solicitado dançar uma valsa. Deliberadamente tinha evitado a intimidade das valsas nos bailes anteriores, mas essa noite lhe pareceu apropriado, porque era muito provável que esse fosse seu último baile. Ela relaxou em seus braços como se tivessem dançado mil valsas antes. Juntos giraram com a música, com os olhos cerrados. Ela o seguia com a ligeireza do anjo com que a tinha comparado, mas ele era intensamente consciente de que era uma mulher, uma criatura da terra, não do céu. Escuras mechas de cabelo colavam às têmporas úmidas enquanto giravam pela pista sem falar. Michael notou que a veia do pescoço lhe pulsava rapidamente pelo exercício; desejou apertar seus lábios ali. A delicada curva de sua orelha, que aparecia sob seus cabelos levantados era um convite ao jogo amoroso, e as sedutoras curvas de seus seios lhe atormentariam os sonhos enquanto vivesse. Desejava mais que nada no mundo tomá-la em seus braços e levá-la à terra da fantasia mais à frente do arco íris onde pudessem estar sozinhos e não houvesse atormentadores problemas de guerra e honra. Em lugar disso só tinha um punhado de momentos que foram dispersando-se como cascatas de areia. A música chegou a seu fim muito depressa. Quando ele a soltou, ela elevou suas longas pestanas, com expressão mudada. — É hora de partir? — perguntou com voz rouca. — Creio que sim. — Desviou o olhar, para que ela não visse seu desejo. No outro extremo do salão viu Wellington, que o olhou e lhe fez um gesto quase imperceptível. — O duque quer falar comigo. Quando estiver de volta em casa, é possível que eu já tenha partido. Ela conteve o fôlego. — Por favor, se cuide. — Não se preocupe, sou cauteloso até o exagero. — Quem sabe? — disse ela tentando sorrir. — Tudo isto poderia ser um alarme falso e todos estarão de volta em casa na semana que vem. — É possível. — Titubeou antes de acrescentar— : Mas se me abandonar a sorte, tenho um favor a pedir. Na primeira gaveta da cômoda de meu quarto deixei cartas para meus amigos mais íntimos. Se não sobreviver à campanha, por favor, envie-as Ela mordeu os lábios. Em seus olhos verde mar brilhavam lágrimas, que os faziam parecer maiores ainda. — Se... se acontecer o pior, quer que escreva a sua família? 51


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— Saberão tudo o que precisam saber nas listas de baixas. — Agarrou-lhe a mão e lhe beijou os dedos enluvados. — Adeus, Catherine. Deus lhe abençoe e conserve a você e a sua família. — Vaya con Dios (Vá com Deus) — disse ela em castelhano. — Apertou os dedos convulsivamente. Depois foi soltando lentamente a mão. Com um esforço, ele deixou de olhá-la, deu meia volta e atravessou o salão. Era agradável saber que lhe tinha carinho. Não diminuía esse prazer saber que também tinha carinho a Charles, a Kenneth e a outros homens. Era sua capacidade de carinho o que a fazia tão especial. Wellington tinha abandonado seu sofá para falar com seus oficiais, um por um. A Michael disse laconicamente: — Napoleão me enganou, Por Deus. Os franceses capturaram Charleroi. — Condenação! — exclamou Michael, despertado de seu sonho. — Charleroi não está a muito mais de cinqüenta quilômetros. — Poderia ter sido pior — disse o duque com sorriso glacial. — Se não tivesse sido por uma condenada boa sorte e um espetáculo de primeira classe montado pelo príncipe Bernhard e suas tropas em Quatre-Bras, o marechal Nay poderia ter continuado e entrado diretamente na cidade. Diga-me, Kenyon — continuou, enquanto Michael soltava uma maldição em silêncio. — vão resistir esses soldados novatos? Quinze dias antes não teria sabido o que responder, mas nesse momento pôde dizer: — Pode ser que não sejam os atiradores mais rápidos nem os melhores nas manobras, mas ponha-os em uma linha ou lugar com veteranos perto, e resistirão. — Queira Deus que tenha razão. Vamos precisar de todos os soldados que temos. O duque lhe deu várias ordens e depois voltou seu penetrante olhar para a multidão para chamar outro oficial. Antes de partir, Michael procurou Catherine com os olhos, para vê-la uma última vez. Foi fácil encontrá-la, já que os convidados militares estavam partindo com tanta rapidez. Estava no extremo mais afastado do salão, com seu marido, que lhe falava animadamente, os Mowbry se reuniram e os dois casais se viraram para partir. Respirando com enorme esforço, Michael saiu na quente noite. Ela não era para ele, repetiuse tristemente. «Jamais será para mim.» Michael olhou por cima do lombo do cavalo. — Bradley, pegou meu casaco? Estava no corredor de trás. — Não senhor — respondeu o ordenança, sobressaltado. —Irei procurar. Michael engoliu uma maldição. Embora o homem não fosse tão organizado como deveria ser o criado de um oficial, esforçava-se muito. — Que seja rápido. Temos que nos pôr em marcha. Quando Bradley ia saindo do estábulo, entrou Colin Melbourne. — Vão agora a seu regimento você e Charles? — perguntou Michael. Melbourne assentiu com os olhos brilhantes. — Sabe que Boney está em Charleroi? — comentou. — Por Deus, agora vamos ver um pouco de animação. — Não duvido. Michael estava a ponto de puxar para fora seu cavalo quando viu que Melbourne estava selando um pangaré inclassificável em lugar de César, que montava habitualmente. — vai levar César para tê-lo descansado? — perguntou despreocupadamente. — Não. Vou deixá-lo aqui. Vou montar Um e levar Dueto de reserva — respondeu Colin, assinalando um cavalo castrado baio tão medíocre como o que estava selando. — Não vai montar a seu melhor cavalo na batalha? — exclamou Michael olhando-o 52


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fixamente. — Não quero arriscá-lo — respondeu Melbourne. — Além de que tenho um tremendo carinho ao animal, se o matassem, a quantidade de pagamento do fundo de compensação governamental nem sequer começaria a cobrir seu valor. — Pelo amor de Deus, homem, é estúpido querer economizar algumas libras com o risco de sua vida — exclamou Michael. — Na batalha, a energia de um cavalo pode ser a diferença entre sobreviver e ser atravessado como um coelho. — A você pode parecer só algumas libras — repôs o outro asperamente. — Nem todos têm seus recursos econômicos. Michael engoliu uma maldição. Melbourne estava agindo como um imbecil e merecia o que fosse que lhe acontecesse. Mas pelo bem de Catherine, devia impedir essa loucura. — Se tratar de dinheiro, leva Thor. — Acariciou o brilhante pescoço do cavalo castanho. — Tem uma energia incrível, e o treinei para cavalaria; será capaz de fazer o que for necessário. Melbourne o olhou com a boca aberta. — De maneira nenhuma posso levar seu cavalo. Vai precisar dele você. — Olhou Thor com nostalgia. — Se o matassem, nunca poderia substituí-lo. — Um cavalo não é tão essencial na infantaria como na cavalaria. Meu outro cavalo irá muito bem. Espero que Thor saia ileso, mas se não, aceitarei o que seja que lhe dêem em compensação. — Desabotoou as cilhas. — Se tudo for bem, pode devolvê-lo em Paris. Se eu não sobreviver, é seu. — Faz-me impossível recusar — disse Melbourne com um sorriso juvenil. — É um bom tipo, Kenyon. Enquanto Michael mudava seus arreios para seu outro cavalo, Bryn, pensou se Melbourne estaria tão contente se soubesse o que ele sentia por Catherine. Provavelmente não se importaria, posto que a fidelidade de sua esposa estava acima de qualquer dúvida. Reuniu seus criados e se embrenhou na noite. No altar da honra tinha feito tudo o que estava em sua mão por contribuir à sobrevivência do marido de Catherine. Todo o resto estava nas mãos de Deus. CAPÍTULO 10 Catherine empacotou os pertences de seu marido enquanto ele preparava os cavalos. Muito em breve estavam no pátio do estábulo ela, seu marido e os Mowbry. Duas tochas iluminavam dez cavalos selados, dois criados para cada um dos oficiais, e Everett, o criado de Catherine, que tinha descido para ajudar. Charles acabava de despedir-se com um beijo de seus adormecidos filhos e estava tenso. Anne se jogou em seus braços. abraçaram-se fortemente, sem dizer uma palavra. Catherine invejou sua intimidade, embora sofresse por sua pena. Valeria à pena sofrer para ter esse amor. Voltou-se para seu marido. Tinha a expressão radiante e impenetrável que indicava que estava pensando na ação que o esperava. — Seguro que não quer se despedir de Amy? — perguntou-lhe. — Para que despertá-la? Dentro de muito pouco tempo se reunirão comigo. Ela conteve as lágrimas que ameaçavam sair, sabendo que Colin não gostaria que chorasse. Mas era impossível viver com um homem tantos anos sem amá-lo. Em um mundo ideal, talvez tivesse se casado com Michael, deixando Colin livre para caçar raposas, mulheres e franceses sem a responsabilidade de uma família. Mas as coisas não tinham acontecido assim. No mundo real, ela e Colin estavam casados, e embora estivessem terrivelmente mal casados, cada um a sua 53


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maneira tinha honrado o matrimônio. — se cuide, Colin — sussurrou. — Não esteja tão preocupada — disse ele com sorriso satisfeito. — Sabe que compartilho com Wellington a imunidade mágica às balas. — Deu-lhe umas batidinhas sob o queixo como a uma menina da idade da Amy, e montou a cavalo. — Nos veremos em Paris, mais depressa se não houver perigo. Depois, ele, Charles e seu séquito saíram cavalgando para a rua pavimentada. Catherine ficou contemplando seu marido. Reconheceu com tristeza que se ele a tivesse amado embora fo sse só um pouquinho, ela o teria amado apesar de suas mulheres. Ah, claro que a amava; desfrutava de seu cômodo lar e lhe satisfazia muitíssimo que outros homens lhe invejassem a esposa. Mas era muitíssimo mais provável que amasse mais profundamente a seu cavalo. Seu cavalo. Piscou e só nesse momento registrou o que tinha visto. Voltou-se para seu criado. — O capitão Melbourne ia cavalgando o cavalo do coronel Kenyon? — Sim — respondeu Everett. — O capitão não queria arriscar César, assim que o coronel lhe disse que levasse Thor. Ah, Deus, que típico do Colín supor que sua sorte o faria sair a salvo de uma batalha embora fosse montado em um cavalo medíocre. E que típico também de Michael considerar os interesses de outra pessoa. Atordoada se voltou para Anne e as duas entraram na casa, dirigindo-se diretamente ao armário dos licores da sala de jantar. Anne serviu uma taça de brandy para cada uma. Depois de beber a metade da taça, exclamou com veemência: — por que demônios nenhuma pessoa sensata assassinou Bonaparte? Uma bala teria economizado ao mundo muitíssima dor. — Os homens tendem a pensar que essas coisas são desonrosas — respondeu Catherine sorrindo sem humor. — Idiotas — Anne desceu a cabeça e esfregou as têmporas. — Despedir-se não se faz mais fácil com a prática. — Não cheguei a me despedir de Kenneth — suspirou Catherine. — Te contei que faz dois dias lhe pedi que fizesse desenhos de todos da casa? Deveria ter pedido antes. Ele queria fazê-los, mas não houve tempo. Anne levantou a cabeça. — Está segura? Nessa mesa há um par de pastas. Vi-as antes, mas estava muito aflita para olhá-las. Foram ver. A pasta de cima continha uma nota de Kenneth a Catherine. Pedia-lhe desculpas por não ter tido a oportunidade de lhe entregar os desenhos pessoalmente, e dizia que a outra pasta era para Anne. Catherine entregou a segunda pasta a Anne e começou a passar as páginas da sua. Os desenhos eram preciosos, sobre tudo os das crianças. Um de Amy balançando-se alegremente em um ramo no jardim de trás captava à perfeição o espírito intrépido de sua filha. Havia um em que César estava acariciando com o focinho um Colin risonho, muito bonito e seguro de si mesmo. O desenho de Michael fez que lhe doesse o coração. Com algumas linhas Kenneth tinha captado as qualidades de força e humor, honra e inteligência que a comoviam tão profundamente. Embora Kenneth fizesse o auto-retrato que lhe tinha pedido, era o desenho menos claro. Os traços eram reconhecíveis, mas o efeito geral era duro e algo intimidante; não revelava nada de sua imaginação e aguda engenhosidade. Devia ser difícil ver com claridade a nós mesmo. — Olhe isto — exclamou Anne com voz tremula. O desenho que mostrava era da família no jardim. Jamie estava feliz montado escarranchado 54


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nas costas de Charles, que se fazia de cavalo da cavalaria. Molly estava sentada junto a sua mãe, olhando com ar de grande superioridade do topo de seus avançados anos, mas ao mesmo tempo estava dando em segredo um bolo a Clancy. — Bendito Kenneth — riu Catherine. — Pensar que teve a paciência de reunir todos estes desenhos para nós enquanto estavam acontecendo tantas outras coisas. Anne contemplou atentamente um retrato de Charles de uniforme, com seu chapéu emplumado metido sob o braço. Tinha a expressão séria de um homem que experimentou a guerra sem que esta o vulgarizasse. — dentro de um século, os futuros Mowbry vão olhar este retrato e saberão que tipo de homem foi seu tataravô. — vão se sentir orgulhosos de serem seus descendentes. Anne cobriu os olhos com o dorso da mão. — Não quero chorar — disse com ferocidade. — E não vou chorar. Fez-se um longo silencio, só interrompido pelo animado ritmo de tambores na lonjura. Isso deu uma idéia a Catherine. — Nenhuma das duas vai pregar um olho esta noite. Vamos ao centro ver como se reúnem as tropas. Anne acessou e subiram a trocar os trajes de baile por outros mais simples. Quando Catherine estava a ponto de descer e reunir-se com Anne, Amy apareceu a cabeça pela porta. — Papai já partiu? Desejando que Colin tomasse tempo para despertar sua filha, respondeu: — Sim, não quis interromper seu sono. — Não teria me importado — disse Amy chateada. — Vai à cidade ver o que está acontecendo? — Ao ver que sua mãe assentia, rogou-lhe— : Por favor, deixe ir com vocês. É horrível estar sozinha e não poder dormir. Catherine a compreendeu. — Muito bem. Ponha roupa e casaco e vem conosco. Só faltava uma semana para o solstício de verão, e o céu já estava clareando no leste quando passaram pela Rue do Namur. Os tambores se ouviam mais forte; seu som era apagado pelas estridentes trompetistas que chamavam assembléia. Os soldados aliados estavam todos alojados por toda Bruxelas, e as ruas buliam de atividade, os homens indo à chamada, abotoando as jaquetas e arrastando suas mochilas ao sair das casas. Junto a elas passou um regimento britânico de infantaria, partindo para a porta Namur ao compasso do TAM TAM dos tambores. O ritmo insistente se introduzia no sangue, tão emocionante como alarmante. Catherine observou atentamente os soldados, perguntando-se se esse regimento poderia ser o de Michael. Estava muito escuro para identificar as marcas distintivas de seus uniformize, e não conseguiu ver sua figura erguida entre os oficiais que cavalgavam junto a suas tropas. Não importa; embora tivesse sido seu regimento, eles já se despediram; seria atroz fazê-lo novamente diante de Anne e Amy. A Praça Royale era um caos total. Soldados de seis países procuravam suas companhias, às vezes acompanhados por mulheres chorando. Alguns veteranos estavam dormindo com a cabeça apoiada em sua bagagem, indiferentes ao estrépito dos ca valos, canhões e carros que estalavam pelos paralelepípedos. — Boney não tem nenhuma possibilidade, não é? — perguntou Amy a Catherine lhe apertando a mão. — Não, contra Wellington não. O duque não perdeu jamais uma batalha em sua vida — respondeu ela tentando que sua voz soasse confiada. 55


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Caminharam da Praça Royal até o parque próximo. Era por volta das quatro da manhã e o sol de verão estava aparecendo no horizonte. Os raios oblíquos de luz caíam sobre as agulhas da catedral de Saint Michel. Ao vê-las Catherine sorriu irônica; por toda parte via avisos de Michael. No parque, o feroz e franco gaulês, o general Picton, estava reunindo seu regimento. — A brigada de fuzileiros está com Picton, não é? — comentou Anne. — Talvez possamos localizar Kenneth. Exploraram com a vista a efervescente massa de fuzileiros de jaqueta verde, procurando os oficiais. Os agudos olhos de Amy o encontraram. — Ali está — exclamou entusiasmada. — Ali está o capitão Wilding. Estava montado a cavalo, dando ordens a seus oficiais ajudantes, mas se voltou quando Catherine pronunciou seu nome. Ela se aproximou e ficou nas pontas dos pés para lhe apertar a mão. — Me alegro de tê-lo encontrado, Kenneth. Não me parecia bem não me despedir e lhe desejar boa sorte. Dirigiu-lhe um excepcional sorriso que transformou em bonito seu rosto de marcados traços. — É muito boa, Catherine. — Transformou-se em familiar. Se lhe ferirem, se assegure de que o tragam para casa, para poder o cuidar bem. — Ao ver que ficava rígido seu rosto, acrescentou para não sobressaltá-lo mais— : Obrigado pelos desenhos. São maravilhosos. — conservarei os meus eternamente — acrescentou Anne com veemência. — Descansarei melhor sabendo que alcancei certo tipo de imortalidade — disse ele com débil sorriso. — Mas o que faz interessante um desenho é o tema, portanto o mérito é seu e de sua família. — Volte logo — acrescentou Amy. — Molly e eu ainda não pegamos o truque das perspectivas. Necessitamos mais aulas. — Farei o possível, mas agora devo ir. Se cuide. Tocou-se a cabeça em modo de saudação e se voltou para sua companhia. Catherine e as acompanhantes se retiraram para um lado e dali viram como ia nascendo a ordem de partir dessa caótica confusão. Muito em breve os soldados de Picton se afastaram e os fortes golpes de suas botas ressonaram em todo o parque. Nessa divisão foram os regimentos escoceses que tinham entretido os convidados da duquesa de Richmond; os soldados partiam com tanta uniformidade que quase não se moviam as plumas de suas boinas; as gaitas de fole que no salão de baile pareciam exóticas eram adequadas, com seu intenso som, para incitar à guerra os escoceses com saias. Caminhando atrás da divisão, as três mulheres desandaram seu caminho até a Rue de La Reine, abrindo passo por entre montículos de bagagem e fileiras de animais carregados. Quando a cidade se esvaziou de soldados, os cidadãos de Bruxelas voltaram para suas camas. Quando chegaram em casa, o cansaço já tinha esgotado a energia nervosa de Catherine; talvez todos pudessem descansar agora, pensou. Mas não pôde dormir; no meio da amanhã levantou adormecida. Na Espanha, geralmente estava o suficientemente perto do campo de ação para ter idéia do que acontecia. Ali não tinha nenhuma notícia e isso lhe converteu o dia em um dos mais longos de sua vida. Contagiados da tensão, as crianças estavam inquietas e briguentas. Os criados se reuniam em grupo para falar em sussurros, e uma das criadas belgas pediu seu pagamento para poder partir para casa de sua família em uma aldeia no norte da cidade. Quando Catherine e Anne estavam almoçando a uma hora tardia, através do campo lhes chegou o estrondo dos detestáveis canhões. Tinha começado a batalha. Olharam-se, sem se 56


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atreverem a falar, e logo voltaram a concentrar-se em silencio em suas tigelas de sopa. Quando já não puderam suportar por mais tempo a inatividade, subiram às muralhas da cidade, levando com elas as três crianças e a jovem e bonita babá escocesa de Anne. Sobre as muralhas estavam reunidas centenas de pessoas olhando para o sul. Rumorejavamse muitas coisas, mas não havia nenhuma notícia sólida. Às dez em ponto dessa noite, um forte golpe na porta fez Catherine e Anne correr. Anne a abriu e se encontrou diante de Will Ferris, o ordenança de seu marido, todo poeirento. Anne empalideceu: — Ah, Meu deus! Charles... ? — Não, senhora — se apressou a dizer o criado. — Justamente o contrário. O senhor me enviou a dizer que ele e o capitão Melbourne estão bem. — Enquanto Catherine o conduzia à cozinha, continuou— : Houve uma horrorosa batalha contra o marechal Ney no Quatre-Bras, mas a cavalaria chegou quando já estava terminando, assim quase não nos tocaram. Dizem que um grupo de lançadores franceses quase capturou o duque; teve que saltar uma fossa cheia de escoceses de Gordon para salvar-se. — Moveu a cabeça. — Os regimentos escoceses das terras altas foram destroçados; pobres diabos. Catherine serviu frios e cerveja, enquanto pensava entristecida nos alegres jovens escoceses que tinham dançado na noite anterior. Quantos ficaram vivos? — Qual foi o resultado da batalha? — perguntou. Ferris deu de ombros, com ar indiferente. — Não sei se ganhou algum lado, mas pelo menos não perdemos. Dizem que o próprio Napoleão foi em perseguição do exército prussiano. Blücher tinha mais homens, assim se ele e seus homens o fizeram bem, os franceses poderiam estar retirando-se neste momento. — Oxalá tenha razão — disse fervorosamente Anne. — E a brigada de fuzileiros? E o regimento do coronel Kenyon? — Os fuzileiros estiveram no mais renhido da batalha, mas ao capitão Wilding não aconteceu nada. — Fez uma pausa para beber um bom gole de cerveja. — Tampouco aos do cento e cinco; mantiveram-nos em reserva e não chegaram a entrar em combate. Isso se devia provavelmente à inexperiência do regimento, pensou Catherine. Desejou que continuassem deixando na reserva o cento e cinco, e não os pusessem em primeira linha de batalha. Michael e seus homens poderiam achar isso decepcionante, mas ela não. Depois de comer, o ordenança pediu permissão para visitar Elspeth McLeod, a jovem babá escocesa de Anne; estavam namorando. Depois de passar meia hora com sua bem amada, Ferris voltou a selar seu cavalo para o longo trajeto de volta ao exército. Catherine estava abatida quando foi se deitar. Seria fabuloso acreditar que os franceses tinham sido derrotados, mas seu coração lhe dizia que o pior ainda estava por vir. A demonstração da batalha do dia anterior chegou na manhã seguinte, quando Molly olhou por uma janela do segundo andar e gritou muito excitada: — Mamãe, soldados feridos na rua! Seu grito atraiu correndo a quase todos da casa. Da janela se via a Rue de Namur. Homens feridos que tinham caminhado toda a noite começavam a entrar aos tropeções na cidade pela porta Namur. — irei procurar minha equipe médica — disse Catherine com os lábios lívidos. — vão precisar de água — acrescentou Anne. Olhou seus filhos que estavam fortemente agarrados a suas saias. — Molly, foste muito pronta ao ver os soldados. Jamie, empresta-me seu carrinho de mão para poder levar baldes de água? O menino assentiu muito sério. 57


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— Eu também irei, senhora — disse Elspeth. — Tenho seis irmãos e sei alguma coisa de tratar feridas. Outros criados também se ofereceram a fazer o que pudessem. Anne ordenou a seus filhos que ficassem em casa com a cozinheira. Amy, mais velha e mais decidida, não se incomodou em perguntar se podia ajudar; simplesmente acompanhou Anne com o carrinho de mão com água. Catherine pensou em lhe dizer que voltasse para casa, mas decidiu não fazê-lo. Sua filha não era novata em ver a dor. Quando o grupo chegou a Rue de Namur, a rua já se transformara em um hospital improvisado. Além dos feridos a pé, pela porta foram entrando carros cheios de feridos. Cidadãos belgas e estrangeiros saíam de suas casas a trabalhar cotovelo a cotovelo para aliviar os sofredores do modo que pudessem. Alguns acompanhavam os feridos a seus alojamentos enquanto outros traziam mantas, palha e sombrinhas para proteger os homens do ardente sol. Catherine viu uma monja e a uma garota com aspecto de prostituta ajudar a levantar um menino que tinha ca ído desacordado sobre a grade de uma casa. As farmácias davam material grátis. A experiência de Catherine na Península foi muito útil para limpar e enfaixar feridas menos graves. Depois da horrorosa incerteza do dia anterior, era um alívio poder fazer algo. Posto que Amy fosse uma dispensadora de água digna de confiança, Anne tirou uma caderneta para anotar mensagens e lembranças de homens moribundos que desejavam que se informasse a suas famílias. Catherine estava tirando partes de tecido e renda dourada de um braço ensangüentado e muito ferido quando ouviu uma conhecida voz escocesa: — Que surpresa a encontrar no meio disto, moça. Levantou a cabeça para ver os cabelos prematuramente grisalhos e a camisa ensangüentada de seu amigo cirurgião Ian Kinlock. — E que surpresa que tenha feito toda a viagem de Londres para ver mais carnificina — disse com voz tremente. — Graças a Deus que está aqui, Ian. Este sargento necessita algo mais do que eu sei fazer. Kinlock se ajoelhou junto a ela e examinou a ferida. — Está com sorte, sargento. Tem duas balas no braço, mas nenhum osso quebrado, por isso não é necessário amputar. — Tirou instrumentos de sua maleta. — Catherine, segure-o um momento para que possa extrair as balas. Catherine segurou com força o braço direito ferido. O sargento emitiu uma exclamação de dor e lhe cobriu de suor o rosto, mas quase não se moveu durante os longos minutos que levou localizar e extrair as balas. Quando acabou a exploração, Catherine lhe passou uma esponja com água fria pelo rosto, enquanto Ian lhe enfaixava a ferida. — O agradeço aos dois — disse o sargento com forte acento irlandês. Levantou-se até sentarse, ajudando-se com o braço bom. — Se me ajudar, senhor, me porei a caminho. — Conseguira, sargento — disse Ian, ajudando-o a levantar-se. — Vai à tenda hospital que está junto à porta? O irlandês negou com a cabeça. — Tenho um alojamento onde cuidarão de mim. Não entendo uma palavra do que dizem, mas me tratam como um príncipe. Ainda não tinha andado dez passos quando se aproximou um sacerdote ancião para acompanhá-lo a seu destino. Ao advertir que tinha escurecido, Catherine levantou a vista ao céu e viu que estava coberto por nuvens negras. Levantou-se o vento e no horizonte brilhavam relâmpagos. 58


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— Deus, aproxima-se uma tormenta. A única coisa que nos faltava. — E vem rápido — respondeu Ian. Boa coisa que se levantaram tendas hospitais. — Guardo os instrumentos vá proporcionar alguma proteção para esta pobre gente. Catherine olhou ao redor e viu que a rua estava quase vazia. O primeiro turno de feridos tinha sido atendida e transportada sob teto. Anne tinha partido fazia uma hora, pálida de cansaço. Os relâmpagos estalavam muito mais perto, iluminando a rua com um resplendor estridente. — Quanto tempo esta trabalhando aqui? — perguntou o cirurgião enquanto ela olhava aturdida as grossas gotas de chuva que caíam em sua saia suja. — Não sei. — limpou a água da testa. — Horas. — Vá para casa — ordenou. — Quando tiver descansado um pouco pode ir à tenda hospital. — Estará trabalhando aqui? — Sim. — Sorriu irônico. — E dormindo também, suponho. — se abrigue conosco. — Assinalou-lhe a casa. — Temos espaço de sobra e descansará melhor que na tenda. — Aceitarei isso, com muita gratidão. Os relâmpagos cruzavam o céu, seguidos imediatamente por uma ensurdecedora série de trovões. Catherine recolheu sua equipe médica e foi em busca de Amy, enquanto a chuva se fazia torrencial. A sua filha adorava as tormentas, e a encontrou olhando o céu fascinada. — O tempo de Wellington, mamãe — disse, elevando a voz para fazer-se ouvir por cima dos trovões. — vai haver uma batalha. — Muito provavelmente. — Agarrou-lhe a mão. — Mas agora entremos em casa antes que nos afoguemos. Catherine levou Amy ao quarto das crianças. Depois tirou a roupa molhada, vestiu uma roupa seca e desceu para tomar o chá quente com sanduíches que Anne tinha mandado preparar. Estavam terminando quando soou uma batida na porta principal. Um minuto depois, a criada introduziu lorde Haldoran na sala do café da amanhã. A água caía a jorros de seu casaco, e sua elegante indiferença tinha sido substituída por urgência. — Senhora Melbourne, senhora Mowbry — saudou com uma rápida inclinação. — souberam as últimas notícias? — Não sei — repôs Anne, — Por favor, diga-nos isso — Ontem os prussianos foram muito maltratados no Ligny. Tiveram que retroceder quase trinta quilômetros, de modo que Wellington está retrocedendo também para manter suas linhas de comunicação. Tenho entendido que está instalando seu quartel em um povoado chamado Waterloo. — meu Deus — sussurrou Anne muito pálida. — Isso está só a quinze ou dezesseis quilômetros daqui. — Napoleão está às portas de Bruxelas — disse Haldoran com veemência. — Ninguém sabe se Wellington vai ser capaz de detê-lo com seu esfarrapado sortimento de soldados. Todos os estrangeiros que podem abandonar a cidade estão partindo ou partiram. Catherine deixou cuidadosamente a xícara no pires. — Apostaria meu dinheiro pelo duque — disse, — mas essas não são boas notícias. — Não vim assustá-las — disse Haldoran um pouco mais calmo. — A semana passada tomei a precaução de alugar uma barcaça para que me leve a Amberes se o combate fosse mal. Há espaço para vocês, as crianças e uma criada para cada uma. Mas se querem vir, temos que partir em seguida. Catherine o olhou surpresa; era uma oferta extraordinariamente generosa. Talvez o tenha 59


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julgado mal. — Eu não... não posso abandonar meu marido. — Inconscientemente Anne acariciou o inchado ventre com uma mão. — E se o ferirem e o trouxerem para casa? — Se as coisas forem bem, podem voltar dentro de alguns dias — disse Haldoran olhando alternativamente a Anne e Catherine. — Mas se não, desejariam seus maridos que arriscassem a vida de seus filhos? Catherine mordeu os lábios. Estava disposta a correr seus riscos, mas se atrevia a fazer isso com sua filha? — Há uma solução — disse. Quando os outros dois a olharam, acrescentou— : Tenho mais experiência como enfermeira e Anne tem mais filhos. Eu ficarei aqui e manterei aberta a casa enquanto Anne leva as três crianças a Amberes. Anne deu um suspiro de alívio. — Se estiver disposta, isso seria perfeito. Embora me chateie partir, seríamos tolas de não aproveitar a oportunidade de levar as crianças a um lugar seguro estando tão perto os franceses. Lorde Haldoran, demorarei meia hora em dispor de tudo. É aceitável isso? Catherine viu acontecer um relâmpago de irritação pelos olhos de Haldoran, e compreendeu que sua oferta tinha sido menos generosa que o que parecia na superfície. Na realidade desejava a ela, provavelmente com a esperança de que a penalizada esposa do oficial estivesse necessitada de consolo. Mas dava no mesmo; sua ajuda iria muito bem, e ele era muito cavalheiro para retirá-la se ela não ia com eles. — Meia hora estará bem — disse ele ocultando rapidamente sua irritação— ; embora eu gostaria que você também viesse, senhora Melbourne. Bruxelas pode ser perigosa. — levantou-se. —deixarei a direção de meu banqueiro em Amberes. Pode comunicar-se comigo através deles se for necessário. — Obrigado. É muito amável de sua parte se incomodar tanto por pessoas que só conhece há alguns dias —disse com um indício de aspereza. — Seria criminoso desperdiçar o espaço na barcaça — respondeu ele piedosamente. — Estando seus maridos arriscando suas vidas pelo país, parece-me correto fazer extensivo meu amparo a vocês. A meia hora seguinte passou em um frenesi de atividade. Quando disseram a Amy que iria para Amberes, rogou: — Por favor, mamãe, me deixe ficar. Muitas vezes me disse que sou de boa ajuda. — E é, carinho. Mas não poderei deixar de me preocupar do que poderia te acontecer. — Sorriu tristemente. — Não posso evitar, sou mãe. Quando tiver filhos compreenderá. Amy capitulou, com a condição de que lhe permitiria voltar tão logo não houvesse perigo. A bonita babá Elspeth McLeod também pediu para ficar. Sabendo que a garota desejava estar perto de Will Ferris, Anne acessou, levando a criada de Catherine para que a ajudasse com as crianças. À meia hora exata da oferta de Haldoran, as viajantes se reuniram no vestíbulo. Catherine abraçou muito fortemente Amy e se voltou para abraçar Anne. — Se as vicissitudes da guerra nos separassem, sabe o endereço da mãe de Charles em Londres — disse sua amiga com voz abafada. — E se... e se algo s acontecer a você e a Colin, criarei Amy como se fosse minha. — Sei — respondeu Catherine engolindo as lágrimas. — E se for necessário, eu cuidarei de Charles como você faria. Anne fez uma funda inspiração. — É hora de partir, todos — disse calmamente. 60


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Da janela Catherine contemplou o grupo correr pela chuva para as carruagens. Alegrou-se ao ver que Haldoran tinha vários criados corpulentos, de a specto perigoso, para proteger o grupo. Ficou olhando até que os carros se perderam de vista. Depois se afastou da janela com lágrimas lhe correndo pelo rosto. Era a primeira vez que se separava de Amy. — Maldito Napoleão — sussurrou. — Deus o condene ao inferno. Capítulo 11 Uma das primeiras lições militares que tinha aprendido Michael era que um oficial sempre deve parecer sereno. Isso era particularmente importante quando horas de mortíferos ca nhões franceses já tinham matado ou ferido um quarto de seu regimento e mais da metade dos oficiais. O estrondo e as nuvens de fumaça negra eram suficientes para pôr nervosos inclusive os soldados experientes. O regimento estava formado em um quadro de defesa com o centro livre. Filas de soldados armados formavam o quadrilátero, fazendo frente por suas quatro faces, enquanto os oficiais, as provisões, as munições e os feridos estavam cobertos no centro da formação. Os feridos menos graves se retiravam do campo, e os mortos eram jogados sem piedade fora do quadro para deixar espaço aos vivos. Michael passeava pelo interior do quadro, falando com seus homens, oferecendo todo o consolo que podia aos feridos e soltando alguma piada irônica de vez em quando. Tentando não inspirar muito profundamente a fumaça acre e pegajosa, dirigiu-se ao centro do quadro, onde estavam as duas bandeiras do regimento, identificando as cores. Tradicionalmente as levavam os oficiais mais jovens do regimento, custodiados por sargentos experientes. O alferes mais jovem, Thomas Hussey, só tinha dezesseis anos, de modo que Michael não o perdia de vista. Quando ia chegando ao centro, caiu uma bala de canhão perto das cores, que por sorte não atingiu ninguém. A bala rodou pela terra branda. Tom Hussey passou a bandeira a um dos sargentos protetores. — Posto que os franceses nos proporcionaram os meios — gritou alegremente, — joguemos um jogo de futebol? Correu para a bala com a evidente intenção de chutá -la. — Não a toques! — ladrou Michael. — Uma bala de canhão pode parecer inofensiva, mas poderia lhe voar o pé. Vi acontecer. O alferes parou em seco. — Obrigado, senhor. Um pouco pálido, o moço retornou a sua bandeira. Michael lhe fez um leve gesto de aprovação com a cabeça. Embora sem experiência, o menino tinha o alegre valor que o faria um bom oficial, se sobrevivesse. Michael levantou sua luneta para ver o pouco que podia ver da batalha. Sua vista consistia principalmente em campos de cevada ao redor de um metro de altura. Anteriormente tinha havido um ataque infantaria francesa à esquerda. A cevada e a fumaça nebulosa o obscurecia tudo além de uns trinta metros, de modo que tinha seguido a batalha guiando-se pelo ruído dos mosquetes, os gritos e a música marcial. Os franceses se retiraram derrotados, mas além disso não sabia nada mais. Outra bala de canhão golpeou vários homens na parte de atrás do quadro. O capitão Graham, o oficial não ferido de outra fila depois de Michael, foi ver os danos. — Posso lhe fazer uma pergunta, coronel Kenyon? — perguntou Tom Hussey com expressão grave. 61


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— Adiante. — Do que serve estar aqui e que nos destrocem? Não há combate neste setor das linhas. Não poderíamos nos retirar a uma distância mais segura até que sejamos necessários? — É que somos necessários, para fazer exatamente o que estamos fazendo — respondeu Michael muito sério. — Se não estivéssemos aqui, os homens de Napoleão passariam facilmente e a batalha estaria perdida. A cavalaria pode ir e vir por um campo de batalha, mas é a infantaria que toma posse. — Golpeou a terra branda com o pé. — Enquanto estiver vivo um só homem do cento e cinco, este é chão britânico. A morte de nossos companheiros é trágica, mas não carece de sentido. — Compreendo, senhor — disse o alferes assentindo lentamente. Embora sua explicação fosse certa, esse longo e sangrento dia era um vivo aviso de por que ele preferia o combate rápido e fluido da brigada de fuzileiros. Alguém se sente melhor sendo um branco móvel que um estacionário. Perguntou-se como estaria indo Kenneth e o noventa e cinco. Provavelmente estariam passando o dia em escaramuças com os franceses entre as linhas. Invejouos. Novamente começou a passear pelo quadro. Estava falando com um tenente quando se deu conta de que não ouvia sua própria voz. O incessante estrondo da artilharia tinha feito quase impossível falar e pensar. O canhão tinha deixado de disparar para seu setor de linhas. Sabendo o que isso significava, gritou: —preparem-se para o ataque! Deixaram de disparar para não ferir seus próprios homens. Adormecidos os soldados se avivaram. Os sargentos gritaram ordens, afirmaram as linhas com maldições e exortações a vigiar a carga dos mosquetes. O ar vibrava de tensão, porque essa seria a primeira degustação que faria o regimento do combate corpo a corpo. A princípio os olhos cansados dos soldados só viram formas fantasmagóricas avançando através das cortinas de fumaça. Depois apareceu uma linha de homens a cavalo; as imprecisas figuras foram tomando a forma de coraceros 3 franceses. Seus brilhantes cascos de aço e suas couraças lhes davam a misteriosa aparência de cavalheiros medievais. Homens grandes sobre cavalos grandes, eram a cavalaria pesada, destinada a esmagar toda oposição, e avançava diretamente para cima do cento e cinco e os dois quadros vizinhos. Os enormes cascos dos cavalos esmagavam os caules dos cereais afundando-os na terra lamacenta à medida que os coraceros subiam inexoráveis pela inclinação. Vendo agitar a linha de frente, Michael avançou rapidamente de sua posição no centro. — Firmes! — gritou. — Os cavalos não atacam diretamente uma trincheira, e temos mais arma que eles. Não façam fogo enquanto não ordenar. E quando der a ordem, apontem para os cavalos. Os cavaleiros estavam a quarenta passos quando Michael gritou a ordem: — Preparados! Mirar! Fogo! A primeira linha descarregou seus mosquetes em um ensurdecedor disparo. Ouviram-se chiados de cavalos feridos e um estranho estalar que parecia chuva de granizo ao ricochetear as balas nas couraças de aço. Caíram vários cavalos com seus cavaleiros, o que obrigou aos que vinham atrás a desviar-se para os lados. Enquanto a primeira linha recarregava seus mosquetes, Michael deu a ordem de disparar à segunda. A ofensiva abateu mais atacantes. Face aos impetuosos esforços dos cavaleiros, os cavalos se desviaram, correndo ao redor do quadro, pondo-os ao alcance do fogo das linhas combinadas nos flancos. 3

Coraceros: soldados de cavalaria que antigamente usavam couraças

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Os soldados de cavalaria giravam desordenadamente ao redor do quadro, disparando suas pistolas e recebendo disparos a sua vez. Vendo finalmente a inutilidade da manobra, seu comandante ordenou a retirada. Os cavalos foram descendo rapidamente a ladeira quando um cavaleiro ferido gritou desesperado pedindo ajuda. Um de seus companheiros virou seu cavalo e voltou atrás. Quando agarrou a mão a seu de amigo para subi-lo a seus arreios, dois soldados britânicos levantaram seus mosquetes e apontaram. — Não! — gritou Michael. — Não matem um homem valente por ajudar seu amigo. Depois de um instante de perplexidade, os homens assentiram e baixaram suas armas. A valentia merece respeito, inclusive no inimigo. Durante a trégua que seguiu, Michael explorou o campo com sua luneta. Pouco podia ver além dos quadros vizinhos, mas dava a impressão de que a cavalaria francesa estava atacando um amplo setor das linhas aliadas. Um grito advertiu que os coraceros voltavam para ataque. — Desfrutem das cargas de cavalaria, cavalheiros — os exortou ironicamente Michael. — São muito menos perigosas que os canhões. Ouviram-se risadas por toda a formação. Desta vez o fogo foi ininterrupto. Ao redor do quadro começou a formar uma barreira de cavalos mortos ou feridos, o que fazia mais difícil aos cavaleiros aproximar-se. Michael ia se aproximando da face esquerda do quadro, que estava recebendo as ofensivas mais intensas, quando uma bala o atingiu no braço esquerdo. O impacto o fez girar e o lançou ao chão. — Está ferido, senhor? — exclamou o capitão Graham correndo a seu lado. Meio aturdido, Michael conseguiu ficar em posição sentado. Uma onda de dor quase o fez perder os sentidos. Quando viu os rostos alarmados ao redor dele, obrigou-se a ficar de pé. — Não é grave — disse com voz rouca. — Que alguém daqui enfaixe isso. O cirurgião do regimento tinha morrido e seus ajudantes estavam feridos em gravidade, de modo que um cabo que tinha sido barbeiro estava tratando as feridas como podia. Depois de lhe enfaixar firmemente a ferida e pôr uma tipóia, ofereceu-lhe um cantil. — Beba um pouco disto, senhor, mas lentamente. Fazendo caso da advertência, Michael bebeu um gole. O cantil continha ge nebra pura. Saltaram-lhe as lágrimas, mas o licor certamente o distraiu da dor do braço. — Obrigado, Symms. É generoso de sua parte compartilhar sua medicina. Symms fez um gesto de aflição e pôs a tampa no cantil. — É necessário mantê-lo em forma, senhor, porque estamos escassos de oficiais. A cavalaria se retirou enquanto atendiam Michael. Embora o cento e cinco se mantivesse em pé, as feridas estavam reduzindo o número de soldados por fila. Michael deu a ordem de juntar-se mais e preparar-se para o seguinte ataque. Catherine saiu cedo para trabalhar na tenda hospital. No meio da tarde fez um curto descanso, levando um copo de água à mesa de operações de Kinlock. Uma parede de lona a separava das macas com homens feridos. Ele também estava t endo um descanso, por isso lhe passou o copo. — Talvez os exércitos não tenham começado a batalha ainda. Hoje não houve ruído de disparos. Ele terminou de beber e moveu a cabeça. — O vento vem do outro lado. Poderia estar acontecendo algo, e provavelmente está acontecendo. 63


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Os dois ficaram em silêncio. Soaram os sinos de uma igreja próxima. — Tinha esquecido que hoje é domingo — disse ela muito séria. — Mau dia para uma batalha. — Todos os dias são maus — respondeu ele. Limpou o suor do rosto e disse a seus ordenanças— : Tragam o seguinte. Catherine voltou para seu trabalho de dar água e trocar ataduras. Mas embora tivesse um sorriso e uma palavra amável para todos, uma parte de seu coração estava com os homens que estavam combatendo, e talvez morrendo, a só uns poucos quilômetros. As cargas da cavalaria iam e vinham, uma e outra vez, como ondas rompendo contra as rochas. Michael tinha perdido a conta do número. Dez? Doze? Mas o regimento tinha ganho confiança. Quando apareceu a terceira carga pela colina, ouviu uma arrastada voz nortista dizer: «Aí vêm outra vez esses condenados estúpidos». Esse ataque era o pior. Os coraceros levavam mais de uma hora dando voltas em círculo, disparando suas pistolas, brandindo seus sabres e fazendo todo o possível por romper os quadros aliados. Não o tinham conseguido. Não só tinham menos arma mas também seus cavalos continuavam fugindo das baionetas e mosquetes britânicos. O cento e cinco se mantinha firme como se tivesse jogado raízes na terra. Wellington fazia caso das palavras de Michael a noite do baile e situou o regimento entre veteranos. À esquerda estava o regimento setenta e três da infantaria britânica, e à direita os hannoverianos 4 da legião alemã do rei, que tinha combatido com honra na Península. Os homens de Michael tinham uma fera determinação de demonstrar que eram iguais os seus vizinhos, e estavam conseguindo. Atrás dele soou um grito rouco e nele ouviu desastre. Virou-se e viu estalar um cavalo moribundo contra um lado do quadro. O animal chiou e se debateu, lançando a terra uma fileira de soldados e abrindo uma brecha na fila. Vendo sua oportunidade, outros coraceros conduziram seus cavalos para a brecha. Michael soltou furiosas maldições, porque esse acidente fortuito era praticamente a única maneira como a cavalaria podia romper um quadro. A fila já estava se desfazendo, ao dispersarem os aterrorizados soldados para evitar os cascos dos enormes cavalos. Michael correu a remanejar seus homens. Ao ver passar junto a ele um apavorado jovem com o rosto negro de pólvora, golpeou-o com a parte plaina de sua espada. — se defenda e lute como um homem, maldito seja! Fugir é a maneira mais rápida de morrer. O terror desapareceu dos olhos do menino, que deu a volta e levantou seu mosquete com mãos tremulas. Chegaram também os outros oficiais sobreviventes e vários sargentos para impedir o desmoronamento do quadro. Iniciou-se uma luta desumana quando os britânicos tentaram fazer retroceder os coraceros franceses. Para Michael o tempo se fez lento, transformando a luta corpo a corpo em uma dança sobrenatural. O ritmo lento significava que podia ver e tirar partido de todos os erros do inimigo. Era uma condenada lástima não poder usar o braço esquerdo, mas isso não o incapacitava gravemente. Um coracero investiu com um selvagem golpe, mas ele aparou o golpe facilmente com sua espada, e no mesmo e fluido movimento a enterrou justo no centro da garganta do francês. Sem solução de continuidade, liberou a espada e a enterrou em seu cavalo que estava a ponto de atropelá-lo. Agachou-se sob o nível do sabre de seu cavaleiro e cortou o tendão dianteiro direito do cavalo, deixando-o impedido. O cavaleiro caiu ao chão e um soldado irlandês o 4

Hannoverianos: Raça de cavalos alemães a qual teve o no me dado a um grup amento militar alemão que lutou em Waterloo

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rematou com uma baioneta. Um coracero acalorado lançou seu cavalo direto para as bandeiras da companhia, decidido a elevar-se com uma. As bandeiras de metro oitenta eram o coração e o espírito de um regimento, e perder uma na batalha seria causa irreparável de vergonha. Ao ver o perigo, Tom Hussey e seus dois sargentos se apressaram a pôr a salvo a União Jack. Os protetores da bandeira azul do regimento tiveram menos sorte. Um sargento já estava caído; o outro ergueu a lança, que era o distintivo de seu cargo. Mas antes de poder usar a lança recebeu um disparo de pistola do coracero, o que deixou um alferes e a bandeira desprotegidos. O alferes, Gray, tentou de proteger bandeira, mas o francês o fez cair e agarrou a haste da bandeira em uma mão. Com um rouco grito de triunfo, esporeou sua cavalgadura para escapar do quadro. Ver isso fez ferver o sangue de Michael. Soltou sua espada e se lançou para o cavalo. Tinha inutilizado seu braço esquerdo, mas conseguiu agarrar a haste da bandeira com a mão direita. O forte puxão quase lhe arrancou o braço da articulação. Aferrou-se com determinação e seu peso refreou o coracero. Vendo que Michael estava absolutamente indefeso, o coracero Brandiu seu sabre e lhe alcançou as costelas. Estava se preparando para dar um golpe mortal quando o sargento ferido se levantou e lhe enterrou a lança pela abertura da couraça para os braços, atravessando o francês. Michael, enjoado, continuava obstinado à haste da bandeira, enquanto o corpo do cavaleiro caía mais à frente. Com o peito palpitante, observou o quadro e viu que a selvagem defesa do cento e cinco tinha fechado a brecha. Dois coraceros estavam presos dentro; nenhum dos dois sobreviveu para voltar para suas linhas. O sargento ferido e o machucado alferes recuperaram a bandeira, deixando Michael livre para que lhe enfaixassem as costelas. Embora durante a acalorada refrega não tivesse sentido dor, esta se instalou em toda sua força quando passou o perigo. Suas feridas eram bastante graves para abandonar o campo sem que ninguém o culpasse, mas não se atreveu. Nenhum outro oficial tinha nenhuma fração de sua experiência. Graham, o seguinte na fila, vinha de um regimento miliciano de condado e antes desse dia não tinha visto nenhuma batalha. Se não ficasse, só Deus sabia o que poderia acontecer na crise seguinte. Embora a genebra não pudesse substituir o sangue, alguns goles lhe adormeceram a dor. — Caramba! — gritou nesse momento alguém com acento cockney. — Aí vem Hóquei! Houve aplausos e vivas. Michael devolveu o cantil de genebra e se voltou a olhar. Wellington e um ajudante de campo cavalgavam a toda velocidade para seu quadro, seguidos por vários lançadores franceses. Abriu-se o quadro para admitir o duque e seu acompanhante, e voltou a fechar-se. Uma descarga fechada de balas de mosquete afugentou os lançadores. Wellington tinha fama de estar sempre onde a luta era mais encarniçada. Imperturbável, puxou as rédeas, como se não acabasse de escapar pelos cabelos. — Bom espetáculo o daqui, Kenyon. Michael se obrigou a ficar de pé bem erguido. — O regimento merece sentir-se orgulhoso, senhor. Como vai a batalha? — Estamos recebendo uma surra — respondeu o duque movendo a cabeça. — Blücher jurou que viria, mas a chuva transformou em pântanos os caminhos e só Deus sabe quando o veremos. Se os prussianos não chegarem logo... —cortou a voz. — Devo seguir meu caminho. Mantenha-se firme, Kenyon. — Quando vamos lançar-nos contra os franceses, senhor? — gritou um soldado quando Wellington estava se preparando para partir. — Não se preocupem, homens — sorriu fracamente o duque, — terão sua oportunidade. 65


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Dito isso saiu a galope do quadro, em direção ao castelo de Hougoumont, que estava sitiado, e onde a Guarda Real tinha estado lutando todo o dia em uma cruel batalha dentro de outra batalha. Estava anoitecendo, supôs Michael, mas o tempo tinha perdido todo significado. Resultavalhe difícil acreditar que dois dias antes tinha estado dançando a valsa com Catherine em um salão cheio de luz e elegância. Enquanto esperava o seguinte ataque, tentou recordar como era tê-la em seus braços. Mas foi impossível recordar os detalhes. Quão único conseguiu evocar foi o carinho que viu em seus olhos verde mar e a sorte agridoce de tê-la tão perto. Os ameaçadores rufar dos tambores franceses deram o sinal de um ataque de infantaria. Michael apertou os lábios. Levantou sua luneta, equilibrando-a torpemente com a mão boa. Através da fumaça densa viu uma enorme coluna de franceses avançando para as linhas aliadas. Felizmente atacaria o lado direito do cento e cinco, e assim seus homens cansados teriam tempo de recuperar-se. O capitão Graham se aproximou coxeando, com a coxa enfaixada. — Empresta-me a luneta, senhor? Michael a passou. O capitão murmurou uma obscenidade ao reconhecer as plumas vermelhas e os chapéus altos de pele de urso. — Assim Boney enviou finalmente sua Guarda Imperial. — Exatamente. Jamais falharam um ataque, e depois de passar o dia na reserva, estão tão descansados como se estivessem desfilando em um parque. Esse era a última grande jogada. Com a Guarda Imperial, Napoleão podia recuperar ou perder seu império. A hora do jantar, Catherine se obrigou a ir para casa. Embora a atividade fosse imensamente preferível a esperar, devia conservar suas forças; já tinham confirmado que se estava combatendo outra batalha, de modo que pela manhã chegaria outra onda de feridos. Orou intensamente pelas vidas de seus amigos. Passou e recolheu Elspeth, que também estava ajudando no hospital. A garota estava demonstrando ser uma valente escocesa, mas tinha o rosto cinzento e olheiras escuras. Juntas caminharam a curta distância até a Rue de La Reine. A maioria dos criados belgas tinha voltado com suas famílias, e só ficaram a cozinheira e o criado; boa coisa que tivesse Everett, porque se não poderiam ter roubado os cavalos. Depois de lavar-se, as duas mulheres jantaram juntas na cozinha. Para Catherine resultou impossível engolir mais de umas poucas colheradas de sopa. Cansativamente acrescentou uma boa dose de brandy a seu chá e foi tomá-lo na sala do café da manhã. Ainda estavam ali as pastas com os desenhos. Passou novamente as folhas, pensando se continuavam inteiros e a salvo os homens. Estaria Colin glorificando-se em que poderia ser a batalha de sua vida? Viveria Charles para ver seu filho ainda não nascido, ou sobreviveria Kenneth para desenhar outras famílias risonhas? Chegou ao último desenho e fechou rapidamente a pasta, com um nó na garganta; seria uma lástima danificar com suas lágrimas o retrato de Michael. A Guarda Imperial retrocedeu, esmagada pela fera resistência das tropas aliadas. Michael estava muito enjoado para apreciar a enormidade desse fato. As melhores tropas francesas se desagregaram, transformadas em multidão, não em exército. Mas ainda não tinha acabado. Quanto mais duraria a batalha? Quanto mais podia durar? O regimento cento e cinco tinha sofrido mais de 40 por cento de baixas, e a metade desse s homens tinha morrido instantaneamente. Outros regimentos tinham tido perda pior. 66


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— Olhe, senhor! — gritou nesse momento Graham, jubiloso. Um olmo no topo da serra, onde se cruzavam dois caminhos, era o posto de comando de Wellington quando não estava cavalgando pelas linhas. O lugar era apenas visível através da fumaça. Nesse momento o duque estava ali, sua magra silhueta recortada contra o céu crepuscular. De pé sobre os estribos agitou três vezes seu chapéu de três picos. Era o sinal p ara uma avançada geral. Dos regimentos mais próximos a ele elevou uma clamorosa ovação, e as linhas aliadas se lançaram ao ataque com um estrondoso rugido. Uma ardente exultação alagou Michael, fazendo desaparecer sua debilidade. Soube na medula de seus ossos que essa batalha estava ganha. Os longos anos no exército, as brutais horas detido pela artilharia o tinham levado a esse momento. — me sigam cento e cinco! — gritou, com a espada no alto. — Sim, coronel! — respondeu um vozeirão. — Até o inferno, se nos levar ali. O regimento se formou em companhias e se lançou costa abaixo pelos ensangüentados tapetes de cevada caída, com os mosquetes e baionetas prontas. Por toda a extensão da serra ecoavam as outras tropas aliadas ao comando de qualquer oficial sobrevivente. Desceram à planície deixando atrás imóveis fileiras escarlate de mortos e feridos. Começaram as sangrentas escaramuças nos três quilômetros de largura do campo de batalha. Embora grande parte do exército imperial tivesse empreendido a retirada, ficavam ainda grupos de soldados franceses resistindo garbosamente. O cento e cinco se dividiu em grupos menores, alguns perseguindo os inimigos que fugiam, outros ensandecidos em feroz combate corpo a corpo os franceses que continuavam lutando. Tudo era um caos. Enjoado pela perda de sangue, a dor e o esgotamento, Michael se encontrava em um lugar feroz e escuro no qual não havia passado, futuro nem medo; só havia instinto, vontade e loucura da guerra, onde qualquer momento podia ser o último. A realidade era uma coleção de imagens febris e desconectadas: um montão de guardas franceses caídos, seus corpos flácidos entrelaçados como as raízes de uma árvore; um cavalo abandonado mastigando aberto, rogando que o matassem; Michael rezou uma oração em francês e logo cortou o pescoço do pobre diabo. Pensou que a morte o tinha encontrado quando carregou contra ele um coracero brandindo sua espada. Armou-se de valor, mas sabia que nesse estado não tinha nenhuma possibilidade contra um homem a cavalo. Nesse momento o francês lhe viu a tipóia; levou-se a espada até a frente em uma saudação e virou o cavalo em busca de outros alvos. Michael tocou o duro lado de seu caleidoscópio de prata, que tinha metido dentro da jaqueta. Seu amuleto da sorte não lhe tinha falhado ainda. Estavam subindo a ladeira oposta do vale quando Michael abriu passo pela arrepiada abertura de uma sebe e se encontrou diante de Tom Hussey atacado por dois franceses. No momento em que um deles lhe enterrava a baioneta no ombro, Michael saltou com um grito assassino; fez um corte no peito do assaltante e se voltou rugindo para o outro. Acovardados pelo ataque, os dois homens fugiram. Tom limpou a testa com uma suja manga. — Como um aprende a lutar como você, senhor? — Com prática e mau gênio. — Passada a fúria, ficou ofegante. Assinalou o sangue que corria pelos dedos do alferes— : Terá que fazer um curativo nisso. — Depois haverá tempo para isso. — Tom tinha os olhos brilhantes, pela embriaguez de lutar e sobreviver. Entre os dois só tinham duas mãos boas, mas juntos as usaram para enfaixar a ferida de baioneta. Depois continuaram avançando. Michael tentou não perder de vista o jovem, mas um 67


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grupo de avivados hannoverianos os separou. A morte na batalha pode chegar num instante ou com atroz lentidão. Para Michael o fim chegou rápido. Ouviu uma maldição em francês e ao voltar-se viu os homens que tinha afastado de Tom Hussey; os dois estavam apontando com seus mosquetes a menos de quinze metros. Dispararam. As duas balas o feriram quase simultaneamente, uma na coxa e a outra no abdômen. Ao cair na lamacenta terra sabia que não voltaria a levantar-se. Ali ficou, vagamente consciente, até que sentiu um tremor na terra produzido pela vibração de cascos de cavalos que se aproximavam. Levantou a cabeça e viu seis lançadores franc eses a todo galope, aterrorizados. Embora soubesse que era inútil o esforço, tentou se arrastar até a sebe, que lhe ofereceria um pouco de amparo. Não alcançou a chegar a tempo; os lançadores lhe passaram por cima, e os cascos dos cavalos o fizeram rodar pelo chão. Um dos lançadores freou o suficiente para lhe cravar a lança nas costas. Sentia dor por toda parte, tão intenso que apagava a luz vermelha do sol poente e o clamor da batalha. Em cada estremecida respiração rogava que sua morte com honra redimisse as vezes que tinha vivido sem ela. Sentiu que flutuava, desligado de seu maltratado corpo. Catherine estava aí, sua presença mais viva que a devastação que o rodeava. Sorria-lhe, dissolvendo a dor com suas suaves mãos. Com os últimos farrapos de percepção soube que tinha morrido bem, e que tinha tido o privilégio de conhecer uma mulher digna de ser amada. Depois entrou em uma espiral de escuridão, seu espírito em paz. CAPÍTULO 12 Ao cair da noite, Catherine teve a dilaceradora certeza de que alguma coisa ia terrivelmente mal. Estava sentada com Elspeth na sala de café da manhã, os dois cães deitados a seus pés. Não era nada estranho que Luis estivesse adormecido, mas até a habitual animação de Clancy estava apagada. Foi quase um alívio ouvir a batida na porta, como um estranho eco de duas noites atrás. As duas mulheres correram a abrir e novamente se encontraram diante de Ferris. Tinha olheiras no rosto negro de pólvora, mas além de uma bandagem no antebraço direito, via-se completo. Elspeth lançou um grito e voou para seus braços. Catherine os invejou, desejando que sua vida fosse assim simples. Deu-lhes uns momentos para abraçar-se, e finalmente perguntou: — Que notícias traz, Will? — A batalha está ganha — respondeu ele marcando as sílabas e sem deixar de abraçar Elspeth. — Coisa mais sangrenta não tinha visto nunca em minha vida. Seu marido não está ferido, mas o capitão Mowbry sim. Devia dizer a sua esposa. — Anne levou as crianças a Amberes. E que feridas tem? — Uma bala lhe destroçou o antebraço esquerdo. Caiu do cavalo e provavelmente teria morrido se não tivesse sido por seu marido, senhora. O capitão Melbourne voltou atrás, subiu-o em seu cavalo e o trouxe de volta a nossas linhas. Graças a Deus pelo indômito valor de Colin. Tenho que ir procurar Charles e trazê-lo para casa. Sente-se suficientemente forte para me levar até lá agora, ou precisa descansar primeiro? — Estou bastante bem — respondeu o jovem, alarmado, — mas não posso levá-la a Waterloo, senhora. Todas as casas do povoado estão cheias de homens moribundos. Não é um lugar para uma dama. 68


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— Prometi a Anne que cuidaria de Charles como se fosse ela, e Por Deus que o farei — disse ela clara e sinceramente. Ferris tentou protestar, mas Elspeth disse com seu sotaque arrastado: — Não se preocupe, Will, a senhora Melbourne é capaz de fazer qualquer coisa. Em minoria, Ferris se rendeu. Foram procurar Everett em seu quarto para que preparasse a carreta que se usava para transportar as coisas da casa. O cavalariço cobriu o chão com palha e Elspeth levou mantas enquanto Catherine preparava seu equipamento médico, incluindo láudano. Em lugar de viajar na carreta com Everett, vestiu as calças que tinha usado às vezes na Espanha, e montou César, o cavalo de Colin. Quando se puseram a caminho, passando pela porta Namur, perguntou a Ferris sobre a sorte de outros amigos. O rapaz não sabia nada dos oficiais de infantaria como Michael e Kenneth, mas estava bem informado sobre os regimentos de cavalaria. A lista de baixas era tremenda. Homens aos quais Catherine conhecia fazia anos estavam mortos ou gravemente feridos. Embora os aliados tenham ganho a batalha, tinham-no conseguido a um preço muito alto. O caminho passava por um espesso bosque. Em épocas normais o trajeto era bonito, mas quando já se aproximavam do povoado de Waterloo, o caminho estava lotado de carretas, cavalos mortos e bagagens esparramadas. Por sorte, a carreta podia passar por onde um veículo maior teria ficado detido. Passava da meia-noite quando chegaram a seu destino. Catherine deixou Everett cuidando da carreta e os cavalos e seguiu Ferris até a casa transformada em hospital onde tinham levado Charles. Junto à porta viu um montículo irregular e estremecida comprovou que era um monte de membros amputados. Dentro da casa se encontrou com os gemidos dos estóicos sofredores que tão bem conhecia. Do salão da esquerda saiu um grito abafado. Apareceu e viu que estavam usando a mesa da sala de jantar para operar. Um carrancudo doutor Hume estava inclinado sobre ela. Ferris a conduziu pela casa abarrotada até o pequeno quarto lateral onde estava Charles em uma maca. Estava consciente, embora fosse evidente que sofria. — O que faz aqui, Catherine? — perguntou ele com voz rouca ao vê-la. — Substituindo Anne. Quando se viu duvidoso o resultado da luta, lorde Haldoran se ofereceu para levá-la a Amberes com as crianças até que passasse o perigo. Em troca eu prometi cuidar de você. O que significa um beijo, embora não o que te daria ela. — inclinou-se sobre ele e apoiou os lábios sobre sua testa. — viemos para levá-lo para casa. — Eu gostaria disso — sorriu ele fracamente. — Creio que já é quase meu turno para passar à sala de cortes. Tão logo me cortem o braço, poderemos ir. Fechou os olhos. Olhou-lhe atentamente o rosto cansado e depois moveu a cabeça com satisfação. Certamente teriam que lhe amputar o antebraço, mas não havia infecção, superaria. Em voz baixa disse a Ferris: — Como vamos estar aqui um bom momento, por que não se deita e descansa o que puder? Ele esfregou o rosto, pulverizando as manchas de pólvora. — Boa idéia. Vi um canto desocupado no quarto contiguo. Dormitarei ali até que você esteja pronta para ir. Uns minutos depois, ouviu uma voz juvenil proveniente da maca vizinha: — Senhora, poderia... poderia me trazer um pouco de água, por favor? O menino era um alferes, comovedoramente jovem; tinha uma bandagem na cabeça e outra no ombro. — É claro. Foi em busca de uma jarra de água e um copo; encontrou-os na cozinha. O alferes lhe 69


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agradeceu a bebida. Estava dando água a um homem no outro extremo do quarto quando ouviu a surpreendida voz de Colin. — Catherine? Levantou a vista e viu seu marido de pé na porta. Estava sujo e com aspecto cansado, mas intacto. — Quanto me alegra vê-lo. — levantou-se e foi para ele. — vim para levar Charles de volta a Bruxelas. — Estupendo. Passei por aqui para ver como se encontra. — Rodeou-a com um braço e a aproximou para ele em um gesto mais de cansaço que de afeto. — Senhor, que briga! Não há nem um só homem que tenha ficado vivo que não vá se sentir orgulhoso de t er participado, mas foi quase uma corrida. Condenada corrida. — Durante um momento lhe apoiou o queixo sobre os cabelos, e logo a soltou. — Tinha razão sobre sua imunidade mágica às balas — disse ela. — Ferris me contou que salvou a vida de Charles. — O mérito é de Michael Kenyon, por insistir em que trouxesse seu cavalo. Durante a tarde fizemos a mais grandiosa carga de cavalaria que vi em minha vida. Foi magnífica. — Brilharamlhe os olhos ao recordá-la. — Fizemos os franceses fugir, mas entramos muito em seu território e depois tivemos que dar marcha ré, seguidos por sua cavalaria. A terra estava pantanosa pela chuva. Se tivesse ido em Um ou Dueto, me teriam pego. — Fez um gesto de pena e passou a mão pelos embaraçados cabelos. Isso foi exatamente o que aconteceu com Ponsonby, o comandante da brigada União. Igual a mim, não quis arriscar seu melhor cavalo, e trouxe para seu cavalo de segunda classe. Devido à dificuldade do lodo, o cavalo cansou durante a retirada e os lançadores o abateram e mataram. Eu me liberei desse destino só porque o cavalo de Kenyon tem uma energia incrível. Salvou a mim e a Charles. — Então me alegro muito de que Michael tenha insistido na mudança. — Titubeou um instante e logo perguntou— : Sabe como foi na batalha? — Não tenho a mínima idéia. — Franziu o cenho. — vieste aqui no César? Se for assim, eu ficarei com ele e você volta para Bruxelas em Thor. Como os prussianos se perderam na metade da batalha, encarregaram-se da perseguição, mas imagino que manhã vamos atrás dos franceses também. Necessito um cavalo descansado. Catherine lhe explicou onde podia encontrar ao César. — acabaram-se as batalhas? Colin deu de ombros. — Se Napoleão arrumar para reagrupar seus homens, poderia haver outra batalha. — Deus santo, espero que não — disse ela olhando quão feridos os rodeavam. — É possível que não chegue a isso. Imagino que não voltarei a vê-la até que estejamos em Paris. S e cuide. Distraidamente lhe deu um beijo na face e partiu. Passados uns minutos entraram os ordenanças para levar Charles ao doutor Hume. Catherine os acompanhou. O esgotado médico a saudou sem demonstrar surpresa. Examinou minuciosamente Charles. — Está com sorte, capitão —disse. — Poderei lhe deixar o cotovelo. Quer uma parte de madeira para morder? Charles fechou os olhos, com a pele tensa das maçãs do rosto. — Creio que não será necessário. Catherine se adiantou e lhe agarrou a mão direita. Ele apertou os dedos ao redor dos dela. Apareceu-lhe suor na testa quando Hume serrou o braço ferido, mas não emitiu nenhum som. 70


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Hume tinha a rapidez essencial em um cirurgião, e a operação terminou em alguns minutos. Um ordenança já saía com o antebraço cortado quando Charles exclamou com voz rouca: — Espere, antes de jogar isso fora. Há um anel que me deu minha esposa no dia de núpcias. Quero que me dê, por favor. O ordenança o olhou surpreso. Depois tirou o anel do dedo morto. Não sabendo se ria ou chorava, Catherine o pôs no dedo anelar da mão direita. — Obrigado — sussurrou ele. — Doutor Hume — disse Catherine, — quero levar Charles a Bruxelas. Estará bem? — Estará melhor lá que aqui — respondeu o cirurgião. —Dê-lhe um pouco de láudano para que o movimento da carreta não o faça sofrer muito. Você sabe trocar as ataduras. — Sim, e também tenho Ian Kinlock abrigado em minha casa, quando tem tempo para descansar. — Não estranho — riu Hume e lhe alegrou a expressão. — Mowbry é um homem afortunado. Terá o melhor dos cuidados. O cirurgião voltou para sua mesa de operações. Catherine disse aos ordenanças que levassem Charles à maca que ocupava antes. Preparou o láudano, o deu e se sentou a esperar que fizesse efeito. Ao cabo de uns minutos voltou a ouvir uma voz masculina surpreendida: — Catherine? Quando levantou a vista levou um momento para reconhecer o homem que estava na porta, porque um esparadrapo lhe cobria a maior parte do rosto e seguia até seus cabelos escuros. Mas a corpulenta figura era inconfundível. — Kenneth! — levantou-se e lhe agarrou as mãos. Seu uniforme de fuzileiro era quase irreconhecível e uma bala tinha arrancado um galão, mas estava vivo. — Graças a Deus que está vivo. — Olhou o esparadrapo. — Uma ferida de sabre? Ele assentiu. — Estarei ainda mais feio quando cicatrizar, mas não é nada grave. Está aqui por seu marido? — Não. Colin está bem. Charles Mowbry está ferido e vou levá-lo de volta a Bruxelas. Perdeu o antebraço esquerdo, mas de resto está bem. — O coração acelerou. — Sabe... sabe alguma coisa de Michael Kenyon? Kenneth a olhou com expressão grave. — vim aqui a sua procura. Não está com seu regimento nem em nenhum dos outros hospitais de campanha. Era a notícia que Catherine tinha estado temendo. Enterrou os nódulos na boca. Poderia estar mal preocupar-se mais por Michael que por outros homens, mas não podia evitá -lo. — Michael poderia estar vivo no campo de batalha —disse Kenneth ao ver sua expressão. — Ou seja, que ainda há esperança. — Há muitos ferido ali? — perguntou ela carrancuda. — depois de dez horas de batalha, todo o exército de Wellington se desmoronou; todos estão dormindo como mortos — disse Kenneth. — Eu estaria fazendo o mesmo se não fosse por querer encontrar Michael. O devo — acrescentou, mais para si mesmo que para ela. — Perdão, senhor, senhora — interrompeu timidamente o alferes que antes tinha pedida água. — Estão falando do coronel Kenyon, do cento e cinco? Catherine se ajoelhou junto à maca do jovem. — Sim. Sou amiga do coronel. Sabe o que lhe aconteceu? — Não sei se o coronel está vivo ou morto, mas o vi cair. Talvez pudesse encontrá-lo. — 71


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levantou-se. — Estava tentando de lhe alcançar quando uma bala me arranhou o crânio. Por certo, sou Tom Hussey, do cento e cinco, senhora. — me diga onde está e eu irei buscá-lo. Tom moveu a cabeça. — Creio que sou capaz de encontrar o lugar, senhor, mas seria muito difícil descrevê-lo. Tenho que ir com vocês. — Poderá fazer isso? — Pelo coronel, poderei. Com expressão decidida, o alferes ficou de pé. — Tenho comigo dois homens e uma carreta — disse Catherine. — Irei buscá-los, junto com uma maca e meu equipamento médico. — Não pode ir ao campo de batalha, Catherine —disse Kenneth alarmado. — Tente me impedir - respondeu ela, a voz vibrante de emoção. — Se Michael estiver vivo, vai precisar de atenção médica. — E Mowbry? — perguntou ele assinalando a figura adormecida. — Está descansando tranqüilamente com o láudano. Não lhe fará nenhum mal esperar um pouco mais. Inclusive poderá ser benéfico. — Vamos, então. — Kenneth sorriu cansativamente. — Não tenho a força para lutar contra Napoleão e contra você no mesmo dia. Ferris se levantou para unir-se à busca. Everett conduziu a carreta enquanto outros foram a cavalo. Colin havia mudado os cavalos e as montarias, de modo que Catherine montava o cavalo castanho de Michael. Thor estava cansado e uma bala lhe tinha arranhado o flanco, mas a levava sem queixar-se. Acariciou-lhe o pescoço castanho, benzendo-o por ter salvado duas vistas. O regimento cento e cinco tinha estado formado perto de um caminho, de modo que a primeira parte do trajeto foi rápida. A horrorosa viagem fez Catherine agradecer a escuridão. Por toda parte havia corpos e equipes destroçadas. Quando ouvia um gemido se obrigava a não fazer conta; não podiam ajudar a todo mundo. Perguntou-se quantos feridos morreriam durante a noite, mas entendeu por que os esgotados sobreviventes não tinham tentado ajudá-los. Pela manhã a tarefa de resgate seria menos entristecedora. Seguiram o caminho até estar o mais perto possível do lugar onde o alferes Tom Hussey tinha visto pela última vez seu coronel. Para não arriscar-se que a carreta ficasse atolada no lodo, deixaram Everett no caminho e tomaram um atalho través do acampo. Avançaram mais lento porque o caminho estava infestado de espadas e baionetas quebradas que podiam deixar manco um cavalo. Tom desmontou e começou a puxar seu cavalo pelas rédeas. Outros fizeram o mesmo. Kenneth e Ferris levavam as lanternas enquanto o alferes estudava a paisagem. Viraram em zig zag várias vezes até que o menino se deteve e titubeou. — Creio que foi junto a esse sebe. Seguiram a sebe uns cem metros e de repente a lanterna iluminou a dois homens com roupas de camponês inclinados sobre a forma flácida de um soldado caído. Grunhindo uma maldição, Kenneth tirou sua pistola e disparou no ar. Os camponeses fugiram, perdendo-se na noite. — Saqueadores — disse com repugnância, enquanto carregava a arma. Catherine não se surpreendeu. Na Espanha às vezes roubavam feridos e mortos inclusive em meio a batalha. Acelerou o passo e se aproximou do homem caído. A estatura e a constituição, magra e musculosa, eram corretos, o casaco escuro... Com o coração martelando no peito, ajoelhou-se na terra lamacenta junto ao homem. Kenneth estava atrás dela. Sua lanterna iluminou os traços finos de Michael Kenyon. Estava pálido 72


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como a máscara da morte e seu uniforme saturado de sangre seco. Temerosa lhe tocou a garganta, procurando pulso. Não conseguiu encontrá -lo; além disso, estava frio, muito frio. Alagou-a uma terrível dor e lhe nublaram os olhos. — Está vivo? — perguntou bruscamente Kenneth. Sua voz a tirou de seu quase desmaio. — Não sei — respondeu com os lábios secos. — Lhe levantou o braço; movia-se com facilidade. — Não consigo encontrar o pulso, mas não há rigidez. — apertou-se as têmporas. O que devia fazer? Devia pensar em Michael como paciente, não como um homem ao qual amava. — Tem algo muito polido, como um relógio, por exemplo? — Tome isto, senhora — disse Hussey. Pôs-lhe um medalhão de prata na mão. Ela o pôs diante a boca do Michael; apareceu um débil filme de umidade. Aturdida de alívio, sentou-se sobre seus calcanhares. — Está respirando, embora apenas. — Teremos que movê-lo — disse Kenneth. — me deixe examiná-lo primeiro. Devolveu o medalhão aos alferes e este disse: — A tipóia é por uma bala que lhe atravessou o braço, uma ferida na carne. As costelas, um sabre as rompeu. Nas costas tinha uma ferida profunda, talvez de uma lança. Tinha sangrado, mas a anterior bandagem o tinha protegido um pouco. Também tinha uma feia ferida na coxa, com a bala ainda enterrada. A enfaixou e lhe deu volta, deixando o de costas. O coração se encolheu ao ver o horrível buraco em cima da cintura. Feridas abdominais eram sempre fatais. Puxou o tecido ensangüentado para poder ver a magnitude do dano. Ainda surpresa, seus dedos tocaram um metal frio. Seguiu a forma com os dedos e logo tirou um tubo de prata esmagado com uma bala de chumbo incrustada. — Este objeto, seja o que for, impediu que a bala penetrasse. — É um caleidoscópio — explicou Kenneth. — Faz figuras na tonalidade de cristais coloridos. Ele o chamava seu amuleto da boa sorte. — Boa sorte, certamente. Guardou o objeto em sua bolsa médica. O exame lhe confirmou que nenhuma de suas feridas era necessariamente mortal. O que mais a preocupava era que não sangrava, o que indicava que tinha perdido muitíssimo sangue. Tinha uma garrafa de água na bolsa; pôs-lhe um pouco entre os lábios ressecados. Não podia engolir. Deteve-se, temendo que se afogasse, e se levantou. — Fiz tudo o que se pode fazer aqui. Devemos levá-lo a um cirurgião. Kenneth e Ferris o puseram cuidadosamente sobre a maca e Catherine o cobriu com uma manta. Depois caminharam pelo campo até chegar à carreta. O céu estava clareando pelo leste. A interminável noite já estava a ponto de acabar. Michael estava vivo, mas estaria dentro de uma hora? CAPÍTULO 13 Era a última hora da manhã quando Catherine e seus dois pacientes chegaram a Bruxelas, acompanhados por Everett e Ferris. Kenneth e o alferes Hussey tinham voltado para seus respectivos regimentos. Tinha-lhes prometido enviar notícias sobre o estado de Michael, mas por suas expressões tristes sabia que eles esperavam o pior. Faziam muito lentamente a viagem, para reduzir ao mínimo as sacudidas da carreta sem 73


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molas amortecedoras. Catherine tinha cavalgado atrás, vigiando seus pacientes como um falcão. Inclusive com o láudano, o trajeto tinha sido difícil para Charles, embora tivesse agüentado estoicamente a dor. Michael estava tão imóvel que ela temeu ir levando um cadáver. Tão logo chegaram a casa, desmontou e o examinou em busca de sinais vitais. Tinha a pele arroxeada e pegajosa, e seu pulso e respiração eram quase inexistentes, mas continuava vivo. Uma Elspeth cheia de olheiras, mas descansada saiu correndo de casa e abraçou Will Ferris. — Como está o capitão Mowbry? — Está bem — respondeu Catherine. — Quando os homens o tiverem instalado em seu quarto, administra-lhe uma dose de láudano e fica acompanhando-o. — Eu vou acompanhar o capitão, senhora — disse Ferris. — Não, enquanto não descansar — respondeu ela severamente. — Ontem combateu uma batalha e não descansaste nada. Ele começou a protestar, mas Elspeth lhe dirigiu um de seus olhares. — Pra cama, Will, ou vou lhe enviar eu mesma com um frigideira em sua teimosa cabeça. Ferris se rendeu sorrindo. Enquanto ele e Everett colocavam Charles na maca, Catherine disse a Elspeth: — O coronel Kenyon está muito mal. Ian Kinlock está aqui? — Sim, está dormindo. Chegou ontem à noite pouco depois que você partisse. — Desperte-o, por favor, e lhe peça que vá ao quarto do coronel logo que lhe seja possível. Elspeth assentiu e partiu. Uma vez que Everett e Ferris levaram ao Michael a seu quarto, Catherine os despediu e começou a lhe cortar o casaco e a camisa danificadas. Não tinha tido tempo de trocá-la na noite do baile, de modo que ainda usava sua uniforme de gala. Que esplêndido estava então. Tão cheio de vitalidade. Enquanto lhe tirava parte da roupa de debaixo do corpo ele emitiu um gemido débil. Tocoulhe a face: — Michael, ouve-me? Moveu as pálpebras uma vez, mas não despertou. Tentando parecer confiada e segura, continuou: — Vai ficar bem, Michael. O melhor cirurgião que conheço estará aqui dentro de uns minutos. Voltou a atenção para seu corpo maltratado. Estava nu da cintura para acima, à exceção da atadura manchada que lhe rodeava as costelas. Seu torso era um caos de machucados e abrasões. As cicatrizes antigas estavam cobertas por feridas novas e tinha um enorme hematoma no lugar onde a bala de mosquete lhe tinha enterrado o caleidoscópio, entre os músculos do abdômen. Havia visto muitos corpos de homens no curso de seu trabalho de enfermeira, mas jamais um pelo qual sentisse tanta ternura. Passou-lhe os dedos pela clavícula, pensando que era criminoso que esse corpo tão formoso e são tivesse sido tão maltratado. Uma vez mais, amaldiçoou Napoleão Bonaparte e sua insaciável ambição. Depois colocou de um lado suas emoções e começou a laboriosa tarefa de limpar as feridas. Estava lhe tirando pedaços chamuscados de roupa do buraco do braço quando chegou o cirurgião. Ian parecia um mendigo enrugado sem barbear, mas seus olhos azuis estavam alertas. — Uma urgência? Ela assentiu. — O coronel Kenyon é um amigo especial. Estava abrigado aqui. Ontem à noite o encontramos no campo de batalha. Ian se aproximou da cama e contemplou o paciente. 74


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— por que não lhe curaram as feridas em Waterloo? — O levamos ali, mas o doutor Hume disse que... que para que. Outros homens o necessitavam mais. — Essas palavras lhe tinham caído no coração como um toque de defuntos. — Decidi trazê-lo aqui com a esperança de que você o tratasse. — Compreendo por que Hume decidiu não perder tempo com ele, está mais morto que vivo. De qualquer modo, posto que é seu amigo... — começou a examiná-lo. — Mmm, trabalhei com ele em algum lugar da Península, reconheço estas feridas. Fragmentos de bala de canhão, um desastre. Surpreende-me que tenha sobrevivido. Traga-me meus instrumentos. Ontem à noite os deixei secando na cozinha depois de lavá-los. A preocupação de Kinlock pela limpeza era causa de muitas brincadeiras por parte de outros cirurgiões. Ele sempre sorria e explicava que sua mãe escocesa tinha sido fanática na higiene e que certamente isso não fazia nenhum mal. Talvez porque Catherine era dona-de-casa achava perfeitamente lógico ter limpos os instrumentos. Supunha que isso era um dos motivos de que os pacientes de Ian se saíam tão bem. Quando voltou com os instrumentos recolhidos na cozinha, Ian já tinha terminado o exame e tirado o resto da roupa de Michael. Começou a limpar e enfaixar as feridas com a combinação de força e destreza essencial em um bom cirurgião. Catherine lhe passava o que necessitava e retirava o que já não fazia falta. O longo processo a fez agradecer que Michael estivesse inconsciente. De qualquer forma, quando Ian começou a pinçar em busca da bala enterrada na coxa, Michael emitiu um som rouco e tentou fracamente tirar a perna. Catherine lhe segurou o joelho e o quadril para imobilizá-la. Por muito que o tentasse, não podia obrigar-se a considerá-lo um paciente comum. — É bom sinal esta reação? — Talvez — respondeu o cirurgião, não querendo assegurar nada. Ouviu-se o ruído surdo quando seus pregadores se fecharam ao redor da bala de chumbo. Extraiu-a com extremo cuidado e a deixou cair na vasilha que sustentava Catherine. Depois agarrou outro tipo de pregadores e começou a tirar fragmentos da ferida aberta. — Seu amigo teve sorte outra vez. A bala não tocou os vasos sangüíneos importantes e só arranhou o fêmur sem causar nenhuma lesão grave. Tivesse sido um centímetro mais à frente, a um ou outro lado, e teria morrido no campo de batalha. Com essa sorte, certamente Michael não estava destinado a morrer, pensou ela. Entretanto, de sua cara tinham desaparecido todo o humor e a viva inteligência, deixando uma máscara austera. Doeram-lhe os olhos de lágrimas sem derramar. Ian terminou seu trabalho e cobriu com mantas o frio corpo. — Que possibilidades tem? — perguntou Catherine, temendo a resposta. — Condenadamente poucas — disse Ian com franqueza. — Pode sobreviver às feridas, embora dê a impressão de que a metade do exército francês o utilizou de alvo para práticas, mas está sangrado. — Moveu a cabeça pesaroso. — Nunca vi recuperar um homem com uma comoção tão profunda. Catherine enterrou o punho na boca. Não queria chorar e não choraria. Ian só havia dito o que ela já sabia. Não eram as feridas que matariam Michael, nem a infecção, porque não viveria o suficiente para isso. A causa seria a perda de sangue. Contemplou fixamente seu corpo imóvel, desesperada, fazendo trabalhar febrilmente a mente, tentando recordar todas as teorias que tinha ouvido. Kinlock estava limpando os instrumentos quando lhe ocorreu a idéia. — Ian, não me disse que de vez em quando se transferia sangue de uma pessoa a outra? — Sim, e de animais a seres humanos também, mas só de forma experimental. É um método duvidoso no melhor dos casos. 75


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— Disse que às vezes dava resultados. — Dava a impressão de ir bem — corrigiu ele. — É possível que os pacientes tivessem sobrevivido por algum outro motivo. — E que os que morreram também tivessem morrido. — passou os nervosos dedos pelo cabelo. — Melhoraria uma transfusão de sangue? — Bom Deus — exclamou Ian horrorizado. —Quer matar o pobre diabo? — Que possibilidades tem se não se faz nada? Ian lançou um suspiro e olhou Michael, imóvel sobre a cama. — Quase nenhuma. — Mais sangue poderia ser a diferença entre a vida e a morte? — É possível — admitiu ele a contra gosto. — Então, façamos. Sabe fazê-lo, não é? — Vi fazer, que não é o mesmo — respondeu carrancudo. — No caso que vi o paciente morreu. — Mas às vezes o paciente vive. Por favor, Ian —rogou, — dê a oportunidade a Michael. — O juramento hipocrático diz que o médico em primeiro lugar não tem que fazer mal — alegou ele. — Além disso, onde encontraremos um doador? A maioria da s pessoas prefere fazer frente à cavalaria de Napoleão antes que ao bisturi de um cirurgião. — Eu serei a doadora. Ele a olhou horrorizado. — Não posso permitir que faça isso, Catherine. — Estou farta de que os homens me digam «Ah, Catherine, não deve fazer isso» — explodiu ela, crispada pelo cansaço e a ansiedade. — Sou uma mulher sã e vigorosa, e certamente posso prescindir de um pouco de sangue. — É a primeira vez que a vejo zangada. — Olhou-a sorrindo. — Normalmente não penso em você como em uma mulher vigorosa, mas supondo que não há nenhum motivo para que não possa doar sangue. Há pouco perigo para o doador. — Ou seja, que fará a transfusão? — Este é um homem tenaz, se não jamais teria sobrevivido tanto tempo. — Levantou o pulso de Michael, tomou o pulso e franziu o cenho. Esteve um longo momento em silêncio, sopesando as coisas; finalmente disse, decidido— : Preso por cem, preso por mil. Muito bem, vamos tentar. É possível que uma transfusão lhe dê a força que necessita. Ela se sentiu quase enjoada de alívio. — O que necessita? — Um par de canhões de plumas de ganso 5 , um mais comprido que o outro, e um ajudante. Você não estará em condições de ajudar. Catherine foi procurar Elspeth, deixando à cozinheira a cargo de vigiar Charles. Graças a Deus que a garota tinha ficado; sua criada teria começado a chiar histérica se lhe pedissem que fizesse esse trabalho. Os preparativos de Kinlock não levaram muito tempo. Recortou cuidadosamente os canhões das pluma de ganso e passou um arame por seu interior para assegurar-se de que não tinham obstruções. Depois colocou o extremo de um no extremo do outro e selou a união com um esparadrapo. — Catherine — disse quando esteve satisfeito, — se deite na cama junto ao coronel olhando para o outro lado. Vou fazer as incisões na parte interior dos cotovelos. 5

Canhões de plumas de ganso: é o miolo da p lu ma que nessa época poderia ser usada como cateter.

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Catherine tirou o braço nu do Michael de debaixo da manta e arregaçou a manga do braço direito. Depois se deitou sobre a colcha, nervosa pela intimidade que significava compartilhar a cama com Michael, embora fosse nessas estranhas circunstâncias. Ian pôs duas toalhas debaixo dos braços, para absorver o sangue que caísse; depois fez acertos e modificações até ficar satisfeito com as posições dos braços. Catherine tentou relaxar-se, mas foi difícil ao ser tão consciente da proximidade de Michael. Sua vida lhe parecia uma débil faísca que podia apagar-se com um simples sopro de ar. Mas, face às dificuldades, continuava vivo. Aferrou-se a esse fato. — É um processo simples na realidade — comentou Ian, levantando a lanceta. — vou deixar ao descoberto uma veia em seu braço e uma artéria no teu, e vou atar ligaduras ao redor dos copos para controlar o fluxo de sangue. Depois inserirei um extremo deste aparelho de pluma na veia do coronel e o outro extremo em sua artéria. Feito isso, logo é questão de soltar os torniquetes e as ligaduras para que possa fluir o sangue. — Explica como se fosse fácil — riu Catherine tremula. — Em certo modo é. A parte mais difícil será encontrar e abrir uma de suas veias, que devem estar quase paralisadas. Agora fecha os olhos. Não lhe convém ver isto. Ela obedeceu, e seguiu o que estava acontecendo guiando-se pelos sons. Ouviu Ian resmungar, o que confirmava a dificuldade de encontrar uma veia de Michael para lhe introduzir o canhão de pluma. O êxito o corroborou ao dizer: — Segure a pluma no lugar, senhorita McLeod. Depois lhe apoiou uma mão no braço. — Preparada, Catherine? Não é muito tarde para mudar de opinião. Jamais se perdoaria se Michael morria tendo ela podido fazer algo. — Adiante, Ian. Sentiu penetrar no braço a afiada folha; doeu-lhe, é claro, doeu-lhe muitíssimo. Quando Ian lhe atou a artéria em dois lugares, mordeu-se o lábio para não chiar, mas ao sentir um sabor metálico na boca deixou de morder, pensando, com certa histeria, que não devia desperdiçar sangue que poderia ser útil a Michael. A lanceta se introduziu novamente, cortando mais profundo. Ian soltou uma maldição e se ouviu um gemido abafado de Elspeth. Catherine abriu os olhos e viu sangue emanando de seu braço e Elspeth com o rosto cinzento e a ponto de desmaiar. — Maldita seja, moça — exclamou Ian, — não tem minha permissão para desmaiar. É escocesa, é capaz de fazer isto. — Rapidamente deteve o fluxo de sangue. — Fecha os olhos e respira fundo. Elspeth obedeceu; fez uma profunda inspiração e lhe voltou um pouco a cor ao rosto. — Sinto muito, senhor. — Está fazendo muito bem — disse ele em tom tranqüilizador, uma vez passada a crise. — Vi homens fortes cair como árvores destruídas depois de uma só incisão. Não volte a olhar. Quão único tem que fazer é segurar firme a pluma no braço de Kenyon. — Sim, senhor. Sentindo-se a ponto de desmaiar também, Catherine fechou os olhos para não ver como lhe inseriam o estreito extremo da pluma na artéria. Menos mal que estava deitada. Depois de assegurar a pluma em seu lugar, Ian soltou as ligaduras e torniquetes. Emitiu um murmúrio de satisfação. Suas mãos continuaram apoiadas no braço, sustentando o tosco aparelho em seu lugar. Catherine entreabriu os olhos e viu que o canhão de pluma, antes translúcido, tinha uma cor vermelha escura; seu sangue estava entrando em Michael. Nesse momento, quando já era muito 77


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tarde, lhe ocorreu pensar se não teria sido arrogância exigir uma transfusão que poderia matá -lo. Não tinha nenhum direito... mas o que outra coisa podia fazer? Com sua experiência de enfermeira sabia reconhecer os sinais de morte iminente, e os tinha visto no rosto do Michael. — Como sabe quanto sangue já passou, doutor Kinlock? — perguntou Elspeth, suas náuseas dominadas pela curiosidade. — Não sei — respondeu ele em tom áspero, — como tampouco sei quanto sangue se pode extrair do doador. Como se sente, Catherine? Ela passou a língua pelos lábios ressecados. — Muito bem. — me avise tão logo se sinta enjoada ou indisposta. Catherine começou a sentir frio, que ia estendendo a todo o corpo. Sentia perfeitamente os batimentos de seu coração, o bombeamento que introduzia seu sangue na veia dele, e com ela seu amor. «Viva, Michael, viva.» — Catherine? — soou a voz de Ian, muito longínqua. — Estou bem. — Certamente estava muito longe, muito longe, de ter perdido a quantidade de sangue que tinha perdido Michael. — Continua. O adormecimento ia subindo pelo braço, e continuando pelo corpo. Voltou a abrir os olhos e viu a cara preocupada de Ian. Notou que lhe tocava a ligadura, como preparando-se para deter a transfusão. Fez provisão de toda sua força de vontade para que a voz lhe saísse enérgica. — Não a detenha muito cedo, Ian. Não tem nenhum sentido fazer isto se ele não for receber sangue suficiente para uma melhora. Tranqüilizado, ele continuou esperando. Começou a vagar a mente de Catherine. Pensou na primeira vez que viu o Michael. Era atraente, sim, mas também o eram outros homens. Em que momento começou a ser tão especial para ela, sua vida tão querida como a sua própria? Já não recordava. — Catherine, como se sente? Tentou responder mas não pôde. Não tinha sensação nos lábios frios. Soltando outra maldição, Ian atou os copos e pôs fim à transfusão. Enquanto lhe suturava o braço resmungou algo sobre mulheres teimosas que não têm mais sensatez que a que Deus deu às pulgas. Ela teria sorrido, mas era muito esforço. — Senhorita McLeod, traga uma bule com chá, uma grande, e uma boa quantidade de açúcar. Catherine ouviu o som suave dos passos e o ruído da porta ao fechar -se. Sentiu movimento a seu lado e compreendeu que era Michael. Molhou- os lábios. — Está melhor? — sussurrou. Ian acabou de lhe enfaixar o braço e pôs a mão de Michael sobre a dela. Sentiu-a quente, febril, sobre sua pele fria. — Tem mais forte o pulso e a respiração, e um pouco de cor no rosto. — Vai A... vai sobreviver? — Não sei, mas melhoraram suas possibilidades. — Ian lhe apertou a mão e a soltou. — Se Kenyon viver, deverá isso a você. Espero que valha o risco que correste. — Vale. — Catherine sorriu fracamente. — Confessa, Ian. Está contente por ter tido um pretexto para provar um novo método. — Tenho que reconhecer que foi interessante — respondeu ele com certo humor na voz. — Sinto curiosidade por ver os resultados. Catherine fechou os olhos e relaxou. F ez tudo o que podia fazer. O resultado estava em mãos de Deus. 78


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Estava escuro quando despertou. Desorientada, levantou a mão e sentiu uma forte pontada de dor na parte interior do cotovelo. Então recordou todos os acontecimentos dessa tarde. Ian a tinha feito beber várias taças de chá quente e doce e depois a tinha levado a cama. depois de dar ordens de que a deixassem descansar até o dia seguinte, tinha deixado Elspeth encarregada e voltado para a tenda hospital. Sentou-se com muita cautela e desceu as pernas ao chão. Tomava cuidado, teria que poder caminhar. Levantou-se, colocou o roupão para abrigar-se e saiu do quarto. O quarto de Charles e Anne estava em frente ao seu, assim que apareceu. Um abajur iluminava Ferris dormindo em uma maca junto à cama. Charles respirava tranqüilo e tinha boa cor no rosto. Causava pena ver o coto de seu braço esquerdo, mas essa era uma perda que não destroçaria sua vida. Poderia arrumar-se. Pela manhã perguntaria a Elspeth se tinham enviado uma carta a Anne, que certamente estaria louca de preocupação. Depois se encaminhou para o outro extremo da casa, firmando-se na parede para não perder o equilíbrio. No quarto de Michael também havia um abajur aceso, mas não havia ninguém com ele. Talvez Elspeth tenha pensado que não havia nada que fazer por uma pessoa tão doente, ou talvez simplesmente estivesse muito cansada; levava dias trabalhando como uma mula. Michael se revolvia inquieto. Respirava forte, talvez muito forte. Com pernas inseguras, aproximou-se da cama e lhe pôs a mão na testa. Achava-a quente, e estava suando. Supôs que era inevitável que tivesse um pouco de febre, mas de toda maneira isso a preocupou. Ele abriu os olhos, mas neles não havia percepção. — Michael? — disse com a esperança de despertá-lo. — Coronel Kenyon? Ele começou a mover-se, agitado, tentando levantar-se. — Agora vou — murmurou com voz rouca. — Devagar, devagar... Os movimentos o aproximaram perigosamente do lado da cama. Temendo que caísse e lhe abrissem as feridas, Catherine o agarrou pelos ombros e o empurrou para o centro da cama. — Não, Michael, tem que descansar-disse em tom tranqüilizador. — Agora está a salvo. Vai melhorar e ficará como novo. Embora estivesse muito fraco para conseguir, ele continuou tentando levantar-se. Frustrada por sua debilidade, Catherine subiu à cama, recostou-se e o agarrou em seus braços, lhe embalando a cabeça entre seus seios; isso o acalmou um pouco, mas não o suficiente. Recordou a Amy quando era bebê e estava com febre. A lembrança lhe deu uma idéia. Começou a cantarolar uma canção de ninar: — Sieep, my child, and peace attend thee, all through the night... (Durma, meu menino, a paz vai assisti-lo, por toda a noite...). Acariciando-lhe a cabeça cantou todas as canções de ninar que sabia. Ele começou a respirar mais lento, mas cada vez que ela deixava de cantar, voltava a revolver-se inquieto. Cantou antigas canções que tinha aprendido em menina; Greensleeves, The Trees, They Grow Sou High, e depois, com certo acanhamento porque era uma canção de amor, Drink to Me Only with Thine Eyes. Algo com uma melodia suave. Depois continuou com algumas das bonitas baladas que tinha aprendido dos soldados irlandeses na Península. Uma era a inesquecível Minstrel Boy. Sem pensar, começou: The minstrel boy to war has gone. In the ranks of death you'l1 find him. His father's sword he has girded on, and his wild harp slung behind him... (O menino menestrel partiu à guerra. Nas fileiras da morte o encontrará. 79


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Leva no cinto a espada de seu pai E pendurada às costas sua selvagem harpa...) Com um nó na garganta, deixou de cantar; não suportava as imagens da guerra. Depois entoou uma versão sem palavras de A Londonderry Air. Cantou até ficar rouca e tão cansada que quase não podia abrir a boca. Pouco a pouco Michael foi sossegando e adormeceu, aparentemente um sono natural. Pensou que deveria partir, mas tornou-se difícil preocupar-se com o decoro quando a vida de Michael ainda pendia por um fio. Além disso, não estava segura de poder caminhar até seu quarto. Com um suspiro se acomodou nos travesseiros. O queixo sem barbear do Michael produzia um formigamento agradável nos seios, através da musselina de sua camisola. Notou-lhe o cabelo úmido, mas já não estava suando e sua temperatura parecia quase normal. Graças a Deus, a crise havia passado. Michael sanaria e muito em breve partiria. Ela teria a satisfação de saber que estava são e feliz em alguma parte do mundo, mas nunca voltaria a tê-lo tão perto. Sabendo que ele não podia ouvi-la, atreveu-se a sussurrar: — Te amo, Michael; sempre te amarei. Depois o beijou na testa, como tinha feito com Charles. Certamente ninguém podia condenar esse beijo com muita dureza. Cansada até a alma, adormeceu. CAPÍTULO 14 Tendo entrado na escuridão vendo a face de Catherine, Michael não se surpreendeu ao vê-la quando recuperou os sentidos. Seu primeiro pensamento foi que a visão que via sobre ele era um anjo disfarçado de Catherine para fazê-lo sentir-se bem acolhido no céu. Claro que o céu não era o seu destino mais provável. Franziu o cenho, tentando compreender. Estava à deriva com muito dor, de modo que o mais provável era que estivesse no inferno, ou melhor, no purgatório. — Michael? — disse a doce voz de Catherine. A voz soou tão real que involuntariamente esticou uma mão para ela. O mar abstrato de dor se fez cruelmente pessoal, lhe atormentando cada centímetro de seu corpo e obscurecendo os véus que lhe nublavam a mente. Emitiu um tremulo gemido. Ela colocou uma mão fresca na testa e se inclinou para examinar o rosto. Estava pálida, e usava o cabelo preso atrás de qualquer maneira. Continuava sendo a mulher mais linda que tinha visto em sua vida, mas se estava na outra vida, certamente a recordaria como estava na noite do baile dos Richmond. Era incrível, mas devia estar vivo, embora não por muito tempo, dadas as feridas que tinha recebido. Fez um esforço para falar. — Catherine — conseguiu dizer com voz rouca. — Por fim despertaste — disse ela, com radiante sorriso. — Pode engolir um pouco deste caldo de carne? Precisa de alimento. Ele assentiu fracamente. Era uma perda de tempo alimentar um moribundo, mas possivelmente o líquido lhe faria mais fácil falar. Ela se sentou no lado da cama e lhe levantou um pouco as costas, segurando-lhe enquanto lhe punha colheradas de caldo entre os lábios. Inclusive esse leve movimento lhe produzia novas ondas de dor. Nesse mundo de dor, o tenro corpo dela era o único bálsamo: doçura, aroma de 80


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rosas e um maravilhoso sono de música. Quando engoliu tudo o que podia engolir, lhe apoiou as costas nos travesseiros. Depois se sentou mais afastada, em um lugar onde ele podia vê-la facilmente. Embora doesse o movimento da cama, valia a pena tê-la tão perto. — A batalha? — perguntou com voz mais forte. — Ganhamos. Isso faz três dias. As tropas aliadas estão agora perseguindo na França o que resta do exército do Napoleão. Se impedirem que os franceses se reagrupem, a guerra poderia estar acabada. Ele piscou. — Três dias? Ela assentiu. — Kenneth está bem. Ele com o alferes Hussey de seu regimento o encontraram no campo depois da batalha. — Titubeou. — Kenneth enviou aqui a seu criado com a bagagem, mas não soube nada de seu ordenança Bradley. Mataram-no? Ele assentiu, triste; Bradley tinha sido um alegre menino irlandês. Pelo menos sua morte tinha sido piedosamente rápida. — Seu marido e Charles Mowbry? — Colin saiu sem um só arranhão. Disse-me que graças a você, porque seu cavalo Thor lhe salvou a vida a de Charles. Charles está aqui. Tiveram que lhe amputar o antebraço esquerdo, mas está bem. — Sorriu irônica. — muito melhor que você. Alegrou-lhe saber que seu marido tinha sobrevivido. A morte de Colin Melbourne lhe teria produzido um terrível sentimento de culpa, totalmente irracional, porque ele tinha desejado que não existisse. — Incrível, ainda respiro. Levou a mão para o lugar onde a bala lhe tinha perfurado o abdômen; era impossível separar essa dor da miríade de outras. — Tem uma sorte louca —disse ela. Colocou a mão na gaveta da mesinha de noite e tirou seu caleidoscópio, tudo esmagado. — Tem três feridas importantes e várias de menor importância, mas isto o salvou da bala que certamente teria sido fatal. Ele contemplou fixamente a bala de chumbo e o tubo de prata esmagado. — Um arco íris quebrado, sim. — Um arco íris quebrado? — repetiu ela olhando-o perplexa. — Isso é o que continha o caleidoscópio, pedaços de sonhos e de arco íris. Um objeto bonito, presente de um amigo. — Sorriu. — Meu amuleto da sorte. — Certamente. Quis agarrá-lo, mas não pôde levantar a mão; a dor outra vez, como facas ardentes e incandescentes. — Não sorte suficiente. — Não vai morrer, Michael —disse ela energicamente. — Entre as feridas de balas e de sabres, os golpes e os pisões de cavalos, perdeu tanto sangue quanto um homem pode perder e continuar vivo. Por isso vai se sentir horrorosamente débil durante um tempo, meses talvez. Mas não vai morrer. Falava com tanta segurança que ele meio que se convenceu. Havia se sentido igualmente mal depois de Salamanca, e tinha sobrevivido. Ela franziu o cenho. — Estou falando muito. Precisa descansar. — levantou-se. — Uma coisa mais. Queria que enviasse cartas a seus amigos especiais se morresse. Quer que os escreva dizendo como está? 81


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Quando virem seu nome nas listas de baixas vão se preocupar. — Por favor. E... obrigado. — Tentou manter os olhos abertos, mas a curta conversação o tinha esgotado. — Escreverei esta tarde e enviarei as cartas por correio militar para que cheguem mais rápido a Londres. — Apertou-lhe a mão. — Vai ficar bem, Michael. Sabendo como influi o estado mental na recuperação de uma pessoa, pensava lhe fazer essa afirmação com freqüência. Ficou de pé cansativamente. Embora não tenha perdido nem um décimo do sangue que ele tinha perdido, ainda se sentia fraca como um gatinho recém-nascido. Tirou as três cartas da cômoda de Michael para copiar os endereços. Arqueou um pouco as sobrancelhas ao olhá-las. Duque de Candover, conde do Strathmore e conde do Aberdare. Altas esferas, certamente. Supôs que seriam os outros «Anjos Ca ídos», os amigos de Michael desde sua época escolar. Como os chamava? Rafe, Lucien, Nicholas. Invejou-os por ter tido sua amizade durante tantos anos. Catherine não estava ali quando voltou a despertar. Em seu lugar estava uma bonita garota morena, com a mão apoiada timidamente em seu ombro. Passado um momento a reconheceu; era Elspeth McLeod, a babá dos Mowbry. — Olá —disse. — bom dia, coronel. Aqui tenho um mingau para você. O doutor Kinlock disse que temos que alimentá-lo em toda oportunidade. — Mingau — repetiu ele, com todo o asco que conseguiu transmitir em um sussurro. Mas se submeteu docilmente. Não poderia comer alimento sólido nem que o oferecessem. Quando acabou, Elspeth lhe apoiou as costas nos travesseiros e esticou as mantas. — Não me importa lhe dizer que não esperava que sobrevivesse. Quando Catherine o trouxe para casa, parecia preparado para o enterro. — Catherine me trouxe para casa? — perguntou ele perplexo, sem entender. — Ela me disse que Kenneth Wilding tinha me encontrado. — Sim, mas ela foi com ele. Foi a Waterloo procurar o capitão Mowbry e acabou indo ao campo de batalha com o capitão Wilding. — A garota estremeceu. — Melhor ela que eu. Michael sabia que Catherine era intrépida, mas mesmo assim, surpreendeu-se. — Devo-lhe mais do que imaginava. — Pois sim — corroborou Elspeth. — Você estava sangrando e a ponto de morrer, então ela convenceu o doutor Kinlock para que a deixasse lhe dar sang ue dela. Resultou bem. Foi a coisa mais estranha que vi em minha vida. Mas deu resultado. O doutor Kinlock diz que teria morrido se não tivesse sido pela transfusão. — Como pôde me dar seu sangue? — perguntou ele carrancudo, confuso. — Através de um par de canhões de pluma de ganso, do braço dela ao seu. — levantou-se. — O doutor diz que não pode se cansar, assim que vou. Estando doente você e o capitão Mowbry há muito que fazer. Depois que a garota saiu e fechou a porta, Michael levantou a mão uns centímetros e olhou as veias escuras que pulsavam sob a magra pele de seu pulso. Por suas veias corria sangue de Catherine, realmente. Isso era uma intimidade tão profunda que sua mente não podia abranger. Santa Catherine, sim, não só valente e modesta, mas também a mulher mais generosa que tinha conhecido. Faria isso por qualquer amigo, inclusive talvez por um desconhecido, mas saber que lhe tinha dado seu sangue vital o comovia profundamente. Enquanto vivesse, algo dela forma ria parte dele. Fechou os olhos para conter ardentes lágrimas; condenada debilidade. 82


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O conde de Strathmore estava olhando carrancudo a carta que acabava de receber quando entrou um lacaio. — Lorde Aberdare está aqui, milord. O fiz passar ao salão. Lucien levantou para ir saudar seu amigo. Não era estranho que Nicholas, o cigano intuitivo, fizesse todo a longa viaje desde Gales porque pressentia problemas. — Acabo de receber uma carta de Bruxelas a respeito de Michael — disse Lucien a seu amigo depois do aperto de mãos. — Foi muito ferido, sabe? — Sei; eu e Clare vimos as listas de baixas. Mas levo semanas preocupado com Michael. Como estava mais nervoso que um gato em uma frigideira, Clare me ordenou que viesse a Londres porque aqui as notícias chegariam antes. — Uma tal senhora Melbourne escreveu isto — disse Lucien lhe passando a carta. — Michael esteve abrigado com sua família esta primavera e agora ela está cuidando dele. Aparentemente tem boas possibilidades de recuperação. Nicholas passou a vista pela carta. — Falava de Catherine Melbourne em várias de suas cartas. Seu marido é capitão de cavalaria. — Soltou um suave assobio. — Michael levava esse caleidoscópio que lhe deu de presente anos atrás e este impediu que lhe entrasse a bala no abdômen? — Assim parece. Misteriosos som os... — Graças a Deus que o levava com ele. — Nicholas franziu o cenho. — É evidente que até no caso de que não piore, a convalescença vai ser longa. Você conhece todo mundo. Luce. Onde posso encontrar um iate que seja verdadeiramente confortável? — Quer...? — Exatamente. — Nicholas dobrou cuidadosamente a carta. — Clare já me despachou com as instruções. Vou a Bélgica para trazê-lo de volta pra casa. Capítulo 15 A escura cabeça de Amy apareceu pela porta do Michael. — chegou o jornal de hoje, coronel. Quer que o leia? — Isso eu gostaria muito. Sorriu quando Amy entrou e se sentou com um gracioso revôo de saias. A casa estava muito mais animada desde a volta de Anne com as crianças de Amberes. Charles tinha recuperado grande parte de suas forças, e tinham voltado a maioria dos criados belgas. A vida se normalizou para todos, à exceção dele. Embora a dor tenha diminuído, continuava enlouquecedoramente débil. O enérgico doutor Kinlock assegurava que esse estado era normal depois de ter perdido tanto sangue, mas saber isso não aumentava sua paciência. Chateava-lhe particularmente que Catherine o visse nesse estado patético. O fato de que fosse uma enfermeira experiente e não estivesse apaixonada por ele não sossegava seu maltratado orgulho masculino. Seu estado tinha uma só vantagem: estava muito fraco para sentir desejo. Seus desejos eram do coração, não do corpo. Só agora tinha compreendido o muito que amava Catherine, quando a paixão já não obscurecia os sentimentos mais sutis. Amy leu as principais notícias do dia, traduzindo-as do francês ao inglês. Ele sabia francês, mas escutar em inglês era menos esforço. Além disso, desfrutava com sua companhia. Se alguma vez tivesse uma filha, desejava que fosse como Amy. — Aqui há uma notícia simpática — disse ela voltando a página. — O cirurgião do exército francês barão Larrey, que inventou a ambulância de campanha, foi capturado pelos prussianos depois da batalha de Waterloo. O marechal Blücher ia executá-lo, mas um cirurgião alemão que 83


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tinha ouvido um bate-papo do barão Larrey foi ver Blücher e suplicou que lhe perdoasse a vida. — Levantou a vista, com os olhos brilhantes. — E adivinha o que aconteceu? — Blücher mudou de opinião, espero. — E não é só isso. Resulta que o filho de Blücher tinha sido ferido e capturado em uma escaramuça com os franceses e que foi Larrey quem lhe tinha salvado a vida. Não é maravilhoso? — Voltou a vista ao jornal. — Agora o marechal Blücher vai enviar o barão Larrey de volta a França com uma escolta prussiana. — Essa é muito boa notícia — comentou Michael. — O mundo precisa de todos os curadores que possa conseguir. Quando Amy estava dobrando o periódico entrou sua mãe. — É hora de subir para suas aulas, carinho. Depois de fazer uma rebuscada careta de aborrecimento, Amy se inclinou em uma graciosa reverência. — Um prazer tê-lo visto outra vez, coronel Kenyon. Até manhã? — Até manhã, senhorita Melbourne. Obrigado pelo presente de sua presença. Relampejaram as covinhas das bochechas da Amy, e logo saiu correndo, como uma criança novamente. — O que faz, se puder saber, Luis o Preguiçoso em sua cama? — perguntou Catherine com fingida severidade. — Dormir, é claro. — Michael passou a mão pelo lombo do animal. — Faz outra coisa alguma vez? — Come, às vezes se coça. É curta sua gama de atividades. — Acariciou-lhe as sedosas orelhas. — Se importa que me instale aqui para bordar? Esta é o quarto mais tranqüilo da casa. — Sempre é bem vinda, se conseguir suportar meu gênio irritável. — A verdade é que é surpreendentemente afável para ser um homem que deve estar ficando louco de inatividade. Catherine sentou e tirou um bordado de sua bolsa de trabalhos. Agora que estava menos ocupada, passava horas sentada em silêncio perto dele, costurando, bordando ou escrevendo cartas. Era curador tê-la por perto. — Não tenho a força para fazer uma boa manha de criança — disse em tom irônico. — Sobre tudo quando meu maior lucro da semana passada foi voltar a dizer frases completas. — Ian Kinlock diz que está fazendo muito progresso. — Olhou-o com severidade. — Desde que não tenha uma recaída por tentar fazer muito demasiado cedo. — Não posso continuar sempre jogado aqui como uma gravata. Você tem muita paciência, mas certamente deseja se reunir com seu marido em Paris. A vida é muito mais animada lá. Ela desceu a vista e se concentrou em fazer um ponto perfeito. — Hoje chegou carta de Colín. Diz que posto que lhe deve a vida, devo ficar aqui até que esteja bem. Michael apertou os lábios. — A caridade que posso aceitar tem seus limites. — Nisto não há nenhuma caridade. — Agarrou outra meada de linho de seda. — depois de passar uma exaustiva e brilhante primavera em Bruxelas, não tenho nenhuma pressa por pular na vida de luxo de Paris. Além disso, posto que Charles deixa o exército e vai voltar com sua família a Londres, só Deus sabe quando voltarei a vê-los. Deixou sair o ar em um lento suspiro. Perversamente, ao mesmo tempo o alegrava não ser uma carga e lamentava não ser mais importante para ela. Ouviram-se passos no corredor. Depois de uma ligeira batida, Anne abriu a porta. 84


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— Michael, está bastante bem para uma visita? Um amigo seu acabou de chegar da Inglaterra. Fez-se a um lado, fez entrar Nicholas e partiu. — Bom Deus, estou sonhando — exclamou Michael incrédulo. — Não tem essa sorte. Encontrei-o. — Nicholas lhe estreitou a mão, contradizendo com sua força seu ar despreocupado. — Clare lhe envia carinhos. Se não fosse pelo bebê teria vindo. Michael tentou responder com algo engenhoso, mas não lhe ocorreu nada. Engoliu saliva. — Catherine, apresento Nicholas, conde de Aberdare. Nicholas se voltou para ela e sorriu. — Perdoe, não a tinha visto aí. Alegra-me conhecer a legendária Santa Catherine. O evidente afeto que via entre Michael e seu amigo a fazia sentir-se abandonada e excluída, e nada Santa. Desgosa por sua reação, levantou-se e sorriu também. — O prazer é meu. Como chegou a Bruxelas tão rápido? — Um bom iate e um bom capitão. — Voltou a olhar Michael— Ambos cortesia de Rafe, que envia seus melhores desejos e uma severo reprimenda por ser tão tolo de se pôr a frente dos tiros. — Conhecendo Rafe — sorriu Michael, — o mais provável é que a reprimenda viesse primeiro. — Sim, mas eu tenho muito tato para admitir. — meteu a mão no interior da jaqueta e tirou um reluzente tubo de prata. — Lucien te envia isto, para substituir o que ficou destruído. — Inclui a mesma boa sorte? — Garantida. Entregou-lhe o caleidoscópio. Michael o sustentou diante um olho e o fez girar lentamente. — Este é um pouco maior que o outro, e mais bonito ainda. Catherine, você alguma vez viu o original antes que o destroçassem, não é? Olhe. Ela agarrou o tubo e olhou por ele apontando-o para a janela. Dentro viu uma figura em forma de estrela, de vivas cores. — Precioso — comentou, com um suspiro de prazer. A figura mudou ao fazer girar o tubo, e os fragmentos de cores se realinharam. Realmente pareciam pedaços de arco íris. Desceu o aparelho e disse ao visitante. — Que bem que tenha vindo. Vai a caminho de Paris? Aberdare negou com a cabeça. — Não. Vim procurar Michael para levá-lo de volta a Gales. Quer dizer, se ele quiser ir e for possível movê-lo. Dominando o ridículo desejo de dizer que Michael lhe pertencia e não o deixaria partir, ela disse: — Depende do médico, logicamente, mas seguro que essa é uma viagem longa e exaustiva, inclusive para uma pessoa sã. — Levarei-o até costa em barcaça — respondeu o conde. — Depois o iate dará a volta pela costa da Inglaterra até o porto de Penrith, a uns poucos quilômetros de casa. Não será uma viagem rápida, mas sendo toda por água deverá ser bastante indolor. Além disso, trouxe uma enfermeira escolhida pela esposa de Lucien para que cuide dele durante a viagem. — Casa — disse Michael. Fechou os olhos um momento. — Eu gostaria disso. Muitíssimo. — Feito, então. — Nicholas o olhou pensativo. — É hora de irmos. Estamos lhe cansando. Michael abriu os olhos, muito verdes. — Na realidade, não. Estou assim inútil todo o tempo. — Certo, mas certamente a senhora Melbourne me cortará a cabeça se não o deixo descansar. — Colocou sua mão sobre a de Michael um momento. — Até mais tarde. Aberdare saiu do quarto e Catherine o acompanhou. Tão logo estava fechada a porta, o 85


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conde soltou um suspiro e cobriu os olhos com a mão. — sente-se indisposto, milord? — perguntou ela preocupada. —chame-me Nicholas, por favor. — Desceu a mão deixando a descoberto seu rosto tenso. — Sabíamos que tinha sido gravemente ferido, por isso vim, mas continua sendo uma forte impressão para mim vê-lo assim. Sempre foi muito forte. Deve ter emagrecido uns doze quilos, e tem o aspecto de seu próprio fantasma. Isto me faz compreender do perto que estivemos que perdê-lo. — É afortunado por ter tais amigos — disse ela enquanto ia adiante descendo a escada. — Todo o trabalho que teve por ele. — Michael é da família, na verdade. Vive à frente de nós, do outro lado do vale. É o padrinho de meu filho. — passou nervosos dedos por seus cabelos negros. — Somos amigos desde que estávamos na escola. Eu sou meio cigano, o que não é a melhor linhagem para um colégio esnobe como Eton. Michael foi o primeiro menino que esteve disposto a ser meu amigo. Jamais esqueci isso. — Olhou Catherine de esguelha. —prometo que cuidarei bem dele, senhora Melbourne. Quanto teria visto o conde em seu rosto?, pensou ela, com certa inquietação. — Deve me chamar Catherine, também —disse. Entraram no salão. — Onde está alojado? — Em nenhuma parte ainda. — Fez um gesto de despreocupação com a mão. — Estando todo mundo em Paris, será fácil encontrar quartos em um hotel. — Pode se alojar aqui; em frente ao quarto de Michael há um desocupado, e há quartos para três ou quatro criados. — Obrigado —sorriu com expressão cansada. — É muito amável. Devolveu-lhe o sorriso, mas por dentro lhe doeu o coração. Sempre soube que ia perder Michael, mas nunca pensou que fosse tão cedo. Nicholas só demorou dois dias em organizar tudo para voltar para Gales. Michael não se surpreendeu; conhecendo Nicholas há vinte e cinco anos, sabia que havia uma mente eficiente e aguda escondida sob seu encanto despreocupado. Quando chegou o dia da partida, Michael já era capaz de sentar-se, embora fazê-lo causava muita dor. Enquanto esperavam que chegassem os carros, passava os dedos pela colcha nervosamente. — Esse ruído que se escuta lá fora é o carro que leva os Mowbry? Nicholas apareceu à janela. — Era o carrinho de mão com a bagagem. A saída do carro atrasou por causa desse exuberante canino chamado Clancy, que não se deixa agarrar. Anne tem cara de estar incomodada, compreensivelmente. Ah, Charles está exercendo sua autoridade de oficial e cavalheiro e ordenou ao animal que suba no carro. Parece que por fim vão se pôr em marcha. — Não leva muito tempo desmantelar uma casa — comentou Michael. Viria Catherine despedir-se?, pensou. Talvez fosse mais fácil se não viesse, mas detestava a idéia de nã o voltar a vê-la. Talvez se despedisse em público, quando o tirassem da maca. Tampouco gostou dessa idéia. Este foi um verdadeiro lar durante vários meses. — Supondo que o mérito será de Anne e Catherine. As duas me caem imensamente bem. — Nicholas dirigiu um perspicaz olhar a Michael. — Sobre tudo Catherine. Michael pensou na vantagem que supôs ter aprendido em menino a controlar as emoções. — As duas fazem honra na metade feminina da raça. Sentirei muitas saudades, delas e das crianças. Até sentirei falta de Luis o Preguiçoso, que é certamente o cão mais inerte da verde terra de Deus. Nicholas riu. 86


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— Muito em breve estarão aqui os carros que aluguei para que nos levem a barcaça. Está preparado? — Tanto quanto posso estar— suspirou Michael. — Tinha a esperança de que quando chegasse o momento poderia sair da casa caminhando, mas certamente isso é impossível. — Tudo a seu tempo. Pelo que disse o doutor Kinlock antes de voltar para Londres, dentro de uns meses estará totalmente recuperado, além de algumas vistosas cicatrizes novas. — Também disse que devo ficar deitado sem fazer nada durante várias semanas. — Tamborilou com os dedos na colcha. — A paciência nunca foi meu ponto forte. — É certo, mas não se inquiete sobre se pode ficar quieto todo esse tempo — disse Nicholas em tom simpático. — Se tentar fazer muito esforço, o amarrarei na cama. Michael sorriu, sabendo muito bem que as palavras de seu amigo não eram uma brincadeira. Teria uma convalescença ociosa, queria ou não. Uma suave batida na porta anunciou Catherine. — Nicholas, suas carruagens chegaram. O conde a olhou e depois a Michael. — irei fiscalizar o carregamento da bagagem. — Discreto como um gato saiu do quarto. Catherine usava o cabelo preso em um coque simples, que realçava seus traços finamente perfilados. Tinha as maçãs do rosto mais proeminentes que quando se conheceram. Tinha emagrecido vários quilos, grande parte devido ao trabalho e preocupação causados por ele. — Detesto despedidas — disse ela sem olhá-lo, — mas suponho que são necessárias. — Deixam claro que alguma coisa terminou — corroborou ele. — Quando vai a Paris com Amy? — Amanhã. Esta noite a casa nos vai parecer vazia. Não ficará ninguém mais. — aproximouse de uma janela e contemplou as muralhas de defesa. — É estranho; fizemos amigos, e entretanto grande parte disso se deve a que estivemos na mesma casa ao mesmo tempo. Era isso o que ela pensava dos sentimentos complicados e indefinidos que havia entre eles? — me agradaria pensar que teríamos sido amigos em qualquer circunstância. — claro que sim. — Pulsava-lhe fortemente o pulso da garganta. — Talvez o que quero dizer é que nossos caminhos não teriam se cruzado se não tivesse sido pela guerra. Posto que vendeste sua comissão no exército, é provável que não voltemos a nos encontrar. Ele era dolorosamente consciente disso. — Se alguma vez você e Colin quiserem ir a Gales, seriam muito bem-vindos na casa Bryn. Você gostaria muito de Clare, a esposa de Nicholas. — Nicholas é maravilhoso — sorriu ela. — Seria capaz de enfeitiçar os peixes do mar. Como é sua esposa? — Muito prática. Antes de casar-se. Clare era professora de escola de povoado. Diz que não há nada como ensinar a trinta crianças para ser prática. Estava falando sem pensar; toda sua atenção estava posta na delicada figura cuja silhueta se recortava na janela. Mesmo que nesse momento fosse impossível a paixão, sabia que a lembrança das provocadoras curvas de Catherine atormentaria suas noites insones durante o resto de sua vida. Havia uma coisa que devia ser dita antes de partir. — Um simples obrigado me parece insuficiente quando me salvaste a vida mais de uma vez. Estou profundamente endividado contigo, Catherine. — E você salvou a vida de Colín e Charles. —Não se pode comparar o que você fez com emprestar um cavalo. — Todas as mulheres se fazem de enfermeiras quando é necessário — alegou ela com um 87


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sobressaltado dar de ombros. — Ah, sim? Esticou a mão. Ela se aproximou insegura e a agarrou. Subiu a manga com a outra mão, deixando descoberta a pequena incisão, ainda não cicatrizada, na parte interior do cotovelo. — Isto é a atenção normal de enfermeira? Elspeth me contou. Por que não me contou isso você? Ela sorriu com tristeza. — Dava-me vergonha minha presunção. Embora a transfusão resultou bem, facilmente poderia tê-lo matado. — Mas me salvou a vida — disse ele docemente. — Me deste sangue de seu coração. Jamais receberei um presente mais precioso. — Fiz por motivos egoístas. — Brilhantes lágrimas lhe fizeram enormes os olhos verde mar. Conteve-as com uma piscada. — Eu não gosto que morram meus pacientes, é ruim para minha reputação de Santa. Apertou-lhe a mão. — Catherine, se alguma vez precisar de ajuda, de qualquer tipo, vai até mim. Farei o que for que esteja em meu poder. — Obrigado. Lembrarei— disse ela e desviou a vista. Ele levantou a mão e lhe beijou os dedos, depois a soltou. — Não se esqueça de fazê-lo. — Adeus, Michael. Alegro-me muito que se cruzaram nossos caminhos. Tocou-lhe brandamente a face, voltou-se e saiu do quarto. movia-se com graça; uma Santa sensual. Desejou chamá-la para que voltasse, encerrá-la em seus braços para que não pudesse escapar jamais. Desejou pedir que deixasse seu marido e vivesse com ele, fossem quais fossem as conseqüências. Para se impedir de fazê-lo, apertou os dentes com tanta força q ue lhe doeu a mandíbula. Talvez pudesse ter pedido que deixasse seu marido se em outra ocasião não tivesse insistido a outra mulher para fazer exatamente isso. Já tinha esgotado a provisão de loucuras em sua vida. A porta se fechou atrás dela. Enquanto escutava seus passos afastando-se, sentiu a opressão nos pulmões que anunciavam um ataque de asma. Bandagens de fogo limitaram a respiração e os primeiros pendentes de medo lhe apertaram os músculos. Reclinou-se nos almofadões e se obrigou a inspirar e exaltar muito lentamente; inspira, espira, inspira, espira, até que o ar voltou a entrar e sair normalmente. A opressão e o medo desapareceram. Cansado, ficou olhando o teto. Fazia anos que não est eve tão perto de um ataque de asma. Desde a morte de Caroline. Fechou os olhos. Fazia o correto; algum dia se sentiria orgulhoso disso, mas nesse momento só sentia angústia. Catherine era a mulher mais extraordinária que tinha conhecido. E rogou a Deus não voltar a vê-la jamais. SEGUNDA PARTE - O CAMINHO AO CÉU Capítulo 16 Uma criada belamente vestida abriu a porta da casa de Londres. — A senhora Mowbry está em casa? — perguntou Catherine. — Se estiver, lhe diga, por 88


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favor, que a senhora e a senhorita Melbourne estão aqui. Antes de obedecer, a criada olhou com curiosidade a roupa suja da viagem. Um minuto depois apareceu Anne no vestíbulo. — Catherine, que maravilhoso vê-la. Pensava que continuava na França. Abraçou suas duas visitantes. Catherine observou que Amy estava quase tão alta quanto Anne, e que esta tinha recuperado sua forma depois do nascimento de seu segundo filho. Em um ano podem acontecer muitas coisas; muitas. — Acabamos de chegar a Inglaterra. — tirou a poeirenta touca. Palpitavam-lhe as têmporas com uma estranha dor de cabeça. —Charles está em casa? Ou sua sogra? — Os dois saíram. — depois de um perspicaz olhar ao rosto de Catherine, continuou— : Amy, você gostaria de ir ver Molly e Jamie? Creio que estão a ponto de tomar o chá no quarto das crianças. — Ui, sim, eu adoraria — respondeu alegremente Amy. — Tenho muitíssimas coisas que lhes contar. Também quero ver Clancy e Luis. Quando a criada levou Amy, Anne fez sua amiga entrar no pequeno salão. Tão logo fechou a porta, disse-lhe: — Não é educado dizer, mas, francamente, está com uma cara péssima. Está doente ou é simplesmente cansaço pela longa viajem? Catherine se deixou cair no sofá. Tendo chegado a um refúgio seguro, não sabia se seria capaz de voltar a mover-se em sua vida. — Colín morreu. — Deus santo — exclamou Arme, os olhos arregalados de assombro. —O que aconteceu? Catherine tirou as luvas e fez uma bola. — Assassinaram-no. — Ai, Catherine, que terrível. Depois de ter sobrevivido a tantas batalhas sem um arranhão. — Acertou na rua, tarde da noite. Acabava de sair da casa de um amigo. — apertou a testa com os dedos, recordando o horror e a incredulidade que havia sentido quando o oficial chefe de Colin foi lhe dar a notícia. —dispararam nas costas. Foi... morreu instantaneamente. junto a ele deixaram um lenço violeta e uma nota que dizia «Viva o imperador». Aparentemente o mataram uns bonapartistas, simplesmente por ser oficial britânico. Anne se sentou junto a ela e a abraçou sem dizer uma palavra. A compaixão de sua amiga liberou as lágrimas que estava reprimindo desde que se inteirou da prematura morte de Colín. Quando finalmente acabaram as lágrimas, disse em um rouco sussurro: — Quase me faz desejar que o tivessem matado em Waterloo. Essa é a morte que ele teria desejado. Morrer nas mãos de um covarde é detestável. — Morreu por seu país, tanto como se tivesse morrido na batalha— disse docemente Anne. — Ao menos foi uma morte rápida. Agora não vai ficar velho. Colin não teria gostado de envelhecer. Isso era certo, mas pouco consolo. Colin estava muito longe da velhice. A ponto de chorar de novo, Catherine se ergueu e procurou um lenço em sua pequena bolsa. — Surpreende-me que a notícia de sua morte não tenha chegado a Inglaterra — disse Anne estranhando — É que acaba de ocorrer? Catherine torceu a boca. — As autoridades pensaram que se desse a conhecer sua morte, a opinião pública se levantaria contra a França. Como sabe, foi difícil conseguir o moderado tratado que saiu do congresso no verão passado. O embaixador britânico me informou pessoalmente que um escândalo público pelo assassinato de um heróico oficial do exército poderia pôr em perigo a paz. 89


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— Ou seja, que sua morte foi silenciada. — Exatamente não me proibiram de falar dela, mas me fizeram várias petições sérias de que fosse discreta. Quase ninguém sabe, fora dos oficiais de seu regimento. — Suponho que isso é lógico. Certamente não necessitamos outra guerra. Fez-se um longo silencio, enquanto cada uma recordava o alto preço da batalha. Agitando a cabeça para repelir esses pensamentos, Anne perguntou finalmente: — Pensa alugar uma casa em Londres ou preferiria um lugar tranqüilo como Bath? — Nenhuma das duas coisas — respondeu Catherine, com determinação. — Devo procurar trabalho. Eu sabia que Colín era ruim para administrar o dinheiro, mas só depois que morreu dava conta de quão graves eram as coisas. Do meu dote, do dinheiro que herdou de seu pai, não resta nada. E não é só isso, também deixou uma montanha de dívidas. Graças a Deus, a maioria de seus credores são oficiais do regimento. Não creio que nenhum deles tente colocar no cárcere de devedores Amy e a mim. — Não tinha idéia — disse Anne comovida. Depois de um comprido silencio acrescentou— : Não, isso não é certo. Quase tinha esquecido que devia cem libras a Charles. Abandonamos a esperança de voltar a vê-las — OH, não! — olhou consternada sua amiga. — Vocês também? Não deveria ter vindo aqui. — Não seja ridícula. A irresponsabilidade de Colín não tem nada que ver contigo nem com Amy. Além disso, ele arriscou sua vida para salvar Charles. Isso vale imensamente mais que cem libras. Tranqüilizada pelo aviso, Catherine disse: — Colín tinha seus defeitos, mas a falta de valor não era um deles. — Era um bom soldado. Mas o que é essa tolice de procurar trabalho? Não deveria ter que fazer isso. — Titubeou antes de acrescentar— : Sei que é muito cedo para dizer, mas é uma mulher bonita e encantadora. Voltará a se casar. Qualquer um dos oficiais elegíveis do regimento se casaria contigo no mesmo minuto. De fato, vários oficiais tinham proposto matrimônio a Catherine antes que partisse da França. — Jamais voltarei a me casar — respondeu, tentando que sua voz não expressasse sua repugnância. — Eu não gosto de falar mal dos mortos, mas... bom, Colin nem sempre foi um marido ideal — disse Anne em voz baixa. — Nem todos os homens são como ele. Catherine agradeceu a delicadeza de sua amiga ao não mencionar as aventuras de Colin, mas o problema era muito mais profundo. Na verdade, ao seu modo negligente, Colin tinha sido um marido muito mais tolerante que o seriam a maioria dos homens. Mas esse não era um assunto que pudesse discutir com ninguém, jamais. — Jamais voltarei a me casar — repetiu. — Não tenho nenhum parente, o que significa trabalhar por um salário. Posso trabalhar de governanta ou de enfermeira para acompanhar uma pessoa inválida. Farei qualquer coisa enquanto possa ter Amy comigo, — Suponho que tem razão — disse Anne a contra gosto. — E se mudar de opinião, não vão faltar homens desejosos de te amar e te mimar pelo resto de sua vida. Desejando não falar mais do assunto, Catherine passeou a vista pelo abarrotado salão. — Disse-me que podia me alojar aqui se alguma vez viesse a Londres, mas a casa não é grande. De verdade tem espaço? Diga-me a verdade;posso arrumar-me de outra maneira. — Nem sequer pense em sair daqui. Estaremos um pouco apertados, mas há um pequeno dormitório, agradável e ensolarado, que pode compartilhar com Amy. A mãe do Charles é um encanto; ele herdou dela esse caráter fácil. Estará encantada de proporcionar um lar à mulher que 90


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cuidou de seu filho depois de Waterloo. — Como vão as coisas? Charles encontrou uma colocação? — Ainda não — respondeu Anne com expressão tensa. — Não há empregos suficientes, e são muitos os ex-oficiais que procuram postos similares. Lástima que nem Charles nem eu tenhamos parentes influentes, mas com o tempo vai encontrar algo. — Como se sente Charles? — Claro que é duro para ele. Adaptou-se à perda do braço, mas está acostumado a estar ocupado. Estar nesta pequena casa sem muito que fazer, e sem boas perspectivas... — Voltou as Palmas para cima. — Nunca se queixa, é claro. — Estamos bem arrumados, né? — sorriu Catherine tristemente. Essa frase a tinha usado pela primeira vez na Península, uma noite em que as mulas de carga escaparam, as crianças estavam doentes com sarampo e a chuva havia dissolvido a cabana de tijolos crus que compartilhavam. Depois, a frase as fazia rir e agradecer o que tinham. — As coisas vão melhorar — disse Anne, a expressão já relaxada— ; sempre melhoram. Não nos vamos morrer de fome, temos um teto sobre nossas cabeças e nunca mais vou ver uma maldita mula de carga em minha vida. Isso desencadeou um ataque de risada, e começaram a recordar as coisas terríveis que lhes ocorreram na Península. Depois, Catherine se sentiu melhor. Sim, as coisas melhorariam. Quão único que precisava era um trabalho decente e a sua filha. Isso não seria pedir muito, não é? Anne se reclinou no sofá. — Lorde Michael Kenyon está em Londres, para passar a Temporada. Vi discretas referências a ele nas colunas sociais. Hospeda-se em casa de lorde e lady Strathmore, e está fazendo as rondas sociais. — Sim? — Catherine se concentrou em alisar suas luvas enrugadas. —-me alegro. Sua família sim que tem influência. Consideraste a possibilidade de ir a ele? Estou segura de que se sentiria feliz de ajudar Charles a encontrar uma colocação. — A idéia me passou pela mente — reconheceu Anne. — Mas pareceria horrorosamente descarado. Ele é filho de duque, enquanto que Charles e eu somos filhos de um advogado e um pároco. —Michael não se importaria com isso. — Se ficar pior, irei ver lhe, mas ainda não estamos tão mal.— Anne a olhou de esguelha. — Vai lhe fazer saber que está na cidade? Foram muito bons amigos. Catherine sentiu, como uma pontada, o avassalador desejo de ver Michael, de que a abraçasse e consolasse, como na noite que lhe incendiou o roupão. Ver o carinho em seus olhos, ouvir a risada em sua voz... Desceu os olhos e viu que tinha voltado a enrugar as luvas. — Não, não irei ver lhe. Seria difícil não me sentir uma mendiga. — Ele estaria feliz em te ajudar. Depois de tudo lhe salvou a vida, e é um homem generoso. — Não! — Dando-se conta da dureza de sua voz, acrescentou em tom mais moderado— : Como você, iria ver lhe em caso de necessidade extrema. Não permitirei que por meu orgulho Amy tenha que sofrer. Mas não quero abusar de uma amizade passageira em tempo de guerra. Sobre tudo não com o homem ao qual amava. Estenderia sua oferta a lhe proporia matrimônio para poder cuidar dela e de Amy? Poderia ser. Eram amigos, ele a achava atraente, e se sentia profundamente endividado com ela. Essa combinação poderia muito bem induzir uma oferta se seu coração não estivesse comprometido em outra parte. Apertou os lábios. Sem pensar duas vezes tinha rechaçado as outras ofertas de matrimônio que lhe tinham feito, mas tratando-se de Michael... com ele poderia sentir-se tentada a aceitar. E isso seria desastroso para os dois. 91


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A busca de trabalho lhe resultou mais difícil do que tinha imaginado. Eram poucos os postos e muitas as solicitantes. Foi a todas as agendas de emprego respeitáveis de Londres e respondia os anúncios que apareciam no jornal. Ter uma filha a excluía de solicitar alguns postos, a falta de experiência, de outros. Várias agências repeliam de pronto incluir em suas listas «uma dama», alegando que seus clientes se sentiriam incômodos com uma criada que tinha melhor berço que eles. Pelo visto não compreendiam que uma dama também precisa va comer. Várias vezes foi entrevistar-se com mulheres que depois de olhá-la de cima abaixo a despediram sem lhe fazer nenhuma pergunta. Um amável proprietário de agência de emprego lhe explicou que poucas mulheres quereriam ter uma governanta que fosse bonita. Um dia que estava muito deprimida atravessando Hyde Park, de caminho para casa, amaldiçoou o rosto que lhe causava tantos problemas. O que os homens consideravam beleza tinha sido um infortúnio em sua vida. A única oferta de emprego que tinha recebido a tinha feito um homem cujas olhadas lascivas deixavam muito claro que serviços estariam incluídos em seus deveres. Dando um suspiro, decidiu dar uma volta ao redor do Serpentine. Olhar os patos melhorou o ânimo. Embora fosse deprimente ser repelida com tanta freqüência, sua situação não era calamitosa. Em Paris tinha vendido as pérolas que lhe deix ou sua mãe; foi muito doloroso, mas o dinheiro lhe dava um pouco de segurança nesse momento. Anne, Charles e sua mãe davam maravilhosamente bem, e Amy, com a variabilidade das crianças, sentia-se muito feliz por estar com seus amigos. Apareceria alguma coisa. Aproximava-se a hora do passeio da alta sociedade, de modo que se dedicou a contemplar quão elegantes passeavam pelo parque a cavalo ou em carruagem. Estava sorrindo para seus botões pela roupa de um dandi francamente ridículo quando de repente viu lorde Michael Kenyon conduzindo seu tílburi, em direção aonde ela estava. O coração deu um baque e acelerou seus batimentos do coração, e as mãos se fecharam convulsivamente. O dia estava agradável, por isso ele ia sem chapéu, e o sol fazia brilhar reflexos avermelhados em seus cabelos despenteados pelo vento. Via-se maravilhoso, com tanta vitalidade que era difícil recordar quão débil estava quando se despediram em Bruxelas. Depois lhe tinha escrito, dizendo que tinha chegado bem e estava totalmente recuperado, mas era agradável ver a confirmação. Não a veria em meio a multidão. Teve que reprimir o desejo de agitar a mão e chamá-lo. Teria-lhe encantado falar com ele, mas no estado em que se encontrava poderia ser incapaz de ocultar seus sentimentos. Alegrou-se de haver-se reprimido quando viu a jovem que ia sentada junto a ele na carruagem. A garota era bonita e muito atraente, de figura esbelta e lustrosos cabelos castanhos que apareciam por debaixo de seu elegante chapéu. Em seu rosto delicado se adivinhava encanto e gênio, e caráter também. Michael olhou sua acompanhante e comentou algo rindo. Ela também riu e lhe colocou a mão enluvada no braço, em um gesto de repousada intimidade. Catherine engoliu saliva e se meteu em um grupo de babás e crianças. As referências a Michael nas colunas sociais insinuavam que andava procurando uma esposa. Em um jornal sugeriam que muito em breve se esperava um «interessante anúncio». A julgar pelos olhares entre Michael e sua acompanhante, o assunto já estava resolvido, embora não anunciado oficialmente. Quando o tílburi passou perto dela aproveitou para lhe dar um últim o e ávido olhar. Se não o tivesse conhecido, essa cara de traços austeros lhe teria parecido intimidante. Mas era simplesmente Michael, o homem cuja amabilidade e compreensão haviam tocado lugares ocultos em seu coração. Cansativamente continuou seu caminho pelo parque. Sendo viúva poderia tentar conquistá92


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lo sem nenhuma vergonha.... isso se fosse uma mulher normal; mas não era. Pensou no caleidoscópio quebrado que tinha enterrado entre seus pertences na casa da Anne. Michael lhe havia dito que o jogasse fora, mas ela tinha guardado o esmagado tubo de prata, como prezada lembrança do que tinha havido entre eles, embora fosse inútil para o que tinha sido desenhado. Mas não era mais inútil que o que ela tinha sido como esposa. Apressou o passo; outro matrimônio era impensável. Sendo assim, deveria sentir-se feliz de que Michael tivesse encontrado um par digno dele. O merecia. Se insistisse durante um tempo suficiente, talvez seria realmente generosa. Quando chegou a casa dos Mowbry, Catherine continuava duvidando se dizia ou não que tinha visto Michael no parque. Finalmente decidiu não dizer nada; embora Anne e Charles se mostrassem interessados, ela não seria capaz de falar com a conveniente indif erença. Tão logo cruzou a soleira da porta, Anne lhe gritou do salão: — Catherine, é você? Há uma carta para você na mesa do vestíbulo. Agarrou a carta e a abriu sem curiosidade, caso fosse outra missiva desalentadora de uma agência de emprego, Pois, não o era. Em frases breves e termos formais, a carta dizia 'que se Catherine Penrose Melbourne visitasse senhor Edmund Harweil, advogado, inteiraria-se de algo vantajoso para ela. Releu a carta três vezes, com a pele da nuca arrepiada. Poderia não ser nada, mas não pôde desprezar o pressentimento de que sua sorte estava a ponto de mudar. CAPÍTULO 17 Michael começava a tomar sua segunda xícara de café quando se uniram a ele seus anfitriões na sala do café da manhã. Não quis olhá-los com muita atenção; Lucien rodeava a cintura de Kit com o braço, e suas expressões revelavam uma preguiçosa satisfação que fazia evidente o que estiveram fazendo antes de levantar-se. Kit, que usava seus cabelos castanhos soltos sobre os ombros, passou junto a ele quando ia servir o café para seu marido e ela, e lhe deu uma amistosa palmada no braço. — bom dia, Michael. Passou bem ontem à noite na festa de Margot? Ele levantou a vista do jornal. — Muito bem. O fato de que todos fossem amigos e que não houvesse apenas uma mulher elegível à vista, permitiu-me relaxar. Isso é uma mudança agradável depois de ser açoitado como uma raposa por todas as mães e filhas ambiciosas. — Fez correr às caçadoras — riu Lucien. — Mas havia ao menos uma solteira elegível ali, Máxima Collins, a garota norte-americana que se hospeda em casa de Rafe e Margot. Pareceu-me que se sentia a vontade falando com ela. — Pode ser que esteja solteira, mas certamente não é elegível. Robin Andreville agia muito possessivo com ela, e pelo visto não a incomodava nenhum pouco. — Michael pensou na dama em questão com um indício de pesar. Sua inteligência e franqueza a transformavam na garota mais atraente que tinha conhecido em toda essa primavera. — Mesmo que a senhorita Collins estivesse disponível, é muito baixa para mim. Os dois passariam a vida com torcicolo. — Isso é verdade — concordou Lucien. — Iria melhor com alguém da altura de Kit. Para demonstrar essa comodidade, levantou o queixo da sua mulher e lhe deu um beijo ligeiro. Michael celebrou a brincadeira mas não pôde evitar sentir uma pontada de tristeza. Todos seus amigos já estavam casados, inclusive Rafe, o solteirão contumaz. A imagem de Catherine brilhou em sua mente, mas a obrigou a partir. Deus conhecia seus impetuosos esforços p ara esquecê-la. Tinha vindo a Londres com a idéia de empreender a busca de uma esposa que tinha 93


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atrasado por causa da fuga de Napoleão da ilha de Elba. Tinha dançado com incontáveis mulheres, visitado as mais prometedoras, levado algumas a passear a cavalo ou de cabriolé. Não tinha encontrado nenhuma com a qual pudesse imaginar-se viver o resto de sua vida. Imaginou que a busca seria fácil se não insistisse no amor, mas nem sequer conseguia encontrar uma companheira passável. Achava muitíssimo mais agradável falar com Kit ou Margot, a encantadora esposa de Rafe. Estava voltando uma página quando entrou um lacaio. — Lorde Michael, um mensageiro da casa Ashburton trouxe isto para você. Com expressão surpresa recebeu a carta e a abriu. A mensagem era breve e clara. — Algum problema? — perguntou-lhe Lucien. — É de meu irmão. — levantou jogando a cadeira para trás com brutalidade. — Benfíeld diz que o muito nobre duque de Ashburton acaba de ter um ataque ao coração e que está a ponto de desprender-se de seu invólucro mortal. Ordena minha presença. — Não tem por que ir — disse Lucien olhando-o muito sério. — Não, mas as vigílias junto ao leito de morte são o que terei que fazer — respondeu Michael com cinismo. — Quem sabe? Pode ser que meu pai tenha uma mudança de atitude no último minuto. Desculpas, arrependimento, reconciliações de última hora. Pode ser muito divertido. Nem a Lucien nem a Kit enganou esse frágil humor, mas não fizeram nenhum comentário. Na verdade não havia nada que dizer. O verdadeiramente deprimente, compreendeu Michael quando se preparava para sair, era que no fundo de seu coração não podia evitar esperar que essas palavras irônicas resultassem certas. Edmund Harweil se levantou quando seu secretário fez passar Catherine a seu escritório. Era um homem magro, muito cuidadoso e de olhos perspicazes. — Senhora Melbourne? — olhou-a e pestanejou, desconcertado. — Olhos ilhéus. — Como disse? — perguntou Catherine, olhando-o perplexa. — Por favor, sente-se. Minha primeira tarefa consistia em verificar que seu nome de solteira foi Catherine Penrose e que fora a única filha de William e Elizabeth Penrose. — Sorriu levemente. — A prova de sua linhagem a leva nos olhos. Jamais vi esse matiz verde azulado em ninguém que não seja da ilha. — Que ilha? — A ilha de Skoal, frente a Cornualha. — Todos têm os olhos verde mar ali? — Mais ou menos a metade. Ali os chamam olhos ilhéus. — Harweil fez uma pausa, como ordenando seus pensamentos. — Quanto sabe do passado de seus pais? — Muito pouco — respondeu ela dando de ombros. — Eram de alguma parte da região ocidental. Casaram-se contra os desejos de suas famílias, que os repudiaram por isso. Nunca falavam do passado, assim que isso é tudo o que sei. De repente, tão clara como um sino de igreja, ouviu a voz de sua mãe falando da ilha». Despertada sua curiosidade, perguntou: — Meus pais eram de Skoal? — Sua mãe era a filha de um granjeiro, e seu pai era o filho mais novo do vigésimo sétimo lorde de Skoal. O Lorde, Torquil Penrose, pediu-me que me comunicasse com você. Ela arqueou as sobrancelhas, surpreendida. — depois de todos estes anos, esse avô se interessa repentinamente por mim? — E muito. — por que? — perguntou ela com os olhos cerrados. 94


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— Sabe um pouco de Skoal? — perguntou ele por sua vez. Catherine procurou em sua memória. Embora tivesse ouvido falar desse lugar, seu conhecimento era mínimo. — É um domínio feudal, como Sark, as ilhas do Canal, não é? — Exatamente. Embora nominalmente é inglesa, Skoal tem suas próprias leis, seus próprios costumes e sua própria assembléia de cidadãos. Tem uma forte influencia viking e uns excelentes traços celtas também. Tecnicamente o lorde é um barão britânico com banco na Câmara dos Lordes, mas em Skoal é o soberano de um diminuto reino. Seu avô governou a ilha durante quase cinqüenta anos. Agora sua saúde se debilitou e está preocupado com o futuro. Catherine começava a compreender por que a tinham chamado. — Meu pai era o filho mais novo — disse. — O que tem os outros filhos? — Aí está o problema. Eram só dois filhos. Seu pai está morto, e o mais velh o, Harald, morreu recentemente, com seu filho, em um acidente de navio. Isso deixa você e sua filha como as únicas descendentes legítimas do lorde. — Quer dizer que sou herdeira de uma ilha feudal? — Não necessariamente. Seu avô tem o direito legal de deixar Skoal a qualquer pessoa de sua escolha, e inclusive de vendê-la inteira. Entretanto, ele prefere que a ilha fique na família. Por isso deseja conhecer você e a seu marido agora. — A mim e a meu marido? — repetiu ela como uma estúpida. — Seu avô acredita que uma mulher não está capacitada para a tarefa de governar a ilha nem suas empresas. — esclareceu garganta. — Além disso, dado que as posses da esposa pertencem legalmente a seu marido, o capitão Melbourne seria o lorde se você fosse a lady. Harweil não sabia que Colín tinha morrido. Isso não era surpreendente, já que eram poucas as pessoas que sabiam. — Se eu fosse uma mulher sozinha, solteira ou viúva, meu avô me consideraria inaceitável? — perguntou. — Imagino que insistiria em que se casasse com um homem aprovado por ele antes de nomeá-la sua herdeira. Felizmente, não é esse o caso. — Harweil estirou os lábios. — Posso falar com franqueza? — Sim, por favor. — O lorde é um homem muito... muito enérgico; tem sólidas opiniões sobre como devem ser as coisas. Creio que lamentou ter deserdado seu pai. Da distância seguiu a carreira de Williams. E de você. Soube de seu matrimônio e do nascimento de sua filha. — O advogado esclareceu a garganta. — Sua aflição foi muito profunda quando se inteirou da morte de seus pais. Desgostosa ao saber que estiveram observando toda sua vida, Catherine disse descaradamente: — Quer dizer, meu avô é um tirano teimoso e cabeça-dura. Harweil quase sorriu. — Há quem diria isso. Mas toma muito a sério suas obrigações, e está resolvido a deixar a ilha em boas mãos. Há um primo longínquo que gostaria de ser o próximo lorde. É um cavalheiro educado, capaz, que mantém uma casa na ilha, mas seu avô preferiria que o herdeiro fora de sua própria carne e sangue. O tom de Harweil dava a entender que não aprovava o primo, e Catherine se deu conta de que não podia dizer mais. — Não sei se quero um avô que julgue minha vida. — Valeria a pena conhecê-lo. Além do título e a propriedade, há uns ganhos ao redor de duas minhas libras por ano. — Emitiu uma tosse seca. — O capitão Melbourne é um oficial distinto, mas a carreira militar raras vezes é lucrativa, e muito menos em tempo de paz. Ela mordeu o lábio, pensando que deveria revelar a morte de Colín. Mas seu avô só tomaria 95


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em consideração que era a metade de um casal, dizer a verdade significaria perder essa bendita oportunidade de segurança econômica. A alternativa, aceitar outro marido, era impensável, até no caso de que isso significasse dez mil libras ao ano. — Meu avô está agora em Londres? — perguntou, para fazer tempo. — OH, não, faz muitos anos que não sai da ilha. Como disse, sua saúde se debilitou. — Pôs expressão preocupada. — Isso é um eufemismo. Na verdade está acamado, e seu médico acredita que não passar do verão. Embora sua vontade seja forte, seu corpo está muito débil. Por isso quer que você viaje imediatamente a Skoal com seu marido. — E se não gostar do que vai ver? — Não tem necessidade de lhe deixar nem um pêni — respondeu ele sorrindo, — mas não há nenhum motivo para supor que vá desaprovar sua neta. Ouviu falar da Santa Catherine e de seu trabalho nos campos de batalha na Espanha. Está desejoso de conhecê-la. — O sentimento não é mútuo — disse ela com aspereza. — Que tipo de homem deserdaria seu filho por casar-se com uma mulher tão boa como minha mãe? — Um homem teimoso — respondeu docemente Harweil, — e um homem solitário. Compreendo suas dúvidas, mas lhe rogo que pense atentamente. O lorde é seu avô. Se o rechaçar, não só deserda você, mas também deserda sua filha e qualquer filho que pudesse ter. Mais ainda, desconecta-se do único patrimônio que lhe pertence por direito próprio. Catherine acreditou advertir uma nota de saudade na voz do advogado. — Você conhece bem a ilha? — perguntou-lhe. — Meu pai nasceu ali. Ele era o agente do lorde em Londres, antes de mim. Visitei a ilha com freqüência ao longo dos anos. É um lugar precioso, natural. — Sorriu um pouco sobressaltado. — Quase se poderia dizer mágico. Catherine ouviu novamente a voz de sua mãe, esta vez dizendo: «Já estarão florescidos os narcisistas na ilha», e passado um momento, a voz de seu pai respondia: «Logo terão florescido aqui também». Ela era muito pequena para perceber a nostalgia que revelavam esses comentários corriqueiros. De repente desejou ver a ilha que tinha moldado seus pais. E, se era possível, desejava conquistar essa herança que daria liberdade econômica a ela e a Amy. Ficou de pé. — Deu-me muito no que pensar. Amanhã o farei saber mim decisão. — Excelente — respondeu ele, levantando-se também. — E traga seu marido, já que ele está estreitamente ligado a sua decisão. Saiu ao sol quase sem ver por onde pisava. Essa herança resolveria todos os problemas. Mas um pensamento lhe dava voltas na cabeça com claridade abrasadora. «Preciso de um marido, e preciso rápido.» Capítulo 18 Fazia anos que Michael não punha os pés na casa Ashburton, mas não havia mudado. Continuava sendo enorme, grandiosa e sufocante. O mordomo, Riggs, tinha alguns cabelos brancos mais, mas seu rosto continuava sendo arrogante. Passou-lhe seu chapéu. — Supondo que a vigília é nos aposentos do duque. — Sim, lorde Michael. Dirigiu-se à majestosa escada. Enquanto subia os brilhantes degraus de mármore recordou quando descia deslizando pelo corrimão. Metia-se em problemas cada vez que o surpreendiam, mas nem por isso deixou de fazê-lo. 96


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Embora a mansão não houvesse mudado no exterior, notou uma sutil diferencia no ambiente; estava carregado do silêncio de uma casa à espera da morte. Um lacaio de peruca empoada e meias até o joelho montava guarda fora dos aposentos do duque. Ao reconhecê-lo, abriu a porta fazendo uma inclinação. Michael inspirou fundo e atravessou a sala de estar até o quarto. Tentou recordar se alguma vez tinha colocado os pés ali; pensou que não; ele e seu pai nunca tinham tido uma relação estreita. O aposento estava escuro para provocar claustrofobia, e fedido a cheiro de remédios e deterioração. Impressionou-o ver o gasto corpo de seu pai na cama, diminuído pelas cortinas de veludo e os enormes postes esculpidos. Repentinamente se deu conta de que o ogro de sua infância estava morrendo. Como soldado respeitava o poder e a consumação da morte, e comprovou que sentia compaixão. O quarto duque de Ashburton havia finalmente encontrado um inimigo ao qual não podia submeter pela força. No aposento se congregaram várias pessoas que vagavam inquietas: seu irmão e sua irmã com seus respectivos cônjuges, o valete e o secretário do duque, vários médicos. — Surpreende-me vê-lo aqui — disse sua irmã a Michael, a condessa de Herrington, de cara feia. — Se não sou bem vindo aqui, Claudia, isso tem remédio — respondeu ele com os lábios apertados. — Este não é lugar para rixas — interveio seu irmão com severidade. — convidei Michael porque pai quer vê-lo. Embora todos os Kenyon fossem altos, cabelo castanho escuro e traços bem cinzelados, o marquês de Benfíeld tinha os olhos frios e a firme autoridade do homem que foi educado para duque. Houve épocas em sua infância nas quais os irmãos se davam bastante bem. Só foi por dois anos, e quando eram meninos, Michael o chamava de Stephen. Fazia décadas que não usava esse nome e o chamava Benfíeld. —Michael está aí? O rouco sussurro fez virar todos para a cama. — Sim, senhor, vim. — Michael se aproximou e olhou seu pai. O duque era uma sombra do que tinha sido, todo pele, ossos cansados e vontade, mas em seus olhos ainda ardia a raiva. — Que todo mundo saia, exceto Michael e Benfield. — Mas, pai... — começou Claudia. — Fora! — interrompeu-a o duque. Só se ouviu o ruído de pés e roupas enquanto saíam todos do quarto. Embora o rosto de Claudia estivesse rígido de indignação, não se atreveu a desobedecer. Michael olhou o Benfíeld, mas este lhe fez um leve gesto com a cabeça lhe indicando que sabia tanto como ele. — Quer saber por que o chamei aqui — disse o duque com um fiapo de voz áspera. Era uma afirmação, não uma pergunta. Michael se preparou; tinha sido um estúpido ao acreditar que poderia haver uma aproximação de última hora. Não podia haver reconciliação onde jamais tinha havido harmonia. Perguntando-se que golpe de despedida lhe reservava seu pai, disse: — É compreensível que um pai deseje ver todos seus filhos em um momento assim. — Você não é meu filho — respondeu o duque com o rosto contorcido. Em Michael esticaram todos os nervos do corpo. — Como goste, senhor— disse calmamente. — Não me surpreende que me deserde, mas que me pendurem se souber que enorme crime cometi. Nunca o compreendi. Flamejaram os olhos azuis do duque, cinzas pela idade. 97


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— Não é meu filho! Posso dizê-lo com mais claridade? A puta da sua mãe o reconheceu francamente. Michael sentiu que os pulmões lhe oprimiam até quase não poder respirar. Esforçando-se por dominar-se, olhou o duque, depois Benfield, e viu os mesmos ossos e coloração que via cada manhã ao olhar-se no espelho. — Com todo o devido respeito, meus traços são muito Kenyon. Talvez ela mentisse para enfurecê-lo. Deus sabia que o duque e a duquesa tinham brigado como víboras. A cara do duque avermelhou de fúria, uma fúria inflamada de décadas. — Disse a verdade. Seu pai foi meu irmão mais novo Roderick. Eu mesmo os surpreendi juntos. Benfield conteve o fôlego, seu rosto tão chocado como devia estar a de Michael. — Não gostava de minhas aventuras, assim decidiu me pagar na mesma moeda — continuou o duque. — Me disse que sempre tinha gostado de Roderick, que era muito parecido e melhor na cama. Que deveria estar agradecido, porque se algo acontecesse a Benfield, o herdeiro seria um Kenyon de qualquer modo. Agradecido! A mui víbora, puta traiçoeira, asquerosa. Sabia que eu não tinha outra alternativa que te aceitar, e ela se deleitava nisso. Veio-lhe um ataque de tosse. Benfield se apressou a lhe oferecer um copo de água, mas o velho o repeliu com a mão. — Roderick sempre me teve rancor por ser eu o mais velh o. Georgiana lhe deu não só a oportunidade de me pôr chifres mas também a possibilidade de que seu filho herdasse. Uns perversos rancorosos, os dois. Michael se sentiu paralisado da cabeça aos pés; quase não conseguiu alargar os pulmões. Era curioso que tivesse nascido para servir de instrumento entre duas pessoas que se desprezavam mutuamente. Não era estranho que sua infância estivesse saturada de ódio. — por que decidiu me dizer isso agora? — Um homem tem direito de saber quem é seu pai — disse com uma careta. — E posto que Benfield vai ser o cabeça de família deve saber a verdade; talvez agora ponha empenho e gere um filho. Além disso, é brando e poderia o tratar como um membro da família se não soubesse. — Não precisa preocupar-se — disse Michael, incapaz de ocultar sua amargura. — Nunca foi muito fraternal. — É igual a Roderick — grunhiu o duque com sua antiga fúria viva em sua expressão. — Tem os mesmos malditos olhos verdes. Inteligente, forte, arrogante, melhor em tudo que meu filho. — Sem fazer caso da abafada exclamação de Benfíeld, concluiu— : Deveria tê-lo banido às Índias, como fiz com Roderick. Michael desejou golpeá-lo, ferir o homem que o tinha atormentado toda sua vida, mas para que? O duque estava morrendo e o ódio que tinha alimentado era seu castigo. — Suponho que devo lhe agradecer que por fim tenha sido sincero comigo. Bom dia, senhor, desejo-lhe uma morte aprazível. Os dedos ossudos do duque se agarraram na colcha. — Desprezo o fato de sua existência, e entretanto... não pude evitar te respeitar. Serviste com honra ao exército e trabalhou uma fortuna sem nada mais que a parte do filho mais novo. Teria gostado de ter um herdeiro como você. — Dirigiu um depreciativo olhar a Benfíeld e voltou a olhar o Michael. — Desejava ter outro filho, e em seu lugar nasceu você. — Teria sido seu filho se você tivesse querido — respondeu Michael entre dentes. Sentindo-se a ponto de desmoronar-se, deu meia volta e se dirigiu à porta. Benfield, muito pálido, agarrou-lhe o braço. — Michael, espera. 98


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— O que? O duque já disse tudo de importante. — escapou do braço. — Não se preocupe, jamais voltarei a obscurecer nenhuma de suas portas. Desejo-te muita sorte com sua herança. Benfíeld começou a falar, mas se interrompeu, silenciado pelo gelo que viu nos olhos de Michael. Michael abriu a porta e saiu à sala de estar do duque. Claudia e outros o olharam fixamente, tentando adivinhar o que tinha sucedido. Sem olhar nem à direita nem à esquerda, atravessou a sala e saiu ao corredor. Desceu as polidas escadas, apoiando uma mão no corrimão, porque não estava tão firme como simulava estar. Passou junto ao mordomo e saiu ao agradável ar fresco, que aliviou o sufocante calor em seus pulmões. Assim que era um bastardo. Isso explicava tudo: o ódio evidente do duque, a maneira arrogante como sua mãe o acariciava e mimava quando estava de bom humor. Claudia e Benfield tinham percebido a atitude depreciativa do duque e a tinham adotado também. O que deveria ter sido uma família se transformou em um holocausto. Nunca tinha chegado a conhecer Roderick, que morreu nas Índias Ocidentais quando ele era bebê. Tinha a vaga lembrança de ter ouvido à anciã instrutora dos Kenyon dizer que ele era igual ao seu pobre tio. Tinha mais razão do que ela mesma acreditava. Em lugar de voltar para a casa de Lucien, caminhou deliberadamente no sentido oposto. Uma vez passada a primeira impressão, a notícia de seu nascimento era curiosamente libertadora. Não tinha sido culpa dele. Não tinha feito nada que justificasse as desumanas críticas e os selvagens açoites de seu pai, não, do duque. Quando o enviaram a Eton em lugar do Harrow, que era o colégio tradicional dos Kenyon, não foi devido a seus defeitos pessoais. Todos seus esforços para ser o melhor, por demonstrar que valia, estiveram condenados ao fracasso, porque nada poderia ter conseguido que o duque o aceitasse. Entretanto, esses esforços não tinham sido inúteis, porque lhe tinham formado o caráter, tinham-no feito o que era. Ao se sentir um estranho, tinha desenvolvido uma empatia por outros estranhos, empatia não habit ual em alguém criado como filho de um duque. Essa empatia o tinha levado a fazer-se amigo de Nicholas, de Kenneth e de outros, enriquecendo enormemente sua vida. Embora a notícia fosse adversa, não tinha verdadeira importância. Seguia sendo o homem que tinha sido sempre, com seus pontos fracos e seus pontos fortes. Se contasse a verdade a seus amigos mais íntimos, eles não dariam importância. Tinham -lhe dado proteção, literal e emocionalmente, quando estava crescendo e não o abandonariam agora. Transformou-se em um homem rico mediante a mineração e os investimentos para demonstrar que não precisava da ajuda do duque. Devido a esses esforços agora não importava que não herdasse nada. Pensou no passado, reinterpretando-o à luz da nova informação. Não tinha perdido sua família porque em realidade nunca tinha tido uma. Curiosamente, descobriu que já não odiava o duque. Um homem melhor poderia ter tratado com mais bondade o bastardo de sua esposa, mas o duque jamais tinha tido bondade. Era típico de sua crueldade manifestar tal desprezo por seu filho diante dele. O orgulho e a aparência de decoro tinham sido suas paixões dominantes, por isso não teria sido fácil estar vendo continuamente a prova de sua humilhação. ' Depois de ter caminhado até encontrar a paz, voltou para a casa Strathmore. Era melhor conhecer a verdade que continuar na ignorância. Entretanto, sentia-se quase tão esgotado como durante sua longa convalescença depois de Waterloo. Graças a Deus tinha Nicholas e Clare, que o levaram para sua casa e o cuidaram como a um irmão. Tendo esses amigos, não precisava de uma família. A tranqüilidade só lhe durou até que entrou na casa e o lacaio lhe entregou um cartão. — Há uma senhora esperando lhe ver, milord. 99


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Catherine estava olhando pela janela. O coração ac elerou quando ouviu abrir a porta do salão e seus conhecidos passos. Pôs a serena expressão de Santa Catherine e se voltou lentamente. Quando o viu no parque lhe tinha parecido mais jovem, mais despreocupado. Ao olhá-lo mais de perto viu que tinha mais profundas as rugas dos cantos dos olhos e que parecia cansado. Mas ouviu a simpatia em sua voz quando disse: — Catherine? Deus santo, seria capaz de levar até o fim semelhante engano? Com a garganta oprimida, disse-lhe: — Sinto muito lhe incomodar, lorde Michael. — Como é que me trata com essa formalidade, Catherine? — Atravessou o salão e lhe deu um beijo ligeiro, amistoso. — Me alegra vê-la. Está tão linda como sempre. — Soltou-lhe as mãos e perguntou— : Como está Amy? E Colín? — Amy está maravilhosamente bem. Quase não a conheceria. Juraria que cresceu oito centímetros desde a primavera passada. Colín... — titubeou, procurando palavras que fossem certas em parte— ainda está na França. — Estou esquecendo minhas maneiras — disse ele, sem suspeitar nada. —Sente-se por favor. Ordenarei que nos sirvam chá. — Melhor que diga minha parte primeiro — se apressou a dizer ela, sabendo que devia falar antes de perder totalmente a coragem. — Necessito uma ajuda bastante especial. É possível que... é possível que deseje me expulsar desta casa quando souber qual é. Ele ficou sério e a olhou no rosto. — Jamais —disse docemente. — Te devo a vida, Catherine. Pode me pedir qualquer coisa. — Atribui-me mais mérito que o que mereço. — Tragou saliva e recordou por que devia mentir. —Temo que... acontece que necessito um marido. Um marido temporário. Capítulo 19 Michael olhou fixamente Catherine, perguntando-se se teria ouvido bem. A interpretação clara e vulgar não podia ser certa. Talvez tenha caído de seu cavalo aterrissando de cabeça no chão e todo esse dia tenha sido só um sonho febril. — Como disse? — Perdoa, tenho a cabeça cheia, uma confusão de pensamentos. — sentou-se e fez uma inspiração profunda. — Acabo de estar no escritório de um advogado, onde me inteirei que sou a única neta do lorde de Skoal. Meu avô deseja examinar a mim e a meu marido para ver se somos dignos de herdar a ilha. Conforme disse o senhor Harweil, o lorde está muito doente, de modo que isto tem que ser feito logo. Notificar Colin para que venha da França levaria semanas. Então meu avô já poderia estar morto e eu teria perdido esta oportunidade. — Pode chegar a Skoal de Londres em dois ou três dias. Ela sorriu sem alegria. — Só que só valho a metade. O senhor Harweil me disse que o lorde deseja ver meu marido também, para dar sua aprovação. Se não, poderá deixar a ilha para outra pessoa. — Desviou a vista. — Posto que Colin de maneira nenhuma poderia chegar aqui a tempo... poderia vir comigo e me acompanhar até ali por alguns dias, simulando que é meu marido? Esse pedido lhe pareceu tão chocante quanto a notícia dada pelo duque. — Está brincando. — Temo que não. — mordeu o lábio. — Sei que esta é um pedido escandaloso, mas não me ocorre nenhuma solução melhor. 100


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Certamente existia um Deus, pensou Michael, um Deus com um senso de humor muito estranho. — Quer dizer — disse com cautela, — quer que tome parte em uma comédia para enganar seu avô. — Soa horroroso, não é? Detesto a idéia do engano. Mas, para ser franca, a herança me viria muito bem, muito bem, a verdade. — Sorriu irônica. — Para ser mais franca ainda, é possível que meu avô aprove você mais que a Colin. Conforme entendi, meu avô anda procurando mãos dignas de confiança nas quais deixar a ilha. E Colin não era o mais confiável e diligente dos homens. Recordando os sinais de dificuldades econômicas que tinha visto em Bruxelas, Michael compreendeu por que essa herança era tão importante para ela. — Não é que o engano vá causar algum dano — continuou Catherine. — Uma mulher pode dirigir uma propriedade tão bem como um homem, e aprenderei tudo o que seja necessário. Michael pensou se talvez temesse que Melbourne se negasse a viver uma vida tão isolada. Ou talvez já não aceitasse as infidelidades de seu marido e desejava forjar uma nova vida, sozinha. Fossem quais fossem seus motivos, não podia perguntar-lhe. Mas sim precisava de resposta a outras perguntas. —Só a idéia de mentir a converteu em um maço de nervos. É uma atriz boa o bastante para me fazer passar por seu marido com êxito? Ela fechou os olhos e esteve assim pelo espaço de umas doze batidas de seu coração. Depois os abriu e lhe disse tranqüilamente: — Sou uma atriz excelente, Colin. Sou capaz de fazer o que for que precise fazer. Era novamente a serena Santa Catherine, e sua voz, ao chamá -lo pelo nome de seu marido, era tão convincente que ele sentiu calafrios. Seria que todas as mulheres são embusteiras natas? Uma boa coisa era que Catherine não se parecia em nada com Caroline, se não, seria perigosa. Talvez ela fosse capaz de fazer a comédia, mas ele, seria capaz? Teriam que passar muitíssimo tempo juntos. Em público teriam que imitar a intimidade física e verbal de um casal casado durante muito tempo; na intimidade, ele teria que manter sua distância. Sentindo por ela o que sentia, essa combinação seria um inferno puro. Claro que ela não sabia o que ele sentia por ela. Também tinha a inocência de uma mulher monógama casada há muito tempo. Tinha esquecido que bestas ingovernáveis podem ser os homens, se é que soube alguma vez. Mas não podia negar-se. Não só porque lhe tinha dado carta branca para lhe pedir qualquer ajuda, mas também porque não podia resistir à oportunidade de estar com ela. Era tão estúpido como sempre. — Muito bem. Tem um marido temporário. Ela soltou um suspiro de alívio. — Obrigado, muitíssimos obrigado. Não há ninguém mais em quem possa confiar para fazer isto. Porque seus outros amigos eram mais sensatos, pensou ele, lúgubremente. — Se o tempo estiver essencial. Saímos para Skoal amanhã? — Seria o ideal, se puder partir tão imediatamente. — Franziu o cenho. —Não tem compromissos sociais? — Nenhum que não se possa cancelar — respondeu ele, com um dar de ombros. — Bendito seja, Michael. Não sei o que faria sem você. — levantou-se. —Voltarei para o escritório do senhor Harweil e lhe direi que vamos a Skoal. Sem dúvida tem instruções para me dar. Também me disse que me adiantaria dinheiro para os gastos da viagem se decidisse ir. — Isso não é necessário. Eu correrei com os gastos. — De maneira nenhuma posso permitir que faça isso. 101


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— por que não? — alegou ele, e acrescentou sorrindo— : Afinal sou seu marido. Além disso, se seu avô for do tipo mandão, vai se sentir em desvantagem se tiver aceitado seu dinheiro. Tendo crescido na casa do duque de Ashburton, Michael tinha se transformado em perito na política do dinheiro e o poder. — Não tinha pensado nisso — disse ela pensativa. — Certamente prefiro dever a você que a um avô desconhecido, mas lhe pagarei isso tão logo possa. — Muito bem. — Abriu-lhe a porta do salão. — A levarei ao advogado. — Isso não é necessário. Ele arqueou as sobrancelhas da forma que estava acostumado a fazer para intimidar aos alferes jovens. — Espero que minha esposa obedeça meus desejos. Ela pôs-se a rir, e pareceu muito mais jovem que quando a viu ao entrar. — Esforçarei-me para ser mais submissa, carinho. — Não se esforce muito. Eu gosto tal como é. Olharam-se longamente nos olhos. Se perguntou se ela se daria conta de quão perigosa era essa farsa. Tinha jurado comportar-se honradamente em tudo referente a ela, mas era só um ser humano, feito de carne e osso. Ela confiava nele. Devia lembrar isso. Catherine subiu no tílburi sentindo alívio e culpa em partes iguais. Mentir a Michael era um ato desprezível, horrendo, estando ele ajudando-a tanto. Mas não conseguia ver outra escolha possível. Nem sequer a Anne podia explicar por que um segundo matrimônio era impensável. Tampouco podia arriscar-se que ele se sentisse obrigado a resolver seus problemas lhe dando seu sobrenome. Ele merecia algo melhor; merecia a essa linda jovem que ia com ele no parque com seus reluzentes cabelos e esse sorriso quente e íntim o. Merecia a uma mulher de verdade, não a uma farsante como Catherine Melbourne. Enterrando muito a fundo o sentimento de culpa, contou a Michael o que o advogado l he havia dito sobre seus pais e Skoal, enquanto ele conduzia o tílburi pelo concorrido tráfico da tarde. Quando terminou ele a olhou carrancudo. — Seu avô parece ser um tirano. Que bom que não vai sozinha. Ela estava de acordo. Embora fosse muito difícil passar tanto tempo com Michael, sentiria-se mais segura tendo ele a seu lado. — Posto que o advogado e seu avô têm tanta informação sobre você e sua família, será melhor que me conte algo sobre o passado de Colín, para que eu não cometa nenhum engano. Ela guardou silêncio um momento, pensando o que precisaria saber Michael. — O pai de Colín era um oficial americano realista que ficou no exército britânico depois da revolução. Sua mãe também era americana, de modo que Colín não tem nenhum parente inglês próximo. Viver com o exército significou que a família não tinha nenhum lugar ao qual pudessem chamassem de lar. Colin estudou em Rugby antes de entrar no regimento. Quando o conheci seus pais já tinham morrido. — Sentiu uma onda de tristeza ao referir os pontos essenciais da vida de Colin. Contendo as lágrimas continuou— : Embora não se pareçam, felizmente os dois têm características que calçam com a descrição geral: altos, de cabelo castanho e porte militar. — Essa história é fácil de recordar, e posto que os oficiais britânicos não usam uniforme quando não estão de serviço, não terei que buscar ornamentos de cavalaria da noite para o dia. — Guiou com perícia a carruagem por entre dois carros pesados parados. — vai levar a Amy a Skoal? Supondo que seu avô deseja conhecer a geração seguinte. Catherine negou energicamente com a cabeça. — Não quero levá-la a uma situação tão incerta. O lorde poderia ser um absoluto monstro. 102


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Além disso, não seria correto lhe pedir que participe de um engano. — Tem toda a razão. O engano é para os adultos — disse ele secamente. — Tem alguém que cuide dela? Se não, estou seguro de que os Strathmore estariam encantados de tê-la em sua casa. — Não é necessário. Estamos hospedadas com os Mowbry. Anne e Charles vivem com a mãe dele, que é viúva, se recorda. — pôs-se a rir. — Amy está encantada de ver novamente a Clancy e Luis o Preguiçoso. Michael sorriu involuntariamente. — Eu também sinto falta desse animal. Como está Charles? Catherine guardou silêncio um momento, pensando se atreveria-se ou não a pedir mais ajuda, e decidiu que pelo bem de seus amigos, se atreveria. — Charles se recuperou bem de suas feridas, mas está resultando difícil encontrar trabalho. — Muitos ex-soldados estão passando os mesmos apuros. — ficou pensativo. — Meu amigo Rafe, como duque de Candover, possui uma grande quantidade de propriedades e negócios. Justamente ontem à noite nos contou que o senhor que foi uma espécie de administrador geral durante os trinta últimos anos está próximo da aposentadoria. Perguntou-me se eu conhecia alguém que possa trabalhar junto ao velho Wilson para ocupar seu posto depois. Além de inteligência, honradez e eficiência, o posto requer que a pessoa saiba mandar, por isso Rafe pensa que um ex-oficial seria uma boa opção. Creio que Rafe e Charles se dariam muito bem. — Isso me parece perfeito. É muito bom, Michael. Subtraiu a importância com um encolhimento de ombros. — Rafe estará feliz de encontrar alguém com a capacidade de Charles. Direi-lhe que espere uma visita de Charles nos próximos dias. Tinham chegado a seu destino. Michael freou o carro e lançou uma moeda a um menino para que segurasse os cavalos; depois apeou e ajudou Catherine a descer. — Está a ponto de começar o primeiro ato da comédia —disse ela com um sorriso nervoso. A tranqüilizou com um travesso brilho em seus olhos verdes, e se transformaram em casal contra o mundo. — Direi o mínimo possível —prometeu ele. — Isso evitará me colocar em dificuldades. A entrevista correu bem. O senhor Harweil estava encantado com a decisão de Catherine e evidentemente gostou do que viu em seu «marido». Quando já estavam a salvo, de volta no tílburi, ela soltou um suspiro de alívio. — Isto foi um presságio favorável, não parece? — Até aqui vamos bem. Levo-a para casa agora? Catherine titubeou, inquieta. Acabava de cair na conta de que não podia lhe permitir ver os Mowbry. Se alguém mencionasse a morte de Colin, seu ardil estaria descoberto e Michael se zangaria, e com razão. Claro que chegaria o dia em que ele saberia que tinha ficado viúva, mas dada a forma como o governo tinha silenciado a morte, ela poderia ocultar a verdadeira data. Mas, Deus santo, estava caminhando por uma corda frouxa. — Bom, quase até em casa. Preferiria que me deixasse uma ou duas travessias antes. — Não quer que os Mowbry nos vejam juntos? — A olhou de esguelha. — Se se preocupar com as aparências, vai ser difícil levar adiante esta comédia. —Nenhuma mulher que tenha atravessado a Espanha com um exército se preocupa excessivamente com as aparências — respondeu ela em tom despreocupado. — Mas quanto menos pessoas saibam desta aventura melhor. — O que significa não ter criados, para nenhum dos dois. — Moveu a cabeça. — Essa parte é fácil, mas, tem uma idéia das muitas complicações possíveis que está criando para o futuro? A idéia das complicações fez um nó em seu estômago. 103


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— pensei nisso — disse, tentando parecer tranqüila. — A única coisa que posso fazer é enfrentar os problemas à medida que se apresentem. Isso é outra coisa que aprendi na Espanha: não se preocupe pela crise de amanhã enquanto não tenha resolvida a de hoje. — Sorriu timidamente. — E com sua ajuda, a crise de hoje foi superada. — Intrépida mulher. — Correspondeu o sorriso com um quente olhar. — É um mau assunto, mas tenho que dizer que espero com ilusão nossa vida conjugal. Ela também, e muito, maldito seja. Tão logo Michael entrou na casa Strathmore, o mordomo lhe disse que o conde desejava vêlo. Pensando o que outra coisa mais poderia ter acontecido nesse lunático dia, dirigiu-se ao estúdio de seu amigo. Lucien ficou de pé ao vê-lo entrar. — Faz um momento lhe chegou esta carta —disse muito sério. O papel tinha os lados negros. Compreendendo por que seu amigo tinha querido entregarlhe pessoalmente, rompeu o selo e passou a vista pela mensagem. — É de Benfield — explicou, com o rosto inexpressivo. — O duque de Ashburton morreu. Deve ter entregue seu espírito pouco depois que saí de sua casa. — Lamento — disse Lucien em tom baixo. — Por muito difícil que tenha sido a relação, perder um pai tem que ser um golpe duro. — O fim de uma era, certamente, mas não esbanje sua compaixão comigo. Olhou as linhas escritas depressa. Benfield era um homem responsável; seria um bom duque, melhor que o velho amargurado ao qual ia suceder. Inclusive lhe pedia educadamente uma entrevista, dizendo que tinham assuntos dos quais falarem. Não lhe ocorreu nada que pudessem dizer-se, de modo que pôs o canto do papel sobre a chama de uma vela da mesa. O papel enegreceu e começou a arder. «Teria sido seu filho se você tivesse querido.» Lhe oprimiu o peito e o invadiu um doloroso pesar. Se o velho duque tivesse desejado amor e lealdade filial, os teria tido com muita facilidade. Ele tinha desejado amá-lo, desesperadamente. Talvez por isso depois tinha amado com tão pouco juízo. Antes que as chamas lhe queimassem os dedos, arrojou a carta ardendo na lareira. — Amanhã vou sair da cidade e provavelmente estarei fora umas duas semanas. — Supondo que o funeral será em Ashburton. — Sem dúvida, mas não é ali aonde vou. Surgiu-me outro assunto. — Não vai assistir ao funeral de seu pai? Lucien não conseguiu ocultar a surpresa em sua voz, mas claro, ele tinha amado seu pai. — Minha presença não seria bem vinda. Não se sentia com ânimo de explicar, nem sequer a Luce. Ficou olhando a carta até que se converteu em cinzas. Com sorte, essa seria a última conexão que teria com a família Kenyon. Levantou a cabeça. Lucien o estava olhando com a expressão preocupada que tinha visto antes em seus amigos, embora não os dois anos passados. Desejou lhe dizer que não havia nenhuma necessidade de preocupar-se, mas estava muito esgotado para encontrar as palavras. — Não estou à espera de nada urgente, mas se precisa r me comunicar algo, estarei na ilha de Skoal, sob o nome Colín Melbourne. Lucien arqueou as sobrancelhas. — O que vai fazer ali? Normalmente o ardil é minha especialidade. — Pois, simplesmente matar dragões... Interrompeu-se, ao recordar de repente à babá que teve quando era pequeno. Fanny era uma camponesa carinhosa, o mais parecido de uma mãe que teve em sua vida. Para fazê-lo dormir contava contos, e tinha inventado um personagem chamado são Michael, que era uma combinação de são Jorge e o arcanjo San Miguel. Então ele sonhava que matava dragões, salvava donzelas e 104


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fazia outras proezas fabulosas; assim certamente ganharia a aprovação de seu pai e conquistaria a mão da princesa mais bela do mundo. Mas resultava que seu pai não era seu pai e a bela princesa estava casada com outro homem. Era uma lástima que Fanny não tivesse recebido educação suficiente para lhe contar histórias de dom Quixote, que era o verdadeiro modelo para sua vida. Com o rosto imperturbável começou a falar de uma empresa de motores a vapor em que estava pensando investir. Lucien aceitou diplomaticamente a mudança de assunto, e não se falou mais do defunto e não lamentado duque de Ashburton. Só quando foi se deitar nessa noite, Michael compreendeu quão afortunado era. Ajudar Catherine era o antídoto perfeito contra o que teriam sido dias muito desolados. «Desejava ter outro filho, e em seu lugar nasceu você.» capítulo 20 — Há um carro de posta aí fora — anunciou Amy. Olhou sua mãe por cima do ombro. — Está segura de que não posso ir contigo? — Absolutamente — respondeu Catherine - Primeiro quero estar segura de que este novo avô merece conhecer minha filha. — Abraçou-a. — Se comportar-se bem, imagine... algum dia poderia ser a lady de Skoal. — Acho bastante grandioso. Se lhe cair bem esse senhor, manda me buscar e irei imediatamente. — Isso veremos. Prometo que não estarei muito tempo longe. Catherine saiu à rua acompanhada por toda a família e os dois cães. — O que me preocupa é que vá sozinha —disse Anne enquanto o chofer carregava a bagagem. — Não vou sozinha; vai um chofer e um guia. Além disso, isto é a Inglaterra, não a Espanha. Não me acontecerá nada. Mais remorsos; agora mentia a sua melhor amiga. Foi um alívio se colocar em marcha. Meia hora depois, o carro se deteve em uma abarrotada estalagem de postas para recolher Michael. Este fiscalizou a carga de sua bagagem e depois subiu de um salto ao veículo. — Se não se importa viajar muitas horas, amanhã ao entardecer poderíamos estar em Skoal. — Oxalá. Tenho muita curiosidade por conhecer este meu avô. O carro era espaçoso e muito cômodo, mas de qualquer modo a proximidade de Michael era excessiva para sua paz mental. Tinha esquecido a aura de poder controlado que emanava dele. Falaram pouco, cada um imerso em seus próprios pensamentos. Embora fossem criados, a autoridade natural de Michael produzia uma deferência instantânea onde quer que paravam, e conseguiam os melhores cavalos disponíveis. Com isso ganhavam muitíssimo tempo. Michael conhecia bem o caminho, e ela compreendeu por que quando chegaram a um povoado chamado Great Ashburton, em Wiltshire. Era dia de mercado e o carro diminuiu a marcha até um passo de tartaruga quando passaram pela praça. — Este povoado tem alguma conexão com sua família? — perguntou Catherine meio adormecida. Ele olhou pela janela, sem ver. — Ashburton Abbey, a casa principal da família, está a uns três quilômetros pelo caminho que acabamos de passar. — Céu santo. — levantou-se, totalmente acordada. — Esta é sua terra? — Nasci e me criei aqui. Minha terra está em Gales. 105


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— Comprava doces nessa loja? — continuou ela, fascinada. — Da senhora Thomsen, sim. Disse como se estivesse confessando um assassinato. Posto que ele não quisesse falar do passado, ela se dedicou a olhar com atenção o povoado e tentou imaginar o menino Michael correndo por essas ruas. Parecia ser uma comunidade agradável e próspera. — Há faixas negras em muitas portas — comentou surpreendida. — O duque de Ashburton morreu ontem. Ela o olhou como se não tivesse ouvido bem. — Seu pai morreu ontem e não me disse nada? Ele continuava olhando pela janela, o rosto como granito. — Não havia nada que dizer. Catherine recordou a vez que falaram de sua família em Bruxelas e sentiu pena por ele. Ele tinha a mão aferrada sobre o assento, entre os dois; ela lhe colocou a palma em cima. — Estou ainda mais agradecida de que em um momento como este tenha a generosidade de me ajudar. Ele não a olhou, mas girou a mão e apertou fortemente a dela. — Pelo contrário, sou eu que deve estar agradecido. Embora nenhum dos dois voltasse a falar, suas mãos continuaram agarradas durante um longo momento. Viajaram até que estava totalmente escuro, e então se detiveram em uma estalagem de postas. Havia dois quartos livres, pelo qual ela deu graças a Deus. Depois de lavar-se e trocar-se, jantaram sozinhos em um salão reservado. A boa comida, a boa conversação e uma garrafa de bom Bordô relaxou os dois. Quando retiraram os últimos pratos, Michael tirou do bolso um livro pequeno. — Passei pelo Hatchard's e encontrei um guia da região ocidental em que falam da ilha de Skoal. Quer que vejamos o que nos aguarda? — Por favor, minha ignorância é quase absoluta. Ele passou as páginas até encontrar o que procurava. — A ilha tem uma extensão aproximada de três por cinco quilômetros e está dividida em dois: Great Skoal e Little Skoal. Estas são quase duas ilhas distintas, e estão conectadas por um recife natural chamado Neck. O autor do guia recomenda encarecidamente não tentar cruzar o Neck de noite, por medo das «impressionantes rochas bicudas que se elevam a mais de sessenta metros sobre o mar». Ela bebeu um pouco de vinho, desfrutando do som de sua voz profunda. — Terei isso presente. — Na ilha vivem ao redor de quinhentas pessoas — continuou ele — há mais gaivotas que as que o autor quer imaginar. As principais ocupações são a pesca e a agricultura. A ilha está habitada desde «tempos imemoriais», e é digna de nota pela «mescla de costumes celtas, anglosaxões, vikings e normandas». Também é um dos poucos feudos que restam na Europa ocidental. Ela apoiou o queixo na mão e admirou as espetaculares sombras que formava a luz do abajur no rosto de Michael. — O que significa isso na prática? — perguntou. — Espero que você goste de bolo de pomba. O lorde é o único que tem direito a ter um pombal. — E nisso consiste o privilégio feudal? — riu ela. — Que desilusão. Ele consultou o guia. — Bom, o lorde rende homenagem feudal ao rei da Inglaterra, o que é bem raro nestes aborrecidos tempos modernos. — Passou a vista pelas páginas seguintes. — Sem dúvida há mais, 106


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mas o autor preferiu entusiasmar-se pelos espetaculares escarpados e cavernas marinhas. Deixarei os detalhes para que os leia você mesma. — Obrigado. Seus dedos se roçaram quando lhe passou o livro. O contato lhe fez formigar a pele. A intimidade dessa refeição era exatamente o que tinha temido quando decidiu lhe pedir ajuda. Muita proximidade, muito desejo. Bebeu de um gole o que restava do vinho e se levantou da mesa. — Agora vou me deitar. Foi um longo dia. Ele também terminou sua taça. — Amanhã será mais longo ainda. Quando subiam a escada lhe segurou o braço de um modo tranqüilo, de marido. Mas se estivessem realmente casados ela estaria acostumada a sua tranqüila cortesia e intensa masculinidade; não sentiria essa vertigem que mais correspondia a uma garota de dezesseis anos que a uma viúva de vinte e oito. Chegaram ao quarto dela e Michael girou a chave e abriu a porta. Quando se fez a um lado para que pudesse entrar, ela o olhou aos olhos e se deu conta de que não deveria ter bebido uma segunda taça de vinho; não é que estivesse bêbada, simplesmente estava relaxada. Seria tão simples, e amistoso, elevar a face para um beijo de boa noite. E, ah, que agradável seria estar rodeada por seus braços. Tristemente reconheceu que o desejo percorria seu corpo como um xarope quente e doce; o desejo, seu traiçoeiro inimigo. Tragou saliva. — Por certo, esquecia de dizer que Elspeth McLeod e Will Ferris se casaram. Estão vivendo em Lincoinshire e esperam seu primeiro filho. — Me alegro. Pareciam feitos um para o outro. — Michael sorriu. — Elspeth era quase tão intrépida como você. O calor de sua admiração quase lhe destruiu a pouca sensatez que restava. — boa noite, Michael — se apressou a dizer. Tocou-lhe os lábios com um dedo admoestador. — Não me chame por meu verdadeiro nome —disse em voz baixa. —Sei que será difícil, mas tem que pensar em mim como se fosse Colin. — Creio que me será mais fácil o chamar por alguma palavra carinhosa— Além disso, essa palavra expressaria sem risco suas ânsias secreta. — Que durma bem, carinho. Colocou-lhe na mão a chave do quarto. Esta vez o contato não lhe fez formigar a pele, a fez arder. Ela fechou a porta, jogou chave e se jogou sobre a cama. Com a língua se tocou os lábios no lugar onde seu dedo lhe tinha roçado como uma pluma. Embora pudesse ocultar seu amor, era muito mais difícil evitar suas reações sensuais. Empunhou as mãos e pensou em todos os motivos pelos quais devia resistir ao desejo: Porque Michael acreditava que era uma honorável mulher casada; pela linda jovem que o acompanhava aquele dia no parque e que o fez rir; acima de tudo, porque ela não seria capaz de suportar as inevitáveis conseqüências da paixão. Muitos bons motivos. Por que então não esfriava a quentura de seu sangue enquanto se agitava e dava voltas na cama durante toda a noite? O pequeno porto de Penward era a porta de entrada de Skoal. O carro se dirigiu diretamente ao cais, onde estavam atracados vários barcos de pesca. Chegados ali, Catherine desceu, dolorida, mas feliz de acabar com as sacudidas de dois longos dias de viagem a toda velocidade. Juntos se aproximaram da única pessoa à vista, um homem de figura corpulenta e robusta que estava sentado sobre um muro de pedra, contemplando o mar e fumando em um cachimbo de 107


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argila. — Perdoe — disse Michael. — Queremos ir à ilha de Skoal. Conhece alguém que possa nos levar até ali? O homem se voltou, olhou Michael, depois a Catherine. — Você deve ser a neta do lorde. — Como sabe? — exclamou ela surpreendida. — Olhos ilhéus — explicou ele sucintamente. — Chegou notícia de Londres esta manhã de que estariam aqui logo. O lorde me enviou a lhe esperar. Foi rápida a viagem. — ficou de pé. — Sou George Fitzwilliam. Levarei-os a ilha. Catherine e Michael se olharam. O advogado não tinha perdido tempo em notificar ao lorde. A partir desse momento estariam sob constante observação. A bagagem se transladou ao barco de Fitzwilliam, e despediram o carro. Começou a viagem pelas agitadas águas. Ao pouco momento de ter perdido de vista a terra firme, o capitão assinalou para sudoeste. — Skoal— disse. Catherine contemplou atentamente a forma escura e dentada que apareceu no horizonte. O sol estava baixo, o que fazia difícil ver detalhes. Pouco a pouco a ilha se foi definindo em escarpados e colinas. Os pássaros marinhos faziam amplos círculos no céu espaçoso, batendo lentamente as asas e emitindo gritos lastimosos. De quando em quando um se jogava a picar, afundando-se no mar como uma flecha, atrás de sua presa. Costearam uma parte da ilha, o suficientemente perto da costa para ver as ondas que rompiam na base dos escarpados. O livro guia tinha razão sobre a paisagem espetacular, mas a primeira impressão de Skoal era imponente. Para Catherine foi difícil pensar que esse lugar remoto pudesse converter-se em seu lar. Michael a rodeou com o braço; ela não soube se essa reação se devia à temperatura ou porque a viu nervosa. Em todo caso, agradeceu. Entre os escarpados apareceu uma brecha e para ali se dirigiu o barco. Catherine reteve o fôlego quando passaram entre uns dentados pilares de rocha. De noite ou durante uma tormenta, esse passo devia ser muito perigoso. Mais à frente se abria uma pequena baía com três cais e vários barcos amarrados. Quando foram chegando a um dos cais, por trás de dois abrigos apareceu estalando uma estranha carruagem baixa puxada por uma equipe de pôneis. Ao chegar à margem se deteve. Abriu-se a porta e desceu um homem alto e magro, de rosto curtido. O homem caminhou sem pressa até o cais onde Fitzwilliam estava amarrando seu barco. Michael passou ao cais de um salto; voltou-se e agarrou a mão de Catherine para ajudá-la a sair do barco que meneava. Soltando-lhe a mão a contra gosto, ela se voltou para o recémchegado. Este teria uns trinta e cinco anos e vestia roupa informal; tinha mais aspecto de empregado que de cavalheiro, mas dele emanava um ar de autoridade. — Senhora Melbourne, supondo-disse, com uma inclinação da cabeça. Catherine abriu a boca para responder, mas ficou calada, surpreendida por seus olhos verdes azulados claros. Eram da viva cor que só tinha visto em seus pais e sua filha. Esticou a mão. — Sim. Ver seus olhos me fez compreender por que me identificaram com tanta facilidade o advogado de Londres e o capitão Fitzwilliam. Estreitou-lhe a mão sorrindo. . — Já se acostumará. Aqui a metade das pessoas tem os olhos ilhéus. Sou Davin Penrose, governador de Skoal. Levarei-os a casa do lorde. Pronunciava as palavras com uma espécie de vibração, um sotaque distinto de todos que Catherine tinha ouvido. 108


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— Penrose — disse ela com interesse. — Somos aparentados? — Quase todos somos aparentados em Skoal; só há cinco sobrenomes de uso comum: Penrose, Fitzwilliam, Tregaron, Do Salle e Olson. Sobrenomes tão diversos como o patrimônio da ilha, observou ela. Agarrou Michael pelo cotovelo para que se aproximasse. — Senhor Penrose, apresento meu marido, capitão Melbourne. Era a primeira vez que apresentava Michael com o nome de Colin. Sentiu uma sensação muito estranha. — Um prazer, senhor Penrose — saudou Michael imperturbável. — O que significa ser governador? — Esse é o nome que se dá em Skoal ao administrador do lorde, embora também tenha outras obrigações. Davin lhe apertou a mão e logo deu as ordens para que carregassem a bagagem. Em poucos minutos foram estalando para os elevados escarpados que rodeavam a baía. — Há um túnel? — perguntou Michael. Davin assentiu. — Mineiros da Cornualha o escavaram através dos escarpados faz cinqüenta anos. Esta é a melhor baía da ilha, mas antes do túnel era inútil. Catherine olhou para fora e viu que o caminho subia abruptamente até desaparecer em um buraco negro no escarpado. A luz diminuiu bruscamente quando entraram no tosco túnel. As varas eram apenas do comprido suficiente para a carruagem. — Os pôneis são fortes para subir por esta inclinação — comentou. — Têm que sê-lo — respondeu o governador. — Os únicos cavalos que há na ilha pertencem ao lorde. Todos outros usam bois e pôneis. Saíram à luz e a partir dali o caminho era plano. As poucas árvores visíveis estavam retorcidas e achaparradas pelo vento, mas ao seu redor havia massas de tojo. As flores amarelas brilhavam douradas a luz do sol poente. Com o passar do caminho em direção ao centro da ilha, passaram perto de casas, pulverizadas aqui e lá, construídas em pedra sem polir e campos de cultivo muito bem cuidados. Depois desceram a um pequeno mas exuberante vale verde, com árvores maiores e jacintos azuis silvestres. Inundou o coração de Catherine; não seria difícil amar um lugar assim. Quando chegaram à residência do lorde o sol já se perdia atrás do horizonte. O enorme edifício estava coroado por ameias; era evidente que tinha sido um castelo, embora depois lhe tenham acrescentado outras construções. Davin desceu primeiro da carruagem e ajudou Catherine a descer. Quando estava esticando as saias, da casa saiu uma mulher de meia idade. — Olá, senhora Melbourne, capitão Melbourne. Sou a senhora Tregaron, governanta. Subirão a bagagem a seu quarto, mas o lorde quer vê-los imediatamente. — Fizemos uma viagem muita longa — disse Michael. — Minha esposa preferiria lavar-se e descansar um pouco antes de conhecer seu avô. A governanta franziu o sobrecenho com expressão preocupada. — O lorde insistiu muito em que se apresentassem imediatamente. — Está bem. — Catherine engoliu a tempo o nome de Michael, que esteve a ponto de dizer. — Sem dúvida tem tanta curiosidade por me conhecer como tenho eu por conhecê-lo. Ele a olhou atentamente o rosto e depois assentiu. — Como queira. Sua preocupação a reconfortou. Agarrou-se em seu braço e seguiram à senhora Tregaron. A casa era um labirinto, com uma confusão de móveis característicos das casas muito antigas. Poltronas Sheraton junto a cofres de carvalho esculpidos estilo jacobino, e tapeçarias puídas junto 109


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a retratos de rígidos isabelinos. Olhou um dos retratos e viu olhos verde mar olhando -a. O caminho fazia voltas e curvas, mas continuava no primeiro andar. Finalmente chegaram diante de uma maciça porta de carvalho. A senhora Tregaron bateu e sem esperar abriu a porta. — Estão aqui, milord. — Faça-os entrar — disse bruscamente uma voz profunda. Catherine ergueu o queixo. Estava a ponto de começar o ato principal da comédia. Capítulo 21 Agradecendo imensamente que Michael estivesse com ela, Catherine entrou no quarto de seu avô. Um par de lamparinas iluminavam os traços severos de um homem reclinado em almofadões em uma enorme cama de quatro postes. Reteve o fôlego, surpreendida pela familiaridade desse rosto longo e enrugado emoldurado por espesso cabelos prateados. Se seu pai tivesse vivido até essa idade, teria se parecido muitíssimo ao lorde. Aparentemente sua aparência era igualmente surpreendente. As mãos venosas do ancião se curvaram, agarradas à colcha, enquanto a olhava fixamente. — É parecida com sua avó. — Lamento não tê-la conhecido, mas me alegra conhecer você. Aproximou-se da cama e lhe pegou a mão. Notou os ossos frágeis sob a magra pele, mas em seus olhos ardia à vontade; seus olhos verde mar, ilhéus. Apertou-lhe a mão e a soltou. — Avô, este é meu marido, Colin Melbourne. Michael fez uma respeitosa inclinação. — É um prazer conhecê-lo, senhor. O ancião fechou os olhos. — Não estou seguro de que o prazer seja mútuo. Pelo que soube, é um pícaro irresponsável. — Há certa verdade nisso — disse mansamente Michael. — Um homem verdadeiramente responsável não teria permitido que sua esposa e sua filha seguissem o exército na Espanha. — Sorriu a Catherine. — Mas desafio a qualquer homem a resistir quando minha esposa toma uma decisão. O carinho que ouviu em sua voz ao dizer «minha esposa» lhe formou um nó na garganta. Ah, se ela fosse diferente... — Onde está minha bisneta? — perguntou o lorde. — Amy está com uns amigos em Londres — respondeu Catherine. Ele fez cara feia e lhes indicou as cadeiras que havia junto à cama. — Deveria havê-la trazido. — A viagem é longa e exaustiva; além disso, não sabia como seria Skoal. — Não tinha por que ser tão exaustivo — rebateu ele em tom mordaz. — Se apressou ao saber que havia uma herança em perspectiva. Seu tom a fez sentir uma ambiciosa caça-fortunas. Bom, pois, era. — Reconheço que a possibilidade é agradável, mas também me interessava o conhecer. Posto que o senhor Harweil disse que estava mal de saúde, pareceu-me melhor vir rápido. Ele a olhou com o cenho franzido em gesto ameaçador. — Não acredita que vou lhe deixar tudo automaticamente simplesmente porque tem um rosto bonito. Seu primo Clive nasceu na ilha e a conhece bem; melhor que você. Catherine supôs que seu avô queria pô-la a prova e a estava atormentando deliberadamente. — A decisão deve ser sua, logicamente. Não se deve tratar superficialmente a responsabilidade de tantas vidas. 110


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— Não se dará. — Olhou Michael. — De você depende muito. Não sei se confiaria a ilha a um soldado. Meu filho William estava louco para entrar no exército. Foi egoísta e desobediente. Incapaz de governar um galinheiro. Catherine fez um gesto de irritação. — Eu gostaria que não falasse assim de meu pai. Ele e minha mãe eram valentes e generosos e foram os melhores pais do mundo. — Falarei deles como me der vontade — disse com dureza o lorde. —Era meu filho, até que se foi com essa desavergonhada filha de granjeiro. Sua mãe pôs-lhe uma armadilha e conseguiu. Arruinou a vida dos dois. — Não posso impedi-lo de falar como quiser sob seu próprio teto — disse Catherine com fria fúria, — mas eu não tenho por que o escutar. Agora entendo por que meu pai se foi daqui e nunca voltou a falar deste lugar. — levantou-se e se dirigiu à porta. — Se sair deste quarto pode se despedir de ser a lady de Skoal — ladrou o ancião. Ela titubeou um instante, recordando sua difícil situação econômica. Depois moveu a cabeça; jamais poderia tratar com seu avô se era tão malévolo com seus pais. — Alguns preços são muito altos. — Olhou Michael. —Vamos, carinho. Supondo que é muito tarde para partir esta noite, assim teremos que procurar um ilhéu que aceite nos hospedar. — Vai deixar que sua mulher despreze uma fortuna, Melbourne? Como diabos conseguiu comandar uma companhia se não é capaz de dominar sua própria esposa? — A decisão é de Catherine — respondeu Michael em tom duro. —Não lhe pedirei que suporte insultos contra seus pais por interesse de uma herança. Não precisamos de seu dinheiro, sou muito capaz de manter a minha família. Antes que pudessem sair o avô soltou uma gargalhada cascateante. — Volta aqui, menina; queria ver o que faria. É uma Penrose, de acordo. Não teria pensado bem de você se tivesse se humilhado por interesse do dinheiro. — Não vai falar mal de meus pais? — perguntou ela, receosa. — Não mais do que se merecem. Não pode negar que sua mãe foi temerária para fugir e seguir o exército, nem que seu pai era teimoso, porque é evidente que você saiu aos dois. Ela esboçou um sorriso e voltou a sentar-se. — Não, não posso negar, embora normalmente me considere bastante razoável. — Enquanto não se trate de defender os seus — disse Michael em voz baixa. — Então é uma leoa. Encontraram-se seus olhos e sustentaram o olhar. A ela acelerou o coração. Ele era um ator excelente; qualquer que os visse pensaria que era um homem que amava profundamente sua mulher. A voz do lorde pôs fim ao momento. — Tem muito o que responder, Melbourne. Doze anos de matrimônio, e só uma filha? Não sabe fazer melhor? Catherine avermelhou de indignação, mas Michael não perdeu a calma. — A guerra não cria as melhores condições para formar uma família. Mas ainda no caso de que nunca tenhamos outro filho, não me sentirei um fracassado. Nenhum homem poderia pedir mais que uma filha com a inteligência e o valor de Amy. Se Catherine já não o tivesse amado, essa afirmação lhe teria conquistado o coração. Mas era melhor mudar de assunto. — Não sei nada da família Penrose. Quer me contar algo a respeito de meus parentes? De repente o avô pareceu cansado. — Sua avó morreu faz dois anos. Era uma garota de Devonshire, filha de lorde Traynor, mas 111


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se adaptou à ilha como se tivesse nascido aqui. Meu filho mais velho, Harald... — interrompeu-se, tragou saliva e o movimento destacou o pomo de Adão em seu magro pescoço. — No outono passado saiu a navegar com sua esposa e seu filho único. Conhecia as correntes e os bancos de areia tão bem como qualquer pescador, mas uma rajada levantou ondas gigantes que estalaram seu navio contra as rochas. Afogaram-se a pouca distância da ilha. Catherine abafou uma exclamação. — Lamento muito. Oxalá tivesse tido a oportunidade de conhecê-los. — por quê? Suas mortes lhe deixaram em boa posição para uma fortuna. — O brilho de lágrimas em seus olhos contradizia sua brutalidade. Não era de estranhar que a saúde de seu avô tivesse declinado, pensou Catherine. Em pouco tempo tinha perdido toda sua família. — Prefiro ter parentes que dinheiro — respondeu docemente. — Então é uma condenada estúpida. — Tenta odiar todas as pessoas, lorde Skoal, ou só os parentes? — perguntou Michael em tom risonho. — Vejo que é tão insolente como irresponsável — disse o ancião com o rosto avermelhado. — Como minha mulher, eu não gosto de ouvir insultar as pessoas que amo — respondeu Michael. — Catherine é a pessoa mais generosa e bondosa que conheci em minha vida. Embora você seja incapaz de amar, ela merece sua cortesia e respeito. — São um casal difícil. — O tom do ancião era duro, mas não parecia aborrecido. Cansada da esgrima verbal, Catherine ficou de pé. — Levamos dois dias viajando. A mim ao menos, um bom descanso faria maravilhas em meu gênio. — ordenei o jantar para as oito e meia. Quero que conheçam as pessoas importantes da ilha, entre elas seu primo Clive. — O lorde esboçou um sorriso inclinado. — Estou seguro de que está desejosa de conhecer a concorrência. — Fará-me muita expectativa. Surpreendeu-a que o ancião tivesse forças para sentar-se a uma mesa. Talvez a perspectiva de ter pessoas novas às quais amedrontar lhe dava vigor. — Até mais tarde, avô. Saíram juntos do quarto. A senhora Tregaron estava esperando-os pacientemente no corredor. — Querem subir agora a seu quarto? Michael olhou Catherine com expressão sombria. — Preferiríamos dois quartos contíguos. Eu tenho um sono inquieto e eu não gosto de perturbar o sono de minha esposa. A senhora Tregaron pôs expressão preocupada novamente. — O lorde é partidário de que marido e mulher durmam juntos. Diz que os quartos separados são antinaturais. Catherine compartilhava os sentimentos de Michael mas não se atreveu a protestar muito. Se tivessem feito juntos as campanhas na Península, estariam acostumados a espaços estreitos. Dirigiu um sorriso tranqüilizador a seu suposto marido. — Dormirei muito bem, carinho. Não me incomoda que me perturbem o sono, se for você. Aliviada, a senhora Tregaron os guiou pelo corredor e logo por uma escada de caracol. Chegados a um patamar, disse-lhes por cima do ombro: — O quarto está no andar de cima, mas se continuar nesta escada até em cima, chega-se às ameias. A vista é muito bonita. Seguiram-na por outro corredor até que abriu a porta de um quarto grande com as paredes 112


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revestidas de madeira de castanho e maciços móveis jacobinos. — A bagagem já está aqui. Posto que não trouxeram criados, atribuirei-lhe uma criada a você, senhora Melbourne. É o costume da casa reunir-se no salão menor antes do jantar. Enviarei alguém que lhes mostre o caminho antes das oito e meia. Posso oferece algo mais? — Um banho seria delicioso. — Enviarei água quente em seguida. — Queria a chave do quarto — disse Michael. Dirigiu um tenro olhar a Catherine. — Não gosto que interrompam intempestivamente nossa intimidade. — Não usamos muito as chaves na ilha — respondeu a governanta com expressão complacentemente escandalizada, — mas tentarei encontrar uma. Tão logo partiu a senhora Tregaron, Catherine se jogou em uma poltrona. — Certamente meu avô é partidário de não dar um momento de descanso antes de uma reunião importante. O que pensa dele? - Michael deu de ombros. — É um tirano, parcialmente redimido por ocasionais brilhos de humor e eqüidade. — encaminhou-se à janela, seu corpo tenso e potente. — Me lembra o duque de Ashburton, embora me parece não ser tão frio. — Creio que sob essa língua mordaz, sente-se sozinho. — Não me estranha, já que provavelmente intimidou ou ganhou a antipatia de toda s as pessoas que conhece. O poder faz aflorar o pior em muitos homens — acrescentou secamente. — Se seu herdeiro não tivesse morrido, não a teria chamado aqui. Teria ido à tumba afastado de sua única neta. — Talvez, mas de qualquer forma me dá pena. — tirou os grampos do cabelo e esfregou as cansadas têmporas. — Deve ser terrível estar tão fraco depois de toda uma vida de força e poder. — É mais generosa com ele do que merece. — Sorriu afetuoso. — Continua sendo Santa Catherine. Ela desceu os olhos e seu alívio deu passo à inquietação. Como demônios iam compartilhar quarto e cama? Pois, enfrentando a situação nesse mesmo momento. — É estranho — disse sinceramente. — Me criei com o exército; estive rodeada de homens toda minha vida e casada doze anos. E entretanto me sinto terrivelmente constrangida. Michael esboçou um sorriso. — Não se pode dizer que estas sejam circunstâncias normais; seria estranho que não nos sentíssemos constrangidos. Eu dormirei no chão. A chave na porta vai impedir que alguma criada descubra nosso condenado segredo. Arrumaremo-nos. — Não quero que fique incômodo. — Catherine olhou com inquietação a enorme cama com dossel. — A cama é suficientemente grande para duas pessoas, não é? — Sentiria-me muito mais incômodo na cama. — Olhou-a e desviou a vista. — Minhas intenções são honoráveis, Catherine, mas sou só um ser humano. Ela estremeceu. Não queria que ele a desejasse; a situação já era muito complicada. — O chão então — respondeu. Tentando pôr mais distancia entre eles, continuou— : Por certo, tenho curiosidade. Segundo Anne Mowbry, as notas da sociedade no jornal insinuavam que estava em Londres em busca de esposa. Teve sorte? Ocorreu-lhe falar da jovem com que o tinha visto no parque, mas ele era muito cavalheiro para falar de uma dama na suas costas. — Surpreende-me que Anne leia esses lixos — disse ele tranqüilamente. Ela sorriu e lhe devolveu as palavras. — É só um ser humano, e eu também. Às mulheres sempre se interessam pelas núpcias. Mas 113


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a você deve chatear que pessoas desconhecidas façam especulações sobre seus assuntos particulares. — Certamente. — Passeou a vista pelo aposento. — Pelo menos essa banheira do canto está rodeada por uma cortina. Isso nos oferecerá certa intimidade para nos banhar e nos vestir. E isto não durará muito tempo. Se nós dois continuarmos dando livremente nossas opiniões, o lorde vai nos expulsar dentro de um ou dois dias. — Isso simplificaria as coisas — riu ela, — mas não creio que ocorra. Parece-me que gosta que o desafiem. — claro que sim. — Michael a olhou francamente. — Embora seu avô seja frágil, não parece estar às portas da morte, como insinuou o advogado. Não nos será possível continuar indefinidamente com esta comédia. Se herdar e quiser trazer Colin aqui, terá que inventar umas boas mentiras. Não tanto como ele acreditava, pensou ela. Simplesmente diria a verdade, que Colín tinha morrido de forma repentina. Mas era certo que os riscos do engano se viam mais ameaçadores agora que já estava na ilha. — Pode ser que isso não aconteça. Aparentemente meu avô prefere meu primo. Tenho curiosidade por saber como é o misterioso Clive. O senhor Harwell não disse nada crítico, mas tive a impressão de que Clive não o entusiasma muito. Uma batida na porta anunciou duas criadas com grandes terrinas de água fumegante. Michael as fez passar. — Creio que vou subir às ameias e tomar um pouco de ar fresco. Voltarei dentro de meia hora mais ou menos. Isso me dará tempo para me banhar antes do jantar. Catherine assentiu, ocultando seu alívio. A idéia de estar nua n o mesmo quarto com Michael lhe produzia sufoco e confusão, mesmo que estivesse segura atrás das cortinas. Segura? Não haveria segurança enquanto não tivesse acabado a comédia. A senhora Tregaron tinha razão em relação à vista das ameias, inclusive a noite. Viam-se algumas luzes, a maioria agrupadas no povoado próximo. Dado que o castelo estava situado no lugar mais alto da ilha, Michael podia ver até além dos campos em sombra, até a extensão infinita do mar beijado pela lua. Na distância se ouvia o murmúrio do irregular tamborilar líquido das ondas. Não haveria nenhum lugar na ilha onde não se ouvisse o som do oceano. O ar estava maravilhosamente fresco nas ameias, e lhe afrouxou a tensão. Suspirou e apoiou as mãos no muro de pedra. Um quarto compartilhado; fabuloso, a única coisa que faltava. Embora Catherine pensasse que seu avô se inclinava por escolher seu primo como herdeiro, ele não estava de acordo. Nenhum homem estava feito a prova de seu encanto e inteligência, e era evidente que o lorde já começava a abrandar-se. Ela receberia sua herança, sempre que seu suposto marido não se inimizasse com seu avô. Não deveria ter enfrentado o ancião. De qualquer modo, não tinha causado nenhum dano. Aparentemente o lorde gostava de ver um pouco de energia nos que o rodeavam, embora uma verdadeira oposição provavelmente o enfureceria. Ficou olhando fixamente o longínquo mar tentando não pensar em Catherine banhando-se sentada na banheira; o sabão deslizando por sua pele suave e branca; a água quente descendo por entre seus seios cheios. Esticou-lhe o corpo de excitação, ao imaginar-lhe com todo luxo de detalhes. Deus santo, fazia muitíssimo tempo que não se deitava com uma mulher. Entretanto, em certo sentido não importava quanto tempo havia passado. Embora houvesse passado a primavera deitando-se com todas as cortesãs de Londres continuaria desejando Catherine com dolorosa intensidade. Quando transcorreu meia hora, desceu ao quarto. Encontrou Catherine acomodada em seu lado da cama, profundamente adormecida. Banhou-se e colocou um vestido azul de noite, embora 114


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os cabelos lhe caíam sem pentear sobre os ombros. Parecia esgotada. Deixaria-a descansar quanto fosse possível.

Na banheira o esperava água quente nova. Rapidamente se banhou e colocou um traje de noite. Depois foi despertar Catherine. Antes de despertá-la contemplou atentamente seu rosto adormecido. Nada podia fazer mais deliciosa sua estrutura óssea, mas tinha sombras escuras sob os olhos. Tinha que estar cansada de carregar com a responsabilidade de sua família. Colin não lhe seria de muita ajuda. Seu olhar continuou pelo resto do corpo. O vestido de noite era modesto, mas não co nseguia ocultar a exuberância de sua figura. O suave subir e descer de seus seios o excitava, e a sedutora curva da orelha, visível sob a seda escura de seus cabelos... Fez uma lenta inspiração. — Catherine, é hora de levantar-se. Ela suspirou e ficou de costas, mas não despertou. — Catherine — repetiu em voz mais alta, lhe tocando brandamente o ombro, — logo vão servir o jantar. — Mmm. Sem abrir os olhos, Catherine sorriu e girou a cabeça para sua mão; roçou-lhe os dedos com a boca; seus lábios estavam mornos e eram maravilhosamente suaves. O desejo estalou, quente, vermelho, cegador. Tirou a mão do ombro como se tivesse queimou. «Maldito seja, não esqueça que é uma mulher casada!» — Catherine, acordada! — disse bruscamente. — Já é quase a hora do jantar. As escuras pestanas se abriram. Ficou olhando-o surpreendida, e com algo que era quase medo no fundo de seus olhos. Caso que estivesse desorientada, lhe disse: — Estamos em Skoal e a ponto de ir jantar com seu inquietante avô. Ela despertou e se levantou ajudando-se com uma mão. — Só quis deitar um momento, mas dormi como uma vela na água. — foi um dia muito comprido. Por desgraça ainda não acabou. — Meu avô deve acreditar que nos pôr a prova quando estamos esgotados vai revelar nossas verdadeiras naturezas. Talvez tenha razão. Desceu da cama e foi em busca de sua escova. Com umas poucas escovadas rápidas desembaraçou a massa de sedosos cabelos escuros e os dobrou em um nó sobre a nuca. A simplicidade só fez ressaltar o gracioso contorno de seu esbelto pescoço. Soou uma batida na porta. — Senhor, senhora — disse uma voz tímida, — vim guiá-los até o salão. — Preparada para o ato seguinte? — perguntou Michael em voz baixa. — Tão preparada como sempre — respondeu ela erguendo o queixo. Ele abriu a porta e a fez sair. Compartilhar a intimidade de um casal casado com Catherine lhe estava sendo mais difícil do que tinha esperado. Catherine se agarrou no braço de Michael e seguiram à criada pela labiríntica casa, mas ela manteve os olhos baixos. Ainda estava nervosa do momento em que despertou e viu o rosto dele acima do dela. Esteve perdida em um sonho maravilhoso em que ela era normal, Michael era seu marido e estavam esperando com ilusão o nascimento de seu primeiro filho. Durante um momento, o sonho a tinha levado a realidade, para logo desvanecer-se, deixando só um 115


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angustiante pesar. O salão estava no setor mais novo da casa. Quando entraram, cinco pares de olhos os olharam. O lorde estava em uma cadeira de rodas com as pernas envoltas em uma manta. Estava também Davin Penrose acompanhado por uma bonita loira que devia ser sua mulher, e outro casal mais velho. O lorde aceitou a saudação com uma inclinação de cabeça. — Já conhece governador. Esta é sua esposa Glynis, e o reverendo e a senhora Mathews. — Soltou uma risada áspera. — Certamente a sociedade de Skoal não é rutilante. — Que sorte. Tenho descoberto que o rutilante não usa muito bom senso nem bom coração — disse Catherine, dirigindo um amistoso sorriso aos convidados de seu avô, que a contemplavam com certo receio. Decidida a começar com o pé direito com pessoas que logo poderiam ser seus inquilinos e vizinhos, aceitou a taça de xerez e se dispôs a fazer todos se sentirem cômodos. A conversação discorreu com facilidade, mas ela se perguntava onde poderia estar Clive. As taças já estavam vazias quando voltou a abrir-se a porta. — Por favor, perdoe meu atraso, tio Torquil — disse uma conhecida voz de tenor. — Qual é a surpresa que me prometeu? Os cabelos da nuca de Catherine tinham se arrepiado ao ouvir a voz. Não, não podia ser, era impossível que fosse... — Já era hora, Clive — disse o lorde com brilho de malicioso humor nos olhos. — Venha conhecer minha neta Catherine e seu marido capitão Melbourne. Catherine se preparou para o pior e se voltou para o recém-chegado. Não tinha confundido a voz, não. Lorde Haldoran, o inescrutável cavalheiro de expressão lânguida que tinha paquerado com ela durante a ocupada primavera em Bruxelas, era seu primo. Capítulo 22 Enquanto Haldoran atravessava a sala, Catherine pensou freneticamente. Tinha conhecido Michael, que a acompanhava com tanta freqüência na Bélgica? Ou Colín? Não conseguiu recordar. Mas se os tinha conhecido, o ardil sairia a luz ali mesmo, e já conhecia o suficiente de seu avô para saber que não se divertiria. Acreditou que lhe parava o coração quando viu uma estranha expressão, surpresa?, nos olhos de Haldoran ao olhar Michael. A expressão desapareceu com tanta rapidez igual a tinha imaginado. — Que prazer voltar a vê-la, senhora Melbourne-saudou ele afavelmente. — Fez-lhe uma inclinação de cabeça e logo ofereceu a mão a Michael. — Creio que o vi com sua esposa em várias dessas festas em Bruxelas, mas nunca nos apresentaram. Sou Haldoran. Catherine fez o possível por ocultar seu alívio quando os dois homens estreitaram as mãos. Era irônico que a amabilidade de Michael ao acompanhá-la reforçasse agora a comédia. — Já se conheciam? — perguntou o lorde carrancudo. — Conhecemo-nos na Bélgica, na primavera passada — respondeu ela. —Quando parecia que Bruxelas ia ser invadida pelo franceses, lorde Haldoran teve a amabilidade de levar a Amberes minha filha e à família que compartilhava nosso alojamento. — Me alegro que você não tenha se acovardado e fugido — disse o avô em tom aprovador. — Ser mulher não é desculpa para a covardia. — Ao contrario — disse Haldoran com um que zombador. — Sua neta era famosa em todo o exército por sua valentia. Ganhou o apelido de Santa Catherine por seu trabalho ao cuidar dos 116


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feridos. — Isso já sabia. Fez-me pensar que poderia ser o suficientemente forte para governar Skoal, embora fosse mulher. Catherine se chateou que falassem dela como se não estivesse presente. Felizmente Michael desviou a atenção de seu avô dizendo: — Pelo que tenho lido, os ilhéus remontam sua linhagem aos vikings celtas, cujas mulheres eram famosas por sua valentia e independência. Com esse sangue em suas veias, não é de estranhar que Catherine se atrevesse a andar pelos campos de batalha. — Interessa-te a história? Sem esperar resposta, o lorde começou a expor suas opiniões sobre a antiga Bretanha, enquanto Michael escutava com aparente interesse. Catherine dirigiu a Haldoran um olhar surpreso. — Ainda não me recuperei da surpresa ao encontrá-lo aqui. A primavera passada sabia que éramos primos? — Sabia que tinha de ser de ascendência skoalana, talvez filha de Williams, mas não estava seguro assim preferi não dizer nada. — Aceitou uma taça de xerez. — Entretanto, quando retornei a Londres visitei Edmund Harwell e lhe disse que tinha conhecido uma encantadora esposa de oficial com olhos ilhéus. Ele me confirmou sua identidade. Ela recordou quão desconcertado o tinha visto quando se conheceram. Olhos ilhéus novamente. Tinha oculto o parentesco por discrição ou porque não queria alertar a uma possível rival por Skoal? Intensificou-se a inquietação que sempre havia sentido quando estava com ele. Sob essa capa de amabilidade percebia uma espécie de desdém, como fosse superior aos simples mortais que o rodeavam. Entrou um lacaio a anunciar o jantar. Davin Penrose se colocou discretamente atrás da cadeira de rodas e levou o lorde até a sala de jantar. Como mordomo, devia trabalhar constantemente com seu avô, o que requereria tato e competência. Quanto mais o via, melhor lhe caía. Também lhe caía bem sua esposa loira, Glynis, cujo gracioso senso de humor a recordava de Anne Mowbry. — Catherine, sente-se no outro extremo da mesa — ordenou seu avô. — Melbourne, você senta a meu lado. Obedeceu em silêncio, compreendendo que lhe dava o papel de anfitriã. Haldoran se sentou a sua direita. Dirigiu-lhe um rápido olhar, perguntando-se se o incomodaria o sinal de preferência de seu avô. Não conseguiu ver além de sua educada superfície. Quando serviram o primeiro prato, disse-lhe em voz baixa: — Aparentemente meu avô deseja nos pôr como adversários. Sinto muito. — Bom — respondeu ele arqueando as sobrancelhas, — estamos em competição não é? Só um de nós pode herdar Skoal. Ela o olhou francamente. — Até três dias quase não tinha ouvido falar deste lugar. Deve lhe parecer injusto que eu tenha aparecido como saída de um nada com uma pretensão sobre algo que você deve ter acreditado que seria seu. — Minhas expectativas não são antigas — repôs ele dando de ombros. — Até o ano passado supunha que Harald a herdaria. Devo admitir que me atrai o capricho feudal de ser lorde de Skoal, mas isso contrasta com a pesada responsabilidade que vem com o título. Além disso, a ilha é inútil para caça séria. Não me incomodará que tio Torquil prefira a você. Era uma renúncia convincente. Catherine desejou acreditar. Tomou uma colherada de sopa de lagosta. 117


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— Como estamos aparentados exatamente? — Meu avô era o irmão mais novo de seu bisavô — explicou ele. — A ilha oferece poucas oportunidades para os filhos mais novos, de modo que meu avô embarcou em uma profissão muito lucrativa como corsário. Durante seus anos ativos usou Skoal como base de operações e depois se retirou a uma propriedade em Hampshire e ali se fez tão respeitável que o fizeram barão. Mas sempre conservou sua casa na ilha. Eu nasci aqui e venho com regularidade. — Ou seja, que também é um Penrose e conhece bem a ilha — disse ela. Acabou a sopa e se sentiu reanimada. Dirigiu-lhe outro sorriso amplo e indecifrável. — Posto que somos primos, deve chamar-me pelo meu nome. Ela assentiu vagamente, embora não desejava ter uma relação muito íntima com seu recém descoberto primo. O reverendo Mathews, que estava sentado do seu outro lado, perguntou-lhe se tinha conhecido o duque de Wellington. Todos estavam interessados no herói da Europa, assim que o duque ofereceu um tema neutro, sem riscos, de conversação geral. Catherine estava saboreando um filé de linguado ao vapor quando Haldoran interveio com voz arrastada: — Falando de duques, Melbourne, tenho entendido que lorde Michael Kenyon, o irmão mais novo do novo duque de Ashburton, estava hospedado com vocês em Bruxelas. Conheço um pouco o duque. Como é lorde Michael? Catherine se engasgou com o pescado. Era impossível que a pergunta fosse inocente. Talvez Haldoran estivesse jogando com ela, esperando o melhor momento para revelar seu ardil. Olhou indecisa seu companheiro de delito. Michael partiu uma parte de pão tranqüilamente. — Kenyon era um tipo bastante discreto. Estava muito ocupado com o comando de um novo batalhão de modo que não o víamos muito. — Discreto? — exclamou Haldoran. — Pelo que disse seu irmão eu tinha feito a idéia de que lorde Michael era um libertino, a desonra de sua família. Os dedos do Michael se esticaram ao redor de sua taça de vinho, mas respondeu com voz serena: — É possível; na verdade não saberia dizer. — Sorriu ao pároco. — Afinal, as opções tradicionais para os filhos mais novos são a igreja ou o exército. Supondo que os Santos se decidam pela igreja. — Inclusive entre os homens de batina há escassez de Santos — riu Mathews. A Catherine disse— : vai visitar a igreja da ilha, Todos os Santos? A cripta é do século dezessete, quando os missionários irlandeses construíram o primeiro lugar de culto. O pároco quereria estar em boa relação com ela, já que sua colocação estava a mercê do lorde. A perspectiva de ter esse poder sobre o meio de ganhar a vida de um homem a inquietou. Felizmente, o reverendo Mathews lhe parecia amável e consciencioso. Catherine tratou de ganhar sua aprovação com um sorriso. — eu adoraria visitar a igreja. — Precisa ver toda a ilha — disse o lorde assentindo energicamente. — Amanhã Davin l levará você e seu marido para fazer um percurso. Quanto mais cedo começar a conhecer este lugar, melhor. Com a extremidade do olho Catherine viu que Haldoran apertava os lábios. Ocorreu-lhe que talvez seu avô a tratava como a provável herdeira com o fim de provocar Clive. Acreditava o perverso ancião capaz disso. Era muito cedo para supor que seria ela a escolhida, e imaginava que 118


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manifestar satisfação seria fatal. Depois que ela e o governador acordaram uma hora para a manhã seguinte, Haldoran lhe disse: — Quando tiverem acabado o percurso, passem em Ragnarok para tomar o chá. A paisagem é espetacular. — Ragnarok? — exclamou ela sobressaltada. — Não é essa a versão nórdica do Apocalipse? — Exatamente, o ocaso dos deuses — respondeu ele com tranqüilo humor. — Um nome melodramático para uma casa, mas meu avô desejava honrar o passado viking da ilha. — O chá deveria suavizar o melodrama. Iremos vê-lo amanhã. — levantou-se. — Posto que a comida terminou e estou no extremo da mesa, supondo que é meu dever dar o sinal para que as senhoras se retirem e os senhores possam beber seu porto. Ai de mim, não tenho idéia em que direção me retirar. Todos riram, e Glynis Penrose e Alice Mathews se levantaram e a conduziram ao salão. Foi um alívio estar com as mulheres, que eram agradáveis e práticas. Enquanto tomavam assento, Glynis lhe disse com sinceridade. — Alegra-me conhecê-la, senhora Melbourne. Desde que seu avô revelou sua existência se fez todo tipo de especulações na ilha. Temia-se que fosse uma grandiosa dama da sociedade que desprezaria gente como nós. — Sou simplesmente a esposa de um oficial do exército — disse Catherine sentando-se. — Não há nada grandioso em mim. Mas tenho a impressão de que desde que chegamos a Penward e conhecemos George Fitzwilliam, todos sabem mais de meus assuntos que eu mesma. — É como em todas as comunidades pequenas — explicou agradavelmente Alice Mathews. — Mas os skoalanos têm bom coração. Com seus antecedentes ilhéus, muito em breve será aceita. Catherine pensou que esse era um bom momento para fazer perguntas. — Não sei nada da família de minha mãe. Tenho tias ou tios ou outros parentes próximos? Glynis e Alice se olharam, como perguntando-se se revelavam ou não algum segredo. — Sua mãe era uma Do Salle — disse Glynis. — Era filha única, assim não tem primos de primeiro grau, mas eu era uma Do Salle também, assim que você e eu somos primas de segundo grau, creio. — Que maravilhoso. Creio que vou gostar de ter parentes. — inclinou-se para ela. — Conheceu minha mãe? — Sim, embora eu fosse muito pequena para lembrar bem. Era a garota mais linda, mas claro, isso você já sabe — Glynis sorriu irônica. — Teimosa também. Para todos os que a viam com o Will estava claro que foram feitos um para o outro, mas nem seus pais nem os dele quiseram acreditar. Era muita a diferença de posição, ele filho do lorde e ela a filha de um granjeiro, que nem sequer era membro da câmara de vereadores. — O que é a câmara de vereadores? Surpreendida por sua ignorância, Alice lhe explicou: — O primeiro foro normando dizia que o lorde devia ser capaz de reunir quarenta homens armados para combater por seu superior, o duque da Cornualha. O primeiro lorde atribuiu uma parte de terreno a cada um de seus homens armados. O terreno e o direito a sentar -se na câmara de vereadores da ilha passa ao filho mais velho. — Compreendo. Davin é membro da câmara de vereadores? Glynis olhou Alice novamente. — Não, mas como era um menino preparado o enviaram a terra firme a estudar agricultura. Catherine desejou saber o que lhe ocultavam. Antes que pudesse seguir perguntando, chegaram o pároco e Davin a reunir-se com elas. 119


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— O lorde desejava falar em particular com seu marido. — Um brilho de humor brilhou nos olhos de Davin. — Creio que não vai ser fatal. Pobre Michael; estava pagando caro os cuidados recebidos em Bruxelas. Quando, meia hora depois, os dois homens entraram a reunir-se com eles no salão, não lhe surpreendeu que parecessem cansados. Michael se aproximou. — Gosta de sair ao balcão e tomar ar fresco? — Isso me virá muito bem. Saíram. Depois de fechar as portas janelas, Michael lhe passou o braço pelos ombros. — Todo mundo pode nos ver, por isso poderíamos montar um pequeno espetáculo de afeto conjugal —disse em voz baixa. Ela sorriu, feliz de ter um pretexto para lhe rodear a cintura com o braço. — Meu avô o esteve interrogando? — Era mais fácil ser um prisioneiro francês — disse ele revirando os olhos. — Pelo visto o lorde se inteirou de todas as loucuras que Colin fez em sua vida. Depois de me jogar isso tudo na cara, declarou que eu não era suficientemente digno de sua neta. Logicamente imediatamente eu disse que tinha razão. — Que horror! — exclamou ela, meio divertida, meio consternada. — E isso o apaziguou? — Ao final, sim. Depois que eu resmunguei entre dentes um montão de sandices sobre como os horrores da guerra podem induzir um homem a cometer imprudências, mas que a paz e minha afortunada sobrevivência me têm feito reavaliar minha vida e prometi me reparar — Franziu o cenho. — Me desgosta enganá-lo. Embora seja difícil, sua preocupação por seus súditos é muito real. — Lamento o haver colocado nesta situação — disse ela, mordendo o lábio. — Tinha razão quando disse que haveria toda classe de conseqüências inesperadas. O aumentou a pressão do braço sobre seus ombros. — Neste caso, creio que o fim justifica os meios. Será uma admirável lady de Skoal. Mas primeiro devemos convencer seu avô de que somos confiáveis e estamos muito casados. Tem a antiquada crença deque uma mulher deve ter um marido. — Então é o momento para mais afeto conjugal — disse ela, e ficando nas pontas dos pés lhe tocou os lábios com os seus. Fez como um gesto de gratidão e afeto, por isso não estava preparada para a intensidade da resposta. Ele abafou um som e sua boca esmagou sua boca. Ela abriu os lábios diante da força do beijo; um poder feroz, apaixonado, avassalador. Sentiu-se desfalecida, seu corpo fundido com o dele e, entretanto ao mesmo tempo abrasadoramente viva, desaparecendo o cansaço. Nunca soube, jamais tinha sonhado, que um beijo pudesse ser assim. Suas mãos se abriam e fechavam sobre as costelas dele como por vontade própria. Isso era o que tinha desejado no momento em que o conheceu. Essa escura força masculina que lhe dissolvia os temores, essa corrente de desejo que lhe enchia o coração e alagava os sentidos. Ele acariciava suas costas, moldando seu corpo com suas mãos e estreitando-a contra ele. De repente notou a pressão do duro membro masculino sobre seu abdômen e isso desfez o feitiço e a voltou para a realidade. Desejou chorar e afastá-lo com um violento empurrão. Mas a culpa era dela, não dele. Colocou-lhe as mãos nos braços e se separou. — Isto terá convencido a todos que estamos casados — disse, tentando dar um tom despreocupado a sua voz. Viu nos olhos dele a comoção do desejo interrompido, o rápido pulso em sua garganta e se desprezou. Não tinha mantido distância e agora ele pagava por sua debilidade. Ele era mais forte que ela, por isso só levou uns instantes ocultar seus sentimentos atrás de 120


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uma máscara de tranqüilo humor. — É possível que tenhamos exagerado. As pessoas que estão muitos anos casados raras vezes se beijam assim no meio de uma reunião social. Isto será mais acreditável. Levantou-lhe o queixo e posou seus lábios sobre os dela um instante. Quando lhe soltou o queixo ela viu que essa carícia não o tinha afetado. Ela teve menos sorte; o rápido roçar bastou para reatar a febre em seu sangue. Desesperada se perguntou por que a vida era tão injusta. Seria muito mais fácil se fosse incapaz de sentir desejo. Michael lhe rodeou a cintura com o braço e a conduziu para as portas. — Creio que cumprimos nosso dever como convidados e que possamos nos retirar honrosamente. Estou tão esgotado que nem sequer vou dar conta de que estou dormindo no chão. Talvez ele não o notasse, mas ela sim, pensou Catherine. Notava todas as suas respirações. Michael passou toda a noite acordado e sentindo-se adúltero. Atormentava-o a expressão que viu no rosto de Catherine depois desse condenado beijo descontrolado. Ela o tinha iniciado, sim, mas com intenções inocentes. Ele foi o que tinha transformado um simples abraço em paixão desatada. Quando ela se afastou, tinha visto em seus olhos uma expressão de desconcerto, quase de medo, e se odiou por lhe haver dado isso. Ela o considerava um amigo e confiava nele em uma situação essencial para seu futuro. Mas por causa desse beijo, essa noite o olhou receosa quando ele fechou a porta do quarto. Estava rígida, como se temesse que ele fosse obrigá-la a aceitar cuidados não desejados, e não lhe falou quando se meteu atrás da cortina para trocar-se. Dali saiu com uma camisola grande e sem forma, bastante opaca. De qualquer forma estava absolutamente desejável quando se meteu sob as mantas. Ele tinha feito todo o possível por agir com naturalidade, como se compartilhar o quarto com ela fosse um assunto absolutamente normal. A maca que fez com mantas a pôs o mais longe possível da cama. Conscienciosamente apagou as velas antes de trocar-se e deitar-se. Seu comportamento deve ter apaziguado a preocupação dela, porque muito em breve sua respiração era suave e regular. Invejou a consciência limpa, conseqüência de ser uma Santa e não um pecador. A prova de sua natureza depravada era que não podia resistir à satisfação de saber que por uns instantes ela respondeu seu beijo com uma intensidade que igualava a sua. Embora fosse uma esposa boa e virtuosa, também sentia a atração sexual entre eles. Seria menos perigoso se não a sentisse. Contemplando a escuridão e escutando o incessante rumor do mar, pensou se seus princípios seriam suficientemente fortes para impedi-lo de fazer o imperdoável. Capítulo 23 — Que maravilha — exclamou Catherine, rindo e jogando a cabeça para trás. Michael assentiu em silêncio, embora seu olhar estivesse em sua figura iluminada pelo sol e não nas ondas que rompiam abaixo, ao pé do escarpado. Era uma figura misteriosa, como o esboço que tinha feito Kenneth da sereia diabolicamente linda que estava em uma praia rochosa cantando uma canção letal para atrair os marinheiros a sua perdição. Se a sereia fosse tão encantada como Catherine, esses marinheiros tinham morrido felizes. Davin Penrose estava acompanhando os visitantes em um percurso por Skoal, lhes explicando as paisagens e apresentando a Catherine e a seu«marido» aos ilhéus. Estes se mostravam reservados com a neta do lorde. Lentamente seus cautelosos olhares foram de Catherine a Davin e a Michael e logo voltavam para Catherine. Teria que demonstra r seu valor para que pudessem aceitá-la totalmente. 121


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Michael supunha que sua beleza era pontos em contrário, porque era difícil acreditar que uma mulher tão linda pudesse também ter uma finalidade séria. Os ilhéus se inteirariam com o tempo. — Embora a ilha seja pequena — continuou explicando Davin, — sua orla são tão quebrada que se diz que a costa tem sessenta quilômetros. — Assinalou o caminho rochoso que descia pela face do escarpado. — Ali abaixo está a cova dos Dinamarqueses. Há uma praia pequena ali. Talvez outro dia possam visitá-la. É um bom lugar para fazer um piquenique. — Se as gaivotas não nos roubarem a comida — comentou Catherine sorrindo. — Jamais tinha visto tantas gaivotas. — No Skoal é ilegal matar uma gaivota — explicou Davin. — Em meio da névoa, seus gritos advertem aos marinheiros o quão perto está a terra. Michael fez uma viseira com a mão e esquadrinhou o mar. — Isso ali é outra ilha ou uma miragem? — Isso é Bone, nossa ilha irmã. É quase tão grande como Skoal. Não tinha ouvido falar dela? — Creio que não — respondeu Catherine. — Que nome tão estranho. — Não é tão estranho — repôs Davin em tom brincalhão. — Skoal significava «crânio» na antiga língua viking. Os guerreiros de Skoal bebiam seu brinde pela vitória no crânio de um inimigo. Posto que os vikings puseram o nome a esta ilha, é lógico que a ilha vizinha se chame Bone. — Havendo recebido permissão de Catherine para fumar quando quisesse, tirou um cachimbo de barro e a encheu com tabaco de sua bolsa. — Bone forma parte da jurisdição de Skoal, de modo que pertence ao lorde. Catherine tratou de distinguir os contornos da ilha em meio as encrespadas ondas. — Vive alguém ali? — É um lugar funesto. — Davin protegeu o cachimbo do vento com a mão e a acendeu. — Há uma enorme colônia de aves marinhas, e também pastam ali ovelhas e gados, mas há pelo menos cem anos, não vive ninguém ali. — por que é considerada funesta? — perguntou Michael. — Os monges irlandeses construíram ali tanto como aqui, mas um dia de Páscoa da Ressurreição foram assassinados por vikings enquanto cantavam a missa. Depois de muito tempo voltou a estabelecer-se gente na ilha. Ao princípio as coisas foram bem; mas depois uma praga matou a todos os homens, mulheres e crianças. Depois ninguém desejou viver ali. — O governador contemplou a ilha pensativo. — Há outros problemas. O terreno é muito rochoso e a terra não é tão fértil como a daqui. Além disso, embora as ilhas estejam a uns poucos quilômetros de distância, o mar é tão bravo e as correntes tão fortes que a tra vessia entre elas é difícil. — É possível visitá-la? — perguntou Catherine, curiosa. — Ah, sim, com um bom barqueiro e um dia de calma. Vamos ali uma ou duas vezes ao ano para tosquiar às ovelhas e matar algumas vacas. É carne dura, mas nos permite cultivar mais terra em Skoal. — Skoal é um reino pequeno, não é? — comentou Catherine. —Quase totalmente autosuficiente, e cada palmo de terreno é conhecido e amado por pessoas cujas raízes se remontam há séculos. Você deve sentir-se orgulhoso de sua parte em fazer que isto seja assim. Davin apertou o cachimbo com os dentes e lhe sobressaiu um músculo na mandíbula. Catherine não o viu porque continuava olhando para Bone, mas Michael sim, e se surpreendeu. O que podia produzir uma reação assim em um homem normalmente tão sereno? O lógico era que se sentisse agradado pelo elogio de uma mulher que poderia converter -se em sua chefa. Depois de um comprido silencio, Davin tirou a pipa da boca e disse em tom indiferente: — Simplesmente faço meu trabalho. Toda a gente aqui colabora a sua maneira. Necessitamos 122


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e temos confiança. Em Skoal não há portas fechadas com chave. Quando voltavam para o lugar onde tinham deixado amarrados os cavalos, atrás de um grupo de árvores retorcidas pelo vento apareceu Glynis acompanhada p or duas crianças pequenas. A esposa do governador também levava um bebê, embalado em uma espécie de tipóia feita com um xale. Enquanto as crianças se aproximavam cercavam a seu pai para saudá-lo, Glynis dirigiu um radiante sorriso aos visitantes. — bom dia aos dois. Estes são nossos filhos, Jack e Ned — Sorriu. — Creio que lhes viram passar para cá e tinham a esperança de conhecê-los. São vocês a notícia mais interessante em Skoal em anos. Jack e Ned saudaram com uma educada inclinação de cabeça quando foram apresentados a Catherine, mas seu verdadeiro interesse estava em Michael. — Esteve em Waterloo, capitão Melbourne? — perguntou Jack, de uns oito anos e de vivos olhos ilhéus. Michael respondeu que sim, e imediatamente foi bombardeado de perguntas. Ned, dois ou três anos mais nova e de olhos azuis como sua mãe, preferia a cavalaria, enquanto que Jack venerava seus heróis, os fuzileiros; era certamente um menino de inteligência destacada. Enquanto Michael respondia a enxurrada de perguntas, Catherine se dirigiu a Glynis. — Como se chama o membro mais novo da família? — Emily — Glynis tirou o bebê da tipóia. — Quer segurá-la? — Ai, sim. — Catherine apanhou à menina com entusiasmo. — Que neném mais bonito. Sou sua prima Catherine. É a neném favorita de mamã e? — Esfregou-lhe o nariz com o seu. — O encanto do papai? Emily gorjeou de prazer e agitou os braços gordinhos. E assim se iniciou entre as duas uma conversação com sons de bebê. Michael formou um nó na garganta ao ver o rosto radiante de Catherine. Era tudo o que imaginava em seu ideal de mulher: a mãe amorosa que merecem todas as crianças e que muito poucas têm; a mulher irresistível que lhe tinha cativado o coração; a enfermeira enérgica e atenta que tinha arriscado sua vida para salvar a dele. A esposa que não era dele. Entretanto, não podia deixar de desejá -la. Em um momento de claridade agridoce caiu na conta de que não lamentava seu desejo, embora este fizesse mais difícil sua missão. Simplesmente estar com ela valia quase qualquer preço. — É um encanto — disse Catherine, devolvendo à pequena a sua mãe. — É curioso — acrescentou, — observei que quase a maioria na ilha ou têm o cabelo escuro como eu, Davin e Jack, ou loiro, como você, Ned e Emily. Aparentemente quase ninguém tem uma cor de cabelo intermediário, castanho. — Olhou Michael sorrindo. — Como você, que não tem nenhuma gota de sangue skoalana. Em realidade ele tinha mais de uma gota de sangue dela, mas supôs que nesse contexto não vinha ao caso. — Tem razão — disse Glynis, pensativa. — Supondo que nossos antepassados foram em sua maioria escandinavos loiros ou celtas de cabelo negro. — Segundo conta uma velha lenda — acrescentou seu marido, — os olhos ilhéus vêm de um selqui, uma criatura mágica que no mar é foca e na terra é homem. — Isso é uma fábula — disse Glynis. — O selqui amava uma garota de cabelo negro e sorriso de anjo. Mas só podia vir à terra quando havia lua cheia, e ela não podia unir-se a ele no mar. Tornaram-se amantes e ela teve um filho dele. Mas estava casada, e quando seu marido viu o mar 123


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nos olhos do bebê, levou seu arco comprido até a Rocha das Focas e matou seu rival. Dizem que o espírito do selqui ainda chama a sua amada quando há lua cheia. — A moral parece ser que os adúlteros têm um final ruim — comentou Michael secamente. Glynis lhe dirigiu um olhar de divertida exasperação. — Os anglo-saxões não têm romance em seus ossos. — Temo que não — respondeu ele. Estava categoricamente contra o adultério. O governador olhou hora em seu relógio de bolso. — Posto que lorde Haldoran os convidou para tomar o chá, deveríamos nos pôr em marcha. — Dirigiu um sorriso íntimo a Glynis. —Estarei em casa para jantar. Montaram seus cavalos e agitaram a mão para despedir-se de Glynis e as crianças. Seguiram o caminho com o passar do escarpado. Ao final de uns oitocentos metros acabaram os verdes campos, dando passo a uma paisagem de matagais açoitados pelo vento. O caminho fazia uma pronunciada curva e Davin deteve seus arreios. — Lorde Haldoran vive em Little Skoal. Este é Neck, o passo natural que une as duas partes da ilha. Michael arqueou as sobrancelhas ao ver a perigosa cinta de pedra e a ondas estalando-se contra as escarpadas rochas muito, muito abaixo. — No guia diz que Neck só tem três metros de largura e muitíssimos metros sobre o mar, mas as palavras não lhe fazem justiça. — O escritor é um exagerado — disse Davin em tom irônico, —Neck tem seus bons quatro metros em alguns lugares. Mas os animais ficam nervosos, assim é melhor cruzar a pé. Todos desmontaram e continuaram a pé, puxando os cavalos. Quando foram pelo meio, Catherine se deteve para olhar pelo lado do precipício. O forte vento lhe açoitava a roupa e o ruído das ondas era tão estrondoso que teve que levantar a voz. — Não deveria haver corrimões? — Não é necessário — respondeu Davin. — Só caiu um homem, e estava bêbado. Os ilhéus sabem tomar cuidado aqui. Ela olhou as rochas de abaixo com expressão duvidosa. Se se transformasse na lady da ilha, muito em breve haveria corrimões. — Por certo — acrescentou o governador, — essa ilhota ali é a Rocha das Focas, onde mataram o selqui, segundo a lenda. Certo, uma das rochas nuas que se via na distância estava coberta por focas tomando sol. Em sua imaginação Catherine viu uma foca subindo a terra sob a chapeada luz da lua cheia e convertendo-se em homem. Se o homem era alto, ágil e forte, como Michael, era compreensível que uma garota esquecesse sua honra e sensatez... Com um suspiro reatou a marcha pelo estreito passo. Seu problema não era o adultério, porque já não tinha marido. O dilema insolúvel estava nela. Ragnarok estava só a uns minutos a cavalo de Neck. Elevava-se perto do lado dos escarpados. Embora seu nome fosse antigo, a casa era relativamente nova. Seu estilo palaciano, de linhas tranqüilas, parecia quase incongruente com o cenário selvagem, açoitado pelo vento, em que estava erguido. Quando chegaram ao princípio do caminho de entrada, Davin não desmontou. — Se não se importar, deixarei-os aqui. Tenho trabalho a fazer. Poderão encontrar o caminho de volta ao castelo? — Não se preocupe — respondeu Michael, ajudando a descer Catherine da cela para mulher. — Skoal não é tão grande para perder-se a sério. O governador tocou a aba do chapéu e voltou a trote. Catherine ficou contemplando-o. 124


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— Tenho a impressão de que prefere não ser convidado de lorde Haldoran. Antes que Michael pudesse responder, saiu da casa um homem corpulento, musculoso, com o rosto cheio de cicatrizes. — Sou Doyle — disse. — Levarei os cavalos ao estábulo. Catherine olhou Doyle com curiosidade enquanto entregava as rédeas. Parecia-lhe conhecido. Supôs que o tinha visto em Bruxelas; seria um dos robustos criados que ajudaram Haldoran a transportar Amy e os Mowbry a Amberes. O sotaque londrino de Doyle deixava claro que não era de Skoal, e seu rosto esmurrado o fazia parecer um rufião. Igual à casa, era uma vista estranha nesse remoto lugar. Subiram os degraus e na porta, o mordomo os recebeu e os fez passar ao vestíbulo, outro londrino de aspecto duro. Pelo visto, Haldoran gostava de ter criados que fizessem também de guardas. — Olá, prima Catherine, capitão Melbourne — saudou Haldoran, descendo as escadas. — O que pensam de nossa ilha? — É única, e muito bonita — respondeu ela, entregando seu chapéu e seu chicote ao mordomo. — Não é rica, possivelmente, mas está muito bem cuidada. Não vejo nenhum sinal de necessidade entre as pessoas. — Todo mundo tem um teto sobre sua cabeça, alimento em seu ventre e sapatos em seus pés. Isso é mais do que pode dizer-se da maioria dos povoados de terra firme. — Agarrou-lhe a mão, reteve-a mais tempo que o agradável para ela, e os fez passar à sala de café da manhã. A conversação enquanto tomavam chá e bolos foi tudo quão insípida podia ser, Haldoran animando a Catherine a falar do que tinha visto. Michael falava pouco. Era estranho como podia dominar um aposento sem dizer uma palavra, pensou ela. — Gostaria de fazer um percurso pelo Ragnarok? — perguntou-lhes Haldoran quando terminaram de comer. — As vistas são excepcionais. — eu adoraria, Clive — respondeu ela, decidindo que devia chamá-lo pelo primeiro nome. Haldoran os guiou pelo primeiro andar, falando em tom divertido da história da casa. Catherine gostou muito mais do que esperava. Seu primo tinha um gosto excelente e a paixão de colecionar objetos bonitos. O resultado era um tesouro de lustrosos móveis, tapetes orientais e objetos de arte. O percurso terminou no andar superior, na parte de trás da casa. — Creio que vai encontrar interessante isto, capitão — disse Haldoran ao abrir a última porta. A sala era uma galeria de amplas janelas com vista para o mar. Catherine pensou que se tratava simplesmente de outra sala bonita, até que viu que era uma sala de armas. As paredes estavam cobertas por uma exposição de armas antigas: espadas, alabardas 6 , adagas, e em uma vitrine especial, as armas prediletas. Apertou os lábios ao olhar ao redor. O haver se criado com o exército não lhe tinha dado nenhum carinho pelas armas; justamente o contrário. Notou uma estranha dissonância entre a luz que entrava pelas janelas e o brilho metálico da morte por todos os lados. — Jamais vi uma coleção assim fora de um castelo das Highlands — comentou Michael. — Tem armas diferentes das que vi em minha vida. Haldoran abriu um armário e tirou uma pistola mais longa que o habitual. Acariciou-a com uma espécie de sensualidade. — Esta tem seis antecâmaras e é uma das primeiras de disparos múltiplos que se fabricou, 6

Arma fo rmada por u ma haste de madeira cuja ponta está cruzada por u ma lamina transversal, aguda de um lado e formando uma meia lua do outro.

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faz quase duzentos anos. É difícil de carregar, terrivelmente imprecisa, propensa a errar o tiro, mas muito interessante. Michael examinou a pistola com minuciosidade profissional, fez os comentários apropriados e a devolveu a Haldoran. Este voltou a guardá-la no armário. — Tenho também umas espadas soberbas. Conhece o aço de Damasco? — Se mau me recordo, bate-se e se dobra sobre si mesma como massa de folhado — respondeu Michael. — Dizem que as folhas da espada adamascada são mais afiadas que qualquer arma européia. — Pois sim. — Haldoran tirou uma caixa de fósforos e acendeu uma vela que estava dentro de um armário. — Olhe esta. Tirou uma elegante espada curva de uma caixa de armas similar. Segurando o punho com as duas mãos, moveu os pulsos e a folha fatiou a vela pela metade com terrível celeridade. Catherine abafou uma exclamação quando a espada cortou tão limpamente a vela que as duas partes continuaram juntas. A chama continuou ardendo sem apenas uma piscada. — É incrível. Não sabia que uma espada pudesse ficar tão afiada. — Alegra-me não ter tido que enfrentar nunca um francês com uma espada como essa — acrescentou Michael. — Não me agradaria ver o que faria em carne e osso. — Não é uma visão agradável. — Haldoran colocou a cimitarra em sua caixa e de outra tirou outro objeto estranho. — Viu uma adaga índia, das que se arremessam, capitão? Pôr o punho no ângulo correto com a folha lhe dá uma força fenomenal. Diz-se que é mortal em luta corpo a corpo. Enquanto os homens falavam de adagas e adagas exóticas, Catherine se aproximou da janela. Havia algo obsceno na paixão de Clive pelas armas. Pensou se poderia ser tão sangrento se tivesse combatido em uma verdadeira batalha. Normalmente a guerra destrói as idéias românticas sobre a violência. Como a casa estava erguida sobre um escarpado, a galeria tinha uma impressionante vista do mar. Muito abaixo as ondas chocavam implacáveis contra as rochas. Durante o percurso da manhã tinha visto várias praias tranqüilas, mas a mais velha parte do perímetro da ilha era pura pedra. Na distância divisou a escura forma da ilha Bone. Crânio e osso. Era ali onde ia passar o resto de sua vida? — O que pensa de nosso honorável governador, Catherine? — perguntou-lhe Haldoran atrás dela. Ela se virou e se apoiou no batente da janela. — Davin? Pelo visto sabe tudo o que vale a pena saber sobre a ilha, e as pessoas o querem bem e o respeitam. Creio que meu avô é afortunado por ter um empregado assim. — Concedo que é competente, mas não me referia isso. Não tem sentimentos mais fortes? Uma sensação de parentesco? — O que quer dizer? — perguntou ela, incomodada. — Me cai bem Davin, mas apenas o conheço. Por que ia sentir parentesco? Clive sorriu maliciosamente. — Porque, bom, o sério Davin é nosso parente mais próximo, seu único primo de primeiro grau. — Acreditava que minha mãe era filha única. — E era. Davin é primo por parte de seu pai; o filho bastardo de Harald, com uma garota da ilha. — Quer dizer que é o neto do lorde? — perguntou ela, olhando-o fixamente. — Se isso for certo, meu avô sabe? 126


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— Ah, claro que sabe. Todo mundo na ilha sabe. Quando Harald fez vinte e um anos, anunciou que desejava casar-se com essa noiva ilhoa, do ramo camponês dos Penrose. Imediatamente o lorde o enviou para fazer um Grande Tour, mas era muito tarde, a garota já estava prenha. Conseguiu ocultar de todo mundo, inclusive da sua família, quase até o final. Depois morreu no parto, chamando seu amado. Seus pais criaram o bebê. — Brilharam-lhe os olhos, como se achasse divertida a história. — Quando voltou Harald e se inteirou do ocorrido, não perdoou jamais a seu pai. Interessou-se por Davin, ocupou-se de que tivesse uma boa educação, mas claro, o menino era de qualquer modo um bastardo. Catherine apertou a mão sobre o batente. Por isso na noite anterior Glynis e Alice Mathews tinham trocado olhares inquietas quando estavam falando de seus parentes. — Quer dizer, se Davin fosse legítimo, seria o próximo lorde de Skoal. — Sim, mas é difícil supor que o lorde vá reconhecer publicamente o bastardo de seu filho. — Haldoran sorriu com falsa amabilidade. —Pensei que deveria saber, já que todo mundo sabe. — Acredita que Davin está ressentido com minha esposa porque é uma possível herdeira? — perguntou Michael, que esteve escutando em silêncio. — um pouco talvez, mas é muito impassível para causar problemas. Se o mantiver em seu posto de governador, a servirá bem — abandonando o assunto com a mesma brutalidade com a qual o tinha iniciado, Haldoran foi para uma grade e apanhou um rifle Este comprido é um rifle de Kentucky. Parece simples, mas é a arma mais certeira que usei em minha vida. Olhem. Carregou-o e abriu uma janela, pela qual entrou o ar úmido e o ruído dos gritos das gaivotas. Apontou, concentrando-se com os olhos cerrados. Disparou, e o ruído foi ensurdecedor dentro da galeria. Catherine se encolheu para ouvir o gemido de uma gaivota na distância, que logo caiu sem vida no mar. As outras gaivotas se dispersaram chiando freneticamente. — Bom tiro — comentou tranqüilamente Michael, — mas eu pensei que era ilegal matar gaivotas em Skoal. — Uma mais ou uma menos não se notará — disse Haldoran voltando-se e olhando-o desafiador. — Posto que você é soldado, certamente terá melhor pontaria que eu. — Não necessariamente. O trabalho de um oficial é dirigir, não matar ele o inimigo. — É muito modesto. Vamos, prove este rifle. Skoal pode permitir-se outra gaivota morta. Voltou a carregar o rifle e o passou a seu convidado. Michael vacilou um instante. Depois sua expressão se endureceu e aceitou a arma. Esteve um momento estudando o cenário de fora e finalmente disse: — Como não sou um ilhéu não me sinto em liberdade de infringir a lei. Tomarei como alvo esse arbusto que há em cima dessa saliência rochosa. O ramo de acima. Catherine Fechou os olhos logo que conseguiu distinguir o arbusto. — É impossível acertar a esta distância — comentou. O arbusto se balançava ao vento, fazendo ainda mais difícil o tiro. Com a canto do olho viu Haldoran sorrir. Fazendo-o parecer fácil, Michael olhou ao longo do canhão do fuzil de Kentucky e apertou o gatilho. Na distante saliência rochosa o ramo do arbusto caiu dando tombos pelo escarpado até inundar-se no mar. — Bem feito — disse Haldoran entre dentes com expressão glacial. — Essa foi uma pontaria magnífica. — A arma é muito boa — repôs Michael como não querendo lhe dar importância, e lhe devolvendo o rifle. — É tão bom em esgrima como em tiro, capitão? — perguntou Haldoran com certa aspereza no tom. — Sei usar uma espada para me defender — respondeu Michael dando de ombros, — mas 127


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não sou um perito. Catherine os observava inquieta. Pressentiu uma espécie de competição, Haldoran desafiando e Michael resistindo. Que demônios queria demonstrar seu primo? Não gostou de nada do assunto. — Agora teremos que partir — disse. — Muito obrigado por nos convidar, Clive. — Não deve se precipitar, Catherine. Haldoran foi a outro armário e tirou dois sabres de cavalaria iguais. — Quero ver outro exemplo da perícia de seu marido. Agarrou um sabre pela folha e o lançou para Michael, que o agarrou destramente no ar pelo punho, Haldoran levantou o outro sabre fazendo um arremedo de saudação. — En garde, capitão — sem mais aviso se lançou com o sabre empunhado em um ataque mortal. capítulo 24 O coração de Catherine quase parou ao ver Haldoran dirigir o sabre para o peito de Michael. Antes que pudesse lançar um grito, Michael aparou o golpe. — Está louco, Clive? — gritou. — É uma loucura bater-se com as folhas desprotegida. — Tolices — repôs seu primo, atacando novamente. Ouviu-se um chiado metálico ao chocar as folhas dos sabres - é simples esporte. Não se fará nenhum mal, não é, capitão? — Isto é tão inofensivo como brincar de charadas — respondeu Michael com ironia. Aparou outro golpe. — Que esportista poderia resistir? — Alegra-me que esteja de acordo — disse Clive, intercalando as palavras com espetadas para pôr a prova a perícia de seu competidor. —Mas o melhor esporte é caçar nos Shires. Fez isso alguma vez? — Nunca tive esse privilégio, mas boa caça se pode encontrar em qualquer parte. — Aparou outro golpe sem nenhuma elegância. — Na Espanha houve esplêndidas caçadas com galgos. — Isso soa rústico, mas divertido. Haldoran avançou e se produziu um estrondo de golpes e contragolpes. Acabou a conversação, que foi substituída por fôlegos, enquanto os dois combatiam movendo-se pelo centro da galeria. Clive era um espadachim de primeira classe, rápido para aproveitar qualquer debilidade. Comparado com ele, Michael era lento, de movimentos quase torpes. Catherine os observava com abafado silêncio. Embora seu primo assegurasse que era esporte, se Michael não conseguisse defender-se bem poderia acabar gravemente ferido, ou pior. Levou-lhe tempo dar-se conta de que Michael se refreava deliberadamente. Seus lances ofensivos podiam ser ineficazes, mas sua espada estava sempre colocada para proteger-se da folha do adversário. Embora retrocedesse uma e outra vez, nunca ficava desatento. Era uma demonstração de perícia consumada. Só uma pessoa que o conhecesse bem se daria conta do que estava fazendo. O combate acabou quando repentinamente Haldoran rompeu o guarda de seu competidor. Catherine lançou uma exclamação ao ver a folha aponto de enterrar-se na garganta de Michael. No último instante, este moveu bruscamente o sabre para parar o golpe. O sabre de Clive ricocheteou e deslizou para baixo. A ponta arranhou Michael no lado do pulso, deixando um rastro escarlate. — Meu querido amigo, quanto sinto — disse Haldoran retrocedendo, com a ponta do sabre para baixo. — Não foi minha intenção tirar sangue, mas no prazer de lutar com um competidor digno me esqueci de mim mesmo. O brilho de triunfo em seus olhos desdizia sua desculpa, — Não é nada, um simples arranhão. 128


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Michael colocou seu sabre no armário e tirou seu lenço. Catherine correu para ele, com o coração na boca, e lhe olhou o pulso. Felizmente o corte era tão mínimo como assegurava Michael. Atou-lhe o lenço ao redor da ferida superficial. Quando terminou, olhou a Clive, furiosa. — Tem umas idéias detestáveis sobre esporte, primo. — Não voltará a acontecer — prometeu ele. — Na próxima vez talvez possamos usar os floretes de ponta chata. Mas foi um prazer excepcional cruzar espadas com um lutador perito. Novamente foi exageradamente modesto a respeito de suas habilidades, capitão. — Simplesmente aprendi a fazer o que é necessário fazer. Michael esticou a manga sobre o pulso enfaixado. — Obrigado por esta visita tão amena, Haldoran. — O prazer foi meu. A sociedade da ilha está acostumada ser um tanto insípida — suspirou com pesar aparentemente sincero. — Desgraçadamente, amanhã vou a Londres, onde estarei alguns dias. Espero que estejam aqui ainda quando voltar. — Volte logo —disse Catherine com um alegre sorriso falso. Quando mais tempo estivesse longe, mais feliz ela estaria. Recolheram seus cavalos e empreenderam a marcha pelo caminho para Great Skoal. Ela guardou silêncio até que começaram a cruzar a pé o Neck, puxando os cavalos. — por que demônios permitiu que acontecesse isso? — perguntou então em tom glacial. — Permiti? Não há escolha quando se ataca um homem com um sabre. Ela o olhou exasperada. — Poderia ter acabado antes. É melhor espadachim que Haldoran, mas fingiu que não era. — Deu-se conta disso? Não sou tão bom ator como pensava — sua boca se curvou em um sorriso sem humor. — Seu primo é perito em armas, mas é um aficionado, não um profissional. Por desgraça, não gosta de perder. Depois de cometer o erro de disparar melhor que ele, estava decidido a demonstrar que podia ganhar em algo. Quanto antes o deixasse ganhar, mais depressa poderíamos partir. — Mas deixá-lo preservar seu orgulho poderia tê-lo deixado mais ferido — espetou ela. Ele arqueou as sobrancelhas. — Creio que esta é a primeira vez que a vejo zangada. Não sabia que as santas pudessem zangar-se. — Jamais disse que era uma Santa, e não tenho paciência com um homem que alegremente se deixa usar como alfineteiro. — Não havia perigo disso. — Dirigiu-lhe um sorriso largo e íntimo. — Está exagerando. Eu gosto disso. A ternura que viu em seus olhos lhe dissolveu o mau gênio. Michael tinha razão; era exagerada sua reação ao incidente. Se não toma sse cuidado, ele poderia dar-se conta do muito que estavam comprometidos seus sentimentos. Soltou o ar em uma longa expiração. — Não poderia suportar que o ferissem enquanto está me ajudando. Já me sinto bastante culpada por tê-lo metido neste louco ardil. — Não perca tempo sentindo-se culpada —disse ele com um que de amargura. — Isso não obtem nada. Tinham chegado ao final do passo, e ele juntou as mãos para ajudá-la a montar. — Tome cuidado com o Haldoran —disse ela quando já estava instalada em sua cela. — É um homem estranho. Devo estar agradecida por nos ter ajudado em Bruxelas, mas não posso sentir simpatia por ele. — Eu tampouco sinto nenhuma simpatia por ele. Conheci aspirantes a heróis similares no exército. Raras vezes duravam muito. — Montou seu cavalo. — Não tem por que preocupar-se d que seu primo me provoque para 129


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outra luta. Não há ninguém como um velho soldado quando se trata de evitar batalhas desnecessárias. Ela sorriu, dissipados seus temores. Por desgraça, os dele não estavam dissipados. Durante esse duelo improvisado, notou que Haldoran não teria se importado em causar um«acidente» mortal. Mas por que desejaria matá-lo? Poderia ser por pura mentalidade sanguinária, da qual tinha mais que um pouco. Mas poderia haver outro motivo. Tinha notado uma ávida Possessividade nos olhos de Clive quando olhava a sua linda prima. Poderia esse desejo ter gerado o desejo secreto de ver morto o suposto marido de Catherine? Uma coisa era certa: Era necessário vigiar atentamente Haldoran. Quando entraram no castelo s cruzaram com o mordomo, que levava uma bandeja com o chá. Caso fosse para seu avô, Catherine lhe perguntou: — Olson, poderia visitar o lorde agora? — Perguntarei — respondeu Olson, em tom imponente. Quando partiu, Michael lhe perguntou. — Vou contigo ou a deixo com os leões e tomo um banho antes do jantar? — Poderia ser melhor que fosse só — respondeu ela depois de pensar um pouco. — Suspeito que um galo velho como meu avô sente a necessidade de cacarejar e proclamar-se rei da montanha se houver outro homem diante de si. — É um traço de família entre os homens Penrose. — Jamais vi esse tipo de postura em você. — Não tenho para que —respondeu ele com sorriso malicioso. Ela riu, mas depois que se foi, compreendeu que na verdade não era uma brincadeira. Michael tinha a calada segurança de que não precisava demonstrar nada diante de ninguém. Ou sim? Ao recordar sua expressão quando lhe contou sobre a recente morte de seu pai, compreendeu que sua segurança estava em suas habilidades físicas, nas quais era um professor. Nas áreas mais escuras das emoções era menos seguro. Achou estranhamente enternecedor o conhecimento de que Michael era vulnerável. Logo voltou Olson. — Sua senhoria vai recebê-la, senhora. Seguiu-o pela casa até uma sala de estar adjacente ao quarto do lorde. O mordomo lhe indicou com um gesto as portas janelas. Através das cortinas de gaze se viam os contornos de uma cadeira de rodas. — Sua senhoria está ali fora. Saiu ao ensolarado balcão do qual se contemplava uma bonita vista da ilha. Sua chegada foi observada por seu avô e um enorme sabujo de pelagem castanha. O cão a olhou com atitude bastante amistosa. Sem dar-se ao trabalho de dizer algo agradável, o lorde lhe grunhiu: — Veio ver se já estou a ponto de estirar as canelas? Ela sorriu, menos intimidada que no primeiro encontro. — Alegra-me vê-lo, vovô. — sentou-se em uma cadeira de respaldo reto. — Tem boa aparência hoje. Naturalmente me sinto aniquilada por esses sinais de saúde, mas arranjarei isso para agüentar a decepção. Ele ficou com a boca aberta, depois sorriu a contra gosto. — Tem uma língua muito mordaz, garota. — De quem acredita que herdei isso? — perguntou ela sorrindo. — Uma língua muito mordaz, sim — murmurou ele, mas em seus olhos brilhava um brilho de diversão. — O que lhe parece minha ilha? 130


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— Há uma surpreendente diversidade para ser uma superfície tão pequena. Pradarias, desertos, vales florestados. Impressionou-me quão auto-suficiente é esta ilha. — E o povo? Ela pôs a palma da mão para cima. — As pessoas que conheci são um tanto reservadas, mas isso é natural. — Como devem ser. O feudalismo é um sistema condenadamente bom, mas tudo depende do caráter do senhor. Quererão conhecê-la muito melhor para confiar em ti. — Falando de feudalismo, surpreendi-me quando ao passar junto a uns homens que estavam trabalhando no caminho Davin disse que todos os homens mais velhos de quinze anos devem ao lorde quinze dias de trabalho por ano. Acreditava que esse tipo de coisas se aboliu faz séculos. — E por que não vão trabalhar os homens para manter seus caminhos e alojamentos? Os costumes da ilha se originaram por boas razões. Só o lorde pode ter um pombal porque as pombas comem os grãos dos campos, e põem em perigo as colheitas. Também sou o único ao que é permitido ter um cão. — O cão levantou e foi apoiar a cabeça nos joelhos do velho. Acariciou-lhe as orelhas. — Se todos pudessem ter um cão rapidamente a ilha estaria cheia de cães. No final vai entender tudo. Ela inclinou a cabeça. — Está considerando a sério me fazer sua herdeira, ou seu chamamento foi puro jogo? Afinal Clive é homem e conheceu a ilha toda sua vida. Certamente ele é a opção evidente. — Sim, mas... — o ancião desviou a vista. — Este não é o principal lar de Clive. São muitas as coisas que ocupam seu tempo. Prefiro deixar Skoal a alguém que a ponha em primeiro lugar. Era uma boa resposta. De qualquer forma, Catherine teve a impressão de que seu avô não se sentia totalmente a vontade com lorde Haldoran. — me conte algo de seus pais — disse repentinamente o lorde. Ela o olhou receosa, sem saber muito bem o que desejava ouvir. Ele tirou a manta que lhe cobria o regaço. — Não me desgostava sua mãe, sabe? Era uma garota encantadora. Mas não queria que William se casasse com uma ilhoa. Em Skoal há muita endogamia 7 . Necessita dose regulares de sangue novo. Isso podia explicar por que se havia oposto à relação de Harald com uma garota da ilha. — Em teoria entendo a necessidade de sangue novo, mas meus pais foram muito felizes juntos. A minha mãe adorava seguir o exército. Suponho que por isso a mim nunca me ocorreu fazer algo diferente. Continuou falando, e explicando sua vida familiar. A elevada reputação que tinha seu pai entre seus companheiros oficiais e seus homens, a habilidade de sua mãe para fazer um lar em qualquer parte. Como seu pai a tinha ensinado a cavalgar e sua mãe a atender doentes; contou-lhe quanto seus pais amavam o mar. Tendo visto Skoal, agora entendia por que. Seu avô a escutava em silêncio, seu olhar fixo no horizonte. Quando ela deixou de falar, disse-lhe: — É uma lástima que o menino tenha sido tão teimoso. Não tinha porquê partir e não voltar jamais. Tendo conhecido o lorde, ela entendia por que seu pai supôs que seria mal recebido. — Para eles o mundo era outro e o exército. Alegrou-me que morreram juntos... — lhe quebrou a voz. — Teria... teria sido difícil para qualquer dos dois continuar sozinho. Tragou as lágrimas, sabendo que não era dor só por seus pais mas sim por ela também. Tinha desejado um matrimônio como o de seus pais. A verdade é que tinha suposto que o teria. 7

Fecundação entre indivíduos da mesma espécie.

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Essa expectativa fazia ainda mais doloroso seu fracasso. Seu avô esclareceu a garganta. — Seu marido não é o que eu esperava. Parece estável. — Colín e eu éramos muito jovens quando nos casamos. Não vou negar que tinha uma veia amalucada, mas nunca descuidou de seus deveres para com sua família nem para com seus homens. — Isso era certo. Igualmente certo era o que acrescentou. — Se eu for sua herdeira, prometo-lhe que Colín não provocaria nenhum mal à ilha nem a sua gente. — Davin diz que fez comentários muito sensatos a respeito de como se cultivam minhas terras, e sobre que mudanças seriam boas. — Tem uma impressionante quantidade de conhecimentos. A diferença de Colín, Michael tinha se criado em uma enorme fazenda e aparentemente tinha prestado atenção à forma de conduzi-la. Desejosa de desviar o assunto de seu marido, continuou: — Davin nos assinalou a ilha Bone e nos contou sua história. Seriamente é um lugar tão funesto? — A história fala por si mesmo. Além das incursões vikings e as pragas, Bone sempre foi muito popular entre os piratas e contrabandistas. Peça a Davin que procure um bom barqueiro para que os leve a visitá-la. A maior caverna marinha das ilhas está no extremo oeste. — Sorriu sugestivo. — É muito especial. Inclusive há um manancial de água quente em seu interior. Mas terá que tomar cuidado. Só se pode chegar à caverna quando a maré está baixa. Se ficarem dentro muito tempo ficarão presos até que volte a baixar a maré. — Parece interessante. Seguro que meu marido gostaria de vê-la também. Espero que haja tempo para visitá-la antes que partamos. Seu avô fez tamborilar os dedos no braço da cadeira de rodas. — Quanto tempo pensa ficar aqui? — Duas semanas talvez? — sorriu vacilante. — A não ser que diga que somos má companhia e nos expulse. — Duas semanas não é muito tempo. Tem muito que aprender aqui. Cada vez dava mais a impressão de que ele queria fazê-la sua herdeira. — Estudarei tudo o que ache necessário — disse, tentando ocultar seu prazer, — mas não possamos ficar aqui indefinidamente. Colín deve voltar para suas obrigações. — Pode ficar aqui sem ele — disse ele carrancudo. Seu avô se sentia sozinho. Esse era um estado que ela compreendia muito bem. — por agora, meu lugar está com meu marido e minha filha. Ele fez um gesto de desagrado. — E se herdar e Melbourne decidir que não quer viver em um lugar tão isolado? Ficaria com ele, deixando que Skoal apodreça? Ela o olhou muito séria. — Se me fizer sua herdeira, porei a ilha em primeiro lugar. Meu dever para toda uma comunidade deve antepor-se a meu dever com meu marido. Mas não tem por que preocupar-se que Colín tente me manter afastada. — Encarregarei-me de que recorde isso. — reclinou-se no respaldo com expressão cansada. — Agora vá. Ela se levantou e Impulsivamente se inclinou e lhe beijou a face. — Não ache que me vai deixar amável, baby — grunhiu ele. — Levo cinqüenta anos assustando todo mundo desta ilha e não penso deixar de fazê-lo agora. — Vovô — riu ela, — é difícil assustar a qualquer mulher com quem o duque de Wellington 132


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gritou. Não seria mais fácil que fôssemos amigos em lugar de tentar me aterrorizar? Ele acariciou o cão, que continuava com a cabeça apoiada em seus joelhos. — O jantar será às seis em ponto. Procure estar ali a tempo. Catherine se despediu e se dirigiu a seu quarto. Sentiu-se orgulhosa porque só se perdeu duas vezes. Recordando que Michael ia tomar um banho, bateu antes de entrar. — Adiante— respondeu sua voz profunda. Entrou e viu que ele acabava de terminar seu banho mas não estava totalmente vestido. A camisa se pendurava solta sobre as calça s, e o linho branco realçava o poder de seus largos ombros. Estava praticamente coberto, por que então o efeito era tão aniquiladoramente íntimo? — Como foi com seu avô? — perguntou Michael. No pescoço lhe enroscavam mechas de cabelos mogno molhados. Pêlos mais escuros apareciam pela abertura em V de sua camisa. Ela baixou os olhos e se concentrou em tirar cuidadosamente as luvas. — Muito bem. Sob esse exterior brusco é bastante simpático. Michael lançou um bocejo eloqüente. — Aprova você, e isso o surpreende — acrescentou ela sorrindo. — Também me surpreende. — Michael foi para o espelho para fazer o nó da gravata. — Perguntei ao lacaio que trouxe a água quente pela saúde do lorde. O problema é seu coração. Pode caminhar, mas se cansa com muita facilidade e qualquer tipo de esforço lhe produz terríveis ataques de dor de peito. Ela franziu o cenho. — As dores de angina são muito debilitadoras, mas não necessariamente perigosas para a vida. — Sua continuada existência poderia nos dificultar a situação— comentou ele muito sério. — Sei. Mas me chatearia perdê-lo tão depressa depois de havê-lo encontrado. Tenho carinho ao velho descarado. — deixou-se cair em uma poltrona. — Agora que o conheceu, creio que poderia vir com Amy para visitá-lo a cada ano e lhe dizer que meu marido está muito ocupado para nos acompanhar. — Com sorte, isso dará resultado — disse ele. Ela juntou as mãos no regaço, e rogou poder confiar em sua sorte. Capítulo 25 — Gostaria de mais um pouco de cerveja? — perguntou Catherine. — Sim, por favor. Michael entreabriu os olhos para olhá-la. Estava deitado sobre uma manta estendida sobre a areia, tão relaxado quanto podia estar um homem; à parte, logicamente, da tensão que lhe produzia estar tão perto de Catherine. Ociosamente admirou a flexibilidade de seu corpo quando agarrou a jarra de cerveja que estava esfriando em um charco de água de mar e serviu um jarro. Sentou-se e bebeu um comprido gole. — É agradável ter uma tarde livre de deveres. — Um estudo intensivo da história, leis e agricultura de Skoal não era o que esperava desta visita — disse ela rindo. — Mas tudo é interessante. A ilha é muito auto-suficiente. — Indicou os restos de comida. —Queijo e arenques ilhéus, comidos com pão fresco ilhéu, regados com cerveja ilhoa e de sobremesas maçãs ilhoas. — E colocados em uma cesta de juncos ilhéus. Mas não podem cultivar chá nem café aqui. — Uma falta grave. Supondo que Skoal não se pode separar totalmente do resto do mundo. — Levantou as pernas e rodeou os joelhos com os braços. Sob o ondulante lado azul de seu 133


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vestido de musselina se viam seus pés descalços. — Oxalá Amy estivesse aqui. Adora o mar. Levao no sangue, creio. Ele contemplou atentamente seu delicioso perfil. Desde que lhe salva ra a vida, era agudamente consciente da freqüência com que se usa o sangue como metáfora de conexão e afinidade. Talvez esse dom de vida que os unia era o motivo de que se sentisse tão desesperadamente conectado com ela, tão consciente de cada uma de suas palavras e movimentos. Uma baforada de brisa lhe colou o vestido ao corpo, delineando claramente a plenitude de seus seios. Michael desviou o olhar, porque seu corpo reagiu involuntariamente. Olhou a praia, uma meia lua de areia protegida por gigantescos escarpados. Era um lugar ensolarado e íntimo, condenadamente romântico. — Davin tinha razão ao dizer que este é um bom sítio para fazer piquenique. Na verdade, sempre tem razão. Outro santo, clara prova de que deve ser seu primo. — Isso dá a impressão de que fosse aborrecido, que não é. Ele e Glynis são excelente companhia. Michael apoiou o jarro de cerveja em seus joelhos. A maré estava subindo e as pequenas ondas rompiam a uns poucos metros deles. — Já está há uma semana aqui. Se seu avô lhe deixar a ilha, acredita que seria feliz aqui? Esta é uma vida restringida comparada com a que conheceu. — Sim, mas também é segura e cômoda. Se me oferecer isso, não posso me permitir rechaçála. — deu de ombros. — Não sei se serei feliz, mas sim posso ficar contente. Isso será suficiente. Cedendo ao impulso, fez a pergunta que o atormentava desde que lhe pediu ajuda. — E Colín? Ela apertou as mandíbulas. — Com a ajuda de Davin, posso governar a ilha sozinha. Michael reteve o fôlego; pensou se essas palavras significariam que ela e seu marido poderiam estar separados para sempre. Se já estavam distanciados, isso explicaria por que ela não parecia preocupada sobre como trazer para Colín à ilha depois. Acelerou-lhe o coração ao pensar no que isso significava. Seria desonroso cortejar a uma mulher cujo matrimônio estava acabado, mesmo que não estivessem dissolvidos os vínculos legais? Na verdade, compreendeu com outro sobressalto, esses vínculos podiam dissolver-se. O divórcio era algo excepcional, e necessitava dinheiro e amigos influentes para consegui-lo. Mas ele tinha ambas as coisas, e gastaria até o último pêni para liberá-la se fosse isso o que ela queria. A idéia era assombrosa. Pensando se não estaria dando mais sentido a suas palavras que o que queriam dizer, perguntou-lhe, com certa vacilação; — Várias vezes deu a entender que Colin poderia não formar parte de seu futuro. Está pensando em deixá-lo? Ela fechou os olhos e sussurrou: — Não me pergunte por Colín. Por favor, não me faça perguntas. O muro de controle que erigiu com tanto cuidado s desmoronou. — Catherine. — Colocou-lhe uma mão no ombro. — Catherine. Ela lançou um suspiro agitado, os lábios trêmulos. Ele não pôde suportar ver sua infelicidade e lhe rodeou os ombros com o braço. Com a outra mão lhe acariciou os cabelos. Viu brilhar lágrimas entre suas pálpebras fechadas. Meigamente lhe beijou as pálpebras, saboreando o sal entre suas pestanas. Ela abafou um som e virou o rosto, não para o outro lado, e sim para ele, apertando seus seios contra as costelas dele e lhe rodeando a cintura com os braços. Com os lábios, jogou para trás as finas madeixas que lhe caíam sobre o rosto e lhe acariciou com a língua o sulco da orelha. Ela 134


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soltou uma expiração rouca, com os lábios entreabertos; estava insuportavelmente sedutora, uma sereia vulnerável. Michael inclinou a cabeça e lhe cobriu a boca com a sua tinha gosto de maçãs e cerveja, deliciosa. Ela continuou com os olhos fechados, para negar o indecoroso desse abraço, mas sua boca respondeu ao beijo, apaixonada e ávida. Ele sentiu o martelar de seu coração, e o clamor de seu sangue lhe afogou a razão. Empurrou-a para trás, fazendo ranger a grossa areia sob a manta. Tinha sonhado tê-la assim, seu corpo dócil sob o seu, os fortes batimentos do coração, de seu pulso visível sob a fina pele branca de sua garganta. Tremeu-lhe a mão quando a espalmou sobre um seio, túrgido, voluptuoso, feminino. Com dedos torpes lhe desabotoou os botões que seguravam o vestido nos ombros; logo lhe desceu o sutiã e a combinação mais abaixo, lhe deixando os seios descoberto. — É tão linda — murmurou com voz rouca. — Tão linda. Agarrou-lhe um aveludado mamilo com a boca; este se endureceu imediatamente, doce, perversamente doce. Desejou beber sua essência, absorver o calor e a feminilidade que tinha ansiado toda sua vida. Ela gemeu e se arqueou contra ele. Agarrou-lhe os seios, aproximando-os, e enterrou a cara entre essas curvas cálidas, acetinadas, sentindo os fortes batimentos de seu coração. Ela deslizou seus dedos por entre seus cabelos, acariciando-lhe uma e outra vez. A Michael não importou nem um pouco o matrimônio, marido e esposa. Isso era acasalamento em sua forma mais pura, selvagem, impossível de negar. Em um mundo justo ela seria sua, protegida por sua força e amor. Quando tinha sido parte de sua vida a justiça? Faria sua própria justiça, agora e para sempre. Deslizou para baixo a palma da mão, acariciando as flexíveis curva s de seu corpo e a deixou repousar sobre a proeminência de seu sexo. Sob o delicado tecido notou calor e a promessa de uma boa acolhida. Enquanto a acariciava ela foi ficando absolutamente imóvel. — meu Deus! — gritou de repente, abrindo bruscamente os olhos, — o que estou fazendo? Frenética, separou-se dele segurando com a mão o sutiã sobre os seios. Tenso e excitado, ele esticou a mão para atraí-la novamente. — Catherine? Ela se separou de sua mão como se fosse uma serpente. O medo que viu em seus olhos verde mar o impressionou e fez voltar a prudência com a brutalidade de uma jarra de água gelada. «Maldito seja, o que estive fazendo?». Quebrantando o mais solene juramento que fez em sua vida. — me perdoe, sinto muito, sinto muitíssimo. — Desceu a cabeça e a cobriu com as mãos. Tremia-lhe todo o corpo e não só pela frustração que lhe queimava cruelmente as veias. — Não era minha intenção que acontecesse isto, juro-lhe. — Minha tampouco — respondeu ela com voz tremente. — Sinto, Michael. A culpa foi minha. Era certo que ela não resistiu, justamente o contrário. Mas ele se aproveitou de seu sofrimento, da aflição que sentia por seu matrimônio. Embora não o t enha feito deliberadamente, de qualquer forma estava errado. Deus santo, aprenderia alguma vez? Acreditava ter aprendido com seus erros passados, mas era evidente que não. Escapar da ilha seria a medida mais judiciosa. Mas isso deixaria Catherine na necessidade de dar explicações difíceis e podia pôr em perigo sua segurança futura. Tinham que encontrar uma maneira de remendar os farrapos de sua relação. Levantou a cabeça. Ela tinha abotoado o vestido e parecia estar a ponto de pôr-se a correr. 135


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Uma onda rompeu lhe molhou os pés; levantou-se e arregaçou as calças até os joelhos. Depois esticou a mão para ela. — Caminhemos. Chapinhar pela praia vai nos servir para limpar as mentes revoltas. Seu tom prático teve o efeito desejado. Catherine se levantou e lhe segurou a mão timidamente, levantando a saia com a outra. Tinha tornozelos finos e bem torneados. Ele desviou o olhar e a conduziu pela beira da praia. Ondas baixas arrebentavam na areia, seguiam seu caminho assobiando até lhes molhar os pés e depois retrocediam. — Era certo que aconteceria algo assim— disse Michael em tom tranqüilo. — Não em vão a sociedade diz que os homens e mulheres não devem ficar juntos sozinhos, a menos que estejam casados. O modo como estivemos vivendo, colocados um no bolso do outro, é suficiente para esgotar as melhores intenções. — A olhou de esguelha. — Além disso, não ajuda nada o fato de que a ache a mulher mais atraente que conheci. — Ah, Deus — exclamou ela, detendo-se, paralisada pela consternação. — Se soubesse como se sentia, jamais lhe teria pedido ajuda. Coloquei-o em uma situação intolerável. — Como ia saber? Na Bélgica fiz os mais condenados esforços para me comportar. — Pegoulhe a mão e a fez reatar a marcha. — Embora nossa pequena comédia tenha feito estragos em meu autodomínio, alegra-me que tenha ido em busca de ajuda. Mas compreenderei se tiver desaparecido sua confiança em mim. Mereço que me dêem açoites. — Por favor, não se culpe —suplicou ela. — Todo este enredo é puramente minha culpa. Adoecia-lhe saber que ele estava se comportando honrosamente enquanto ela o estava enganando. Por um momento esteve a ponto de lhe dizer toda a verdade: a morte de Colín e seu amor secreto por ele. Mas os motivos para guardar silêncio eram tão fortes como sempre; mais fortes, de qualquer jeito. — Temos que partir da ilha imediatamente. Direi a meu avô que já não suporto estar mais tempo separada de Amy. — Ele vai dizer que a mande buscar. Não quer que parta, e o compreendo. O mínimo que possamos fazer é ficar as duas semanas. Dormirei nas ameias. Isso vai eliminar o pior da tentação. — Não pode fazer isso — exclamou ela. — É claro que posso — disse ele mansamente. — dormi muitas vezes sob as estrelas, e eu gosto bastante. Ela s mordeu o lábio. — Estou lhe causando muitos problemas. Sou eu que mereço açoites. — As mulheres luminosas são para beijar, não para açoitar— Sorriu com tristeza. — Por isso vou dormir no terraço. Nos arranjaremos. As arranjariam, sem dúvida. Mas ao recordar o intenso prazer que lhe provocaram suas carícias, Catherine compreendeu que o que preservava sua virtude não era a honra e sim o medo. Anne Mowbry estava na sala de estar ensinado Molly e Amy a bordar quando lorde Haldoran bateu na porta. Era a tarde livre da criada, de modo que ela foi abrir. Haldoran tirou o chapéu. — É um prazer voltar a vê-la, senhora Mowbry. É boa hora para uma visita? Por que sempre chegavam visitas quando ela usava seu vestido de amanhã de terceira classe? — Uma hora tão boa como qualquer outra, milorde — respondeu, filosoficamente. — Entre, por favor. É muito amável de sua parte nos fazer uma visita. O visitante entrou no vestíbulo e imediatamente se viu rodeado por cães e meninas. Anne dissimulou um sorriso ao vê-lo tão desconcertado; era evidente que sua senhoria não era um homem de família. De qualquer forma ele saudou educadamente às meninas e se refreou de dar 136


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um chute ao entusiasmado Clancy. Depois de tirar dali os cães e fechar a porta, conduziu-o ao salão principal. — Além do prazer de vê-la disse ele enquanto caminhavam, — tenho uma missão em nome da senhora Melbourne. — Sinto muito, mas Catherine está fora da cidade nestes momento. — Sei, está em Skoal. Acabo de chegar de minha casa ali. Minha família é da ilha e resulta que ela e eu somos primos. — Sorriu. —Suspeitei na Bélgica quando vi seus olhos, mas não o disse porque não estava certo. — Você e eu somos primos também? — soou a voz de Amy. Anne olhou para a voz e viu que as meninas estavam sentadas no canapé do canto com seus bordados. Em teoria, as duas estavam muito aplicadas em seu trabalho, mas na verdade estavam escutando com toda desfaçatez. — Sim, lorde Haldoran seria seu primo também. Mas fora daqui as duas. Não deveriam estar aqui. — Na verdade minha visita tem há ver com Amy. Posto que vim a Londres, Catherine me pediu que a minha volta a levasse a Skoal. Quer que sua filha conheça o lorde. — Sim? Faz dois dias recebi uma carta dela e não me dizia nada disso. — Decidiu em um impulso. — Haldoran sorriu compreensivo - Suponho que o motivo é que simplesmente sente falta de sua filha. Isso tinha traços de ser certo; Catherine não se sentiu nada bem em afastar-se de Amy. — Enviou-me uma nota? Ele negou com a cabeça. — Como disse, decidiu num impulso e desceu ao cais justo no momento em que eu estava embarcando. Tinha que zarpar rápido para aproveitar a maré. Alegrou-me muito que me pedisse isso. Afinal, Amy e eu já fomos companheiros de viagem. Anne recordou a angustiante viagem de Bruxelas a Amberes; com a companhia de Haldoran tudo tinha ido sobre rodas; ele tinha se mostrado paciente em circunstâncias difíceis. Deixar Amy ir com ele não era exatamente deixá-la ir com um desconhecido. — De qualquer modo... não sei se devo deixar Amy ir sem ter uma nota de sua mãe. Haldoran arqueou as sobrancelhas, o que lhe deu um ar levemente desdenhoso. — É você uma boa guardiã, senhora Mowbry, mas, veja você, depois de tudo Catherine é minha prima. — Por favor, tia Anne — suplicou Amy. — Mamãe disse que me mandaria buscar se a visita fosse bem. — Naturalmente contratarei uma criada que vá conosco para que atenda às necessidades da senhorita — disse Haldoran. Depois acrescentou— : Partiremos amanhã, a primeira hora. Acossada por todos os lados, Anne capitulou. — Muito bem, pode ir, Amy. Mas terá que levar suas lições. — Sim! — gritou Amy exuberante. Deu meia volta e saiu correndo do salão, presumivelmente para começar a fazer suas malas. Molly a seguiu em passo lento, desconsolada por não ir ela também. Anne se sentiu animada. A sorte lhes havia mudado. Graças à recomendação de lorde Michael, Charles estava feliz trabalhando para o duque de Candover, com um salário astronômico, e dava a impressão de que Catherine estava bem encaminhada para converter-se na lady de Skoal. Sorrindo se voltou para lorde Haldoran para finalizar os planos da viagem. Capítulo 26 137


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Como tinha imaginado Michael, houve tensão entre ele e Catherine depois do horroroso incidente da praia; mas no dia seguinte a tensão começou a desvanecer-se. De qualquer modo, ela tendia a evitar seu olhar e lhe custava olhá-la sem recordar o sabor e toque em seus seios. Mas era capaz de ficar com as mãos longe dela e isso era o que contava. Três dias depois, jantaram com o pároco e sua mulher. Foi uma noite agradável e quando voltavam para o castelo ele se sentia um pouco bêbado. Outra semana, e estariam de volta a Londres, a salvo, longe da tentação. Mas enquanto isso... restava outra semana com Catherine. A porta de entrada estava sem chaves, como as portas de todas as casas de Skoal. Entraram juntos no vestíbulo. Ele estava a ponto de subir as escadas quando ela olhou para uma mesinha lateral. — chegaram cartas para você, carinho. Passou-lhe um pequeno pacote amarrado com barbante. Michael sentiu uma pontada de remorso ao ver o nome. Capitão Melbourne. Não gostava de nada isso de usar a identidade de Colin. De qualquer modo, o pacote era certamente para ele; em um canto tinha o cabeçalho Strathmore e a letra era de Lucien. — O que pode ser tão importante para que o envie aqui? — Algum assunto de negócios, suponho — disse Catherine tampando a boca com a mão para ocultar um bocejo. — Creio que vou dar boa noite a meu avô, se ainda estiver acordado. Subirei dentro de uns minutos. Esse era um dos muitos truques que empregavam para dar-se mutuamente intimidade para lavar-se e trocar-se de roupa. Michael subiu ao quarto, acendeu as lamparinas e rompeu barbante do pacote. Havia várias cartas e uma nota de Lucien: Michael: Pareceu-me necessário te enviar esta mensagem de seu irmão. Com ele ponho as outras cartas que lhe chegaram. Espero q ue esteja indo bem a matança de dragões. Luce. Sob a nota vinha uma carta com o cabeçalho Ashburton. Michael a sustentou com as duas mãos, olhando seu nome e a palavra «Urgente» abaixo. Embora esse Ashburton fosses seu meio irmão e não o homem que tinha acreditado seu pai, a vista da abrupta assinatura lhe produziu uma ansiedade reflexa. O velho duque jamais lhe tinha escrito se não fosse para criticá-lo ou condená-lo. Duvidava de que essa carta fosse diferente. Tentou imaginar-se o que poderia ter que lhe dizer o novo duque, que ele queria ouvir, mas não lhe ocorreu nada. Provavelmente a carta tratava de alguns assuntos legais que lhe não importavam o mínimo. Igual fez em Londres, sustentou um canto da carta sobre a chama de uma vela e esperou a que ardesse. Naquela vez tinha feito com fúria; agora fazia com a tranqüila determinação de pôr fim à conexão. Depois disso, era improvável que o novo duque lhe voltasse a escrever. Jogou a carta ardendo na lareira e olhou as outras mensagens. Tal como tinha suposto Catherine, a maioria eram de negócios, mas havia dois de Kenneth Wilding, da França. Na primeira, Kenneth lhe contava notícias do regimento e várias anedotas divertidas sobre a vida com o exército de ocupação. O melhor eram os diminutos desenhos satíricos que ilustravam suas histórias. Michael sorriu ao terminar de lê-la e a deixou à parte. Surpreso deque Kenneth lhe tivesse escrito duas cartas tão seguidas, abriu a segunda. Era uma só página, sem desenhos: Michael: Perdoe-me se me exceder dos limites da amizade, mas em Bruxelas tive a impressão de que seus sentimentos por Catherine Melbourne eram algo mais que os de um amigo. Por esse motivo pensei que lhe interessaria saber que faz várias semanas Colín Melbourne foi assassinado na rua, aparentemente por um bonapartista. Um assunto lamentável; ainda não descobriram o assassino. 138


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O incidente se silenciou por temor de que haja repercussões políticas. Eu me inteirei por acaso, ouvi de um oficial bêbado do regimento de Colín. Disse que depois do funeral Catherine voltou para a Inglaterra com Amy. Imagino que Anne e Charles Mowbry devem saber seu atual paradeiro. Logicamente não é de bom tom perseguir uma viúva quando seu marido ainda não esfriou em sua tumba, mas por Catherine vale a pena quebrar algumas normas. Até no caso de que não tenha um interesse romântico, poderia lhe convir vê-la para ver se estar precisando de ajuda. Diante a surpresa, de ninguém, Melbourne morreu com seus assuntos num caos. Se encontrar Catherine e tiver algo que eu possa fazer por ela, por favor me notifique imediatamente. Apresse-se, Kenneth. Michael ficou olhando fixamente a carta, com a sensação de que lhe tinham dado um soco no estômago. Voltou a lê-la. Podia estar Kenneth equivocado? Não era provável. Mas por que Catherine lhe tinha mentido? Tinha acreditado que havia sinceridade e amizade entre eles. Não seria a primeira vez que uma mulher o enganava. Estava paralisado olhando a carta de Kenneth quando Catherine entrou no quarto. — O lorde estava cansado — disse alegremente ao fechar a porta, — mas teve energia para me explicar que os ilhéus pagam um imposto anual em capões por cada chaminé. Fascinantes costumes. — Abriu a boca para continuar e se deteve com o cenho franzido. — Acontece alguma coisa? — Chegou uma carta de Kenneth Wilding — disse ele entre dentes. — É certo que Colin está morto? O sangue desapareceu do rosto dela deixando-a branca como mármore. Apoiou-se no respaldo de uma poltrona para não cair. — É... é certo. — Diabos! Maldita seja! — Enrugou a carta, com uma esmagadora sensação de ter sido traído. Sua linda, sua sincera Santa Catherine era uma embusteira. — por que demônios não me disse isso? Ela passou a mão tremula pelo cabelo. — Porque não queria que soubesse, logicamente. Pensei que poderia se sentir obrigado pela honra a me oferecer matrimônio porque o cuidei depois de Waterloo. Era mais simples deixá-lo pensar que Colin estava vivo. Outro golpe, quase tão inequívoco como o primeiro. — É tão horrorosa a idéia de ser minha esposa que teve que se esconder atrás de um marido morto? — perguntou em tom mordaz. — Se não quisesse, sempre podia dizer não. Ela se deixou cair na poltrona, com os ombros dobrados e o olhar em suas mãos apertadas. — Não... não era horrorosa. Era o suficientemente atraente para me tentar a aceitar, assim era melhor não me propor isso nunca. — Perdoa minha estupidez — disse ele em tom glacial. — Se pensava que podia lhe propor matrimônio e não lhe desgostava a idéia, para que a mentira? — Porque é impossível! Jamais, jamais voltarei a casar. Se fosse suficientemente tola para aceitá-lo, desgraçaria você, e seria desgraçada eu — respondeu ela com voz tremula. — Não posso ser sua esposa, Michael. Não me restou nada para dar. Desvaneceu-lhe a raiva, que foi substituída pelo desespero. — então amava tanto Colín, apesar de suas infidelidades e negligência. Ela tentou sorrir, — Não se pode passar dois anos casada com um homem sem amá-lo. Mas não o amava. A ele só lhe ocorreu um motivo para essa atitude. 139


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— Seu marido a maltratava e por isso juraste que nunca voltaria a se casar — disse lisamente. — Se já não estivesse morto, mataria-o. — Não foi assim! Colín nunca me maltratou. — Apertou os punhos. — Eu o mortifiquei muito mais do que ele jamais me mortificou. Ele olhou atentamente sua expressão atormentada. — É impossível acreditar nisso. Impossível, a verdade. — Sei que todo mundo acusava a Colín e se compadecia de mim porque era mulherengo, mas fui eu que transformei em uma farsa nosso matrimônio — disse ela em voz baixa. — Ele se comportou sempre com muita paciência. — Pelo visto sou muito lento de entendimento. Explique-me o que quer dizer. — Não... não posso. Baixou a cabeça, incapaz de olhá-lo nos olhos. Exasperado, ele se aproximou em grandes passadas e lhe levantou o rosto agarrando-a pelo queixo. — Pelo amor de Deus, Catherine, me olhe. Não acredita que me mereço uma explicação? — Sim — sussurrou ela, — mas... mas não suporto falar de meu matrimônio, nem sequer contigo. Obter informação de Catherine era como tentar extrair as raízes de um carvalho. Era o momento de tentar outro método. Acariciou-lhe o pescoço com a mão e se inclinou para beijá-la, com a esperança de que o desejo conseguisse o que não conseguiam as palavras. Durante um momento ela respondeu com ânsias desesperada. Depois se afastou, com as faces molhadas pelas lágrimas. — Não posso ser o que quer que seja! Não pode aceitar simplesmente isso? Em um recôndito de sua mente, Michael começou a ter uma vaga idéia de qual podia ser o problema. — Não, creio que não posso simplesmente aceitar isso, Catherine. Desejei-a no momento em que nos conhecemos. Deus sabe como me esforcei por negá-lo e por encontrar outra pessoa. Mas não posso. Se for ser desgraçado o resto de minha vida porque não posso tê-la, pelo menos será mais fácil se entender por que. A desolação que viu em seus olhos o fez ver o muito que a afetavam suas palavras. Supondo que sua resistência estava se debilitando, perguntou-lhe: — O problema eram as relações sexuais, não é? — Como sabe? — perguntou ela com os olhos muito abertos, impressionada. — Pareceu-me notar indícios no que disse. — ficou de joelhos diante dela para não continuar inclinado sobre ela, e segurou a mão entre as suas; tinha-a fria e tremula— : E isso explicaria por que se sente muito humilhada para falar disso. Diga-me por que considera impensável o matrimônio. Duvido de que possa me dizer alguma coisa que me escandalize. Ela se acomodou, feito um novelo, em um canto da poltrona, frágil como uma menina, com a mão apertada sobre o diafragma. — A intimidade conjugal é... é horrorosamente dolorosa para mim— disse em um áspero sussurro. — É tremendamente injusto. Acho os homens atraentes, sinto desejos como qualquer mulher normal. Mas a consumação é atroz. E pensar que era anormal devia ser inclusive pior que a dor física, pensou ele. — Consultou alguma vez com um médico? — Pensei — disse ela com amargo sorriso, — mas o que sabem os médicos sobre como parecem as mulheres? Não podia suportar a idéia de que um desconhecido me machucasse em troca do duvidoso prazer de ouvir o que já sabia: que sou irremediavelmente disforme. — Mas deu a luz a uma filha, portanto não pode ser totalmente anormal — disse ele, 140


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pensativo. — Diminuiu a dor depois que nasceu Amy? Ela desviou a vista. — Fiquei grávida muito pouco depois que nos casamos e aproveitei isso como pretexto para proibir Colín que se metesse em minha cama. Nunca mais... nunca mais voltei ser esposa para ele. — Viveram juntos doze anos sem relações conjugais? — exclamou ele sem poder ocultar sua surpresa. Ela esfregou cansativamente as têmporas. — Colín merecia mais que eu que o chamassem de santo. Conhecemo-nos quando eu tinha dezesseis anos e ele vinte e um. Foi o típico caso de amor juvenil, tremendamente romântico e de raízes não muito profundas. Em uma situação normal, a chama teria se apagado muito em breve. Colin teria se assanhado com outra cara bonita, eu teria chorado algumas semanas e depois teria seguido com minha vida, um pouco mais sábia.— Fez uma rouca inspiração. — Mas meus pais morreram no incêndio me deixando sozinha no mundo. Colín galantemente me propôs matrimônio e eu aceitei sem pensar duas vezes. Supunha que ia desfrutar de... do lado físico do matrimônio. Certamente desfrutava dos beijos às escondidas que tinha experimentado. Mas... Pensou em sua noite de bodas e estremeceu. Depois dos goles e piadas sujas habituais, ele chegou à cama com impaciente ardor a afirmar seus direitos de marido. Embora nervosa, ela estava bem disposta; mas jamais imaginou essa atroz e destroçante dor nem a horrorosa sensação de violação. Tampouco tinha imaginado que teria que conciliar o sono chorando enquanto seu marido depois de tê-la desvirginado roncava placidamente junto a ela. — o melhor que poderia dizer de minha noite de núpcias é que acabou rápido. Observou-lhe atentamente o rosto. — A primeira vez está acostumada ser dolorosa para a mulher. — Depois não foi melhor. Na verdade, as coisas pioraram. O... os prazeres da carne eram muito importantes para o Colin. Supunha que em troca de entregar sua lib erdade teria uma companheira de cama alegre e entusiasta. — Recordou tristemente a emocionante época quando acabara de conhecer Colin e acreditava que fosse normal. — Apoiando-se em meu comportamento quando estava me cortejando, tinha todos os motivos para supor isso. O que aconteceu em troca foi que sempre que me tocava eu punha-me a chorar. — Isso tem que ter sido terrível para os dois — comentou Michael com profunda compaixão. — Era horrível — exclamou ela com veemência. — Jamais o repeli, mas me achava tão insatisfatória que muito em breve deixou de me pedir isso Os dois nos sentimos aliviados quando fiquei grávida. Sem falar jamais, inventamo-nos uma espécie de pacto silencioso que fizesse possível nosso matrimônio. — Ou seja, que você sabia das outras mulheres, mas alguma vez se queixou? — me queixar? — sorriu sem humor. — Lhes estava agradecida. Enquanto ele fosse feliz eu não me sentiria tão culpada. Fazia todo o possível por fazer um lar agradável para ele e para Amy. Em troca, ele nos mantinha e não me atormentava por minha falha. Na verdade, tirei a melhor parte do trato. Colin foi um marido e um pai decente. Era despreocupado em muitos sentidos, mas não nos abandonou e jamais permitiu que outro homem me incomodasse. Ninguém soube jamais a farsa que era nosso matrimônio. Até agora. — Havia benefícios para ele — disse mordazmente Michael. — Colin era um mulherengo inato. Em você encontrou à esposa perfeita, uma mulher linda e complacente que era a inveja de todos os homens que conhecia. Jamais lhe repreendia por sua libertinagem, e ao estar casado nunca teve que preocupar-se de que outras mulheres tentassem manipulá-lo para que se casasse com elas. Para alguns homens isso seria um céu. — É possível que isso fosse certo, mas resta o fato de que fui eu que falhei em nosso 141


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matrimônio. Não sou apta para ser uma esposa — muito menos para ser a esposa do homem que amava. — Agora compreende por que não posso me casar contigo nem com ninguém. É impossível que possa desejar uma mulher que não é capaz de cumprir o dever mais fundamental de uma esposa. — Considerando o muito que a desejo isso seria difícil. E, entretanto... — titubeou e logo acrescentou lentamente, — creio que inclusive assim me casaria contigo se você me aceitasse. — Não pode falar a sério — disse ela com os olhos muito abertos. — Não? — acariciou-lhe a face com a mão quente. — Desfruto estando contigo, Catherine. Quanto à parte física, talvez pudéssemos solucionar de um modo satisfatório para os dois. Ela apertou os lábios. — Aceitava as infidelidades de Colin, mas as detestava. Não voltarei a aceitar um matrimônio assim. — Não era o adultério o que tinha em mente. — Deslizou-lhe brandamente os dedos pela orelha e o pescoço, lhe produzindo um estremecimento de prazer em todo o corpo. — O coito não é a única maneira de encontrar satisfação física. Não a acho fria por natureza, de modo que poderia aprender a desfrutar de algumas outras possibilidades. — Parece-me que não o entendo — lhe subiu calor ao rosto. — Sou ignorante além de disforme. — A ignorância se pode curar e é possível que não seja disforme absolutamente. É possível que a dor que experimentou fosse conseqüência da juventude e inexperiência e de uma certa insensibilidade por parte de seu jovem marido. — Procurou mais palavras, mas logo moveu a cabeça exasperado. — A sociedade educada não fala destes temas, assim tem que me perdoe se disser coisas que a incomodem. Digo claramente, que se força o coito muito cedo, vai ser desagradável para os dois, sobre tudo para a mulher. Uma vez insta lado o medo, poderia ter ficado presa em um círculo vicioso, com o corpo tão seco e rígido que experimentava dor todas as vez. Quanto mais dor, mais medo. — Certamente era algo mais que isso — disse ela duvidosa. — Talvez — admitiu ele. — Mas até no caso de que tivesse a vagina menor que o normal quando tinha dezesseis anos, ter um filho produz mudanças permanentes. É muito possível que já não experimente a dor que sentia ao princípio de seu matrimônio. Essa era uma teoria surpreendente, quase aterradora em suas implicações. Ser capaz de deitar-se com um homem sem sofrer; ter outro filho; ser normal. Sem atrever-se a albergar esperanças, disse-lhe: — vais dizer que só há uma maneira de saber se estiver certo. Michael lhe dirigiu um longo e franco olhar. — Sei que é pedir muito. Está disposta a tentar? — Era mais fácil entrar em um campo de batalha durante um combate— disse ela com uma risada tremula. — Mas... Deus santo, Michael, desejo tanto acreditar que tem razão, que sou uma mulher normal, que sou capaz de fazer o que fazem quase todas as mulheres que existem. Ele voltou a lhe agarrar a mão. Ela olhou para baixo e viu a tênue cicatriz da ferida de sabre, e o tamanho e poder dos dedos quentes que seguravam os seus. Que grande, que masculino era Michael. Essa percepção lhe ativou a repentina e horrorosa lembrança de ser uma coisa impotente presa sob um pesado corpo masculino, de uma dor e uma violência degradantes. Meteu o punho na boca e mordeu os nódulos. — Mas... o medo é muito profundo, Michael. — É claro que é profundo. Não se criou em uma hora e não vai se sanar em uma hora — acrescentou, tranqüilizador. — Há muitos, muitos tipos de prazer sensual além do coito. Precisa 142


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aprender a desfrutá-los. Só quando tiver feito isso será o momento da intimidade final. Ela se sentiu como um passarinho ao qual dizem que é hora de abandonar o ninho. E a única coisa que tinha que fazer era saltar de seu agradável e seguro ramo e aprenderia a voar. A menos, claro, que suas asas não estivessem bem e caísse ao solo destroçando todos os ossos do corpo. Ao ver sua indecisão, lhe beijou brandamente o interior do pulso. Catherine notou que lhe acelerava o pulso e um insidioso calor lhe percorria todo o corpo. — Prometo que não farei nada, nada absolutamente, que você não goste ou que não queira — disse docemente ele. — Se sentir-se incômoda em qualquer momento, simplesmente me diga que me detenha. Pode acreditar que sou capaz de fazer isso? Confia em mim? Seus ardentes olhos verdes a olharam com uma intensidade que chegou a os frios e desolados lugares de seu interior profundo. Comovida se deu conta de que desde que se conheciam, ele sempre tinha reprimido seu poder sensual inato porque a considerava inalcançável, proibida. Mas isso já não era certo. Ele a desejava e estava dizendo com todo o encanto sutil e silencioso que podia empregar um homem para cativar uma mulher. Diante da realidade de sua potente masculinidade ela não era mais que uma mariposa voando até a chama, em busca de um momento transcendente de alegria antes de ser consumida. — Sim, Michael, confio em você — disse com voz rouca. — Faz comigo o que queira. Capítulo 27 Com os olhos de Michael se iniciou um sorriso que se foi estendendo por seu rosto. — Me alegro muito, e creio que não vai lamentar. Bem poderíamos começar esta noite, antes que tenha a oportunidade desfazer um nó de preocupação. Anima-se? — Esta noite? — disse ela, tensa. — Só a primeira lição —assegurou ele, tranqüilizador. — Acabará no momento que quiser. Levantou-a da poltrona e a segurou em seus braços, lhe acariciando meigamente a cabeça, que tinha apoiado em seu ombro. — Isso é muito calmante — murmurou ela quando seus fortes dedos lhe friccionaram a nuca. — Posto que você gosta que a acariciem, creio que vou dar o que os franceses chamam uma massagem — disse ele afavelmente. — Me deixa que use essa loção de rosas para a pele, para que cheire tão bem para comê-la? — Minha loção espanhola? — perguntou ela duvidosa. Ele se pôs a rir e ela sentiu as vibrações de sua risada sob a orelha. — Acredita que tenha ficado louco, não é? Não se preocupe, prometo que vai gostar. Vamos transformar este quarto em um delicioso templo de iniqüidade, absolutamente indolor. Primeiro acenderei o fogo para que o quarto esteja com boa temperatura para sua pele nua. — Soltou-a e se dirigiu a lareira. —Dispa-se e se envolva em um lençol. E solte o cabelo. Confusa, ela fez como ordenava. Quando saiu detrás da cortina, com o cabelo escovado e envolta em um lençol que tinha pego no armário, o fogo já estava aceso e diante da lareira Michael fazia uma branda maca no chão, com mantas dobradas. Também havia se trocado; usava um robe verde com uma faixa amarrada à cintura. Caía aberto sobre o peito, revelando uma mancha de pêlos negros e planos de músculos duros. Quando esteve cuidando dele em Bruxelas tinha chegado a conhecer muito bem seu corpo, mas sempre tinha t entado pensar nele só como paciente. Pela primeira vez se permitiu o prazer de admirá-lo francamente. Era lindo, forte e bem feito, absolutamente masculino... A idéia de render-se a essa força produziu calafrios. Voltou-se e em silêncio foi apanhar o frasco de loção na cômoda. Esquadrinhou-lhe o rosto com olhar perspicaz enquanto lhe passava o 143


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frasco, — Temos um longo caminho por andar, não é? Vamos começar por um só passo pequeno. O longe que chegar a viagem depende de você. Esticou a outra mão e ela a agarrou timidamente. Atraiu-a para ele para beijá-la. O beijo terno e sem exigências desfez o nó de medo em seu interior. Afrouxaram-lhe os músculos tensos quando sua mão deslizou lentamente por suas costas descrevendo círculos. — Sabor maravilhoso — murmurou ele. — A néctar, a música. — Isso não tem sentido — disse ela rindo. — O sentido comum não tem capacidade entre estas paredes esta noite — Lhe rodeou a cintura com o braço e a levou para a maca. — se deite sobre seus lindos seios e eu a cobrirei com o lençol. Depois lhe darei uma massagem, começando pelas costas. Ela se esticou de barriga para baixo. Arrumou-lhe o lençol em cima e ela sentiu o ligeiro peso do tecido sobre sua pele nua. Sentia-se nervosa, absolutamente consciente de sua nudez e vulnerabilidade. — É fácil saber quando está nervosa — Se ajoelhou junto a ela e jogou para um lado a mecha de cabelo; depois abriu o frasco de loção, colocou um pouco do líquido de aroma de rosas e esfregou as palmas para esquentá-lo. — fica tão dura como um pedaço de pão do exército. Um de meus soldados se salvou de morrer porque a bala pegou no pedaço de pão que levava no bolso. Nenhuma bala francesa conseguiu penetrar o maldito pão. Quando ela sorriu, desceu o lençol até a cintura e começou a lhe massagear as costas com fricções lentas e potentes. Suas grandes mãos deslizavam brandamente por sua pele, amassando e abrandando os músculos tensos. Tinha razão, era muito agra dável. Gostava muitíssimo. Que diferente de Colin era Michael. Embora seu marido nunca tenha sido deliberadamente cruel, era vigoroso e sem complicações e gostava das mulheres que respondiam com igual desenvoltura. Jamais a havia tocado com essa suave sensualidade. O quarto estava impregnado de um calor tropical, o aroma da loção e a fragrância das flores frescas que lhes punham cada dia. O mundo foi se estreitando até ficar só o contato físico, o aroma, o calor e eles dois. Michael variava os movimentos, trabalhando às vezes com as palmas, outras com as pontas dos dedos ou a parte terna da mão, lhe tonificando o corpo. Deu especial atenção à nuca, dissolvendo a férrea tensão. Ela voltou a esticar os músculos quando sentiu suas mãos sob os braços, seus polegares lhe roçando os lados dos seios. Mas achou maravilhosos os toques tangenciais. Ao notar que não tocava mais à frente, voltou a relaxar. Massageou-lhe as mãos, dedo por dedo; um prazer delicioso. Ele tinha razão; havia um incrível número de prazeres sensuais que ela desconhecia totalmente. Não se intimidou quando ele desceu outro tanto o lençol. — Tem o corpo mais lindo que vi em minha vida — disse ele, com tom não tão imperturbável como até esse momento. Suas mãos lhe acariciaram as nádegas. — Um perfeito par de quadris tem a forma parecida com um coração. Há todo tipo de simbolismos nisso não acredita? Começou a lhe amassar as nádegas, moldando as curvas com as palmas. Pelo visto sabia exatamente que pressão aplicar e como encontrar os nós de tensão oc ultos. O contraste entre fricções superficiais e compressões profundas transformaram em cera os músculos. — Onde aprendeu a fazer isto? — perguntou ela. — Ou é melhor que não saiba? — Minha professora foi uma encantadora senhora francesa que conheci faz muitos anos, quando acabava de sair da universidade. Sophie esteve na Turquia e estava muito impressionada pelo que aprendeu ali nos banheiros das mulheres. — Friccionou-lhe a cintura com a parte terna 144


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da mão. — Para ela a missão de sua vida era propagar a sabedoria oriental no Ocidente. — Uma mulher afortunada — comentou ela, esticando-se com prazer. —Nem todo mundo chega a ter um objetivo tão nobre. Desceu-lhe as mãos pelas pernas com fricções longas, dos quadris até os tornozelos. Ela notou um claro componente sexual em seu prazer. Voltou-lhe o desejo que a tinha assustado antes, lhe percorrendo as pernas como mel. Então ele deslizou seus dedos por entre as coxas com tenra intimidade. Ela se paralisou, abafando o fio de estremecida excitação em uma maré de medo. — Para, por favor. — É claro. Retirou a mão e se pôs a massagear as panturrilhas até chegar aos tornozelos. Ela relaxou e muito em breve se inteirou de que os dedos de seus pés eram tão maravilhosamente sensíveis como os de suas mãos. Quando a teve reduzida à branda consistência de massa para pão, cobriu-a até os ombros com o lençol. — Vire-se se quiser que massageie o resto. Uma hora antes haveria se sentido muito violenta e assustada para mostrar-se assim. Mas nesse momento se virou. Ao fazê-lo, deslizou-se o lençol e lhe deixou um seio descoberto. Michael não se moveu, mas Fechou os olhos e ficou estranhamente imóvel. — Não sei até onde posso chegar esta noite — disse ela em voz baixa, — mas quero descobrir. — Continuemos então. — Tragou saliva ao lhe baixar o lençol até a cintura. — Seus seios são soberbos. Belamente cheios e femininos — Abriu a boca para dizer mais e logo moveu a cabeça. — Não temos muitas palavras em inglês. Não há nada mais intenso que lindo. E as cores, fazem-nos falta mais tinta. Como chamaria o matiz destes? — Agarrou-lhe ambos os mamilos, entre o polegar e o indicador, e os apertou com uma pressão deliciosamente calculada. — Rosa torrado? Ouro avermelhado? Os mamilos se endureceram e uma de onda de calor percorreu todo seu corpo. — Torrado, rosa, não me importa, enquanto me toque assim. Ele tomou a palavra, massageando os mamilos até que ela teve todo o corpo vibrando de alarmante prazer. — Sentiria-se muito mal se a beijasse? — perguntou ele com voz rouca. — Não — sussurrou ela. — Não, não, absolutamente. Ele se inclinou e se apoderou de sua boca. O beijo foi profundo, profundo, e a embriagadora carícia de sua língua lhe aumentou o febril desejo. Quando ele começou a lhe beijar o pescoço, com beijos suaves como carícias de uma pluma, ela levantou as mãos para seu peito e as introduziu timidamente sob o robe. Ele abafou um gemido e lhe estremeceram os músculos ante o contato. Ela foi baixando as mãos, acariciando os pêlos faziam cócegas em sua palma e seus dedos encontraram saliências no tecido duro. — Tem mais cicatrize que ninguém que tenha conhecido —disse com tristeza. — É um milagre que esteja vivo e bem. — Não o estaria se não fora por você. Ele foi deslizando seus lábios para baixo, pela clavícula e pela cremosa redo ndeza de seu seio. A pressão de sua boca sobre o mamilo lhe aguilhoou uma sensação de ânsias na área da entre - perna, parte de seu corpo em que ela tentava não pensar jamais. Era uma sensação temível, mas tão sedutora como a serpente do Éden. Ele mudou de posição até ficar deitado todo comprimento junto a ela. Bruscamente esse prazer estremecido e temeroso que percebia ela, converteu-se em alarme quando sentiu a ameaçadora pressão do membro masculino sobre a coxa. Esticou-se, angustiada ao recordar para 145


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onde conduzia isso. Ele lançou uma maldição entre dentes e ficou de costas. — Sinto muito, Catherine. — Ofegante passou o pulso pela testa. — Maldito seja, já cheguei quase ao limite de meu controle. Se tivermos que seguir, terei que eliminar a ameaça deste meu mal educado órgão. Ela abriu os olhos sobressaltada. — O que? — Não refiro a nada permanente — riu ele. — Tal como me sinto neste momento, custaria muito pouco me deixar inofensivo, sobre tudo se você me ajudar. Poderia fazê-lo? Estava lhe pondo fácil negar-se. Mas era hora d que ela assumisse algum risco. Para que houvesse uma verdadeira relação sexual ela tinha que dar além de receber. — O que quer que faça? Em silencio lhe segurou a mão a colocou dentro de sua bata colocando a palma em cima do pênis. Ela desejou retirá-la bruscamente ao apalpar o tamanho e a evidente masculinidade que vibrava sob sua mão. «Dor, violação, uma arma cruel e arrogante.» Mas esse era Michael, não Colin; além disso, era um homem, não um jovem brusco e insensível. Foi apertando, pouco a pouco. O excitado membro se sacudiu violentamente e o corpo do Michael ficou rígido. — Isto... isto não vai durar muito — conseguiu murmurar. Ela jamais se deu conta de que o ato sexual fazia tão vulnerável o homem como à mulher, e a surpreendeu compreender com que facilidade podia afetá-lo. Apertou a mão com mais confiança. Ele se arqueou contra a maca, com o rosto brilhante de suor, tentando amortecer sua reação. Ela fechou a mão sobre a cabeça do pênis, esfregando ao mesmo tempo o lado com o polegar. — Oooh, Catherine! Estremeceu-se inteiro e o membro se moveu violentamente. Apertou as mãos e o sêmen ao sair se esparramou na mão dela. Era como um vulcão abafado, com reprimida violência na tensão de seus músculos, no fôlego de seu peito e sua respiração ofegante. Um medo refletivo lhe subiu à garganta, afogando-a. Angustiada tratou de dominá-lo. Não sentia nenhuma dor, não tinha feito nenhum mal a ela, não era uma vítima. «Não há nenhum motivo para temer.» Quando do comprido corpo dele tinha desaparecido toda rigidez, ela já tinha recuperado a calma. Ele jogou para trás o cabelo e lhe colocou a quente mão no ombro. — Achou desagradável? Ela pensou quantos homens seriam tão sensíveis. — um pouco. Acasalar é um assunto selvagem, primitivo. — Apertou com muita suavidade. — Mas o que parecia uma arma faz uns minutos agora está tão inofensivo como um pintinho recém-nascido. — Isso me põe em meu lugar — sorriu ele. Com uma ponta do lençol desprezada ela limpou a mão e limpou ele. O medo tinha desaparecido, deixando uma triste sensação de perda. Esse líquido viscoso era semente de vida. Se tivesse encontrado o valor para acasalar verdadeiramente com ele, poderiam ter feito um bebê. Embora tivesse amado a qualquer filho, ter um de Michael seria alegria pura. Ele a atraiu para si, aliviando com suas mãos qualquer resíduo de desagrado ou moléstia. Como teria aprendido essa sinceridade e amabilidade? Do modo difícil, supôs. — Supondo que a isto referia quando disse que é possível para um homem encontrar satisfação sem coito. 146


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— Sim, embora não é só para homens. — Acariciou-lhe o sob ventre com o dorso da mão. — experimentaste alguma vez o equivalente feminino do que me aconteceu? — Como pode acontecer algo assim a uma mulher? — perguntou ela olhando-o perplexa. A diversão que viu em seus olhos lhe disse que acaba de delatar uma lamentável ignorância. Mas sua voz foi tenra ao lhe responder: — Embora os mecanismos sejam diferentes, creio que as sensações são muito similares. Ela escondeu o rosto em seu ombro. — segui o exército, pari uma filha e atendi moribundos. É vergonhoso que saiba tão pouco a respeito de meu corpo. — A falta de conhecimento se cura facilmente — disse ele com tranqüilidade. — me permita que lhe demonstre isso. — inclinou-se a beijá-la. Voltou o desejo intermitente que tinha experiente antes, mas desta vez sem o medo subjacente. Uma coisa sim sabia, que a potências sexual masculina demorava um tempo em voltar. Isso significava que podia desfrutar de suas carícias sem ansiedade. Apaziguado já o desejo dele, notou uma sutil diferença em seu abraço, um erotismo delicioso, mais acalmado. Ela respondeu com avidez. Durante toda sua vida adulta tinha reprimido seus apetites naturais. Por fim podia lhes dar rédea solta, com o homem que amava. Ele foi baixando a mão lhe acariciando a curva de seu abdômen. Sentiu arder de excitação todo seu corpo quando seus dedos lhe roçaram os sedosos cachos escuros e lhe tocaram a parte secreta mais abaixo. Reteve o fôlego, surpreendida. — Devo me deter? — murmurou ele. — Não. É... é agradável. Ele voltou a beijá-la na boca. Um prazer culpado a estremeceu quando os dedos dele exploraram mais para dentro. Notou que as dobras se molhavam com a carícia. Em algum canto remoto de sua mente pensou se não ser teria algo errado, porque isso não tinha acontecido jamais antes. A perita mão encontrou lugares ocultos que estalaram em sensações. Jogou a cabeça para trás e inspirou baforadas de ar para seus pulmões. Ele introduziu delicadamente um dedo no lugar onde antes só tinha sentido dor. Esta vez sentiu excitação e um estranho vazio, desejoso de encherse. Perdido já o controle apertou os lábios da vulva contra sua mão acariciante. Sentiu urgência, exigência. — Céu misericordioso — exclamou abafadamente. O polegar esfregou uma pequena protuberância de aterradora sensibilidade. De repente, com impressionante rapidez, todo seu corpo vibrou com ardentes espasmos; agitou-se e contorceu-se desesperadamente, apertando fortemente os braços ao redor dele. Rapidamente se apagaram as chamas, lhe deixando o corpo flácido. — meu Deus — suspirou. — Isso era o que queria dizer? — Exatamente. — Beijou-lhe a testa. — Achou desagradável? Ela soltou uma risada abafada. — É bastante inquietante que o corpo se descontrole, mas não lamento. Ag ora entendo por que as pessoas se dão a tanto trabalho. Também entendeu, como nunca antes, o egoísmo de Colín no leito conjugal. Induzido por esses impulsos não era de estranhar que parecesse cruel. Era fácil perder-se na luxúria; como ela se perdeu no medo. — Lamento terrivelmente ter-lhe mentido — disse de repente. — Detestava fazê-lo, mas pensei que não tinha outra alternativa. Acreditava que jamais seria capaz de falar do que me acontecia. 147


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— Perdoado e esquecido. — Michael ficou de lado e a aproximou com um braço, acariciando sua hipersensível pele com o veludo de seu robe. —Cada vez creio menos que seja anormal; quer dizer, além de ser anormalmente maravilhosa. — Faz-me sentir tão bem. — Esfregou o rosto contra o dele, como uma gata. — Como aprendeu a ser tão pormenorizado? — Cometendo erros verdadeiramente abomináveis — suspirou ele, diminuída um pouco sua felicidade. — Uma vez me disse que amou ou se obcecou por uma mulher casada — disse ela, hesitante. — Esse foi um desses erros? — O pior. — Detestava falar dessa loucura criminal, mas era justo que falasse, tendo obrigado Catherine a revelar sua vergonha mais profunda. — Era a esposa de um amigo íntimo. Terrivelmente bela e absolutamente inescrupulosa, embora isso só soubesse anos mais tarde. Traiu a todos os homens que a amaram. Por pura crueldade, fez todo o possível para envenenar a amizade entre seu marido e eu, e esteve a ponto de conseguir. Fez-lhe um nó na garganta ao recordar esses anos de inferno, e o filho que Caroline levava no ventre quando morreu, o filho que provavelmente era dele. Essa lembrança o atormentava. — Disse-me que temia que seu marido a matasse, e que eu devia vingá-la se morresse repentinamente. Pensando que exagerava, aceitei. Então morreu em um acidente suspeito, e eu fiquei diante do dilema de matar meu amigo ou quebrar o juramento que tinha feito à mulher que amava. — Que horror! — Catherine se levantou e se apoiou no cotovelo, refletindo angústia em seu rosto. — Mas não o fez, não é? — Isso foi mais por debilidade que por sabedoria — disse ele envergonhado. — Fui à guerra para fugir, meio esperando que me matassem e não ter que cumprir jamais essa promessa. Mas ao final tive que retornar a casa. Em minha loucura, estive a um fio de matar meu amigo. Se não tivesse sido pelo espírito generoso do homem ao qual tinha traído, teria acabado nos destroçando aos dois, e me condenando por uma eternidade. — Mas não o fez. — Beijou-o com ansiosa doçura, deixando cair sobre seu pescoço a massa sedosa de seus cabelos. — Por isso, estarei eternamente agradecida. Ninguém poderia ter feito por mim o que você fez, Michael. Obrigado, do mais profundo de minha alma. Por oferecer a Catherine a amabilidade e paciência que não recebeu quando estava recém casada, recebia uma recompensa mil vezes melhor. O que tinha feito para merecer essa sorte? Jurou que jamais ela teria que arrepender-se de ter acreditado nele. — Não acabamos a massagem — disse. — Gostaria de mais ou preferiria dormir? Ela ficou de costas e se esticou com inocente provocação. — Acabe a massagem. Quero aprender como se faz, para poder lhe dar uma. Surpreso, ele notou um início de excitação. Seus longos anos de celibato, combinados com a apaixonada atração por Catherine, garantiam-lhe uma rápida recuperação. Agarrou o frasco e esquentou um pouco de loção entre as mãos. Depois reatou a tarefa que era puro prazer. À luz do lar, o corpo dela se via como nata morna, seus cabelos uma sedosa nuvem escura que lhe emoldurava o rosto. Deslizou as mãos pelos ombros e braços, logo desceu pelo tórax até a cintura. Ela tinha os olhos fechados, mas sorriu sonhadora quando as pontas de seus dedos seguiram os contornos de suas costelas. Tomou seu tempo, repetindo uma e outra vez cada fricção, dando especial atenção a seus magníficos seios. Ela já não reagiu receosa quando a tocou sob a cintura. Boa coisa era que não tirou o robe, assim ela não se dava conta de que tinha deixado de ser um inofensivo pintinho. Sentou-se a seus pés e lhe aplicou uma fricção suave e vibratória nas pernas. Ela fez um 148


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ronrono abafado. Levantando-lhe a perna esquerda e flexionando-a no joelho, fez-lhe fricções circulares na coxa com ambas as mãos. A loção lhe permitia deslizar facilmente as mãos pela lisa pele. Ela riu um pouco quando fez a perna direita. — Sinto-me como um cordeiro ao qual estão engordurando para pô-lo a assar para o jantar. — Não é má idéia. Creio que agora a vou saborear um pouco. Inclinou-se e lhe lambeu a lisa pele do abdômen, descrevendo atormentadores círculos ao redor do umbigo com a língua. — Como é possível que me sinta assim outra vez, tão depressa? — exclamou ela, arrancada da languidez e totalmente avivada. — Algumas mulheres têm a capacidade de chegar ao orgasmo várias vezes em rápida sucessão — explicou ele. — Talvez essa é a forma como a natureza compensa o fato de que as mulheres demoram mais em chegar ali. Jogou o ar morno de sua expiração sobre a suave mata de pêlos da entre perna. Ela dobrou os dedos das mãos. — Isso me parece muito depravado. — Pois não o é — respondeu ele, afavelmente. — Mas se não quiser, não sigo. Ela agarrou fortemente a manta dobrada, à altura de seus quadris. — Creio... creio que prefiro ser depravada. Muitas vezes odiava ser Santa Catherine. Ele lhe beijou o interior da coxa, produzindo ondas de reações nos lugares extraordinariamente sensíveis que tinha descoberto antes. Seus lábios avançaram firmes para cima, e mais acima, até tocar com sua ardente boca seus lugares mais secretos. Abafou uma exclamação, comocionada. Ele introduziu a língua entre as delicadas dobra s femininas, lhe produzindo um prazer indescritível, mais intenso que qualquer outra sensação que houvesse sentido antes, além da dor. Soltou um gemido, um som comprido, rouco, estremecido. Perdida na sensação, compreendeu que depois dessa noite jamais voltaria a ser a mesma. A sóbria Santa Catherine tinha desaparecido para sempre, consumida pelas chamas do êxtase. Mas mesmo assim, flutuando nos limites da dissolução, sentia uma estranha fome, uma sensação de vazio, de não estar completa. Ele substituiu a boca pela mão, e lhe introduziu os dedos, atormentadores, inflamando mais seu desejo. Emitiu um gemido de protesto quando ele se deteve. Um instante depois, voltou a carícia, empurrando para dentro com um tipo de pressão nova, contundente. Com outra dilaceradora comoção compreendeu o que ele estava fazendo. Abriu os olhos e o olhou. Ele estava em cima dela, firmado nos cotovelos, e viu o tremor de seus largos ombros e braços. Olharam-se nos olhos. Nos olhos dele havia uma pergunta, enquanto estava detido no lado da posse total. Desprezando a lembrança dessas outras vezes terríveis, fez um assentimento, débil, temeroso. Seus seios subiam e baixavam, frenéticos, enquanto esperava a atroz dor. Mas quando ele a penetrou, não sentiu nenhuma dor; só sentiu um estiramento não desagradável e uma deliciosa fricção, à medida que ele avançava para dentro, centímetro a centímetro. — Esta bem? — ofegou ele quando estava totalmente enterrado nela. — Sim — respondeu, com os olhos muito abertos e surpreendidos. — Sim! Cautelosamente, levantou os quadris, arqueando-se, apertando-se contra ele. Os movimentos dele dentro lhe produziam um prazer assombroso. Isso era o que tinha desejado para encher seu vazio; essa união dedos corpos para serem um durante um breve momento. Com o rosto radiante de alegria o rodeou com os braços, apertando contra ela todo o comprimento de seu corpo. — Sim, sim, sim! 149


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Voltou a mover os quadris, desta vez com mais força e mais rápido, para que ele a penetrasse mais profundamente. Emitindo um rouco gemido ele a rodeou com seus braços e começou a investir sem controle. Desta vez ela não era sua prisioneira, a não ser sua companheira na loucura. A excitação foi aumentando, aumentando, ameaçando lhe consumir a alma. Aferrou-se a ele como a uma fonte de segurança em um mundo enlouquecido. A excitação lhe avivou todo o corpo em gloriosa loucura, rasgando-a com esmagadora força. Ele se esvaziou nela, enquanto ela se retorcia contra ele, estremecida. Essa era a verdadeira satisfação, que superava com muito o simples alívio físico que lhe ensinou antes, como a chama do sol supera a de uma vela. Ela era dele, ele era dela. Seu homem, seu amor, seu companheiro. Depois da turbulência os dois ficaram adormecidos. Michael despertou quando acabou o fogo na lareira e convenceu à adormecida Catherine de ir para cama. Ela se deitou de boa vontade e imediatamente se pegou a ele, tentando estar tão perto quanto fosse humanamente possível. — Tem valido a pena esperar seis anos — disse ele sorrindo e lhe acariciando a cabeça. — Seis anos? — murmurou ela com voz sonolenta, entreabrindo os olhos. — Esse é o tempo transcorrido da última vez que me deitei com uma mulher. Ela despertou totalmente, com os olhos muito abertos de surpresa. — foste celibatário desde essa horrível aventura com a mulher casada? Ele assentiu. — A princípio parecia um caos emocional, não estava em forma para ser bom companheiro de cama para ninguém. Ao celibato contribuiu também o fato de que após, a metade do tempo passei me recuperando de feridas, ou de febre ou de estar nas terras ermas da Espanha, ou de alguma outra maldita coisa. — Beijou-lhe a ponta do nariz. — Além disso, não tinha conhecido ninguém como você. — Alegra-me que haja passado tanto tempo — disse ela docemente. —Isso significa que talvez esta noite foi um pouco especial você. Isso espero, porque para mim foi milagrosa. — Esta noite foi igualmente especial para mim — murmurou ele. Tão especial que não tinha palavras para descrevê-la. Continuou acariciando-a até que ela voltou a dormir. Era extraordinária a transformação que tinha experimentado; essa era a mulher apaixonada e amante que Catherine estava destinada a ser. Desejou continuar acordado para saborear mais essa doçura, mas estava muito cansado. Dormiu, mas logo despertou sobressaltado, coberto de suor.«Ela não é para mim.» Essa alegria era muito boa para durar. No passado, sempre sua felicidade tinha sido esmagada por algum golpe inesperado. Energicamente se disse que esses pensamentos eram pura superstição. O que podia interporse entre ele e Catherine? Mas demorou bastante em voltar a conciliar o sono. capítulo 28 Pela janela entrava a luz perolada da manhã quando Catherine despertou e comprovou que tinha a cabeça apoiada sobre o ombro de Michael e o braço sobre seu peito. Ele também estava acordado. Em seus olhos viu um certo receio, como se duvidasse do que sentiria ela a respeito dos acontecimentos da noite anterior. — Não foi um sonho, não é? — disse-lhe sorrindo. — A experiência mais real de minha vida — sorriu ele também, já depravado. — Não sente 150


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nenhum pesar? — Nem o mais mínimo. — Fez uma careta. — O que lamento é não ter sabido antes que não era defeituosa sem remédio. Não vai ser fácil desembaraçar o enredo que armei com meu engano. — Isso não tem por que fazer-se imediatamente. Espera um pouco. Um dos dois poderia ter um relâmpago de inspiração se pensarmos durante uns dias. E falando de enredos — acrescentou, — Kenneth me diz em sua carta que Colin a deixou com um bom número de problemas. — Isso é calcular por baixo. Quando nos casamos, o dois tinha um pouco de dinheiro de família, mas isso acabou faz muito tempo. Só quando morreu inteirei de quão ruim estavam as coisas. A maioria de seus credores do regimento estiveram dispostos a passar por cima suas dívidas de jogo, mas havia algumas fatura de comerciantes que tinha que pagar antes de vir da França. — Suspirou. — O pior de tudo é que tinha deixado grávida uma de suas amantes, uma criada. Que desventurado assunto. A palavra desventurada não chegava a descrever seus sentimentos quando se inteirou da notícia. Ficou de costas e contemplou o teto. — Marie era uma garota camponesa que não tinha idéia sobre o que fazer. Disse-lhe que voltasse para casa de seus pais e dissesse que acabava de ficar viúva, depois de um breve tem po de casada. Uma herança podia fazer a história mais acreditável, assim vendi as pérolas de minha mãe e dei a metade do dinheiro a ela. Com esse dinheiro como dote, é possível que possa voltar a casar e criar bem seu filho. Ele arqueou as sobrancelhas. — Nunca vai se liberar do apelido de Santa Catherine se continua fazendo as coisas assim. — Não podia deixar morrer de fome à garota e seu bebê, não é? Era o mínimo que podia fazer pelo Colin. — Uma sombra de culpabilidade lhe atravessou o rosto. — Deus sabe que não fui uma boa esposa para ele. — Tem que deixar de se atormentar, Catherine —disse ele afavelmente. — Agora que sei toda a história, sinto um enorme respeito pela dignidade que tiveram você e Colin numa situação difícil. E embora fossem muito incompatíveis, seu matrimônio produziu Amy. Seguro que nenhum dos dois lamentou isso. Michael tinha encontrado a maneira perfeita de dissipar seus sentimentos de culpa. — Tem razão, Colin amava Amy de verdade. É possível que tenha sido a única pessoa a quem amou. — O olhou de esguelha. — lhe prometo que não voltarei a aborrecê-lo com meu sentimento de culpa. — Você nunca é aborrecida — sorriu ele, — nem que seja uma Santa. De repente a assaltou um pensamento inquietante. — Um motivo para não querer lhe dizer da morte do Colín foi que o vi no parque levando no carro a uma bonita jovem. Se murmurava que andava procurando esposa e algo na maneira como se olhavam me fez pensar que tinha encontrado uma. — Levei a passear uma boa variedade de jovenzinhas, mas não recor do ser cuidadoso a nenhuma com olhos de apaixonado. Como era? — Alta e esbelta, com cabelos castanhos. Bonita e com aspecto de ser muito inteligente, embora me parecesse um pouco tímida. — Kit — disse ele imediatamente, — a esposa de meu amigo Lucien. Há uma grande simpatia entre ela e eu, e nos amamos muito, de um modo estritamente não romântico. Você também vai amá-la. Essa implicação de que ela ia formar parte de sua vida no futuro lhe produziu um agradável calor. Ainda mais, sentiu alívio. Essa bonita jovem era amiga de Michael, não sua amada. Passou-lhe a mão pelo ombro, desfrutando do tato dos fortes músculos sob a lisa pele. 151


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— Pareceu-me muito simpática. — Há uma coisa que devo lhe dizer — disse ele deixando de sorrir. Preocupada com o tom que notou em sua voz lhe disse: — Não tem por que me dizer nada que não queira dizer. Seja o que for, não mudará em nada meus sentimentos. — Nem sequer o fato de que sou um bastardo? — perguntou ele, irônico. Ela demorou um momento em compreender. — Ou seja, que o duque de Ashburton não era seu verdadeiro pai. Pelo que me contaste dele, não o lamento. Parecia-me terrível. Ele ficou um instante atônito e depois deitou a cabeça no travesseiro rindo. — E isso é o único que lhe ocorre dizer sobre o grande escândalo de minha existência? Não lhe interessa saber se meu pai era um lacaio ou um exuberante cavalariço? Ao notar a fragilidade de seu bom humor, lhe disse docemente: — Não me importa quem foi seu pai. Sim me importa como lhe afetou a situação. Sabia o duque de Ashburton? Todo indício de humor desapareceu do rosto de Michael. — Sabia, sim. Eu fui o resultado de uma aventura entre a duquesa e o irmão mais novo de Ashburton. Por orgulho o duque desterrou seu irmão e deixou que o mundo pensasse que eu era seu filho. Só me disse a verdade em seu leito de morte. — meu Deus, isso foi justo antes que viéssemos. Não estranho que estivesse tão tenso quando passamos por Great Ashburton. — Colocou-lhe a mão no antebraço. — Assim foi a vítima inocente desse tipo de situações horrorosas que divide às famílias. Isso explica por que o duque o tratava com tanta frieza. — Saber a verdade foi doloroso, mas também, em certo modo estranho, foi liberador. Não preciso da família do duque. Ela se inclinou para beijá-lo com todo o amor de seu coração. Depois lhe dirigiu um sorriso malicioso. — É muito cedo para tomar café da manhã. Você gostaria de aproveitar esse tempo para compensar os seis anos de celibato? — Nós dois temos muito que compensar — respondeu ele estreitando-a em seus braços. — Me de uma imensa ilusão. A ela também. Santos do céu, a ela também. Os dois dias seguintes foram um paraíso. A terceira manhã, enquanto se vestia, Catherine se perguntou se alguém teria notado a mudança em sua relação com Michael. Bom, não se acariciavam em público nem iam às escondidas ao quarto no meio-dia, embora tivessem sentido a tentação, mas ela levava um permanente sorriso no rosto, como a de uma gata diante de um prato de nata, e era impossível controlar o que aparecia em seus olhos quando se olhavam. Não tinham falado do futuro; Michael não lhe havia dito que a amava nem lhe tinha feito uma oferta formal de matrimônio. Tal como ela tinha suspeitado, sob essa capa de extraordinária capacidade se escondia muita vulnerabilidade, conseqüência de não ter recebido nunca amor suficiente. Isso se devia que tivesse visto em seus olhos uma expressão incerta, isto é muito bom para ser certo». Bom, ela se sentia igual; na verdade, ela tampouco se atreveu a lhe dizer o muito que o amava. Não encontrava palavras suficientemente fortes. Finalmente, teriam que ser mais práticos, mas supunha que não haveria nenhum problema. Embora surpreenderia Amy ter um padrasto tão depressa, Michael sempre lhe tinha caído bem. Tudo iria estupendamente. Sorriu ao espelho enquanto escovava o cabelo. A maior interrogação que tinha na mente era se deviam casar-se em seguida ou esperar até que passasse um ano da morte Colin. O último seria 152


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mais correto, mas não desejava retardar as coisas. Além disso, se a conseqüência natural de suas apaixonadas relações sexuais acontecesse, poderiam ter que casarem-se às pressas. Não lhe importaria isso tampouco. A imagem de Michael apareceu no espelho junto à dela, no momento em que se inclinava e beijava um ponto sensível sob a orelha. Suspirando de prazer ela apoiou as costas contra ele. — Realmente temos que ir observar às pessoas recolher algas para fertilizar os campos ou alguma outra das alegres diversões de Davin? Preferiria passar o dia aqui, lhe violando, lhe tirando a roupa, lhe imobilizando sem piedade no chão e lhe devorando aos beijos. — Seria maravilhoso — disse ele lhe acariciando brandamente o queixo com os nódulos. — Cada dia que passa está menos Santa, mas nem tanto que vá faltar com seus deveres. Pois sim, tinha razão. Levantou-se. — Muito bem, violarei-o esta noite. Pode passar o dia preocupado pela violência com que vou tratar seu corpo necessitado. Ele a contemplou atentamente, com um olhar tão abrasador que lhe encolheram os dedos dos pés. — Passarei o dia pensando nisso, embora não possa lhe prometer que estarei preocupado. Segurou-a pelo braço e desceram a sala do café da manhã. Quando entraram, seu avô levantou a vista de seu prato e os olhou carrancudo. — Para ser um casal que esta casado há doze anos, certamente cheiram a primavera. Ela se aproximou para beijá-lo na face. Embora ainda usava a cadeira de rodas, estava visivelmente mais vigoroso que quando chegaram. — É o maravilhoso o ar do mar, vovô. — Dirigiu a Michael um sorriso secreto. — Faz nos sentir como se estivéssemos recém casados. O lorde pôs manteiga numa torrada. — Clive retornou de Londres. Quero falar com vocês dois esta manhã. — Eu fui excluído? — perguntou Michael. — Sim. Já se inteirará do que vou dizer. Catherine fixou a vista em seus ovos passados por água. Certamente a reunião trataria da decisão de seu avô. Teria que responder, e logo, as perguntas práticas que esteve evitando. Nesse momento entrou Davin Penrose na sala de jantar, saudou a todos e se serviu uma taça de chá. — Qual é o programa para hoje? — perguntou-lhe Michael. — Isso depende. — O governador se sentou. — Sabe muito de canhões, capitão Melbourne? — tive certa experiência com a artilharia montada, mas não sou um perito. — Seguro que sabe mais que qualquer um daqui. A tropa ilhoa é bastante eficiente, o lorde é o coronel e eu o capitão. Além de mosquetes, temos dois canhões de seis libras que nos enviaram para repelir Napoleão se decidisse nos invadir. — Em seus olhos brilhou um brilho de humor. — Foi uma sorte que o imperador tivesse outros objetivos em mente, porque o governo não viu a necessidade de nos dizer como se usam essas malditas coisas. Michael riu. — Esse é o exército de sua majestade. Suponho que querem dispará-los e precisam de algumas lições. — Sim, estão se desprendendo das rochas de uma saliência no escarpado e estão caindo sobre o cais, pondo em perigo os barcos amarrados ali. Pensei que alguns tiros poderiam fazer cair as partes mais soltas sem fazer mal a ninguém. Agradeceríamos muitíssimo se pudesse nos ensinar a disparar os canhões sem nos matar a todos. — Para isso sei o suficiente. — Michael se voltou para Catherine. —Posto que vai estar 153


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ocupada, irei com Davin. Levará a maior parte do dia pôr os canhões em condições e ensinar os homens a dispará-los sem risco. — Talvez depois vá olhar — respondeu ela. — Uma das coisas agradáveis desta ilha é que não se pode ir muito longe. Enviou-lhe um sorriso íntimo e partiu com o Davin. — Vêem a meu estúdio dentro de uma hora —ordenou o lorde. — Clive já terá chegado. Energicamente fez girar as rodas de sua cadeira e saiu da sala. Uma vez só na sala de jantar, Catherine franziu o cenho, pensando na iminente reunião. Ainda não tinha decidido o que fazer a respeito de Skoal. Já não precisava da herança; na verdade, as responsabilidades que acompanhavam o legado seriam pesadas depois que ela e Michael se casassem. Mas tinha pego carinho à ilha e a seus habitantes e desejava vê-los bem governados. Seu primo Haldoran lhe parecia muito egoísta e caprichoso para ser um bom lorde. Deu de ombros filosoficamente. A escolha era de seu avô. Se já se decidiu em favor de Clive, o assunto já não concernia a ela. Mas se tinha escolhido ela, teria que pensar. Quando entrou no estúdio do lorde, este estava atrás de sua mesa falando com Haldoran. Os dois se interromperam quanto ela entrou. Dirigiu um cortês sorriso a seu primo: — Olá, Clive. Espero que tenha ido bem sua viagem a Londres. Ele se levantou educadamente. Sua expressão mudou ao vê-la, em seus olhos brilhou algo duro, como fúria, mas desapareceu imediatamente, substituído por um encanto bem praticado. — Foi uma viagem excelente. Consegui exatamente o que desejava. — Sentem-se, os dois— ordenou o lorde. Catherine se sentou. — Vovô, alguma vez é amável? Ele soltou uma gargalhada. — Não vejo para que; sempre há milhares de coisas que fazer. Para que perder tempo com palavras? — Desapareceu seu humor e foi substituído por uma férrea autoridade. — Clive, decidi fazer Catherine herdeira. Você é muito capaz e conhece a ilha há mais tempo, mas seus interesses estão em outra parte. Creio que Catherine e seu marido estarão melhor em Skoal. Uns dias antes, ouvir isso a teria deixado deprimida de alívio, mas nesse momento seus sentimentos eram mais complexos. Sentiu-se honrada, mas também um pouco presa. Olhou de esguelha a cara de seu primo. Haldoran tinha o rosto rígido, mais ou menos como quando Michael demonstrou ser melhor atirador. Mas falou em tom amável. — Está seguro de que é isso o que deseja? — Quando me viu indeciso? Ontem veio meu advogado de terra firme para mudar meu testamento em favor de Catherine. — Tamborilou os dedos sobre um maço de papéis. — Tenho uma cópia aqui. Quero que os dois o leiam para que quando eu morra não haja surpresas. — É admirável seu desejo de claridade, tio. É uma lástima que sua neta não o compartilhe. O tom zombador que empregou deixou Catherine paralisada com maus pressentimentos. — Que demônios quer dizer? — exclamou o lorde furioso. — Sou o primeiro em admirar a minha linda prima — disse Haldoran, olhando Catherine com desprezo. — Entretanto, é meu dever lhe informar que sua única neta é uma embusteira e uma puta, e que desde que pôs os pés na ilha lhe esteve enganando. Catherine continuou paralisada de horror. — Maldito seja, Clive — grunhiu o lorde, — sempre foste um mal perdedor. Esse é um motivo para não querer que fique com Skoal. Não acredita que vai me fazer mudar de opinião com um pacote de mentiras. — É certo que eu não gosto de perder, mas todas as mentiras são de Catherine — respondeu Haldoran em tom glacial. — O verdadeiro Colín Melbourne morreu na França em abril. Posto que 154


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sua ambiciosa neta temia perder sua oportunidade de herdar uma fortuna, convenceu um de seus amantes para que se fizesse passar por seu marido. Enquanto você deliberava a r espeito de sua validade, ela fornicava e ria a suas costas. Adiante, peça que negue. A cabeça do lorde girou bruscamente para Catherine, com um alarmante tom mais alto na voz. — Há algo de verdade no que diz Clive? A comoção e humilhação foram temperadas um tanto pelo alívio de não ter que continuar mentindo. — É certo que Colin morreu — respondeu com voz tremente, — assassinado por um bonapartista. Mas não tenho hordas de amantes. Erguendo-se mais, continuou— : Michael é meu noivo, e logo será meu marido. Lamento muito o haver enganado, vovô. No momento me pareceu necessário, mas cada dia que passava lamentava mais. — Porca descarada! — Sem fazer caso da última parte da frase, o lorde ficou de pé, apoiando as mãos tremulas sobre a mesa, e os olhos ardendo de fúria e pena por sentir-se traído. —E pensar que estava disposto a lhe confiar Skoal. Bom, posso repensar, senhorita; já não é minha neta. — levou-se uma mão à têmpora. — Vou...A... trocar... — Vovô, se acalme, por favor! — gritou ela, alarmada. — Se quiser que vá e não volte a incomodá-lo, muito bem, mas não fique doente por isso. Sem lhe fazer caso, ele continuou, com a língua enrolada: — Tro... car... meu testa... Desmoronou-se sobre a mesa e dali caiu pesadamente ao chão, em meio de uma cascata de papéis e plumas de escrever. — meu Deus! Catherine deu a volta a mesa correndo e se ajoelhou junto a ele. Estava inconsciente e o lado esquerdo do rosto tinha ficado flácido. — É um ataque de apoplexia. — Felicitações, prima — disse Haldoran com sua voz arrastada. —Não só o enganou, mas também pelo visto também o mataste. Dirigiu-lhe um olhar de furioso desgosto. — Você é igualmente responsável, primo. Eu ia dizer lhe a verdade, mas teria escolhido uma forma menos incendiária de fazê-lo. — Encontrou-lhe um fio de pulso na garganta. — Graças a Deus, está vivo. Toca a sineta, para que um criado vá procurar ajuda. Haldoran não se moveu da poltrona em que estava reclinado. — Para que incomodar-se? Não há médico em Skoal. Levaria ao menos meio-dia para trazer um de terra firme, e inclusive assim, é duvidoso que um médico pudesse fazer algo. Tinha razão, maldito fosse. O que teria que fazer teria que fazê-lo sozinha. A maior parte de sua experiência como enfermeira a tinha tido com homens feridos ou doentes, mas várias vezes havia visto pacientes apoplécticos nos hospitais de campanha. Sentou-se sobre os calcanhares e tentou recordar os tratamentos que lhes faziam. Ian Kinlock lhe havia dito que sangrar estava acostumado a ir bem para a apoplexia. E se isso se fazia, devia fazer-se o mais breve possível. Levantou-se e revolveu as gavetas em busca de um canivete. — vou sangrá-lo. Há algum tipo de recipiente aqui? Com cara de mártir, Haldoran se levantou e foi apanhar um vaso com rosas de uma mesinha lateral. Jogou as rosas na lareira e lhe passou o vaso. — Aqui tem, mas está perdendo seu tempo. O ano passado teve um ataque similar. Desse saiu com vida, mas creio que um segundo normalmente é fatal. — Não necessariamente. Rogando que o que ia fazer fosse o correto, voltou a ajoelhar-se junto ao lorde e lhe 155


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arregaçou a manga até mais acima do cotovelo. Depois, com todo cuidado, cravou-lhe a veia. O sangue de seu avô caiu no vaso com enorme força, como se saísse de uma artéria. Clive abriu uma caixa que havia sobre o escritório e tirou um charuto. — Importa-se que fume, prima? — Não me importa que se queime! Como pode ser tão cruel? Ele encontrou uma caixa de pederneira e palha e acendeu o charuto. — Não há nada que possa fazer, assim para que armar uma confusão? E falando de confusão, não cante vitória antes do tempo. Acredita que ganhaste porque ele já mudou seu testamento. — Deu uma tragada e soltou lentamente uma baforada de fumaça. — se equivoca. Desejo a ilha e desejo você, e pretendo ter ambas. — Fala pura tolices — disse ela impaciente, com o olhar fixo em seu avô e no jorro de sangue que ia diminuindo. — Nem Skoal nem eu somos troféus a ganhar. — Ah, mas você sim — disse ele tranqüilamente. — Quando lorde Michael voltar, vai dizer que se vá da ilha porque decidiu aceitar minha muito aduladora oferta de matrimônio. Governaremos Skoal juntos você e eu, os últimos monarcas feudais das ilhas britânicas. Ela o olhou incrédula. — dizer a Michael que se vá? Está louco. — Absolutamente — disse ele com a mesma estranha calma. — vais fazer exatamente o que eu lhe diga. Sua segurança estava começando a pô-la nervosa. — por que demônios vou fazer caso a suas ridículas ordens? — Porque tenho sua doce filhinha Amy — respondeu ele com um triunfal e zombador sorriso. Capítulo 29 Catherine ficou olhando seu primo como se este lhe tivesse dado um golpe físico. — Não acredito. — Se quiser a prova, possamos ir a Ragnarok. Está comodamente instalada em uma de meus melhores quartos para convidados, com uma preciosa vista para o mar. Está encantada com Skoal. — Mente — disse ela com os lábios apertados. — Amy está segura com meus amigos. — Não tão segura. — Clive se sentou e com elegante gesto pôs uma perna sobre a outra. — Anne Mowbry duvidou muitíssimo, e não queria me deixar que a trouxesse sem ter sua nota, mas a menina se entusiasmou por vir, e, como é lógico, eu sou o galante cavalheiro que levou a Amberes o grupo de crianças no ano passado. Podia duvidar Anne de um herói assim? Tirou do bolso uma fita cor cereja e a atirou a Catherine. Deu umas voltas no ar e foi cair no tapete como se fosse um fio sangue. Essa fita a tinha presenteado a Amy em seu aniversário. A cor fazia um formoso contraste com o sedoso cabelo escuro de sua filha. Apertou as mãos sobre o braço flácido de seu avô. — Se lhe tiver feito algum mal, é homem morto. — É muito comovedor ver o devotado amor maternal — disse ele, batendo o extremo do charuto para deixar cair a cinza. — Não se preocupe. Amy está muito segura, e ainda não sabe que é uma prisioneira. Acredita que vou levá-la o Ragnarok para lhe fazer uma surpresa. Catherine tentou encontrar sentido ao que estava acontecendo. — Desde o começo sabia que o homem que me acompanhava não era Colin. — Como lhe ocorreu pensar que não ia reconhecer um homem tão proeminente como lorde 156


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Michael Kenyon simplesmente porque não nos apresentaram? Ocupei-me de averiguar tudo a respeito de seus amigos, acompanhantes e companheiros de baile. — Fechou os olhos até que só foram duas linhas. — Não eram amantes quando chegaram à ilha, mas agora sim. Soube no mesmo instante em que entrou por essa porta. Isso, mais que qualquer outra coisa, a fez compreender quão formidável era Haldoran como adversário. Igual a uma aranha, levava tempo tecendo sua rede, observando e esperando. — por que não delatou meu ardil imediatamente? — Surpreendeu-me vê-la apresentando docemente lorde Michael como seu marido, mas eu adorei quão bem o fazia. Você e eu somos muito parecidos, prima. O que eram nossos antepassados corsários a não ser piratas legais? O sangue conta. Preferiria estar aparentada com um escorpião. — Se quiser a ilha assinarei o transpasse se o lorde morrer. Isso é justo posto que ele já não me quer deixar isso . — A ilha é só a metade — disse ele amavelmente. — Tenho que ter você também. Casandome contigo obterei meus dois objetivos. Tragando o medo, Catherine se obrigou a ordenar seus pensamentos. Em primeiro lugar devia atender seu avô. Havia mais ou menos meio litro de sangue no recipiente e o fluxo tinha freado a um ritmo normal de modo que era melhor que parasse a sangria. Com o canivete cortou tiras de sua anágua e lhe enfaixou o braço. O pulso se tinha estabilizado, mas, além disso, não tinha idéia de seu estado. Levantou-se e foi procurar a manta que havia caído da cadeira de rodas e a estendeu sobre seu avô. Sabendo que provavelmente nem um médico poderia fazer mais por ele, levantou-se e prestou toda sua atenção a seu primo. — Michael não vai permitir que se saia com a tua, seja qual for a loucura que tenha tramado. — Seu amante é um homem capaz, mas não poderá comigo. Vêem aqui, vou lhe ensinar algo. Perguntando-se que novo golpe lhe tinha reservado, aproximou-se com ele da janela. Ele lhe indicou uma carruagem que esperava no pátio; de um lado estavam dois homens com aspecto de vilões jogando dados ociosamente. — Contrato meus melhores empregados no cárcere de Newgate, de modo que são mais perigosos do que parecem. Tenho outros dois de igual estampa em Ragnarok. Todos cometeram assassinato, e alegremente voltarão a fazê-lo se assim o quiser. Quatro homens armados mais eu mesmo formamos um exército, pequeno, mas é bastante grande para governar Skoal. Seu bonito ex-oficial não tem nenhuma possibilidade. O terror aumentou a proporções de pesadelo. — Quer dizer que matará Michael se não o enviar para longe? — Esperei muito tempo, prima, e não tenho a intenção de esperar mais. — Inclinou a cabeça. — De verdade persuadiu a Kenyon de que se casasse contigo, ou só o disse para apaziguar o lorde? — Não foi necessária nenhuma persuasão — respondeu ela entre dentes. — Todo um golpe de mestre para uma pessoa cujo berço e fortuna são tão inferiores às dele. Bom exemplo do poder da beleza. — Soltou a fumaça, que formou uma coroa diabólica ao redor da cabeça. — Tendo matado seu marido, certamente não vou vacilar em matar seu amante. Aniquilada, Catherine cambaleou e foi apoiar-se na parede, aponto de desmaiar. — Foi você quem assassinou Colin? — Sim, embora como caçador não me orgulhei muito da presa. Uma raposa normal é mais difícil de apanhar. Ele estava muito bêbado para preocupar-se quando lhe disparei à costas. — Sorriu, sardônico. —Certamente não vai me dizer que amava a esse caipira fornicador. É boa 157


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mentirosa, mas nem tanto. O horror era quase insuportável. Deus santo, Colin, com sua valentia e seu impetuoso dom natural, tinha morrido por causa dela. Tinha sobrevivido dez anos de guerra para ser assassinado por um louco. Haldoran era malvado, diabólico. E em suas mãos tinha as vidas de seus entes queridos. Toda uma vida vivida perto de soldados lhe permitia compreender como cinco homens armados podiam aterrorizar toda uma comunidade, e no fundo de seu ser sabia que se Haldoran e seus assassinos começassem a desmandar não parariam. A brutalidade engendra mais brutalidade. Pensou nos horrores que tinha visto na Espanha e fechou os olhos, enojada. Por Michael, Amy e os ilhéus, devia seguir o jogo de Haldoran, ao menos no momento. Soou um tiro na distância; o trabalho de artilharia de Michael. Um segundo disparo ressonou por toda a ilha. O conhecido som do campo de batalha lhe esfriou e lhe esclareceu as idéias. Haldoran havia dito que beleza é poder. Isso lhe dava uma frágil arma em seu contra-ataque. Isso e sua inteligência, que a maioria dos homens passavam por cima porque ficavam deslumbra dos por seu rosto e forma. Abriu os olhos, levantando as pestanas com provocadora deliberação. — Subestimei-o, Clive. Acreditava-o um dandi, puro estilo, sem nada de substância. É mais forte e ousado do que imaginava. Com toda sua jactanciosa inteligência, ele não era imune às adulações. — Está se adaptando rápido a nova ordem — disse ele, pavoneando-se um pouco. — As mulheres são criaturas muito práticas. Com o tempo agradecerá que eu tenha me encarregado de sua vida. Sou mais rico e mais interessante que Kenyon. — Já estou começando a ver as vantagens — concedeu ela. — Meu avô tem um decantador de brandy aqui, não é? Sirva-me um pouco. É hora de falar claro. Ele se inclinou diante ela com irônico respeito e se voltou para obedecer. Ela aproveitou essa breve pausa para sentar-se e ordenar seus pensamentos, quase ao lado da histeria. Devia inteirarse das intenções de Clive; devia proteger Amy e Michael, e por cima de tudo, devia ganhar tempo. Isso significava que devia converter-se em quão embusteira Haldoran pensava que era. Durante mais de dez anos tinha convencido ao mundo de que era uma esposa amante, e tinha conseguido ocultar totalmente seu amor por Michael. Devia fazer uso novamente de sua perícia para fingir. Haldoran voltou com duas taças de brandy e lhe passou uma. Indicou-lhe uma poltrona. — Diz que deseja Skoal e a mim. Por quê? A ilha está muito afastada e não é rica, e embora seja bonita há outras mulheres de igual beleza. — Sou colecionador de objetos estranhos e que não têm igual. De acordo, Skoal não vale nada comparada com o resto de minhas posses, mas sua natureza feudal é única. Em Skoal, o lorde tem mais autoridade que o próprio rei Jorge. A perspectiva de ter tal poder é irresistível. Quanto a você... — percorreu-a com o olhar, de modo escuro e ambicioso. —Subestima seus encantos tanto como subestimava minha inteligência. Não existe um homem no mundo que não me vá invejar por possuí-la. Era repugnante vê-la desperdiçada com um caipira como Melbourne. Ela se deu de ombros e com o maior sangue-frio de sua vida começou a mentir: — Quando morreram meus pais Colin era a única opção. Suponho que poderia tê-lo deixado para me transformar na amante de um homem rico, mas essas posições são precárias. O matrimônio e a reputação são o melhor amparo de uma mulher. — Sorveu um pouco de brandy e rogou que ele aceitasse a seguinte condição. — Por isso só vou admiti-lo em minha cama depois que estejamos casados. — Mas se deitou com Kenyon — disse ele com os olhos sombrios. — Não antes que me propor matrimônio. — Esticou os lábios. —Talvez devesse ter esperado, 158


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mas me queria assegurar isso bem. Ele é do tipo de homem honorável, e jamais romperia uma promessa de matrimônio depois de deitar-se comigo. Não o teria feito se tivesse sabido até que ponto estava interessado por mim, primo. Deveria ter falado antes. Um fleumático sorriso curvou os lábios de Haldoran. — Sempre soube que sob essa fachada de santidade tinha um coração de puro metal. Vamos-nos dar muito bem juntos — lhe esquadrinhou o rosto com perigosa perspicácia, — enquanto não acredite que pode me enganar fingindo que colabora. Aqui na ilha meu pequeno exército me faz invencível. Se me trair será simples me desfazer de você e fazer parecer um acidente nos escarpados. Farei em um instante se o fizer necessário. — Acredito, seria uma tola se não acreditasse. Ele fez girar a taça em lentos círculos. — Sua filha se parece muito com você e está na soleira da idade adulta. Sabia que em Skoal as garotas podem se casar aos doze anos? A ameaça era inequívoca, e mais horrorosa que todo a anterior. Engolindo o desejo de atacá-lo fisicamente, disse-lhe: — Achará mais satisfatória uma mulher que uma menina. — obrigou-se a fazer um sorriso sedutor. — Como observou, as mulheres são criaturas práticas; atraem-nos os homens mais poderosos. Se me tratar bem, devolverei-lhe a cortesia. Ele soltou uma gargalhada. — Catherine, é maravilhosa. Deveria tê-lo feito a meses. — por que não o fez? — Estava ocupado. — Novamente a percorreu com o olhar, detendo-o nos seios. — Desejava poder lhe dar toda minha atenção quando chegasse o momento. Ela tentou não pensar em como seria ir para cama com um homem ao qual odiava. Isso faria parecer um paraíso seu matrimônio com Colin. — Todo isso está muito bem, mas antes de qualquer outra coisa devo me ocupar do estado de meu avô. — Certo. Não podemos deixá-lo morrer no chão. As pessoas falariam. Supondo que sua intenção é cuidá-lo, assim deixarei alguns de meus homens para que a ajude. Também deverei me hospedar no castelo, para estar a mão caso de que seja necessária minha ajuda. — Pensativo, bateu brandamente o lado de sua taça de brandy contra seus dentes. — Posto que vai estar ocupada, creio que será melhor que Amy continue em Ragnarok até que morra o lorde. Isso não demorará muito. Não tem para que preocupar-se por Amy, alguém estará com ela todo o tempo. Quer dizer, as duas estariam constantemente vigiadas; mas seguras, no momento. Tocava assegurar a vida de Michael. — Darei a ordem de que empacotem as coisas de lorde Michael. Vocês encarregará de que um barco o leve a terra firme? Ele assentiu. — quanto mais depressa se vá Kenyon, melhor. Quando voltar de sua missão de artilharia, fala com ele na sala de estar do lorde; eu estarei escutando no quarto. — Sua expressão se fez feroz. — E se sentir a repentina tentação de lhe dizer como a persuadi a me aceitar, resista. Abriu a jaqueta para deixar à vista o vulto de uma pistola de bolso. A mensagem era deslumbrantemente clara. — Toma-me por uma tola, primo? Não vejo nenhuma vantagem nos problemas. — levantou-se. — Agora que deixamos claro o essencial, toca a sineta para que venham os criados. Devemos levar o lorde para cama e chamar um médico, mesmo que não possa fazer nada. Ele se levantou e foi tocar a sineta enquanto Catherine se ajoelhava junto ao lorde. Tinha a 159


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respiração superficial, mas regular. — Por favor, vovô, não morra. Necessito de você vivo — lhe sussurrou ao ouvido. Ele moveu um pouco as pálpebras, mas não despertou. Enquanto o agasalhava mais com a manta pensou no que deveria dizer a Michael. Ele não acreditaria jamais em uma mudança tão repentina de opinião se limita-se a lhe dizer que partisse. O que podia fazer para obrigá-lo a partir sem fazer perguntas difíceis que poderiam ser causa a morte? Chegou a resposta, rápida e feia. Devia agir como uma puta que o tinha traído. Devia ativar esse núcleo oculto de dúvidas aproveitando o que sabia dele para tecer um tecido de mentiras tão potente que ele acreditasse que era uma puta egoísta e cruel. A perspectiva era terrivelmente dolorosa. Tinha-lhe perdoado a primeira série de mentiras e se portou com ela com a maior bondade que tinha conhecido em sua vida. E agora tinha que prejudicar a sinceridade e confiança que tinha crescido entre eles para enviá-lo para longe. Ao fazê-lo o feriria profundamente. Tendo em conta seu passado, era possível que destruísse para sempre sua capacidade para confiar em outra mulher. Mas se não o convencia de partir, seria assassinado sem mais. Voltou a soar um tiro de canhão, o som da guerra em um lugar de paz. Fez uma tremula respiração. Incrível como a ameaça de morte pode solidificar uma resolução. Michael chegou ao castelo no meio da tarde, enormemente satisfeito. A prática de artilharia significava disparar, manchar-se de pólvora negra e armar uma grande quantidade de ruído; em outras palavras, satisfazia todos os prazeres culpados de um menino. Os ilhéus tinham resultado ser bons alunos. Ao final das aulas tinham feito voar as rochas salientes mais perigosas do porto. Uma lástima que Catherine não tivesse se reunido com ele, mas provavelmente não gostava do ruído. À maioria das mulheres não gostam. Soube que algo ia mal tão logo entrou no pátio do estábulo e viu a cara do cavalariço chefe. — O que aconteceu? — O lorde teve um ataque de apoplexia. Mandaram procurar um doutor, mas... parece que a coisa não vai bem. — Maldição! — Michael s desceu de um salto do cavalo. — Minha esposa está com ele? — Dizem que o está cuidando com suas próprias mãos. — Se alguém pode salvar esse lorde é Catherine. Entrou no castelo e subiu aos aposentos do lorde de dois em dois degraus. Diminuiu o passo quando entrou na sala de estar. Um dos corpulentos criados de Haldoran, Doyle, estava olhando pela janela com expressão de aborrecimento. Mas ao vê-lo entrar atravessou rapidamente a sala e fechou a porta do quarto. — A senhora disse que não pode entrar ninguém — grunhiu. —diga a minha esposa que estou aqui — disse Michael, reprimindo sua irritação. Doyle entrou no quarto. Ao fim de um minuto saiu Catherine, muito pálida. Michael se aproximou para abraçá-la, mas ela o deteve levantando a mão. Michael se preparou para a má notícia. — Soube que o lorde teve um derrame. Está muito mal? — Está em coma. Não creio que sobreviva. Ou seja, que ia perder seu avô logo depois de encontrá-lo. — Sinto — disse docemente. — O que posso fazer? Ela inclinou a cabeça e se apertou as têmporas com as mãos. Depois levantou a cabeça, com expressão dura. — Não há nenhuma maneira fácil de dizer isto. É hora de partir, Michael. Ontem meu avô 160


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mudou seu testamento em meu favor, assim consegui meu objetivo. Obrigado por sua ajuda; foi essencial. — Não quero deixá-la sozinha nem sequer um momento. — aproximou-se para segurá-la em seus braços. — fui ferido tantas vezes que sei estar no quarto de um doente. Não a estorvarei. Ela retrocedeu antes que pudesse tocá-la. — Não fui clara. Deve partir para sempre. Nossa aventura terminou. Ele ficou olhando fixamente, seguro de que tinha ouvido mal. — Aventura? Eu supunha que nos casaríamos. — Ah, sim? — disse ela arqueando as sobrancelhas. — Falou algo vagamente da possibilidade, mas nunca me propôs isso. O conteve o mau gênio, pensando no estado de tensão que estaria ela. — Talvez devesse ter sido mais explícito, mas a situação estava clara. Você não é o tipo de mulher que tem aventuras, nem eu sou um homem que seduz mulheres respeitáveis por esporte. — Na verdade não me conhece muito bem, Michael — disse ela com os olhos entreabertos. — A maior parte de minha vida foi governada pela conveniência. Pela primeira vez em minha vida tenho opções e o matrimônio não está entre elas. Ele sentiu o sangue lhe golpeando as têmporas. — Pensei que eu pudesse tê-la feito mudar de opinião — disse ele cautelosamente. — Ou se não o tinha conseguido ainda, conseguiria logo. Ela moveu a cabeça. — Aceite que terminou, Michael. Tenho-lhe afeto, mas não o quero por marido. — Afeto — repetiu ele, paralisado. — Isso é o que sente? — Nunca lhe disse que o amava — respondeu ela dando de ombros Isso era certo, nunca o havia dito. Ele o tinha suposto por seus atos, igual como tinha dado por certo que se casariam. — me perdoe se me custa entender — murmurou com os dentes apertados. — É como se tivesse se convertido em outra mulher nas horas transcorridas desde que saí daqui esta manhã. — Baixe a voz, o lorde precisa de silêncio — disse ela, olhando nervosa para a porta do quarto. A inquietação por seu avô lhe tinha transtornado o julgamento, sem dúvida. Desesperado por pôr fim a esse pesadelo, se aproximou em três passos e a estreitou em seus braços. A paixão tinha curado antes seus temores e poderia voltar a fazê-lo. Ela se mostrou quente, e por um instante foi a mulher que ele conhecia. Mas de repente se afastou violentamente, com expressão selvagem. — Maldito seja, Michael, não me possui. Salvei-lhe a vida, e me acompanhou a Skoal saldaste a dívida. Agora me deixe em paz e vá! Antes que ele pudesse responder se abriu a porta do quarto e apareceu Haldoran, com expressão ameaçadora. — Se não deixar de incomodar minha noiva, Kenyon, verei-me obrigado a tomar medidas para melhorar suas maneiras. Michael olhou Catherine e depois Haldoran, pasmado. —vai se casar com ele? — Sim. — aproximou-se de seu primo. — Clive é de sangue ilhéu e conheceu Skoal toda sua vida. Além disso, é discreto; reconheceu-o imediatamente, mas guardou para si. Hoje ele e eu temos descoberto o muito que temos em comum. Haldoran sorriu com jactanciosa satisfação. — E no processo compreendeu que eu sou o melhor homem. 161


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— Tolices. Michael estava ponto de acrescentar que nem sequer lhe caía bem seu primo quando ela o interrompeu, seus olhos verde mar implacáveis. — Tentei deixar amavelmente, mas posto que me obriga a ser franca, direi-lhe isso: Clive é mais rico que você, é par do reino e não um filho mais novo, e tem muito mais experiência. Acordamos que nosso matrimônio não tem por que nos limitar indevidamente. Depois que lhe dê um herdeiro estarei livre para provar algumas das opções que mencionei antes. Quando me sentia se desesperada estava disposta a subtrair importância a suas deficiências de berço e fortuna, mas agora não. Tampouco quero me atar a um homem possessivo que quer que passe o resto da vida em uma cama. Essas palavras lhe caíram como golpes de clava. Olhou-a fixamente, com os pulmões tão contraídos que quase não podia respirar. Não conhecia Catherine, não mais que o que tinha conhecido Caroline. Novamente tinha sido feito absolutamente de tolo por uma mulher. Deus santo, aprenderia algum dia? — Tem razão, tenho algumas idéias um tanto antiquadas em relação à monogamia. Não tenho nenhum desejo de me casar com uma puta. Ela empalideceu. — Nunca estive no pedestal que me construiu, Michael. Oxalá pudéssemos nos separar como amigos, mas supondo que isso é impossível. — Amigos — repetiu ele incrédulo, — certamente não, maldita seja, Catherine. — Imaginei que não gostaria de retardar sua marcha, portanto mandei empacotar suas coisas e as carregar em um carrinho de mão. Espera-o um barco para transportá-lo a Penward. Se não saísse dessa sala imediatamente, pensou Michael, faria algo que depois lamentaria. Sem saber muito bem se seriam lágrimas ou um assassinato, girou sobre seus calcanhares e saiu. Na metade das escadas teve que agarrar-se ao corrimão, esforçando-se por respirar. «Lentamente, inspira, espira. Pensa somente no ar que se move por seus pulmões.» Quando conseguiu respirar bem novamente, soltou-se do corrimão e continuou até o pátio do estábulo. Tinha sobrevivido a Caroline e a Waterloo; supôs que também sobreviveria a isto. Mas oxalá Catherine o tivesse deixado morrer na Bélgica. Com os joelhos trêmulos, Catherine se sentou em uma poltrona tão logo se fechou a porta. — Bem feito, minha querida, mas eu não gostei do que disse sobre desejar abrir as pernas para as multidões — disse Haldoran com sua voz arrastada. — Minha esposa deve ser só minha. Lamentará muitíssimo se esquecer isso. Ela tragou saliva. — Disse isso para que lorde Michael sentisse repugnância de mim. Não precisa preocupar-se por minha fidelidade quando estivermos casados. A monogamia contigo irá muito bem. Ele sorriu satisfeito e se dirigiu à porta. — irei assegurar-me de que Kenyon parte realmente. — partirá. Não quererá voltar para ver-me nunca mais. Quando seu primo partiu, reclinou-se na poltrona, o coração martelando com tanta violência que pensou se não estaria tendo um ataque de apoplexia como seu avô. Embora vivesse até os cem anos, jamais esqueceria a expressão que viu no rosto de Michael quando partiu. Fechou os olhos. Na Península, tinha matado duas vezes; dois homens que estavam morrendo com dores tão atrozes que lhe suplicaram que lhes desse o golpe da graça. Tinha sido difícil, terrivelmente difícil, ir contra seus instintos curadores, mas o tinha feito. Fez uma tremula inspiração. Algum dia, quando se apresentasse a oportunidade, mataria Haldoran; e isso não lhe seria nada difícil, nada absolutamente. 162


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CAPÍTULO 30 O instinto e uma violenta necessidade de escapar apoderaram de Michael depois que o taciturno barqueiro o deixou em Penward. Na pequena estalagem comprou o melhor cavalo disponível, além de sela, rédeas e alforjes. Posto que não podia levar a cavalo sua bagagem, organizou-o tudo para que enviassem a maior parte para Londres. Seu baú pequeno continha seus coisas de primeira necessidade, de modo que o esvaziou n os alforjes. Ao ir caindo o conteúdo viu brilhar o caleidoscópio de prata que enviou Lucien depois de Waterloo. Era evidente que este não lhe trazia tanta sorte como o anterior. Pôs uma camisa em cima. Depois carregou o cavalo, saltou à sela e empreendeu a marcha. Teria sido mais civilizado alugar um carro, mas necessitava do exercício físico de cavalgar; talvez isso o esgotaria até adormecê-lo. Cavalgou o resto do dia, e continuou durante a noite, pensando compulsivamente em como podia ter-se equivocado tão desastrosamente em seus julgamentos. Depois de inteirar-se da verdade sobre Caroline, tinha podido olhar para trás e reconhecer os sinais de insinceridade e crueldade que tinham sido sempre visíveis sob sua beleza e faiscante encanto. Simplesmente tinha estado muito apaixonado, e muito obcecado pela ávida sexualidade dela, para fixar-se. Era igualmente possível reconhecer sinais de egoísmo e engano em Catherine. Em Londres, quando ele pôs em dúvida sua capacidade para leva r a cabo um ardil complicado, ela sorriu e o chamou de Colín com arrepiante autenticidade. Na ilha tinha demonstrado ser professora na arte do ardil. Quando a carta de Kenneth pôs a descoberto suas mentiras, lhe explicou seus atos com comovedora seriedade. Tinha-lhe sido fácil acreditar que tinha agido por desespero, e perdoá-la. Fácil, e profundamente gratificante. Recordou-a como estava em seus braços quando acab ou de descobrir a paixão. Ou isso também tinha sido uma mentira? De verdade sentia terror pela relação sexual, ou tinha sido uma excelente representação para fazê-lo sentir-se fabuloso e masculino? Não tinha idéia. Talvez sempre tivesse sido uma lasciva e tinha representado essa cena de lágrimas e medos porque lhe produzia uma perversa diversão enganá-lo. De qualquer modo, nesse momento, depois de tudo o que havia lhe dito, seguia sendo como uma febre em seu sangue. Sangue novamente. Ah, Deus, Catherine... Mas apesar de todo o resto que tinha feito, certamente lhe tinha salvado a vida. Por generosidade? Ou teria pensado que lhe seria útil que o filho de um duque estivesse em dívida com ela? O suposto filho de um duque. Embora tivesse assegurado o contrário, talvez sim lhe tivesse importado que fosse bastardo. Por último disse tinha dado a entender isso. Toda sua vida se esforçou por ser o melhor que podia ser, e não era suficiente. Jamais valeria o suficiente. Nas escuras horas, passada a meia-noite, fez o amargo descobrimento de que na verdade não o surpreendia o que lhe tinha acontecido. Comocionado, sim, e ferido mais do que podem descrever as palavras, mas surpreso, não. Sempre tinha sabido que Catherine era muito boa para ser certo. Os golpes dos cascos do cavalo marcavam o ritmo dos martelares em seu cérebro. «Ela não é para você. O amor jamais será para você.» São Michael, tentando matar todos os dragões equivocados. Viajou durante toda a noite iluminado pela lua. Embora automaticamente ia trocando o passo de seu cavalo para mantê-lo em marcha, ao amanhecer o animal estava a ponto de arrebentar. Deteve-se em uma estalagem de postas e permutou o cavalo e um punhado de moedas de ouro por outro cavalo e continuou a marcha. Por muito que se esforçava não conseguia superar 163


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a dor nem deixar de fazer-se recriminações por sua estupidez. Sua crença de que pertencia a uma família, embora fosse uma desagradável, tinha sido falsa. Os grandes romances de sua vida eram piores que mentiras, eram patéticas paródias. As únicas relações autênticas e duráveis de sua vida eram suas amizades. No futuro se limitaria a ter amigos e esqueceria toda esperança de amor. A última hora da tarde, depois de vinte e quatro horas de cavalgar, praticamente sem descanso, notou que a paisagem lhe era conhecida. Estava se aproximando da cidade Great Ashburton. A sede da família Kenyon estava a menos de cinco quilômetros. Pensou o que aconteceria se apresenta-se em Abbey. Teriam ordenado aos criados lhe proibir a entrada, ou lhe permitiriam alojar-se ali, beneficiando-se uma vez mais da paixão familiar por guardar as aparências? Não importava, porque preferia arder no inferno ant es de pedir proteção sob um teto Kenyon. Já estava ardendo no inferno. Era hora de decidir se virar ao norte e voltar para sua casa em Gales, ou continuar nesta direção até Londres. O esforço de escolher destino foi superior a ele. Um olhar a s eus suarentos arreios disse que era o momento de trocar de cavalo. O que montava estava a ponto de desmoronar-se. E também ele, como não. Teria que deter-se passar a noite. Embora a cidade fosse um opressivo aviso de sua bastardia, ao mesmo tempo sua familiaridade era um estranho consolo. Deteve-se na Red Lion, a melhor estalagem de postas. Depois de deixar seu cavalo com um cavalariço que o olhou furioso por maltratar o animal, entrou na estalagem com seus alforjes. A maioria das estalagens o teriam condenado às habitações do apartamento de cobertura a um viajante tão sujo e sem barbear, mas Barlow, o dono da estalagem, reconheceu-o. — Lorde Michael, que honra. Vai a caminho de Abbey? — Não. Desejo um quarto para esta noite. Barlow o olhou com curiosidade, mas se limitou a dizer: — Muito bem, milord. Quer um banho ou uma sala de jantar privada? — Só um quarto. O hospedeiro o levou ao melhor quarto da estalagem e insistiu para chamar se precisasse de algo. Tão logo partiu Barlow, Michael deixou cair os alforjes, pôs chave à porta e bebeu um copo de água da jarra do lavar as mãos. Depois se arrojou de barriga para baixo na cama sem tirar as botas nem a roupa. A inconsciência chegou com misericordiosa rapidez. Trovões, disparos. O instinto arrancou a Michael de seu profundo sono. Abriu as pálpebras meio adormecido; não reconheceu o quarto em penumbras. Continuou o ruído. Não eram disparos nem tormenta, a não ser batidas na porta. — Michael, sou Stephen — ladrou uma voz. —Abra. Deus santo, o duque de Ashburton. O homem ao qual tinha chamado irmão. — Vá — respondeu bruscamente. — Estou tentando dormir. Acabaram-se os golpes. Deitou de costas. Pela janela viu a última luz do sol poente; ou seja, que tinha dormido um par de horas. Doíam-lhe todos os músculos; também tinha sede, mas seria muito esforço levantar-se. Fechou os olhos com a esperança de voltar a conciliar o sono. Soou uma chave na fechadura. Depois se abriu a porta e entrou um homem alto com um candelabro de velas acesas. Michael fechou os olhos e os tampou com o braço, ofuscado pela repentina luz. — Michael, está doente? — perguntou a voz abrupta de Ashburton. Por último o que desejava era ter uma cena feia com seu irmão, mas pelo visto não poderia 164


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evitar. — Tinha que saber que na cidade do duque de Ashburton não existe isso que se chama intimidade — disse secamente. — Barlow me enviou uma mensagem em casa dizendo que tinha chegado aqui com aspecto de morto e com um modo estranho de se comportar— respondeu seu irmão em tom igualmente seco. — Logicamente, preocupei-me. — por quê? — perguntou Michael sorrindo sem alegria. — Sempre me comporto de modo estranho. O velho duque estava acostumado a dizê-lo com muita freqüência. Exasperado, Ashburton soltou uma maldição em voz baixa. — por que demônios não possamos ter uma conversa civilizada para variar? Tenho lhe escrito várias vezes e nunca me respondeste. Michael fez uma funda inspiração. Ashburton tinha razão; estava se comportando de modo abominável. — Minhas desculpas — disse em tom mais doce. — A verdade é que queimei suas cartas sem as ler porque acreditava que não tínhamos nada que nos dizer. Mas supondo que deve haver assuntos legais relacionados com a morte do duque. Se houver documentos que devo assinar, traga-me agora ou os mande a Gales. Ocuparei-me deles. Rangeu uma cadeira e pela habitação passou uma espiral de fumaça de charuto. — Não estou interessado em nenhum maldito documento legal. Simplesmente queria falar contigo. Pode se sentar e me olhar? Por nada do mundo ia fazer todo esse esforço por um intruso, mas desceu o braço e abriu os olhos. Ashburton estava sentado no outro extremo do quarto olhando meditabundo a ponta acesa de seu charuto. Michael lhe observou o rosto. Embora preferisse a família que tinha adotado em Eton, não havia nada nele que negasse os laços de sangue. A linhagem Kenyon se via nos planos duros de seu rosto, nos reflexos mogno de seu cabelo castanho e na forma de suas longas mãos. Qualquer um diria que eram parentes. Ashburton levantou a vista e suas pupilas se estreitaram ao ter uma visão clara de seu irmão mais novo. — Pelo amor de Deus, homem, parece doente. Tem febre? levantou-se e foi colocar lhe a mão na testa. Michael lhe retirou a mão, irritado igualmente pela hipótese e pelas sufocantes espirais de fumaça. — Estou bem. Só sujo, sem barbear e esgotado por uma longa cavalgada. — Mentiroso. — Seu irmão o olhou com o cenho franzido. — Vi cadáveres que têm melhor aspecto que você. Michael tossiu, ao lhe chegar a fumaça no rosto. Abriu a boca para lhe dizer que apagasse o maldito charuto e aspirou uma baforada de fumaça que o abafou. Com assombrosa rapidez lhe oprimiram os pulmões em um verdadeiro ataque de asma. Não podia falar, não podia respirar, não podia pensar. Dobrou-se tossindo convulsivamente sufocado de calor. Sentiu esmagado o peito e os pulmões doloridos ao tratar sem êxito inspirar ar. Tratou de sentar-se para que se alargassem mais facilmente seus pulmões, mas não pôde. Agitou os braços, enterrando os dedos na colcha, e foi perdendo os sentidos. Sabia que em algum lugar recôndito, mais à frente do sufocante fogo, tinha a capacidade de respirar, mas não conseguia encontrá-la. Com um medo frenético pensou na terrível ironia que depois de sobreviver a anos de guerra ia morrer em uma cama na cidade onde tinha nascido. Especial horror lhe produzia o fato de que ia morrer prostrado diante do irmão que nunca tinha sido seu amigo. De repente umas mãos fortes levantaram o corpo impotente e o sustentaram em posição 165


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sentada ao lado da cama. Logo ouviu um murmúrio de palavras tranqüilizadoras e uma toalha molhada lhe passou várias vezes pelo rosto e a garganta. A agradável água fria lhe apagou o fogo e dissolveu a sufocante fumaça. Diminuiu-lhe a dor e com isso a estranguladora opressão. Entrou-lhe um fio de ar nos pulmões. A ardente opressão foi desaparecendo. apoiou as palmas nos joelhos e exalou lentamente. Inspirou, exalou. Outra vez, mais profundo. A escuridão foi desvanecendo-se e compreendeu com surda admiração que ia sobreviver. Era o primeiro ataque de asma que tinha desde que m orrera Caroline. O pior desde aquele que quase o matou quando se inteirou da morte de sua mãe. Com triste humor pensou que as mulheres tinham um efeito letal nele. «Catherine.» Só pensar lhe produziu outra constrição dos pulmões. Mas desta vez conseguiu dominar sua reação e evitar outro ataque. Quando restabeleceu o ritmo de sua respiração abriu os olhos. desvaneceu -se a maior parte de sua raiva e tinha ficado murcho como um pano, mas relativamente cordato. A janela estava aberta, deixando entrar o ar fresc o da noite, e o charuto tinha desaparecido. Seu irmão estava do seu lado sentado no lado da cama, pálido de preocupação. — Beba isto —ordenou, lhe colocando um copo de água na mão. Michael obedeceu, tragando avidamente. A água fria lhe dissolveu o gosto amargo e vegetal da fumaça do charuto. — Obrigado —disse com voz áspera depois de apurar o copo. —Mas para que se incomodou? Me deixar afogar teria sido uma maneira simples de eliminar a mancha no escudo familiar. — Se não abandonar o melodrama shakespeariano vou esvaziar-lhe o resto da jarra na cabeça. O duque se levantou e colocou vários almofadões contra a cabeceira para que Michael se reclinasse neles e depois deu uns passos para trás. — Quando comeu pela última vez? Michael pensou. — Ontem pela manhã. O duque puxou a corda para chamar. Em poucos segundos se ouviu a voz do Barlow do outro lado da porta. — Sim, excelência? — Envie uma bandeja com comida, um jarro de café e uma garrafa de borgonha. — Olhou seu irmão. — Acreditava que tinha superado a asma, como eu. — Superei-a em grande parte. Este é só o segundo ataque que tive em mais de quinze anos. — Franziu o cenho. — Você teve asma também? Creio que não sabia. — Isso não é surpreendente, passava tão pouco tempo em casa. Minha asma não era tão grave como a sua, mas bastante incomoda de qualquer modo. Desviou a vista, com expressão rígida. — Lamento pelo charuto. Não teria fumado se tivesse sabido que poderia matá-lo. Michael fez um gesto para subtrair na importância. De tanto em tanto ele também fuma va, em grande parte porque era um triunfo poder fazê-lo. — Não tinha por que sabê-lo. Este ataque foi totalmente inesperado. — Inesperado? — disse Ashburton passeando inquieto pelo quarto. — A mim os ataques de asma se davam normalmente quando estava doído. Dada a maravilhosa atuação de pai em seu leito de morte, tem todo o direito a se sentir doído. Depois de todo o acontecido foi um tanto surpreendente comprovar que o velho duque tinha morrido somente há duas semanas. 166


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—aceitei isso razoavelmente bem. Isto é diferente. Problema com uma mulher. Essa resposta fácil, de homem a homem, era muito melhor que explicar que o tinham arrancado limpamente o coração do peito, levando com ele quase toda sua fé em si mesmo. — Compreendo — disse seu irmão em voz baixa. — sinto muito. — Se não tem nenhum assunto legal — disse Michael, desejoso de mudar de assunto, — por que me tem escrito? Como lhe disse em Londres, não quero incomodar, nem a você nem ao resto da família. _ Não tenho mais interesse que você em lavar a roupa suja Kenyon. — Sabe que a revelação de papai me surpreendeu tanto como a você? —imaginei, por sua reação. O duque fixou a vista nas chamas das velas. — Nesse dia compreendi de repente o que tinha acontecido — disse hesitante. — Posto que pai e seu irmão se odiavam, procurou que você e eu fizéssemos o mesmo. — Você não estava sozinho nisso. Claudia tampouco me ama. — Um ricto amargo lhe torceu a boca. — Pelo que sei da história familiar, é tradicional que os Kenyon se odeiem mutuamente. — É uma tradição que eu não gosto nada. Quando olhei para trás vi o mal que lhe tratava papai. Constantes críticas e desprezo por tudo o que fazia, e freqüentes açoites. Foi o bode expiatório da família. — Fez uma careta de desgosto. — Sendo monstros como todos as crianças, Claudia e eu nos demos conta de que podíamos lhe atormentar com toda impunidade. E o fazíamos. — Essa é uma análise exata de minha infância, mas e o que? A revelação do duque sobre minha linhagem explica seu comportamento. — Apertou as mandíbulas ao pensar nos cruéis açoites que tinha suportado. — Tenho sorte que não tenha me matado em um de seus ataques de raiva. Poderia tê-lo feito se houvesse passado mais tempo em casa. Esse tinha sido o terror não expresso de sua infância. Em lugar de escandalizar-se, Ashburton lhe disse sobriamente: — Poderia ter acontecido isso. Não creio que tivesse tentado te matar deliberadamente, mas tinha um caráter perverso. — Outro traço que se dá na família. — Muito certo. — Ashburton se apoiou no suporte da lareira e cruzou os braços. — Só quando papai lhe jogou na cara suas capacidades superiores compreendi a inveja que me inspirava. Eu era o herdeiro, criado para ter uma elevada opinião de mim mesmo, e entretanto meu irmão mais novo era mais inteligente, melhor cavaleiro, melhor atirador e melhor esportista que eu. — Um brilho de humor brilhou em seus olhos. — Até estava ressentido com Deus por não ter disposto as coisas de outra maneira. — Não sei se minhas capacidades naturais eram maiores que as tuas— disse Michael dando de ombros, — mas me esforçava mais. Supondo que acreditava que se obtivesse o suficiente, o duque me aceitaria. Não sabia que minha causa era sem esperanças. — Certamente demonstrou ter mais de seu além da maldita arrogância Kenyon. Ninguém podia perfurar sua armadura. — Esboçou um sorriso. — Também o invejava que desaparecesse durante todo um ano, passando as férias com seus amigos em Eton em lugar de vir para casa. Uma coisa era que nós lhe repelíssemos e outra muito diferente que você nos repelisse. Suspeitava que passasse muito melhor que eu. — Está equivocado a respeito de minha armadura — disse Michael com receosa sinceridade. — Me perfuravam isso regular e sangrentamente. Por isso evitava ir a Abbey como se tivesse sido um sítio emprestado. Mas para que recordar o passado? Fiz todo o possível por esquecê-lo. — Porque o passado forma parte do que somos agora e do que vamos ser no futuro — 167


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respondeu gravemente Ashburton. — E porque papai me impediu de ter um irmão. — Meio irmão bastardo. — Isso não sabemos. Isso fez a Michael rir, surpreso. — Acredita que o duque inventou essa história? Duvido-o. Tinha todo o cálido encanto de um muro de pedra, mas não mentia. Isso teria sido indigno dele. — Ah, não duvido de que houve uma aventura — respondeu Ashburton fazendo um gesto de impaciência. — Mas isso não significa necessariamente que Roderick fosse seu pai. — O duque disse que mamãe reconheceu que eu era filho de Roderick. — Poderia haver dito isso por pura teimosia. Provavelmente se deitava com os dois e não sabia bem quem o gerou — acrescentou Ashburton com férrea indiferença. — O que o faz dizer isso? — perguntou Michael, fascinado e enojado de uma vez. Seu irmão sorriu cinicamente. — Papai era incapaz de resistir. Embora brigassem em público, continuavam dormindo juntos. Por isso lhe tinha tanto rancor. Odiava qualquer um que tivesse tanto poder sobre ele. — Mas o duque disse que eu tenho os olhos verdes de Roderick. — Isso não significa nada — replicou Ashburton. — A filha de Claudia tem esses mesmos olhos verdes, embora Claudia não. Não há maneira de estar certos de quem foi seu pai, e na verdade não importa. Se não for meu irmão inteiro, é meu meio irmão e meu primo em primeiro grau. Temos os mesmos avós e é meu herdeiro. Ninguém poderia entender totalmente o que foi criar-se nessa casa. — Fez uma pausa e moveu um músculo na face. — Embora possa ser muito tarde para nos transformarmos em verdadeiros amigos, ao menos possamos deixar de ser inimigos. Nesse momento bateram a porta, por sorte, porque Michael não tinha a menor idéia do que dizer. Ashburton fez entrar os dois criados que traziam bandejas de apetitoso aroma. Enquanto serviam a comida, Michael descobriu com surpresa que tinha fome, embora ainda estivesse tão debilitado que teve que reunir toda sua força para levantar-se e caminhar para a mesa. As melhores fatias de boi, presunto e guarnições da estalagem Rede Lion, regadas com um bom vinho tinto, fizeram muitíssimo em sua recuperação. Ashburton comeu pouco, preferindo beber café. Quando Michael acabou de comer, jogou a cadeira para trás e olhou perplexo a seu irmão. — Na verdade não o conheço. Sempre foste tão sensato? — Não sei o que sou — respondeu fleumaticamente o outro. — Com a morte de papai me senti como uma planta que puseram ao sol depois de toda uma vida a tentar crescer sob uma cesta. Não quero ser como ele, tiranizando todo mundo à vista simplesmente porque sou um duque. Pode ser que isto soe como hipocrisia, mas quero viver uma vida justa. Isso inclui compensá-lo por ter sido tratado injustamente. Michael desviou o olhar, comovido, mas muito acostumado a ocultar seus sentimentos diante de seus familiares. — Me ocorre que um dos motivos de que brigássemos tanto quando fomos crianças é que nos parecemos em muitos sentidos. Não me tinha dado conta do muito que nos parecemos. — É certo. Mas nem sempre brigávamos. Recorda aquela vez que escapamos de nosso tutor e fomos à feira de Ashburton? — Me lembro. Michael sorriu ao recordar. Tinham brincado de jogos com os aldeãos, comido muito e sido crianças juntos, em lugar de ser os filhos inimigos do duque de Ashburton. E nesse dia também os açoitaram juntos quando chegaram em casa. 168


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Tinha havido outras épocas felizes também. Por voltar as costas a sua infância Michael tinha enterrado o bom junto com o mau. Stephen tinha razão; o passado era parte do presente e era hora de recuperar esses anos perdidos. A verdadeira fonte do veneno tinha sido o duque. Seu tio? Seu pai? Na verdade não importava; já tinha morrido. Mas seu irmão e sua irmã estavam vivos. Não tinham sido seus amigos, mas tampouco seus inimigos. Olhou sua taça de vinho. A maioria de seus amigos era muito diferente dele. Poderia ser agradável ter um amigo de temperamento similar. Ele e Stephen t inham idade suficiente para controlar o infame temperamento Kenyon. E se seu irmão tinha o valor de t entar construir uma ponte entre eles, ele não podia fazer menos. — Faz umas semanas — disse docemente— conheci em Londres uma encantadora jovem norte-americana. Explicou-me um costume da Índia que consiste em que os chefes de tribos em guerra enterram suas tochas de pedra como um tratado de paz. Façamos o mesmo? — Espero que fale em sentido figurado — disse Ashburton sorrindo com malicia. — Como soldado provavelmente adquiriu todo tipo de armas, mas eu só tenho minhas pistolas Manton grande. Chatearia-me enterrá-las. — Em sentido figurado irá muito bem. — Michael estendeu a mão timidamente. — Estou farto de brigar, Stephen. Seu irmão lhe estreitou a mão com um forte e quente apertão, seus longos dedos Kenyon iguais aos dele. Embora o apertão terminasse em seguida, deu a Michael uma sensação de paz. Uma flor florescia em uma das noites mais negras de sua vida. — Falta muito ainda, mas pense na possibilidade de passar os natais em Abbey —disse Stephen, quase com acanhamento. — Eu gostaria de tê-lo em casa. E posto que é meu herdeiro, seria bom que aparecesse de vez em quando — Obrigado por me pedir isso. Pensarei. Não sei se serei capaz de enfrentar todo o clã de uma vez. — deu de ombros. — Quanto a ser herdeiro, isso só até que tenha um filho. — É possível que isso não aconteça nunca — suspirou seu irmão. — Louise e eu estamos há oito anos casados e ainda não há indícios de prole. O que faz ainda mais importante que se case. Falou-me de um problema com uma mulher. Nada grave espero? A calma temporária de Michael se desvaneceu. — grave não, catastrófico. Obcecar-se por mulheres destrutivas poderia ser outro traço familiar. Pensei que a dama em questão e eu íamos nos casar, mas... interpretei mal suas intenções. — Quer falar disso? — É uma história longa. — Tenho todo o tempo que precise — disse afavelmente Stephen. Michael descobriu que sentia um potente desejo de contar a alguém o ocorrido. E, estranhamente, seu irmão era a pessoa adequada para ouvir. Serviu-se de mais borgonha e depois se deitou na cama, empilhando almofadões para reclinar-se. Sem olhar seu irmão, começou: — Na verdade conheci Catherine em Bruxelas, mas a tinha visto antes na Espanha, em um hospital de campanha.

capítulo 31 Depois de lhe contar como Catherine tinha amparado um jovem moribundo durante toda a noite, passou a lhe contar da Bélgica. A estima geral em que a tinham; as frustrações sofridas por ter que se comportar honradamente quando viviam sob o mesmo teto; como lhe tinha salvado a 169


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vida. Embora não falasse de seus sentimentos foi impossível eliminar a emoção de sua voz. Mais de uma vez teve que deter-se, ocultando sua debilidade bebendo vinho. Seu irmão o escutava atentamente sem interrupções. Depois lhe explicou como Catherine lhe tinha pedido que se fizesse passar por seu marido e sua comoção ao descobrir seu engano. Na verdade lhe contou tudo, à exceção do medo dela à intimidade sexual e o breve e apaixonado romance, quando parec ia que tudo ia bem. Disso não podia falar. Acabou dizendo, sem expressão: — Pensei que nos entendíamos, mas é evidente que interpretei mal seus sentimentos. Deveria ter ficado na guerra. É muito mais simples e menos dolorosa que as mulheres. Stephen ficou um longo momento em silêncio. — Talvez — disse finalmente. Ouvindo reserva na voz de seu irmão, perguntou-lhe: — O que pensa? — Provavelmente não deveria fazer nenhum comentário. Não quero que tire essa tocha de guerra e me enterre entre as omoplatas. — Vem o comentário. — Michael passou a mão pelo cabelo. —Ainda não entendo como pude errar tanto. — Essa realidade é o que me choca — disse lentamente seu irmão. — Ser herdeiro de um ducado o faz um bom conhecedor do caráter, já que são muitas as pessoas que adulam para ganhar favor. Uma coisa que aprendi é que o caráter básico não muda. Custa-me acreditar que uma mulher que era tão generosa se transforme em uma harpia ambiciosa em questão de horas. Ou a generosidade ou a cobiça eram falsas. — A generosidade não. Houve muitos exemplos durante muito tempo para que fosse fingida. — Uma atormentadora voz lhe encheu a mente: Catherine cantando uma canção de ninar a um menino moribundo ou talvez a ele mesmo. Tragou saliva. — Infelizmente a arte do engano era muito autêntica, como também a cobiça. — Talvez tenha entrado em jogo outro fator, um fator desconhecido para você. — Stephen esfregou o queixo enquanto pensava. — Por exemplo, talvez a enfermidade do lorde de Skoal lhe ativou um ataque de remorso e Catherine lhe confessou que tinha mentido a respeito de seu marido. Conheço o lorde e sei que é um velho mal-humorado e irritável. Poderia ter-lhe dito que a perdoava se casa-se com seu primo, e ela aceitou por sentimento de culpa. — casaria-se uma mulher com um homem que lhe cai mal por sentimento de culpa? — disse Michael duvidoso. «E diria tantas coisas horríveis? » — Como disse, esse era só um exemplo. Poderia haver milhares de motivos. Normalmente comprovei que se a conduta parecer inexplicável se deve a que não entendo os motivos da outra pessoa. Ou é igual uma harpia — suspirou Stephen. Não deveria ter falado. Não a tendo conhecido, não estou em posição de ter uma opinião. — levantou-se. — É hora de ir. Não quer vir comigo? Eu gostaria de tê-lo em casa. — Esta noite não. Estou muito cansado. Amanhã possivelmente. — esfregou os olhos doloridos. —Peça ao Barlow que me envie água quente. Dormirei melhor se limpar a sujeira da viagem. — Boa idéia. Se eu fosse um soldado francês o visse em seu atual estado me renderia no ato. — Vários deles o fizeram. — depois de rir os dois, Michael acrescentou— : Obrigado por fazer o esforço de enterrar a tocha. A mim não teria ocorrido jamais fazê-lo. — Sei, por isso tive que fazê-lo. Stephen apoiou a mão no ombro de seu irmão e depois partiu. Michael ficou imóvel na cama, sua mente um caos de pensamentos confusos, até que chegou 170


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a água quente. Custou-lhe um esforço lavar-se e barbear-se, mas isso o fez sentir-se mais humano. Estava guardando a navalha em seu alforje quando viu o caleidoscópio. O pôs diante do olho; dentro brilhou uma estrela cristalina. Arco íris quebrados, esperança quebradas, sonhos quebrados. Fê-lo girar e com um suave estalo continuo os vidros de cores formaram um novo desenho. Seu primeiro caleidoscópio lhe tinha produzido consolo em épocas anteriores de sua vida. Depois da morte de Caroline, estava acostumado a ficar horas olhando-o, tentando perder-se nas formas mutáveis, hipnóticas, procurando ordem no caos de sua vida. A diferença de Stephen, ele não era bom conhecedor do caráter das pessoas. Não deixaria de desejar Catherine embora ela o tivesse enganado mais de uma vez, e depois rechaçado por uma oferta melhor. Fez girar novamente o caleidoscópio. A figura se dissolveu em brilhantes flocos de neve multicoloridos. Até essa noite haveria dito que ele e seu irmão estavam condenados a uma vida apenas de hostilidade velada. Tinha estado equivocado. Se podia estar tão equivocado respeito de Stephen, podia estar equivocado também respeito de Catherine? «O caráter básico não troca.» Outro giro e os fragmentos do arco íris formaram ângulos mais planos. Ficou olhando a forma sem vê-la, enquanto em sua mente se formavam novas figuras, analisando-as com a mesma fria indiferença de maneira que teria analisado um problema de tática militar. Inclusive na época em que estava mais louco por Caroline era consciente de seus defeitos de caráter. Embora só anos depois viesse inteirar-se das profundidades de sua crueldade e engano, deu-se conta de sua vaidade e pequenas mentiras, de seu egoísmo e de sua necessidade de dominar sempre. Catherine era diferente. Embora lhe tenha mentido com freqüência e bem sempre tinha sido por necessidade; se não, era sincera. E jamais, jamais, nunca tinha sido cruel. Stephen tinha razão: para um observador objetivo, seu comportamento durante esse último e horrível encontro tinha sido estranho até o ponto de ser incrível. Ele tinha aceito cegamente a premissa de que ela não o desejava. Caroline lhe tinha feito fácil acreditar que era um tolo no que respeita às mulheres. Mas talvez se precipitasse em aceitar o rechaço. «Esquece o que lhe disse Catherine; enterra suas brutais palavras e a dor que produziram. Em seu lugar, pensa em seus atos. Que fator desconhecido pôde t ê-la convencido a enviá-lo para longe? » A cobiça não; uma mulher ambiciosa não vende as pérolas de sua mãe para dar dinheiro ao bastardo de seu marido infiel. Desejo de aplacar o lorde? Talvez, mas só fazia poucos dias que conhecia seu avô. Sua lealdade para o lorde não podia ser tão forte como sua lealdade para ele. Teria temido que ser deserdada pelo lorde privaria Amy do legado legítimo da menina? Essa sim era uma possibilidade. Ele teria se ocupado do futuro da menina como se fosse sua filha, mas era possível que Catherine não tivesse entendido isso. Além disso, ela não tinha idéia da envergadura de sua riqueza. Se tivesse acreditado que só possuía a parte correspondente ao filho mais novo, poderia haver pensando que seu dever maternal lhe exigia fazer o que fosse necessário para assegurar Skoal para sua filha. Entretanto, embora esse motivo tenha lógica, de qualquer modo não era suficiente para explicar a crueldade de sua conduta. Voltou a girar o caleidoscópio. Podia ser que Catherine tivesse ficado louca de desejos por 171


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Haldoran? Muito improvável. Seu primo era de uma natureza essencialmente fria; não era par para uma mulher que estava desfrutando de sua recém encontrada sexualidade, e menos de uma mulher que já tinha um companheiro de cama satisfatório. Michael continuou embaralhando possibilidades até que chegou ao motivo mais provável do inexplicável comportamento de Catherine: medo.Mas do que podia ter medo? Inclinou o caleidoscópio e se formou uma estrela bicuda e frágil, que lhe deu outra nova percepção. Haldoran era seu inimigo. Conforme disse ela, seu primo o tinha reconhecido imediatamente. Um homem sincero os teria delatado em seguida. A ocultação desse conhecimento marcava Haldoran como um homem com motivos ocultos. Era cruel e sua aversão a perder poderia estender-se a Skoal. Que melhor maneira de ficar com a ilha que obrigando a casar-se com ele sua linda prima, a herdeira escolhida? Em qualquer parte seria difícil conseguir um objetivo assim, mas no pequeno mundo feudal da ilha era possível. Haldoran esteve escutando durante toda essa última entrevista, e afinal ela estava quase frenética por fazê-lo partir. Se Haldoran a estava apontando com uma pistola, isso explicaria tudo. Desceu o caleidoscópio; talvez estivesse inventando um mistério onde não existia nenhum; talvez não. A única forma de estar certo era voltar para a ilha e falar com ela quando Haldoran não pudesse escutá-los. Se estivesse equivocado, quão pior poderia passar seria que ela esmigalhasse suas emoções, reduzi-lo a uma depressão suicida ou lhe ativar outro perigoso ataque de asma. Um ricto amargo lhe curvou a boca. Tinha sobrevivido a isso uma vez e estava disposto a arriscar -se novamente, porque se suas deduções eram corretas, a vida de Catherine poderia estar em grave perigo. Desejou partir em seguida, mas essa seria uma loucura em seu atual estado de esgotamento. Devia esperar até a manhã. Com a mente trabalhando a toda pressa apagou as velas e se meteu na cama. Em lugar de cavalgar até a Cornualha alugaria um carro; isso seria mais rápido, cansaria-se menos e estaria em Penward ao anoitecer. Não, não iria a Penward; esse povoado estava muito relacionado com Skoal; seria impossível fazer uma viagem secreta à ilha dali. Devia procurar transporte em um dos povoados vizinhos. Dali iria à ilha, e desta vez não seria despedido com tanta facilidade. O duque de Ashburton franziu o cenho ao ler a nota de seu irmão mais novo. Que característico de Michael fazer algo tão exaustivo como retornar apressado a Skoal ao despontar da alvorada. Teria sido agradável passar uns dias juntos e explorar as dimensões de sua nova relação. Preocupou-se ainda mais ao pensar no que poderia encontrar Michael em Skoal. Sem dúvida a situação era inofensiva e Catherine Melbourne não era outra coisa que uma porca sem coração. Mas poderia haver também um jogo perigoso. Ele tinha visto algumas vezes lorde Haldoran e o achava inquietante, até mesmo perigoso. Talvez devesse ir também a Skoal. Michael era o perito em violência, mas ele, em sua qualidade de duque, sabia bem e fazer-se respeitar e valorizar. Talvez isso fosse útil. Tomada a decisão, tocou a sineta para que viesse seu valete. A lua crescente que iluminava tenuemente a praia enegrecia ainda mais as sombras quando Michael pôs pé em terra na caverna dos Dinamarqueses. Meteu a mão sob o pulôver de pescador que usava e tirou a carta que tinha escrito a Lucien, lhe pedindo que fizesse uma investigação se ele desaparecesse. Embora isso não lhe salvasse a vida, poderia salvar a de Catherine, e 172


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asseguraria castigo a Haldoran. Voltou-se para o Caradoc, o barqueiro, e disse: — Se não estiver de volta ao amanhecer, vá sem mim e despacha esta carta a Londres imediatamente. Caradoc assentiu e guardou a carta. Ex-contramestre da Armada Real, não só conhecia as águas que rodeavam a ilha, mas, além disso, tinha aceito incondicionalmente o pedido de Michael de fazer tudo em segredo. Essa manhã à alvorada Michael tinha empreendido a marcha em carro, até o povoado Trenwyth, situado a alguns quilômetros ao leste de Penward. Ali encontrou a Caradoc, cuja mãe, famosa por seus trabalhos de ponto, tinha-lhe dado o pulôver de lã. Esse objeto de pescador, agasalhador e flexível, irá melhor em uma missão clandestina que o traje de um senhor. Vestido com roupa escura e o rosto negro de fumaça, subiu sigilosamente pelo precário caminho do escarpado. Felizmente sempre tinha tido uma habilidade felina para encontrar seu caminho às escuras. Outros sentidos mais difíceis de explicar lhe informaram que o bom tempo estava a ponto de mudar. Haveria uma forte tormenta dentro de um ou dois dias. Não levou muito tempo para chegar ao castelo. Já passava da meia-noite, por isso o edifício estava totalmente às escuras. Decidindo-se pelo método mais direto, subiu os degraus da porta principal e moveu o pomo. Estava com chave, feito curioso em uma ilha onde não se conhecia o roubo, a delinqüência nem as portas com chave. Como mais uma sombra entre as sombras, deu a volta ao castelo. Embora desde aquela divertida aventura com Lucien não tinha entrado como ladrão em uma casa, pensou que não seria difícil entrar assim no castelo. O verdadeiro problema seria encontrar Catherine. Podia estar no quarto que tinham compartilhado, ou, a idéia lhe formou um nó no estômago, podia estar compartilhando a cama com Haldoran em Ragnarok. Mas se seu avô continuava gravemente doente, o mais provável era que estivesse com o ancião. Chegou ao muro de trás e olhou atentamente as janelas dos aposentos do lorde. No quarto brilhava uma luz. Com a esperança deque Catherine estivesse ali, decidiu entra r pela sala de estar do ancião para poder chegar até ela sem aviso. Perto do balcão se erguia uma cerejeira. Os ramos superiores o aproximariam de uma distância da que poderia saltar. De um salto se agarrou do ramo mais baixo e sugurando-se firmemente na áspera casca, começou a subir. Capítulo 32 Catherine sempre tinha o sono leve quando dormia junto a um doente. Um pequeno ruído a despertou imediatamente. Olhou para seu avô. À luz da lamparina da noite viu que estava se agitando fracamente; levantou-se da maca e se aproximou de sua cama. De terra firme tinha vindo um médico que, depois de examiná-lo, estava de acordo que possivelmente se tratasse de apoplexia. Impressionado pela experiência dela com o enfermeira, voltou a sangrar o doente e partiu, deixando-o a seus cuidados. Isso foi uma satisfação para ela, tanto pela oportunidade de cuidar de seu avô como porque essa tarefa a separava de Haldoran. Tomou o pulso; estava um pouco mais rápido que antes. — Tenho a impressão de que está muito próximo de despertar, vovô— sussurrou. — Me ouve? Ele apertou os dedos e depois ficou imóvel. Catherine teve a impressão de que lhe funcionavam os dois lados do corpo, o que achou alentador; isso significava que talvez o derrame não lhe tinha causado um dano tão extenso. Rezou uma breve oração, pedindo que despertasse logo e com um domínio razoável de suas faculdades. 173


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Da sala de estar chegou um rangido apenas audível, como de uma das madeiras do chão. Fez-lhe um nó no estômago; podia ser Clive, que vinha vê-la; tinha instalado seu quarto do outro lado do corredor. Ou igual podia ser um de seus horríveis homens. Dia e noite um deles vigiava fora da porta dos aposentos do lorde. Com o pretexto de que o valete do lorde estava velho e adoentado, Haldoran enviava seus criados a ajudar no quarto do doente, o que na prática significava que ela estava mais prisioneira que se tivesse estado presa em um calabouço. Outro ruído débil. Compôs a expressão de seu rosto, contente de ter se deitado totalmente vestida em lugar de haver colocado uma camisola. Abriu a porta para a sala de estar. A primeira vista, tudo estava normal. Nesse momento, das sombras saiu uma figura escura, alta e poderosa, que se aproximou dela com o silêncio sobrenatural da morte; o mais terrível de tudo era que a criatura não tinha rosto. Involuntariamente soltou um leve grito. Uma mão dura lhe tampou a boca, silenciando-a. Sentindo o sólido peso da realidade e não o frio de um fantasma, debateu-se energicamente contra seu assaltante. Com um só movimento, ele a cravou contra a parede, imobilizando-a com seu peso. — Silêncio! Ela reconheceu o tato de seu corpo antes mesmo de ver brilhar seus olhos verdes no rosto enegrecido. Michael tinha voltado. Usava sua cara ameaçadora de guerreiro, e ela não soube bem se sentia medo dele ou por ele. De qualquer modo, o coração palpitou de involuntário prazer em sua presença. — Tirarei a mão se me prometer não gritar — sussurrou ele. — Se aceita diga sim com a cabeça. Ela assentiu. — Dado seu histórico, sou um estúpido ao acreditar — disse ele com voz férrea e a soltou. — Lembra que posso silenciá-la com muita rapidez se for necessário. Ela duvidou entre lhe dizer a verdade ou tentar enviá-lo longe novamente, por sua própria segurança. — por que está aqui? — perguntou receosa. Perfurou-lhe os olhos com seu olhar glacial. — Para saber o que é o que passa realmente. Depois de pensar as coisas me dei conta de que seu comportamento não tinha muita lógica. Haldoran estava lhe ameaçando? Se tinha deduzido até aí, não poderia voltar a enganá-lo. — Pior ainda —disse com dilacerador alívio. — Tem Amy. — Maldição! — Fechou os olhos um instante, com a expressão rígida. —Como? — Em sua viagem a Londres foi visitar os Mowbry e disse a Anne que eu o enviara para que trouxesse para Amy a Skoal. Dado que ele as acompanhou de Bruxelas a Amberes, ela não viu nenhum motivo para duvidar dele. As defesas que erigiu caíram, deixando só desolação. — Michael, perdoa, sinto tanto, tanto, o que fiz. Não tinha opção. Desesperada por apoiar-se nele, estendeu-lhe as mãos. Depois de um momento de vacilação, ele a agarrou em seus braços. Tremia dos pés a cabeça. Notou o calor do pulôver de lã ao lhe raspar brandamente a face, tão consolador como ele. Mas ainda em meio a sua aflição, advertiu que ele estava distinto, mais precavido que antes. Isso não tinha por que surpreendê-la; embora sua mente aceitasse que ela tinha atuado coagida, suas emoções tinham recebido uma surra da qual não se curaria facilmente. Mas por uns momentos desfrutou da ilusão de segurança. Uma vez recuperado certo domínio de si mesmo, disse sem mais: — Foi Haldoran o que matou Colin, não os bonapartistas. — O bode. — Michael a soltou, e acrescentou com expressão mortífera. —Ou seja, que levava 174


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tempo planejando isto. — Disse-me que se não lhe obedecesse o mataria. E... e insinuou que a idade para casar-se na ilha é de doze anos. Amy vai fazer doze no próximo ano. Michael soltou outra maldição. — Gosta muito de matar. Temos que resgatar Amy imediatamente. Está no castelo? — Está em Ragnarok. Não pudemos falar, mas ontem Haldoran me levou ali e me deixou vêla quando passeava pelo jardim. Têm-na vigiada sempre que sai de seu quarto. — Está bem? — Sim, ainda não sabe nada do que acontece. Ele disse que eu estava muito ocupada cuidando de lorde para vê-la, e que deve ser um bom soldado e cumprir as ordens. Mas logo vai começar a suspeitar alguma coisa. — Catherine tragou saliva. — Me aterroriza pensar que quando se der conta de que está prisioneira faça alguma imprudência. É igual a o seu pai, não teme nada. — A tiraremos dali antes que aconteça isso — l prometeu Michael. Catherine acariciou a testa, tentando de pensar em meio da tempestade de suas emoções. — Haldoran dorme em um quarto em frente. Tem quatro sentenciados trabalhando para ele. Creio que dois estão no castelo, um aí mesmo, do outro lado dessa porta. Graças a Deus que não me ouviu gritar. Michael olhou para a cama. — Como está o lorde? — Creio que um pouco melhor, mas continua inconsciente. — Aqui não tem nenhuma ajuda. — Franziu o cenho. — Se o deixar sozinho, corre algum perigo por parte de Haldoran? A ela tinha ocorrido pensar em quão fácil seria sufocar seu avô com um almofadão. — Não acredito — disse, em tom preocupado. — Não ganha nada matando-o enquanto eu estou viva e sou sua herdeira, mas não sei o que fará Clive. Creio que é meio louco. — Louco não, malvado. É hora de irmos — acrescentou, guiando-a para o balcão. Nesse instante a porta se abriu e entrou Haldoran com um sorriso de lobo, seguido por Doyle e outro sentenciado, os dois armados. — Não deveria ter dado esse grito de surpresa quando chegou seu amante, Catherine, nem deveriam ter perdido tempo em falar. Antes que Haldoran conseguisse dizer mais, Michael entrou em ação lançando-se contra os intrusos. Ao mesmo tempo empurrou Catherine para um lado, fazendo-a cair atrás do sofá, onde caiu sem fôlego. Por um instante continuou ali, preparada para receber um disparo; mas não houve ruído de disparos e sim de móveis ao quebrar-se. Caso que Haldoran não queria disparos para não despertar os criados, mostrou a cabeça por um dos extremos do sofá. A rápida reação de Michael tinha surtido efeito, Haldoran e Doyle estavam no chão meio aturdidos. Nesse momento Michael estava encetado em uma feroz luta com o outro sentenciado; arrancou-lhe a espingarda das mãos e, girando-a em arco, golpeou-lhe com ela na mandíbula, que fez um feio ruído de osso quebrado. Haldoran se levantou de um salto e agarrou o atiçador da lareira. — Cuidado! — gritou ela, saindo de trás do sofá. Michael estava girando-se e levantando a espingarda quando Haldoran lhe deu um golpe com o atiçador no crânio. Michael caiu ao chão com a arma junto a ele. Catherine tinha estado se preparando para lançar-se em um ataque desesperado, mas no momento em que se moveu, Haldoran já tinha pego a espingarda e a apontava para ela. Na mandíbula estava se formando um feio arroxeado pelo golpe recebido. — Não me tente, prima. Farei-a saltar em pedaços e direi aos criados que seu marido 175


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ciumento disparou antes que o matássemos. E se não me acreditarem, matarei-os também. Catherine se deteve; necessitava muito pouco para desatar uma violência mortal. No tenso silêncio que seguiu, Michael gemeu e se moveu a ponto de recuperar os sentidos. — Amarre-o — ordenou Haldoran a Doyle. — Seria muito complicado matá-lo aqui, assim teremos que levá-lo aos escarpados. Uma pedra no crânio e algumas semanas sob a água, cuidarão muito bem dele. — Seus olhos percorreram Catherine de cima abaixo. — Lhe Mato junto com seu amante ou apostamos que se comportará quando estiver morto? Embora não aparecesse nenhuma expressão em seu rosto, em seu interior se estava culpando amargamente. Se não tivesse gritado quando viu Michael... Se s tivessem partido imediatamente em lugar de falar...Se o tivesse advertido a respeito de Haldoran um instante antes... Deixou de remorsos inúteis. Iriam matar Michael e provavelmente ela também. Quanto a Amy... Era o momento mais negro de sua vida, e entretanto não podia jogar a toalha e deixar sua filha a mercê da maldade de Haldoran. Esforçando-se por falar em tom persuasivo, disse-lhe: — Sempre escolho a melhor oportunidade à vista, e novamente essa é você. Ele a olhou carrancudo, certamente não convencido, enquanto Doyle revistava o corpo murcho de Michael com tosca eficiência. O sentenciado lhe tirou uma pistola oculta e uma faca que levava na bota; depois lhe atou as mãos pelos pulsos. Quando terminou de amarrá-lo, Michael já tinha recuperado os sentidos e se sentou. Catherine viu que emanava sangue do couro cabeludo, mas essa escura força que tanto formava parte dele brilhava como o fogo do inferno. — Felicitações, Haldoran — disse Michael com desprezo. — conseguiste me vencer só com a ajuda de dois homens. Deve te sentir tremendamente orgulhoso. — O teria vencido sozinho — respondeu Haldoran olhando-o furioso. — Ah, sim? — As sobrancelhas arqueadas de Michael eram um eloqüente desprezo. — Disparo melhor que você, brigo melhor que você e o deixei me ferir no pulso quando nos batemos porque estava aborrecido em sua companhia e desejava partir logo. Não é mais que um aficionado, Haldoran. Imagina que é um grande esportista, mas jamais teve o valor de enfrentar uma verdadeira prova. O coração de Catherine se encolheu ao ver avançar um passo seu furioso primo. — Tolices — exclamou este. — Sou o melhor cavaleiro de caça da Inglaterra e venci Jackson em seu próprio salão de boxe. — Jackson é um tio preparado — replicou Michael com um sorriso zombador. — É bom negócio para ele deixar ganhar de vez em quando seus clientes mais va idosos. Repito, é um aficionado. Em lugar de entrar no exército e combater na partida mais importante de tod as, dedicou-se a caçar raposas na Inglaterra e sorrir satisfeito do fabuloso que se acredita. Isso é muito mais fácil que arriscar verdadeiramente a vida. Nesse instante Michael esteve muito perto da morte. Catherine soltou um angustiado gemido ao ver Haldoran afirmar a espingarda no ombro e preparar-se para disparar. Mas, controlando sua fúria, Haldoran se contentou dando um chute em Michael no estômago, derrubando-o novamente ao chão. — É fácil zombar, mas olha lhe em quem está mandando aqui. — Com ajuda profissional — resfolegou Michael quando recuperou o fôlego. — comandei um bom número de sentenciados como seus homens e lhes tenho um certo respeito; necessita-se fortaleza e inteligência para sobreviver no cárcere. Mas para você, Haldoran, só tenho desprezo. É um valentão que faz de vítimas mulheres e crianças. Não se atreve a enfrentar um homem que poderia derrotá-lo. 176


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— Bastardo! — grunhiu Haldoran. — O derrotaria em qualquer competição limpa, mas não vale a pena o esforço. — Pobre diabo — continuou Michael, movendo a cabeça com exagerada tristeza. — Não só valentão e fanfarrão, a não ser covarde, além disso. Surpreende-me que possa enfrentar a si mesmo no espelho. Haldoran lhe deu outro chute, desta vez nas costelas. Michael rodou pelo chão e foi ficar sob o sofá. Catherine estremeceu, sem conseguir compreender por que provocava essa brutalidade. Novamente Michael demorou uns momentos em recuperar o fôlego, mas não retrocedeu. — Tudo o que faz confirma que tenho razão — ofegou— Se não fosse tão covarde lhe faria um desafio que o poria realmente a prova, mas jamais o aceitaria. Tem medo de mim, e com razão. — Que tipo de desafio? — ladrou Haldoran com os olhos brilhantes. — Uma caça, já que é um caçador tão fabuloso. — estreitaram-se suas pupilas, lhe dando uma expressão feroz. — Você e eu na ilha Bone. Dê-me uma vantagem de cinco minutos e não conseguirá me agarrar jamais. Dê-me um dia e é um homem morto, vá armado ou não. Catherine reteve o fôlego, compreendendo. Queria ganhar tempo e comprar uma possibilidade de sobreviver. Haldoran vacilou e olhou Catherine. — Tem uma certa grandeza medieval esta idéia — continuou Michael. — Você e eu sozinhos em um combate, e o ganhador leva a dama. Não terá nenhum problema em dominar Catherine se conseguir me matar. Quando cheguei aqui me disse que partisse, que estragaria tudo. — Mentiroso — exclamou Haldoran, novamente furioso. — Estava disposta a sair pela janela contigo. Seus lábios ficaram brancos enquanto passeava seu olhar de Michael a Catherine e dela ao outro; depois se curvaram em um sorriso cruel, triunfante. — Não tenho que demonstrar nada, Kenyon. O combate entre dois pertence a Idade Média. Prefiro os prazeres da caça. Iremos a Bone, mas seremos eu e Doyle os que daremos caça a você e minha enganosa prima, com apenas as ovelhas e as gaivotas por testemunhas. A cara de Michael empalideceu, revelando a dor subjacente. — Isso o preocupa, não é? — disse Haldoran com a voz quase acariciante. — Só poderia me evitar durante um momento, mas se for com Catherine não, porque teria que ir mais lento. Terá que escolher entre abandoná-la para salvar sua pele umas horas mais, ou ficar com ela e morrer juntos. Em qualquer caso, morrerão, e terei o prazer de caçar meu troféu máximo. — É um estúpido se mata a uma mulher tão linda como Catherine — replicou Michael. — Uma esposa como ela é o troféu máximo. Será a inveja de todos os homens que conheça se casar-se com ela. Haldoran sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos. — Isso é certo, mas não posso deixar de desconfiar de sua boa fé. É do tipo de mulher que esperaria anos o momento oportuno para me cravar um estilete entre as costelas. Sua filha será mais moldável. — Farei um juramento de obediência que quiser se me prometer não tocar em Amy — disse Catherine com a voz embargada de angústia. — Mas é que desejo tocá-la. Seduz-me bastante a idéia de moldar uma virgem a meu desejo. — Voltou a sorrir, e desta vez o sorriso lhe saiu das profundidades de sua alma negra. — Saber que minha Santa prima Catherine morreu me amaldiçoando, acrescentará sabor. Ela olhou Michael e viu energia e determinação em seus olhos verdes. Quase o ouviu dizer que não abandonasse a esperança. Isso a tranqüilizou um pouco. Michael quase tinha abatido três homens ele sozinho e ela era menos incapaz que o que imaginava seu primo. Certamente não iria 177


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mansamente à matança. — É uma lástima que não tenha entrado no você. Com um ódio virulento no rosto ele moveu a espingarda para a porta. — Venha, a caminho, os dois. Temos que sair de Skoal antes que amanheça. Não tente gritar pedindo auxílio. Meus homens e eu possamos dirigir facilmente um bando de criados desarmados, mas preferiria não ter que matá-los. Meu pequeno reino necessita de todos seus súditos. Michael ficou de pé tentando não fazer nenhum gesto de dor. — Vejo que a justiça não forma parte de sua natureza, mas na verdade deveria permitir que Catherine troque de roupa. Vai ser uma caça na umidade e no frio. — Pode colocar suas calças se quiser — respondeu Haldoran dando de ombros. — A verdade é que eu gosto de vê-la com meias. Mas só lhe darei dez minutos para que vá a seu quarto e trocar-se. Se não estiver preparada, terei que levá-la de anáguas. Catherine fez trabalhar febrilmente sua mente enquanto seu primo a acompanhava até seu quarto. Tinha trazido para o Skoal as calças justas que usava na Península quando o clima era particularmente duro. Fariam-lhe mais fácil correr. Com sorte, também poderia ocultar algumas coisas nelas. Lástima que não tivesse nenhuma pistola no quarto. Capítulo 33 O amanhecer estava belo para navegar; as nuvens, recortadas contra um céu índigo, tinham suas bordas cor carmesim e rosa salmão. Mas as agitadas correntes e as rochas mortais estavam à altura da má reputação do canal. Catherine teria achado inquietante a viagem se não fosse um iminente perigo maior. Seus anos na ilha tinha feito de Haldoran um bom marinheiro. Enquanto o sol começava a aparecer por cima do horizonte, ele dirigia sua barco experientemente sorteando recifes e gritando ordens a Doyle e a outro de seus homens, um indivíduo com cara de furão chamado Spiner. O condenado com a mandíbula quebrada ficou em Ragnarok cuidando da lesão. Catherine se sentia muito só e assustada. Haldoran tinha se ocupado em amarrá-los em diferentes espaços e em posições nas quais não podiam ver-se. Mas ela estava à vista de seu primo; cada vez que ele dirigia seu ávido olhar a suas pernas só cobertas pelas calças, ela se arrumava para manter o rosto impassível. Se chega sse a agarrá-la viva, certamente a ia violar antes que morresse. Mas seu traje masculino lhe seria útil depois. Além das botas de montar e as calças cor torrada, tinha seguido o exemplo de Michael e vestiu um pulôver de tricô, presente de uma anciã da ilha. O objeto estava tecido com lã sem tingir, mesclando cores de nata a o marrom escuro, que lhe serviriam para camuflar-se na paisagem. Chegaram a Bone muito depressa. O veleiro entrou em uma pequena baía rodeada por colinas de ladeiras muito inclinadas. Era um lugar deserto em que os únicos sons que se ouviam eram as ondas ao romper na praia predegosa e os agudos gritos das gaivotas. Haldoran atracou o navio a um rústico embarcadouro. Então Doyle cortou as amarras dos prisioneiros e os empurrou sem cerimônias para que descessem. Spiner ficou dentro, com a ordem de vigiar o veleiro enquanto seu amo ia a caça. A incômoda posição que Catherine ficou no barco lhe havia endurecido os músculos, por isso deu um tropeção ao descer ao embarcadouro. Michael a segurou antes que caísse e depois lhe passou o braço pela cintura e a conduziu até a praia predegosa. 178


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— Estica e flexiona as pernas para que possa correr quando chegar o momento —ordenou. Tinha-lhe secado o sangue no cabelo e tinha o rosto escuro pela fuligem e as manchas roxas, mas estava magnífico e perigoso, como um antigo rei guerreiro. Sua aguda vista estava esquadrinhando as colinas e avaliando suas condições. Vê-lo assim lhe deu um raio de esperança a Catherine. Começou a fazer flexões e a esticar os braços e as pernas. Uma vez que Haldoran apanhou seu caro rifle esportivo e sua bolsa de munições, se reuniu com eles na praia. — Assegurou que era capaz escapar de mim com uma vantagem de cinco minutos, mas serei generoso e lhes darei dez minutos. Isso é o mínimo que terão para se perderem de vista. Michael o olhou tranqüilamente. — Posto que conhece a ilha e nós não, há uma possibilidade de que ganhe. Mas não achará satisfação nisso. Pelo resto de sua vida terá que suportar o conhecimento de que eu era o melhor. A única maneira de poder ganhar era jogar as cartas a seu favor. — Tenho a impressão de que se resignou a perder e está preparando suas desculpas —disse Haldoran zombador. — Trate de me proporcionar uma boa caça, Kenyon. Este último tempo de vida na ilha foi condenadamente aborrecida. — Tirou um relógio do bolso. — Têm dez minutos, que começam já! Tão depressa? Catherine ficou olhando-o. Apesar de seu primo ter dito claramente suas intenções, não tinha captado a brutal realidade de que no espaço de um batimento do coração seria transformada de mulher normal civilizada em prisioneira de caça. Mais experiente em selvagerias, Michael não teve esse problema. — É hora de correr, carinho — lhe agarrou a mão e a puxou para pô-la em marcha. — Pegaremos esse caminho da esquerda. Superando sua paralisia, colocou-se junto a Michael e pôs-se a correr a maior velocidade possível por sobre as pedras arredondadas da praia. Quando chegaram à pequena esplanada coberta de ervas aumentou a velocidade. Michael trotava a seu lado, levando o passo sem nenhum esforço. Levou-lhes uns dois minutos chegar ao pé da colina, onde começava um atalho de animais que subia ziguezagueando pela inclinada ladeira que mais parecia um escarpado. Amedrontou-se ao ver o estreito atalho; jamais conseguiria chegar ao topo no tempo concedido. — Você primeiro —disse Michael. — Não vá tão rápido para não ficar esgotada na metade do caminho. Ela retrocedeu. — Vá você na frente. Eu o frearei. — Resistimos juntos ou caímos juntos, Catherine. — Deu-lhe uma palmada no traseiro como se fosse um pônei nervoso. —Mova-se. Começou a subir. Anos de vida de campanha a tinham robustecido fisicamente, e em tempos de paz tinha continuado ativa, com caminhadas e cavalgadas. Mas embora fosse forte para uma mulher, nunca poderia estar à altura de um homem como Michael. Haldoran tinha razão; se Michael ficasse com ela poderia lhe custar a vida. Mas por sua honra nunca a abandonaria. Saber que a sobrevivência dele dependia dela lhe aumentou a resolução. A erva estava úmida e escorregou várias vezes. Levava os olhos fixos no atalho. Uma torcedura no tornozelo podia ser uma sentença de morte. Quando chegaram a metade do caminho, já respirava com fôlego entrecortado e as pernas tremiam. Começava a lhe picar as costas entre as omoplatas. Quantos minutos haviam passado? Seis? sete? Enquanto seguissem na ladeira estavam em perigo de morte. — Já passarão oito minutos — bramou a ameaçadora voz de Haldoran, ressonando por toda a baía, — e ainda são alvos fáceis. 179


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— Não perca tempo preocupando-se disse Michael, — quando disparar apontará para mim primeiro, e a essa distância o mais provável é que erre o tiro. Apesar desse conselho de não preocupar-se, em sua mente começou a funcionar um relógio, tiquetaqueando os segundos: «Onze, doze...». Soltou um suspiro e se dobrou, atendida por uma forte pontada no flanco. Endireitou-se e se obrigou a não fazer caso da dor e a continuar. «Trinta e cinco, trinta e seis...» Quanto faltará? «Cinqüenta, cinqüenta e um...» Olhou para cima e viu desesperada que quase não restava tempo. «Sessenta e dois, sessenta e três.» Começou a cambalear-se e esteve a ponto de cair. — Pensa em Amy — disse Michael. De uma reserva desconhecida lhe brotou energia que a renovou. O topo da colina estava sedutoramente perto. «Cento e um, dois, três...» A ladeira se fez mais elevada. Agarrou-se nas matas de ervas e as aproveitou para arrastar-se para cima. Ardiam-lhe os pulmões com a desesperada necessidade de inspirar ar. «Quinze, dez esseis...» O relógio mental chegou aos dois minutos. Uns poucos metros mais e estariam fora de perigo, mas Haldoran podia começar a disparar em qualquer momento. De repente o terreno se fez mais plano e o caminho mais largo. Michael ficou a seu lado e lhe rodeou a cintura com um braço, praticamente levando-a em peso o último trecho. Tão logo chegaram ao topo, empurrou-a para o chão. O horroroso disparo soou antes que tocassem a erva baixa, e a uns poucos metros deles saltou uma parte de terra, indicando o lugar onde tinha caído a bala. — Esse é um bom rifle e ele é um bom atirador — ofegou Michael. — Mas ganhamos a primeira ronda. Temos que avançar uns metros mais e poderemos descansar um minuto. Ela assentiu em silêncio e se arrastou a quatro patas pela erva até ficar bastante afastada do lado. Depois se virou até ficar de costas, os pulmões bombeando freneticamente. Michael a tratava como se ela fosse um soldado particularmente fraco a suas ordens. Sem dúvida era melhor evitar os problemas pessoais entre eles, mas teria agradecido humildemente qualquer palavra ou contato que demonstrasse que tinham sido amantes. Michael também respirava fortemente, mas tinha a cabeça erguida e estudava o terreno com fria concentração. — Direi uma coisa que pode lhe animar um pouco —disse. — Entreguei uma carta ao barqueiro que me trouxe para Skoal. Tinha que enviá -la a Londres se eu não fosse encontrar-me com ele ao amanhecer. Posto que faltei à entrevista, a carta vai a caminho de meu amigo Lucien. Explico-lhe minhas suspeitas e peço que faça suas investigações se eu desaparecer. Durante anos foi o chefe de espionagem do governo, de modo que saberá descobrir o que aconteceu e tomará medidas necessárias contra Haldoran. — Poderá libertar Amy? — perguntou ela, com angustiada esperança, elevando a cabeça. — Garanto-lhe isso. Poderia demorar um tempo, mas não ficará nas mãos de Haldoran. — Graças a Deus. Embora fosse um enorme alívio saber que sua filha não seria uma vítima durante muito tempo, adoecia-a a idéia do que poderia lhe acontecer antes. Continuou imóvel durante outros doze pulsados do coração e logo se obrigou a sentar-se e olhar a ilha. Bone era uma paragem deserta e árida que lhe recordou os desertos de Yorkshire. Só se viam umas poucas árvores baixas que não formavam barreira suficiente para amortecer a força dos incessantes ventos marinhos. Entretanto, a maior parte era uma chapada rochosa coberta por erva verde que os animais mantinham curto ao pastar. Esparramadas pela chapada se viam as formas cinzas de várias centenas de ovelhas; a umas centenas de metros para a esquerda havia um gado 180


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de considerável tamanho. Aqui e lá se viam grupos de gado bovino, animais robustos de chifres longos e abundante pelagem cor vermelha. — Não há muitos lugares para esconder-se. Deveremos entrar nas colinas? — Provavelmente Haldoran vai supor que faremos isso. Será melhor seguir para a esquerda, pelo meio do rebanho de ovelhas. O terreno é mais irregular do que parece a primeira vista, de modo que há muitos lugares para ocultar-se. Também temos a sorte de que esta erva é forte e mole. Se tomarmos cuidado será quase impossível encontrar nossos rastros. — As suas ordens, coronel — disse ela levantando-se cansadamente. —Você está a cargo da estratégia e as táticas. Michael caminhou rápido até que se aproximaram do gado e uma vez ali diminuiu o passo para não assustar às ovelhas, o que alertaria seus perseguidores. Esse passo lento arrepiou a pele de Catherine. Quanto tempo faltaria para que os caçadores chegassem ao topo da colina? Uma vez no meio do gado avançaram mais rápido. Michael tinha razão em relação à irregularidade do terreno. Havia suaves montículos e depressões que ofereciam melhor cobertura que o que imaginou ela. Quando já não era visível o topo da colina, ele virou para a esquerda e caminharam em círculo até ficar atrás de uma espécie de serra baixa, ramificação das colinas, coroada por matagais de arbustos baixos. — me espere aqui —disse em voz baixa. — Se tiver calculado bem, deveria poder ver sem ser visto. Subiu de quatro e ao chegar aos matagais continuou arrastando-se sobre o ventre. — Êxito — sussurrou ao fim de um minuto. — Se quer ver, se aproxime com cuidado. Ela se deitou ano chão e subiu arrastando-se até ficar a seu lado. A altura lhes dava uma clara visão do lugar de onde tinham entrado na chapada. Ali se viam nesse momento as pequenas figuras de Haldoran e Boyle, tomando fôlego depois da escalada. Os dois levavam rifles. Seu primo esquadrinhou lentamente a chapada e depois fez um gesto para as colinas. Os dois homens empreenderam a marcha a passo enérgico, afastando-se de seus prisioneiros. Catherine soltou um suspiro de alívio. Tinham ganho um segundo round e isso lhes dava certa pausa. — Tem algum plano? — perguntou em voz baixa, embora fosse impossível que seus caçadores a ouvissem nessa distância. — Evitar que nos apanhem — respondeu ele secamente. — Não tenho planos, a não ser puras medidas para situações de emergência. Aproxima-se uma forte tormenta, provavelmente será esta noite. Isso nos favorecerá. A ilha não será um lugar agradável quando cair a tormenta. Provavelmente Haldoran e seus homens retornarão a Skoal para evitar ficar presos aqui. — Supondo que não é muito esperar que se afoguem na viagem de volta. Há alguma possibilidade de que o disparo de Clive tenha atraído a atenção em Skoal? — Não; o vento está soprando do leste. E ainda no caso de que algum pescador o tivesse ouvido e devesse investigar, seu primo inventaria alguma mentira aceitável para explicar por que está aqui. E se isso não desse resultado, creio que não vacilaria em matá-lo. Deveria ter sabido que ele já tinha pensado em todas as possibilidades. — O que pensa de nossas possibilidades de sobreviver? A verdade, por favor. — Isso é difícil de dizer. — Olhou-a com expressão preocupada. — Creio que é possível nos ocultar e viver da terra indefinidamente, mas a paciência de Haldoran não vai durar mais de um ou dois dias. Meu temor é que traga cães para nos rastrear. A idéia lhe produziu um calafrio que percorreu todo o corpo. Uma matilha lhes ladrando nos calcanhares. 181


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— Há alguma maneira de inverter a situação? — Poderia ser. Quero estudar a configuração do terreno. É possível que exista um lugar adequado para lhes estender uma emboscada, embora não será fácil abater dois homens arma dos. — Olhou por volta do mar e Fechou os olhos. — Como último recurso, poderíamos nadar até Skoal. — Diz a sério? — perguntou olhando-o fixamente. — O canal entre as ilhas é notoriamente perigoso. Eu sei nadar um pouco, mas jamais conseguiria em águas ag itadas. — Eu poderia ser capaz de fazê-lo. Se conseguisse, enviaria ajuda.— Franziu o cenho. — Mas preferiria não lhe deixar sozinha. A idéia a consternou. Michael não só teria que encarar a água fria, as rochas e as correntes perigosas e talvez tivesse que fazer a travessia a noite, para evitar ser visto. As probabilidades de que sobrevivesse a tudo isso não eram boas. — Ir nadando é certamente um último recurso. — Afogar-se enquanto tenta escapar seria melhor que morrer de tiro como um cervo. Sigilosamente se retirou dos matagais. Catherine o seguiu colina abaixo. Ao fundo corria um diminuto arroio. Ele colocou as palmas no lodo da borda e logo as limpou nas calças dela, com mãos impessoais. — Será mais difícil ver-te com estas manchas escuras. Ponha um pouco no rosto também. Se encontrarmos um pouco de argila cor clara a usarei para manchar este pulôver escuro que levo. — Pelo visto sabe muitíssimo sobre ser caçado. Ele fez uma careta. — Uma vez, quando era um oficial muito novo na Espanha, fiquei separado de meus homens durante uma patrulha de exploração. Não foi minha hora mais alegre. Os franceses se inteiraram de que andava um oficial perdido atrás de suas linhas e organizaram uma caçada. Embora conseguisse evitá-los durante três dias, finalmente me capturaram. Consegui escapar, mas outros oficiais de minha companhia não paravam de fazer brincadeiras por ser tão inepto. Foi uma experiência muito esclarecedora. Ela sorriu embora estivesse de ânimo sombrio. Tinha causado tantos problemas a Michael como às demais pessoas próximas a ela. Colin tinha morrido por sua causa, Michael podia morrer também, e Amy estava prisioneira e diante de um futuro inqualificável. Racionalmente sabia que ela não era responsável pela maldade de Haldoran, mas de qualquer modo, sentia-se esmagada pelo sentimento de culpa. Contemplou Michael, que estava lavando as mãos no arroio. Ele faria todo o possível para tirá-la disto viva. Impulsionado pela honra, provavelmente ele sacrificaria sua vida para salvar a dela. Mas não voltaria a desejá-la em sua vida depois de todo o ocorrido. Tinha atirado bem seus dardos quando o obrigou a partir, e com isso tinha destruído, talvez sem remédio, a frágil confiança que foi se desenvolvendo nele. Mas havia uma coisa que devia fazer enquanto ainda houvesse tempo. — Lamento todas as coisas horríveis que disse quando pedi que partisse de Skoal. Talvez pudesse tê-lo feito de outra maneira, mas não me ocorreu. — estremeceu ao reviver com todos seus detalhes esses angustiantes momentos. — Colín morreu por minha causa — acrescentou sem mais. — Não poderia ter suportado ser a causa de sua morte também. Indicou-lhe com um gesto que deviam reatar a marcha. — Não se culpe da morte de Colin. Foi Haldoran quem apertou o gatilho. Ela torceu a boca ao mesmo tempo que começava a caminhar a seu lado. — Mas fica o fato de que se Colin não tivesse se casado comigo não estaria morto. — Não? — Michael afastou o ramo de um arbusto para lhe permitir passar. — Ele mesmo 182


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disse que Charles e ele teriam morrido em Waterloo se eu não lhe tivesse emprestado meu cavalo. Esse empréstimo foi a conseqüência direta de que você tivesse me permitido generosamente compartilhar seu alojamento. Por esse motivo eu não quis aceitar que seu marido cometesse uma estupidez. Graças a você. Charles está vivo e Colín ganhou quase um ano extra de vida. Ela franziu o cenho. — Não vejo muito claro a lógica disso. O se deu de ombros. — Para você tem mais lógica se crucificar pelo que não poderia ter mudado. Não conheci bem Colín, mas creio que não teria desejado que passasse o resto de sua vida paralisada pela culpa. Nisso tinha razão. Colin não tinha esse tipo de mesquinharia. Olhou seu companheiro de esguelha. — Obrigado por todo —disse docemente, — por ser o suficientemente inteligente para ver os problemas e o suficientemente valente para enfrentar o dragão. — Esperemos que minhas habilidades para matar dragões seja suficientemente boa — respondeu ele em tom sardônico. Por sua expressão ela supôs que não tinha acertado dizer o que convinha. Com a esperança de apagar essa tristeza de seus olhos, disse-lhe: — Arrumei para trazer uma caixa de pederneira e iscas e uma navalha. — meteu a mão pelo pescoço do grosso pulôver e tirou uma bolsa que tinha feito com um lenço, pendurando-o entre seus seios. —Lamento não ter encontrado uma arma melhor. Michael se deteve, sua tristeza substituída por interesse. — Acabam de melhorar nossas possibilidades de sobrevivência. Eu tinha uma faca e uma pistola, mas os homens de Haldoran as encontraram quando me revistaram em Skoal. — Abriu a navalha e passou o dedo para comprovar o fio das folhas. — Depois procurarei uma pedra para afiá-la um pouco, mas isto será suficiente para cortar o cangote de um homem. — Alegra-me que aprove. Seguro que sabe mais sobre cortar cangotes que eu. Ele afundou as folhas e guardou a navalha no bolso. — Outro pouco de sorte — continuou ele. — Não sabia com o que ia me encontrar quando chegasse à ilha, assim tentei vir preparado. Doyle encontrou minha pistola e minha faca, mas não a corda que tenho atada ao redor da cintura. A trouxe porque pensei que podia me servir para escalar um escarpado ou para entrar por uma janela do castelo. — Esboçou um sorriso. — Embora não a usei para isso, pelo menos me protegeu dos chutes de Haldoran. Sim que se via mais gordo que o que podia lhe avultar o grosso pulôver. Preocupado por encontrar armas, Doyle não notou as capas de corda. — Fantástico. Já recebeste bastante castigo. — E haverá mais antes que acabe tudo isto — respondeu ele, mordaz. —É hora de explorar. Segundo o guia que li no caminho de Skoal, Bone tem algumas características que poderiam nos ser de utilidade. — Quais são? — Cavernas marinhas. Não nos convém ficar presos em um lugar com uma só entrada, mas vamos precisar de proteção se a tormenta for tão forte como creio que será. Uma caverna poderia ser nossa única opção. Ela franziu o cenho. — Meu avô me falou uma vez de uma caverna que está no extremo oeste de Bone. É a maior das ilhas e só se pode acessar a ela quando a maré está baixa. Disse-me que devíamos vir visitá-la antes de partir para terra firme. Mas meu primo deve conhecê-la, ou seja que não seria segura. 183


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— É verdade, mas deve haver outras. Também é possível que restassem casas, da época em que esta ilha estava habitada. Quanto mais saibamos da ilha, melhor. — meteu no bolso a caixa de perdeneira. —Vejamos o que conseguimos encontrar. Puseram-se a andar em direção oposta à tomada pelos caçadores. Michael era um professor na arte de avançar através do campo sem chamar atenção, aproveitando qualquer cobertura que oferecesse o terreno. Embora seus largos passos fossem relaxados, seus olhos alertas não deixavam de esquadrinhar tudo se por acaso havia perigo. Havia dito a verdade quando jogou a isca a Haldoran em Skoal: Michael era um profissional que tinha aprendido suas habilidades no jogo mais perigos de todos. Certamente Haldoran não estava a sua altura. Haldoran contemplou carrancudo as colinas que os rodeavam, importunado por seus instintos de caçador. — Se quisesse se ocultar nesta ilha, aonde iria? — perguntou a seu acompanhante. Doyle pestanejou, com seu rosto cheio de cicatrizes perplexo. — A estas colinas. O resto desta maldita rocha está muito à vista. Haldoran soltou uma maldição mental: qualquer resposta que desse Doyle era muito evidente para ser correta. — Kenyon seguiu para o outro lado. Deveria tê-lo suposto. — O extremo oeste da ilha é pura rocha nua — disse Doyle duvidoso. — Não vi sinais deles por esse lado. — Há lugares que oferecem cobertura a um homem inteligente— ladrou Haldoran, furioso consigo mesmo por não haver se metido antes na mente de sua prisioneira. Deu meia volta e começou a caminhar a grandes passadas na direção oposta. — Vamos, perdemos um tempo precioso. capítulo 34 Várias horas de exploração confirmaram a desolação de Bone. Catherine e Michael atravessaram a ilha e seguiram uma parte da costa, mas além de vários alqueires em ruínas, não encontraram o menor rastro de habitação humana. A capa de terra era magra e sustentava principalmente ervas tosca e de quando em quando um grupo de flores silvestres. A única vegetação densa estava em pequenos terrenos baixos protegidos do vento. No mais belo destes terrenos baixos encontraram um simpático«bosque de elfos», com árvores retorcidas e um assombros tapete de jacintos silvestres. Contemplando as flores Catherine não pôde deixar de pensar que esse era um lugar ideal para um piquenique campestre e para fazer amor. Mas não tinham comida e já não eram amantes. Esse tinha sido um breve período de felicidade que tinha acabado quase antes de começar. Michael lhe dirigiu um rápido olhar. — Sente-se um momento. Deve estar esgotada. — Não esgotada exatamente, mas sim cansada — respondeu ela, e agradecida se estendeu entre os jacintos. Em lugar de deitar-se como ela, Michael se sentou com as costas apoiada em uma árvore, com todos os sentidos alertas. Novamente ela pensou em cavalheiros medievais e em matança de dragões, embora já estivesse muito velha e suja para ser uma apropriada donzela. Depois de quinze minutos em silêncio, ele se levantou e lhe estendeu a mão para ajudá-la a levantar-se. Ela continuava tão cansada como antes de sentar-se. — Seria este um bom lugar para ficar? Ele negou com a cabeça. 184


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— As árvores dão uma falsa impressão de segurança, e o lugar chama muito a atenção. É muito possível que Haldoran nos procure aqui. — Mas não podemos caminhar eternamente. Qual seria o lugar ideal para nos instalar? — Um de onde possamos ver em todas as direções sem ser vistos — respondeu ele sem vacilar. — Teria que ter também vários pontos para sair, para poder nos retirar com segurança se for necessário. Além de poder ter um bom fogo e um delicioso jantar de carne assada com pudim de Yorkshire. Ela lançou um gemido, embora esse irônico humor a animasse. — Tinha que incluir esse último? Tão preocupada que me sentia porque estava comendo muito e não comi nada desde ontem ao meio-dia. — Sinto muito. Se a tormenta afugentar Haldoran da ilha, teremos tempo para encontrar alimento. Chegaram ao lado do terreno baixo. Michael se agachou e lhe indicou com um gesto que o esperasse enquanto ele avançava sigilosamente. Depois de olhar em todas direções lhe fez um gesto para que se reunisse a ele. — Temos que ter mais cuidado —sussurrou. — Haldoran já deve haver-se dado conta de que não nos internamos nas colinas. Já poderia estar neste extremo da ilha. Estamos a salvo enquanto evitemos chamar a atenção, mas se nos vê uma vez, vai nos ser difícil voltar a nos libertar dele. Catherine voltou a sentir angústia, renovada com acréscimo. — Ao menos essa tormenta que prognosticou está bem avançada. — Essa é nossa vantagem. As tormentas favorecem os perseguidos. Michael levantou a vista ao céu, onde as nuvens estavam se engrossando. Durante o momento que estiveram no terreno baixo, o vento tinha aumentado. Passaram voando algumas folhas mortas do outono passado. — Esperemos que seu primo decida voltar para Skoal antes que caia a tormenta. E depois da tormenta poderia voltar com cães para rastreá -los, pensou ela. Desprezou o pensamento. Deviam sobreviver hoje antes que o amanhã se convertesse em problema. Continuaram o percurso em ziguezague. Catherine imaginava que Michael já conheceria todas as árvores, todas as rochas e todas as irregularidades da superfície que tinham explorado. Chegaram a uma pequena colina e deram a volta em círculo por um lado; Michael mantinha firme respeito a não expor jamais suas silhuetas contra o horizonte. Do outro lado da colina descobriram um pequeno vale em cujo fundo havia uma aldeia em ruínas. — Civilização — comentou ela ironicamente. — Ali há outros sinais mais antigos deste lugar ter estado habitado — disse ele apontando para o extremo esquerdo do vale. Em cima da colina se via um círculo druida, formado por pedras irregulares que se erguiam espetacularmente contra o céu nublado. Um rebanho de vacas peludas mais prosaicas pastava entre as pedras e pela ladeira. Catherine estava interessada em coisas mais práticas. — Embora faça muito tempo que esteve abandonada esta aldeia, poderia haver verduras que cresceram silvestres nas antigas hortas. Além disso, isso ali parece ser um pomar. Poderia haver maçãs madrugadoras em um lugar tão protegido como este. Ele olhou com receio para o círculo de colinas. — Vale a pena tentar, mas não resta muito tempo. Facilmente poderíamos ficar presos aqui. Desceram a ladeira até a aldeia. Havia várias dezenas de casas dispersadas na única rua. Todas eram simples ovalóides de pedra com teto de pães de erva. Fazia tempo que os tetos desabaram e muitas paredes também. Entre os limites do que em outro tempo foram casas 185


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cresciam erva daninha e flores. Catherine tentou imaginar como teria sido viver ali. — As casas têm aspecto muito primitivo. — São similares às casas sem janelas das Hébridas escocesas. Uma vez visitei uma. No centro da casa acendem uma fogueira conturba e a fumaça invade tudo e finalmente sai por um buraco feito no meio do teto. É uma capa de fumaça que sufocaria um cavalo alto a um metro ou mais do chão — fez um gesto de desagrado. — Não é um bom lugar para um asmático. Algo se moveu à direita. Michael se virou rapidamente e a navalha apareceu aberta em sua mão como por arte de magia. Uma ovelha saiu trotando de entre duas casas ruídas, movendo as mandíbulas placidamente. Michael relaxou e guardou a navalha. — Esse animal tem a sorte de que não tenhamos tempo para acender um fogo. Carne de cordeiro assada cairia muito bem neste momento. — Conforma-se com maçãs? A horta está em boa forma. Quando os ilhéus vierem tosquiar às ovelhas deveriam podar as macieiras também. — Cordeiro assado com maçãs — murmurou Michael. — Coelho guisado com maçãs, pescado ao forno com maçãs. Sem fazer caso de suas fantasias, ela se dirigiu à horta. Uma humilde maçã lhe pareceria ambrósia nesse momento. Rogando pragas por dentro avançava rumo ao oeste através de Bone. Doyle caminhava imperturbável por uma rota paralela a uns duzentos metros de distância. O sentenciado era da cidade e não era um verdadeiro caçador, mas era rápido para carregar as armas de seu amo e era bom atirador se por alguma casualidade fosse necessária uma segunda arma. O olhar de Haldoran percorria a ilha de um lado a outro. Embora a intuição lhe confirmava que tinha feito bem em abandonar a busca pela parte montanhosa, ainda não encontrava sinais de seus prisioneiros. Deveria ter trazido seus cães sabujos. Traria-os depois se fosse necessário. Embora não duvidasse do resultado final, a ilha era bastante grande, de modo que a caçada poderia levar muito tempo. A maldita erva flexível fazia quase impossível seguir rastros. E ainda por cima, dava a impressão de que se aproximava uma tormenta. Reconhecer que tinha sido um estúpido ao deixar-se convencer dessa caçada não melhorava seu humor. Estando gravemente doente o lorde e Catherine desaparecida, não era conveniente que o parente masculino mais próximo do lorde estivesse ausente de Skoal muito tempo. Tinha deixado uma nota no castelo dizendo que sua prima tinha desaparecido e ele tinha saído em sua busca, mas não podia manter indefinidamente essa explicação. Mas embora não fosse prudente essa caçada, a verdade é que não podia lamentá-la. Sempre tinha desejado a oportunidade de perseguir prisioneir os humanos, e Kenyon era um prisioneiro ardiloso. Quanto a Catherine, teria que morrer, é claro, mas com sorte, teria tempo para primeiro desfrutar de seus pródigos encantos. Doyle também agradeceria a oportunidade de violar uma dama depois que seu amo acabasse. A idéia era tão sedutora como a perspectiva de matar Kenyon. No bosque de elfos encontrou os primeiros rastros claros dos fugitivos. Uns jacintos esmagados indicavam que duas pessoas se detiveram ali um momento. Sabendo que não podiam estar muito longe, seguiu adiante entusiasmado. Mais à frente estava a antiga aldeia. Se estivessem ali, seria fácil encurralá-los no pequeno vale. Qualquer intento de fuga seria descoberto nas nuas ladeiras verdes das colinas. E com um rifle especialmente desenhado como o seu, todo o vale estava ao alcance de seus tiros. Fez gestos a Doyle para que se reunisse. Juntos subiram a colina. Não fez nenhum intento de ocultar sua chegada; agradava-lhe a idéia de ver seus prisioneiros correr aterrados. 186


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Deteve-se no topo e esquadrinhou o fundo do vale. — Eureca — exclamou com um suspiro de voluptuoso prazer. Apenas visíveis entre as árvores da horta, estavam os fugitivos comendo maçãs. Idiotas. Podia matá-los de onde estava. Mas isso seria muito fácil, muito rápido. Levantou o rifle, martelou-o e apontou. — Vejamos-os correr antes de acabar com eles. Sorrindo apertou o gatilho. As maçãs estavam boas, mas melhor ainda era olhar o desenvolto prazer de Catherine enquanto comia sua segunda maçã. Michael sentiu um golpe de ternura protetora ao vê-la lamber o lábio para apanhar uma gota de suco. Era a mulher mais valente que tinha conhecido em sua vida; fazia o que tinha que fazer, sem queixar-se nem reprovar jamais por ter precipitado esse desastre voltando a Skoal. Catherine devorou seu último bocado. — Posto que pode não ser prudente voltar aqui, levemos algumas maçãs. — Boa idéia — disse ele. Separou-se dela e esticou a mão para agarrar mais frutas. Nesse instante soou o disparo. A bala do rifle parou no tronco da árvore, entre eles. — Maldição! Amaldiçoando-se enfurecido por estar olhando Catherine em lugar das colinas, agarrou sua mão e a puxou para o meio da horta. A folhagem os protegeria da vista de quem estivesse acima. — Provavelmente vão descer, assim teremos que nos retirar pelo meio da aldeia — disse ele. Havia medo nos olhos dela, mas quando falou sua voz soou tranqüila: — Não nos verão se tentarmos d sair do vale? As colinas não oferecem nenhuma cobertura. — Tem razão. Embora seja arriscado, creio que o melhor plano é nos esconder em uma das casas arruinadas. Vi um lugar apropriado faz um momento. Com sorte, vão pensar que conseguimos sair do vale sem sermos vistos. Movendo-se como sombras, avançaram pela horta para a aldeia. Quando chegaram às últimas árvores, Michael fez um gesto a Catherine para que ficasse ali enquanto ele ia olhar a colina de onde tinha vindo o disparo. Se os caçadores se separaram e um estava esperando em cima com um rifle, ele seria um alvo fácil. Mas os dois homens vinham descendo para o vale. Conseguiu vê-los um instante antes que as árvores lhe tampassem a visão. Tinham quando muito quatro ou cinco minutos, enquanto seus perseguidores revisavam a horta para depois ir procurálos na aldeia. Indicou Catherine que o seguisse. A casa que tinha visto antes estava na metade da rua. Uma parede desabou; os outros extremos de suas vigas tinham ficado seguros à parede de trás, e entre viga e viga se suspendia uma malha compacta de parreira silvestre, criando uma espécie de cortina natural. Catherine observou duvidosa essa espécie de abrigo, pensando que esse era um esconderijo evidente. Assinalou-lhe o outro lado da parede; ali também havia um tapete de ramos e folhas de parreira, mas tão pegas ao chão que não parecia que houvesse lugar para ocultar-se debaixo. Mas antes Michael tinha observado que sob as parreiras havia um espaço, que talvez se formou ao desabar o teto de uma pequena adega subterrânea; ali tinha que haver espaço suficiente para os dois. Levantou a ramagem e viram o pequeno espaço. Catherine se agachou e foi se metendo nele de costas. De repente saiu dali fugindo um animalzinho lhes provocando um bom susto. Ela tampou a boca para abafar uma exclamação. Depois continuou retrocedendo e se estendeu sobre o ventre. Ele fez o mesmo, ordenando depois as parreiras em cima para que ficassem como estavam antes. 187


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O espaço estava úmido e cheirava a terra, as gavinhas se agarravam na roupa e no cabelo, e o espaço era escassamente suficiente para albergar duas pessoas. Michael se acomodou apertandose contra Catherine e lhe pôs o braço sobre os ombros. Com isso não só aproveitava bem o espaço, mas também lhe oferecia a agradável oportunidade de abraçá-la. Embora o chão estivesse frio, a temperatura dela era quente. Pequenos buracos entre as folhas lhes permitiam ver um pouco lá fora. Já estavam tão poeirentas e da cor da terra que seriam invisíveis de fora. Passados dez intermináveis minutos se aproximaram os caçadores pela rua. O primeiro aviso que tiveram os fugitivos foi um grunhido de Doyle: — Aonde poderiam ter ido os bastardos? — Não saíram do vale, porque os teríamos visto — respondeu tranqüilamente Haldoran. — E não estão na horta porque acabamos de procurá-los ali. Portanto, têm que estar escondidos na aldeia. — Levantou a voz. — Sei que me está ouvindo, Catherine. Sai agora e lhe perdoarei a vida e liberarei Amy. Michael sentiu a tensão nos ombros dela. Por um instante temeu que se levantasse e aceitasse a oferta de seu primo. Compreenderia se o fizesse; se pudesse confiar em Haldoran, lhe conviria mais render-se que continuar nessa caçada infame. «Se se pudesse confiar em Haldoran.» Michael confiava mais em um cão raivoso. Mas Catherine não fez ameaça de levantar-se. Ele voltou um pouquinho a cabeça e viu que tinha o rosto rígido de fúria; se tivesse uma arma, Haldoran seria homem morto. Os caçadores se aproximaram com passos suaves e arrastados. Através dos buracos entre as folhas, Michael viu deter um par de botas. — Não aprende, não é, querida prima? — disse Haldoran com sua voz arrastada. — Doyle, dispara ali. Esse é um dos poucos lugares suficientemente grandes para esconder duas pessoas. Soou o disparo e a bala se estalou no outro lado da parede de pedra, a uns poucos centímetros deles. Caíram-lhes em cima algumas partes de escombros. Se tivessem disparado os dois homens, Michael teria se arriscado a atacá-los, com a esperança de abatê-los antes que pudessem recarregar seus rifles. Mas Haldoran era preparado; só disparou uma arma e, a julgar pelo ruído, recarregou-a imediatamente. Depois, o canhão de um rifle explorou o outro lado da parede, e se ouviu o ruído do metal arranhando a pedra. Michael notou que Catherine estava tremendo e aumentou a pressão de seu braço. Com absoluto silêncio ela girou um pouco a cabeça e apoiou a testa em seu queixo. Ele sentiu os rápidos batimentos do coração de seu pulso sob a pele lisa e fresca; fechou os olhos, desejando o que tinham compartilhado durante um tempo tão breve, e o que poderia ter sido. Resultava-lhe difícil imaginar o futuro. Continuaram imóveis enquanto os caçadores exploravam o resto da aldeia. Ouviram outros dois disparos ao soar um deles uma ovelha saiu fugindo e balindo furiosamente. Passado um momento os caçadores voltaram pela rua. — Têm que ter escapado do vale quando os estávamos procurando na horta — grunhiu Doyle. — Supondo que tem razão, embora seja difícil acreditar que possam correr tão rápido — respondeu Haldoran mal-humorado. — Subamos a colina. O terreno é plano ao redor do vale, por isso teríamos que vê-los. Se não, voltaremos aqui para procurar com mais minuciosidade. Foi apagando-se o ruído de passos. Michael soltou o ar retido, quase enjoado de alívio. — E agora o que? — perguntou Catherine em um sussurro apenas audível. — Se voltam poderíamos não ter tanta sorte. — Sim, mas se sairmos do vale vão nos ver imediatamente. Estamos presos entre a espada e a parede, como reza o ditado. 188


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— Tenho uma idéia — disse ela hesitante. — Acredita que poderíamos nos ocultar no meio do rebanho de vacas que estavam pastando ao redor das pedras druidas? As que encontramos antes eram animais tranqüilos que não se incomodaram quando nos aproximamos. O coração deu um salto de esperança. — Essa é uma idéia brilhante! Daremos um pouco mais de tempo a Haldoran para que se afaste e tentaremos. Foi uma espera nervosa. Se esperassem muito Haldoran podia voltar, se muito pouco, os veriam de cima. Posto que não havia maneira de saber qual era o melhor momento para agir, Michael confiou em seus instintos de soldado. Quando lhe pareceu o momento oportuno, saiu de debaixo das parr eiras e olhou em todas as direções. Nada. Fez um gesto a Catherine. Avançaram receosos pela rua, correndo de uma casa a seguinte, ocultando-se cada vez. Não havia indício dos caçadores nem na aldeia nem nas colinas. Umas doze vacas cor vermelha estavam pastando na ladeira da colina, sob o círculo druida, e no topo havia mais. Depois de um último olhar explorador se por acaso havia perigo, Michael deu o sinal de avançar. Agachados subiram correndo a ladeira, diminuindo o passo quando estavam perto das vacas. Uma delas se afastou nervosa, mas as outras se limitaram a olhar com bovina curiosidade para logo voltar sua atenção à erva. Essas vacas eram tão dóceis como as que tinham visto ant es, pensou Michael agradecendo. De qualquer modo manteve a prudente distancia dos chifres longos. Os peludos animais se pareciam com as vacas das terras altas escocesas, famosas por sua capacidade de suportar bem as condições difíceis. Chegaram sem problemas até o topo da colina, onde várias dezenas de vacas pastavam ao redor das pedras erguidas, que chegavam mais alto que a cabeça de um homem alto. Estavam a ponto de meter-se na parte onde o rebanho era mais numeroso e denso, quando soou um disparo seguido rapidamente por outro. Saltaram lascas de pedra do monólito druida mais próximo. — se esconda atrás de uma pedra! — gritou Michael. Correram em direções opostas e os dois ficaram ocultos atrás de pedras contiguas. De cócoras, Michael mostrou a cabeça pelo lado. Os caçadores vinham correndo pela cadeia de colinas que rodeava o vale para o círculo de pedras, suas silhuetas recortadas claramente contra o céu. Só fizeram uma pausa para que a figura mais alta de Haldoran disparasse seu rifle; logo trocou a arma com Doyle e voltou a disparar, enquanto o criado carregava a outra. Depois de voltar a trocar os rifles, reataram a perseguição, e Doyle recarregou a arma enquanto corria. Uma das balas passou roçando um novilho. Depois dos indignados mugidos do bezerro atingido, o nervoso rebanho começou a afastar-se dos caçadores apressado. As balas seguintes provocariam uma correria em todo rebanho. Michael olhou Catherine. — Se a ajudar a montar um bezerro, poderia continuar montada enquanto corre? — Sim — respondeu ela depois de uma só piscada. — Então sigamos com o rebanho e vejamos se conseguimos alcançar dois bezerros para montar. Agachados, e protegendo-se atrás das pedras erguidas, correram por entre as vacas, olhando receosos os chifres. Os animais tinham acelerado o passo e muito em breve seria impossível continuar junto a eles. — Esse? — perguntou ele indicando o bezerro mais próximo a Catherine. Ela assentiu e se aproximou mais do animal, correndo agachada; Michael correu junto a ela a 189


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um passo de distância. Quando ela deu o salto, ele a agarrou pela cintura e a impulsionou para cima com tanta facilidade como se tivessem ensaiado. Ela caiu sobre o lombo do animal, passou a perna para o outro lado e se agachou, fechando as mãos sobre os chifres. Mugindo surpreso, o animal levantou a cabeça e se agitou violentamente, tentando livrar-se de sua carga. Catherine se esmagou contra o lombo, aferrando-se como um marisco. O animal empreendeu o galope, deixando para trás Michael, que ficou um instante contemplando admirado. Quem ia s imaginar que uma mulher que brilhava tão delicadamente linda em traje de baile pudesse ser também tão forte e valente? Era hora que ele também encontrasse um arreio. A maioria das vacas já havia passado, mas nesse momento passou junto a ele um bezerro de patas longas. Correu junto ao animal, mantendo com dificuldade sua velocidade e logo saltou sobre seu lombo, esmagando-se contra sua espinha dorsal e agarrando-se nos chifres, tal como tinha feito Catherine. O novilho era mais temperamental que o outro e se agitou e encabritou como um cavalo. Michael se aferrou tenazmente a ele, sabendo que uma queda poderia ser fatal. Depois de um breve e violento combate, o bezerro decidiu que era mais importante continuar com o rebanho que desprender-se de uma carga incomoda. Acalmou-se e pôs-se a correr atrás de seus companheiros. Até aqui muito bem, pensou Michael, mas tendo sido vistos seria muito difícil livrar -se de seus perseguidores. Enquanto esporeava seus arreios para que aumentasse a velocidade, ia pensando que demônios podiam fazer. — Vão montados nos malditos animais! — exclamou Doyle, pasmado. — Muito engenhoso. — Haldoran olhou furioso o rebanho em correria. Seus prisioneiros já estavam fora do alcance de seu rifle. Em questão de momentos já era impossível ver que animais levavam cavaleiros. — Kenyon é a prisioneira mais difícil que persegui em minha vida, e prima Catherine tem uma tenacidade inesperada. Mas as vacas vão chegar muito em breve aos escarpados, e quando chegarem terão que virar, provavelmente para o oeste, já que esse será um ângulo mais amplo. Se seguirmos em linha reta até o extremo da ilha, estaremos esperando quando os animais se cansarem. Com um sorriso predador começou a trotar para o mar. Já estava perto o final da caçada. Não perderia isso por nada do mundo. Capítulo 35 Catherine descobriu que podia controlar um pouco o animal puxando os chifres. Puxou para trás para que o animal levantasse a cabeça; este mugiu e diminuiu o passo. Puxou do corno esquerdo e o animal se desviou um pouco para a esquerda, deixando-a a uma distância de Michael em que ele poderia ouvir um grito. — Logo vamos chegar à costa — gritou, tentando fazer-se ouvir por cima do estrondo dos cascos. — Continuamos montados quando virarem ou desmontamos? — Temos que desmontar — gritou ele. — Já passamos antes por este setor da costa. Os penhascos não são muito escarpados e há várias praias abaixo. Possamos baixar até o nível do mar. Com sorte, Haldoran seguirá o rebanho e não saberá onde apeamos. Ela assentiu e voltou a concentrar-se na íngreme cavalgada. A pelagem densa e lanzuda do animal lhe servia um pouco de amortecedor, mas a coluna ossuda era tremendamente incômoda. Tinha duros os braços e as pernas pelo esforço de manter-se montada. Se anos de campanhas não a tivessem convertido em perito cavaleiro, não teria durado nem cinco segundos montada. A costa se aproximava rapidamente e o som do fluxo era audível por cima do ruído dos cascos dos animais. A vaca que ia montada girou para a esquerda, correndo em linha paralela aos 190


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penhascos. Já estavam se esgotando; alguns animais já tinham diminuído a marcha à velocidade de trote. Os dois tentaram guiar suas montarias para o lado direito, o mais próximo dos penhascos. Quando esteve em posição, Catherine puxou para trás a cabeça do animal. Este se queixou, mas freou o suficiente para ela se deixar cair. Perdeu o equilíbrio quando tocou terra e caiu no meio de um pequeno tapete de tojos de viva cor amarela. Felizmente caiu suavemente e nenhum dos animais vinha atrás, por isso ficou ilesa. Um momento depois se reuniu Michael. — Temos que começar a descer imediatamente —disse enquanto a ajudava a levantar-se. — Haldoran e Doyle estão seguindo um atalho para o mar. Já estão a não mais de uns duzentos metros de distância de nós. Ela assentiu e correu os poucos passos que os separavam do lado do escarpado, para ficar fora de vista antes que passasse todo o rebanho que lhes servia de cobertura. Então viu a incl inada descida e o sangue congelou de medo. — Não posso descer isso! — Sim, pode e o fará! — bramou Michael. — Não é muito mais escarpado que a ladeira que subimos quando chegamos aqui. De a volta e desce de rosto para a rocha. Há muitas saliências onde firmar os pés e as mãos. Eu descerei primeiro, para poder lhe segurar no caso que escorregue, Ela o olhou. Tinha revolto o cabelo castanho e a cara suja, mas nunca tinha parecido mais um oficial. E como os melhores oficiais, a fazia se sentir capaz de fazer o impossível. Ou talvez fosse que preferia arriscar-se a cair ladeira abaixo que enfrentar sua ira. Tragou saliva e assentiu. — Vamos — disse ele descendo e segurando-se ao lado. — Não será tão terrível como imagina. Ela fez uma funda inspiração, e o seg uiu. Olhar a rocha em lugar do escarpado lhe facilitou as coisas. Os pequenos arbustos e matas de erva lhe ofereciam apoio suficiente. Iam a meio caminho escarpado abaixo quando se desintegrou um torrão onde ela tinha apoiado o pé. Desprendeu-se o arbusto de ervas que tinha se agarrado, e começou a deslizar para baixo sem controle. Durante um horroroso instante pensou que golpearia Michael e o arrastaria, caindo os dois em uma morte segura. Mas Michael se firmou e a agarrou no ar, lhe rodeando a cintura com um braço e detendo a queda. Ela procurou um novo suporte tremendo convulsivamente. Continuaram assim um momento, presos à parede rochosa como moscas, o braço de Michael rodeando-a. — E pensar que temia que a vida seria aborrecida depois do exército sussur rou ele ao ouvido. Ela quase pôs-se a rir, embora mais por histeria que por diversão. — Neste momentos não me viria mal um pouquinho de tédio. — Com sorte, essa praia lá em baixo será agradavelmente aborrecida. Essa rocha que se sobressai à direita nos protegerá de sermos vistos. Pronta para continuar? Ela fez uma funda inspiração. — Conseguirei. Ele a soltou e reatou a descida; ela o seguiu um instante depois. Explora com um pé até encontrar um apoio; transfere o peso pouco a pouco; não abandone os outros apoios antes de saber que o seguinte é seguro. E volta a começar, uma e outra e outra vez. Finalmente um pé esticado tocou os seixos redondos da praia pedregosa. Intensamente aliviada por estar novamente em chão firme seguiu Michael até a rocha saliente. Uma vez sob ela, 191


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sentaram-se com as costas apoiadas no penhasco. As pernas lhe tremiam de retesamento. — Disse alguma vez que eu não gosto nada de alturas? — Não, mas me imaginei. — Apoiou-lhe a mão no ombro um momento. — Bem feito. Ela levantou os olhos para ele, ridiculamente agradada por sua aprovação. Viu que os olhos duros dele irradiavam segurança; nesse momento ele estava em seu elemento, empregando toda sua perícia física para vencer perigos impossíveis; um guerreiro. Enquanto que ela era só uma mulher covarde que atraía desastres a todas as pessoas que a rodeavam. — Quanto acredita que demorarão para deduzir que descemos até aqui? — Meia hora no máximo, ou talvez menos. Teremos que nos pôr em marcha dentro de uns minutos. — lnclinou-se junto a ela e seu olhar percorreu os topos dos escarpados. — Essa caverna de que lhe falou o lorde, disse se ficava totalmente sob a água durante a maré alta? Ou fica uma parte sobre a linha da água? Catherine tentou recordar as palavras de seu avô. — Advertiu-me que teria de evitar ficar presa lá dentro, por isso uma parte deve ficar por cima da água. — A seguinte pergunta é onde está a caverna e se podemos chegar a ela daqui. — Mirou o céu que ia obscurecendo e franziu o cenho. — Temos que procurar um refúgio que nos proteja da tormenta desta noite. Catherine assentiu. Embora já fosse quase verão, o ar do mar era frio. Uma noite expostos a uma tormenta seria dura para os dois, sobre tudo para ela. Suspeitava que Michael tinha a resistência de couro velho. Ficaram sentados uns minutos recuperando as forças, enquanto Michael continuava sua vigilância. — Maldição! — exclamou de repente, — já imaginou. Está começando a descer pelo escarpado, não muito longe do lugar por onde nós descemos. Vamos ter que sair rapidamente daqui e esperar que estejam muito ocupados descendo para nos ver. Ela se levantou com os lábios apertados; era meio tarde e se sentia como se toda sua vida tivesse estado correndo. Dado que os caçadores se aproximavam pela direita, dirigiu -se para a esquerda, avançando com a maior rapidez possível pelos seixos redondos, e junto à parede rochosa. Michael vinha atrás dela, novamente no posto de maior perigo. A galanteria era tão inata nele que não teria entendido se lhe agradecesse. A praia fazia uma curva por volta de um promontório rochoso que entrava no mar. Era possível arrastar-se pela superfície inclinada, porem as algas a faziam escorregar e as ondas estalavam ameaçadoras poucos metros mais abaixo. Pôs toda sua concentração em afirmar bem os pés, o sobressalto produzido por um disparo quase a faz cair com um escorregão na água. Novamente Michael a segurou apoiando fortemente a mão sobre suas costas. O homem tinha o equilíbrio de uma cabra montesa. Reatou sua precária viagem sem perder tempo em olhar para trás. Caiu outra bala, desta vez tão perto dela que as lascas de pedra desprendidas lhe golpearam os dedos. Frenética deu a volta a uma esquina até ficar fora de tiro. Uma vez que estava firmemente segura atrás de uma rocha, olhou para trás e abafou uma exclamação ao ver uma mancha de sangue na manga do pulôver de Michael, à altura do braço. — Estritamente um arranhão — disse ele em resposta a sua tácita preocupação. — Creio que me pegou uma bala indiretamente. Não estou ferido. Ela rogou ao céu que fosse certo, porque era pouco o que se podia fazer se a ferida fosse grave. Ofegante continuou dando a volta ao promontório. Uma vez superada a última curva, deteve-se pasmada diante dos gritos de milhares de 192


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gaivotas. Acabavam de encontrar uma colônia de aves marinhas. Aparentemente havia ninhos em todas as saliências do escarpado e o céu estava cheio de pássaros voando em círculo e gritando. Andorinhas do mar, cormorões pequenos, alcatrazes bicudos estavam aninhados nas rochas e divertidos fradezinhos no penhasco mais verde do escarpado da frente, junto com outras várias espécies cujos nomes ignorava. — Graças a Deus que há uma franja de praia aqui — disse Michael atrás dela, — embora ao passo que vai subindo a maré não vai durar muito. Deixou-se cair na areia grosa e esticou a mão para ajudá-la a sentar-se. A praia era bastante lisa para correr, mas estava infestada de escorregadias mancha brancas de caca de pássaros e o mau cheiro era incrível. Faltava-lhes um quarto de caminho para chegar ao outro extremo da baía quando outro disparo de rifle anunciou a chegada de Haldoran. — Ele vai lamentar — resfolegou Michael. O estrondo do disparo enlouqueceu os pássaros. Tudo se alagou de asas batendo e os gritos se fizeram ensurdecedores. Catherine deu uma rápida olhada para trás e comprovou que o enorme número de pássaros revoando não deixava ver seus perseguidores. Com a esperança de que os pássaros lhes arrancassem os olhos, continuou caminhando, com um braço em alto sobre o rosto para proteger-se de um ataque. O promontório do outro extremo da baía se introduzia diretamente na água, fazendo impossível o passo. Mas os séculos do bater de ondas contra a rocha a tinham corroído formando um buraco irregular atravessando a rocha. Posto que via luz do outro lado, Catherine subiu até o buraco e rastejou pelo curto túnel, arranhando sem piedade os joelhos. À saída se deteve contemplar a seguinte franja de praia. Essa enseada era mais larga que a anterior e estava rodeada por escarpados elevadíssimos, infranqueáveis. A estreita franja de areia estava infestada de rochas. Na parede oposta do escarpado se via a boca negra de um buraco. Quando Michael chegou a seu lado, disse: — Creio que essa poderia ser nossa caverna. Michael olhou o turbulento fluxo com o cenho franzido. — Teremos que correr para poder chegar ali antes que a maré nos corte o passo. Muito em breve esta praia vai estar totalmente coberta de água. Desceram à praia e começaram a travessia para a caverna. Para Catherine foi um pesadelo. A maré estava subindo com incrível rapidez. As ondas lhe golpeavam os tornozelos, retrocediam e voltavam a golpear com mais força. Ao não haver saída para outro lado da enseada, afogariam -se ou se destroçariam espremidos contra as rochas se não chegassem a tempo na caverna. Atrás deles ouviram um grito de triunfo. — Corre de um lado a outro! — gritou Michael quando soou o primeiro disparo. — Assim será um alvo mais difícil. Cansativamente ela ordenou seu corpo a obedecer a ordem. As balas assobiavam enquanto ela corria em ziguezague afirmando-se nas rochas quando era possível. Seu primo devia estar disparando da saída do túnel do promontório, o que lhe dava uma vantagem. Tinha tempo para apontar e um perito em carregar o rifle, por isso seus tiros eram cada vez mais certeiros, e pelo visto a maioria estavam dirigidos a Michael. O caminho se afundou mais na água e uma onda a fez perder o equilíbrio. Caiu de cabeça no mar e a agitada corrente a atraiu para baixo. Engoliu um bocado de água salgada e se debateu, desesperada por respirar. Michael a agarrou pelo braço e a pôs de pé. — Falta muito pouco. É capaz. Apoiada por esse potente braço, continuou cambaleante para a caverna. A parte inferior da 193


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boca da caverna já estava inundada e as ondas estalavam furiosas contra a pedra do arco de entrada. Se não fosse essa a cova que procuravam, e não tinha terreno mais alto dentro, estariam perdidos. A água chegava às coxas e a corrente era tão forte que não teria podido manter-se em pé se Michael não a estivesse segurando. Uma bala ricocheteou no arco de pedra e caiu com um estalo na água justa antes que ela entrasse na caverna. Reunindo suas últimas forças, agachou-se e entrou aos tropeções no túnel de pedra, seguida imediatamente por Michael. Ao menos ali estavam a salvo das balas. Intumescida de frio pensou se talvez não se afogariam. Já quase não se importava. Haldoran soltou furiosas maldições quando viu desaparecer seus prisioneiros na boca da caverna. — Por todos os infernos. Não poderemos agarrá-los até depois que a maré tenha subido e voltado a baixar. Então já será passada a meia-noite. — Se não formos, milord — demarcou nervosamente Doyle, — ficaremos presos aqui nós. — Não há perigo disso. É possível subir o escarpado deste lado da colônia de pássaros. — O que significa subir no meio desses asquerosos fradezinhos, pensou azedamente. — Se voltarmos para o barco agora, estaremos em Skoal antes que caia a tormenta. Isso me permitirá explicar tristemente que não conseguimos encontrar rastros de minha querida prima Catherine. Desesperada pela preocupação de seu querido avô saiu a caminhar e caiu de um escarpado. Que tragédia. — E eles? — perguntou Doyle indicando com o polegar para a caverna, sem interessar-se pelo álibi de seu amo. — Quando houver passado a tormenta voltaremos e continuaremos a caçada. — Haldoran deu um último olhar furioso ao lugar por onde tinham desaparecido seus prisioneiros. — Trarei cães. Embora tenham podido sair quando a maré estiver baixa, não chegarão muito longe. capítulo 36 O lorde levava tanto tempo arrastado por turvas correntes que foi difícil acreditar que por fim tinha retornado à superfície. Piscou várias vezes para clarear a vista e decidiu que a continuada penumbra era mais de fora que de dentro. O entardecer, talvez, ou uma iminente tormenta. Não tentou mover-se. Bastava-lhe saborear a noção de que continuava entre os vivos. Não era que temesse à morte, porque então se reuniria com sua esposa e com outros que tinha perdido. Mas ainda não estava preparado para a morte, não, quando tinha tantas coisas que fazer. Inteirouse de muitíssimas coisas enquanto jazia na cama como um tronco. Outros tinham suposto que não ouvia, mas sim que ouvia, pelo menos parte do tempo. Inteirou-se de coisas importantes que concerniam à ilha. Traição, falsidade. Se conseguisse armar todas as peças... Moveu a cabeça frustrado. — Está acordado, milorde? — disse a seu lado uma voz tremula. Era Fitzwilliam, seu valete. — Sim, e já era hora. — Notou que a boca se movia torpemente e que tinha o lado direito do rosto adormecido, mas as palavras lhe saíram claras. — Minha neta está aqui? — Não neste momento, milorde — respondeu Fitzwilliam desviando a vista. — Lhe esteve cuidando abnegadamente, mas... mas necessitava um descanso. — Mentiroso. — Desejou dizer mordazmente que depois de cinqüenta e sete anos de íntima associação deveria saber que não podia mentir a seu amo, mas isso era muito esforço; tinha que reservar suas forças para assuntos mais importantes. — E Clive? — Lorde Haldoran esteve hospedado no castelo no começo de sua enfermidade, mas... mas 194


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saiu esta manhã. Não o vimos em todo o dia. Envio recado a Ragnarok? Pode ser que esteja ali. — Não! Chama o Davin. O menino saberia o que fazer, sempre sabia. E ao menos no Davin podia confiar. Amaldiçoando-se por estar tão débil, o lorde voltou a dormir. Ao longo dos primeiros quatro metros a cova não era mais que um estreito túnel, mas se abria mais à frente. Catherine se endireitou cautelosamente. Havia muito pouca luz, mas o eco das ondas lhe deu a entender que o espaço era muito grande. Acima a rocha formava uma abóbada, ao menos seis metros por cima de sua cabeça, e no fundo a caverna desaparecia na escuridão. Quando seus olhos se adaptaram à penumbra viu que a lacuna em que estavam de pé estava rodeada por terreno mais elevado. Ou seja, que a maré iminente não os afogaria. Michael a viu estremecer violentamente, de frio e esgotamento, de modo que lhe passou o braço pela cintura e a empurrou brandamente para a margem. Uma vez acima, ela cambaleou, apoiando-se nele e fazendo ranger a areia sob as botas empapadas; depois caiu de joelhos. Ele se inclinou a seu lado. — Encontra-se bem, Catherine? — Não é nada grave. Aproveitou sua proximidade para reclinar-se contra ele durante um momento. Seu pulôver empapado tinha cheiro forte e não desagradável de lã molhada. Mas, para seu pesar, ele se levantou muito em breve. — ganhamos outra round — disse. — Aqui estaremos seguros até que volte a baixar a maré. — Seguros — repetiu ela. — Que palavra mais bela. Ele olhou as altas e sombrias paredes. — Sinto uma corrente de ar, por isso deve haver uma fonte de ar fresco em alguma parte. Isso significa que posso acender uma fogueira com essas madeiras a deriva. Ela desejou levantar-se para ajudá-lo a recolher madeira, mas quando tentou, seu corpo se negou de pronto a colaborar. Sentindo-se tão fraca como uma doente com febre, o observou escolher madeiras e dispô-las para a fogueira. Foi bom que tivesse conseguido trazer uma caixa de perdeneira e que fora de desenho resistente à água. Friccionou os braços em um vã intento de esquentar-se. Os pescadores usam grossos pulôveres de lã como o dela porque a lã retém o calor embora esteja molhada, mas seu corpo se esfriou muito para gerar um calor que a lã pudesse reter. Michael fez saltar uma faísca com a pederneira, e logo soprou até que se formou uma chama. Catherine estava tentando reunir energias para caminhar para o fogo quando ele se aproximou e a levantou em braços. — Não se cansa nunca? — Sim, mas normalmente não antes de ter feito todo o essencial. — Depositou-a sobre a grossa areia junto ao fogo e acrescentou mais madeira. — Depois durmo durante um ou dois dias. Elevaram-se as chamas e a parte inferior das paredes começaram a brilhar com as sutis cores do arco íris. Ela inspirou fortemente e fechou os olhos pensando que isso tinha que ser uma alucinação. Mas ao abrir os olhos viu que as cores seguiam ali. Michael também olhou e soltou um suave assobio de surpresa. levantou-se agilmente e foi olhar mais de perto. — As paredes estão cobertas por diminutos bichinhos marinhos quase transparentes. Brilham como pequenos arcos íris quando lhes dá a luz. — Espero que isso seja um bom presságio. — Sem poder conter mais tempo seu maior temor, perguntou-lhe— : Acredita que Haldoran vai fazer mal a Amy se voltar para Skoal esta noite? — Não. — Michael voltou até a pequena fogueira. — Embora pense seriamente em casar-se 195


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com ela quando fizer doze anos, seria estúpido acossá-la agora. Seu você morrer, Amy é a herdeira de Skoal e ele já a conhece o suficiente para saber que é uma jovenzinha de caráter. Se desejar sua colaboração e sua herança, terá que ganhar sua confiança. Minha opinião é que a vai tratá-la como uma princesa. Lucien a vai pôr a salvo muito antes que faça doze anos. Isso parecia possível. Catherine rogou que tivesse razão. Não querendo considerar as alternativas, olhou a seu redor, entreabrindo os olhos para esquadrinhar a escuridão. — O lorde me disse que nesta caverna há um manancial natural de água quente. — Sim? — Michael se levantou, ficando sentado sobre os calcanhares. — Isso iria muito bem. Verei o que consigo encontrar. — Agarrou uma madeira aceso da fogueira e o levantou por cima de sua cabeça fazendo-o girar em pequenos círculos para intensificar a chama ao caminhar. — Sempre gostei da quietude que há clandestinamente. Esse é um dos motivos de que me interessem as minas. As paredes esculpidas pela água e os reflexos de arco íris fazem parecer de outro mundo esta caverna. — O reino de Hades, suponho — disse Catherine, menos entusiasta pelo lugar. — Olhe atrás de você, parece-me que sai vapor dali, na metade da parede. Michael foi investigar. — Aqui há uma lacuna de considerável tamanho. — ajoelhou-se e colocou a mão na água. — Ah, fabuloso. Esta é a temperatura para um agradável banho quente. — passou a língua pelos dedos. — E é água doce, não salgada. Catherine se levantou e foi ajoelhar se junto a ele. A lacuna tinha uma forma mais ou menos ovalada, de uns quatro metros de comprimento e uns dois ou dois e meio de largura. Agarrou um pouco de água com as mãos e o líquido quente escorreu sensualmente por entre seus dedos. — Consideraria-me terrivelmente vulgar se tirar a roupa e entrar aqui? — Isso me parece muito sensato. Enquanto você se esquenta — acrescentou levantando-se— eu irei ver se consigo apanhar algum peixe para o jantar. Embora estivesse claro que ele preferia manter distância, lhe pôs uma mão tímida sobre o pulso. — Depois. Deve estar tão congelado e cansado como eu. Não nos iria nada bem que caísse com uma febre pulmonar, assim se esquente primeiro. Sentiu como se esticavam os músculos e depois relaxavam. — Muito bem, mas primeiro temos que pôr a roupa para secar. Improvisarei alguns ganchos. Deixa sua roupa aqui na borda. Quando ela começou a tirar o pulôver, ele se virou bruscamente e se afastou. Durante um momento ela viu sua silhueta emoldurada pela luz da fogueira, seus largos ombros e sua musculosa figura como um escuro símbolo de poder e garbo masculino. Ficou olhando-o hipnotizada. Desejava-o, física e emocionalmente, com umas ânsias insuportáveis. Talvez a paixão derretesse sua férrea reserva, e reduziria o abismo entre eles. Lentamente tirou o resto da roupa, com o olhar fixo nele, que estava recolhendo umas peças de madeiras retorcidas e cravando-os na areia junto ao fogo. Pensou se atreveria-se a fazer uma insinuação. Provavelmente não, já que o mais seguro era que sua resposta fosse um rechaço. Tampouco era provável que lhe resultasse algum método mais sutil; era muito nova na paixão para ser uma perita em sedução. Com um suspiro soltou o cabelo e se meteu nua na lacuna. O fundo estava formado por pedras alisadas pela água, a uma profundidade média de um pouco mais de um metro. A princípio a temperatura da água lhe resultou quase dolorosa, mas à medida que foi se esquentando, a água foi se convertendo em sedosa carícia. Atravessou a lacuna flutuando à deriva. A água quente lhe deslizava pelos seios e por entre as pernas, reanimando sua pele e seu 196


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corpo com profunda sensualidade. Embora não lhe acabou o desejo, a tensão diminuiu até um grau manejável. Expulsou o ar com prazer e deu impulso com um par de preguiçosos movimentos das pernas. Havia muitas coisas não ditas entre ela e Michael. Talvez depois pudessem resolver suas diferenças. No momento se limitaria a aceitar o distanciamento que ele tinha colocado entre eles. Michael fez todo o possível para não olhar Catherine quando se aproximou da borda a recolher sua roupa molhada, mas seu todo o possível não foi muito bom. Flutuando na lacuna em sombras estava tão linda como uma ninfa marinha, seus cabelos flutuando ao redor de seus ombros como uma nuvem de gaze. Ela chegou ao outro extremo da lacuna e agilmente se virou para mudar de direção. Ele ficou contemplando suas flexíveis curvas, do gracioso arco de sua espinha dorsal até os arredondados quadris, seguindo pelas bem formadas e longas pernas. Novamente recordou a sereia que tinha desenhado Kenneth em Bruxelas, atraindo um homem a sua perdição. Com a garganta apertada, agarrou suas botas e o resto de sua roupa. Depois de as espremer para eliminar o excesso de água, pendurou-as entre as madeiras cravadas junto ao fogo. Imediatamente começou a subir brandamente o vapor. Sorriu sem humor, pensando que dele também devia estar saindo vapor. Com muita dificuldade tinham conseguido escapar com vida, e o perigo distava muito de ter acabado. Mas não podia pensar em nada que não fosse Catherine. Sua fome dela era mais intensa que a de comida, bebida ou calor. Mas tudo estava tão condenadamente encalacrado que lhe era impossível tomá-la em seus braços e fazer amor. Se restasse um resto de sensatez, deveria ir pescar. Mas Catherine tinha razão quando lhe disse que primeiro precisava esquentar-se. Isso significava controlar-se. Tinha-o feito antes e poderia voltar a fazê-lo. Com os lábios apertados se despiu e pendurou sua roupa nos improvisados ganchos. Depois tirou a corda que tinha enrolada no tronco. Aproximou-se da lacuna. Catherine estava no outro extremo, estendida de costas sobre uma rocha em ângulo, com os olhos fechados e a água a té o queixo. A tênue luz dourada da fogueira lhe iluminava o lado do rosto e os brancos contornos da parte superior de seu corpo. ficou olhando hipnotizado as sedosas mechas de cabelo que se enroscavam voluptuosamente sobre seus ombros e entre seus magníficos seios, que flutuavam redondos e amadurecidos como fruta proibida. Mais abaixo estava coberta pela água escura e só se viam tênues insinuações de sua estreita cintura, os quadris femininos e o triângulo escuro da entre perna. Próximo à paralisia se obrigou a desviar a vista. Quando lhe regularizou a respiração, meteuse na água. A temperatura da água era agradável como um pecado. Pecado era aparentemente a única coisa em que era capaz de pensar nesse momento. Instalou-se em uma rocha que lhe permitia ter todo o corpo submerso à exceção da cabeça. A água quente lhe aliviou maravilhosamente os machucados recebidos nesse dia. Catherine abriu prazerosamente os olhos, levantando as espessas pestanas como um bater de asas de corvo. — Esta bem que tenhamos que partir com a próxima maré, se não me sentiria tentada a ficar o resto de minha vida me encharcando aqui. — parece-se com os banhos de Bath — disse ele, — feitos para um imperador romano. Ela se espreguiçou e levantou, com os cabelos enroscados no esbelto pescoço. Deu um impulso e deslizou pela lacuna até parar junto a ele, ligeira como um pássaro. — Quero ver a ferida do braço. — Não é nada na verdade. 197


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Muito consciente de sua proximidade, ele tentou afastar-se, mas lhe agarrou firmemente o antebraço e o fez virar para que a luz lhe iluminasse o braço. Depois tocou brandamente a ferida em carne viva. — Tem razão, não é mais que um arranhão. Nem sequer vai deixar cicatriz. Deslizou-lhe a mão pelo braço até a rugosa cicatriz deixada por uma de suas feridas de Waterloo. — É impressionante que tenha sobrevivido tanto sem ficar impedido para sempre. Seguiu a dura e magra linha onde lhe tinham enterrado um sabre. A cicatriz continuava até a virilha, e o contato de seus dedos lhe ativou uma repentina e forte ereção. Esperando que a água escura ocultasse seu estado, novamente tentou apartar-se. Apoiou as mãos na cintura, para que não se afastasse sem fazer uso de força. — Sim ficou machucado na briga com o Haldoran e seus homens — continuou ela, observando-o com experimentado olhar. — É surpreendente que fosse capaz de caminhar tão rápido quando estávamos explorando a ilha. Ele sentiu o suor na testa, sabendo que não era causado pelo calor da água. Quando a palma dela começou a descer brandamente pelos molhados pêlos de seu peito, lhe agarrou o pulso. — Catherine, não. Só sou um homem, e nada de santo, portanto não posso evitar reagir quando me toca. os tendões de seu pulso se esticaram e mudou a atmosfera, passando de camaradagem a uma intensa percepção física. — Não me sinto muito Santa. Já que poderemos não ter um manhã, aproveitemos bem o tempo que temos. Colocou a mão esquerda sob a água e esmagou a palma contra seu ventre, deslizando-a lentamente para baixo. Depois a dobrou ao redor do excitado membro e ele sentiu t odo seu corpo arder de desejo. Desmoronou-lhe o autodomínio. Agarrando-a pela cintura a levantou e a levou pela água para o outro extremo da lacuna. A água os fazia flutuar os dois, dando a cada movimento a ligeira graça de um baile. Reclinou-a ao longo da rocha em ângulo e deitou sobre ela, lhe cobrindo a boca com a sua. Ela tinha os lábios molhados e apaixonadamente acolhedores. Ela emitiu um gemido rouco, ofegante e lhe agarrou o pescoço entre as mãos. O beijo se fez mais profundo, devorador, enquanto o terror desse dia se convertia em pura paixão sexual. Finalmente ele afastou a boca, ofegante. Seu olhar lhe percorreu o corpo hipnotizador de sereia, mais insinuado que visto a tênue luz. Brilhava -lhe um pouco a garganta molhada, revelando o ritmo frenético de seu coração. Beijou-lhe o pulso e foi lhe lambendo para baixo a pele lisa e impecável. Ela arqueou as costas e os rosados mamilos apareceram na superfície. Ele agarrou um com a boca e a tenra carne se endureceu imediatamente sob a pressão de sua língua. Ela separou os joelhos e ele se instalou entre suas coxas, agarrando as nádegas com as mãos enquanto lhe sugava o mamilo. Tendo a parte inferior do corpo sustentada pela água, ela começou a mover as pernas para cima e para baixo, lhe acariciando os quadris com a parte interior das coxas. A água quente lhe dava uma sensualidade líquida a cada carícia. — É mais linda que o que jamais sonhei que pudesse ser uma mulher — murmurou ele. Passou a boca ao outro seio e apertou o mamilo com os lábios. — OH, Michael — gemeu ela. Fechou as pernas ao redor de sua cintura atraindo-o mais e mais até que o duro membro masculino ficou esmagado contra ela com absoluta intimidade. Ela agitou a pélvis t entando introduzir-lhe dentro. — Não, ainda não! 198


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Com o peito ofegante pelo esforço de refrear-se, ele se afastou um pouco e firmou as mãos sobre a rocha junto a seus ombros. Depois flutuou em cima dela e moveu os quadris acima e abaixo para que seu inchado pênis se esfregasse contra as dobras femininas esquisitamente sensíveis. Um prazer delirante, enlouquecedor. O céu e o inferno se fundiram na erótica tortura. Ela se retorceu sob as voluptuosas carícias respirando em soluços. Suas mãos subiam e desciam quase involuntariamente por seus braços, deslizando sem fricção pelos músculos molhados. Quando tinha todo o corpo estremecido a beira da explosão, ele se retirou um pouco, tocando-a para que o guiasse. Sob os sedosos cachos estava totalmente excitada, ofegante. Ele a penetrou com uma investida lenta e possessiva. Envolveu-o um calor sedoso, e sentiu um prazer quase insuportável. Ela gemeu e moveu os quadris, desencadeando a intensa troca de investida e contra investida. A água se movia ao compasso dos agitados movimentos de seus corpos. Então ela gritou e lhe enterrou as unhas nas costas. Suas desesperadas contrações lhe ativaram o orgasmo. Michael emitiu um gemido, sentindo que todo seu ser se esvaziava nela. A culminação foi dilaceradora, desesperada, alagada de selvagens incertezas. A paixão minguou rapidamente, mas em lugar de sentir-se cheio, ele se sentiu dolorosamente penalizado. Até mesmo nesse momento em que estava profundamente dentro nela, não podia escapar à voz que ressoava em sua mente: «Não é para você». Capítulo 37 Embora o corpo de Michael tivesse esmagado Catherine contra a rocha inclinada, a maior parte de seu peso a água que os rodeava sustentava. Ela saboreou sua proximidade e a agradável paz da satisfação. Poderia ter adormecida abraçada a ele, mas ele se retirou muito depressa, deixando-a vazia. — Não sei se foi sensato isto — disse ele com voz rouca, — mas certamente foi bom. Durante uns momentos desapareceu o resto do mundo. Embora lhe roçasse a têmpora com os lábios, ela notou que emocionalmente estava muito longe. Desejou aferrar-se a ele, lhe dizer o muito que o amava, mas não se atreveu. Havendo-se criado no exército compreendia que as formidáveis habilidades de Michael estavam concentradas na sobrevivência. A paixão tinha sido uma distração prazenteira, mas distraí-lo com dolorosos problemas pessoais os poria em perigo aos dois. — Tenho uma fome canina — disse, obrigando-se a falar com naturalidade. — Oxalá tivéssemos podido trazer algumas daquelas maçãs. — Não era uma brincadeira o que disse sobre apanhar um peixe. Tem que haver alguns na lacuna principal, já que está conectada com o mar. Verei o que consigo encontrar para jantar. — endireitou-se e passou a mão pelo rosto para tirar as gotas de água. — Se esperar aqui, trarei minha camisa. Estava bastante seca. Ela obedeceu, feliz de flutuar na água quente e contemplá-lo. Ele saiu da lacuna e se dirigiu à fogueira. Ali se secou energicamente com a camiseta que usava sob a camisa. Seu corpo nu, belamente proporcionado o fazia parecer um deus em seu ágil poder. Tomando em conta as cicatrizes, supôs que o deus seria Marte. Ainda a surpreendia que um homem tão versado nas artes violentas pudesse ser tão doce. Depois de vestir as calças, ele voltou para a lacuna com sua camisa. Ela pegou com a mão esticada e a contra gosto saiu da água. Depois de haver-se esquentado totalmente, por dentro e por fora, o ar já não lhe pareceu tão frio. Usou a camiseta para secar a maior parte da água antes de vestir a camisa fazendo-a passar 199


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pela cabeça. O objeto lhe chegava até os joelhos. Quando apareceu a cabeça pelas volumosa s dobras de linho, viu que Michael a estava observando com um olhar sombrio, velado. Inquieta se perguntou se talvez desejasse não ter sucumbido a sua descarada insinuação. Talvez devessem ter falado em lugar de... de fazer o que tinham feito. De qualquer modo não podia lamentar. — Como pode agarrar um peixe sem anzol nem linha? — É hora de pôr em prática a técnica que aprendi com Nicholas, meu amigo cigano. O que terá que fazer é colocar a mão na água e mover um pouco os dedos. Quando um peixe se aproxima a investigar, agarra-o. — Seguro que isso é mais difícil do que parece — sorriu ela. — Requer paciência e velocidade — reconheceu ele. — Mas já fiz antes e a fome é um maravilhoso incentivo. Dirigiu-se à lacuna formada pela maré, tornou-se sobre uma rocha e colocou o braço na água. Ela fez uma fervente oração mental por seu êxito e foi procurar água doce. Muito em breve encontrou um fio de água que caía pela parede da cova, acumulava-se em uma terrina de pedra antes de desaparecer na areia. Bebeu avidamente e depois voltou para a fogueira. Estava sentada junto às chamas trançando-os cabelos para fazer um coque, quando Michael lançou um grito de triunfo. Depois se levantou de um salto e quase correu para a fogueira, trazendo um peixe gordo que seguia agitando-se em suas mãos. — Limparei-o se você inventar uma maneira de cozinhá-lo. Ela o pensou um pouco. — O que lhe parece se o envolvo em algas e o ponho a assar sobre as brasas? — Excelente. Os filetes limpos se assaram rapidamente, com deliciosos resultados. O pescado não podia estar mais fresco e o sal das algas se entranhou na delicada carne. Claro que Catherine tinha tanta fome que teria comido com gosto um pão do exército duro como pedra. Depois da comida, reclinou-se rodeando com os braços os joelhos dobrados. — O que o fez voltar para Skoal? — perguntou, aproveitando a atmosfera relaxada. O ficou a contemplar o fogo. As ondulantes chama arrojavam uma luz dura sobre seus traços cinzelados. — Principalmente meu irmão. — O novo duque? — exclamou ela arqueando as sobrancelhas. — Eu acreditava que quase não se falavam. — Não nos falávamos. Sem levantar a vista das chamas, Michael lhe explicou o longo e exaustivo trajeto a cavalo, e como seu irmão foi vê-lo na estalagem de Great Ashburton para fazer as pazes depois de toda uma vida de conflitos. Possivelmente as lacônicas frases deram a entender mais que o que queria dizer sobre o angustiante estado mental em que se encontrava quando partiu da ilha. Terminou o relato dizendo: — Stephen pensa que meu pai pôde ser tanto o duque como seu irmão Roderick, de modo que não devemos fazer caso de todo esse problema de legitimidade. Depois de tudo, nunca saberemos ao certo e na verdade não muda nada. — Seu irmão parece ser um homem sábio — disse ela docemente. — E generoso. Alegro-me muito. — Foi como conhecer um desconhecido ao qual tinha conhecido toda minha vida. — Michael moveu a cabeça e ficou de pé. — Quero explorar um pouco mais esta caverna. Quando estava 200


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pescando me fixei que dali sai outra caverna. Terá que vê-la do ângulo correto porque daqui a luz faz quase invisível a entrada. — Muito interessante. Irei contigo. Levando toscas tochas, os dois foram investigar. A maré estava em seu nível máximo e quase tampava o estreito túnel. Mas agachados até quase dobrar-se conseguiram franquear o lado para não ter que nadar. Quando o túnel se alargou, Michael se endireitou e levantou sua tocha. O espaço era muito menor que a caverna principal. Olhou a seu redor. — Bom Deus, encontramos um depósito de contrabandistas. Catherine abriu uns enormes olhos quando chegou junto a ele. No terreno mais elevado havia montões de barris pequenos. — Meu avô disse que as ilhas foram focos de contrabando durante a guerra, mas me surpreende que tenham deixado estes barris em uma caverna que é tão conhecida por aqui. — Seria fácil não ver esta parte. Além disso, não é provável que qualquer ilhéu que descubra isto diga às autoridades. A maioria das comunidades protege seus comerciantes livres. — Michael examinou os barris mais próximos. — Normalmente os artigos de contrabando se transladam com bastante rapidez, mas estes têm aspecto de ter estado aqui meses, ou inclusive anos. É possível que o navio dos contrabandistas tenha naufragado e que este carregamento tenha ficado esperando aqui sem ser reclamado. — É conhaque francês suponho? — Que vale uma pequena fortuna. — Percorreu o resto da cova com o olhar e de repente reteve o fôlego. — Olhe, ali há algo muito mais valioso. Para ouvir entusiasmo em sua voz, Catherine se voltou a olhar. O coração deu um salto. Meio enterrado na areia e meio oculto pelas sombras havia um bote de tamanho médio. — Deus misericordioso! Acredita que isto poderia nos levar a Skoal? — Isso espero, certamente. — Deu a volta à lacuna formada pela maré para olhar mais de perto, Catherine lhe pisando os calcanhares. — Aqui estão os remos, e aí há um cubo de estanho para esgotar a água. O casco parece estar em perfeitas condições. Ajude-me a colocá-lo na água. Ela enterrou o extremo de sua tocha na areia e puxou de um lado enquanto Michael puxava do outro. O bote caiu na água com um chapinhar. Ele se meteu na água a revisá-lo. — Não vejo nenhum buraco importante. Acabamos de encontrar o meio para escapar. Desejosa de acreditar, mas ainda com dúvidas, lhe perguntou: — Pode um bote pequeno como este se esquivar dos recifes e resistir às correntes? — De certo modo, isso será mais fácil que num barco maior. Certamente temos mais possibilidades que se tentarmos cruzar a nado. — Olhou para o túnel de entrada. — A tormenta já terá terminado quando a maré baixar o suficiente para tirar isto da caverna. Estará escuro. Até no caso de que Haldoran esteja esperando na baía, temos boas possibilidades de evitá-lo. — Quando acredita que cairá a tormenta? — perguntou ela, esperando que tivesse razão. — Já está avançada. Está descarregando furiosa lá fora. — Como sabe isso? Ele deu de ombros. — É só uma sensação. Uma espécie de inquietação interior, na falta de uma palavra melhor. A tormenta descarregou ao redor de uma hora. Embora seja forte, vai passar rapidamente. Ela seguiu sem entender, mas de boa vontade aceitou sua palavra. — O que há aí, debaixo do remo do seu lado? Ele moveu o remo e inspirou com força. — Uma espada. — Reverentemente a apanhou do fundo. A luz da tocha brilhou em todo o 201


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comprido da folha. — A engorduraram para protegê-la da umidade. Fez alguns lances experimentais. Arma nas mãos de um guerreiro, a espada adquiriu vida, uma vida brilhante e letal. Refletindo novamente a respeito dos deuses da guerra e do arcanjo q ue dirige às hostes celestes, Catherine fez um fervoroso agradecimento mental. A viagem entre as duas ilhas seria perigosa, mas ao menos tinham uma oportunidade. E se alguém era capaz de transformar uma oportunidade em vitória, esse alguém era Michael. Amy tinha ido ler na biblioteca, mas quando começou a tormenta foi a acomodar-se na poltrona da janela para contemplá-la. O forte vento e a chuva golpeavam os cristais da janela, fazendo-a vibrar. Muito abaixo as ondas se estalavam contra o escarpado, e a espuma se erguia mesclando-se com as gotas de chuva. Embora fosse muito mais próprio de uma dama ter medo das tormentas, ela encontrava uma certa satisfação em sua violência. Levava dias impacientando-se nessa casa chamada ridiculamente Ragnarok. Lorde Haldoran vivia lhe dizendo que sua mãe estava muito ocupada cuidando de lorde para ver sua filha, mas sua impaciência ia aumentan do. Durante anos tinha ajudado sua mãe a atender aos doentes. Seria uma ajuda, não um estorvo. A próxima vez que visse lorde Haldoran insistiria em que a levasse para ver sua mãe. Ou talvez não esperaria que ele a levasse. Ele não passava muito tempo na casa; não o tinha visto desde a manhã do dia anterior. À manhã seguinte, quando houvesse passado a tormenta, sairia sigilosamente da casa, ela sozinha. A ilha não era muito grande. Certamente conseguiria encontrar o caminho para a residência do lorde. Não muito depois de que tomasse essa decisão, abriu-se a porta da biblioteca e entrou lorde Haldoran. Imediatamente ela pôs os pés no chão e se aproximou. — bom dia, milorde — se inclinou em uma reverência. — Posso ir visitar minha mãe agora? Se estiver trabalhando tanto, adorará contar com minha ajuda. Ele moveu a cabeça com expressão grave. — Temo que tenha uma má notícia, Amy. Sente-se, por favor.— Agarrou-a pelo cotovelo e a guiou até o sofá. — vai ter que ser valente, minha querida. Ela soltou o cotovelo bruscamente e o olhou, paralisada de medo. Essas eram quase as mesmas palavras que empregou o coronel do regimento quando foi lhes dar a notícia da morte de seu pai. — Não — murmurou. — Não. — Não sabemos ao certo — continuou ele em tom compassivo, — mas ontem à noite provavelmente sua mãe sentiu a necessidade de descansar um pouco. Deve ter saído a caminhar pelos escarpados E... e não voltou. Procuramos por toda a ilha, mas não está aqui. Nenhum dos barqueiros a levou a terra firme. No topo do escarpado há sinais de que alguém caiu e tentou segurar-se ao lado. Na baía encontraram isto. — Passou-lhe um xale encharcado. Ela emitiu um gemido de angústia. Sua mãe tinha comprado esse xale em Bruxelas; estava a bom preço embora tivessem que convencê-la de que comprasse algo para ela. — Mamãe não pode estar morta! Seguiu o exército toda sua vida. Como vai cair por um estúpido escarpado? — Havia névoa e estava muito exaurida — disse ele amavelmente. — Um escorregão na erva úmida, ou uma rajada de vento... a ilha pode ser muito perigosa para os recém chegados. Pôs-lhe uma mão no ombro. Amy se paralisou; notou algo mau na forma como a tocava. Era uma mão possessiva, pesada. E face ao que acabava de dizer, não podia acreditar que sua mãe tivesse sido tão estúpida para cair por um escarpado. 202


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Olhou lorde Haldoran com o desejo de protestar mais, mas engoliu as palavras. Se havia algo mau, sua senhoria formava parte disso. — Vamos, vamos, carinho. — Tentou rodeá-la com seus braços. — Não deve preocupar-se, Amy. É minha parente. Prometo que sempre estará segura e não lhe faltará nada. Ela o separou com um empurrão. — Vou a meu quarto. Quero... preciso estar sozinha. — Deixou sair dolorosas lágrimas. — É claro — disse ele com a mesma voz solícita, doce, falsa. —Que tragédia. Sua mãe era uma mulher maravilhosa. Simplesmente lembra que eu cuidarei sempre de você. Ela saiu correndo da sala, agindo deliberadamente mais como uma menina de sete anos que de onze, e não se deteve até chegar a seu quarto, dois andares acima. Enquanto corria notou que a seguia um dos homens de sua senhoria. Havia vários desses homens, todos toscos e taciturnos, tão parecidos que ela os chamava de duendes. A diferença dos soldados rasos que tinha conhecido no exército, os duendes eram calados e nada amistosos. Pela primeira vez caiu na conta de que sempre tinha um perto. Vigiando-a? Fechou a porta de um golpe e virou a chave, deixando fora o mundo. Depois se jogou na cama e enterrou o rosto entre as mãos, tentando afogar seus soluços. Uma vez que o conseguiu, ficou de costas e ficou contemplando o teto. Jamais tinha colocado em dúvida a sinceridade de lorde Haldoran. Afinal era amigo e primo de sua mãe. Mas na verdade nunca tinha sido tão amigo dela como o coronel Kenyon ou o capitão Wilding. E se sua senhoria tinha mentido ao dizer que sua mãe o enviara? Tia Anne quase se negou a deixá-la vir porque ele não levava uma nota de sua mãe. Mas para que ia ter o trabalho de raptá-la? Nem sequer gostava de crianças. Fez um esforço e se concentrou em pensar mais. Talvez lorde Haldoran quisesse obrigar sua mãe a casar-se com ele, como nas novelas românticas góticas. Supostamente a vida real não era assim, mas sua mãe era a mulher mais linda do mundo. Os homens estavam acostumados a ficar estranhos quando estavam perto dela. Fosse qual fosse o motivo, uma coisa estava clara. Devia fugir desse homem e dessa casa, e devia fazê-lo logo. Levantou-se e apareceu à janela. Rajadas de vento e de chuva açoitavam os cristais, e o chão estava muito, muito abaixo. Mas podia fazer uma corda com os lençóis da cama. Felizmente a casa estava construída em um estilo com muitos rebordos salientes onde poderia desca nsar se fosse necessário. Escaparia quando passasse a tormenta. Depois procuraria o caminho para a casa do lorde. Talvez sua mãe estivesse ali. Fechou os olhos, para conter novas lágrimas. «Por favor mamãe, continue viva.» Capítulo 38 Saíram da cova tão logo a maré desceu o suficiente para tirar o bote pelo túnel de entrada. Deitaram dentro e ele foi dando impulso à embarcação empurrando as irregularidades do teto. Arranharam-se contra a pedra com cada ascensão da água, mas finalmente saíram à negra noite. Catherine teve os pêlos da nuca arrepiados quando se sentou. Sentiu-se como um camundongo que sai de um buraco que está vigiado por um gato faminto. Mas não houve gritos nem disparos; Haldoran e seus homens ou tinham retornado a Skoal ou tinham procurado refúgio para passar a noite. Tal como tinha prognosticado Michael, a tormenta havia passado, mas antes que ele pudesse fixar os remos nos toletes, uma onda os golpeou pelo lado. Caíram uns centímetros de água dentro do bote lhes encharcando a roupa recém secada. Michael começou a remar apressado. Quando a 203


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embarcação se estabilizou e se afastaram da praia, disse-lhe: — Mantém um olho atento. Esta baía está infestada de recifes. Ela assentiu e se ajoelhou na proa para estar atenta aos possíveis perigos sob a água. Michael remava de costas à proa, por isso não podia ver adiante, e ela estava muito consciente de que não compartilhava com ele essa visão noturna superior. Nuvens rápidas cobriam a maior parte do céu e era pouco o que conseguia ver. Entreabriu os olhos ao ver algo claro à esquerda, uma irregularidade que lhe pareceu espuma. _ Vira um pouco à direita. Creio que há um recife à esquerda. — À direita — repetiu ele. O bote se desviou para o lado e alguns golpes de remos o fizeram passar junto a uma rocha parcialmente inundada. Mais adiante a água se via limpa, o que deu um momento ao Catherine para virar-se a esgotar a água. Graças a Deus os contrabandistas tinham deixado o cubo. Tão logo saíram da baía a mar aberto, as condições pioraram. A tormenta tin ha deixado atrás de si umas enormes ondas, que atacaram com ferocidade à pequena embarcação. Ela pensou tristemente se Michael seria capaz de seguir uma rota entre o fluxo e as correntes. A caçada na ilha tinha demonstrado que seu sentido de orientação e sua sensibilidade para avaliar o terreno eram fenomenais, mas agora estavam na água, em um canal que ele só tinha cruzado uma vez e à luz do dia. Poderiam não encontrar Skoal e perder-se no mar aberto. Decidiu deixar de pensar. Quão único podia fazer era vigiar e esgotar a água, e Por Deus que faria isso bem. Amy dormitou um pouco deixando a janela de seu quarto entreaberta para poder avaliar o tempo. O silêncio depois da tormenta a despertou. Tinha deixado uma vela acesa e o relógio do suporte da lareira lhe disse que eram quase duas da manhã. Perfeito. Levantou-se e foi olhar pela janela. Ainda havia um vento um tanto forte, mas a chuva tinha amainado. Não havia indícios de movimento nos arredores d Ragnarok. Tirou a camisola e vestiu a roupa de menino que tinha usado na Península para as cavalgadas longas. Tinha trazido essa roupa se por acaso saísse a subir pelos escarpados de Skoal. As calças ficavam um pouco justas; tinha crescido. Mas serviriam. Quando estava vestida abriu cautelosamente a porta e apa receu no corredor; tal como esperava, um dos duendes estava dando cabeçadas a uns poucos metros da porta. Para sair por ali teria que passar quase por cima dele. Teria que ser pela janela. Voltou a fechar com chave e tirou a corda que se feito com lençóis. Atou um extremo ao poste da cama e atirou a outra pela janela. Chegava justo ao chão. Subiu no batente e começou a descer. O forte vento a fazia oscilar de lado a lado junto à fria fachada de frio granito. Jamais tinha sentido medo ao cavalgar nem das tropas francesas, mas não gostava nada de alturas. Com resolução fixou a vista na parede; enquanto não olhasse para baixo, estaria perfeitamente bem. De repente o lençol começou a rasgar-se. Ao sentir a vibração nas mãos, lhe contraiu o coração. Uma queda dessa altura seria morte segura. Olhou para baixo e viu uma das saliências a uns poucos metros. As últimas fibras do lençol se separaram com um horrível som áspero. Reunindo toda sua força de garota pouco feminina, saltou para o suporte, rogando ao céu não p erder o equilíbrio uma vez que aterrissasse. A viagem pelo canal era um pesadelo interminável. Doíam-lhe os braços por esgotar a água e 204


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lhe ardiam os olhos pelo esforço de estar atenta. Felizmente o forte vento estava separando as nuvens. Apareceu um quarto de lua e sua tranqüila luz revelou uma ilhota à direita. Estava muito longe para ser um perigo, mas aguçou a vista. As ilhotas costumam estar rodeadas por perigosos companheiros. Com a extremidade do olho viu água espumosa. — Forte à esquerda. Agora! Michael obedeceu mas não com a suficiente rapidez para salvá-los de arranhar o acidentado recife. O bote estremeceu e se inclinou para a esquerda. Caiu-lhes em cima uma onda que os deixou encharcados os dois. Catherine limpou a água dos olhos. — Agora à direita. Depois de alguns minutos de remar saíram da zona perigosa. Então Catherine ficou a esgotar água até que quase não ficou nada. Quando terminou, perguntou: — Tem uma idéia da distancia que estamos de Skoal? Michael deixou de remar um momento. Antes que uma nuvem tampasse novamente a lua, ela viu seus largos ombros dobrar-se de cansaço. — Creio que não está longe. Escuta. Ela aguçou os ouvidos. Sentiu um rumor vibrante apagado pelos sons da noite. — Ondas rompendo. — Bem. — Começou a remar. — Se tiver calculado corretamente, vamos desembarcar em Little Skoal, não longe da casa do Haldoran. Ela se voltou para a proa novamente, e olhou carrancuda a noite. — Como demônios sabe? — Sangue de pomba mensageira. Útil talento para um soldado. Ela vacilou um momento. — Meu coração deseja ir procurar Amy em seguida, mas a cabeça me diz que deveríamos ir ao castelo e procurar ajuda. — Talvez. Mas poderia s levar tempo convencer a alguém de que Haldoran é um vilão. Além disso — acrescentou em tom grave, — ela estará mais segura se conseguimos resgatá-la em uma incursão silenciosa que em uma batalha campal. Tinha razão. Não estranharia que seu odioso primo fizesse mal a Amy por puro despeito se pensasse que ia ser derrotado. Tragou saliva. — Adiante para Ragnarok. O lorde despertou com mais facilidade desta vez. Ainda estava escuro, mas no céu se viam indícios do amanhecer. Virou a cabeça. Davin Penrose estava sentado junto a sua cama com o rosto pálido de inquietação. — Quanto tempo faz que mandei lhe procurar? — sussurrou o lorde. Um sorriso de alívio iluminou o rosto de Davin. — Recebi a mensagem ontem à noite, fará umas oito horas. _ Bom. O lorde tinha temido que houvessem passado dias enquanto ele dormia. — Catherine? — Desapareceu — respondeu gravemente o governador. — A procuramos por toda a ilha, mas não há rastros dela. Esteve cuidando-o noite e dia. Parece provável que tenha saído para dar um passeio anteontem à noite e caído por um escarpado. — Não! — Sabendo que suas forças eram limitadas, o lorde escolheu cuidadosamente as palavras. — Clive seqüestrou sua filha e chantageou Catherine para que fizesse partir esse suposto marido dela. 205


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— Suposto? — perguntou Davin com as sobrancelhas arqueadas. — Seu verdadeiro marido está morto. Este é um amigo ou um amante ou algo assim — explicou impaciente o lorde. — Este homem voltou para ver Catherine. Clive os surpreendeu juntos e os capturou. Planejava levá-los a ilha Bone e ali lhes caçar como ratos. — Santo Deus! — exclamou Davin empalidecendo. — Ontem me pareceu ouvir disparos uma ou duas vezes, provenientes de Bone. O lorde fechou os olhos, tentando dominar a inesperada emoção que o embargou. Poderia ser muito tarde. Catherine o tinha enganado, mas... tinha-lhe tomado carinho. — Como se inteirou de tudo isto? — perguntou Davin. — Todo mundo falava diante de mim como se já estivesse morto. — Fez uma inspiração profunda, tentando organizar o que ia dizer. — Clive tem à filha de Catherine em Ragnarok. Leva alguns milicianos e tire-a dali. Não sei se Clive está ali, mas vão armados. Está louco e é perigoso. Uma vez que tenha à menina, vá a Bone para ver se...Catherine e esse indivíduo estão vivos. Se não... — lhe cortou a voz. Aceitando a horrorosa história sem pô-la em dúvida, Davin se levantou. — Porei-me a caminho tão logo tenha reunido uns seis homens. Primeiro a Ragnarok, depois ao Bone. — Não confie em Clive. — Jamais confiei nele. Dito isso, girou sobre seus calcanhares e partiu. O lorde fechou os olhos e tentou não chorar. Era um homem velho, já deveria estar acostumado às perdas. Não havia nenhuma só luz visível em Skoal, embora isso não era de estranhar essa hora da noite. Quando se aproximavam da ilha, Catherine aguçou a vista sabendo que esse último trecho era o mais perigoso. As correntes pioraram, sacudindo a embarcação. Michael ia ofegando pelo esforço de manter estável o bote. O estrondo do fluxo se intensificou, lhe fazendo vibrar todos os ossos. Apareceu a silhueta de uma ilhota. Advertiu a Michael, que conseguiu evitá-lo, mas uma feroz corrente arrastou a embarcação para um recife. Gritou outro aviso. Viu em cima dela o pináculo de pedra, quase tão perto para tocá-lo. No momento crítico, Michael conseguiu evitar o obstáculo mortal. Voltou a aparecer a lua, iluminando a extensão de mar para diante. — Estamos a uns duzentos metros — informou ela. — Pelo som das ondas é uma praia, mas não vejo rochas. — Bem — resfolegou ele. — Assim é a costa no lado sul de Little Skoal. O fluxo se apoderou da embarcação, empurrando-a velozmente para a praia. Estavam bastante perto para ver a linha branca de espuma das ondas rompendo. Catherine se agarrou firmemente nas bordas, assustada pela velocidade com que foram voando para a praia. Uma pequena parte sua mente lhe dizia que jamais sobreviveriam a esse vertiginoso trajeto, enquanto outra parte lhe dizia que Michael era capaz de tudo. O resto de sua mente, e todo seu corpo, estavam concentrados em observar o que havia adiante. Muito tarde viu a rocha que espreitava justo sob a superfície. — Cuidado! À direita! Quando Michael tentou afastar-se, um remo golpeou a pedra e se rompeu. — Segure-se! — gritou-lhe. A embarcação começou a girar de um a outro lado, descontrolada, e foi chocar-se em outra rocha. Catherine quase saiu voando com o impacto. Começou a entrar água pelas pranchas quebradas. Mas foram avançando a muita velocidade para afundar. Uma imensa onda os elevou no ar com uma violência que revolveu o estômago de Catherine. Pareceu-lhe que o bote estava 206


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pendurado eternamente. Depois a onda os lançou violentamente para a praia. A embarcação deu uma volta ao redor de si mesma e caiu invertida, arrojando-a à água. Uma forte ressaca a arrastou de volta ao mar, fazendo-a rodar uma e outra vez pelo fundo. Ia se afogar, incapaz de libertar-se... Nesse momento Michael a levantou e a pôs de pé. — Se levante! Já quase chegamos. As ondas tentaram afundá-los, mas ele a manteve erguida, sua firme mão a única segurança em um mundo tumultuoso. O último trecho foi interminável, uma traiçoeira inclinação de pedra cheia de algas, e as ondas. De repente se encontraram fora do alcance das ondas. Avançaram alguns passos mais, cambaleantes, e se jogaram no chão, fortemente abraçados. Catherine teve a impressão de que seus agitados pulmões fossem sair do peito. — Como se sente? — resfolegou Michael. Ela fez recontagem de suas dores e achaques. — Alguns machucados e o apaixonado desejo de não voltar a subir em um bote jamais em minha vida. — Intrépida Catherine — riu ele em um fôlego. — Não. Covarde e esgotada Catherine. — Agora só resta caminhar um pouco mais. Ela se separou dele a contra gosto. Seu contato a fazia pensar que tudo era possível. Quando ficaram de pé, viu que Michael tinha arrumado para conservar a espada dos contrabandistas e a corda enrolada. Incrível. — Sabe onde estamos? — Creio que Ragnarok está a uns quinhentos metros. — tirou o pulôver e o espremeu para tirar o excesso de água; depois apertou entre as mãos o resto de sua roupa. — Não demoraremos muito em subir esta inclinação e chegar ali. — E então o que? — perguntou ela enquanto espremia seu pulôver. Ele sorriu; na escuridão brilharam seus dentes brancos com um relâmpago depredador. — Então, meu carinho, vamos enfrentar o dragão em sua própria guarida. Davin levou tempo a despertar um punhado dos melhores milicianos da ilha. Reuniram-se no pátio do estábulo, onde lhes entregou rifles e explicou sucintamente a situação. Suas palavras foram recebidas com fleumáticos assentimentos. Aparentemente, ninguém teve problemas para acreditar que Haldoran era um vilão. Quanto a Catherine e seu marido, ou quem quer que fosse, tinham causado boa impressão nos ilhéus. Os homens estavam enganchando os cavalos a uma vagoneta plaina quando entrou um desconhecido bem vestido no pátio do estábulo. Davin levantou sua tocha e o observou. — Quem demônios é você? O recém-chegado arqueou as sobrancelhas. — E um muito agradável bom dia a todos também. O homem era alto, de cabelos castanhos e tinha uma voz tão elegante como sua roupa. — Perdoe, não quis ser grosseiro — disse Davin, — mas estamos aponto de partir. Houve certos problemas. O desconhecido soltou um suspiro. — Se houver problemas, provavelmente meu irmão mais novo está no meio. O que aconteceu? Irmão? Davin olhou atentamente o recém-chegado e viu que se parecia com o homem ao qual tinham chamado marido de Catherine Melbourne. Decidiu responder com outra pergunta. — Quem é você e o que está fazendo aqui a esta hora? 207


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— Meu sobrenome é Ashburton e cheguei à ilha ontem à noite. Creio que meu irmão está de visita aqui. Posto que conheço o lorde, decidi vir vê-lo — respondeu com certa ambigüidade, o cavalheiro. — devido à tormenta chegamos tão tarde que o barqueiro que me trouxe me sugeriu que me hospedasse em sua casa. Despertei cedo e decidi sair para dar um passeio. — Se você o diz — disse secamente Davin. Ashburton dirigiu o olhar a vagoneta. — Necessita alguma ajuda nesta expedição? Ocorre que levo comigo minha pistola de viagem. Ashburton tinha aspecto de ser sensato, e se era o irmão do suposto marido de Catherine, tinha direito de acompanhá-los. — Suba. Explicarei o pouco que sei a caminho de Ragnarok. — O ocaso dos deuses? — perguntou Ashburton sobressaltado. — Sinceramente espero que não. Enquanto o pequeno grupo estralava para o Little Skoal a toda velocidade, Davin rogou que o nome não resultasse ser profetize. em que pese a seu esgotamento, Catherine ia quase correndo quando se aproximavam do Ragnarok. O sol saía cedo nessa estação e o céu estava esclarecendo pelo este. Michael, mais cauteloso, refreava-a e insistia em que aproveitassem ualquier cobertura disponível. Quando já estavam perto da casa, perguntou-lhe em voz baixa: — Disse-te algo Haldoran sobre onde tem prisioneira a Amy? Catherine tratou de recodar. — Disse-me que estava em uma das melhores habitações para convidados, com uma preciosa vista ao mar. — Então vamos até o lado do mar e vejamos se possamos deduzir em que habitação poderia estar. Sigilosamente deram a volta por fora da casa. Embora o céu estava mais iluminado as sombras seguiam sendo densas. Catherine olhou atentamente as janelas, pensando se seu instinto maternal conseguiria fazê-lo que sua vista não podia. Viu algo comprido e claro que se movia na parede. — Consegue distinguir o que é essa coisa de cor clara? Michael olhou por volta de onde ela apontava e de repente afogou uma exclamação. — Parece uma corda feita com lençóis. E abaixo... Deus santo, creio que esse vulto escuro é Amy, acomodada em um suporte. Catherine emitiu um gemido e pôs-se a correr para a casa. Uma vez ao pé da parede, perguntou com voz tremente: — Amy, é você? — Mamãe! A sombra escura se moveu. Por um instante Catherine pensou horrorizada que sua filha ia se cair. A menina voltou a apoiar-se contra a parede. — Estou cravada aqui. Michael chegou correndo e ficou ao lado do Catherine, lhes indicando que baixassem a voz. — Falem em voz baixa. Sou o coronel Kenyon, Amy. Encontra-te bem? — Sim, senhor. — Soou um soluço afogado. — Tratei de escapar. — Garota valente. Fique onde está e eu subirei até ali. — Como vais fazer isso? — perguntou Catherine com a garganta oprimida. Michael desenrolou a corda. — Subirei a essa árvore da esquina. De ali posso lançar um extremo da corda em laço até esse saliente de pedra que há sob o beiral, e subir pela corda até o suporte. Logo possamos baixar os dois. 208


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tirou-se a espada e a deixou no chão. Catherine olhou para cima. Escassamente conseguiu ver a Amy, muito menos ia ver o «saliente de pedra». Lhe produzia um horror especial ter a sua filha tão perto e nesse perigo. — Tome cuidado — sussurrou a ele. — Sempre o tenho. Pô-lhe a mão no ombro um momento e depois foi até a árvore e começou a subir. Catherine olhou a sua filha, tão assustada que logo que podia respirar. Embora Michael fazia parecer muito fácil o resgate, ela sabia quão perigoso seria. A corda podia romper-se, o saliente de pedra desprender-se, alguém podia vê-los. As duas pessoas às que amava mais no mundo estavam em perigo e quão único podia fazer ela era orar. Um grito estranho interrompeu o sonho do Haldoran. Não era uma gaivota nem nenhuma outra forma de fauna local. levantou-se e foi olhar pela janela. Estava amanhecendo. Era hora de levantar-se, tomar o café da manhã e voltar para o Bone. Esperava com ilusão a caçada do dia. Pela extremidade do olho viu um movimento e girou a cabeça para olhar mais atentamente. Que diabos? Uma sombra escura ia descendo pela parede, detendo-se a meio caminho para o chão. Kenyon! E abaixo estava Catherine, o ovalóide branco de sua cara inclinado para cima. Maldição! Não só tinham conseguido escapar do Bone mas também tinham tido a audácia de vir ao Ragnarok. A luz, que ia aumentando lentamente, permitiu-lhe ver que havia uma segunda figura junto ao Kenyon. Amy. Pelo visto a moça tinha tratado de escapar. Era tão indigna de confiança como sua mãe. Teria que matá-la a ela também. Rapidamente se voltou e foi atirar da corda do timbre. Já estava meio vestido quando apareceu Doyle com cara de sonho. — Acordada a outros, que se vistam e baixem ao vestíbulo da entrada com suas armas. Agora mesmo — ladrou. — É hora de nos pôr em marcha para a caçada. Quando Michael aterrissou no suporte junto à Amy, perguntou-lhe em tom coloquial: — Que te ocorreu? — Fiz uma corda com lençóis e se rompeu. — limpou-se a cara manchada com o dorso da mão. — Consegui saltar até este saliente mas não pude nem baixar nem subir. — Leva muito tempo aqui? — Uma eternidade! — Acrescentou com a voz tremente— : Ontem à noite lorde Haldoran me disse que mamãe estava morta, assim decidi fugir para descobrir se me dizia a verdade. «O bode.» Michael soltou uma maldição que não deveria haver dito diante de uma menina. Haldoran devia estar na casa, o que fazia ainda mais perigosa a situação. Dissimulando sua preocupação, disse-lhe tranqüilamente: — Como vê, mentiu-te. — Poderia-o matar pelo que disse — exclamou a menina, sem nada infantil em sua voz. — Eu farei o possível por matá-lo em seu lugar. — Examinou a corda para provar sua resistência. — por que está com minha mãe? Michael pensou rapidamente para inventar uma versão modificada da verdade. — A idéia de vir ao Skoal a deixava muito nervosa. Posto que somos amigos, pediu-me que viesse com ela. Amy aceitou essa resposta sem fazer nenhum comentário. — A forma mais rápida de baixar será que suba a minhas costas — continuou ele. — Poderia 209


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te dar medo. Sente-se capaz? — Farei o que seja com tal de baixar — assentiu ela energicamente. Sorrindo ele se girou e se agachou para que ela montasse. Embora a menina tinha o corpo transido de frio, aferrou -se firmemente com braços e pernas. — Lista? — Sim, senhor. Ele se pendurou da corda e se soltou do suporte, com a Amy obstinada a ele como um macaco. Uma rajada de vento os fez oscilar e o peso da Amy o desequilibrou drasticamente. O lento descida se converteu em uma prova de força pura, recurso de cuja provisão e stava escasso depois de dias de esforços quase incessantes. «Uma primeiro mão e logo a outra; brandamente para que Amy não se solte.» Quando seus pés tocaram o estou acostumado a tinha as Palmas machucadas e os braços trementes pelo esforço. — Mamãe! Amy saltou ao chão e se jogou nos braços de sua chorosa mãe. Michael se apoiou na parede e fez umas quantas respirações profundas contemplando o reencontro. Como seria experimentar esse amor mútuo tão tenro? Oxalá Amy compreendesse a sorte que tênia. Teve a impressão de que sim o entendia. agacho-se a recolher a espada. — É hora de nos pôr em marcha. Haldoran está aqui, assim devemos nos afastar sem ser vistos. Amy se voltou para ele com um grande sorriso na cara, agarrada da mão de sua mãe, cujo rosto estava radiante. — Sim, senhor coronel. Inclusive Michael se permitiu sentir esperanças enquanto as conduzia longe da casa. Em uns poucos minutos mais estariam a salvo. Solo uns poucos minutos... Capítulo 39 Embora já estava saindo o sol e havia clara visibilida de, Michael não insistiu em levar a seu pequeno grupo baixo coberto. A velocidade era mais importante que o sigilo. Quando tivessem cruzado o Neck, poderiam ocultar-se entre os matagais baixos, mas até esse momento seriam vulneráveis. Levava a espada na mão, desejando que não fora necessária. Quando o som das ondas escolhos indicou que estavam muito perto do Neck, perguntou: — Amy, vieram por aqui quando Haldoran te trouxe para sua casa? — O Neck — disse ela com uma careta. — É estreito e horripilante. Me alegro de que haja luz suficiente para ver o caminho. — Então sabe que tem que tomar cuidado. — Terei-o. — Apertou mais a mão de sua mãe. — Eu não gosto das alturas. — Creio que a mim tampouco, carinho — disse rendo Catherine. — Então é uma sorte que não tenham que cruzá-lo — disse uma voz preguiçosa e arrastada. de repente se moveram os arbustos a ambos os lados do caminho e apareceram cinco homens, com a jactanciosa segurança de valentões bem armados. Haldoran e Doyle estavam à esquerda e os outros três sentenciados diante dos fugitivos lhes fechando o passo. Sabendo que só contava com um instante para atuar, Michael saltou para quão sentenciados tinha diante; seu primeiro golpe de espada caiu na mão armada do homem ao que lhe tinha fraturado a mandíbula no primeiro encontro; sem deter-se girou e enterrou a espada no ombro do segundo sentenciado; enquanto o homem retrocedia tirou a espada de seu ombro e a atirou sobre o terceiro sentenciado, lhe fazendo um profundo corte na coxa. — Corram! — gritou ao cair sua vítima ao chão com um uivo de dor. Catherine e Amy 210


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passaram pelo espaço livre criado pelo Michael e puseram-se a correr pelo Neck. Sem perder o tempo nas olhar, Michael se voltou a enfrentar aos outros dois. Os três primeiros homens não se recuperaram ainda, mas Doyle estava apontando-o com seu rifle, com olhar assassino. No momento em que apertava o gatilho, Haldoran golpeou o canhão com a parte plaina de sua espada e a bala foi enterrar se no chão. — Não o mate. Isso quero fazê-lo eu pessoalmente. adiantou-se com a espada levantada e disposta. As primeiras luzes do alvorada fizeram brilhar a soberba espada sarracena que tinha usado para lutar com o Michael anteriormente. — Esse foi um ponto a seu favor, Kenyon. Atacou tão rápido como quando lhes surpreendi a ti e ao Catherine no dormitório do lorde. Deveria ter recordado a tática. — Se não fosse um aficionado a teria recordado — replicou Michael. Ao mesmo tempo foi retrocedendo até o Neck, sem deixar de observar ao Haldoran como um falcão. Seus olhos lhe assinalariam o momento e a direção do ataque. — Oxalá pudesse tomar meu tempo — grunhiu Haldoran, — mas tenho que te matar rápido para poder agarrar ao Catherine e a sua cria. — Terá que passar por cima de mim para as agarrar — respondeu lisamente Michael. — E isso poderia ser mais difícil que o que acreditas. — Você acreditas? — Ligeiro de pernas e com os olhos brilhantes, Haldoran entrou no Neck. — Te derrotei antes e isso que não estava cansado. Sei condenadamente bem que queria me provocar quando depois disse que te tinha deixado ganhar. Esta vez não haverá a mais nova dúvida de minha vitória. — Atacou com a celeridade de um raio. Advertido pelo brilho de seus olhos, Michael parou o golpe. O cansaço lhe tinha entorpecido os reflexos, de modo que com muita dificuldade as arrumou para parar o golpe a tempo. Haldoran respondeu com uma série de investidas brutalmente potentes. A folha de sua espada adquiriu um brilho vermelho sangre à luz do sol nascente, e quase conseguiu lhe romper o guarda. — Isso não tem muito de espada — se burlou Haldoran enquanto Michael retrocedia outro pouco. — Onde a encontrou? — Em uma cova de contrabandistas — resfolegou Michael. — É uma arma naval de tipo corrente. Um bom soldado não necessita armas tão complexas. Haldoran reatou o ataque. Michael parou o golpe ajudado por uma rajada de vento que fez perder o equilíbrio a seu competidor. Aproveitou essa breve pausa para olhar para trás por cima do ombro. Catherine e Amy tinham desaparecido. Enormemente aliviado voltou a centrar sua atenção em seu inimigo. O esgotamento lhe tinha embotado o engenho, a velocidade e inclusive as vontades de sobreviver. O único que ficava era a acerada habilidade forjada na mais árdua das escolas. Intermináveis exercícios, e mais combate e batalhas que as que podia recordar lhe tinham ensinado a dar estocadas, parar golpes e investir até no caso de que a espada lhe parecesse muito pesada ou lhe tremessem os músculos por agarrotamiento. Continuou a luta absolutamente silencio; o tinido das folhas apagava o tenebroso rugido das ondas e os ocasionais chiados das gaivotas. Os dois já estavam suando. Embora Haldoran sempre estava aponto de atirar sua estocada fatal, nunca o conseguia. Pese ao cansaço de seu braço e de sentir como se tivesse chumbo nos pés, Michael sempre as arrumava para parar o golpe ou escapulir-se antes que o outro pudesse golpear. Seus modestos êxitos produziam ao Michael uma triste satisfação; não ganharia esse combate. Embora se por algum milagre conseguia derrotar ao Haldoran, os sen tenciados à espera disparariam. Mas cada momento que agüentava lhes dava mais tempo para escapar ao Catherine 211


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e Amy. Quando retrocedeu outro passo, Haldoran lhe gritou zombador: — te defenda, maldita seja! Luta como um cavalheiro se sabe fazê-lo. — Quão único sei é lutar como um soldado, para ganhar. Enfurecido, Haldoran se equilibrou com outra estocada e a ponta da afiada folha lhe roçou o antebraço atravessando o grosso pulôver em busca de um ponto vital. Michael retrocedeu rapidamente e seu talão direito não encontrou apoio. Estavam na parte mais estreita do Neck e terminar de dar o passo seria fatal. Girou à esquerda como um acrobata, movimento que o salvou de cair pelo escarpado mas o deixou escancarado ao lado do precipício. — Reza suas orações, Kenyon — disse Haldoran sorrindo com cruel satisfação. Dirigiu a espada para a garganta do Michael mas este levantou a espada bem a tempo para parar o golpe. Os aços se chocaram com um chiado e a folha sarracena rompeu o aço de inferior qualidade. Quase a mais velha parte da folha se desprendeu, deixando ao Michael com o punho e a curta espiga de aço banguela. Sua mente aceitou que tinha chegado o fim, mas seu treinado corpo era incapaz de render-se. Com a mão esquerda agarrou um punhado de piedrecillas e as jogou na cara de seu inimigo. Haldoran soltou uma maldição e retrocedeu tampando-os olhos. Então Michael moveu a perna esquerda em círculo e com o tornozelo lhe golpeou a perna. Haldoran caiu de lado. Michael se incorporou até ficar de joelhos e lhe golpeou a mão armada com a espiga de sua espada rota, lhe cortando os tendões. Haldoran lançou um uivo e a espada lhe caiu da mão. Pela primeira vez apareceu medo em sua cara. Grunhindo como um animal, atirou uma patada à espada rota do Michael, arrancando-se a da mão e se lançou sobre ele lhe agarrando o pescoço com a mão boa. Começou então uma encarniçada luta corpo a corpo, rodando os dois por volta de um e outro lado ao lado do precipício. Uma selvageria louca percorreu todo o corpo do Michael levando-o do cansaço e o medo até espaço em que tudo era ação. Implacavelmente obrigou ao Haldoran a retroceder para o abismo. Quando seus corpos travados estavam balançando-se ao lado do precipício, Michael olhou aos olhos de seu inimigo e viu aumentar seu medo. — Aficionado — lhe espetou. Depois escapou dele com um violento empurrão que o lançou pelo lado. Haldoran se agarrou dele, para sujeitar-se ou para fazê-lo cair também à morte, mas Michael lhe golpeou o pulso com o canto de sua mão. Haldoran caiu ao vazio, chiando e movendo os dedos desesperado em busca de algo a que agarrar-se. Seus gritos de terror ressonaram nos escarpados e colinas até que o som se sossegou de forma espeluznantemente definitiva. Era uma espécie de vitória, mas quando Michael levantou a cabeça e viu os canhões apontados para ele, soube que tinha chegado seu fim. Pelo menos morria por um motivo. «Vive muitos anos, Catherine, e vive bem.» Quando chegaram ao outro extremo do Neck, Catherine e sua filha se esconderam entre os matagais; depois de cair de joelhos para recuperar o fôlego, Catherine apartou os ramos para ver o que estava ocorrendo. Não tinha havido mais disparos. Era essa um bom sinal ou significava que Michael tinha cansado? Reteve o fôlego quando viu o Haldoran equilibrar-se sobre o Michael com uma espada. — vai ganhar o coronel Kenyon? — perguntou Amy ao ver o Michael parar o golpe. — Não sei. É um lutador fabuloso, mas leva dias realizando proezas sobre-humanas. Está esgotado, enquanto que Haldoran está descansado. Catherine se encolheu quando a espada de sua primo avançou para o ventre do Michael. Este 212


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evitou o golpe por um cabelo e voltou a retroceder. Os duelistas estavam na metade do Neck, e dois dos homens do Haldoran os vinham seguindo a uma distância prudente com as armas listas. — Temos que ir agora — disse tristemente Catherine, com a cara molhada pelas lágrimas. — Quando acabar a luta, os homens do Haldoran nos vão seguir, ganhe quem ganha. — Eu os chamo os duendes. São horríveis — comentou Amy com um gesto de desgosto. — Não possamos abandonar ao coronel Kenyon, mamãe. — Temos que fazê-lo, carinho, ou seu sacrifício seria em vão. — Não vou — respondeu a menina com determinação. — Já sabe quão boa sou para arrojar coisas. Creio que posso golpear aos duendes daqui. Catherine olhou a cara de sua filha, e viu um brilho guerreiro em seus olhos. Nunca a tinha visto mais parecida com seu pai. E era certo que tinha demonstrado ter um bom braço quando jogava cricket. Como mãe, Catherine teria feito algo por proteger a sua filha, mas a h onra e a lealdade também importavam. Invadiu-a uma calma fatalista. Se partiam sem ter feito o que pudessem pelo Michael, nenhuma das duas poderia perdoar-se nunca. — Então recolhamos pedras — respondeu. Não havia escassez de pedras no Skoal. Recolheram um montão e depois continuaram observando o duelo. Catherine pôs uma mão no braço de sua filha. — Se Michael... se matarem ao Michael, temos que correr para a direita, descer por esta ladeira. Há matagais suficientes para nos esconder. Com sorte, Haldoran va i pensar que seguimos o caminho. Amy agarrou uma das pedras e a sopesou na mão. — Mas se vontade o coronel, estamos listas para os duendes. Catherine afogou um grito de angústia quando Michael caiu ao chão e lhe rompeu a espada. Quando os dois homens estavam lutando corpo a corpo, houve um horripilante momento em que pareceu que os dois foram cair ao precipício. Mas de repente Haldoran ia caindo para baixo, volteando-se no ar até estelar se nas implacáveis rochas açoitadas pelas ondas. Houve um instante de absoluta quietude, o silêncio só interrompido pelo som do vento eterno e os chiados das gaivotas. Nesse momento Amy girou o braço e lançou. Sua pedra voou rauda e certeira e golpeou a bochecha ao Doyle, que estava a ponto de disparar. O homem lançou um uivo, desviando a arma, e a bala foi dar ao chão a um metro do Michael. Catherine arrojou sua pedra. Esta ricocheteou uma vez e foi golpear o joelho de outro duende que estava afinando a pontaria para disparar. Embora o impacto não foi forte, foi suficiente para lhe danificar a pontaria. , Michael iniciou então uma dificultosa retirada para o Great Skoal, correndo agachado para evitar ficar a tiro. Catherine ouviu suas costas o ruído estrondoso de rodas de um veículo rápido. Quem demônios podia vir ao Little Skoal a essa hora e a essa velocidade? Olhou por cima do ombro e viu uma vagoneta com uns quantos homens acima, lançada em direção ao Neck. Voltou a vista para o Michael para ver se tinha conseguido ficar a salvo. A surriada de pedras tinha confundido aos três homens feridos até tal ponto que já não eram uma ameaça. Doyle, mais resistente e resolvido, arrojou-se ao estou acostumado a ocultando-se detrás de uma rocha. O único que se via de onde estava Catherine era o canhão de seu rifle, que estava oscilando apontando ao Michael. Deus santo, depois de sobreviver a tantas coisas, não podiam matá-lo agora; isso não podia ser. A vagoneta se deteve e soou um disparo, cujo eco foi ressonando em todas as colinas. Caiu o rifle do Doyle e logo saiu seu corpo rodando de detrás da rocha, o crânio lhe sangrando 213


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profusamente. — Se outros querem viver para ver outro amanhecer, arrojem as armas!— gritou uma voz profunda. Já quase sem capacidade para assombrar-se, Catherine levantou a vista e viu o Davin Penrose de pé sobre a vagoneta. Uma voluta de fumaça saía do rifle que tinha nas mãos. Até esse momento não se deu conta de quão autoritário podia ser o governador. O que parecido a suabuelo comum. — Graças a Deus — sussurrou. — OH, Meu deus, obrigado. — Tremendo toda inteira se incorporou e saiu dos matagais, acompanhada pela Amy. — Michael? Michael se incorporou cambaleante e caminhou os últimos metros do Neck. Embora estava molhado, estragado, amassado e sem barbear, para ela era a visão mais formosa imaginável. Correu a abraçá-lo, com lágrimas de alívio nos olhos. Estava vivo, vivo! — Conseguimo-lo — lhe disse ele. Correspondeu-lhe o abraço um momento e logo a soltou. — Enfrentamos ao Napoleón do Skoal e ganhamos. — Não nós, você. Jogou a cabeça para trás, contemplando-o. Eram tantas as coisas que desejava lhe dizer que não sabia por onde começar. O momento de falar chegou a seu fim quando se aproximaram seus salvadores. A maioria dos skoalanos foram prender aos homens do Haldoran que ficavam, mas Davin se aproximou do grupo de esmurrados fugitivos, acompanhado por outro homem, um desconhecido alto e elegantemente vestido. — O que lhe há passado a seu braço, Michael? — perguntou o desconhecido. Médio aturdido, Michael se olhou a manga manchada de sangue. — Haldoran me feriu mais profundo do que pensei quando me rasgou o pulôver. Sua espada era tão afiada que nem o notei. — Elevou a vista e franziu o cenho. — E que demônios faz você aqui, Stephen? Stephen. Catherine o olhou com interesse. Com esse nome e essa cara, tinha que ser o irmão do Michael. — Sua enigmática nota me decidiu a dever ver o que ocorria aqui — respondeu o duque. Olhou inquieto a manga ensangüentada. — Não deveria fazer algo com isso? — Se você me emprestar a gravata, a enfaixarei — lhe disse Catherine. Sem dizer uma palavra ele se desenredou a nívea banda de linho e a passou. Por isso lhe pareceu a milésima vez, ela começou a enfaixar ao Michael. Michael esboçou um cansada sorriso. — Stephen, me permita que lhe presente ao Catherine e Amy Melbourne, extraordinária enfermeira e fabulosa atiradora respectivamente. Tem um braço incrível, Amy. Seu pai estaria orgulhoso de ti. Ela sorriu agradada. — Alguma vez em minha vida me hei sentido tão feliz de ver alguém, Davin — disse Catherine terminando a vendagem. — Como te ocorreu vir aqui em um momento tão oportuno? — O lorde ouvia boa parte do que se dizia quando estava semiconsciente — explicou o governador. — Esta manhã ao amanhecer despertou o suficiente para me explicar o que acreditava que estava passando. — Tão melhor está? — disse Catherine, passando o braço pelos ombros da Amy. — Graças a Deus. Davin dirigiu ao Michael um tranqüilo olhar. — O lorde me disse que você não é Colín Melbourne. Posto que este senhor é seu irmão, 214


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supondo que seu sobrenome é Ashb urton. — Sou Michael Kenyon. Ashburton é o título do Stephen. — Como o de duque do Ashburton? — perguntou Davin com expressão abobalhada. — Sim — disse o duque. — Mas não tem para que me olhar assim. Estranha vez remoo. Michael soltou um suspiro e se passou a mão pela cabeça despenteada. — Lamento o engano, Davin. Mas se por acaso te interessa, o de minha experiência militar é certo. Catherine e eu somos amigos da época do exército, e por isso ela me pediu que a acompanhasse ao Skoal. — Em lugar de estar aqui falando — disse o duque antes de que Catherine pudesse acrescentar algo mais— deveríamos levar a castelo a esta esgotada gente antes de que comece a chover de novo. O lorde deve estar desejoso de saber o que ocorreu. — Excelente ideia — murmurou Michael. Tremeram-lhe as pernas e esteve a ponto de desabar-se. Catherine desejou ajudá-lo, mas foi a mão do duque a que sujeitou a seu irmão e o ajudou a subir a vagoneta. Durante o trajeto para o castelo, Michael permaneceu tendido de costas sobre os tablones, com a cara cinzenta e os olhos fechados. Quase igualmente cansada, Catherine ia sentada, apoiada no corrimão, abraçada fortemente a Amy. Em voz baixa contou a sua filha todo o acontecido, incluído o fato de que Haldoran assassinou ao Colin. Amy recebeu a notícia com a cara imutável. — Oxalá tivesse matado eu a lorde Haldoran — foi seu único comentário. Depois se Acomodou apertada a sua mãe e continuou assim toda a viagem. Catherine reclinou a cabeça com um suspiro. Contra todas as probabilidades, tinham salvado a vida. Entretanto, sob seu enorme alívio sentia o iludido desejo de não ter que enfrentar-se a seu avô. Capítulo 40 Quando entrou o grupo de resgatados e salvadores na habitação do lorde, este estava sentado em sua cama, reclinado sobre almofadões, com um aspecto muito parecido ao que tinha antes. — Ou seja que chegou a tempo, Davin. Bem feito. — Seu olhar passou ao duque. — E que demônios está fazendo você aqui, Ashburton? — Simplesmente passava por aqui — respondeu o duque com um brilho de humor nos olhos. — Faz conta de que sou uma mosca na parede. O lorde aceitou sem mais e escutou atentamente a sucinta explicação do Davin dos fatos. Quando acabou de falar o governador, interveio timidamente Catherine: — Não sei se for bem recebida aqui, avô, mas me alegro muito de ver-te tão melhorado. — Fez avançar a Esta Amy é sua bisneta, Amy. O lorde olhou carrancudo à menina. — E com calças, igual a sua escandalosa mãe. E te parece com ela também. É igual de teimosa? — Pior — respondeu Amy erguendo a cabeça. — Então supondo que nos vamos levar bem. Venham aqui as duas. Com imensa emoção Catherine se aproximou da cama a beijá-lo. — Lamento muitíssimo te haver enganado, avô. Lhe deu uns tapinhas na mão um pouco sobressaltado e dirigiu a vista a Amy. depois de olhá-la atentamente e mostrar sua aprovação com um assentimento, olhou ao Michael, que estava apoiado cansativamente na parede. — Posto que não é Colín Melbourne, quem diabo é? — Michael Kenyon, ex-comandante do noventa e cinco de fuzileiros. 215


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— E também coronel Kenyon do cento e cinco — acrescentou Amy, preocupada de que passassem por cima a importância disso. — E meu único irmão — acrescentou o duque. O lorde arqueou as peludas sobrancelhas e exclamou: — Não me importa se for um maldito comandante gera l. Lorde Michael comprometeu a minha neta. Michael dirigiu um rápido olhar ao Catherine e desviou a vista. — Sim. Ao Catherine chateou que todo o carinho, considerações e cuidados que tinha havido entre eles se reduziram à maldita palavra «comprometido». — Sou uma viúva de vinte e oito anos, avô — disse tranqüilamente, — e não uma menina de escola. A culpa de tudo é só minha. O senhor Harwell me disse que não queria deixar a ilha a uma mulher sozinha. Dado que Colín quase acabava de morrer, pedi ao Michael que se fizesse passar por meu marido. Ele se mostrou resistente a participar da comédia, mas eu lhe supliquei que me ajudasse. Seu comportamento foi sempre honorável. — Eu não estava tão resistente como insinúa Catherine — disse Michael com total indiferença. — Quando me salvou a vida depois do Waterloo, dava-lhe carta branca para que me pedisse algo. Nessa declaração não havia nada que se parecesse nem remotamente ao amor. O que se proporia? pensou Catherine. — Harwell tinha razão — suspirou o lorde. — Não queria deixar Skoal a uma mulher sozinha. Mas agora que te conheço sei que cuidará muito bem da ilha. — Esboçou um azedo sorriso. — Além disso, não tenho outra alternativa posto que Clive está morto. Nunca eu gostei da idéia de que fora o lorde. Deveria ter emprestado atenção a meus instintos. — Olhou a Amy. —É possível que algum dia seja a lady do Skoal, se sua mãe não tiver um filho. Então necessitará essa teimosia. Catherine afogou uma exclamação, pasmada de que seu avô estivesse disposto a fazê-la sua herdeira depois de todo o ocorrido. Embora Michael não a quisesse, ela e Amy teriam independência, uns bons ganhos e uma posição honrosa no mundo. Olhou pela janela a beleza selvagem e açoitada pelo vendo da ilha. «Lady do Skoal.» Tinha mentido e representado uma comédia para conseguir esse objetivo, e entretanto a vitória lhe tinha sabor de cinzas. Era hora de fazer justiça. Outras viúvas as arrumam para manter a seus filhos sem herdar uma ilha e ela poderia fazer o mesmo. Voltou a olhasse seu avô. — Haldoran me disse que Davin é filho do Harald. Isso é certo, verdade? fez-se um silêncio mortal na habitação e ao Davin lhe esticaram todos os músculos da cara. O lorde fez uma funda inspiração. — Sim, é certo. Esse segredo é de domínio público na ilha. — Então sim que tem outra alternativa. — molhou-se os lábios ressecados. — Davin deveria ser o seguinte lorde. Ele conhece e ama cada centímetro da ilha. O é o verdadeiro herdeiro das antiquísimas tradições do Skoal. Estaria mal que eu lhe arrebatasse isso. — Olhou a sua filha. — Creio que Amy estaria de acordo comigo. Amy assentiu em silêncio. O lorde apertou os punhos sobre a colcha. — Pensei nele, mas, maldita seja, é um bastardo. — Você se orgulha muito do passado vikingo da ilha, lorde Skoal — disse inesperadamente Michael. — Os costumes dos nórdicos são diferentes dos do sul da Europa. Guillermo o Conquistador era de linhagem nórdica. Seus pais não estavam casados, por isso também o 216


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chamavam Guillermo o Bastardo. Entretanto foi um grande guerreiro e um gran de rei. — Entreabriu os olhos. — por que o vigésimo sétimo lorde do Skoal vai deixar de fazer o que sabe que é correto devido a uns frívolos costumes ingleses? Catherine aplaudiu em silêncio. Michael era uma prova vivente de que a duvidosa linhagem não é uma medida do verdadeiro valor de um homem, — Além disso — acrescentou o duque, — poderia ser possível arrumar as coisas para que o senhor Penrose receba o título. O príncipe regente me deve um ou dois favores. O lorde tamborilou com os dedos sobre a cama e o silêncio se prolongou. Finalmente soltou uma risada áspera. — Talvez tenha razão. Muito bem, então, Davin. Já engendrou filhos que possam segui-lo, e não terei que me preocupar de se decidir ou não transladar-se a um lugar mais elegante. ? Davin inspirou forte. Estava muito pálido e seus olhos tinham a expressão de um homem ao que lhe oferece algo que jamais se atreveu a esperar. — Nunca pedi nem esperado nada de você, milord, nem sequer o reconhecimento de meu sangue. — Sei, por isso te tenho tanto respeito — disse o lorde com brutalidade para ocultar sua emoção. — Me serviste e serviste à ilha com lealdade, sem uma palavra de queixa nem de autocompasión. Quando chegar o momento, será um bom lorde, mas terá que trabalhar seu caráter. Não convém ser muito tolerante. Catherine teve que conter uma gargalhada. — Seguro que você nunca tiveste que preocupar-se por isso, avô. — Não te vou aceitar rabugices, senhorita — grunhiu ele, olhando-a furioso. — Te levaste escandalosamente, e a única maneira de arrumar as coisas é que te case com o Kenyon. Ao Catherine lhe desvaneceu a alegria. Olhou ao Michael. Não viu em seu rosto nenhuma reação a revoltante afirmação do lorde. — Faz só três meses que morreu Colin — se atreveu a dizer. — Seria indecoroso que pensasse em voltar a me casar. — Casar-se muito logo é menos escandaloso que o que estiveste fazendo — replicou seu avô. — Kenyon? — Naturalmente estou disposto a cumprir com meu dever — respondeu Michael imperturbável. — Entretanto, não sei se Catherine ou sua filha aceitariam um acerto assim. — Consentirá; ela é um bom exemplo de por que uma mulher necessita um marido que a mantenha em linha. Se for capaz de dirigir a um exército, supondo que será capaz de governá-la, ao menos a mais velha parte do tempo. Catherine, vai plantar-se como uma múmia ou vai se comportar como deve fazer uma mulher decente? Ela mordeu o lábio. Tudo estava do reverso, entretanto era também o que mais desejava no mundo. Talvez devesse aceitar um compromisso de matrimônio nesse momento. Sempre ficava a possibilidade de pôr fim a isso. Olhou Amy. — Está disposta a que Michael seja seu padrasto? — Se não se casar com alguém, bestas como lorde Haldoran vão viver tentando me raptar. — Amy olhou atentamente a Michael e sorriu. — Escolheria você acima de qualquer um, à exceção de tio Charles, e, claro, ele está casado com tia Anne. Você irá bem. — Sinto-me lisonjeado — disse Michael muito sério. — Então — disse Catherine com um nó na garganta, — se você estiver disposto, eu também. — Arrumado então — disse o lorde. — Venham aqui os dois e realizarei a cerimônia. Davin, Ashburton, vocês podem ser as testemunhas. Catherine ficou com a boca aberta. — Mas... mas não possamos nos casar sem proclama s, sem uma licença especial nem sem 217


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padre. O lorde lhe dirigiu um sorriso perverso. — O lorde de Skoal tem o poder de realizar núpcias, e tomando em conta as travessuras em que andaram fazendo, quanto antes estiverem casados, melhor. «É muito depressa!» Mas Michael já tinha abandonado seu posto junto à parede e estava junto à cama do lorde. Meio aturdida, foi ficar ao seu lado. Como último recurso para impedir essa loucura, disse fracamente: — Não tenho anel. O duque se apressou a tirar o anel de seu dedo mindinho e o passou a Michael, dizendo: — Isso tem fácil remédio. O lorde agarrou a gelada mão esquerda de Catherine e a direita do Michael e começou a cerimônia. Ao final, juntou-lhes as mãos. — Agora leu os declaro marido e mulher, e que juntos gerem fortes filhos varões. — Que cerimônia mais tola — sussurrou Amy. — E as filhas o que? Sem lhe fazer caso, o lorde continuou: — Agora pode beijar a recém casada, Kenyon. Imagino que não será pela primeira vez. Houve uma espera que pareceu prolongar-se eternamente. Finalmente os lábios de Michael tocaram os de Catherine, tranqüilos, sem paixão. Depois lhe soltou a mão e disse: — Agora que já não há nada urgente, desejo pedir permissão para me ausentar, para poder dormir umas doze ou quatorze horas. — Eu também — disse Catherine com voz débil. O lorde suspirou e se reclinou novamente nos almofadões. — Eu também preciso de descanso. Foi um dia intenso. Davin, ocupe-se de que preparem quartos para Amy e Ashburton. Depois de estreitar a mão de seu irmão e felicitá-lo, Ashburton abraçou Catherine. — Bem vinda à família — disse, com mais simpatia na voz que a que tinha havido na de Michael. Depois se voltou para Amy : —Parece que logo seremos os únicos a estar acordados. Posto que agora sou uma espécie de tio, poderíamos tentar nos conhecer um pouco mais. Talvez o governador possa procurar alguém que nos guie em um percurso por Skoal. — Uau, eu adoraria — respondeu Amy. — Podemos também ir procurar minhas coisas na casa de lorde Haldoran? — O cavalariço chefe estará encantado de acompanhá-los. Eu o faria com muito prazer, mas... mas devo ir contar a Glynis o que aconteceu. — Tragou saliva. — Obrigado, Catherine, ainda estou surpreso que alguém possa ser tão generosa. — Generosa não, justa. Catherine ficou nas pontas dos pés e lhe deu um ligeiro beijo na face. — Espero que nos permita vir de visita. Tomei muito carinho à ilha. Ele sorriu com uma simpatia que se expressou também em seus olhos verde mar. — Sempre serão bem vindos em Skoal e em minha casa. Todos saíram do quarto do lorde em um só grupo. Depois de abraçar a Amy, Catherine se dirigiu à escada para acompanhar um silencioso Michael até o quarto que tinham compartilhado. Ele parecia estar mais longe que quando ela estava na ilha e ele em terra firme. Tão logo entraram no quarto se separaram. Ele foi olhar a chuva pela janela e ela a olhar-se no espelho. Santo Deus, parecia um desastre, com umas enormes olheiras e todos os cabelos revoltos, desprendidos da trança. Nesse momento ninguém diria que era linda. Desfez a trança e passou nervosamente os dedos pelos cabelos embaraçados. Tinha que romper esse torturante silêncio. 218


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— Essa roupa é a única que tem, não é? Você e seu irmão têm mais ou menos a mesma estatura. Acredita que lhe emprestaria alguma roupa? — Provavelmente. — Abriu a janela para deixar entrar o ar fresco c om aroma de chuva. — Terei que enviar uma mensagem a Lucien lhe dizendo que tudo está bem. Se não, dentro de uns dias vai chegar aqui e destroçar Skoal. Como conversa não era muito, mas ao menos falou. Olhou seu anel de núpcias de tamanho grande. Era um anel de selo, e o desenho era provavelmente o escudo dos Kenyon. O selo de aprovação do duque de seu matrimônio. Mas e o de Michael? — aconteceram muitas coisas estes últimos dias — disse em voz baixa. — É difícil acreditar que realmente sejamos marido e mulher. Michael começou a fazer uma respiração sibilante que lhe congelou o sangue. Virou-se e o viu inclinado, com uma mão apoiada em um poste da cama e a outra no peito. — meu deus, Michael— exclamou. —O que se passa? — Ataque... de asma... moderado... — resfolegou ele. — Só preciso... ar fresco. Conseguiu dar os dois passos que o separavam de uma janela e abriu as persianas para poder inspirar o ar fresco do mar. Catherine agarrou a jarra do lavar mãos, encheu um copo e o levou. — Gostaria de beber água? Ele esvaziou o copo em dois goles. Depois de devolver-lhe sentou-se no chão apoiando as costas na parede. Tinha o rosto pálido pelo esforço e o pulso da base da garganta l pulsava como um martelo de pilão. — Estou bem, de verdade. Mas, Por Deus, é o segundo ataque de asma em uma semana. Estou me desmoronando. Catherine se ajoelhou junto a ele, lhe observando o rosto com olhos de enfermeira e de esposa. — O segundo? — Tive um muito pior quando Stephen me descobriu na estalagem de Great Ashburton. — Aquele me esticou a pele sobre as maçãs do rosto foi tão terrível como o que tive quando morreu minha mãe. Catherine compreendeu, dolorosamente consciente de que esse ataque deve ter ativado o comentário que fez ela a respeito de que eram marido e mulher. Pensou um momento antes de perguntar: — E este é conseqüência do esgotamento e estresse geral, ou se deve a que não deseja estar casado comigo? Ele a olhou com triste sinceridade, muito cansado para lhe ocultar nada. — Jamais em minha vida desejei tanto alguma coisa quanto você ser minha mulher. O coração se acelerou em três batidas por um. — desejava se casar comigo? De verdade não o fez por dever? — Neste caso o dever e a inclinação foram juntos. Desejosa de entendê-lo, continuou perguntando. — Então por que dá a impressão de que acabavam de condená-lo a forca? Ele curvou os lábios em uma paródia de sorriso. — Sou bastante bom para a violência, mas não sei muito a respeito de ser feliz. Ela compreendeu que dizia exatamente a verdade. Embora Michael tivesse uma enorme capacidade para amar e ser amado, nunca tinha tido a oportunidade de expressá -la verdadeiramente. Se ela conseguisse chegar a ele nesse momento e começasse a sanar seu espírito ferido, ele seria seu para sempre. 219


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Rogando que suas palavras fossem apropriadas disse: — Quando eu estava cheia de medo, um homem sábio me disse que meu medo não se criou em uma hora e que, portanto não se curaria em uma hora. O mesmo vale para os corações machucados. — Se aproximou mais e o beijou com amorosa ternura. — Você foi sábio e amoroso e por isso curou meu medo. Deixe-me fazer o mesmo por você, Michael. Seu coração não foi prejudicado em um dia e não se vai curar em um dia. Mas me permita que o ame e eu prometo que com o tempo vai chegar a gostar. Michael fez um rouco som com a garganta e a atraiu a seus braços, abraçando-a com uma força demolidora. — Toda minha vida, por muito que o tentasse, jamais vali o suficiente— sussurrou. — É fácil acreditar que isso sempre vai ser assim. Sacrifiquei a honra e a decênc ia por um amor falso. Depois dessa loucura criminal, acredita que alguém tem uma segunda oportunidade? Ela levantou a cabeça para que ele pudesse lhe olhar os olhos. — Disse-me que esse amigo ao qual traiu lhe deu uma segunda oportunidade na amizade — disse docemente. — Seu irmão lhe deu uma segunda oportunidade na família. Por que não pode ter uma segunda oportunidade no amor? Se alguém o merece, esse é você. Jamais conheci outro homem que tenha tanta força, caráter e bondade como você. Apaixonei-me por você em Bruxelas, embora teria sido ruim que o dissesse em voz alta. Ele voltou a abraçá-la com força, sentindo uma emoção tão intensa que não soube se era prazer ou dor. — Quando a conheci em Bruxelas, senti-me como se tivesse caído uma montanha em cima de mim— disse ele hesitante. — Encheu meus pensamentos e minha mente desde o começo, embora eu me odiasse mesmo por estar tão obcecado por uma mulher casada. Encontrava um consolo secreto em saber que seu sangue circulava por minhas veias; quando me sentia mais desejoso de você, podia dizer que estava comigo. — E estava — disse ela docemente, — em espírito não em corpo. Ele fechou os olhos e se limitou a tê-la abraçada durante um longo momento. Catherine era terna e generosa e lhe oferecia seu amor. O único que se interpunha entre eles era sua incapacidade para aceitá-lo. Abriu os olhos e afrouxou o abraço. — Vamos à cama, Catherine. Uma vez que tenha dormido, é possível que esteja mais cordato. Levantou-se e a ajudou a levantar do chão. Então se deteve a olhar o céu além dela. Tinha amainado a chuva e no céu se formou um arco íris, tão trascendentalmente lindo como a própria Catherine. Ficou contemplando-o e em um instante se ordenaram os fragmentos separados de seu espírito. Em um mundo que continha arco íris, gatinhos e amigos como Nicholas, por que lhe era difícil acreditar que com Catherine poderia encontrar o amor? No centro mesmo de seu ser, sentiu crescer lentamente uma paz distinta a tudo o que tinha conhecido antes. Pôs as mãos sobre os ombros deCatherine, que o estava olhando com penetrantes olhos verde mar. — Sempre pensei que meu caleidoscópio tinha arcos íris quebrados e sonhos quebrados – disse. — Olhar dentro era uma maneira de encontrar ordem no caos. Mas já não necessito disso. Olhe. Ela seguiu seu olhar. Ainda brilhava o arco íris no céu, a promessa do céu à terra. — É você quem põe ordem em minha vida, Catherine. Ordem e amor. — Então parece s que nos amamos. Que simples e que bem. Com os olhos transbordantes de alegria, ergueu o rosto e o beijou. Não foi um abraço de ardente paixão nem de desespero, a não 220


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ser simplesmente um abraço, um intervalo de paz e doce comunhão que na turbulência dos últimos dias não tinham tido ocasião de experimentar. Com a paz chegou o esgotamento. — Agora, meu carinho — disse ele, soltando-a, — nos deitemos e durmamos um ou dois dias. — E por fim vamos deitar-nos juntos legalmente — disse ela com sorriso travesso. — É uma lástima que esteja tão esgotado e não possa comportar-me como um recém casado. — Depois haverá tempo suficiente para isso. Catherine tapou a boca para ocultar um bocejo e começou a despir-se Ele fez o mesmo, tirando os objetos de forma mecânica, porque não podia lhe tirar os olhos de cima. Sempre tinha sido incrivelmente linda, mas agora era sua esposa, sua mulher. Sua mulher. Ela levantou o braço para jogar para trás o cabelo, deixando à vista a tênue cicatriz na dobra interior do cotovelo, da incisão para a transfusão. Ele sentiu uma onda de ternura que lhe começou no coração e rapidamente foi lhe alagando todo o corpo. Enquanto vivesse o dom da vida que lhe tinha dado formaria parte dele. Ela jogou atrás as mantas, e o olhou com curiosidade, como perguntando por que demorava tanto. Ele sorriu com picardia. — Sabe? É possível que não esteja tão cansado como acreditava. Ela estendeu a mão para ele, com um sorriso radiante como um arco íris. — Então vêem pra cama, meu amor, e comprovaremos.

Epilogo Skoal, primavera de 1817 O batismo transcorreu com considerável decoro. Luis o Preguiçoso assistiu, mas se comportou como um cão muito bem educado. Até o homenageado só emitiu um curto grito de surpresa quando lhe verteram a água fria na cabeça. Mas a festa que veio a seguir poderia se definir como um estrondoso folguedo. O dia estava caloroso, por isso Catherine estava sentada à sombra com algumas das demais mulheres. O recém batizado Nicholas Stephen Torquil Kenyon foi passado de saia em saia, desfrutando de ditosos cuidados. Perto delas tinham instalado um curral para as crianças menores, e sobre à bem cuidada grama cor esmeralda do outro extremo do jardim estava se desenvolvendo um jogo informal de críquet. Clare fez viseira com a mão. — Catherine, essa sua filha é perigosa com uma bola na mão. Se em Oxford aceitassem mulheres, sem dúvida a escolheriam para formar parte de sua equipe de críquet. — E não faz nenhum mal a seu jogo o fato de que o arbitro seja seu bisavô — comentou Catherine rindo, — que dá a impressão de estar disposto a golpear com sua bengala a qualquer um que não a aprecie. Era incrível o muito que se recuperou o lorde. A cadeira de rodas era coisa do passado; deslocava-se muito bem por toda parte com apenas uma leve claudicação. O reconhecimento público de Davin como seu neto e herdeiro havia devolvido a vitalidade ao lorde. — Nunca tinha visto uma partida de críquet com tantos jogadores e jogadoras da nobreza — acrescentou Catherine. Clare pôs-se a rir e deu uns tapinhas no abdômen arredondado. — Me alegro de ter uma boa desculpa para não jogar. Kit e Margot são esportistas muito melhores que eu. 221


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Nesse momento tocava o posto de rebatedora a Kit Fairchild, a esbelta morena que Catherine tinha visto uma vez no parque com o Michael. Kit entrou no terreno de jogo e moveu ameaçadoramente seu taco de críquet. O lançador era seu marido Lucien, que com cavalheiresco desejo de não machucar sua mulher lançou brandamente a bola, e se viu obrigado a agachar -se rapidamente quando ela a golpeou com tanta força que a enviou até o outro extremo do jardim. Quatro carreiras se marcaram antes que Davin Penrose conseguisse agarrar a bola e lançá-la de volta. Lady Elinor Fairchild, de dois anos, e loira como um raio de sol, fez um gorjeio de prazer e correu para sua mãe com impressionante velocidade, seguida de perto por Kenrick Davis, visconde Tregar, de cabelo tão escuro como os dela loiros; em seus dois anos e meio, o visconde estava no apogeu de seu primeiro romance, sendo Elinor o objeto de sua adoração. Cheirando alvoroço, Luis o Preguiçoso se levantou e foi saltando torpemente atrás das crianças. Nesse momento a bola passava veloz por cima de sua cabeça, e o preguiçoso animal deixou boquiabertos a todos os presentes ao dar um salto, orelhas ao vento, e agarrar a bola no vôo. Entre risadas e gargalhadas, todos estiveram de acordo em que era hora de tomar um descanso e provar os refrigérios que estavam dispostos sobre as mesas. Como bem fez notar Rafe, isso lhe daria tempo para bola para secar. Clare se levantou e foi procurar seu marido e seu filho que se estavam caídos juntos na erva. Não podia haver outro conde na Inglaterra que fosse tão humano e pormenorizado como Nicholas. Catherine estava encantada de haver colocado seu nome em seu filho. Viver no vale em frente a Clare e Nicholas era um dos benefícios mais agradáveis de seu matrimônio. Michael abandonou seu lugar no campo de jogo e contra a corrente da multidão faminta foi reunir se com Catherine, que tinha permanecido prazerosamente sentada em sua cadeira com o bebê em braços. Ela sentiu um prazer imenso ao ver aproximar seu marido. Depois de um ano de matrimônio ainda não se cansava de admirar seu rosto, ou esse potente corpo que conhecia tão bem. O pensamento lhe fez arder as faces. — Pensamentos nada Santos, carinho? — perguntou ele sorrindo. Ela olhou a seu redor e se tranqüilizou ao não ver ninguém perto que pudesse ter ouvido. — Conhece-me muito bem. — Isso jamais — disse ele, inclinando-se para beijá-la na testa. Depois de beijar também seu filho, sentou-se na erva. — Sua idéia de celebrar aqui o batismo foi sensacional. Skoal é o lugar perfeito para umas férias de primavera. — Que lástima que Kenneth não tenha podido vir, mas é agradável que estejam aqui tantos de seus outros amigos. Catherine olhou para o moreno Rafe e a dourada Margot, que estavam recolhendo seu filho de nove meses. O marquês bebê, de cabelos tão escuros como seu pai, agitou as mãozinhas e gorjeou de felicidade quando sua mãe o pegou nos braços. — Os anjos caídos têm bebês muito bonitos — comentou ela. —Acredita que os filhos vão ser tão amigos como seus pais? Michael sorriu ao olhar Kenrick e Elinor que estavam compartilhando um sorvete, com as carinhas sujas, sob a complacente supervisão de suas mães. — Estou seguro de que vão ser amigos, mas não vão se precisar tanto como precisaram seus pais. Passou a mão pelo cabelo. Tinha que dar graças a Deus pelos anjos caídos e pela amizade que lhes tinha servido para ser os homens extraordinários que eram. E por cima de tudo, agradecer por Michael, cujo amor e ternura eram muito maiores do que imaginou que existisse. — Lembra-se daquela vez, quando me despertou para descer para jantar, recém chegados a 222


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Skoal? — Como poderia esquecer? — respondeu ele com um olhar malicioso. — Como custou me controlar para não lhe comer. Voltaram lhe a arder às faces. — Despertei de um sonho maravilhoso. Fez-lhe um gesto incentivando-a a continuar. — Estava sonhando que eu era normal, que você era meu marido e que estávamos esperando nosso primeiro filho. — inclinou-se para beijá-lo, com esse amor que crescia mais cada dia que passava. — Quem disse que os sonhos não se fazem realidade? Fim

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