Mary jo putney anjos caídos 02 petalas na tormenta rev prt

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Pétalas na Tormenta Petals in the Storm

Mary Jo Putney

Série Os Anjos caídos 2 Depois da derrota de Napoleão em Wa terloo, a paz ainda esta va em perigo; o ris co de uma guerra que devas ta ria a Europa é cada vez mais real . Por isso é impres cindível que Ma ria Bergen, a Condessa Janos , siga utiliza ndo seus encantos e rela tando suas des cobertas a Londres. Mas na realidade, ela é uma Condessa húnga ra, uma lady inglesa ou uma Princesa i taliana? O certo é que nem sequer seus superi ores em Forei gn Offi ce sabem. Como tampouco sabem se ha via decidido abandona r sua missão por "cansa ço" ou porque tomou pa rte da conjura ção e é uma traidora. Um homem de qualidades excepcionais : Rafael Whi tbourne, Rafe pa ra os ínti mos , Duque de Candover pa ra a boa sociedade di z-se que possui a beleza de um deus guerreiro e a capa cidade de sedução de um diabo. Mas são falatórios , a reputação de um homem que rejei ta o amor porque anos a trás uma jovem formosa como fl or da prima vera lhe rompeu o cora çã o. Em realidade é um homem d e mundo, atrevido com as mulheres , valente na luta , impla cá vel diante a deslealdade. E precisamente por isso se vê a gora na obri gação de seduzi r a espiã mais formosa que ja mais conheceu a corte francesa ... sem cair na rede de sua formosura . Uma dama eni gmá ti ca e peri gosa : Da Condessa Janos se diz que é capa z de surrupia r a Embai xadores e Mi nistros ; que ninguém, nem nobres nem clérigos , é capaz de resisti r aos seus encantos . Mas , depois de ter sobrevi vido a mil peri gosas a venturas e in terpreta r um sem-fi m de papéis, agora terá que recorrer a todo seu talento pa ra supera r com êxi to a missão que l he i mpôs o des tino... Porque a mulher conhecida como Ma ria Bergen, a supos ta Condessa Janos , é na realidade a moça que a rreba tou o cora çã o de Rafael Whi tbou rne em sua juventude.

DISPONIBILIZAÇÃO/ TRADUÇÃO E PESQUISAS: YUNA, GISA, MARE E ROSE REVISÃO: IRANY REVISÃO FINAL E FORMATAÇÃO: GABI D.


Projeto Revisoras Traduções

Capítulo 1 - Que demônios significa isto? Era o grito de combate de um marido furioso; Rafe teria reconhecido em qualquer parte. Afogou um suspiro; iria presenciar uma feia cena emotiva do tipo que mais detestava. Soltou a encantadora dama que tinha em seus braços e se voltou para olhar o homem que acabava de irromper no salão. O recém-chegado era mais ou menos de sua mesma altura e idade, entre 33 e 36 anos. Embora talvez em outras circunstâncias seria um homem agradável, naquele momento parecia estar disposto a cometer um assassinato. - David! - exclamou lady Jocelyn Kendal e avançou muito feliz para seu marido, mas se deteve em seco ao ver sua expressão. A tensão entre marido e mulher vibrava como um tambor no silêncio da sala. - É evidente que minha chegada foi inesperada e inconveniente, disse o recém-chegado com voz rouca e furiosa, rompendo o silêncio. É o Duque de Candover, supondo. Ou agora concede seus favores a um círculo mais amplo? Essas palavras fizeram lady Jocelyn estremecer. - Sou Candover, disse Rafe tranqüilamente. Eu sinto, mas não recordo seu nome, senhor. - Presteyne - respondeu o outro, contendo o visível desejo de afastar o convidado da sua esposa, o marido desta senhora, embora não por muito tempo. Voltou seu duro olhar a lady Jocelyn. Minhas desculpas por interromper sua diversão. Recolherei meus pertences e não voltarei a te incomodar nunca mais. Dito isso, Presteyne saiu do salão dando uma portada que estremeceu as paredes. Rafe se alegrou de lhe ver as costas; embora fosse perito em todo tipo de esportes cavalheirescos, uma briga com um marido furioso de porte militar não estava nos primeiros lugares de sua lista de prazeres. Por desgraça a cena não acabou ali, porque lady Jocelyn se deixou cair em uma poltrona estofada e começou a soluçar. Rafe a olhou exasperado; gostava que suas aventuras fossem alegres, de prazer mútuo, e sem recriminações, e jamais teria se envolvido com lady Jocelyn se ela não lhe houvesse dito que seu matrimônio era só de nome. Certamente lhe tinha mentido. - Pelo visto seu marido não compartilha sua idéia de que o matrimônio é só de conveniência. Ela levantou a cabeça e o olhou como sem compreender, como se tivesse esquecido de sua presença. - Qual é seu jogo? - perguntou-lhe irritado. Seu marido não me parece o tipo de homem ao qual se pode manipular lhe inspirando ciúmes. Poderia te deixar ou te torcer o cangote, mas não vai entrar em seu jogo de ter amantes. - Não foi um jogo, respondeu ela com voz trêmula. Queria descobrir o que há em meu coração. Só agora sei o que sinto por David, agora que é muito tarde.


A irritação de Rafe se evaporou ao ver sua juventude e vulnerabilidade. Em outros tempos ele também tinha sido jovem, também havia se sentido confuso, e a angústia da jovem era um claro aviso de quão desastroso pode ser o amor. - Estou começando a suspeitar que sob sua fachada tão refinada pulsa um coração romântico, lhe disse com ironia. Se for assim, vá procurar o seu marido, jogue sua encantadora pessoinha aos seus pés e lhe peça humildes desculpas. Deve ser capaz de fazer que ele reconsidere, ao menos por esta única vez. Um homem é capaz de perdoar muitas coisas à mulher que ama. Só procure que ele não volte a te surpreender nos braços de outro. Duvido que te perdoe uma segunda vez. Ela o olhou com os olhos muito abertos. - Seu sangue-frio é lendário, disse depois, com uma voz que parecia estar ao lado de uma risada histérica, mas o que me haviam dito não te faz justiça. Se nestes momentos entrasse o demônio creio que lhe perguntaria se sabe jogar whist. - Nunca jogue whist com o demônio, carinho. Faz armadilhas - Rafe agarrou a mão gelada e depositou um ligeiro beijo de despedida. Se seu marido resistir a suas adulações, sinta-se em liberdade para me dizer isso se desejar um romance prazenteiro sem complicações. Soltou-lhe a mão. Alguma vez obterá algo mais que isso de mim, sabe? Há muitos anos entreguei meu coração a uma pessoa que o abandonou e o rompeu, de modo que agora não resta nada dele. Essa era uma boa frase de despedida, mas ao olhar o formoso rosto da jovem, surpreendeu-se acrescentando: Recorda a uma mulher que conheci em outro tempo, mas não o suficiente, não, não o suficiente. Disse isso e deu meia volta, saiu do salão e da casa e desceu os degraus para os civilizados limites do Upper Brook Street. Tinha perto seu cavalo esperando-o, de modo que subiu de um salto e agarrou as rédeas. Essa parte dele que se burlava de suas frivolidades encontrou do que rir no bem parado que saiu da cena «o Duque». O Duque era o título da imagem pública a cujo aperfeiçoamento tinha dedicado anos. Em seu papel de Duque era o perfeito cavalheiro inglês, fleumático, imperturbável, e ninguém o representava tão bem como ele. Todo mundo necessita de uma afeição. Mas quando girou para entrar em Park Lane o inquietou percebeu que tinha revelado algo mais de si mesmo do que achava cômodo. Por sorte, não era provável que Jocelyn espalhasse a história, e certamente ele não o faria. Deteve o carro diante de sua casa de Berkeley Square, pensando tristemente que outra vez teria que começar a procurar uma amante. Nas semanas transcorridas desde que acabou sua última aventura não tinha conseguido encontrar nenhuma mulher que o atraísse; de fato tinha chegado a considerar a possibilidade de renunciar às complacentes senhoras de sua classe e pagar a uma cortesã. Seria muito mais singelo manter uma amante profissional, mas em geral essas mulheres eram ambiciosas, pouco educadas e com freqüência tinham enfermidades. A perspectiva não o seduzia absolutamente. Por isso se sentiu encantado quando a formosa Jocelyn Kendal lhe fez saber delicadamente que tinha feito um matrimônio de conveniência e lhe interessava a diversão.


Embora a admirasse, sempre tinha mantido distâncias, porque ia totalmente contra seu código manusear inocentes. Durante as semanas passadas em sua casa de campo tinha pensado nela com moderada espera, e tão logo retornou a Londres foi visitá-la. Mas pelo visto, no tempo transcorrido desde que lhe fez esse discreto convite, a dama se converteu em uma amante compromissada, embora confusa. Teria que procurar em outra parte. A fim de aliviar sua depressão, congratulou-se de ter escapado por um fio do que poderia ter sido uma aventura difícil. Deveria ter pensado melhor, sabendo que não lhe convinha atar-se com uma romântica com mentalidade de garotinha. A verdade é que ele pensou, mas a jovem era francamente encantadora, a mulher ma is atraente que tinha conhecido há anos. Parecia-se bastante com... Interrompeu bruscamente o pensamento. O principal motivo de seu retorno a Londres não era entreter-se em namoricos e sim uma mensagem de seu amigo Lucien, que desejava lhe falar de um assunto de trabalho. O fato de que o trabalho do Conde de Strathmore fosse a espionagem significava que seus projetos sempre eram muito interessantes. Sua posição social lhe permitia entrar nos ambientes da alta sociedade em qualquer lugar que fosse, e ao longo dos anos tinha feito dele uma parte útil da extensa rede de inteligência de seu amigo. Sua especialidade era atuar como mensageiro quando os canais oficiais não eram o suficientemente secretos, mas também tinha realizado várias investigações secretas entre os ricos e poderosos. Enquanto conduzia o carro ao pátio do estábulo desejou que Lucien lhe tivesse algo Condenadamente absorvente esta vez. Lucien Fairchild contemplava com expressão divertida o Duque de Candover caminhando pelo salão. Alto, moreno e imponente, Rafe encaixava com tanta exatidão no papel de aristocrata que bem poderia ter sido um ator encarnando a um nobre; como além disso tinha o garbo e a atitude de ator, não o surpreendia que todas as mulheres do salão o seguissem com o olhar. Ociosamente se perguntou quem seria a seguinte na longa lista de damas rutilantes que tinham compartilhado sua cama; inclusive ele, cujo trabalho era a informação, tinha dificuldades para saber a conta. Do seu local de observação, Lucien viu como em seu percurso pelo salão Rafe intimidou a três arrivistas com seu famoso olhar glacial. Entretanto, quando finalmente chegou até ele, seu gelado sorriso social se transformou em um de quente simpatia. - Quanto me alegra ver-te, Luz. Lamentei que não pudesse ir ao castelo Bourne este verão. - Eu também lamentei, mas Whitehall foi um manicômio. - Lucien olhou para o salão, fez um discreto gesto a um homem e logo continuou: Vamos a um lugar mais tranqüilo para te pôr a par do que acontece. Saíram do salão e Lucien conduziu Rafe até um estúdio na parte atrás da casa. Tomaram assento e Rafe aceitou um charuto que lhe ofereceu seu anfitrião. - Supondo que me vais encomendar uma tarefa complicada. - Supõe bem. Lucien acendeu o charuto de Rafe com um fósforo e depois acendeu o seu. O que te parece uma viagem a Paris?


- Parece-me perfeito, Rafe deu umas quantas chupadas ao charuto até acendê-lo bem. Estes últimos tempos foram aborrecidos. - Isto não terá que ser aborrecido, o motivo da viagem é uma dama que se pôs um pouco difícil. - Melhor ainda. Deu uma longa chupada e logo expulsou lentamente a fumaça pela comissura dos lábios- Tenho que matá-la ou beijá-la? Lucien franziu o cenho. - Matá-la não, certamente. Quanto a outra opção, encolheu os ombros, isso eu deixo ao seu critério. Abriu-se a porta e entrou um jovem moreno. - Nicholas! - exclamou Rafe e se levantou lhe estreitar a mão. Não sabia que estava em Londres. - Chegamos ontem à noite, vim com Clare. Depois de lhe estreitar a mão, o Conde de Aberdare se sentou despreocupadam ente em uma poltrona. - Vejo-te particularmente bem - comentou Rafe, e se sentou também. - O matrimônio é algo maravilhoso. Nicholas o olhou com um sorriso travesso. Deveria tomar esposa. - Excelente idéia, disse Rafe com voz suave. A esposa de quem me sug ere? Esperou a que os outros dois terminassem de rir para continuar: Confio em que meu afilhado também esteja fazendo progressos. Imediatamente a cara de Nicholas adquiriu a orgulhosa expressão de pai orgulhoso, e passou a explicar com entusiasmo os incríveis progressos do pequeno Kendrick. Os homens reunidos no estúdio eram três do grupo de quatro amigos que em sua época de juventude receberam o apelido de Anjos Cansados. Amigos desde que estudavam em Eton, continuavam tentando-se como irmãos mesmo que já tivessem transcorridos anos entre seus encontros. O membro ausente era Michael Kenyon, vizinho de Nicholas em Gales. Depois de admirar devidamente as proezas do bebê, Rafe perguntou a Nicholas: - Veio Michael com vocês, para assim poder ter uma reunião dos quatro Anjos Cansados? - Ainda não está bem de todo para viajar, embora sua convalescença tenha sido incrivelmente rápida. Muito em breve estará como novo,com algumas cicatrize a mais. Nicolas riu. Clare insistiu em cuidar dele pessoalmente; tem uma força irresistível e quando se propõe algo é irredutível. Creio que minha tenaz mulher seja a única pessoa no mundo capaz de manter Michael na cama tempo suficiente para se curar bem. Agora que Michael está melhor, pensei que Clare necessitava de umas férias e a trouxe à cidade. - Típico de Michael voltar para exército tão logo Napoleão fugiu de Elba, comentou Lucien em tom ácido. Como os franceses não conseguiram matá-lo na Espanha, tinha que lhes dar outra oportunidade em Waterloo. - Michael nunca resistiria a um bom combate, e Wellington necessitava de todos os oficiais experimentados que conseguisse conseguir, disse Rafe. Mas espero que desta vez a guerra tenha terminado para sempre; inclusive a sorte de Michael poderia esgotar-se.


Essas palavras recordaram a Lucien o motivo da reunião. - Agora que estão os dois aqui, vamos ao ponto. Pedi ao Nicholas que se reunisse conosco porque durante suas viagens pelo continente trabalhou algumas vezes com a mulher de que te falei. Rafe viu que Lucien e Nicholas trocaram um olhar. - Sempre suspeitei que ajudava ao Lucien durante suas excursões pela Europa, Nicholas. - Os ciganos podem ir a qualquer parte, e, sim, eu ajudei com certa freqüência. Pelo visto também lhe pediam serviços. Nicholas dirigiu um olhar travesso ao Lucien. Vejo que joga suas cartas muito em segredo; nem sequer permitia que Rafe nem eu soubéssemos um do outro. Surpreende-me que agora tenha querido falar com os dois. É que de repente somos mais dignos de confiança? Até sabendo que era uma brincadeira para fazê-lo picar, Lucien respondeu ofendido: - Em meu trabalho, é simplesmente uma boa norma não dizer a ninguém mais do que precisa saber. Esta noite infrinjo essa norma em particular porque é possível que você saiba algo que poderia servir ao Rafe. - Acreditei entender que a dama de quem falamos é uma das suas agentes, disse Rafe. Que tipo de problema ela está causando? Lucien esteve em silêncio um momento, pensando por onde começar. - Supondo que seguiste as notícias sobre as negociações de paz em Paris. - Sim, embora não com muita atenção. Não ficou tudo acertado no Congresso de Viena? - Sim e não. Faz um ano os aliados estavam dispostos a atribuir a culpa das guerras à ambição de Napoleão, de modo que os acordos de Viena foram bastante moderados. Lucien tirou o charuto da boca e olhou o extremo aceso com desaprovação. Tudo teria ido bem se Napoleão tivesse continuado no exílio, mas sua volta a França e a Batalha de Waterloo removeram as brasas. Dado que uma grande parte da população francesa apoiou o Imperador, agora a maioria dos aliados querem vingança. Vão tratar a França com mais dureza que antes dos cem dias do Napoleão. - Isso é de conhecimento público. Rafe deu umas batidinhas no charuto para desprender a cinza . Onde entro eu? - Há uma tremenda luta encoberta para ganhar influência durante o tempo que durem as negociações, até que se obtenha um novo acordo, explicou Lucien. Não precisaria muito para danificar as negociações, talvez até o extremo de outra guerra. A informação é essencial. Infelizmente, minha agente Maggie, que tem feito um trabalho muito valioso, quer retirar-se e abandonar Paris o mais breve possível, antes de que acabe a conferência. - Lhe ofereça mais dinheiro. - Ofereci, mas não lhe interessa. Espero que você consiga persuadi-la de que troque de opinião e continue ao menos até que termine a conferência. - Ah, voltamos para os beijos, comentou Rafe com um brilho travesso nos olhos. Quer que me sacrifique em honra dos interesses britânicos. - Não me cabe dúvida de que tem outros meios de persuasão, respondeu Lucien em tom sarcástico. Ao fim e ao cabo é Duque; talvez se sinta adulada porque te enviamos para


falar com ela. Ou talvez possa apelar ao seu patriotismo. - Embora me adule sua opinião sobre meus encantos, disse Rafe com expressão preocupada, não seria mais simples que um de seus diplomatas que já estão em Paris falasse com esta mulher? - Por desgraça, há motivos para pensar que um membro da delegação é... não é digno de confiança. Estiveram saindo informações secretas da Embaixada britânica, e isso causou problemas - explicou Lucien, e continuou com expressão carrancuda: É possível que eu esteja vendo sombras onde não existem, e que não haja nenhum traidor e tudo se deva simplesmente a descuidos. Mas este assunto é muito importante para nos arriscarmos a trabalhar através de meios não seguros. - Não sei, tenho a impressão de que o que o preocupa é algo mais que as discussões diplomáticas normais, disse Rafe. - Tanto se nota? - perguntou Lucien, irônico. Tem razão, recebi inquietantes informes que sugerem que se está tramando uma conspiração para interromper as negociações de paz, possivelmente totalmente. Rafe fez girar seu charuto entre o polegar e o índice, tentan do imaginar uma ação tão subversiva que conseguisse armar um caos entre os aliados. - É uma conspiração de assassinato? À exceção do Príncipe regente britânico, todos os soberanos aliados estão em Paris, além dos principais diplomatas europeus. Matar qualquer um deles seria desastroso. Lucien exalou um anel de fumaça que formou um incrível halo sobre sua cabeça loira. - Exatamente. Queira Deus que esteja equivocado, mas meu sexto sentido me diz que está se tramando um grave problema. - Quem é o assassino e quem é o alvo? - Se soubesse isso não precisaria estar falando contigo agora, respondeu Lucien em tom lúgubre. Só ouvi insinuações, recolhidos de várias fontes. Há muitas facções inimigas e muitos alvos possíveis. Por isso é tão essencial a informação. - Soube que houve uma tentativa de assassinar ao Wellington em Paris no inverno passado, disse Nicholas. Poderia ser ele o objetivo desta vez? - Esse é um de meus piores temores, respondeu Lucien. Depois de sua vitória em Waterloo, é o homem mais respeitado da Europa. Se o assassinassem, só Deus sabe o que ocorreria. Rafe refletiu sobriamente sobre as palavras de seu amigo. - Por isso quer que eu convença a sua dama espiã que siga te enviando informações até que tire o chapéu a conspiração ou termine a conferência. - Exatamente. - Diga algo sobre ela. É francesa? - Aí a coisa se complica, respondeu Lucien melancólico. Conheci Maggie através de outra pessoa, e não sei quase nada dela, mas sempre acreditei que é britânica. Certamente parece e fala como uma inglesa. Nunca indaguei mais porque o que importava era que odiava Napoleão e tomava o trabalho como uma cruzada pessoal. Seus informes sempre foram bons,


e jamais me deu o menor motivo para desconfiar dela. Rafe acreditou detectar uma reserva tácita nessas palavras. - Mas ocorreu algo que te faz pôr em dúvida seu fidelidade. - Ainda me custa acreditar que Maggie nos traiu, mas não sei se posso confiar em meu julgamento. É capaz de convencer a um homem de tudo; esse é um dos motivos da sua eficiência. Lucien franziu o cenho. A situação é muito grave para dar algo por certo, incluindo sua lealdade. Agora que Napoleão vai a caminho da Santa Elena, ela poderia fazer seu negócio vendendo segredos britânicos aos outros aliados. Talvez tenha pressa para sair de Paris porque tem feito uma fortuna com negócios duplos ou triplos e quer escapar antes que a agarrem. - Há alguma prova de que seja desleal? - Como disse, sempre supus que Maggie é inglesa. Lucien olhou ao Nicholas. Você a conheceu como Maria Bergen; recentemente me escreveu uma carta em que em lugar de se referir a ela pelo seu nome dizia «a austríaca com quem trabalhei em Paris». Nicholas se endireitou com expressão surpreendida. - Quer dizer que Maria é inglesa? Custa-me acreditar. Não só seu alemão era perfeito, mas também além seus gestos, suas maneiras, eram de austríaca. - Isto só piora - disse Lucien, divertido ao seu pesar. Picou a curiosidade e perguntei a outros homens que a conheceram em etapas anteriores. O monárquico francês está seguro de que é francesa; o prussiano diz que é berlinense, e o italiano está disposto a jurar pela tumba de sua santa mãe que é de Florença. Rafe não pôde evitar de tornar a rir. - Ou seja que já não está seguro de onde vai a lealdade da dama, se realmente for uma dama. - É uma dama, não há dúvida - ladrou Lucien. Mas de quem? A Rafe surpreendeu a veemência da reação, porque Lucien não era um sentimental tentando-se de seu trabalho. - O que devo fazer se descobrir que esteve traindo aos britânicos? - perguntou mansamente. Matá-la? Lucien lhe dirigiu um olhar duro, não muito seguro de que o comentário tivesse sido uma brincadeira. - Como te disse antes, não se trata de matar. Se não for digna de confiança, se limite a informar ao ministro do exterior Castiereagh para que não confie no que diz. É possível que queira utilizá-la para passar informação falsa aos seus outros clientes. - Vejamos se entendi bem, disse Rafe. Quer que procure a essa senhora e a convença de que continue utilizando sua perícia para descobrir qualquer conspiração de assassinato que possa estar se tramando. Além disso, devo descobrir a quem é leal, e se houver algum motivo de suspeita, advertir ao chefe da delegação britânica que não confie em seu trabalho. Correto? - Correto. Mas terá que se mover rápido. As negociações não vão durar muito mais, assim que qualquer conspirador terá que dar o golpe logo. Lucien olhou ao Nicholas, que tinha estado escutando em silêncio. Tem alguma sugestão te apoiando em seu trato com


Maggie sob seu disfarce da Maria Bergen? - Bom, sem dúvida é a espiã mais formosa da Europa. Logo contribuiu sua avaliação da mulher, mas a conversa que seguiu não resolveu nada. - A informação que temos é simplesmente contraditória, concluiu Rafe. É evidente que sua Maggie é uma atriz soberba. Terei que tocar de ouvido nesta situação, e espero que resulte vulnerável ao meu famoso encanto. - Quando pode te pôr em marcha? - perguntou-lhe Lucien quando ficavam de pé. - Depois de amanhã. A espiã mais formosa da Europa, né? A perspectiva promete ser estimulante, comentou Rafe com um brilho nos olhos. Apagou o charuto. Prometo fazer tudo o que possa pelo Rei e o País. Voltaram para a festa e se mesclaram com outros convidados. Depois de saudar, conversar e fazer vida social para parecer normal, Rafe estava impaciente para partir, mas recordou que não tinha perguntado como era a tão formosa Maggie. Lucien tinha desaparecido, de modo que começou a procurar Nicholas. Viu-o entrar em um gabinete com cortina e o seguiu. Mas ao afastar a cortina se deteve em seco, segurando o lado da cortina. No espaço em penumbra, Nicholas e sua mulher estavam abraçados; não estavam beijando-se; nesse caso Rafe teria sorrido e teria partido sem pensar mais. Mas o que viam seus olhos era mais singelo embora mais perturbador: Clare e Nicholas estavam apoiados um no outro com os olhos fechados, lhe rodeava a cintura com os braços e ela apoiava a cabeça em seu peito. Era um quadro de confiança e entendimento mútuos perfeitos, e muito mais íntimo que o abraço mais apaixonado. Posto que não tinham percebido sua presença, Rafe se retirou em silencio com o rosto tenso. Não é bom invejar muito os amigos. Depois de um dia de frenéticos preparativos, o Duque de Candover estava preparado para deixar a Inglaterra. Viajaria rápido, levando uma só carruagem, seu ajudante de câmara e um guarda-roupa que faria justiça a sua fama na capital mais elegante da Europa. Quando o relógio deu as badaladas de meia-noite se sentou em seu estúdio com uma taça de conhaque a olhar a correspondência para ver se havia algo urgente. Quase ao final da pilha encontrou uma nota de lady Jocelyn Kendal ou, melhor dizendo, de lady Presteyne; posto que agora estava muito casada, devia deixar de usar seu sobrenome de solteira. Na nota lhe agradecia o bom conselho de enviá-la a fazer as pazes com seu marido, elogiava as alegrias de um matrimônio feliz e insistia que ele tentasse. Rafe esboçou um sorriso, contente de que o problema tivesse se resolvido bem. Sob sua beleza, sobrenome famoso e imensa riqueza, Jocelyn era também uma jovem simpática. Se ela e seu marido eram dois loucos românticos talvez continuassem felizes indefinidamente, embora tivesse suas dúvidas. Elevou a taça em um solitário brinde por ela e seu afortunado marido, bebeu o conhaque de um gole e jogou a taça na lareira. O brinde lhe saiu do coração, mas seu sorriso se azedou ao contemplar os resultados de seu atípico gesto: cristais quebrados. Um homem famoso por seu savoir faire teria feito


melhor refreando-se. Quão único tinha para mostrar no momento era uma taça de cristal a menos e uma importuna sensação de perda. Serviu outra taça, voltou a sentar-se na poltrona de orelhas e contemplou sua biblioteca com expressão aborrecida. Era uma habitação de belas proporções, uma sinfonia de esplendor estilo italiano. De todas suas posses, não havia nenhum outro lugar de que desfrutasse mais. Sendo assim, por que se sentia tão deprimido? Cansativamente reconheceu que a única maneira de curar sua melancolia era entregar-se a ela. Não era Jocelyn o problema; se a tivesse desejado tanto teria se casado com ela. O que o perturbava era a forma como a jovem lhe tinha recordado a Margot, a formosa e traiçoeira Margot, morta há doze anos. Não era muito parecida fisicamente, mas nas duas tinha visto esse espírito alegre, risonho, que era irresistível. Em todos seus encontros com Jocelyn, tinha recordado Margot. Margot lhe havia meio doido o coração como nenhuma outra mulher jamais, e posto que nunca poderia ser jovem outra vez, nenhuma mulher poderia com ele jamais. Sorvendo pouco a pouco seu conhaque, tratou de pensar objetivamente em Margot Ashton, mas lhe era impossível ser racional respeito do seu primeiro amor; o primeiro e último, na realidade. A experiência o curou para sempre de toda ilusão romântica; mas nesse tempo a ilusão lhe tinha parecido muito real. Margot não era a mulher mais formosa que tinha conhecido em sua vida, nem certamente a mais rica nem de melhor berço. Mas tinha simpatia e encanto em pródiga abundância, e faiscava de uma vitalidade incomparável. Imagens agridoces lhe alagaram a mente. A primeira vez que a viu; o primeiro beijo, tímido, milagroso; longas sessões diante do tabuleiro de xadrez, quando os movimentos formais encobriam um jogo mais profundo e apaixonado, a entrevista com o sorridente Coronel Ashton em que lhe pediu sua mão gaguejando. A lembrança mais nítida era o de uma manhã em que se encontraram em Hyde Park para passear a cavalo. Caía uma fina chuva quando ia ao trote pelas silenciosas ruas de Mayfair, mas quando entrou no parque o céu já se estava limpando; à frente, no meio do luminoso ar da aurora, havia um arco íris de intensas cores. Estava admirando-o quando da bruma surgiu Margot ao pé do arco íris, montada em uma égua cinza chapeada, como uma fada rainha de lenda; pôs-se a rir e lhe estendeu a mão, um tesouro vivo no extremo do arco íris. Mesmo que soubesse que a imagem mágica era um simples produto do tempo atmosférico e o ar, teve a impressão de que era a realidade mais profunda que tinha conhecido. Duas semanas depois se acabou o romance e com ele suas ilusões. Seu mais velho pesar lhe vinha de saber que foram seu ciúmes e sua raiva os que puseram fim ao compromisso. Se aos 21 anos houvesse possuído a fria serenidade que tinha desenvolvido depois, se tivesse sido capaz de aceitar sua falsidade, poderia ter tido sua amizade durante todos esses anos. Porque uma vez dito e feito tudo, sua companhia era do que mais sentia falta. Sabia que o tempo tinha intensificado suas lembranças, porque não era possível que uma mulher fosse


tão desejável como a pintavam estas. Mas jamais tinha deixado de sentir falta do modo como ela compartilhava sua risada, ou o efeito de seus olhos de cor cambiante ao olhá-lo do outro extremo de uma habitação, com tanta intimidade que ele se esquecia da existência do resto do mundo. Quebrou o pé da taça que segurava na mão, tirando o de seu sonho, lhe cortando os dedos e lhe derramando conhaque no colo. Vexado pelo desastre, incorporou-se; não sabia que os pés das taças fossem tão frágeis. O mordomo estaria uns quantos dias de mau humor quando descobrisse que no jogo de taças de cristal faltavam duas. Dirigiu-se à escada para subir ao seu dormitório. Um pouco de melancolia é poética, mas na primeira hora da manhã seguinte empreenderia uma viagem árdua; era o momento de enterrar as lembranças das loucuras de juventude e descansar um pouco.

Capítulo 2 - Não! Embora o frasco de perfume passasse assobiando a não mais de dez centímetros de sua têmpora, Robert Anderson não fez a menor tentativa de esquivá-lo; sabia que Maggie tinha uma pontaria excelente e nenhum desejo de machucá-lo; isso era simplesmente uma mensagem, por assim dizer. Com sua habitual sensatez tinha optado por lhe atirar o frasco de perfume barato que lhe deu de presente um ladrão de carteira bávaro de mau gosto. Robin a olhou sorridente; seus magníficos peitos se moviam agitados e seus olhos despediam faíscas; nesses momentos seus olhos eram de cor cinza devida ao vestido prateado que levava. - Por que não quer ver esse Duque que envia Lorde Strathmore? Deveria se sentir adulada de que o Foreign Office se tome tanto interesse por ti. A resposta de Maggie foi uma fileira de palavrões italianos. Ele inclinou a cabeça, escutando-a com expressão crítica. Quando acabou o estalo, disse-lhe: - Muito criativa, Maggie, carinho, mas não é típico de você sair assim de seu personagem. Não te parece que Magda, a Condessa Janos, deveria blasfemar em magiar? - Sei mais blasfêmias em italiano, respondeu ela altiva. E sabe muito bem que nunca saio de meu personagem diante de ninguém que não seja você. Sua atitude de aristocrática dignidade cedeu o passo a uma risada travessa. Não creia que pode trocar o tema, que é o nobilíssimo Duque de Candover. Robin a contemplou pensativo. Conheciam-se há muito tempo, e embora a relação tivesse deixado de ser íntima, seguiam sendo muito bons amigos. Não era típico de ela ter estalos temperamentais mesmo que estivesse há dois anos representando o papel de uma volúvel aristocrata húngara.


- De acordo. O que tem em contra o Duque? Maggie se sentou diante sua penteadeira, agarrou uma escova com cabo de marfim e começou a passá-lo por seus dourados cabelos que lhe caíam até os ombros. Fez um mau gesto olhando o espelho. - É um escrupuloso. - Quer dizer isso que não apreciou adequadamente seus encantos? - perguntou Robin, interessado. É estranho isso; Candover tem fama de homem de salão; pareceria-me incrível que fizesse caso omisso de um saboroso bocado como você. - Não sou o saboroso bocado de ninguém, Robin! Os libertinos são os mais escrupulosos de todos, uns falsos, segundo minha experiência. - Atirou fortemente de umas jubas emaranhadas. Não tente começar outra rixa enquanto não tenhamos acabado esta. Nego-me a ter algo que ver com o Duque de Candover, assim como me nego a continuar espionando. Essa parte de minha vida acabou e ninguém, nem você, nem o Duque, nem Lorde Strathmore, podem me fazer trocar de opinião. Tão logo deixe arrumados uns quantos assuntos, partirei de Paris. Robin se colocou a suas costas, tirou-lhe a escova e começou a passá-la brandamente por seus abundantes cabelos dourado escuros. Era estranho como ainda compartilhavam algo da intimidade de marido e mulher, embora nunca se casaram. Sempre tinha gostado de lhe escovar o cabelo, e o sutil aroma de sândalo recordou os anos em que tinham sido apaixonados amantes, desafiando o mundo e pensando muito pouco no futuro. Maggie olhava ao espelho com expressão fria, seus olhos de um cinza gelo já não jogavam faíscas como fazia um momento. Depois de vários minutos de escovação, começou a relaxar. - Candover fez algo muito terrível? - perguntou-lhe ele docemente. Se for causar pesar o ver, não voltarei a tocar no tema. Sabendo que Robin possuía o inquietante dom de detectar significados ocultos, Maggie escolheu com supremo cuidado suas palavras: - Embora tenha se comportado de um modo bastante desprezível, isso faz muito tempo e não me incomodaria de lhe ver. Simplesmente não quero que outro homem me diga para fazer o que não quero fazer. Robin procurou seus olhos no espelho. - Então por que não o vê uma vez e lhe diz isso? E se quer tomar uma pequena vingança por ofensas passadas, poderia te apresentar a ele em seu aspecto mais sedutor. Pode enlouquecê-lo de desejo enquanto rejeita sua petição. - Não creio que isso resulte, disse ela sarcástica. A despedida foi bastante... bastante feia. - Isso não troca nada, é possível que depois tenha pensado em ti com desejo. A metade dos diplomatas da Europa deixou sair segredos de Estado de seus lábios por um de seus sorrisos. Robin sorriu. Ponha esse vestido de dança verde, solte um sedutor suspiro ao rejeitar sua petição e logo se retire garbosamente da sala; asseguro-te que isso lhe vai tirar a paz durante ao menos um mês. Ela se contemplou no espelho, pensativa. Embora soubesse muitíssimo bem do que


deixava loucos aos homens, não estava segura de que Candover sucumbisse aos seus encantos. De todos os modos, a fúria e o desejo estão estreitamente relacionados, e Rafael Whitbourne tinha estado muito furioso em seu último encontro. Pouco a pouco se foi formando um perverso sorriso em seus lábios. Depois jogou atrás a cabeça e riu. - Muito bem, Robin, você ganhou. Verei seu ridículo Duque. Devo-lhe umas quantas noites de insônia. Mas te garanto que não me vai fazer trocar de opinião. Robin depositou um rápido beijo em sua cabeça. - Boa garota. Em que pese os seus protestos, pensou, se visse o Candover havia uma possibilidade de que ele a convencesse a continuar seu trabalho um tempo mais. E isso seria muito bom. Depois que Robin partiu Maggie não chamou imediatamente a sua criada para que terminasse de poli-la. Cruzou os braços sobre o lado da penteadeira e apoiou a cabeça neles; sentia-se triste e cansada. Era uma estupidez ter concordado em ver Rafe Whitbourne; este se tinha levado muito mal em realidade, mas inclusive nesses momentos ela tinha compreendido que era a dor a causa de sua crueldade, e, portanto lhe tinha negado o prazer de odiá-lo. Tampouco o amava; a Margot Ashton que pensava que o sol girava ao redor de sua formosa cabeça tinha morrido há mais de doze anos. Nos anos seguintes tinha sido muitas pessoas distintas, desde que Robin tomasse sob seu amparo e lhe desse um motivo para seguir vivendo. Rafe Whitbourne só era uma lembrança agridoce que não tinha nada a ver com seu eu atual. Em realidade, o amor e o ódio são as duas caras de uma mesma moeda, porque em ambos os sentimentos a outra pessoa importa; o verdadeiro oposto do amor é a indiferença, e posto que indiferença era o único sentimento que lhe inspirava Rafe, não valia a pena incomodar-se em pequenas vinganças. Só desejava pôr fim a essa fase de sua vida, ao engano, aos relatórios falsos e os informantes. Acima de tudo, desejava realizar a tarefa q ue tinha adiado muito tempo, e depois voltar para a Inglaterra, seu País, ao qual não ia há treze anos. Teria que começar de novo, e desta vez sem o amparo de Robin. Jogaria terrivelmente de menos, mas inclusive em sua solidão encontraria alívio; conheciam-se muito bem como para que ela pudesse reinventar-se se ele estava perto. Levantou a cabeça, apoiou o queixo em um punho e se olhou no espelho. Suas maçãs do rosto altas faziam uma magia convincente, e falava o idioma tão bem que nunca ninguém tinha duvidado que fosse húngara. Mas como a veria Rafe Whitbourne depois de tantos anos? Um sorriso irônico curvou seus lábios grossos, lábios aos quais tinham dedicado ao menos onze poemas ruins. Pelo visto o homem ainda era capaz de despertar certa emoção nela, embora só fosse vaidade. Analisou sua imagem com olho crítico. Nunca tinha sido uma grande entusiasta a respeito da sua aparência, porque sua cara carecia dessa moderação clássica da verdadeira beleza; tinha as maçãs do rosto muito altas, a boca muito larga, os olhos muito grandes.


Mas pelo menos havia mudado algo desde quando tinha dezoito anos; sempre tinha tido uma tez excelente, e cavalgar e dançar lhe mantinham em forma a figura; embora as curvas estivessem algo mais grossas, nenhum homem tinha colocado objeções a isso jamais. De acordo, lhe tinha escurecido o cabelo, mas em lugar de adquirir essa cor torrada apagada que estava acostumado a tomar, agora tinha o matiz do ondulante trigo dourado. Finalmente chegou à conclusão de que estava melhor que quando era a noiva de Rafe. Era tentador imaginar-lhe gordo e meio calvo, mas o Condenado tinha o tipo de aparência que só melhora com a idade. Quanto a sua personalidade, isso era outra história; se aos vinte e um anos não estava livre da arrogância que dá a riqueza e a fama social, nos anos seguintes só teria piorado. Já devia estar insuportável. Reatou a tarefa de vestir-se para o jantar, pensando que seria divertido tentar lhe furar sua presunção. Mas não conseguiu ignorar a desagradável sensação de que vê-lo resultaria um engano. O Duque de Candover não tinha estado em Paris desde 1803 e encontrou a cidade muito trocada. Mas até em sua derrota, a capital da França seguia sendo o centro da Europa. Estavam ali quatro grandes soberanos e uma vintena de monarcas menos importantes com o fim de agarrar o que pudessem dos escombros do império de Napoleão. Os prussianos queriam vingança; os russos queriam mais território; os austríacos desejavam voltar para calendário de 1789, e os franceses desejavam salvar-se das fortes represálias que poderiam sofrer por causa dos loucos e sangrentos cem dias de Napoleão. Os britânicos, como de costume, tentavam ser imparciais. Era como tentar mediar uma briga de cães furiosos. Apesar da pletora de governantes, «o Rei» era sempre Luis XVIII, o Bourbon envelhecido cujas mãos trêmulas sustentavam o trono francês, enquanto que «o Imperador» era sempre Bonaparte. Inclusive ausente, o Imperador arrojava uma sombra mais longa que a presença física de qualquer outro homem. Rafe tomou quartos em um luxuoso hotel cujo nome havia mudado três vezes nesse mesmo número de meses, para refletir as distintas correntes políticas. Nesses momentos se chamava Hotel da Paz, porque a paz era algo aceitável para a maioria das facções. Teve o tempo justo para banhar-se e trocar-se antes de assistir a um dança na Embaixada da Áustria, onde Lucien lhe tinha organizado o encontro com a misteriosa Maggie. Vestiu-se com esmero, consciente da sugestão de seu amigo de que enfeitiçasse a dama espiã. Conforme o aprendido em suas experiências, sabia que com um sorriso galante e certa fervorosa atenção era capaz de conseguir o que quisesse de uma mulher; com freqüência as damas lhe ofereciam bastante mais do que ele desejava aceitar. Muito em seu papel de Duque, chegou à dança, que era uma lhe rutilante reunião dos grandes e famosos da Europa. Entre os convidados não só estavam todos os monarcas e diplomatas importantes, mas também centenas de senhores e damas da nobreza, além das cortesãs e descaradas aos que o poder atraía como um ímã. Passeou pelo salão, bebendo champanha e saudando seus conhecidos; sob a alegre e despreocupada superfície percebeu redemoinhos e perigosas correntes. Estavam bem


fundados os temores do Lucien; Paris era um paiol de pólvora, uma faísca poderia incendiar o Continente uma vez mais. A noite estava bem avançada quando lhe aproximou um jovem inglês de cabelo loiro e figura esbelta e elegante. - Boa noite, excelência. Sou Robert Anderson, da delegação britânica. Há uma pessoa que deseja lhe conhecer. Teria a amabilidade de me acompanhar? Anderson era mais baixo e mais jovem que ele, e sua cara lhe resultava vagamente familiar. Enquanto abriam passo entre a multidão, Rafe o examinou dissimuladamente, pensando se não seria ele o elo frouxo da delegação. Era de aparência tão agradável que chegava a ser bonito e dava a impressão de amável vacuidade. Se fosse um espião ardiloso e perigoso, dissimulava-o muito bem. Saíram do salão e subiram uma escada até um corredor com muitas portas. Anderson se deteve diante da última. - A Condessa lhe espera excelência. - Você conhece a dama? - Estive com ela. - Como é? Anderson pensou um momento e logo negou com a cabeça: - Creio que é melhor que você descubra por si mesmo. Abriu a porta, e o fez passar, e acrescentou em tom formal: Excelência me permita lhe apresentar a Magda, a Condessa Janos. - depois de uma respeitosa inclinação, partiu. Um só candelabro iluminava tenuemente a pequena e elegante sala. Rafe dirigiu imediatamente o olhar para a figura em sombras que estava de pé junto à janela. Embora lhe desse as costas, teria percebido que era formosa pela segurança que emanava de seu elegante porte. Quando fechou a porta, ela se voltou para ele, com um movimento lento e provocador que fez deslizar-se sedutoramente a luz das velas pelas curvas de seu exuberante figura. Um leque de plumas lhe ocultava a maior parte do rosto, e um cacho dourado lhe caía encantadoramente sobre o ombro. Irradiava sensualidade, e Rafe compreendeu por que Lucien havia dito que era capaz de nublar o julgamento de um homem. Enquanto seu corpo se esticava, em involuntária reação, teve que admirar quão bem ela entendia o poder da insinuação sutil. Seu decote, menos sutil, era o suficientemente baixo para atrair a atenção de qualquer homem que ainda não tivesse morrido. Se lhe exigisse sacrificar sua honra com o fim de persuadi-la, faria-o com imenso prazer. - Condessa Janos, sou o Duque de Candover. Um amigo de ambos me pediu que falasse com você de um assunto de certa importância. Seus olhos o olharam zombadores por cima do leque. - Seriamente? - ronronou, com um delicioso acento mágico. Talvez o assunto seja importante para você e para Lorde Strathmore, monsieur Duque, mas não para mim. Desceu lentamente o leque, deixando ver primeiro as maçãs do rosto altos, depois o


nariz, miúdo e reto. Tinha uma pele cremosa como pétala de rosa, uma boca larga e sensual... Até ali chegou o inventário do Rafe; o coração começou a disparar com incredulidade. Tinha ouvido dizer que toda pessoa tem uma cópia em alguma parte do mundo, e ao parecer acabava de encontrar-se com a cópia de Margot Ashton. Esforçando-se para dominar sua emoção, tentou comparar à Condessa com suas lembranças. Calculou-lhe uns vinte e cinco anos; Margot teria trinta e um, mas era possível que representasse menos idade. Certamente a Condessa era mais alta que Margot, que ultrapassava por muito pouco a estatura média, embora a verdade era que seu porte e vitalidade sempre a faziam parecer mais alta do que era na realidade. Surpreendeu-lhe o muito que teve que incliná-la na primeira vez que a beijou... Energicamente se separou de suas caóticas emoções e se obrigou a continuar a análise. Os olhos da Condessa pareciam ser verdes, e seu aspecto era exótico; mas usava um vestido verde, e a cor dos olhos de Margot era mutável; trocava de cinza a verde e ao castanho conforme seu estado de ânimo e o vestido que levasse. A semelhança era extraordinária, e não via diferenças que se pudessem atribuir ao tempo ou à má memória. Teve a louca idéia de que essa mulher podia ser Margot em pessoa; embora tinham lhe informado de sua morte, era possível que se houvessem se equivocado; as notícias revistam enredar-se na viagem. Se estava todos esses anos vivendo no continente, era possível que já não tivesse o ar de inglesa. Entretanto, a atitude da Condessa dava a entender que eram desconhecidos. Se fosse Margot, certamente o reconheceria, porque não havia mudado muito. E se o tinha reconhecido, custava-lhe acreditar que não o admitisse, embora só fosse com uma maldição. Durante sua longa inspeção ela se limitou a observá-lo com um leve sorriso divertido. O silêncio já durava muito, e lhe correspondia dar o seguinte passo, sendo o suplicante. Voltou para seu papel do Duque, que sempre sabia o que dizer. - Rogo-lhe me desculpe, Condessa - lhe disse com uma profunda inclinaçãoAdvertiram-me que é você a espiã mais formosa da Europa, mas mesmo assim, essa descrição não lhe faz total justiça. Ela soltou uma risada alegre, íntima. A risada de Margot. - Fala você muito belamente, excelência. Eu também ouvi falar de você. - Nada em meu descrédito, espero. Tinha chegado o momento de usar seu tão cacarejado encanto. Aproximou-se uns passos e sorriu: Você sabe a que vim, e este é um assunto sério. Não nos atemos à formalidade. Preferiria que me chamasse por meu nome. - Qual é? Se fosse Margot e essa era uma representação, estava-a fazendo de modo soberbo. Com um indício de cansaço no sorriso, agarrou-lhe a mão e a beijou. - Rafael Whitbourne. Meus amigos me chamam Rafe. Ela retirou a mão como se a tivesse mordido. - Que idéia a de lhe pôr o nome de um arcanjo a um libertino, não é? Essas palavras desvaneceram todas suas dúvidas.


- Meu deus, sim, é Margot - disse com voz maravilhada. Era a única que se atrevia a falar de minha falta de similitude com os arcanjos. E era um bom sarcasmo; eu a repeti muitas vezes. Mas como diabos chegou até aqui? Ela fez um lânguido movimento do leque. - Quem é essa Margot, excelência? Alguma insípida inglesinha que se parece comigo? Essa negação lhe produziu uma quebra de onda de fúria, quão mais velha sentia desde fazia anos. Só lhe ocorreu uma maneira de determinar a identidade da mulher que tinha diante. Com um rápido movimento avançou a distância que os separava, apertou-a fortemente contra ele e lhe beijou a zombadora boca. Era Margot, sentiu-o na medula de seus ossos, não só pela maneira como se adaptou seu corpo ao dele ou pela doçura de seus lábios, mas sim por uma essência única, esquiva, que era dela sem confusão possível. Até sem esse reconhecimento ele teria sabido, porque jamais tinha conhecido a outra mulher cujo contato lhe acendesse essa labareda de desejo. Consumido pela paixão esqueceu por que estava em Paris, esqueceu o motivo desse abraço, esqueceu tudo, exceto o milagre que tinha entre seus braços. Margot estremeceu, e por um embriagador instante se rendeu, seu corpo submisso, sua boca aberta sob a dele; pareceu-lhe que os anos se desvaneciam. Margot estava viva e tudo estava bem no mundo pela primeira vez depois de doze anos... O momento acabou quase antes de começar. Ela tentou afastar-se, mas ele a reteve um momento mais explorando sua boca, maravilhado do pouco que havia mudado nesse sentido. Quando ela o empurrou violentamente para trás apoiando as mãos em seu peito, soltoua a contra gosto. Ela retrocedeu, olhando-o com uma fúria tão grande que ele acreditou que o ia golpear. Para seus adendos reconheceu que tinha direito de estar furiosa, e não teria tentado de evitar o golpe. Mas ela, com uma volúvel mudança de humor, pôs-se a rir com autêntica diversão. - Ficou em suspense? - disse-lhe com seu acento inglês natural. - Francamente, sim. Feliz de ver um brilho da antiga Margot, Rafe lhe observou atentamente a cara, ainda não convencido de tudo de que era real. Por que demônios Lucien não lhe havia dito quem era a espiã? Então recordou que nenhum dos outros Anjos Cansados a tinha conhecido. Sem saber seu verdadeiro nome nem seu passado, Lucien não tinha nenhum motivo para fazer a conexão entre ela e ele. - Perdoe, por favor, a rabugice - lhe disse, tentando de parecer tranqüilo, mas me pareceu que era a melhor maneira de estabelecer sua identidade. - Perdoar não é minha norma - respondeu ela em tom alegre, voltando-se para pôr a máscara mundana. Isso não melhorava as coisas. Ela se aproximou de um aparador no que havia taças e uma garrafa de vinho da Borgonha. Serviu duas taças e ofereceu uma ao Rafe. - Nossos amáveis anfitriões pensaram em tudo o que poderia necessitar um casal de má


conduta. Seria uma lástima desperdiçar tudo. Sente-se por favor - acrescentou, sentando-se em uma das poltronas, desdenhando intencionalmente o sofá estofado em veludo. Por que ia ser difícil me identificar? - continuou enquanto ele se sentava na outra poltrona. Dizem que estou bem conservada para ser uma mulher de minha avançada idade. - «A idade não pode murchá-la...»? - citou ele com um leve sorriso, é justamente o motivo de confusão; quase está igual a quando tinha dezoito anos. Mas o verdadeiro motivo de que tivesse dificuldade para determinar se era Margot Ashton é que se supunha que tinha morrido. - Já não sou Margot Ashton - disse ela em tom mordaz, mas tampouco estou morta. O que te fez acreditar que eu estava? Embora já sabia que estava viva, ele teve que forçar uma expressão de serenidade para poder falar. - Você estava com seu pai na França quando se assinou a Paz do Amiens. Chegou a notícia de que vocês dois foram mortos por uma turma de franceses que foram oferecer suas armas ao Napoleão. Os olhos cor fumaça se entrecerram com uma expressão que ele não conseguiu interpretar. - Essa notícia chegou a Inglaterra? - Sim, e causou todo um alvoroço. As pessoas se horrorizaram que um distinto oficial do exército e sua formosa filha fossem assassinados simplesmente por ser em britânicos. Mas como já estávamos em guerra com os franceses, não era possível nenhuma sanção diplomática. Bebeu de sua taça lhe observando a cara. Quanto desta história é certa? - Bastante, se limitou a dizer ela. Deixou sua taça no aparador e se levan tou. Vieste tentar me convencer de que siga prestando meus serviços a Inglaterra; vais apelar ao meu patriotismo e logo me vai oferecer uma importante quantidade de dinheiro. Vou rejeitar ambas as coisas. Posto que o resultado já está determinado, não vejo nenhum motivo para perder o tempo te escutando. Boa noite e adeus. Espero que desfrutes de sua estadia em Paris. Dirigiu-se à porta, mas se deteve quando ele levantou uma mão. - Por favor, espere um momento. Agora que sabia que «Maggie» era Margot, uma pa rte de seu trabalho parecia. Certamente era inglesa, não francesa, prusiana, italiana, húngara, nem nenhum outro personagem que decidisse interpretar. Além disso, negava-se rotundamente a acreditar que ela traísse ao seu País. Se alguém estava vendendo segredos de estado britânicos, não era ela. Mas não sabia como proceder. Dado o ressentimento que ela sentia para ele, Lucien não poderia ter escolhido um pior enviado. - Concede-me dez minutos? - perguntou-lhe. Poderia te surpreender com algo que não espera, Margot. Durante um momento o assunto oscilou na balança; depois ela encolheu de ombros e voltou a sentar-se. - Duvido, mas continue. E tenha a bondade de recordar que não sou Margot; sou


Maggie. - Qual é a diferença entre as duas? Ela voltou a entrecerrar os olhos. - Nada que seja de sua incumbência, excelência. Por favor, recite seu argumento para poder partir. Embora fosse difícil continuar diante essa hostilidade, teria que tentar. - Por que deve partir de Paris neste determinado momento? O novo tratado terá sido negociado e assinado antes que termine o ano. Isto pode acabar em umas quantas semanas mais. Ela descartou o argumento com um gesto da mão. - Isso mesmo me disseram na primeira abdicação de Boney. O Congresso de Viena ia ficar concluído em seis ou oito semanas; durou nove meses. Napoleão retornou antes que terminasse, e novamente meus serviços foram indispensáveis. Agarrou a taça e bebeu. Estou farta de adiar minha vida, disse com um indício de aborrecimento. Agora Bonaparte vai caminho da Santa Elena a pregar seu destino às gaivotas, e é hora de que eu me ocupe de alguns assuntos adiados durante muito tempo. Percebendo que havia mudado seu humor, ele se arriscou a lhe fazer outra pergunta pessoal. - Que tipo de assuntos? Ela contemplou sua taça, agitando o vinho. - Primeiro irei a Gascunha. Rafe sentiu um formigamento na nuca ao imaginar porque iria ali. - Por quê? Ela o olhou com o rosto sem expressão. - Para procurar o corpo de meu pai e levá-lo a Inglaterra. Já passaram doze anos. Vai-me levar tempo descobrir onde o enterraram. Embora sua hipótese tinha sido correta, isso não lhe produziu nenhum prazer. O vinho lhe desceu mais amargo na língua porque devia falar de algo que teria preferido manter em segredo. - Não há nenhuma necessidade de que vá a Gascunha. Não vais encontrar a seu pai ali. - O que quer dizer? - perguntou ela franzindo o cenho. - Deu a casualidade de que eu estava em Paris quando chegou a notícia de suas mortes, de modo que fui à aldeia onde ocorreram os assassinatos. Disseram -me que duas tumbas recém cavadas pertenciam aos dois ingleses e supus que você e seu pai foram enterrados ali. Encarreguei-me de que levassem os corpos a Inglaterra. Estão no panteão familiar da propriedade do seu tio. O verniz mundano se dissolveu; Margot se inclinou e cobriu a cara com as mãos. Rafe desejou consolá-la, mas sabia que ela não aceitaria nada dele. Quanto tinha invejado a relação amistosa e afetuosa que existia entre Margot e seu pai, tão diferente da cortesia fria e distante que havia entre ele e o seu. O Coronel Ashton era um soldado amável e franco, mais interessado em ver sua filha feliz que em casá -la com um Duque. Sua morte nas mãos dessa turba deve tê-la deixado aniquilada.


Depois de um comprido silencio, Maggie levantou a cabeça. Seus olhos tinham um brilho não natural, mas seu rosto estava sereno. - O segundo ataúde deve ter sido de Willis, o ajudante de meu pai. Era um homem baixinho, mais ou menos de minha altura. Os dois... comportaram-se muito bem quando nos atacaram. Levantou-se e se dirigiu à janela; fez a um lado a pesada cortina de brocado e ficou contemplando o bulevar, seu atormentado rosto refletido no cristal escuro. - Tio Willis era quase um membro da família. Ele me ensinou a jogar os jogos de dados e a fazer armadilhas nas cartas. Meu pai teria se horrorizado se tivesse sabido. Passou um débil sorriso por sua cara e se desvaneceu. Alegra -me que Willis esteja na Inglaterra, teria odiado a idéia de que seus ossos passassem a eternidade na França. Eu ia levar seu corpo também, mas você fez isso desnecessário. Voltou-se a olhá-lo, desaparecida a hostilidade . Por que o fez? Não deve ter sido fácil. A verdade é que não foi, nem sequer para um jovem rico e resolvido como ele. Tinha ido a França com a secreta esperança de encontrar Margot, e pese ao perigo de que se reatasse a guerra, tinha adiado sua volta. Então, justamente quando se acabava de assinar a Paz do Amiens, chegou a Paris a notícia de suas mortes às mãos de uma multidão revoltosa. Um homem sensato teria voltado para L ondres imediatamente, para evitar ficar apanhado ali enquanto durasse a guerra. Mas ele, que nunca tinha sido sensato tentando-se de Margot, enviou seus criados para casa e atravessou a França sozinho, aproveitando seu excelente francês para fazer-se passar por patrício. Levou semanas para localizar as tumbas. Devido ao perigo, decidiu levar os ataúdes revestidos de chumbo a Espanha, através dos Pirineus, para não ter que arriscar -se a atravessar a França de novo. Os dois ataúdes foram reenterrados na propriedade familiar dos Ashton em Leicestershire. Com suas próprias mãos ele plantou narcisos sobre a tumba menor, porque quando conheceu Margot era primavera e os narcisos sempre a recordavam. Não lhe contaria isso. Esse ato não só era sentimental, mas também vagamente risível posto que em retrospectiva, demonstrava que tinha sido um engano. Pensou onde estaria Margot quando ele estava em Gascunha? Ferida, talvez, ou prisioneira no cárcere local? Se tivesse investigado, poderia tê-la encontrado e a levado para casa? Mas isso já não importava. Limitou-se a dizer: - Não podia fazer nada mais por ti, era muito tarde para pedir desculpas. Ela ficou silenciosa um comprido momento. - E por que pensou que era necessário pedir desculpas? - perguntou finalmente. - Porque me portei muito mal, é obvio. Encolheu ombros. Quanto mais tempo passava pior me parecia minha conduta. Maggie fez uma respiração profunda e lenta. Deveria ter sabido que essa entrevista não ia sair segundo o plano. Rafe Whitbourne sempre tinha sido capaz de lhe encontrar os pontos vulneráveis. Essa sensibilidade tinha estado muito bem quando eram jovens e estavam apaixonados, mas era insuportável agora, já desaparecido o amor. Detestava perder o controle


diante dele. Quando esteve segura de que não lhe q uebraria a voz, olhou-o na cara. - Estou em dívida contigo, lhe disse. Cinicamente se perguntou se ele aproveitaria seu sentido de dever para convencê-la que continuasse em Paris. Mas ele respondeu: - Não me deve nada. Suponho que o fiz tanto por mim como por você. Essa discreta renúncia a atou como nenhuma outra coisa poderia tê-la pressionado. Resignada, disse: - Pode dizer a Lorde Strathmore que ficarei e continuarei trabalhando até que termine a conferência e se assine o tratado. É satisfatório isso? Cuidadosamente, ele se absteve de fazer qualquer comentário triunfal. - Estupendo disse, sobretudo porque agora se trata de algo mais que a rotina de reunir informação. Lorde Strathmore tem para ti uma tarefa especial. - Ah, sim? - Maggie voltou para sua poltrona. O que quer que faça? - Ouviu rumores de que há uma conspiração para assassinar a um das principais figuras que participam da conferência de paz. Quer que investigue isto a fundo e com a mais velha rapidez possível. Maggie franziu o cenho, esquecidas todas as considerações pessoais. - Faz só três semanas que houve uma conspiração para assassinar ao Rei, ao Czar e ao Wellington. Poderiam referir-se a isso os rumores? - Não, Lucien soube desse assunto e parece que isto é outra coisa. Há indícios de que isto tem sua origem nos círculos diplomatas mais importantes da conferência, e isso é o que o faz tão perigoso; não só vai ser mais difícil detectá-lo, mas também, além disso, significa que os conspiradores têm mais velha acesso a seus objetivos. Meteu a mão no bolso interior e tirou um papel dobrado e selado. - Aqui te explica Lucien o que sabe. Maggie agarrou a nota e a fez desaparecer. - A leu? Ele arqueou as sobrancelhas. - É obvio que não. Enviou isso a você. - Nunca seria um bom espião. - Muito certo, disse. Sua voz era sedosa, mas pela primeira vez revelava emoção. Jamais poderia igualar seu talento para o engano e a traição. Maggie se endireitou bruscamente na poltrona e seus sapatos de pelica golpearam o chão; o tácito passado vibrou na sala. Por um momento pareceu que sua fúria ia estalar, mas os muitos anos de treinamento lhe foram úteis e conseguiu dominar-se. - Não, certamente não poderia - respondeu em tom mordaz. Quando sua fada madrinha moveu sua varinha sobre seu berço ducal, os dons especiais que te concedeu foram a rigidez e a soberba. Olharam-se nos olhos, duas pessoas furiosas, apaixonadas, resolvidas a não ceder em nada. Rafe foi o primeiro a recuperar o controle, talvez porque necessitava mais que ela. Passou por cima do insulto com um encolhimento de ombros.


- Sem dúvida tem razão. Nunca pretendi ter um caráter admirável. Voltando ao nosso assunto, acredita que Lucien tem motivos para estar preocupado? Apóia-se principalmente em conjeturas. Deslizou seus largos dedos pelo pé da taça. Claro que para isso Luz é fabuloso. Você está mais perto da situação; qual é sua opinião? - Não ouvi nada em particular - respondeu ela, contente de deixar de lado as emoções que afloravam a cada instante, mas houve um surpreendente silêncio de parte dos radicais. Não é próprio deles renunciar enquanto ainda ficam jovens dispostos a morrer por seus ideais revolucionários. Intrigada por outro ponto, acrescentou: Referiu-se a Lorde Strathmore por seu nome de batismo. Conhece-o bem? - Muito bem. Você estava acostumada a me fazer brincadeiras por tomar parte de um grupo apelidado de os Anjos Cansados. Luz era outro membro deste grupo. Eu sou um pouco mais velho que meus amigos, de modo que terminei os estudos em Oxford e fui a Londres um ano antes. Luz e outros ainda estavam na universidade quando você teve sua temporada em Londres. Ela só tinha falado duas vezes com Lorde Strathmore durante os anos que tinha trabalhado com ele, mas lhe causou uma forte impressão. Surpreendeu-a saber que era amigo íntimo de Rafe. Certamente o mundo era muito pequeno. - Se mal não recordar, os quatro adquiriram esse apelido devido a certa ímpia combinação de aparência Angelicais e atos diabólicos. Tinha esperado desconcertá-lo, mas Rafe se limitou a sorrir. - Isso era um exagero, tanto em relação à aparência como aos atos. Ela apertou com mais força a base do leque. Poderia ter havido exagero em relação aos atos, mas não em relação à aparência. Aos vinte e um anos Rafe era glorioso; a maturidade tinha acrescentado poder a sua alta figura, caráter a sua cara e autoridade a sua presença. Embora recordava que sua cor morena provinha de uma avó italiana, tinha esquecido o espetacular contraste que faziam com seus cabelos e pele seus olhos azul cinzas. Desejou ser imune a sua atração, mas não era. O que piorava as coisas era que já não era uma garota inocente; era uma mulher, conhecia a paixão, e o desejo... Graças a Deus não era necessário voltar a ver Rafe; o efeito que estava exercendo sobre sua concentração era terrível. Levantou-se. - Começarei a investigar imediatamente. Se ouvir algo importante, comunicarei ao meu contato na delegação britânica. Agora, se me perdoar, há umas pessoas com as quais devo falar. Ele também se levantou, com expressão receosa. - Há uma coisa mais. Lucien quer que trabalhe comigo nisto, não com a delegação. - O que?! - exclamou ela. Para que diabos vou perder tempo tentando com um simpatizante? Se está se tramando uma conspiração o tempo é essencial. Com o risco de insultar sua importância e fama, você será um estorvo, excelência. Rafe apertou os lábios, mas falou com voz tranqüila. - Lucien suspeita que alguém da delegação britânica deu com a língua, seja por descuido ou por traição, e este assunto é muito importante para se correr riscos. Quer que me


comunique os informes. Estabelecemos um serviço temporário de mensageiros entre aqui e Londres para mantê-lo informado. Se os acontecimentos fizerem necessário informarei diretamente ao Castiereagh ou ao Wellington. - Que agradável saber que Strathmore confia neles, disse ela com carregado sarcasmo. Mas eu prefiro trabalhar à minha maneira. - Não estou em posição de te obrigar - disse ele amavelmente- mas, não poderia, pelo bem desta missão, engolir a repugnância e trabalhar comigo? Não será por muito tempo. Maggie o olhou jogando faíscas pelos olhos; reprimiu o desejo de lhe jogar o resto do vinho na cabeça para ver se isso alterava sua impenetrável calma. Por desgraça, além de sua relutância pessoal, não tinha nenhum motivo para não trabalhar com ele; além disso, gostasse ou não, estava em séria dívida com ele. - Muito bem, disse entre dentes, farei-te saber tudo o que descobrir. Deixou a taça no aparador, dirigiu-se à porta e a abriu. - Deixe te dar minha direção - disse ele então. Sorriu-lhe com expressão irônica. - Não é necessário. Já sei onde está hospedado, os nomes de seu chofer e sua ajudante de câmara e o número de baús que trouxe. Havendo por fim produzido uma expressão de surpresa na cara do Duque de Candover, acrescentou docemente: Recorde que a informação é meu trabalho. Saiu sentindo-se bastante agradada; ao menos por essa noite havia dito a última palavra. Lástima que não fosse a última palavra com ele de sua vida.

Capítulo 3

Depois que Maggie saiu da sala, Rafe exalou um comprido suspiro, esgotado. Durante anos tinha acariciado a lembrança romântica da garota que tinha amado e perdido, e de tanto em tão fazia especulações sobre o que poderia ter sido. Doía-lhe que essa nostalgia tivesse sido destroçada pela presença real da ex-amada, agora viva, descarada, e pertubadoramente competente. Acabou de beber seu vinho e deixou a taça no aparador. Mesmo com t odos os atormentadores traços de Margot Ashton, essa mulher era uma desconhecida, endurecida e imprevisível de modos que ele não entenderia jamais. A garota que tinha amado já não existia, e não estava muito seguro de que gostava dessa Maggie de superfície polida e tranqüila, nem seu trato difícil. Agia como se tivesse sido ele o traidor e não ela. Suspirou e se levantou. A maioria das verdades tem mais de um aspecto; talvez sua


lembrança do incidente fosse diferente da dele. Mas isso já não importava. Teria que ser jovem para arriscar-se aos terríveis perigos do amor total, e ele sabia que já não era capaz disso. Mas estava equivocado em um ponto; tinha acreditado que nenhuma mulher podia ser tão desejável como suas lembranças de Margot, e acabava de compreender que era ainda mais sedutora que o que recordava. Durante a entrevista lhe custou muitíssimo manter as mãos afastadas dela, inclusive quando cuspia insultos. Ao sair ao corredor para voltar para o dança se obrigou a recordar que não estava em Paris para sonhar com ela nem evocá-la, nem para lhe fazer pueris recriminações por maior que fosse a provocação. O importante era a conferência e as vidas dos homens e mulheres que estavam tentando construir uma paz duradoura. Antes de ir a sua seguinte entrevista, Maggie entrou em um corredor escuro e ficou ali um momento repondo suas forças. Apoiada na parede e com os olhos fechados, recitou mentalmente todas as blasfêmias que sabia dizer à perfeição em cinco idiomas. Maldito Robin por convencê-la em falar com o Duque de Candover; maldito Rafe Whitbourne por sua impenetrável serenidade e por esse pasmoso beijo que lhe demonstrou que Margot não estava morta como acreditava. E por cima de tudo, maldita ela mesma pela irreprimível esperança que sentiu diante a idéia de voltar a vê-lo. Repetiu-se com fúria que para ele um beijo não significava nada. Devia ter tido centenas em todos esses anos; e provavelmente não centenas e sim milhares. Por isso beijava tão bem... Essa idéia lhe reavivou a fúria. Já tinha repassado t odas as maldições que sabia em eslovaco quando por fim pôde rir de si mesma e reatar seu trajeto. Seu destino era outra sala de entrevistas, quase gemeu pela que acabava de deixar. Entrou sem chamar e encontrou Robin no sofá com uma taça de vinho na mão, como um amante impaciente esperando a uma dama. O que era, depois de tudo, mais ou menos a verdade. Ele começou a levantar-se, mas ela o deteve com um gesto. - Não é necessário que levante. Tirou-lhe os pés do sofá para sentar-se ao seu lado, necessitada do consolo de sua presença. Interpretando seu estado de ânimo, ele trocou a máscara de descaso por uma expressão inteligente e risonha. - Permita-me perguntar como foi sua entrevista com o Duque? - Ganharam você e ele, suspirou ela. Ficarei até o fim da conferência de paz. Robin soltou um suave assobio de surpresa. - E como Candover obteve isso? Se tiver descoberto alguma técnica milagrosa para te persuadir, terei que lhe perguntar qual é. Maggie se pôs a rir e lhe deu uns tapinhas na mão. - Não te incomode, carinho. Seu método não poderia usá-lo ninguém mais. Desvaneceuse o breve instante de risada. Resulta que estava na França quando mataram ao meu pai e ao Willis e ele se encarregou de levar seus corpos a Inglaterra. Nestes doze anos estiveram enterrados na propriedade de meu tio.


Robin a observou com atenção. Embora fosse fabuloso que ficasse essa novidade lhe sugeria uma miríade de perguntas. Quanto conhecia Maggie ao Duque, e teria isso conseqüências que afetassem a seus próprios planos? Mas guardou esses pensamentos. - É possível que te tenha mentido sobre isso para te convencer de que continuasse aqui? Essa pergunta a sobressaltou; jamais lhe tinha ocorrido pôr em dúvida a palavra de Rafe. Não se deteve reconsiderá-lo e negou com a cabeça. - Não, ele é um de seus cavalheiros ingleses corretos, sem imaginação suficiente para mentir. Robin sorriu e o sorriso lhe deu um irresistível aspecto de menino. - Ainda não te convenci que nem todos os ingleses são cavalheiros. - Você, Robin, é absolutamente único - disse ela sorrindo com afeto. O fato de que seja inglês é um simples acidente de nascimento. Apesar de seus protestos em contra. Robin era um cavalheiro, muito mais que o que tinha demonstrado ser Rafe Whitbourne. Ao longo dos anos muitas vezes tinha sentido curiosidade sobre seu passado. Suspeitava que era filho ilegítimo de algum nobre, criado e educado entre senhores, mas sempre um estranho entre as pessoas da fina sociedade. Isso explicaria por que não sentia nenhum desejo de voltar para sua terra natal. Mas nunca lhe tinha feito perguntas para confirmar suas suspeitas, e ele nunca lhe tinha contado nada tampouco. Embora em muitos sentidos a amizade entre eles fosse muito íntima, havia temas dos que não falavam. - Por certo, sua sugestão para que eu seduzisse ao Duque com meu irresistível corpo foi um fracasso completo, acrescentou com ironia. Teria dado igual a fora tão formosa como Helena da Tróia ou tão feia como madame do Staéil. A nobre mente do Duque está acima de vulgaridades como a luxúria, ao menos quando está ocupado ao serviço de sua majestade britânica. Ao fim e ao cabo seu beijo só tinha sido uma maneira de confirmar sua identidade. - Simplesmente tem um autodomínio sobre-humano. Ao ver-te com esse vestido me entram tentações de fechar a porta e te subjugar com beijos. Ela desviou a vista; não desejava averiguar o que havia embaixo desse tom brincadeira. - Antes de voltar para a Inglaterra vou comprar todo um guarda-roupa de vestidos que me tampem até o pescoço. É tedioso que os homens sem pre falem me olhando o peito em lugar da cara. Robin voltou para sua expressão séria, - Por que fez Candover algo tão extraordinário como levar o cadáver de seu pai a Inglaterra? Tem que ter sido muito difícil organizar isso. - Imagino que foi. Maggie resistia a contar sua história com o Duque, nem sequer ao Robin. Decidiu dizer uma parte da verdade. Era amigo de meu pai. Antes que Robin pudesse lhe fazer mais perguntas, apressou-se a continuar: E agora, por seus pecados, te convém saber o urgente trabalho que nos serviu Candover em uma bandeja de prata. Sucintamente lhe contou o que lhe disse Rafe sobre uma possível conspiração oculta nos círculos diplomatas parisienses. Por último tirou a missiva de Lorde Strathmore e a leram


juntos. - Se Strathmore estiver correto, isto é tremendamente grave - disse Robin muito sério. Houve outras conspirações, mas sempre foram com pessoas insignificantes, muito longe dos centros de poder. Esta parece distinta. - Sei, disse ela pensativa. Já poderia pôr vários nomes detrás desta conspiração. - Eu também, todos os homens aos quais será impossível acusar sem ter provas muito sólidas, mesmo que nós estivéssemos seguros. - Uma vez que tenhamos falado com nossos respectivos informantes, se reduzirá o número de possibilidades. - Também poderia aumentar. Só podemos nos pôr a trabalhar e esperar o melhor. Voltou a olhar a carta. Está desobedecendo ordens; segundo isto não deveria ter nada a ver com ninguém da delegação, além de Castiereagh e Wellington. E se fosse eu o elo frouxo de que fala Strathmore? - Não diga tolices, respondeu ela. Refere-se aos delegados normais, não a ti. Você trabalha com o Strathmore há mais tempo que eu. Robin ficou de pé movendo a cabeça com fingida aflição, - Vejo que todas minhas lições foram inúteis. Quantas vezes te disse que não confie em ninguém, nem sequer em mim? - E em quem posso confiar se não em você? Deu-lhe um suave beijo na bochecha. - Em você mesma, é obvio. Eu sairei primeiro. Vou ver-te amanhã de noite para falar de nossas descobertas? Ela assentiu e viu como adotava sua expressão de diplomata de categoria inferior. Toda delegação sofria a maldição de ter jovens que tinham mais conexões familiares que inteligência, e Robin fingia ser um desses: ineficaz e muito bonito para ter miolos. Na realidade tinha uma mente mais rápida que um aço sarraceno, mais afiada que uma lâmina de barbear. Era ele quem lhe tinha ensinado a reunir informações e a analisar as coisas que podiam ser valiosas, assim como a cobrir as costas e evitar suspeitas. Mas estava equivocado em uma coisa, pensou, enquanto se preparava para voltar a dança. Nesses momentos não estava do todo segura de poder confiar em si mesma. Sua vida já não estava totalmente ao seu comando e isso a desgostava. Quando Rafe retornou ao salão, o encontrou tão abarrotado como o tinha deixado; muitos trajes, muitos aromas e muitos idiomas competiam por chamar a atenção. Não viu nada que o motivasse a ficar, de modo que começou a abrir caminho para a saída. Havia tanta gente que de repente e sem aviso se encontrou cara a cara com o Oliver Northwood. Viu-se obrigado a ocultar sua chateação. O único que lhe faltava, maldita seja! Pelo visto o outro, não compartilhava seus sentimentos. - Candover! - exclamou jovialmente. Que maravilha te ver; não tinha idéia de que estivesse em Paris, mas, claro, a metade da alta sociedade está reunida aqui. Muitos anos encerrados em nossa ilha, não te parece? Celebrou a gargalhadas sua graça e estirou a mão, que Rafe estreitou sem nenhum


entusiasmo. Northwood era um homem rechonchudo e loiro, de estatura média, filho mais novo de Lorde Northwood, e quase uma caricatura do amável latifundiário. Durante seu primeiro ano em Londres, quando seus amigos ainda estavam em Oxford, Rafe se movia no mesmo círculo social que Northwood, e embora não fossem amigos se tratavam com cordialidade, até a desastrosa noite em que Northwood foi a causa do fim de seu compromisso com Margot. Rafe sabia que era insensato culpá-lo do ocorrido, mas após fazia o possível para evitá-lo. Por desgraça, nesse momento não podia fazer nada para ignorá-lo. - Boa noite, Northwood, o saudou com toda a paciência que conseguiu reunir. Leva muito tempo em Paris? - Estou na delegação britânica desde julho. Meu pai pensou que me convinha adquirir certa experiência diplomática. Moveu a cabeça com gesto de pena. Quer que assente cabeça e ocupe um banco no Parlamento, que me faça útil, sabe? Os círculos diplomatas parisienses eram pequenos, de modo que se encontrariam com freqüência. Rafe se resignou a ser cortês. - Está contigo sua esposa? Não estava preparado para o feio brilho que apareceu nos olhos do homem, que olhou para o outro extremo do salão. - Sim, Cynthia está aqui; uma mulher sociável como ela não se perderia esta oportunidade de... de ampliar seu círculo de conhecidos. Rafe seguiu a direção de seu olhar e viu Cynthia Northwood ao lado da pista de dança em animada conversa com um arrumado comandante da infantaria britânica, de cabelos negros. Inclusive a essa distância viu que estavam absortos o um no outr o como se estivessem sozinhos e não em meio de uma multidão. O melhor era não fazer nenhum comentário, de modo que voltou a olhar Oliver Northwood e decidiu começar a fazer averiguações. - Como vão as negociações? Northwood se encolheu de ombros. - É difícil saber. Castiereagh leva as coisas com muita reserva, sabe? E não é muito que deixa os ajudantes fazer, além de copiar documentos. Mas seguro que sabe que já está solucionado o primeiro problema, o que fazer com o Napoleão. Tinham pensado em exilá-lo em Escócia, mas decidiram que estava muito perto da Europa. - Santa Elena está o suficientemente longe para reduzir as possibilidades de travessuras. Mas a gente não pode deixar de pensar que teria sido muito mais simples se o Marechal Blücher tivesse podido capturá-lo e deixá-lo fora de jogo com um tiro, como desejava. - Certamente o teria sido, riu Northwood, mas uma vez que o Imperador se rendeu aos britânicos, somos obrigados a lhe preservar sua maldita pele. - É de admirar astúcia dele, concordou Rafe. Depois de declarar que Grã-Bretanha era a mais poderosa, tenaz e generosa de seus inimigos, o Príncipe Regente não tinha forma de jogá-lo aos lobos, embora a grande maioria do povoado britânico veria alegremente Boney no


inferno, - E então vai e se retira, a gastos dos britânicos, a uma ilha que, conforme se diz, tem um dos melhores climas do mundo. Em todo caso, se tivesse continuado em Elba agora não estaríamos em Paris. Pôs-se a rir olhando-o com gesto de cumplicidade. Certamente é certo o que se diz das damas parisienses, não, Candover? Rafe lhe dirigiu um de seus olhares mais glaciais. - Acabei de chegar, e não tenho opinião sobre esse tema. Imune ao desprezo, Northwood olhou para uma porta lateral, justamente no momento em que Maggie voltava para salão de dança, seus cabelos dourados esplendorosos sobre seu provocante vestido verde, toda ela a entonação perfeita de uma cortesã de linhagem. Northwood a olhou com a boca aberta. - Olhe a essa prostituta loira! Seguro que estava acima com um diabo afortunado. Acreditas que teria êxito se lhe pedisse uma repetição? Rafe demorou um momento em compreender que Northwood se referia a Maggie; jamais lhe teria ocorrido chamá-la de loira, palavra que lhe evoca a idéia de pálidas donzelas anêmicas. A radiante vitalidade nata e de Maggie era muito intensa para essa insípida descrição. Quando percebeu que se referia a ela, sentiu um potente desejo de lhe apagar com os punhos esse sorriso afetado. Conteve o fôlego até que se desvaneceu o impulso e logo lhe disse: - Duvido. Apresentaram-me faz umas horas e tive a impressão de que é exigente em seus gostos. O insulto implícito também ricocheteou na impenetrável pele de Northwood. - Conte-me algo dela. Franziu o cenho quando Maggie desapareceu em meio de um grupo de oficiais austríacos. Sabe? Sua cara me parece familiar, mas não consigo recordar... Fez um estalo com os dedos. Já sei! Recorda a uma garota inglesa que conheci faz uns anos; Margaret... não, Margot, algo assim. Ao Rafe lhe revolveu o estômago. - Refere-te à senhorita Margot Ashton? - Sim, a mesma. Você foi atrás, não é? Era tão boa como parecia? O sorriso malicioso não deixava lugar a dúvidas do tipo de relação que o homem supunha que ele tinha tido com a Margot. Rafe fez outra respiração profunda. Sempre teria sido tão vulgar Northwood, ou teria piorado com os anos? - Não saberia dizê-lo, disse em tom glacial. Quase não recordo da senhorita Ashton. Não morreu um ano depois de sua apresentação em sociedade? Fingiu que observava Maggie. Supondo que há certa semelhança entre as duas, mas esta dama que admira é húngara; chama-se Magda, a Condessa Janos. - Húngara, né? Nunca tive uma húngara. Poderia me apresentar a ela? Rafe pensou que se não partisse nos dez segundos seguintes causaria graves lesões corporais em Northwood... - Sinto muito, tenho um compromisso inadiável, mas seguro que poderá encontrar a algum conhecido que também a conheça. Se me perdoar...


Estava a ponto de escapar quando alguém se pendurou em seu braço direito. Resignado diante o inevitável, olhou para baixo e seus olhos se encontraram com os grandes olhos castanhos de Cynthia Northwood. - Rafe! - exclamou ela. Que alegria ver-te aqui! Vais estar em Paris por um tempo? Cynthia era uma atraente jovem de cabelos morenos frisados e uma enganosa expressão de inocência. Tinha-o fortemente pego do braço, lhe impossibilitando escapar; além disso, tinham sido amantes durante um tempo e a aventura tinha acabado de modo amigável, por isso uma rejeição seria descortês. - Sim, estou no hotel e me proponho a passar todo o outono aqui, e talvez mais tempo. Brandamente desprendeu o braço. Tenha consideração com meu ajudante de quarto, por favor. Cuida tanto de minhas jaquetas que na realidade me surpreende que me deixe usá -las. - Perdoe-me, se desculpou ela. Isto me vem de estar em Paris; aqui a gente é muito menos reservada; creio que isto é contagioso. - Essa é a sua desculpa? - perguntou-lhe seu marido em tom malévolo. Rafe captou a tensão entre marido e mulher, q ue se fez ainda mais evidente na fúria com que se olharam. Tinha que escapar antes que armassem uma cena do tipo que mais detestava. Com um rápido gesto de despedida se apressou em perder-se entre a multidão e desta vez sim se arrumou para não encontrar-se com o olhar de ninguém. Uma vez fora, ao quente ar da noite. Rafe exalou um suspiro de alívio. Como ainda era cedo, decidiu voltar a pé para hotel e o comunicou a seu chofer. Seria interessante ver as remodelações que tinha feito Napoleão em Paris. E, mais importante ainda, necessitava de tempo para ordenar seus alvoroçados pensamentos. Em primeiro lugar estava Margot (ainda lhe custava pensar nela com o outro nome, Maggie), cuja presença o perturbava, recordava-lhe coisas que era melhor esquecer. E se por acaso isso fosse pouco, os Northwood. Essa noite poderia ter sido programada pelo mesmo demônio em ânimo de farsa. Mas não havia nenhuma diversão em uma farsa que o fazia sentir como se o tivessem golpeado no estômago. Enquanto caminhava para as Tullerías, cego a sua volta, foram desfilando por sua mente as lembranças, com tanta clareza como se tudo tivesse ocorrido no dia anterior e não há treze anos. Tinha amado a Margot Ashton com uma adoração em que não cabia o sentido crítico, maravilhado de que uma jovem que podia ter escolhido entre os homens mais cobiçados de Londres tivesse escolhido a ele. Em público se comportavam com discrição, já que o compromisso ainda não havia sido anunciado oficialmente, mas passava com ela todos os momentos possíveis. E ela parecia tão feliz em sua companhia como ele na dela. Então chegou a fatal festa para homens sozinhos. Recordava os nomes de todos os jovens presentes naquela noite. Reviveu com atroz atitude o momento em que Oliver Northwood, já bêbado, contou que fazia uns dias tinha liberado a uma garota de sua virgindade não desejada, no jardim, durante uma dança. Tinha prestado muito pouca atenção ao relato, até o final, quando Northwood deixou escapar o nome da garota: Margot Ashton. A maioria dos jovens assistentes eram admiradores de Margot e, depois de um


assombrado silêncio, um deles fez calar ao Northwood, lhe dizendo que era impróprio de um cavalheiro que ele falasse assim de uma dama. Mas o dano já havia sido feito. Nenhum dos presentes sabia do compromisso, de modo que ninguém estranhou quando os poucos minutos depois ele se desculpou e partiu. Atribuíram o tom esverdeado de sua pele à quantidade de bebida que tinha ingerido, e o esqueceram tão logo saiu da sala. Assim que tinha chegado à rua caiu de joelhos e começou a vomitar. Com a sensação de que estava jogando até as vísceras, imaginou o corpo de Margot debaixo desse bêbado, seus carnudos lábios beijando-o, suas longas pernas rodeando-o... A visão lhe queimava o cérebro com repugnante clareza. Passado um tempo, não sabia quanto, alguém lhe perguntou: «Não te encontra bem, moço? Buscarei-te um carro de aluguel». O bom samaritano o ajudou a ficar de pé, mas ele não aceitou mais ajuda e pôs-se a caminhar pela rua às cegas, como se acreditasse que caminhando ia deixar atrás a sua imaginação. O resto da noite passou vagando sem rumo pelas ruas de Londres; mais de uma vez algum dos ladrões que espreitavam nas sombras observou a elegância de seu traje, contrastou-a com a expressão de seu rosto, e decidiram deixá-lo continuar sua viagem em paz. O jovem podia valer bonitas quantias, mas seus apagados olhos cinzas ameaçavam desastre para qualquer ladrão que fosse suficientemente estúpido para tentar agarrá-lo. Indevidamente, acabou a viagem na casa de Margot, ao despontar da manhã seguinte, justamente antes de que ela saísse a cavalgar. Não tinham planejado encontrar-se, mas outras vezes ele se apresentou sem anunciar-se, para acompanhá-la. Ela se mostrou encantada de vê-lo, apesar do desalinho do traje de noite. Um véu cor esmeralda flutuava sobre seus cabelos dourados quando atravessou o salão dançando para saudá-lo com um beijo, seus olhos verdes a essa hora da manhã, sua cara risonha e transbordante de vida. Ele a rejeitou violentamente, incapaz de suportar seu contato, e lhe falou o que acabava de saber, enchendo de insultos a dourada cabeça. Conhecia sua natureza apaixonada, e só o desejo idealista de levar a uma virgem à cama de matrimônio lhe tinha impedido de tomar o que com tanta despreocupação ela tinha dado a outro. Quantos outros homens tinha havido? Era muito desejada. Era ele o único estúpido que não tinha provado seu exuberante corpo? Tinha aceito sua oferta entre tantas outras só porque era herdeiro de um ducado? Durante essas cavalgada s matutinas, poderia tê-la montado como a o seu cavalo se tivesse tido a temeridade de pedir-lhe. Margot não fez a menor tentativa de negá-lo. Se lhe tivesse devotado a mais fraca das defesas, ele se teria agarrado a ela com covarde gratidão. Se tivesse c horado, se lhe tivesse rogado que a perdoasse, o teria feito, até sabendo que jamais poderia voltar a confiar nela. Teria se desprendido do orgulho de toda sua vida se lhe tivesse dado o mínimo motivo para fazê-lo. Ela se limitou a escutá-lo, empalidecendo até seu rosto ficar alvo; nem sequer lhe perguntou o nome do homem que tinha revelado sua lascívia; talvez fossem tantos os homens que isso não importava. Ao final, só lhe disse, com voz serena, que era uma sorte que


tivessem descoberto suas verdadeiras naturezas antes que fosse muito tarde. Essa reação foi para ele um toque de defuntos, porque até aquele momento não tinha podido abandonar a angustiada esperança de que a história não fosse certa. Nesse instante algo murchou e morreu dentro dele. Embora não estivessem comprometidos oficialmente, lhe tinha dado um anel das jóias Whitbourne. Quando terminou de falar, ela o tirou do peito, rompendo a correntinha de ouro em sua impaciência e o jogou aos seus pés, com tanta força que se quebrou a enorme opala. Depois, alegando que não queria que seu cavalo estivesse tanto tempo exposto ao ar frio, saiu com a cabeça muito erguida, o rosto imperturbável, sem nenhuma emoção visível. Nunca mais voltou a vê-la. Poucos dias depois, aproveitando a Paz de Amiens, recém negociada, ela e seu pai partiram ao Continente. Com o passar dos meses, sua fúria e sua dor pela traição foram pouco a pouco superadas pela nostalgia. Doído e esperançoso mais uma vez, começou a esperar sua volta a Inglaterra. Depois de quase um ano de sofrimento, foi a França, decidido a encontrá-la. Se sua busca tivesse tido êxito, lhe teria suplicado que se casasse com ele. Quando estava em Paris lhe chegou a notícia de que era muito tarde e sem remédio. A única retificação que podia fazer então era levar os cadáveres dela e do seu pai de volta a Inglaterra. Com o passar do tempo chegou a convencer-se de que tinha sido uma sorte que morresse antes que ele pudesse rebaixar-se por ela. Não lhe fazia nenhuma graça a idéia de casar-se com uma mulher da qual era tão necessitado. Após, foram e vieram as temporadas anuais de danças e as beldades, e passou ao esquecimento a gloriosa Margot Ashton, que fora tão celebrada durante esse breve período. Ele aprendeu a encontrar o prazer nas mulheres casadas experimentada s e dispostas de seu círculo social, a beijar alegremente e a pôr fim às aventuras com elegância. Não estavam feitos para ele os ignominiosos problemas de tirar aves do paraíso do ninho do amor se logo não estivessem dispostas a partir; não via nenhum motivo para pagar a uma amante havendo tantas voluntárias ao preço de uns quantos cumprimentos e uma quinquilharias ocasionais. Pôr os chifres em Oliver Northwood produziu um prazer especial. Cynthia Browne, filha de um próspero latifundiário rural, era nesse tempo uma jovenzinha bonita e feliz, considerada excelente partido para o filho mais novo de um Lorde; os cabelos loiros e seu caráter amável a faziam atraente ao Oliver, de modo que Cynthia não percebeu o tipo de homem com quem se casava. Amargurada ao inteirar-se de que seu marido era um bêbado, um jogador e um mulherengo, decidiu fazer o mesmo jogo e começou a ter amantes; não sendo de natureza promíscua, com um marido amoroso teria sido uma excelente esposa e mãe, mas sua trágica situação a induziu a entregar-se a qualquer homem que a desejasse. Certamente ele se sentiu muito disposto a agradá-la; não só a encontrava atraente, mas também a aventura com ela também satisfazia seu ignóbil desejo de vingança. Embora Northwood nunca soubesse como lhe tinha destroçado a vida com sua indiscrição, encontrava satisfação em desforrar-se se deitando com sua mulher. A aventura não durou muito, porque o desespero de Cynthia o punha nervoso; fazendo


uso da perícia adquirida, pôs fim ao romance com encanto e elegância. Nos anos seguintes a via às vezes nas reuniões sociais, e lhe agradou muito vê-la recuperar seu equilíbrio e o respeito por si mesma. Ultimamente tinha ouvido rumores que a relacionavam com um soldado, talvez o comandante com o que a viu conversando no dança. Estaria realmente apaixonada por ele ou o estaria utilizando como outra arma mais na guerra com seu marido? Ao que parecia sua tática dava resultados. Pelo visto Oliver Northwood era o tipo de homem que vai atrás de algo com saias, mas lhe enfurecia que sua mulher reivindicasse para si, a mesma liberdade para divertir-se. O mais provável era que um dos dois acabasse assassinando ao outro. Enquanto subia os degraus do hotel. Rafe jurou não deixar-se apanhar no fogo cruzado entre eles. Paris prometia ser suficientemente desagradável sem isso.

Capítulo 4

Até antes de abrir os olhos, Maggie recordou seu encontro com o Rafe Whitbourne e estremeceu. Que homem mais insofrível. Normalmente admirava o tranqüilo autodomínio dos ingleses, mas essa mesma qualidade a enfurecia em Rafe. Era óbvio que com os anos tinha desaparecido todo rastro da efusividade e espontaneidade da sua juventude. Ficou muito quieta na cama, escutando os sons do amanhecer: o estalo continuado de uma carreta, ocasionais passos, o cacarejo de um galo na distância. Geralmente se levantava essa hora, tomava uma taça de café e um pãozinho quente e saía a cavalgar pelo Longchamps. Essa manhã simplesmente emitiu um gemido e se cobriu com as mantas até a cabeça, afundando-se mais no colchão de penugem, enquanto planejava um ocupado dia de espionagem. Meia hora depois, chamou a sua criada Inge para que lhe levasse o café da manhã. Enquanto bebia seu café francês muito carregado, anotou os nomes dos informantes que desejava ver primeiro. Embora a crença Generalizada de que uma espiã reúne informação deitada de costas em uma cama, Maggie desprezava esse método, por considerá -lo muito limitado, exaustivo e indiscriminado. Sua técnica era diferente e, pelo que sabia, único: tinha formado a primeira rede de espionagem feminina do mundo. Os homens que guardavam segredos eram cautelosos diante de outros homens, mas estavam acostumados a ser surpreendentemente descuidados diante das mulheres. Criadas, lavadeiras, prostitutas e outras mulheres de condição humilde, geralmente estavam em posição de inteirar-se do que acontecia, e ela tinha um dom especial para convencê-las a


confiarem nela. A Europa estava cheia de mulheres que tinham perdido os pais, maridos, filhos e noivos na guerra de Napoleão. Para muitas era uma satisfação transmitir informações que poderiam contribuir à paz. Algumas desejavam vingança, como ela; outras eram pobres e estavam em desesperada necessidade de dinheiro. Todas juntas formavam o que Robin chamava a Tropa de Maggie. De pedaços de papel jogados em um cesto de papéis era possível refazer documentos muito importantes; às vezes eram documentos importantes na roupa enviada à lavanderia; os homens se gabavam de suas proezas diante suas conquistas amorosas. Maggie cultivava a amizade das mulheres que tinham acesso a essas informações, escutava suas penas e alegrias, às vezes lhes dava dinheiro para alimentar seus filhos embora não tivessem nenhuma informação para vender. Em troca elas lhe ofereciam uma lealdade mais valiosa que algo que pudesse comprar com dinheiro. Jamais nenhuma a tinha traído, e muitas se converteram em amigas. Depois da morte de seu pai, havia passado a maior parte do tempo em Paris, disfarçada de humilde viúva, com roupa cinza e um plebeu gorro sobre seus lustrosos cabelos. Quando se convocou o Congresso de Viena, retomou sua aparência natural, no papel da Condessa Janos, e foi a Viena, onde se introduziu no ambiente social dos diplomatas. Quando Napoleão fugiu de Elba e recuperou sua coroa, imediatamente retor nou a sua posição em Paris, para enviar informações a Londres. Depois da batalha de Waterloo, a maioria dos diplomatas e parasitas do Congresso voltaram a reunir-se em Paris, de modo que ressuscitou à Condessa Janos e alugou uma casa digna de sua fama. Mas já estava muito cansada de não ser ela mesma e representar outra pessoa. Ao longo dos anos, Robert Anderson tinha desempenhado muitos papéis em sua vida. Ajudou-a a estabelecer-se em seu trabalho encoberto; servia-lhe de intermediário na recepção do dinheiro que lhe permitia viver comodamente e pagar suas informantes. Também lhe tinha organizado as linhas de comunicação, coisa nada fácil quando o bloqueio continental decretado por Napoleão tinha fechados à Grã-Bretanha quase todos os portos europeus. Em diferentes períodos, suas informações tinham chegado a Londres através da Espanha, da Suécia, da Dinamarca e inclusive de Constantinopla. Forçosamente Robin viajava muitíssimo. Ela supunha que às vezes ele mesmo levava as mensagens mais importantes à Inglaterra, cruzando o Canal em segredo, com contrabandistas. Passava ao redor de um terço do seu tempo com ela, e às vezes passavam meses entre as visitas. Seu trabalho era muito mais perigoso que o dela, e sempre era um alívio vê-lo reaparecer, satisfeito e a salvo. Durante a maior parte desses anos tinham sido amantes, embora desde o começo, na época que mais precisava do seu carinho, ela sabia que o que sentia por ele eram amizade e gratidão, não amor romântico. Assim, continuou esse tipo de relação com ele, desfrutando do calor e da satisfação física que encontravam juntos. Ele era seu melhor amigo, o homem em quem mais confiava no mundo, o irmão que nunca teve. Então chegou um dia, há três anos, em que despertou com a absoluta convicção de que a


amizade não era suficiente e que tinha chegado o momento de pôr fim a essa intimidade. Devia-lhe tanto, queria-o tanto, que lhe resultou atrozmente difícil lhe dizer que já não desejava compartilhar sua cama. Mas ele sempre tinha sido muito considerado e fez tudo mais fácil. Quando ela disse, com voz hesitante, ele ficou imóvel um momento. Depois lhe disse, muito tranqüilo, que certamente não desejava que ela fizesse nada que lhe resultasse incômodo. Continuaram sendo amigos, continuaram trabalhando juntos, e ele seguia vivendo com ela quando estava em Paris; a única diferença era que ele dormia em outro quarto. O fato de que ele tivesse aceitado a mudança em sua relação com tão boa vontade lhe confirmou que ele também a considerava mais uma amiga que o par da sua vida. Embora pouco depois de lhe salvar a vida lhe ofereceu matrimônio, ela percebeu que sua rejeição lhe produziu alívio. De todos os modos, embora nunca tivesse duvidado de ter feito o correto, sentia a cama fria e solitária. Seguro que a isso se devia que encontrasse ao Rafe tão Condenadamente atraente.... apressou-se a trocar a direção de seus pensamentos. Robin acabava de sair dos pântanos mais turvos da espionagem para começar a trabalhar no escritório na Embaixada britânica. Ela supunha que Lorde Castiereagh conhecia sua identidade, mas provavelmente para o resto da delegação Robin só era um jovem de trato agradável sem nenhuma capacidade especial. Alegrava-a que estivesse perto, e não só para desfrutar de sua companhia; dada a possível ameaça para as negociações de paz, necessitava de seu extraordinário talento. Uma vez decidido seu plano de ação, Maggie pôs seu modesto vestido de viúva e saiu para ver suas informantes mais úteis. Se suas mulheres soubessem o que procurar, com seus dados poderia preencher seus conhecimentos incompletos. E se tivesse sorte, logo retornaria a sua amiga Héléne Sorel e poderia ajudá-la na tarefa. Diante um cozido quente, uma longa barra de pão e uma jarra de vinho, Maggie e Robin comentaram e contrastaram a informação que tinham reunido nas últimas vinte e quatro horas. Maggie repartiu entre as duas taças o vinho que restava. - Estamos de acordo então? - perguntou. - Sim, o mais provável é que um destes três homens seja o cérebro da operação, embora teremos que observar a uns quantos mais. E mesmo assim, passou cansativamente a mão pelo cabelo, poderíamos não ter o nosso homem. - Bom, é o melhor que podemos fazer. Supondo que poderíamos advertir aos guardas que acompanham às pessoas mais importantes, mas houve tantas outras conspirações que todo mundo já toma cuidado. - É certo. Robin lhe observou a cara; viu olheiras embaixo desses olhos cinza esverdeados de cor mutável, como se tivesse dormido mal. Tenho uma idéia da qual não vai gostar. Ela sorriu com uma careta característica. - Ao longo dos anos, não gostei de quase nenhuma de suas idéias, assim não se iniba por


isso. Ele não respondeu a brincadeira. - Creio que você e Candover deveriam simular que são amantes. - O que?! - Maggie pôs a taça na mesa com tanta força que derramou o vinho. Porque diabos vou fazer uma loucura como essa? - Escute, Maggie. Nossos suspeitos são todos oficiais importantes que repartem seu tempo entre discutir o tratado e assistir às reuniões sociais e dançar com o resto dos diplomatas. A melhor maneira de aproximar-se deles é ir aos mesmos lugares. - Não pode fazer isso você? - Não sou o suficientemente importante. Um secretário ajudante estaria desconjurado nas reuniões sociais mais exclusivas. - E por que não posso ir eu sozinha? - Maggie, disse ele pacientemente, não faça assim. Já foi bastante ruim que fosse sozinha a esse dança na Embaixada austríaca; se voltar a fazê-lo vão supor que anda em busca de um amante. Vais passar a maior parte do tempo rechaçando a homens que se interessam por ti por motivos não políticos. - Tenho muitíssima experiência nisso! - Candover é o acompanhante perfeito - continuou ele, passando por cima dessa exclamação. É bastante importante para que o convidem a t oda parte, e não tem nenhum posto governamental. Além disso, é amigo de Strathmore e veio aqui nos ajudar a investigar esta conspiração. Juntos podem ir a toda parte e falar com qualquer pessoa sem despertar suspeitas. Maggie decidiu resistir todo o possível. - Acredita seriamente que é necessário que eu faça isso. Robin? - Sua intuição é a melhor arma que temos. Olhou-a nos olhos tentando convencê-la. Uma e outra vez intuiu que algo estava mal com uma pessoa da qual não tínhamos nenhum motivo para suspeitar, e comprovamos que tinha razão. Na ausência de provas sólidas, vamos necessitar de todas as vantagens que temos, o que significa que deve conhecer o suficientemente bem os nossos suspeitos para ter uma opinião e talvez captar algumas pistas. Mas não poderá fazer isso se não se aproximar deles. - Tem razão, concordou ela a contragosto. Se os conhecesse bem não estariam em nossa lista porque eu já teria uma excelente idéia de sua inocência ou culpa. Mas não sei se sou capaz de olhar ao Candover com olhos de apaixonada; me agrada mais lhe atirar uma taça de vinho em sua arrogante cara. Robin relaxou; tinha ganho o ponto. - Creio que com seus magníficos dotes de atriz é muito capaz de se pendurar no braço do Duque. De fato, creio que a maioria das mulheres lhe invejará. Sem fazer caso do bocejo que ela emitiu, acrescentou: Além disso, esta investigação poderia ser muito perigosa, muito mais que seu tipo habitual de trabalho. Trata -se de homens desesperados, e o tempo está acabando. Todos os monarcas aliados estão desejando concluir o tratado e voltar para seus reinos. A conferência deveria estar concluída no fim de setembro no mais tardar, de modo


que se for ocorrer algo terá que ser dentro das duas ou três próximas semanas. - E? - Se alguém suspeitar de você, sua vida estaria em grave perigo, disse ele francamente. Pode ser que Candover não seja um agente profissional, mas tem aspecto de ser útil em uma briga. Como eu não posso estar perto de você o todo o tempo, me sentirei melhor se estiver ele. - Desde quando decidiu que sou incapaz de me cuidar sozinha? - espetou ela. - Maggie, lhe disse ele docemente, ninguém é invulnerável por muito inteligente que seja. Ela empalideceu ao ouvir isso. Robin não gostava de lhe recordar as circunstâncias de seu primeiro encontro, mas queria assegurar-se de que ela teria prudência; sabia por experiência que ela era valente até o extremo da temeridade. Passado um momento sorriu resignada. - Muito bem. Robin. Caso consiga a colaboração de Candover, ele e eu seremos objeto de fofoque. Nos verão juntos em toda parte, e vou parecer tão cativada por ele que ninguém vai suspeitar que temos um só pensamento útil na cabeça. - Estupendo. Ficou de pé. Agora devo partir; tenho que me encontrar com uma pessoa que jamais se deixa ver na luz do dia. Ela também se levantou. - Posto que temos pouco tempo, farei uma visita ao Candover para lhe explicar seu horroroso destino. Mas se puser objeções, deixarei a ti o trabalho de convencê-lo. Ele negou com a cabeça. - Creio que é melhor que não saiba nada de nossa conexão. Já sabe, a primeira regra da espionagem «Jamais diga a ninguém nada que não precise saber», citou ela. Supondo que tem razão. Candover é um aficionado nestes lances e quanto menos souber, melhor. - Esperemos que resulte ser um aficionado com talento. Depois de um ligeiro beijo de despedida, partiu. Maggie fechou a porta aflita. Ele estava preocupado por sua segurança quando o que ele fazia era o dobro de perigoso. Encolheu os ombros e subiu a escada até seu quarto. Se tivesse sido de disposição nervosa não teria durado muito como espião. Seria melhor dedicar seu tempo a pensar como ia suportar tanto tempo em companhia de Rafe Whitbourne Em uma Paris louca pelo teatro, os teatros eram o barômetro da opinião pública, de modo que Rafe decidiu assistir a uma obra essa noite. Foi uma experiência inquietante. Todos os administradores de teatros tinham ordenado admitir grátis a um certo número de soldados dos exércitos de ocupação. Infelizmente, o que pretendia ser um gesto de boa vontade, essa noite teve por conseqüência uma briga na platéia entre soldados franceses e aliados. Embora ninguém resultou ferido de gravidade, o espetáculo se interrompeu durante quase meia hora. Outro inglês amante do teatro c omentou que esses alvoroços não eram incomuns. Rafe voltou para hotel com ânimo sombrio. Os temores de Lucien e Maggie não tinham conseguido convencê-lo o de que as maltratadas nações da Europa pudessem ir à guerra


novamente, mas esse incidente no teatro o convenceu. Teve a impressão de que estavam se reunindo nuvens de tormenta e que havia um verdadeiro perigo de outro cataclisma. Absorvido em seus pensamentos, entrou em seu dormitório. Estava a ponto de puxar o cordão para chamar o seu ajudante de quarto quando de um canto nas sombras surgiu uma voz. - Queria falar com sua excelência antes que se retire. A voz era inconfundível, mel com um sotaque de cascalho, e identificou o seu visitante antes que seus olhos se adaptassem a tênue luz das velas. Maggie estava sentada com toda naturalidade em uma poltrona, vestida totalmente de homem, seus lustrosos cabelos ocultos sob um gorro de lã; sobre a cama havia uma capa negra. Rafe sentiu curiosidade por saber como demônios teria entrado, mas decidiu não lhe dar a satisfação de perguntar - Está praticando para ser uma heroína de Shakespeare, Viola talvez? Ela soltou uma gargalhada. - A verdade é que me imagino como Rosalinda. Ele tirou a jaqueta e a deixou sobre o sofá. - Supondo que está aqui por um motivo distinto ao que um homem está acostumado a supor ao encontrar uma mulher em seu dormitório. Imediatamente compreendeu que o comentário foi um engano. Ela o olhou com olhos como adagas. - Supõe corretamente. Há várias coisas que temos que falar e me pareceu que esta era a maneira mais rápida e secreta. - Muito bem. Gostaria de um conhaque? Ao vê-la assentir, serviu duas taças, passou-lhe uma e se sentou na outra poltrona, em ângulo com a que ela ocupava. O que descobriu? Ela fez girar distraidamente a taça agitando o conhaque. - Minhas fontes apontam três suspeitos principais e vários outros de menor importância. Todos são homens proeminentes, do tipo que normalmente se consideram acima de toda suspeita. Cada um tem a capacidade e o motivo para planejar este tipo de c onspiração. - Admira-me sua eficiência. Bebeu um gole de conhaque. Quem são esses suspeitos? - Sem ordem de importância, são um prussiano, o Coronel Karl Von Fehrenbach, e dois franceses, o Conde de Varenne e o General Michel Roussaye. - Quais seriam seus motivos? - O Conde de Varenne é monárquico radical, amigo íntimo do irmão do Rei Luis, o Conde d'Artois. Como deve saber, d'Artois é um reacionário fanático. Ele e seus amigos emigrados desejam varrer todo rastro do espírito revolucionário na França e voltá-la para o antigo regime. Fez um gesto de exasperação. Claro que isso é impossível, mais êxito haveria em tentar fazer retroceder a maré, mas eles não aceitam isso. Varenne dedicou os últimos vinte anos a percorrer a Europa em segredo, em suspeitos assunt os monárquicos. Rafe fez um esforço para concentrar-se em suas palavras; a luz das velas dava um aspecto espetacular a suas maçãs do rosto e umas mechas de cabelos dourados lhe tinham escapado da boina, suavizando a austeridade de seu traje.


- Compreendo. Se esta conspiração for dos monárquicos, quem acredita que seria o alvo? - Isto poderia parecer rebuscado, disse ela hesitante, mas é possível que Varenne queira matar ao próprio Rei para que o Conde d'Artois possa ocupar o trono. Rafe lançou um suave assobio. Essa era uma idéia feia, mas dada a atual instabilidade da França, supôs que algo era possível. - E os do outro francês? - Roussaye é bonapartista. Filho de um padeiro, seus serviços lhe valeram chegar a ser um dos principais Generais da França. É um homem forte e valente, consagrado a Napoleão e à revolução. Atualmente toma parte do pessoal do Talleyrand, encarregado dos assuntos relativos ao exército francês. - Quem seria seu alvo mais provável? Ela encolheu de ombros. - Do ponto de vista dele, quase qualquer oficial aliado importante iria bem, porque isso teria por conseqüência um tratado muito mais severo. Se ocorrer algo aos principais portavozes da moderação, os radicais vão receber toda a humilhação que desejam. - E Europa poderia estar em guerra novamente dentro de um ou dois anos. Rafe franziu o cenho. Wellington seria o melhor alvo. Não só conta com veneração universal, mas também todo mundo sabe que não vai tomar precauções porque seria uma covardia valorizar muito sua vida. - Inclusive uma vida tão atraente poderia acabar finalmente, disse Maggie com sarcasmo. Se ocorrer algo a ele, Grã-Bretanha vai uivar para vingar-se dos franceses, igual aos prussianos. - Falando de prussianos, qual seria o motivo do Coronel Von Fehrenbach? Maggie terminou de beber seu conhaque e se levantou para encher as taças. Rafe admirou seus bem formados quadris e pernas, marcados por suas calças rodeadas. Nos velhos tempos não sabia o quanto perdia, porque ela sempre se vestia como uma dama. Sem dar-se conta do exame, Maggie voltou a sentar-se. - Von Fehrenbach é um prussiano típico, o que significa que odeia aos franceses de um modo puro e sem complicações. Era o ajudante de campo do Marechal Blücher, atualmente é delegado militar na delegação prusiana. - Todos os prussianos odeiam os franceses? - Aos britânicos resulta mais fácil que aos outros aliados comportar-se com comedimento, disse ela sem responder diretamente a pergunta. Se considerarmos os horrorosos sofrimentos que experimentaram as nações da Europa, não é estranhar que os prussianos, os russos e os austríacos estejam resolvidos a fazer a França pagar. A França semeou o vento e agora colhe o furacão. Conhecendo os motivos dela para odiá-los, lhe perguntou: - Como acredita que deveria ser tratada a França? Maggie levantou a cabeça e o olhou, com olhos cinza serenos. - Se Napoleão estivesse diante um pelotão de fuzilamento, eu mesma apertaria o gatilho. Mas alguém tem que deter o ódio, ou isto não acabará jamais. Castiereagh e Wellington têm


razão: destruir o orgulho e o poder da França vai criar outro monstro que se levantará para voltar a lutar. Se ocorresse algo a eles... - fez um eloqüente encolhimento de ombros. Rafe captou seu significado. - Eles e o Czar Alejandro são os únicos que se interpõem entre a França e uma Europa com desejos de vingança. Acredita que Fehrenbach poderia querer assassinar um destes três? - Creio que lhe interessaria mais matar o Talleyrand e ao Fouché. São franceses que serviram à revolução e aos monárquicos e agora dirigem as negociações francesas contra os quatro aliados. Um prussiano honrado deve desprezá -los por trocar de lado. - Agora que me deu uma lição sobre a política da conferência, o que podemos fazer a respeito? Maggie sentiu um nó no estômago; o que lhe pareceu lógico quando falou com o Robin agora lhe parecia uma horrorosa idiotice. - Estão fazendo investigações nos bastidores, mas também é necessário observar mais atentamente os nossos suspeitos. Tenho um dom para descobrir os vilões, de modo que é possível que adivinhe qual é nosso homem se conseguir falar com cada um deles. Dissimuladamente secou a palma molhada na coxa. Por desagradável que seja a idéia, é necessário que você e eu simulemos que estamos ligados em uma aventura amorosa. Desse modo poderemos lidar com os diplomatas nas reuniões sociais nas quais se tratam grande parte das negociações não oficiais. O convidarão para todas e poderá me levar como a sua amante. Ele arqueou as sobrancelhas com uma expressão de ímpia diversão. - Isso eu acho lógico, mas se acredita capaz de suportar minha companhia por tanto tempo? - Sou capaz de suportar tudo o que for necessário, por muito desagradável que seja. Não melhorou seu humor quando ele soltou uma gargalhada. - Sensível golpe! Mas ilustra meu argumento. Acreditas que seja capaz de vencer a tentação de enterrar suas garras em minha indigna carne? Ela se levantou e respondeu brandamente: - Em público minha conduta será a de uma mulher estúpida e apaixonada. - E só em público se mostrará interessada por mim? - levantou-se também, com o brilho de um sorriso em seus olhos cinza. Como será em particular? Maggie se amaldiçoou por ter deixado aberta essa oportunidade. Sua intenção era levar a entrevista como se os dois fossem espiões profissionais, mas isso não era possível com o Rafe; em outros tempos se conheceram dolorosamente bem e esse conhecimento vibrava entre eles. Desejou fugir, porque sabia que ele era perigoso para ela; não fisicamente, embora só estivesse a um metro de distância e a superasse em muito em estatura; jamais em sua vida tinha tido que usar sua força o condenado. Bastava com que lhe dirigisse esse sorriso preguiçoso, como o que tinha na cara nesse momento... Resistiu ao desejo de retroceder. - Não haverá nada «em particular» - disse em tom enérgico. Isto é estritamente um assunto de trabalho.


- Se acredita que só é assunto de trabalho, é uma idiota, e me custa acreditar nisso, respondeu ele. Você goste ou não, terá que enfrentar a realidade do que há entre nós. Adiantou-se e a agarrou brandamente entre seus braços. Embora se desse conta de que ia beijá-la, não pôde mover-se. Turbulentas sensações a percorreram toda inteira quando seus lábios se encontraram, um desejo instintivo de fugir e um instinto mais profundo de derreterse em seus braços. Em algum rincão de sua mente uma vozinha fria e racional lhe disse que Rafe tinha razão; se queriam parecer amantes convincentes tinham que sentir-se a gosto juntos. Isso não seria possível se ela saltasse como um coelho assustado cada vez que ele a tocava. Esse foi o único pretexto que necessitou para lhe corresponder o beijo. Rodeou-lhe o pescoço com os braços e se apertou mais a ele. Apesar dos anos transcorridos, o calor e a força de seu corpo lhe resultaram atormentadoramente familiar, como também a textura de sua língua e seu tênue aroma masculino individual. Mas nesse tempo ela era uma inocente e ele um jovem pretendente tenro e protetor. Agora os dois eram adultos, experimentados na paixão, e o desejo rangeu como um raio ardente. Ele emitiu um som suave, como um gemido, e lhe agarrou as nádegas e a apertou contra ele. Desejava-a tanto como ela a ele, talvez mais. Esse conhecimento lhe deu uma sensação de poder; ele tinha iniciado isso e lhe correspondia terminá -lo. Mas não nesse momento, quando seu contato lhe estava desvanecendo o frio e a solidão. Involuntariamente afogou um gemido quando lhe acariciou o peito. Endureceu o mamilo e uma ardente quebra de onda lhe percorreu as pernas. Ele começou a lhe desabotoar a camisa. O desejo que sentiu de que lhe acariciasse os peitos lhe disse que não lhe permitisse continuar porque se continuasse lhe suplicaria que a levasse a cama. Dedicou um momento a reunir forças e logo se afastou, pondo ao menos um metro entre eles antes que ele tivesse tempo de reagir. Ele tentou aproximar-se, com o rosto ardendo de desejo, mas ela o deteve elevando a mão em um claro gesto de rejeição. - É comum sentir-se atraído por uma pessoa da qual se não gosta em especial, lhe disse com sua voz mais indiferente, mas isso pode servir para nossa comédia. Se me olhar assim em público, ninguém perceber que nosso romance é uma simulação. Rafe engoliu em seco. No instante anterior a que usasse sua máscara, ela viu raiva, e talvez uma relutante admiração em seus olhos. Nenhuma dessas emoções se manifestou em sua voz quando ele lhe disse com a mesma frieza: - Se reagir assim na próxima vez que te beijar, a aventura vai parecer totalmente autêntica. - Não vou negar que te acho atraente, mas a paixão não me domina, de modo que será melhor que vá acostumando à frustração. Sorriu perversa. Se acreditar que estar comigo vai exigir muito esforço do seu autodomínio, recomendo que chame a uma das garçonetes do hotel. Não tenho dúvida de que alguma delas vai estar feliz de aliviar sua frustração. - Posso encontrar algo melhor que uma garçonete, disse ele sarcástico. E não se preocupe por meu autodomínio. Ainda não encontrei uma mulher que possa me converter em um


selvagem dominado pela luxúria. Maggie decidiu que tinha chegado o momento de acabar a entrevista. Tirou um papel de um bolso interior e o passou. - Aqui estão os nomes e descrições de outros sete possíveis suspeitos. Leia a lista e a destrua antes de sair amanhã pela manhã. Não te falei deles porque não quero te confundir com muita informação, mas se chegar a se encontrar com um deles deverá observá-los atentamente. Rafe olhou o papel. Sorbon, Dietrich, Lemercier, Dreyfus, Taine, Sibour e Montean. Deixou-a a um lado para lê-la mais atentamente depois. - Amanhã de noite haverá uma recepção na Embaixada britânica em honra da delegação prusiana. Von Fehrenbach estará ali, de modo que devemos ir. Vivo na Alameda dê Capucines, dezessete. Pode passar e me recolher as oito em ponto? - Ali estarei. Trata de ser pontual. Sem poder resistir ao desejo de lhe fazer a pergunta que o importunava, acrescentou: Por certo, o que pensa seu marido de suas atividades? - Meu o quê? - O Conde Janos. A tensão se aliviou quando brilharam os olhos de risada. - Ah, meu queridíssimo Andrei! Levou as mãos ao coração e fez um nostálgico pestanejar. Era incomparável. Absolutamente formoso em seu uniforme de oficial, e que par de ombros! . - Continua entre os vivos esse incomparável Conde? - Ai de mim, perdeu sua nobre vida na batalha do Leipzig. Ou foi na do Austerlitz? - Entre essas duas batalhas há um intervalo de oito anos, observou ele. Não sabia onde estava em todo esse tempo, ou simplesmente decidiu que não ia bem estarem juntos? Ela moveu a mão para lhe tirar importância ao assunto, agarrou sua capa e a jogou sobre os ombros. - Ah, bom, dizem que passar muito tempo juntos é mau para o matrimônio. - Isso dizem? - disse ele com sarcasmo. Por que tenho a impressão de que não é mais Condessa do que eu? Maggie ia caminho da janela, mas lhe dirigiu um irônico sorriso por cima do ombro. - Ao menos eu tenho a possibilidade de ser Condessa, o que é mais do que você pode dizer, lhe disse frivolamente, e começou a afastar a cortina. - Não seria mais fácil sair pela porta? - Mais fácil sim, mas tenho uma reputação a cuidar. Boa noite, excelência. Quando desapareceu atrás das cortinas entrou uma suave brisa na habitação. Rafe foi olhar pela janela. Maggie tinha desaparecido, mas a parede estava coberta por uma trepadeira de grossos ramos. Não apresentava nenhuma dificuldade para uma pessoa ágil. Agitou a cabeça, divertido, e fechou as cortinas. Maggie era uma bruxa sedutora que desejava deixá-lo louco, mas esse era um jogo de que podiam jogar os dois. Seus lábios se curvaram em um sorriso. Ela podia acreditar que era muito forte para ser arrastada pela


paixão, mas ele não estava tão seguro. As semanas seguintes prometiam ser interessantes.

Capítulo 5

O inglês ia com os olhos enfaixados no carro que o levava ao seu destino; calculou que queriam confundi-lo dando muitas voltas pelas mesmas ruas. Cada vez que pensava na iminente entrevista lhe esticavam as mandíbulas; o único nome conhecido do homem a quem ia ver era-lhe Serpent e, ao igual ao animal cujo nome levava, só inspirava medo e ódio em todas as pessoas que sabiam de sua existência. O inglês sabia que era perigoso conhecer o Serpent, mas sem risco não há recompensa. O desmantelado carro de aluguel se deteve com um estrondo. Quanto tempo tinha durado o trajeto? Um quarto de hora? Meia hora? Quando se está indefeso é difícil calcular o tempo. Abriu a porta e entrou uma baforada de ar fresco na fedida carruagem. Seu silencioso acompanhante lhe agarrou o braço e bruscamente o fez baixar a uma calçada estreita, indiferente ao fato de que tropeçou e esteve a ponto de cair por levar os olhos enfaixados. Entraram em uma casa, desceram por uma escada interior e continuaram por um corredor estreito em que ressonavam seus passos. Depois de uma longa caminhada e mais escadas, o acompanhante se deteve. O inglês ouviu girar o pomo de uma porta e um empurrão o lançou dentro de uma habitação. Levantou uma mão para tirar a atadura dos olhos, mas uma voz sibilante, certamente falsa, deteve-o em seco. - Não lhe aconselharia fazer isso, mon anglais. Se visse minha cara me veria na necessidade de matá-lo, e isso seria uma grande lástima, porque minha idéia é aproveitá-lo de maneiras melhores. O inglês desceu a mão, desmoralizado; estava cego e sozinho; era impossível adivinhar sequer a nacionalidade de seu perigoso empregador. Dado o momento político que era Paris nesses momentos, o maldito podia ser de qualquer nacionalidade. - Não me faça perder o tempo com ameaças. Ele disse tentando parecer tranqüilo. Supondo que lhe agrada a informação que lhe dou, senão não me pagaria por ela. E supondo que deve desejar mais, ou não teria pedido para me conhecer pessoalmente. Ouviu uma risada rouca. - Os retalhos que me deu até agora foram úteis, mas são corriqueiros comparados com o que agora necessito de você. Nas próximas semanas necessito de uma informação completa dos movimentos de Lorde Castiereagh e do Duque de Wellington; além disso, informes diários do que faz a delegação. - Não estou em posição de saber tudo isso.


- Então busque alguém que esteja, mon anglais. A ameaça implícita no tom sedoso era inconfundível. Não pela primeira vez, o inglês desejou não ter se metido nisso. Mas era muito tarde para lamentos. O Serpent já sabia muito dele. Decidiu confrontar a situação do melhor modo possível. - Isto custará dinheiro extra. Quase ninguém do pessoal está disposto a falar, e os que estão, são caros. - Reembolsaremos os gastos legítimos. Não pagarei por suas putas nem por seus jogos. Molhou de suor a sua atadura. Saberia o Serpent do dinheiro furtado da soma que lhe deu para pagar os outros informantes? Tinha sido imprudente apropriar-se desse dinheiro para seu uso, mas se não tivesse pago essa dívida de jogo poderia ter perdido seu posto na delegação. - Não tem nada que temer nesse aspecto. - Que consolador, exclamou Serpent com clara ironia. Envie seus informes do modo habitual. Recorde que necessito de informação diária, porque as coisas estão ficando críticas. Informarei-lhe quando precisar lhe ver de novo. Agora vá. Chegou a escolta e o tirou da habitação. Enquanto caminhava o inglês foi fazendo especulações sobre o que se estava tramando. Se soubesse o que Serpent pensava fazer, essa seria uma valiosa informação. O perigo estava em que não saberia a quem vendê-la se não descobrisse quem era a serpente. Mas quando houve benefícios sem perigo? Depois que Inge a vestiu para a recepção, Maggie a despediu e se contemplou no espelho com objetividade clínica. Seu precioso vestido rosa coral era uma garantia de que não passaria despercebida; levava correntinhas de ouro no pescoço e os cabelos recolhidos em um primoroso coque alto. Achou muito formal sua aparência, de modo que soltou um cacho que ficou flutuando delicadamente sobre a pele nua de um ombro, sutil convite para que um homem pensasse se seus lábios poderiam percorrer esse mesmo atalho. Assentiu satisfeita; tinha encontrado o equilíbrio perfeito entre uma dama e uma cortesã. Mas ainda não eram oito horas, e isso lhe deu tempo para pensar no Rafe. Precisava entender seus sentimentos antes que começassem a farsa, porque tinha descoberto que suas emoções oscilavam violentamente quando estava perto dele; passava da exasperação à raiva e à diversão, e isso era perigoso. O trabalho que iam empreender era muito importante para pôlo em perigo por assuntos pessoais. Não devia cometer o engano de permitir mais beijos; principalmente, não devia desafiálo, porque então ele se sentiria impulsionado a demonstrar sua virilidade e nesse aspecto, um tigre seria menos perigoso. Claro que Rafe se comportou muito mal quando pôs fim ao compromisso, mas ela também teve sua parte de culpa nisso. Ele corrigiu esse pecado quando levou os corpos de seu pai e de Willis de volta a Inglaterra, estranho gesto de generosidade para uma mulher a quem considerava desprezível. Mas fossem quais fossem seus motivos para fazê-lo, com isso tinha equilibrado a balança entre eles.


Tentaria pensar que acabava de conhecê-lo há dois dias. Aceitaria-o como a um homem atraente e enigmático que compartilhava seu objetivo de descobrir uma perigosa conspiração: nada mais nem nada menos. Era uma lástima que fosse tão bonito porque isso complicava as coisas. Era um homem acostumado a obter o que desejava, e era evidente que a desejava. Supunha que isso se devia em parte a que ela estava ali, e em parte porque não a tinha tido todos esses anos. Os homens são como pescadores, jamais esquecem o peixe que lhes escapa. Com os anos se familiarizou bastante com o tipo de caráter de Rafe. Uma indiferença total lhe inspiraria curiosidade, porque estava acostumado a que as mulheres caíssem em seus braços; portanto, seu melhor método seria uma atitude amistosa, moderada por um melancólico pesar de que seu trabalho lhe impedisse de intimar mais com ele. Isso o adularia o suficiente para não ferir seu ego. O espelho lhe devolveu sua imagem, serena, elegante e proprietária de si mesma. Essa imagem lhe tinha servido de armadura nas guerras encobertas que tinha lutado, e era muito eficaz. Embora os traços fossem idênticos, não era a cara de Margot Ashton, filha do Coronel Gerald Ashton e noiva de Rafael Whitbourne. Invadiu-a uma quebra de onda de tristeza. Aonde tinha ido essa garota impetuosa, tão desastrosamente sincera, que foi incapaz de dominar seu gênio quando mais importava? Foi aonde vai toda a juventude e a inocência. Por sorte Inge escolheu esse momento para lhe anunciar a chegada do Duque. Maggie elevou o queixo e deu as costas ao espelho. Depois de viver tanto tempo entre franceses, estava adquirindo seu deplorável hábito de filosofar. Graças a Deus tinha nascido inglesa, com todo o pragmatismo de sua raça. Ridiculamente de aparência agradável, o Duque usava seu impecável traje de noite, feito à medida, com a mesma despreocupação com que teria usava seu traje de montar mais velho. Se lhe impressionou a vistosa aparência de Maggie só o demonstrou arqueando levemente as sobrancelhas. - E é este o mesmo rapaz que saiu pela janela de meu dormitório ontem à noite? perguntou ele lhe oferecendo o braço. Maggie relaxou ao lhe agarrar o braço. Se ele se comportasse, não lhe seria difícil uma relação amistosa com ele. - Entrou um rapaz em seu dormitório, excelência? E era um menino? O indício de um sorriso brincou nos lábios dele quando saíam à rua. - Não saberia dizê-lo. Por desgraça, não tive a oportunidade de fazer mais averiguações. O carro estava resplandecente, de brilhante negro com borgonha, os quatro cavalos perfeitamente iguais e o brasão Candover laqueado em cada porta. Ele a ajudou a subir e depois se instalou no assento do frente. O carro empreendeu a marcha e começou o trajeto pelas ruas de Paris. - Será melhor que me chame Magda, disse ela no meio do ruído dos cascos. Supondo que poderia me chamar Maggie, porque é inglês, mas nunca me chame de Margot. Isso poderia dar lugar a perguntas, e seria perigoso.


- Vai me custar não te chamar de Margot, mas farei o possível. Esboçou um sorriso. É estranho, quando foi inglesa tinha um nome francês, e agora que assegura que é húngara se considera uma boa Maggie britânica. - Oxalá essa fosse a mais nova de minhas raridades, respondeu ela com um exagerado suspiro. - Posso perguntar quais são as outras? - Não, se valorizar sua longevidade, excelência - replicou ela. Ele não soube explicar a causa dessa mudança de atitude, mas era um alívio encontrá-la com esse humor depravado e brincalhão, e não com uma atitude defensiva de ataque. - E você deveria me chamar de Rafe, carinho, já que supostamente temos uma relação íntima. - Não tema, vou ser tão convincente que inclusive você vai custar a recordar que isto é uma comédia. Agora deveríamos falar em francês, acrescentou trocando de idioma. Ele escutou com interesse. - É um francês com acento magiar o que fala? - É obvio. Não sou por acaso uma Condessa húngara? Trocou de acento: Claro que é uma lástima não usar meu parisiense puro, voltou a trocar, mas enquanto não falar com acento inglês, não me desacreditarei. Era assombroso ouvi-la trocar entre três modos diferentes de pronuncia. Rafe comprovou que as versões com acento inglês e parisiense eram perfeitas, e estava disposto a aceitar por fé a versão magiar. - Como demônios faz isto? - É um dom inato, como o ouvido musical, explicou ela. Sou capaz de imitar qualquer acento depois de ouvi-lo. Uma vez que começo a usá-lo, continuo na mesma modalidade até trocá-lo por outro. Aqui me vou limitar ao francês com acento magiar, já que assim que como me conhecem. - É um belo dom, disse ele admirado, e explica por que um prussiano, um italiano e um francês asseguraram ao Lorde Strathmore que era uma de suas patrícias. - Sim? - riu ela. Isso demonstra os inconvenientes de ter bom ouvido para os idiomas. Não convém ter muitas identidades, sempre há o risco de conhecer alguém de uma encenação anterior. Detiveram-se na cauda das carruagens que esperavam para deixar seus passageiros diante da magnífica Embaixada britânica iluminada por tochas. No ano anterior o Duque do Wellington tinha comprado o edifício à princesa Pauline Borghese, a notória irmã de Napoleão. Não demoraram muito em encontrar-se na fila de recepção, avançando pouco a pouco. De repente ela ficou nas pontas dos pés e lhe sussurrou sedutoramente ao ouvido: - O grande Canova fez uma escultura da princesa Borghese; quando uma de suas amigas lhe perguntou como podia suportar posar nua, ela sorriu inocentemente e lhe disse que não era nenhum problema porque havia uma lareira acesa no estudo. Decidido a fazer o jogo tão bem como ela, ele passou a mão por debaixo do xale e lhe


acariciou a suave pele do braço. - São certas todas as histórias que se contam da princesa? - perguntou-lhe em um sussurro. Ela estremeceu de um modo que lhe pareceu que não era simples simulação, e depois riu e agitou as pestanas. - Muito certas. Dizem que conquistou tantos homens como seu irmão, mas seus métodos eram muito mais... mais íntimos diríamos? Ela continuou seus comentários escandalosos enquanto lhe admirava os olhos brilhantes e os lábios grossos, lábios desejáveis. Qualquer observador os veria como um quadro perfeito de um casal de recém apaixonados. Era fácil ser convincente já que desde esse enlouquecedor e delicioso beijo do dia anterior fervia de desejos. A fez avançar lhe apoiando uma mão na magra cintura. Depois de saudar o Wellington, aos Castiereagh e a outros dignitários, uniram-se à ruidosa multidão que enchia o salão de recepção principal. Começaram a percorrer a sala, ela muito perto dele, agarrada ao seu braço. Ele conhecia a maioria dos aristocratas britânicos presentes, e pelo visto ela conhecia todos outros, porque houve muitas saudações e beijos para a querida Condessa. Grande parte de uma hora a passaram saudando pessoas e bebendo champanha. Rafe percebeu que os homens o olhavam com curiosidade ou inveja, tentando adivinhar como tinha conquistado a uma criatura tão encantadora. Era igualmente divertido ver como o olhavam as mulheres e depois observavam a Maggie do mesmo modo. Como faria Maggie para parecer tão exótica e nada inglesa? Claro que tinha essas ousadas maçãs do rosto de aspecto oriental, e gesticulava com o entusiasmo continental, mas era algo mais que isso. Quando ela se apoiou nele no meio do ajuntamento, captou o embriagador perfume que usava e que explicava parte de sua aura; não eram para ela as delicadas fragrâncias florais da Inglaterra, usava uma complexa combinação de aromas intensos que insinuavam as rotas da seda e os jardins persas. O aroma era uma forma primitiva, mas potente de identificação, e estar perto dela era pensar nos mistérios do Oriente. Maggie estava tão convincente como tinha prometido; quase conseguiu lhe fazer acreditar que estavam atados em um tórrido romance. O vestido rosa coral lhe acariciava com tanto amor a magnífica figura que ele desejava fazer o mesmo. Quando seus risonhos olhos cinza fumaça se encontravam com os dele, ou quando se apertava contra ele, Rafe sentia a tentação de lhe sussurrar que era o momento de procurar algum lugar onde pudessem estar sozinhos. Isso o teria proposto a qualquer outra mulher que lhe fizesse correr o sangue como ela o fazia; mais de uma vez teve que recordar que isso era só uma comédia. Desviou a vista com o fim de esfriar seus impulsos masculinos desmamados, e então viu que Maggie seguia um método para guiá-lo pelo salão. Embora se detivesse com freqüência para apresentá-lo, foram aproximando-se cada vez mais de um homem alto vestido com o uniforme de Coronel prussiano. O Coronel estava imóvel em um círculo silencioso, com as costas apoiada na parede.


Seus cabelos loiros eram tão claros que quase pareciam brancos à luz das candeias. Sem essa expressão de arrepiante aversão às pessoas que o rodeavam, poderia considerar-se de aparência agradável. De tanto em tão fazia um gesto de assentimento a alguém, mas sem a menor intenção de unir-se à frívola conversação. - Esse é Fehrenbach? - perguntou ele em voz baixa. - Sim, ao levantar a cara para ele para lhe responder, quase se tocaram os lábios e ela se afastou bruscamente. - Conhece-o? - continuou ele como se não houvesse passado nada. - Na realidade, não. Apresentaram-me uma vez, mas evita a maioria das reuniões sociais. Não estaria aqui esta noite se a festa não fosse em honra do Marechal Blücher. Quando estavam bastante perto, Maggie exclamou extasiada: - Coronel Von Fehrenbach! Que prazer voltar a lhe ver. Sou a Condessa Janos, estendeu a mão. Recordará que nos conhecemos na última revista de tropas russa. O Coronel não fez cara de recordar, mas se inclinou cortesmente sobre sua mão. Quando se endireitou e seus olhos viram melhor o volumoso decote do vestido rosa coral, sua expressão se suavizou um tanto. A Rafe agradou ver que era humano. Quando Maggie apresentou o seu acompanhante, o Coronel fez uma inclinação leve e rígida. Rafe sentiu um calafrio ao olhar os olhos de azul claro. O Coronel dava a impressão de ter ido ao inferno e não ter saído totalmente dele. Maggie olhou para o Príncipe Blücher, que estava no outro extremo do salão. - Que privilégio tem que ser servir como ajudante de campo do Marechal. Não veremos outro como ele. - Efetivamente, assentiu Von Fehrenbach em tom grave. É o mais valente e honrado dos homens. - Que lástima, continuou ela com absoluta candura, que a gente não aprecie em todo seu valor o papel que teve em Waterloo. Com toda a inteligência de Wellington, quem sabe o que poderia ter ocorrido se o Marechal Blücher não tivesse chegado no momento que chegou? Rafe pensou que talvez Maggie mostrasse um entusiasmo exagerado, mas viu que Fehrenbach a olhava com absoluta aprovação. - É você muito perspicaz Condessa. Wellington nunca enfrentou o Imperador, e não é impossível que Napoleão tivesse convertido sua derrota em vitória. Rafe sentiu um comichão de irritação patriótica. Em toda sua carreira Wellington não tinha sido derrotado jamais, e a batalha de Waterloo já estava ganha quando chegou Blücher às sete da tarde. Mas sabiamente manteve a boca fechada. - Dizem que ao Marechal disseram que nunca alcançaria o Wellington a tempo, continuou Maggie admirada, e que nem sequer devia tentá-lo. - Isso é certo, confirmou o Coronel dando sinais de animação. Mas o Marechal se negou a fazer caso a esse palavrório. Embora estava em recipiente térmico dirigiu a marcha, jurando que tinha dado sua palavra ao Wellington e que nada do céu ou do inferno o deteria. - Você estava com ele? - Tive essa honra. O Marechal era um estímulo, um verdadeiro soldado, e é um homem


de absoluta integridade. - Lhe esfriaram os olhos. Não como estes franceses mentirosos. Maggie fez um gesto vago. - Não creio que todos os franceses careçam de honra. - Não? Com um Rei que fugiu de sua capital e voltou escondido no trem de bagagem dos aliados? Com homens que trocam de lado como Talleyrand, que os dirige? Começaram a lhe sair as palavras em uma furiosa corrente. A França respaldou ao corso quando voltou de Elba e merece que a castiguem; suas terras deveriam dividir-se e repartir-se entre as demais nações; seu povo deveria ser humilhado, e seu nome apagado do mapa da Europa. A intensidade de Fehrenbach sobressaltou a Rafe; certamente o Coronel era um homem perigoso, muito capaz de destruir qualquer francês que lhe atravessasse o caminho. - Não aprendemos nada em dois mil anos? - perguntou Maggie com doçura. Haverá só vingança e nenhum lugar para o perdão? - Você é mulher, disse o Coronel encolhendo-se de ombros em gesto de não tomá-la a sério. Não se pode esperar que compreenda estas coisas. Rafe decidiu que já estava há muito tempo calado. - Eu não sofro da debilidade da Condessa neste sentido, disse, mas estou de acordo com ela em que a vingança poderia ser a pior medida. Humilhar a um competidor perdedor é fazer um inimigo implacável. É melhor ajudá-lo a levantar-se e conservar sua dignidade. Os frios olhos azuis passaram de Maggie a Rafe. - Os ingleses e sua obsessão pela esportividade e o jogo limpo - disse com desprezo. Tudo isso está muito bem no boxe e nos esportes, mas não quando se trata de guerra. Foram os franceses os que ensinaram a meu povo o que sabemos de selvageria e destruição, e é uma lição que aprendemos bem. Seria você tão imparcial se lhe tivessem incendiado suas terras e assassinado a sua família? A angústia evidente do homem induziu Rafe a tragar o que poderia ter dito. - Eu gostaria de acreditar que eu tentaria, mas não sei se o obteria. Aliviou-se a tensão e Von Fehrenbach se retirou atrás de sua máscara impassividade. - Alegra-me ouvir que admite a dúvida. Todos outros britânicos que estão em Paris pensam que têm todas as respostas. Poderia ter tomado como um insulto esse comentário, mas Rafe o deixou passar. Dissimuladamente tocou o cotovelo ao Maggie, em silenciosa pergunta de se seria o momento de que se retirassem. Antes que nenhum dos três pudesse mover-se, lhes reuniu uma mulher miúda, de cara doce e bonita, emoldurada por suaves cachos de cabelo castanho. Seu corpo arredondado era mais sensual que elegante, mas seu vestido de cetim azul indicava o inconfundível estilo de uma francesa. - Héléne, carinho - a saudou Maggie com afeto, vejo-te muito bem. Faz muito tempo que não nos vemos. Depois de um rápido olhar ao Coronel, a recém chegada beijou Maggie na bochecha. - É um prazer voltar a ver-te, Magda. Acabei de chegar à cidade. Sua voz tinha a mesma doçura de sua cara. Maggie a apresentou aos dois homens como madame Sorel. Depois de


oferecer sua mão a Rafe, a francesa se voltou para o prussiano. - O Coronel Von Fehrenbach e eu já nos conhecemos. O rosto do Coronel adquiriu uma expressão ainda mais impassível, se isso era possível. - Sim que nos conhecemos, disse em um tom que só se poderia definir como lúgubre. Rafe notou a tensão e pensou se Maggie saberia o que havia entre sua amiga e o prussiano. - Se me perdoam, continuou Von Fehrenbach antes que madame Sorel pudesse responder, devo assistir ao Marechal Blücher. Senhoras, excelência - se inclinou diante cada um e escapou. Maggie viu desaparecer a figura enrijecida no meio da multidão. - Deus santo, Héléne, o que fez a esse homem para que saísse disparado como um soldado de cavalaria? Madame Sorel encolheu de ombros, e o movimento produziu um encantador ondulação de curvas. - Nada, vi-o várias vezes em diversos atos. Sempre me olha furioso como se eu fosse Napoleão em pessoa e depois parte. Quem pode saber o que há na sua cabeça? Além de que detesta a toda pessoa ou coisa francesa. Maggie olhou a sua amiga com seus perspicazes olhos cerrados. - Mas é um homem de fina imagem, não é? - Não é um homem, é um prussiano, disse Héléne sarcástica. Depois de outros poucos comentários, despediu-se com um encantador sorriso. Rafe observou seu cadencioso andar com apreciação masculina. Quando já estava suficientemente longe, perguntou ao Maggie: - O que se passou aqui que não entendi? - Não sei muito bem, respondeu ela pensativa, embora poderia arriscar uma hipótese. Levantou a cara para ele. Volto dentro de uns minutos. Dirigiu-se à sala reservada para senhoras e Rafe a observou, comparando seu andar com o de madame Sorel; embora valesse a pena olhar à francesa, achou surpreendente que Maggie não fosse seguida por uma multidão de homens pelas ruas. Seus agradáveis pensamentos foram interrompidos pelo deplorável Oliver Northwood. - Felicitações, Candover, trabalha rápido. Três dias em Paris e já cativaste à Condessa. Seu tom era jovial, mas sua cara gordinha gotejava malevolência. Não é que ela seja difícil de cativar por um homem que tem o dinheiro para pagar. Rafe lhe dirigiu seu olhar mais glacial. - Pensei que não conhecia a dama. - Depois que me disse seu nome fiz indagações. Ninguém sabe muito, além de que é viúva, recebem-na em toda parte e tem gostos caros. Fez uma piscada significativa. É muito boa para obter que outros lhe paguem os prazeres. Rafe lhe teria enterrado o punho no ventre, mas para seu próprio desgosto se surpreendeu lhe perguntando: - Do que mais te inteiraste?


- Diz-se que vale cada centavo do seu preço, mas claro, você deve saber isso melhor que todos, não é? Rafe decidiu que era a vulgaridade de Northwood que lhe incomodava. No fim Maggie era uma espiã; que melhor maneira de fazer os homens falarem que sobre um travesseiro? Tinha que manter-se; era duvidoso que o governo britânico lhe pagasse o suficiente para manter essa casa e ter esse guarda-roupa. Comportar-se como qualquer meretriz de linhagem que esperava jóias em troca de seus favores era uma esplêndida maneira de ocultar seus objetivos mais profundos. Era estranho que lhe resultasse mais fácil pensar que Maggie era uma puta que acreditar que pudesse trair ao seu País. Maggie estava sentada diante uma das penteadeiras quando a única outra mulher que estava na sala lhe disse com acento inglês: - Candover é um amante fabuloso. Maggie se girou atônita e olhou fixamente a jovem sentada diante da penteadeira contígua. - Como disse? - perguntou-lhe no tom mais glacial que pôde conseguir. - Perdoe, foi um atrevimento horroroso, disse a jovem arrependida. Mas a vi com o Candover e por sua forma de atuar me pareceu que... bom... - fez um vago gesto com a mão. Estava ruborizada, como se acabasse de perceber o quão escandaloso tinha sido seu comentário. A irritação de Maggie deu passo à diversão. - Por seu comentário devo supor que tem experiência pessoal dos dotes de sua excelência? A jovem assentiu com a cabeça. Devia ter pelo menos vinte e cinco anos, já não era uma menina, mas seu ar cândido a fazia parecer mais jovem. - Meu nome é Cynthia Northwood. Rafe foi... muito bondoso comigo no princípio de meu matrimônio, quando necessitava de amabilidade. Picada sua curiosidade, Maggie lhe perguntou: - E agora vai melhor seu matrimônio e já não necessita de amabilidade? - Não, disse Cynthia, e lhe endureceu o olhar, agora meu matrimônio não significa nada para mim e encontrei amabilidade em outra parte. Maggie suspirou. Era uma das maldições e bênçãos da sua vida que a gente se sentisse impulsionada a lhe contar seus segredos mais íntimos. Pessoas totalmente desconhecidas, como essa mocinha cândida, pareciam supor que ela lhes daria um bom conselho ou pelo menos às compreenderia. Esse dom para fazer as pessoas falarem era uma vantagem para uma espiã, mas seriamente desejava inteirar-se da destreza amorosa do Duque do Candover pela boca de sua ex-amante? Com o fim de lhe distrair a atenção para que não lhe fizesse mais confidências, disse-lhe: - Sou Magda, Condessa Janos, mas talvez isso já saiba. - É obvio, parece que todo mundo a conhece. Estive-a admirando desde que entrou. Tem


uma presença... Com o Rafe formam o casal mais bonito daqui. Pareceu-me totalmente absorto por você, não como é com a maioria das mulheres. Como podia ofender-se por esse elogio tão ingênuo? - Senhora Northwood, disse em tom severo. Não sabe quão impróprios são esses comentários? - Minha maldita língua! - exclamou Cynthia, ruborizando-se outra vez. Minha mãe morreu quando eu era muito pequena, e meu pai sempre me animou a dizer o que me passasse pela cabeça, do modo mais impróprio de uma dama. E... meu amigo o Comandante Brewer também gosta que seja assim. Diz que não sou afetada como a maioria das mulheres. De verdade, não foi minha intenção ofendê-la, acrescentou muito séria. Mas quero muito ao Rafe e o vejo tão feliz com você... Creio que não é feliz muito freqüentemente. Picada sua curiosidade, contra o que lhe aconselhava seu julgamento, Maggie lhe disse: - Certamente, Candover tem tudo o que um homem poderia desejar: bom berço, riqueza, inteligência, o encanto e boas maneiras suficientes para três homens. O que a faz pensar que não é feliz? - Sempre pareceu um pouco aborrecido. É muito cortês, mas na realidade não lhe importa o que faz. Claro que talvez só fosse assim comigo, acrescentou com tristeza. Sei que nunca me achou interessante; eu não era suficientemente inteligente para ele. Só se atou comigo porque não tinha nada melhor a fazer naqueles momentos. Maggie a escutava com horrorizada fascinação e certo respeito. Talvez a jovem fosse algo mais do que parecia a primeira vista. - Senhora Northwood, de verdade, não deveria dizer essas coisas a uma desconhecida. - Não, já sei. Mas desde que estou em Paris estive fazendo coisas incorretas, e tenho toda a intenção de piorar, não de melhorar. Condessa Janos - acrescentou elevando o queixo, sinto sinceramente tê-la incomodado. Espero que me creia que desejo o melhor a você e ao Duque do Candover. A todo mundo desejo bem, exceto ao meu marido. Dito isso se levantou e partiu, não sem certa dignidade. Maggie moveu a cabeça pensando nessa estranha conversação. Se já tinha visto uma jovem a caminho de problemas, essa era Cynthia Northwood.

CAPÍTULO 6


Rafe era muito capaz de dar um desprezo que afastaria inclusive a um caipira de pele tão dura como Oliver Northwood, mas se conteve. Era evidente que Northwood continuava ali com a esperança de que lhe apresentasse à Condessa Janos, e ele sentiu o perverso e insano desejo de ver como reagiria Maggie quando se visse inesperadamente diante do seu primeiro amante, caso Northwood tivesse sido primeiro, como tinha assegurado. Com a vantagem de sua altura, viu Maggie abrindo-se passo pela multidão, detendo-se aqui e lá para saudar alguém, sempre de modo despreocupado, até que se deteve para falar com um jovem loiro no centro do salão. Normalmente isso não lhe teria importado nada, mas sua atual missão tinha intensificado suas percepções. Por um momento desapareceu a máscara social de Maggie e viu uma profunda concentração em seu rosto. Depois continuou avançando. O homem loiro estava de costas para Rafe, mas quando Maggie se afastou, voltou -se a olhá-la. Surpreso, reconheceu Robert Anderson, o ajudante da Embaixada britânica que lhe tinha apresentado à misteriosa espiã. Lucien tinha ordenado a Maggie que não falasse com ninguém da delegação fora dos chefes principais, por que então falava com o Anderson com tanta seriedade? Desejou recordar a quem lhe recordava Anderson. Em seu primeiro encontro o jovem lhe tinha dado a impressão de ser insignificante, mas quando se voltou a olhar a Maggie tinha uma expressão de ardilosa capacidade em sua cara. Quando ela chegou ao seu lado muito sorridente, pensou se essa incursão na espionagem não o estaria pondo muito fantasioso; logo suspeitaria de tudo e de todos. Não era de estranhar que Maggie se mostrasse suscetível e desconfiada em seus primeiros encontros. Depois de anos trabalhando no escuro mundo de sondar informações, devia ter-se esquecido do que era a vida normal. Maggie lhe pôs uma mão no braço e levantou para ele seus olhos cor de fumaça. - Está disposto a partir, mon cheri? As coisas estão tristemente aborrecidas aqui, e posso te oferecer melhor entretenimento em casa. - Irei onde queira, Magda, meu amor, disse ele lhe cobrindo a mão dela com a sua. Mas me permita que primeiro lhe presente a um admirador, Oliver Northwood, da delegação britânica. Northwood, a Condessa Janos. O autodomínio do Maggie era admirável. Embora a observasse atentamente, a única reação que viu nela foi um muito ligeiro franzimento dos lábios. Claro, provavelmente sabia que o homem estava em Paris e que cedo ou tarde se encontrariam, portanto se tinha preparado mentalmente para esse encontro. Ou tinha tido tantos amantes que o primeiro não significava nada? Muito poucas de suas ex-amantes o desconcertariam. Por que Maggie ia ser diferente? Porque, na realidade, além de que ele desejava que fosse diferente? - É enorme o prazer de conhecê-la, Condessa - disse Northwood em tom lisonjeador, se


inclinando. Estive admirando-a de longe. Maggie agradeceu suas palavras com um tranqüilo gesto de assentimento. Tinha demorado um bom momento em reconhecê-lo. Quando era jovem não carecia de certo encanto buliçoso, mas os anos o tinham deixado tosco. Ou melhor dizendo, seus atos com o passar do tempo tinham configurado indelevelmente sua cara. Seus olhos a fizeram pensar em uma lesma: frios, úmidos e viscosos. Não lhe ofereceu a mão. Esse devia ser o marido da Cynthia Northwood. Pobre Cynthia. Devia ter sido muito jovem e inocente para dar-se conta de com quem se casava. - Nossa ilha é incapaz de produzir belezas como você, disse Northwood com torpe galanteria. Pelo leve movimento dos lábios do Rafe, ela compreendeu que lhe divertia a perversidade do completo. - É você muito duro com suas patrícias, senhor Northwood, disse sorrindo encantadoramente. Acabei de conhecer uma que é a mais bela das rosas inglesas. Que pele mais formosa, que maneiras mais sinceras. Franziu o cenho e acrescentou. Mas claro, disse-me que seu sobrenome era Northwood. Cynthia Northwood? - Minha mulher é considerada de aparência agradável, disse ele com expressão azedada. - É você muito modesto no que respeita a ela, monsieur. Com um esplendoroso sorriso acrescentou: foi um prazer lhe conhecer. Confio em que voltem a cruzar nossos caminhos. Mas agora devemos partir. Distraidamente guiou ao Rafe até que abandonaram a recepção. - É educador te ver trabalhar, comentou ele em tom irônico quando estavam a sós no carro, seja adulando a um homem para fazê-lo falar ou desalentando suas aspirações. - O senhor Northwood é um tipo vulgar, por desgraça. Tirou parcimoniosamente as luvas largas. Sua mulher me felicitou por minha escolha de amante. Rafe suspirou. Embora sempre tivesse gostado da franqueza de Cynthia, desejou que desta vez tivesse refreado a língua. - Seguro que o fez com boa intenção. Mas já estava totalmente farto dos Northwood. O que te diz sua intuição sobre o Coronel Von Fehrenbach? A luz da rua iluminou brevemente o rosto de Maggie e ele viu sua expressão grave. - Seria óbvio dizer por que o consideramos um suspeito importante, disse ela. Qual é sua impressão? - Certamente odeia aos franceses o suficiente para ser perigoso e com sua experiência militar seria um adversário formidável e destro; e entretanto - fez uma pausa para definir suas percepções, não fez nenhum esforço para dissimular seus sentimentos. Um conspirador seria mais circunspeto, diria eu. - Talvez - disse ela pensativa, e talvez não. Poderia estar tão furioso que não lhe importasse o que lhe ocorresse uma vez obtido seu objetivo. - Acredita que ele é nosso homem? O silêncio foi tão comprido que ele chegou pensar que não ia responder.


- Maggie - disse com um matiz resistente na voz, pelo bem de nossa missão te deixarei me levar como um menino pela mão para encobrir seus interrogatórios, mas não me trate como a um menino atrasado quando estamos sozinhos. Você goste ou não, estamos juntos nisto e há melhores possibilidades de êxito se compartilharmos a informação e as conjeturas. - É essa uma ameaça, excelência? - perguntou ela em tom levemente zombador. Se não expor meus pensamentos, me vais golpear até que troque de opinião? - Tenho um método de persuasão melhor, respondeu ele com deliberada ambigüidade. - Se for correto o que disse Cynthia Northwood em seu elogio de seus dotes, supondo que isso significa que pretende avassalar meu débil cérebro feminino com beijos. O sarcasmo era inequívoco. - Não, não, nada disso. Só tenho que apelar ao seu senso de objetividade, o inato pé de Aquiles de Grã-Bretanha. Depois de um momento de surpreso silêncio, ela se pôs a rir. - Rafe, seu talento está desperdiçado. Deveria ser um negociador como Castiereagh. Certamente sabe tirar partido de um competidor. - Não somos competidores, observou ele. Somos sócios. - Tenho que reconhecer que me custa recordá -lo. Depois de um momento de silêncio continuou: face à fúria de Von Fehrenbach, não creio que ele seja nosso homem. Não é do tipo que conspira em segredo; consideraria ignóbil. Poderia aproximar-se de Talleyrand e lhe disparar no coração, mas duvido que se rebaixe a conspirar com outros. Embora o Coronel seja como um urso ferido e perigoso, não creio que seja o que procuramos. - Conte um pouco de madame Sorel. - Héléne é viúva de um oficial francês que morreu em Wagram; tem duas filhas. Ficou em uma boa situação econômica e é recebida na melhor sociedade parisiense. Somos amigas há anos e confio nela. - Importaria-se de me dizer por que acredita que Von Fehrenbach reagiu com tanta veemência diante da sua presença? - Creio que o motivo é muito singelo e não tem nada que ver com política. Ele aceitou isso sem fazer nenhum comentário. - Se tiver razão respeito a Von Fehrenbach, então um dos franceses é o vilão mais provável. - Se é que tenho razão, disse ela com um sotaque de amargura, mas houve casos em que me equivoquei. A escuridão permitia fazer coisas que seriam impossíveis a plena luz. Impulsivamente Rafe estirou a mão e agarrou a dela, que estava fria e tensa. Nem sabia nem lhe importava que lembranças lhe evocou o tom de sua voz. O único importava era que ela tinha levado cargas muito pesadas inclusive para os ombros mais largos, e que estava sentindo esse peso. Ela apertou convulsivamente os dedos ao redor dos dele, embora não tenha feito nenhum outro gesto de reconhecimento. Sua mão se esquentou e relaxou um pouco. Pela primeira vez, Rafe sentiu que tinham caído as barreiras entre eles. Talvez se dessem melhor se não se falassem.


Quando chegaram a sua casa, Maggie soltou a mão para tornar o xale de cachemira sobre os ombros. Quando ele a estava ajudando a descer do carro, sorriu: - Considera-te um menino? Ele também sorriu. - Ou algum outro inútil objeto ornamental que se leva só para exibi-lo. Voltou-se e despediu o carro. Ela o olhou fixamente quando ele entrou também na casa. Antes que pudesse dizer nada, ele explicou: - Se queremos manter a ilusão de um romance, não posso te deixar na porta e partir. Depois de um conveniente intervalo, partirei pela porta de atrás. Voltarei a pé para o hotel, não é longe daqui. Ela aceitou a explicação com uma pouco aduladora falta de entusiasmo. - Supondo que seja necessário. Entraram no salão e ela serviu conhaque para os dois; deixou cair sandálias e se sentou em um dos sofás com as pernas dobradas. Deveria ter perguntado a Cynthia Northwood quanto tempo deve ficar para manter sua reputação? Talvez deveria dispor uma cama em uma dos quartos desocupados, já que ninguém esperaria ver-te antes de manhã. Ele decidiu não agradá-la perdendo a paciência. - Partirei pela porta de trás dentro de uma hora mais ou menos. Depois de tudo seria um golpe para nossas respectivas reputações se eu partisse antes. Percorrendo o salão descobriu um xadrez antigo disposto em uma mesinha de jogo. As peças representavam uma corte medieval. As bem esculpidas figuras estavam pintadas com esmalte, cada uma com traços individuais pintados à mão. Rafe agarrou a rainha branca, uma deliciosa dama de cabelos dourados montada em um cavalo alvo. Olhou a Maggie; a semelhança era inegável. A rainha, a figura mais importante do tabuleiro. Deixou a peça em seu lugar e agarrou o rei negro do outro lado do tabuleiro. De rosto moreno e arrogante e parecido a um falcão, o rei balançava uma espada de um cavalo encabritado. Contemplou a figura um momento, pensando se só se imaginava que se parecia com ele. Os reis são os objetivos do jogo, mas têm relativamente pouco poder. Não era muito diferente ao jogo que estavam jogando ele e Maggie, a rainha branca no comando e o rei acompanhando-a. Mas estavam do mesmo lado, ou não? Agarrou o rei alvo de cabelos loiros. Seu rosto era sereno e enigmático, e não precisou de muita imaginação para ver o Robert Anderson na figura. Se isso era um presságio, era perturbador. Deixou em seu lugar o rei alvo. - Gostaria de uma partida de xadrez? Na recepção me prometeu melhor entretenimento em sua casa. Ela se levantou agilmente e se aproximou da mesa de xadrez. - Se quiser. Descobrirá que melhorei um pouco meu jogo. Jogamos a cara ou coroa quem joga com as brancas? Tradicionalmente as brancas jogam primeiro, têm a vantagem, mas ele agarrou


novamente a rainha branca, admirou seu orgulhoso queixo e a passou a Maggie. - Só pode ser tua. Sentaram-se e começaram a partida. Em sua juventude, Maggie jogava com uma inteligência amalucada que de tanto em tanto lhe dava a vitória, mas com mais freqüência a levava a derrota. Rafe tinha um estilo mais reflexivo. Agora estavam equiparados. Interessoulhe ver que ela continuava jogando com ousadia, mas com melhor olho para a estratégia. Assim transcorreu uma hora em que as únicas palavras eram para fazer um elogio por uma boa jogada. Quando o relógio deu as onze, Maggie levantou a cabeça surpreendida. - Com risco de parecer uma anfitriã descortês, devo te pedir que vá. Outro dia poderemos terminar. Duvido que haja alguém observando a casa, mas te acompanharei até a porta de atrás, por onde pode sair sem ser visto. Rafe a seguiu pelas salas e corredores admirando a casa. Embora não fosse excepcionalmente grande, estava desenhada para fazê-la sentir espaçosa, e todo os detalhes eram perfeitos. Era certamente a casa de uma senhora, o que lhe reforçou a idéia de que não podia estar mantida com o salário de uma espiã. Perguntou-se quantos amantes contribuiriam à manutenção dessa casa. Quando ela se voltou a olhá-lo junto à porta de trás, lhe surpreendeu o quão pequena se via sem sapatos. A parte superior da cabeça apenas chegava ao queixo. Via -se jovem, tenra e absolutamente desejável, e o ar entre eles parecia carregado de possibilidades. Em outro tempo Margot Ashton o tinha olhado com essa mesma expressão na cara. Por um momento lhe inclinou o mundo e o passado se chocou com o presente. Desejou-a com toda a apaixonada intensidade dos vinte e um anos; desejou enterrar a cara nas mechas de cabelos dourados, descobrir um a um os mistérios do espírito risonho e esquivo da Margot, e de seu exuberante corpo. Foi um doloroso momento de desorientação, e sua única salvação foi que a Maggie atual não percebeu. Percorreu um suave estremecimento ao combater o desejo de agarrá-la entre seus braços. A experiência lhe disse que era melhor esperar. Ela o desejava, devia dar tempo para que crescesse esse desejo. Se avançasse muito rápido ela se tornaria hostil. Despediu-se com um cortês boa noite, e desejou que o que viu em seus olhos fosse um indício de desilusão. Depois desceu os degraus, atravessou o pátio do estábulo e girou à esquerda, entrando em um beco estreito e deserto. Estava muito inquieto para retirar-se mansamente ao seu quarto. Considerou a possibilidade de ir ao Palais Royale a jogar cartas ou procurar uma mulher, mas a perspectiva não o entusiasmou. Decidiu caminhar e se dirigiu a Agrada Vendóme. Maggie estava em sua mente, de modo irresistível. Inclusive quando tinha dezoito anos sua inocência só tinha existido em sua imaginação, de modo que não tinha por que lhe surpreender que se unisse ao exército de mulheres que colecionavam tributos caros por seus favores. Isso era muito comum entre as mulheres que tinham mais beleza que fortuna. Não considerava justo chamá-la de cortesã; simplesmente tinha descoberto uma maneira prática de combinar o trabalho com o prazer. Pelo menos tinha também outras metas que transcendiam seus prazeres. Possivelmente


escolhia aos seus amantes por sua riqueza e pela informação que podiam lhe dar. Na cama com uma mulher como Maggie um homem era capaz de dizer tudo e não se importar e nem recordar depois. Entrou no octógono da Praça Vendóme, que estava quase deserta a essa hora. No centro havia um enorme pilar, erguido por ordem de Napoleão para comemorar a batalha do Austerlitz. A espiral de bronze enroscada na coluna a tinham sido feita fundindo os mil e duzentos canhões capturados por Bonaparte nessa batalha. Não era de estranhar que os prussianos quisessem derrubar essa coluna. Esboçou um sorriso. Era difícil ocupar-se de política quando tinha a mente incapacitada pela luxúria. Bem, poderia enfrentar a realidade de que desejava Maggie como amante. Embora fosse certo que se deitou com mulheres que podiam considerar-se mais formosas, jamais tinha conhecido nenhuma que fosse mais atraente. Apesar de seus protestos, não era indiferente a ele e lhe pareceu que essa noite era menor sua hostilidade. Era hora de que deixassem de lado o passado e desfrutassem de um do outro tal como eram agora, sem recriminações nem complicações. Em lugar de discutir com ela, faria-lhe uma oferta franca. Talvez uma parte do motivo de que ela fosse tão inexorável em manter a distância era que não queria dar de presente o que normalmente era uma fonte de benefícios. Bom, ele era um homem razoável e reconhecia que ela tinha que manter-se. Embora nunca tivesse pago a uma amante, estava disposto a fazer uma exceção em seu caso. Em realidade, estava disposto a ser extraordinariamente generoso. Se ela concordasse com uma relação duradoura, inclusive consideraria a possibilidade de um acerto financeiro permanente para que ela tivesse uma certa segurança para o futuro. Decidido, deu meia volta para retroceder o caminho até a Alameda dê Capucines. Embora fosse tarde, voltou a entrar no beco de atrás da casa, com a esperança de ver um sinal de que ainda estava acordada, talvez tão agitada como ele. Enquanto olhava suas janelas, viu uma figura sigilosa que entrava no beco pelo outro extremo. Rafe retrocedeu e se escondeu nas sombras para não ser visto. Em lugar de passar de comprimento, o homem se deteve e olhou receoso ao redor. Rafe se esmagou contra a parede, contente de que sua roupa fosse escura. Ao parecer satisfeito por não ter sido visto, o desconhecido subiu os degraus da porta detrás e golpeou. A porta se abriu imediatamente. Maggie estava dentro, iluminada por um abajur que sustentava na mão. Havia mudado o traje de noite por um vaporoso vestido escuro, e tinha soltado o cabelo, que lhe caía sobre os ombros, igual à rainha branca. Seu visitante se inclinou a beijá-la, e Rafe não ficou a observar mais. O sigiloso recém-chegado era Robert Anderson, o rei alvo em pessoa. Com razão lhe tinha falado com tanta intensidade na recepção; estavam combinando uma entrevista. Não conseguiu entender muito bem por que sentia essa fria fúria. Sabia que Maggie tinha amantes, por que então o enfurecia ver entrar um? Certamente não eram ciúmes, não sentia ciúmes por uma mulher desde... Desde que tinha vinte e um anos e Margot o traiu com o Northwood.


Soltou uma maldição em voz alta, rejeitando a idéia. Sua raiva não era conseqüência de ciúmes e sim preocupação por sua missão. A Maggie haviam dito que não se associasse com os membros inferiores da delegação britânica, e entretanto desafiava as ordens de Lucien. Esse era um assunto perigoso e complicado, e se complicava mais hora detrás hora. Percorreu as ruas até bem passada a meia-noite, refletindo sobre a descoberta que acaba va de fazer. Posto que Maggie era uma perita em espionagem, ele tinha dado é obvio que não cometesse estúpidos enganos de julgamento; isso tinha sido um descuido por sua parte. Embora seguisse negando-se a acreditar que ela traísse deliberadamente ao seu País, no futuro analisaria seus atos com mais ceticismo. Embora fosse possível que sua aventura com o Anderson não tivesse nada a ver com seu trabalho, era mais seguro supor o pior. As mulheres são tão propensas como os homens a equivocar-se de julgamento com seus companheiros de cama. Se Anderson era um traidor, poderia estar utilizando-a exatamente igual a ela tinha utilizado a incontáveis homens. Quando finalmente chegou ao seu hotel, já tinha decidido uma estratégia. Ele conhecia a tenaz independência de Maggie para saber que se o dia que não visse o Anderson ela riria em sua cara. Teria que converter-se em seu amante para ter mais influencia sobre ela. Então lhe diria que se livrasse de Anderson, e de todos os malditos nomes com que estivesse atada. Até o momento a tinha desejado por motivos puramente físicos, mas agora esse desejo estava reforçado pela necessidade de assegurar-se sua lealdade. Pelo bem de sua missão, estava disposto a utilizar todas as suas opções para conseguir dominá -la. Que oportuno que nesse caso o dever fosse ao mesmo tempo com o prazer. Não lhe cabia dúvida de que ao final teria êxito; jamais tinha fracassado em conquistar a uma mulher que verdadeiramente desejasse. Mas teria que agir com muita prudência; contava com pouco tempo, portanto não convinha contrariá-la nem ficar de bobagens com ela. Em lugar de lhe fazer a franca oferta econômica, primeiro abrandaria sua resistência com presentes caros. Também decidiu criar fontes próprias de informação. Um nobre tem muitos empregados; só demorou uns minutos em recordar dois franceses inteligentes, discretos e dignos de confiança que trabalhavam para ele. Antes de deitar escreveu uma carta ao seu agente, lhe dizendo que fizesse vir esses dois homens a Paris imediatamente. Robin tinha um aspecto cansado e preocupado, o que não era habitual nele, de modo que depois de saudá-lo com um beijo, Maggie insistiu em que a acompanhasse a um jantar de meia-noite. Sentaram-se à mesa da cozinha diante uma bandeja bem provida de patê, fatias de frango assado e outros aprimoramentos preparados pela cozinheira. Quando terminaram, ele pôs a um lado seu prato. - Não há nada como uma boa comida para recuperar o otimismo. Descobriu algo útil esta noite? Maggie lhe contou seu encontro com Von Fehrenbach, e acabou o relato com a conclusão de que provavelmente esse não era o homem que estava detrás da conspiração. - Agora toca a ti, Robin. Vejo-te preocupado, o que ocorreu? Ele passou a mão pelo


cabelo, inquieto. Seus cabelos loiros eram mais claros que os dela, e se viam chapeados à luz das velas. - Um informante me disse que alguém esteve fazendo discretas perguntas em busca de um homem valente que gostaria de abater ao «vencedor do conquistador do mundo». Maggie mordeu o lábio. Os parisienses tinham dado esse apelido ao Duque de Wellington depois da vitória de Waterloo, um bom apelido já que Bonaparte tinha tomado o costume de acreditar o conquistador do mundo, e certamente Wellington tinha dissipado esse exagero. - Ou seja que vão pelo Wellington, disse com tristeza. Não poderiam ter escolhido melhor para alvoroçar o vespeiro. Descobriu algo sobre quem fazia essas perguntas ? - Só que era francês, o qual encaixa com a conclusão a que chegaste esta noite. Robin deu conta da última rodela de patê. Como vão as coisa s com o Candover? Maggie encolheu os ombros e fez um desenho na mesa unindo umas quantas gotas de vinho. - Tinha razão, é uma excelente cobertura para minhas investigações. É perspicaz também, chegou à mesma conclusão sobre Von Fehrenbach. Mas me preocupa... - lhe cortou a voz. - O que? - Embora até agora se mostrou disposto a colaborar, não sei, um comentário que fez esta noite... Disse que eu o levava como um menino de mão para encobrir minhas atividades. Robin se pôs a rir, mas ela continuou muito séria: No momento lhe diverte jogar este jogo. Não duvido de seu patriotismo, mas me dá medo o que poderia fazer quando isto já não o divertir. - O que quer dizer? - perguntou ele entrecerrando os olhos. - Só que está acostumado a estar no comando e a fazer exatamente que quer. Não é nenhum parvo, mas se ficar arrogante e obstinado em um mau momento, poderia causar graves problemas. Nas comissuras dos olhos azuis de Robin se formaram muito pequenas ruguinhas. - Confio em que você o mantenha controlado. Ela se reclinou no respaldo da cadeira, repentinamente esgotada. - Superestima minhas capacidades, carinho. - Duvido. Jogou atrás a cadeira e se levantou. Agora tenho que ir. Quem é o próximo? - Espero me encontrar com o Conde do Varenne dentro de um ou dois dia s. Vive nos subúrbios de Paris, mas é um assíduo da corte do Rei e assiste a muitas reuniões sociais. Creio que logo poderei conhecê-lo. Maggie seguiu ao Robin até a porta de trás. Quando se despediu, ela o rodeou com seus braços e apoiou a cabeça em seu ombro. Sentiu um súbito e intenso desejo de lhe pedir que passasse a noite com ela; fazer amor com ele não só acalmaria seu desejo de carinho e satisfação, mas sim talvez lhe serviria para tirar Rafe da cabeça. Mas não lhe disse nada, porque utilizar ao Robin dessa maneira seria imperdoável. Além disso, só seria um remédio temporário para sua doença.


- Quando acabará isto, Robin? - perguntou-lhe com tristeza. Ele se comoveu com o tom que detectou em sua voz. Por um momento Maggie lhe pareceu a garota que durante muitos anos não tinha podido ser. Abraçou-a fortemente, durante mais tempo do que era prudente. - Logo, carinho. Então todos iremos a Inglaterra. Ela levantou a cabeça e o olhou surpreendida. - Você também deseja voltar para a Inglaterra? - Talvez, lhe dirigiu um sorriso travesso. Me deitarei e estarei convexo até que desapareça esse sentimento. Quando partiu, ela fechou a porta, pensando que era a primeira vez que Robin manifestava o desejo de voltar para sua pátria. Inclusive ele, com eterna energia e amabilidade, estava farto do interminável engano e de tensão que era a companheira constante. Nesse caso, estariam muito justificadas as lágrimas de esgotamento que apareciam em seus olhos? Depois de tudo, só era uma mulher.

Capítulo 7

No dia seguinte pela tarde, Maggie foi encontrar se com sua amiga Héléne Sorel nos jardins St. Germain. Fazia calor e a maioria das damas elegantes que foram ali passear estavam sentadas à sombra das árvores, deixando livres os atalhos para elas duas. Maggie estava feliz de que Héléne lhe tivesse pedido esse encontro porque havia muitas coisas do que falar. Dedicaram um momento às coisas de que revistam falar duas amigas que não viram durante um tempo. Héléne acabava de voltar para Paris, depois de passar várias semanas em casa de sua mãe, perto de Nantes, onde foi deixar a suas duas filhas. Embora desejasse que suas filhas estivessem fora de perigo, ela se sentia na obrigação de contribuir como pudesse à causa da paz. Enquanto não se lembrassem as cláusulas do novo tratado, a informação era essencial, e ela estava em boa posição para ouvir rumores. Sabia que suas informações se transmitiam aos britânicos e seu amor por seu país era tão forte que decidiu fazer o que alguns chamariam traição. Caminhando pelos atalhos do jardim, com seus vaporosos vestidos musselina, davam toda a impressão de serem outras duas senhoras com tempo livre. Quando já estavam longe de qualquer ouvido indiscreto, Maggie iniciou a conversação séria: - Ouviu algo de especial interesse? Pareceu-me que sua nota era urgente. Héléne franziu o cenho.


- Sim. Ouvi que alguém está conspirando para matar Lorde Castiereagh. Maggie fez uma forte inspiração. - Onde ouviu isso? - Uma de minhas criadas tem um irmão que trabalha em uma casa de jogo do Palais Royale. Ontem à noite, muito tarde, ouviu dois homens que falavam sem nenhum cuidado porque já estavam muito bêbados. - Esse irmão poderia identificar os homens? Héléne negou com a cabeça. - A luz não era boa e só ouviu uma parte da conversação quando servia a uma mesa contígua. Pareceu-lhe que alguém era francês e o outro estrangeiro, talvez alemão ou inglês. O francês perguntou se já tinham um plano e o outro disse que dentro de umas duas semanas Castiereagh já não estorvaria mais. Maggie esteve em silêncio um momento tentando assimilar essa nova informação. Seria a mesma conspiração que estavam tentando descobrir ou seria outra mais? Sentiu-se como se estivesse procurando uma agulha em um palheiro a meia -noite. Entraram em outro atalho rodeado por canteiros de coloridas flores e explicou brevemente a Héléne o pouco que sabia da conspiração. A cara de sua amiga foi se preocupando enquanto a escutava. - Isso seria muito perigoso. Com tantos soldados de todas as nações aq ui, a menor faísca poderia fazer arder toda a França. - Sei, suspirou Maggie. Mas fracassaram outras conspirações desse tipo. Deus mediante, esta também fracassará. Trocando o tema, perguntou: O que sabe do Coronel Von Fehrenbach? - Não muito. Encontramo-nos várias vezes em atos sociais. É como muitos dos oficiais prussianos: um homem furioso e decidido a fazer sofrer a França. A arredondada cara de Héléne estava nas sombras sob seu guarda-sol de encaixes, e sua voz não dava nenhuma pista sobre seus pensamentos. Embora as duas mulheres fossem amigas, ambas tinham seus segredos. - Perdoe-me se te parecer uma bisbilhoteira, Héléne, lhe disse Maggie hesitante, mas há algo entre vocês dois? - Ele me vê e pensa em tudo o que odeia, disse sua amiga com voz neutra. Além disso, não há nada. - Acreditas que poderia estar metido nesta conspiração? - Não; é um homem sem complicações e desprezaria qualquer conspiração. Com um frio sorriso acrescentou: Se parece bastante ao meu defunto marido Etienne, arrojado e valente, imune à dúvida ou ao sentido comum. Tem algum motivo para suspeitar do Coronel? - Em realidade não. Von Fehrenbach está bem situado para armar confusõesmas minha avaliação coincide com a tua. De todos os modos, se voltasse a vê-lo e observar algo suspeito, me faria saber isso? - É obvio. Héléne apontou para um banco desocupado debaixo de uma castanheira. Sentemos-nos ali e me conte algo sobre esse magnífico inglês que conseguiste? Maggie sentiu uma estranha relutância a falar de Rafe.


- É rico, aborrece-se e está em Paris. No momento gosta. Antes de sentar-se tirou uma folha do banco. Não há nada mais a contar. - Se você o diz. Os olhos escuros de Héléne a olharam com ceticismo. Era o momento de trocar novamente o tema. - Conhece Cynthia Northwood? Seu marido Oliver é membro da delegação britânica. Héléne pensou um momento antes de responder, movendo sua bolsa piano a modo de leque para agitar o opressivo ar. - É uma das inocentes descuidadas da vida. Está com amores com um oficial britânico, o comandante Brewer, da guarda real, e não lhe importa quem saiba. Tendo conhecido ao seu marido, compreendo porque se extraviou, mas não tem a menor discrição. Porque me pergunta por ela? - A verdade é que não tenho nenhum motivo, fora de que ontem à noite me contou muitíssimas coisas que normalmente não se diz a uma total desconhecida. É imprevisível, acrescentou com gesto preocupado, e como está conectada com a delegação britânica poderia meter-se em algo que não entende. - Tem razão, a senhora Northwood é do tipo de mulher que solta segredos irrefletidamente. Mas se se leva mal com seu marido, é provável que não tenha acesso a informação importante. - Isso é verdade, mas não possamos nos permitir passar por cima nenhuma possibilidade. Poderia averiguar algo sobre seus amigos, além de seu Comandante? Seu amiga assentiu e ela continuou- Outra coisa, sabe algo sobre o Conde do Varenne? Héléne a olhou preocupada. - Sim, e nada bom. Esse é perigoso. Está envolvido em sua conspiração? - É possível. Sabe onde poderia encontrá-lo de modo casual? - Está acostumado a assistir às noites noturnas de lady Castiereagh. Mas tome cuidado quando o conhecer, amiga minha. Dizem que escreve seu nome com sangue. Apesar do calor da tarde, Maggie sentiu um calafrio em toda a coluna. Disse-se firmemente que isso era só uma reação às melodramáticas palavras de Héléne. Se os alvos eram Castiereagh e Wellington, bem poderiam apagar o Varenne da lista de suspeitos. Mas de todo modo queria conhecê-lo, para não deixar escapar nenhum detalhe. Essa noite Rafe a levaria ao teatro; depois poderiam ir ao salão da Embaixada britânica e, com sorte, o Conde ultra monárquico estaria ali. Mas se Varenne não estava envolto na conspiração, porque pensar nele lhe produzia essa inquietante sensação de perigo? Quando Rafe chegou a casa de Maggie para recolhê-la para ir ao teatro, ela entrou no salão com um brilhante traje cinza prateado com reflexos azuis e verdes nas dobras. Estava tão formosa que lhe doeu olhá-la. Fez uma respiração profunda e lenta. A paciência não ia dar fácil. - Lamento te ter feito esperar, excelência. Vamos? A voz melosa era amistosa e íntima. Ele mesmo se surpreendeu com a tranqüilidade


com que lhe saiu a voz ao responder: - Está particularmente formosa esta noite, carinho. Serei a inveja de todos os homens de Paris. Ela agitou a cabeça com expressão aflita. - Decepciona-me, excelência. Supondo que um homem como você, tão famoso por suas maneiras, poderia me oferecer uma lisonja mais imaginativa. - Só digo a verdade, Condessa - respondeu ele acompanhando-a. As lisonjas seriam inúteis com uma mulher de sua acuidade. Sorriu-lhe travessa. - Minhas desculpas por te subestimar. Certamente adula em um nível mais elevado. Uma mulher acostumada que lhe elogiem sua aparência prefere muito ouvir mentiras sobre sua inteligência. Sorrindo, ele a ajudou a subir no carro. Necessitaria de todo seu engenho e encanto para seduzi-la; fazia anos que não se sentia tão vivo. Estava vivendo aborrecido por ter tanto dinheiro e tantas mulheres com os que não sabia o que fazer, e quanto mais difícil lhe fosse trabalhar Maggie, mais doce seria o prêmio no final. Quando o carro empreendeu a marcha pela Alameda dê Capucines, Maggie abandonou o tom brincalhão. - A conspiração está se complicando, disse. Tenho um relatório fidedigno de um perigo para Lorde Castiereagh dentro das próximas duas semanas. - Demônios! O que diz? Desvanecida a lascívia, escutou atentamente a pouca informação que tinha Maggie. Por sua cabeça passou fugaz a pergunta de quem seria seu informante; outro cliente da casa de jogo, sobre o travesseiro, essa tarde? Mas desprezou o pensamento para fazer considerações mais sérias. - Talvez visite esse clube esta noite depois que te deixe em casa. - Não creio que sirva de muito. Dificilmente poderia perguntar às pessoas que trabalham ali os nomes dos homens que estavam falando de assassinato ontem à noite. - É certo, mas esses homens poderiam ser clientes regulares. Se fizer uns comentários contra Castiereagh ou Wellington, é possível que um deles cerque conversação comigo. O silêncio dela lhe foi insuportável, de modo que acrescentou: Não sou totalmente incapaz de sutilezas, sabe? - Não, claro - disse ela, certamente não convencida. Suponho que sabe o suficiente para ir armado, não é? Há oficiais franceses dedica dos a insultar aos estrangeiros com a esperança de começar um duelo. Sendo inglês você seria um prisioneiro perfeito. Não tão bom como um prussiano, mas atraente de todo modo para um francês beligerante. - Comove-me seu interesse em que continue minha existência. - Não se congratule excelência - respondeu ela mordaz. Simplesmente me desgosta perder um competidor de xadrez em meio a uma partida. Ele não pôde distinguir se o matiz de sua voz era de sarcasmo ou de humor. - Se te vir obrigado a um duelo, continuou ela, creio que o melhor seria escolher pistolas.


A maioria dos oficiais franceses são espadachins fabulosos, e é estranho o estrangeiro capaz de superá-los. Rafe esteve a ponto de lhe perguntar por que confiava em sua pontaria quando recordou uma tarde, muitos anos atrás, em que os dois estiveram praticando tiro ao alvo na galeria de armas de um amigo. Devia recordar sua perícia. Margot era igualmente boa, a única mulher que tinha conhecido em sua vida capaz de disparar tão bem como um homem. Essa era uma das muitas coisas que lhe tinha ensinado seu pai, que a tratava como se tivesse sido um filho e não uma filha. Uma das muitas coisas que a faziam diferente de todas as mulheres que tinha conhecido. O carro se deteve diante do teatro. Maggie atraiu muit íssima atenção dos olheiros quando ele a ajudou a descer do carro. Ela representou seu papel, repartindo coquetes sorrisos ao seu redor. Ninguém que os tivesse estado observando teria imaginado que era uma espiã de sangue-frio e não uma ardente cortesã. Guiou-a pela escada até seu camarote particular. A obra era excelente, e durante minutos inteiros Rafe esqueceu todo pensamento sério, mergulhado no humor do Tartufo de Moer. Mas à medida que avançava a representação, foi percebendo cada vez mais a proximidade de Maggie. Quando começou o segundo ato, pôs despreocupadamente o braço sobre o respaldo de sua poltrona, sem tocá-la, mas o suficientemente perto para sentir o calor de sua pele. Agradou-lhe ver que ela se inclinava um pouco, como se estivesse absorta na obra; mas não era Moer a causa desse rubor em suas maçãs do rosto; era tão consciente dele como ele dela, e supôs que não confiava em si mesma para relaxar apoiada em seu braço. Bem. Deslizou brandamente. As pontas dos dedos pelo seu ombro nu. Ela estremeceu, e empunhou com mais força o leque dobrado. Ele se perguntou até onde poderia chegar sem que ela o obrigasse a deter-se; não muito mais, supôs. Voltou a apoiar o braço no respaldo; pouco a pouco ela relaxou e voltou a apoiar-se no respaldo acolchoado, quase lhe roçando o braço com os ombros. Era um jogo agradável. Estava pensando na possibilidade de lhe dar uma massagem na nuca quando ouviu um rumor de grunhidos na platéia; alerta imediatamente, retirou o braço e olhou por cima do corrimão do camarote. O rumor se converteu em estrondo e viu uns homens dando-se empurrões. Os atores começaram a gritar suas falas para fazerem-se ouvir, mas suas vozes foram apagadas pelos gritos de Vive-lhe Roi! e Vive l'Empereur! proferidos pelos bandos contrários. Ao ator que lhe tocou falar a seguir, lhe jogaram frutas, e todo o elenco fugiu a esconder-se nos bastidores. Algumas pessoas do público levantaram bandeiras brancas, em sinal de apoio ao Rei. Quando os bonapartistas começaram a brandir bandeiras violeta. Rafe compreendeu que ia se armar uma briga. Recordou a experiência mais terrível de sua vida, uma vez em que ficou preso no meio de um distúrbio de rua; a platéia ia nessa mesma e perigosa direção. Os monárquicos superavam em número os bonapartistas e uma a uma foram rotas as


bandeiras violeta. Um homem fornido que levava uma bandeira com a águia imperial desapareceu no chão embaixo de brutais murros e patadas. Uma mulher chiou e sua voz se cortou bruscamente. Os gritos de Vive-lhe Roi! Vive-lhe Roi! converteram-se em um canto ameaçador que fez vibrar as paredes e o teto. Rafe olhou a Maggie e viu que contemplava em silêncio a cena, com o rosto impassível; só seus lábios apertados indicavam que estava preocupada. Enquanto olhava seu sereno perfil e seus formosos cabelos dourados, repentinamente teve a horrorosa visão de Maggie rodeada e derrubada por homens grosseiros; a cena foi tão nítida que por um momento lhe apagou a realidade do teatro. Ela lutava freneticamente para liberar-se, mas os atacantes eram muito numerosos e ela desapareceu sob as cruéis mãos. A horrorosa imagem lhe produziu o desesperado impulso de afastá-la antes que a violência se apoderasse de todo o teatro. Agarrou-a pelo braço e a levantou da poltrona. - Vamos, resmungou. Temos que sair daqui. Quase a arrastou até a porta do camarote. O alvoroço abaixo apagou o som de sua voz e ela resistiu a princípio. Ele esteve a ponto de agarrá-la nos braços e levá-la no colo pelo corredor quando ela se rendeu. Outros assistentes também estavam começando a desocupar os camarotes, mas Rafe foi mais rápido. Passou o braço pela cintura e a guiou para a escada mais próxima. A meio caminho para o andar baixo encontraram o passo fechado pelos rufiões que subiam correndo. Os dois se detiveram e lhes brilharam os olhos à vista de Maggie. Sem esperar para ver iam atacar, Rafe enterrou fortemente o punho no ventre do mais próximo. O homem caiu sobre seu companheiro emitindo um rouco chiado. Enquanto os dois homens tentavam se agarrar para não cair escada abaixo, ele agarrou a mão de Maggie e correu escada abaixo. Sem protestar, ela recolheu as saias com a mão livre e correu veloz junto a ele, agarrada firmemente em sua mão. Ao final da escada encontraram um corredor deserto. À direita ouviram os ruídos da multidão alvoroçada, de modo que giraram à esquerda e continuaram correndo até chegar à saída. Uma vez fora, viram como saíam do teatro em turba os aristocratas e os plebeus. Um homem corria pelo bulevar chamando aos gritos a guarda real. Felizmente o carro de Rafe estava esperando não muito longe dali. A toda pressa a fez subir e em poucos minutos já se afastaram do teatro. As saias de Maggie rangeram quando se sentou em um rincão do carro. Ao Rafe seguia pulsando desbocado o coração. O perigo para a segurança de Maggie tinha ativado nele a reação protetora mais primitiva e ainda se sentia estremecido por ela. Impulsivamente se sentou ao seu lado e a abraçou; precisava sentir-se seguro de que estava bem. Ela estremeceu e levantou a cara para ele, sua boca procurando a dele. Tocaram-se suas línguas e de repente o beijo adquiriu uma frenética intensidade. Colocou-lhe as mãos sob a jaqueta e começou a lhe friccionar as costas, lhe enterrando as unhas nos músculos. Vagamente ele compreendeu que esse contato com o perigo desencadeou nela algo


escuro e importante que o excitou a uma loucura igual. Afundaram-se na almofada de veludo que cobria o assento; sentiu-se embriagado por seu exótico aroma; enterrou a cara em seu pescoço lhe beijando o acelerado pulso. A respiração ofegante dela enchia o silêncio do carro. Recordando que sempre tinha tido os lóbulos esquisitamente sensíveis, sua boca seguiu a linha de sua mandíbula até chegar à orelha, lhe mordiscando o lóbulo. Ela afogou um gemido, ficou rígida e jogou a cabeça para trás, abrindo as pernas para que seu joelho se deslizasse entre elas. Retorceram-se, apertando-se um contra o outro, seus corpos ansiosos de um contato total, impossível naquele espaço tão reduzido. Novamente uniram suas bocas, compartilhando um mesmo fôlego ardente, ávido. Ela apertou contra ele seus exuberantes e tensos peitos. Ele desceu as palmas abertas por seus lados, acariciando sua estreita cintura até as deliciosas curvas de seus quadris. O carro se sacudiu ao passar por um buraco e quase o jogou no chão; ele se levantou um pouco, apoiando um ombro no painel lateral e um pé no assento do frente; ela se adaptou a sua nova posição apertando sua pélvis contra a dele. Tinha a coxa firme e bem formada, e acariciando para baixo descobriu que a saia lhe tinha subido até o joelho. Ouviu o frufrú da seda quando seus dedos lhe roçaram a panturrilha coberta pela meia. Se tivesse sido capaz de raciocinar teria movido a mão com mais lentidão, mas tinha perdido a razão. Acariciou-a para cima, passando por cima da liga até a pele nua da parte interior da coxa. Ela conteve o fôlego e de repente afastou a cabeça da dele. - Basta! Rafe a olhou aos olhos e ficou imóvel. À luz da rua viu que, ainda havia desejo em sua cara, mas a loucura tinha desaparecido. O mesmo ocorria a ele. Embora a paixão seguisse ardendo em suas veias, e como queimava! A loucura tinha diminuído. Intimidou-o perceber do muito que tinha perdido seu autodomínio. Instintivamente se afastou. Embora seu corpo desejasse terminar o que tinham começado, não fez a menor tentativa de persuadi-la a continuar. Com infinito cuidado se levantou e foi sentar se no assento da frente. Os músculos lhe vibravam de tensão. Maggie se endireitou e cobriu as pernas nuas com a saia. - O que foi isto? Sua voz trêmula desmentia a trivialidade de suas palavras. - O contato com o perigo costuma provocar um apaixonado desejo de celebrar a vida disse ele, tentando de parecer indiferente, como se não tivessem estado a ponto de arrancarem-se mutuamente a roupa. Agradeceu que a escuridão ocultasse seu embaraçoso estado de excitação. - O perigo não foi tão grande, disse ela. Satisfeita por haver alisado o vestido, começou a arrumar o cabelo. Essas cenas são bastante comuns. Agora que têm o poder, os monárquicos querem intimidar ao resto da França. Chamam-se de Terror Alvo. Se nos tivéssemos ficado em nosso camarote e agitado lenços brancos teríamos estado bastante a salvo. - Embora admire seu aprumo, disse ele em tom neutro, ninguém está totalmente a salvo durante um distúrbio destes.


Voltou a passar por sua mente a horrorosa imagem do Maggie atacada por homens rudes, e estremeceu. Se tivesse estado sozinha, um lenço alvo não lhe teria servido de defesa diante homens como os que se encontraram na escada. - Posto que ao parecer tem mais valentia que sensatez, sinto-me responsável por sua segurança, ao menos até que encontre o nosso assassino. Ela tirou uma agulha do cabelo e com ela reafirmou um cacho solto. - Que pena que perdêssemos o resto dessa magnífica obra. Menos mal que já vi Tartufo, e ter saído antes significa que chegaremos numa boa hora ao salão de lady Castiereagh. Ele desejou rir da absurda forma como os dois tentavam não falar desse espetacular estalo de paixão. - O que, nenhuma reclamação? - Isso seria absurdo posto que não sou uma donzela, disse ela cortante. Fez uma inspiração profunda e continuou: disseram-me que o Conde do Varenne está acostumado a assistir às noites de lady Castiereagh. Embora seja improvável que um monárquico esteja atrás de nossa conspiração, de todo modo quero conhecê-lo. Pensou um momento e acrescentou: Disseram-me que é um homem terrivelmente perigoso. - Lembrarei. Acredita que me desafiaria a duelo? - Não, creio que é mais do tipo “adaga nas costas”. - Dá a impressão de ser um homem encantador. Se nos encontrarmos com ele, me recorde que devo ter as costas apoiadas na parede. Começou a desvanecer a inquietação por ter perdido o controle e ficou a complacência pelo progresso que tinha feito. Maggie estava cada vez mais perto de render-se; não lhe cabia dúvida de que muito em breve estaria disposta a aceitá-lo. E muito em breve depois disso, ele se encarregaria de que se livrasse de seus outros amantes. Satisfeito com essas conclusões, estirou as pernas todo o possível nesse reduzido espaço. - Vamos; espero que lady Castiereagh tenha planejado um bom jantar. Não há nada como um distúrbio para despertar o apetite de um homem.

Capítulo 8

Enquanto o carro estralava pelo bulevar para a Embaixada britânica, Maggie ia com as mãos entrelaçadas no regaço, tão fortemente apertadas que os dedos deviam estar alvos dentro das luvas. Ia pensando se sua voz teria delatado seu terror durante o alvoroço do teatro. O incidente lhe tinha evocado seus piores pesadelos com todos os horríveis detalhes; ficou tão paralisada pelo terror que quase não podia mover-se quando Rafe a tirou do teatro.


Possivelmente não tinha havido muito perigo real, por rotina sempre levava um lenço alvo e um violeta na bolsa, no caso de, mas o pânico era imune à razão. Embora se tivesse obrigado a permanecer no teatro sem ceder ao seu medo, foi um alívio sair com o Rafe. Geralmente brigava se um homem tentava obrigá -la a fazer algo contra sua vontade, mas não essa noite, diante da furiosa massa de humanidade enlouquecida. Tinha sido um profundo consolo sentir seu forte braço rodeando-a, e um absoluto prazer vê-lo despachar com tanta destreza a esses dois rufiões. O Duque do Candover estaria acostumado a isso, certamente; nem sequer lhe tinha enrugado a jaqueta, e não tinha dado amostras de mais preocupação que se uma carreta atirada por uma mula lhe tivesse interceptado o carro. Admirou seu sangue-frio. A maioria das vezes ela podia igualá-lo, mas não quando uma multidão alvoroçada lhe recordava a horrível cena que matou o seu pai e ao Willis e lhe mudou a vida para sempre. Tentou não pensar nesse apaixonado abraço, embora seu corpo vibrasse de frustração. O medo fez estalar a atração que sempre tinha sentido por ele, até lhe produzir um pasmoso grau de necessidade. Embora ele respondesse com a mesma paixão, quando se separaram a olhou como se fosse uma desconhecida. Deus santo, o que pensaria dela? Esse pensamento a fez sorrir com tristeza. A opinião que ele tinha dela já era tão baixa que talvez ter atuado como uma lasciva não trocava nada. Boa coisa que tivessem estado em um carro estreito porque senão, só Deus sabia o q ue teria acabado. Em desastre, nisso teria acabado. Quase lhe tinham deixado de tremer as mãos quando chegaram à Embaixada britânica, na Rué du Faubourg St. Honoré. Quando Rafe estendeu a mão para ajudá-la a baixar, ela sorriu, lhe dizendo com o mais encantador acento húngaro: - As noites de lady Castiereagh são esplêndidas, oferece a melhor conversação de Paris. Aqui a gente pode ver qualquer personalidade. Quando entraram, saudou-os lady Castiereagh em pessoa. Emily Stewart não era famosa por sua formosura nem por seu engenho, mas era uma mulher amável, e o amor que havia entre ela e seu marido era evidente. - Boa noite, Candover, que agradável lhe ver - saudou Rafe lhe oferecendo a mão. Confio em que Magda lhe tenha feito sentir-se bem-vindo em Paris. Ele se inclinou sobre a mão de sua senhoria. - Efetivamente. A Condessa inclusive me levou a um teatro com distúrbio e tudo esta noite, para que esteja bem informado dos acontecimentos de Paris. - Isso é injusto, excelência - protestou Maggie indignada. Você escolheu o teatro. Cheguei a pensar que talvez tivesse organizado a briga como alternativa à obra. - Infelizmente não é necessário procurar muito longe para ver um distúrbio, disse lady Castiereagh. Há distúrbios noturnos nos jardins das Tullerías, duelos quase diariamente entre oficiais franceses e aliados. Nos quatro teatros onde tenho camarote houve distúrbios, e esses são os teatros mais formais de Paris. Olhou por volta da porta e viu entrar um outro grupo. Agora devo lhes deixar, mas espero falar com vocês mais tarde. Há alguém a quem desejam


ver? Há toda uma multidão esta noite... - Está aqui o Conde do Varenne, Emily? - perguntou Maggie. Entre as sobrancelhas de lady Castiereagh apareceu uma leve ruguinha, mas se limitou a responder: - Está com sorte, chegou faz uns cinco minutos. Está ali, nesse extremo do salão, falando com um oficial russo - fez uma leve inclinação de cabeça e se afastou a ocupar -se de seus deveres de anfitriã. O esplêndido salão de recepção estava abarrotado de gente, e se ouviam vários idiomas, embora preponderasse o francês. Lorde Castiereagh e o embaixador britânico, sir Charles Stuart, estavam em um grupo com o Príncipe Hardenburg, o chanceler prussiano e o Imperador da Áustria - Francisco I, entre outros. As negociações estavam em uma fase crítica nesses momentos e as figuras chaves trabalhavam dia e noite por chegar a acordos. Pouco a pouco os aliados estavam começando a aceitar o plano para um exército de ocupação proposto por Lorde Castiereagh e apoiado pelo Wellington. Maggie deteve um momento seu olhar em Castiereagh; era um homem alto e de aparência agradável, reservado em público, mas generoso e singelo em sua vida privada. O ministro do exterior era conhecido por sua inteligência e irreprovável integridade, e sua morte seria uma terrível perda, pensou Maggie, apertando as mandíbulas; não seria vítima do terror político se ela pudesse evitar. Olhou o seu acompanhante; Rafe também estava olhando ao ministro britânico e em sua cara se refletiam pensamentos similares aos seus. Pressentindo seu olhar, ele desceu a vista e por um instante se olharam em perfeito acordo. Havia muitos britânicos presentes, e Rafe conhecia todos, de modo que lhes re sultou fácil avançar indiretamente para sua presa, saudando e conversando aqui e lá. À medida que se aproximavam, Maggie observava dissimuladamente o Conde. Era um homem fornido, de estatura média que rondaria os cinqüenta anos, de porte elegante e ar de a utoridade. Repassou mentalmente o que sabia dele. Último remanescente de uma antiga família, da Revolução tinha estado envolvido em tentativas monárquicas de recuperar o poder na França. As circunstâncias o tinham convertido em um homem perigoso e oculto q ue certamente tinha o conhecimento para organizar uma conspiração. Durante dez anos foi governador de uma província russa em nome do Czar; a derrota de Napoleão o levou de volta a França, e na atualidade estava dedicado a devolver seu antigo esplendor a sua propriedade nos subúrbios de Paris. Sendo um dos monárquicos mais influentes, acreditava que logo o escolheriam para um posto governamental importante. Quando já estavam muito perto do Conde, Maggie se alegrou ao ver que quem o acompanhava era o Príncipe Orkov, com quem tinha falado em várias ocasiões. Aproveitando um momento de silêncio entre sua presa e o Príncipe, agarrou firmemente o Rafe pelo cotovelo e o levou até eles. - Príncipe Orkov - cantarolou, que prazer voltar a lhe ver. Creio que não lhe via desde a festa na casa da baronesa Krudener. O Príncipe Orkov a olhou com um brilho de sincero prazer masculino em seus olhos.


- E isso foi há muito tempo, Condessa - lhe disse inclinando-se sobre sua mão. Fizeram-se as respectivas apresentações, e o radiante sorriso social de Maggie se congelou quando seus olhos se encontraram com os do Conde do Varenne. Em geral os homens a olhavam com visível admiração por seus encantos físicos; às vezes isso lhe resultava incômodo, mas considerava normal a sensualidade e agradável a paixão. O olhar de Varenne era gelo puro, a avaliação fria e objetiva de um comprador considerando uma possível aquisição. Por um instante se desconcertou. Era capaz de fazer frente a qualquer tipo de paixão, fosse de amor, raiva ou ódio (gostava mais Rafe nessa outra época, quando tinha emoções), mas ao que parecia o Conde era um homem alheio a essas debilidades humanas. Embora nada segura de qual seria a melhor maneira de interrogá-lo, lançou-se ao ataque com um sorriso: - Ouvi falar de você, monsieur. Deve ter sido um imenso prazer para você ter voltado para seu País e a suas propriedades depois de tantos anos de exílio. Ele a olhou em silêncio um instante, seus olhos negros absolutamente velados. - Satisfação, certamente. Prazer é possivelmente uma palavra muito forte. Ela assentiu com um gesto pormenorizado. - Talvez a França lhe pareça muito mudada, mas agora você e seus compatriotas monárquicos têm a oportunidade de reconstruir o destruído. Ele torceu a boca. - Nunca conseguiremos isso totalmente, porque nos vinte e seis últimos anos hão mudado muitas coisas. O idealismo equivocado dos radicais destruiu a França. Burgueses arrivistas se fazem passar por aristocratas, a verdadeira nobreza foi dizimada ou empobrecida. Inclusive o Rei é só uma sombra do que foram seus antepassados. Quem poderia olhar ao Luis XVIII e ver o Rei Sol? Sua voz suave tinha um peculiar tom de comando. Seria pura imaginação sua ou seria real o tom de ameaça que acreditou detectar? - Parece você muito pessimista para ser um homem do partido no Governo. De verdade pensa que a situação é tão desesperada? - Difícil, Condessa, não desesperada. Esperamos muito tempo para recuperar nosso patrimônio; não voltaremos a perdê-lo. Novamente a percorreu com o olhar, com tranqüila indiferença. Se me perdoar, esperam-me em outra parte. Com uma cortês inclinação de cabeça para os outros, afastou-se do grupo. Maggie se voltou para o Rafe e o Príncipe Orkov, que estavam falando de cavalos, esse tema de inacabável interesse para a metade masculina da espécie. - O Príncipe nos convidou a uma dança que vai dar depois de amanhã, lhe disse Rafe. Estamos livres para aceitar? Maggie supôs que na lista de convidados haveria alguém de especial interesse. - Aceitamos com muito prazer, Alteza - disse cordialmente. Suas festas são lendárias. O Príncipe lhe agarrou a mão e a acariciou de um modo que advertiu a ela que não lhe convinha estar a sós com ele.


- Sua presença aumentará seu brilho, Condessa. Maggie liberou sua mão com certa dificuldade e, depois das cortesias normais de despedida, continuaram seu percurso pelo salão, conversando com vários outros convidados para que não parecesse que tinham perdido interesse depois de falar com o Varenne. Mas ao cabo de meia hora já estavam no carro rumo à Alameda dê Capucines. - Que julgamento formou do Conde? - perguntou-lhe Rafe tão logo estiveram sozinhos. - Alegra-me que a escolha de objetivos o descarte como nosso conspirador, porque me pareceu absolutamente desumano, tão perigoso como dizem. Recordou o negrume do seu olhar e reprimiu um estremecimento. Quem estará na dança de Orkov? - O General Roussaye, nosso suspeito bonapartista. Sorriu-lhe com expressão indolente. Ponha esse vestido verde, a não ser que voltar a usá-lo tão cedo arruíne sua reputação. - Creio que minha boa fama vai superar isso, respondeu ela. Só sou uma pobre viúva magiar. As pessoas serão indulgentes. Ele entrou na casa com ela, mas não despediu seu carro. Durante um instante de incerteza ela teve a impressão de que ele estava considerando a possibilidade de beijá-la. Não se atreveu a ficar ali para comprová-lo. Dirigiu-se rapidamente para a mesa de xadrez. Ele a seguiu, e reataram a partida onde a tinham deixado. Maggie se perguntou se alguém poderia acreditar que os momentos a sós com o Rafe eram passados jogando xadrez. Custava-lhe acreditar. O jogo se desenvolveu em meio de longas pausas e concentrada contemplação, e acabou empatado. Maggie pensou que esse era um símbolo apropriado posto que era a história de sua relação com ele. Tão logo acabou a partida. Rafe ficou de pé. - Vou ao Palais Royal, a ver se consigo descobrir ao misterioso conspirador. Foi no Café Mazarin onde ouviram a conversação? Ela assentiu e o seguiu até a porta, observando sua imponente altura, sua força, segurança, seu absoluto domínio; sem dúvida se sentiria insultado se ela insinuasse a menor dúvida a respeito de suas capacidades; de todo modo sentiu um absurdo desejo de lhe dizer que tomasse cuidado. Estranhamente, pareceu que lhe adivinhava o pensamento. - Não tema, não agitarei o vespeiro. Agarrou-lhe a mão e a beijou, não com roçar formal e ligeiro de sua boca, e sim muito a sério, apertando seus lábios quentes e sensuais sobre seus dedos. Depois que partiu, ela fechou involuntariamente a mão em um punho, para defender do formigamento que lhe produziu o beijo em todo o braço. Bastou essa suave carícia para reviver o desejo que quase a avassalou no carro. Mordazmente se disse que talvez ele tivesse que cortar entalhes nos postes de sua cama para levar a conta das mulheres com que se deitava; com tantos cortes os postes já estariam reduzidos a um nada. Com a cara tensa subiu ao seu quarto. Por isso ao Rafe se referia, seu senso de humor não lhe dava a menor perspectiva de diversão.


O Palais Royal tinha um passado comprido e variado. A parte mais antiga, construída pelo Cardeal Richelieu, tinha sido residência de diversos membros da realeza. Pouco antes da Revolução, o Duque do Chartres tinha construído os enormes edifícios que rodeavam os jardins, com locais para lojas nos andares inferiores e apartamentos nos superiores. Nesses momentos o Palais Royal constituía o centro principal de diversão para os franceses; oferecia todo tipo de vícios aos homens que se congregavam ali. Por fora era o único lugar bem iluminado de Paris; folgazões de todas as nacionalidades passeavam sob suas arcadas ou formavam grupos junto a suas colunas. As únicas mulheres visíveis ali eram da classe mais baixa, e uma delas se aproximou de Rafe quando este desceu de seu carro. Ele olhou o decotadíssimo vestido com certa curiosidade, pensando como fazia para que não caísse; menos mal que a noite era quente, senão estaria em perigo de agarrar uma pneumonia. - Veio aqui pelo prazer, milorde inglês? - perguntou-lhe com voz rouca, com um sotaque provinciano. A mulher tinha exercido sua profissão durante o tempo suficiente para fazer rapidamente uma idéia da nacionalidade e riqueza de um homem. A grossa capa de maquiagem não conseguia lhe ocultar as rugas. A cara de Rafe não refletiu sua repugnância. Era uma mulher tosca, sem atraentes e qualquer homem que provasse seus encantos corria o risco de contrair sífilis, mas não era melhor nem pior que as outras cinqüenta mulheres que vagavam pelas arcadas e jardins. E quanto a isso, diferia muito pouco de muitas das grandes damas de sociedade, além do salário, mais baixo e mais honrado. - Sinto-me com sorte esta noite, respondeu cortesmente. Hão-me dito que há bom jogo no Café Mazarin. - Por ali se vai ao café. Agitando coquetemente a cabeça, a prostituta acrescentou: Talvez depois deseje uma acompanhante com quem celebrar ou lamentar? - Talvez. Caminhou entre uma multidão de oficiais aliados, e logo viu o rótulo do Café Mazarin. No térreo havia uma joalheria, ainda aberta àquela hora para que algum jogador afortunado pudesse comprar algumas quinquilharias para dar de presente a sua dama, se quisesse. Por uma porta contígua a da loja, uma escada conduzia ao café. Uma mulher com traje e jóias muito chamativos estava atrás do mostrador, avaliava aos novos clientes com seus perspicazes olhos escuros. Agradada pelo que viu de Rafe deu a volta ao mostrador e se aproximou de saudá-lo pessoalmente. - Boa noite, milorde. Veio jantar ou jogar, ou talvez ir para cima? Acima significaria mulheres de nível mais elevado que as que faziam a rua fora. Com sorte, não teriam sífilis nem roubariam as carteiras com seus dentes. - Hão-me dito que há bom jogo aqui, madame. É possível que também jante. A mulher assentiu e o guiou através da sala de jantar até o salão de jogo. Este era como qualquer das outras casas de jogo em que tinha estado. Em uma das esquinas estava a mesa vermelha com negro para o Trent ECT quadrante, e em outra a roleta. No resto da sala tinha


distribuídas mesas para jogos de naipes como o faraó e o whist. Entre os clientes tinha de tudo, dos jovens inocentes aos acostumados jogadores que os roubavam. Percebia-se o nervosismo dos jogadores na sala cheia de fumaça. No meio do monótono murmúrio de vozes se ouvia o ruído dos jogos de dados e das cartas ao cair sobre a toalha de mesa verde. Em conjunto, era o típico antro de iniqüidade e não o tipo de lugar que Rafe teria achado atraente. Mas ele estava ali para investigar, não por prazer, de modo que as duas horas seguintes as passou jogando em diferentes mesas. O whist era o único jogo que teria gostado de jogar, porque era mais uma prova de habilidade que de azar, portanto evitou essa mesa porque o jogo poderia absorvê-lo muito. Nas mesas de jogo de dados, cartas e a roleta, intercambiavam alguns comentários inofensivos com os outros jogadores, mais dedicado a escutar que a fa lar. A maior parte da conversação era sobre política, o que não o surpreendeu, embora só se comentasse coisas que se podiam ouvir em qualquer parte de Paris. A clientela desse estabelecimento era uma mescla de franceses e estrangeiros, mas se algum deles era extremista, mantinha a boca discretamente fechada. Uma hora passada da meia-noite. Rafe se estava preparando para partir e tomar um pouco de ar fresco quando lhe atraiu a atenção um homem magro de cabelos escuros que estava jogando na mesa do Trent ECT quadrante. Ao parecer, o homem levava um bom momento ganhando, mas de repente o abandonou a sorte e a banca levou todo o seu dinheiro. Uma larga cicatriz que lhe cruzava a bochecha se via branca à luz das velas quando meteu a mão em um bolso interior para tirar sua última aposta. Com gesto desafiante colocou um montão de bilhetes sobre um diamante vermelho. O silêncio que se fez na sala lotada indicou que todos estavam observando. Rafe estava muito longe para ver as cartas enquanto jogavam, mas a exultante exclamação do homem um momento depois foi um claro indício de que tinha ganho. Tudo isso ao Rafe não teria importado nada se o francês que estava ao seu lado não tivesse comentado: - Parece que Lemercier se tem voltado a embolsar uma boa soma de dinheiro. Esse homem tem a sorte do demônio. Esse sobrenome lhe soou conhecido, e ao cabo de um momento o recordou; havia um Lemercier na lista de suspeitos secundários que lhe entregou Maggie; se não recordava mau, era um oficial bonapartista. Observou atentamente ao homem da cicatriz quando se levantou da mesa de jogo. Tinha um porte militar; tocava -lhe comprovar se era o capitão Henri Lemercier. Quando o homem passou perto de onde estava, interpelou-o com naturalidade: - Aceita uma bebida para celebrar seu triunfo sobre a banca? - Aceito, respondeu sua presa sorrindo jovialmente. A banca lhe tirou seu dinheiro? A proprietária os instalou em uma mesa da cafeteria do estabelecimento diante uma garrafa de Porto ruim. Rafe descobriu que o homem era efetivamente o capitão Henri Lemercier, e que o oportunamente não era sua primeira bebida da noite. À medida que baixava o nível da garrafa. Rafe foi se inteirando de que o capitão


desprezava a todos os alemães, russos e ingleses, à exceção de seu atual acompanhante, e que era um demônio de homem. Muito em breve começou a gabar-se das numerosas vezes em que graças aos seus nervos de aço tinha ganho quando homens de menos têmpera se teriam retirado do jogo. Não era uma conversação muito instrutiva, mas a Rafe interessava saber se Lemercier era um cliente assíduo do Café Mazarin. («Ao menos as mesas revistam ser sinceras, amigo inglês.») Lemercier tinha os gestos nervosos e os olhos ágeis de um furão. Rafe supôs que era um viciado no jogo, o tipo de homem que faria tudo por dinheiro. Se o capitão tinha convicções políticas, as subordinaria facilmente ao seu lucro pessoal. Era bastante possível que fosse o francês ao que o contato do Maggie tinha ouvido ali a noite anterior. E se fosse, quem era o estrangeiro com quem falava? Ao cabo de meia hora de escutar as divagações do capitão, Rafe chegou à conclusão de que não conseguiria averiguar nada mais, e se levantou para partir; despediram-se com mútuas manifestações de estima e esperança de voltar-se para encontrar no Café Mazarin no futuro. Rafe tomou nota mental de que se alguma vez voltasse ali para procurar o Lemercier o faria a uma hora mais cedo para que o homem ainda estivesse sóbrio; não era um bêbado interessante. À saída pagou o Porto à mulher escondida atrás do mostrador e a ntes de baixar deu um último olhar à sala. Fechou os olhos ao ver que um homem loiro ocupava a cadeira que ele acabava de desocupar e começava a falar com o Lemercier. Apesar da fumaça e da clara forma francesa de vestir do recém-chegado, não teve nenhuma dificuldade para identificá-lo. Era Robert Anderson, o onipresente ajudante da delegação britânica, o amante de Maggie. O inglês ia nervoso, embora não fosse a primeira vez que fazia esse trajeto com os olhos enfaixados. A mensagem enviada pelo Serpent era lacônica, não explicava para que o necessitava. Uma vez mais o carro de aluguel deu inumeráveis voltas pelas ruas de Paris, e seu silencioso acompanhante rejeitou toda tentativa de conversação. Mas esta vez, quando chegou a presença do Serpent, a voz sibilante lhe ordenou que tirasse a atadura dos olhos. Sentiu uma pontada de medo, pensando que isso significava que não sairia vivo dali, mas uma rouca risada lhe dissipou o temor. - Não tema, mon anglais, não me vai reconhecer. Necessita dos olhos para o que deve me dizer esta noite. O inglês tirou a atadura e se encontrou em uma sala meio em penumbras, iluminada tenuemente pela luz de uma só vela; os únicos móveis eram um escritório e duas cadeiras. O Serpent estava sentado em uma, atrás do escritório; uma máscara lhe cobria a cara e uma capa negra lhe tampava totalmente o corpo; era impossível ver se era alto ou baixo, gordo ou magro. - Quero um detalhado desenho do estábulo da Embaixada britânica, disse a figura negra sem incomodar-se em preâmbulos. Houve mudanças desde que a Princesa Borghese vendeu a casa ao Wellington, e preciso conhecê-las. Em particular me interessa saber onde guardam


os cavalos do Castiereagh. Quero que descreva a esses animais exatamente, tanto na aparência como em caráter. - Uma conspiração contra Castiereagh? - exclamou o inglês com os olhos exagerados. Se lhe ocorrer algo, o preço será terrível. Wellington é seu melhor amigo, e porá todo o exército britânico em busca dos assassinos. E uma investigação diligente poderia descobrir coisas em prejuízo dele. Só uma total confiança faria possível transmitir tanta informação. O Serpent voltou a lhe ler o pensamento e soltou um sorriso desagradável. - Não tem por que temer por seu indigno pescoço. Pense o que ocorrer ao Castiereagh parecerá um acidente. E muito em breve o ilustre Duque não estará em posição de investigar nada. Enquanto desenhava o plano da planta baixa do estábulo e o pátio, o inglês pensava rapidamente. Ao que parecia seu repelente anfitrião queria eliminar os dois principais oficiais britânicos, feito que tinha interessantes ramificações. Já tinha havido tolos atentados contra a vida de Wellington, mas em um atentado do Serpent não haveria nada tolo. O assunto era como podia usar essa informação em seu benefício? O Serpent lhe fez numerosas perguntas sobre as rotinas do estábulo e os moços de quadra, lhe exigindo que encontrasse as respostas a todas as que não soube responder nesse momento. Depois passou a perguntas sobre as rotinas diárias do Castiereagh e do Wellington. Cansado do interrogatório, o inglês disse irritado: - É que não sabe que o Duque prefere a companhia de gente inferior? Nem sequer vive na Embaixada. Como posso saber de todos os seus movimentos? - Sei muito bem que Wellington vive no hotel do Ouvrard, replicou-lhe Serpent. Entretanto, passa uma boa parte de seu tempo na Embaixada, e se você tiver os miolos de um roedor será capaz de inteirar-se do que necessito. Dentro de quarenta e oito horas quero um relatório com todas as respostas que não pôde me dar esta noite. - E se não quiser continuar ao seu serviço? Não era o momento oportuno para esse desafio, mas o inglês estava muito cansado e irritado para ser prudente. - Então está perdido, mon Anglais - disse-lhe Serpent em claro tom de ameaça. Posso fazê-lo ser assassinado, ou dar a conhecer sua traição ao Castiereagh, e então sua própria gente o destruirá, e publicamente, para que todos seus familiares e amigos, se os tiver, inteirem-se de sua humilhação. Não creia que pode comprar sua vida em troca de informação sobre mim, porque não sabe nada. Deu um golpe no escritório com a mão e se levantou. - Vive de minha tolerância, galo de briga de esterco. Está em meu poder, e tem a sorte de que sou um homem de honra. Se me servir bem prosperará, a menos que fique preso em sua própria estupidez. Se tentar me trair, é um homem morto. Essas são as únicas opções que tem. O inglês desceu os olhos, tentando ocultar seu medo, e isso foi o levou seu golpe de sorte. A mão que seu adversário tinha apoiada no escrit ório levava um grosso anel de ouro com um complicado brasão. Não cometeu o engano de ficar olhando-o, mas seu rápido olhar lhe serviu para ver que ao redor do escudo central se enrolava uma serpente de três cabeças.


Levaria tempo identificar ao proprietário desse anel, mas pelo menos tinha uma pista. - Servirei-lhe bem, murmurou fingindo-se derrotado. Por dentro o coração lhe saltava de exaltação. Por Deus descobriria quem era Serpent, e então o bode se arrependeria de seus insultos. Se jogasse bem suas cartas, sairia dessa convertido em um herói, um herói rico.

Capítulo 9

À manhã seguinte Maggie recebeu uma nota de Héléne Sorel na qual informava que um oficial francês descontente tinha perguntado em um café se alguém queria ganhar um dinheiro matando o Duque do Wellington com um disparo. Como o idiota fez a oferta diante de muitas testemunhas, em poucos minutos o prenderam. Maggie sorriu e deixou de lado a nota. Havia muitíssimos resmungões insatisfeitos na cidade, mas a maioria era tão inofensiva como ratos. Os homens como esse oficial tolo não era o problema. Começou a avaliar os resultados de seu trabalho e lhe morreu a risada; não tinha avançado nada na investigação. Na noite anterior Robin havia passado para vê-la e estiveram até tarde falando, mas sem chegar a nenhuma conclusão nova. Muitas possibilidades, muito pouco tempo; era muito frustrante. Passou o dia refletindo, repassando as informações que tinha e tentando encontrar alguma pauta, alguma pista, algo em comum, mas sem êxito. Só podia continuar como o estava fazendo e esperar que o General Roussaye tivesse a chave. Nem sequer por o vestido de cetim verde, seu predileto, para ir à dança do Príncipe Orkov melhorou seu humor. Esteve em silêncio enquanto Inge lhe arrumava o cabelo em uma cascata de cachos dourados. Nas curvas mais secretas de sua mente se perguntou quanta de sua tensão se deveria a Rafe. Embora confiasse em suas boas intenções referente a sua missão, isso era em quão único confiava. Só era um espião temporário; quanto ao lado pessoal, era como um canhão solto na coberta de um navio: descontrolado e perigoso. Ela era capaz de simular à perfeição que estava jogando amor sem queimar-se, mas sabia quão frágil era sua fachada. Para ela a falta de sentimento profundo era uma representação; para ele era uma realidade. Quando Inge lhe anunciou a chegada do Duque, adotou um semblante de simpatia e desceu para recebê-lo. Ao entrar no salão, a expressão de admiração de Rafe lhe distraiu a atenção de suas preocupações de espiã. - Está esplêndida esta noite, Condessa. Obrigado por pôr esse vestido. Combinará. - Com o quê?


Ele ofereceu-lhe um estojo forrado em veludo. - Com isto. Maggie abriu o estojo e afogou uma exclamação ao ver um colar de esmeraldas de rara beleza, acompanhado por pendentes combinando. Os finos engastes de ouro rodeavam delicadamente as pedras preciosas formando jóias que pareciam etéreas e ao mesmo tempo indecentemente suntuosas. - Pelo amor de Deus, Rafe, e para que isto? - Para você, é obvio. - De maneira nenhuma posso aceitar algo tão valioso. A gente pensaria que... - deteve-se. - Que é minha amante? Justamente disso se trata, querida. Sua voz profunda soou como uma carícia, e por um perigoso instante ela pensou como seria ser sua amante de verdade, não só de ficção. Depois endureceu a mandíbula. Embora fosse o homem mais atraente que tinha conhecido em sua vida, deixaria-se pendurar antes de se deixar conquistar por esse nobre indigno de confiança, por muito que ambos pudessem desfrutar. A conquista é conquista de todos os modos, e ela não era um troféu para nenhum homem. - Um resgate de rainha em pedras preciosas não é necessário para nossa farsa, excelência. Fechou violentamente o estojo e o devolveu. - Pois claro que é necessário, disse ele sem desalentar-se nem pegar o estojo- A metade da sociedade de Londres está em Paris nestes momentos, e meus hábitos não são exatamente um segredo. Sempre dei de presente quinquilharias a minhas amigas. As pessoas considerariam estranho que não fizesse o mesmo contigo. - Quinquilharias! - exclamou ela exasperada. Com o valor destas jóias poderia comprar a metade de um Condado inglês. - Exagera, querida. Não mais de um quarto, e teria que ser um Condado pequeno. Seu sorriso a divertiu e não pôde resistir a rir com ele. - Muito bem, se insistir, as aceitarei em empréstimo, até que acabe a comédia. Então pode guardá-las para suas próximas amantes de verdade. Ele agarrou o estojo de sua mão e a conduziu até um espelho grande que estava pendurado entre duas janelas. Colocou-se detrás dela e distraidamente lhe tirou o singelo colar de jade que usava. - Mas é que estas esmeraldas não ficariam bem em qualquer mulher. Estão melhores em uma cujos olhos se tornem verdes, combinando. Tirou o colar do estojo. Uma mulher que tenha o estilo e o semblante para usar o que você chama de resgate de uma rainha sem que este a domine. Não me ocorre nenhuma outra mulher em quem estas jóias fiquem tão bem. Passou o colar ao redor do pescoço e ela sentiu o contraste entre suas mãos cálidas e as pedras frias. O generoso decote de seu vestido de dança lhe deixava a descoberto o pescoço, os ombros e boa parte dos peitos; de repente se sentiu nua quando seus dedos lhe roçaram a pele. O desejo a percorreu por dentro como uma espiral, urgente, exigente. Aos dezoito anos tinha explorado as bordas mais próximas da sexualidade com esse mesmo homem atraente, irresistível. E o tempo não tinha feito outra coisa que intensificar seu desejo.


Seus olhos se encontraram com os dele no espelho. Ele apoiou as mãos em seus ombros nus e sensíveis, e quando falou não havia nenhum indício de brincadeira em sua voz: - Margot, por que não esquecer todas as complicações de nosso passado e sermos nós mesmos? É a mulher mais irresistível que conheci em minha vida; estar tão perto de ti sem te acariciar é uma boa maneira de me deixar louco. Começou a lhe friccionar a nuca com os polegares. Te desejo, e creio que você também me deseja. Por que não podemos ser amantes de verdade? Já não era o Duque cortês e sardônico que lhe punha os nervos de ponta, e sim o jovem franco por quem se apaixonou. Doeu-lhe o coração pelo que em outro tempo tinham tido e perdido. Tentou de recuperar a prudência. - Seria um engano, disse fracamente. Ele se inclinou para lhe beijar o lado da orelha que aparecia sob seus cabelos dourados, e depois continuou para baixo lhe mordiscando o pescoço. Suas mãos desceram por seus braços, roçando-os com a ligeireza de uma pluma e à altura da cintura a rodeou fortemente com seus braços e a apertou contra ele. Ela reteve o fôlego, tentando não sentir a intensa reação ao seu contato. - Nós dois somos adultos, com idade suficiente para saber o que desejamos, lhe sussurrou ele com voz aveludada. Não faremos nenhum dano, e sei que encontraremos um prazer especial juntos. Suas mãos subiram em uma carícia até as cavar sobre seus peitos; moveu-as lentamente em círculo e ela sentiu endurecer-se seus mamilos. Involuntariamente moveu os quadris se apertando contra sua virilha. Quando sentiu a pressão de seu volumoso membro, obrigou-se a ficar imóvel. - Não, maldito seja! - exclamou sem fôlego . Nada é tão simples. Ele colocou a mão direita por seu decote e começou a lhe beliscar brandamente o mamilo, baixando ao mesmo tempo a mão esquerda por seu ventre até a entrepernas. - É um não de verdade? - perguntou-lhe quando suas peritas mãos encontraram seus lugares mais sensíveis. Suas palavras dizem uma coisa, mas seu corpo diz outras. Isso era muito certo, e o fogo que abrasava seu corpo não era menos ardente que a confusão que alagava sua mente. Claro que o desejava; o desejo a debilitava, e não se atrevia a admitir que estava ao ponto de mandar ao diabo o passado e o futuro e deixar que lhe fizesse o amor no embriagador presente. Mas tinha aprendido a dominar-se na mais dura das escolas, e inclusive nesse momento sabia que era um engano assegurar que ninguém resultaria prejudicado; ela ficaria mais que machucada; ficaria aniquilada se voltasse a apaixonar-se por Rafe. Perdê-lo uma vez quase a destruiu, e um punhado de dias como seu amante não compensaria o sofrimento que essa intimidade lhe produziria. Tentou reunir as forças que necessitava para afastar-se dele. - Prometo que não será mais pobre por isso, Margot, disse ele nesse preciso instante. As esmeraldas são só o começo. Queria que fora sua puta! Esse conhecimento lhe provocou a fúria que necessitava para


resistir. - Não significa não! - afastou-se bruscamente e sem perceber levantou um braço para defender-se. Se tivesse querido dizer sim haveria dito sim! Ao girar lhe enterrou o cotovelo no plexo solar com uma força que o deixou sem fôlego. Rafe afogou uma exclamação e retrocedeu cambaleante. Ela o olhou consternada, retrocedendo até ficar apoiada na mesinha que havia sob o espelho. - Perdoe-me, disse com voz afogada. Não foi minha intenção te golpear. Ele se endireitou, esforçando-se para recuperar o fôlego. Seus olhos já não estavam serenos; brilhavam de fúria e de algo mais. Ela nunca havia sentido um medo físico dele, mas nesse momento percebeu agudamente sua altura, sua largura e sua enorme força atlética. Tinha ferido seu orgulho e esse era um golpe muito mais grave que um cutucão casual. O momento que ele levou para recuperar o fôlego lhe deu tempo para aferrar-se aos poucos fiapos que ficavam de prudência. - Tem sorte de que me tenham ensinado a não golpear nunca a uma mulher, disse com fúria glacial. Se fosse homem te daria uma lição que não esqueceria jamais. - Se fosse homem não teria passado por esta situação, suponho - demarcou ela com voz trêmula. - Não, supondo que não. Sua fúria começou a minguar. Sou bastante ortodoxo em minhas preferências. Sorriu-lhe timidamente. - Perdoar-me-á se te prometer não voltar a te golpear a menos que queira fazê-lo? Ele teve que sorrir. - Perdoada. Ela desceu os olhos e dedicou sua atenção a por as luvas de noite. Ele supôs que tinha que ter estado muito afetada para reagir com tanta violência e isso lhe pareceu prometedor. De todo modo sentiu um remorso de culpa por lhe ter causado infelicidade. A fria estratégia e a análise desapareceram quando ela levantou para ele seus olhos cinza verdes. Viu uma valentia e uma vulnerabilidade infinita nessas cinzas profundidades; com uma emoção que o fez estremecer, compreendeu que não era a enlouquecedora e esquiva Condessa a quem desejava. O que realmente desejava era voltar a ter Margot Ashton. Nesse momento teria dado seu título e a metade de sua fortuna para retroceder o relógio até esse amor sem complicações que compartilharam quando eram jovens. Embora isso fosse impossível, era evidente que a garota que tinha amado seguia vivendo em alguma parte dentro da espiã. Se era humanamente possível, ele faria ressurgir a Margot. Não se surpreendeu muito ao perceber que em sua mente sempre foi em Margot que ele pensava quando a via tal como era, ou como desejava que fosse. - Por que você não gosta de te chamar Margot? - perguntou-lhe. Ela o olhou um comprido, comprido momento, seus cambiantes olhos insondáveis. - Ser Margot dói muito - disse, como arrancando essas palavras de seu interior. Isso dizia tudo e não dizia nada, mas sua intuição lhe disse que não era o momento para


lhe pedir uma explicação mais clara. - Pomo-nos em marcha para chegar em boa hora a dança do Príncipe Orkov? - propôs depois de um instante de silêncio. Temos que caçar um General. - Muito certo. Maggie se voltou para o espelho e substituiu os pendentes de jade pelos de esmeralda. O dia que acabar nossa missão, devolverei-te suas «quinquilharias». - Com despreocupada destreza envolveu os ombros nus com o comprido xale de cachemira; depois se voltou para olhá-lo, novamente em seu papel da Condessa Janos. Vamos? Rafe lhe ofereceu o braço, agradado por não ceder ao veemente desejo de voltar a abraçá-la. De todo modo, quando a ajudou a subir ao carro, não pôde resistir e lhe acariciou brandamente os cabelos dourados; sentiu escorregar por seus dedos as sedosas mechas, desejando atrever-se a afundar as mãos nelas. Desejava-a mais que nunca, mas ela estava demonstrando ser mais difícil do que tinha esperado. Tinha acreditado que se renderia à paixão do m omento, como as beldades da sociedade que tinha conhecido, mas se havia equivocado. Mas Rafael Whitbourne não estava acostumado ao fracasso, e não o aceitaria. Tinha que haver uma maneira de conquistá-la, e por Deus que a encontraria. O salão de dança do Príncipe Orkov estava decorado com um bárbaro esplendor oriental; os lacaios foram disfarçados de guardiões de haréns turcos, e em uma sala contígua havia uma bailarina egípcia executando a dança do ventre. Inclusive a sociedade parisiense, de gostos difíceis de agradar, reconhecia que suas festas saíam do comum. Apesar da frustração que lhe produzia não fazer nenhum progresso em sua investigação, Maggie estava passando bem. Seu anfitrião lhe agarrou a mão e a olhou nos olhos com o típico sentimentalismo eslavo, mas felizmente estava muito ocupado para assediá-la. Durante a primeira parte da noite, Rafe permaneceu ao seu lado representando o papel de solícito amante, como se não tivesse havido nenhuma cena traumática entre eles. Mas para ele não tinha por que ter sido traumática; havia muitíssimas mulheres para escolher com quem aliviar sua frustração essa noite. Pela cabeça dela passou fugazmente a idéia de deixar que se saísse à sua, para despojar se da auréola de inacessibilidade. Depois de uma ou duas noit es ele se aborreceria e provaria sorte em outra parte. Desprezou bruscamente a idéia tão logo surgiu; não era outra coisa que uma monstruosa racionalização. Fossem quais forem os motivos que inventasse para permitir ao Rafe meter-se em sua cama, as repercussões emocionais seriam desastrosas. Já a alterava o suficiente tal como estavam as coisas. Cada vez que o olhava sentia seus lábios sensuais por seu pescoço, e começavam a lhe fraquejar as pernas. Resultaria difícil centrar a atenção no trabalho dessa noite. Embora o General Roussaye tivesse que estar na festa, não conseguiram localizá -lo entre a multidão. Maggie começou a temer que não o encontrariam. Passada uma hora, decidiram separar-se e esperar que melhorasse a sorte. A meia-noite chegou e se foi, serviram o jantar, reatou-se a dança e seguia sem encontrar


seu alvo. Exasperada entrou na sala onde a bailarina egípcia estava executando seu número para um grupo de convidados. Embelezada com vaporosos véus, braceletes e braceletes, a mulher vibrava ao ritmo de uma música de som estranho para ouvidos europeus, que tocavam três músicos situados detrás dela sobre um soalho baixo. Quando seus olhos se adaptaram à luz mais tênue, Maggie se deu conta de que acabava de encontrar o seu homem. Embora nunca lhe tinham apresentado ao General, uma vez alguém o assinalou e ela o reconheceu imediatamente. Michel Roussaye era de estatura por debaixo da média e de figura magra, mas forte; a primeira vista recordava ao Coronel Von Fehrenbach. O loiro prussiano era um aristocrata educado para a guerra, enquanto que o moreno francês era um plebeu cujos méritos lhe tinham dado sua fama. De todo modo, inclusive embaixo dessa tênue luz estava claro que no fundo os dois eram irmãos; nos dois se observava essa tenaz vigilância própria do homem de guerra profissional. Teria Roussaye tanta raiva interior como Von Fehrenbach? Dos três suspeitos, o bonapartista era o que tinha o melhor motivo para romper a unidade. Maggie atravessou a sala e se sentou perto dele, tentando imaginar a forma de começar uma conversação com ele, já que ninguém os tinha apresentado. O General estava atento aos movimentos da bailarina e ela seguiu seu olhar. Nunca em sua vida tinha visto uma dança do ventre, posto que os poucos lugares onde se podia ver algo assim estavam vedados às mulheres. Ao vê-la teve que pestanejar, atônita. Era possível que uma mulher fizesse girar seus peitos em sentidos opostos? Por improvável que pudesse parecer, tinha a prova diante de seus olhos. Os bordados intensificavam o efeito. A bailarina era exótica segundo os cânones europeus, mas uma boa parte dela estava visível, e tudo soberbamente treinado. Deve ter feito algum som de surpresa, porque uma agradável voz de tenor lhe disse: - É uma bailarina de muito talento, não lhe parece? Ela girou a cara e viu que Roussaye a observava com expressão divertida. - Com efeito, monsieur, não tinha idéia de que fosse possível que um corpo humano fizesse essas coisas. - Embora Orkov a contratou como curiosidade, disse ele fazendo um gesto para o tablado, é uma artista de enorme talento. - É o talento artístico o que vê um homem quando olha uma dança do ventre? - Talvez não seja esse o primeiro pensamento na mente da maioria dos homens reconheceu ele com um indício de sorriso - Mas estive um tempo no Egito e aprendi a apreciar os pontos sutis dessa arte. Maggie recordou que Roussaye teve sua primeira experiência militar na campanha do Napoleão no Egito, em 1798, quando era muito pouco mais velho que um menino. Um homem formidável. - Sim que tem seus pontos sutis - disse, conservando seu tom alegre. A música terminou e a suarenta bailarina se retirou a tomar um descanso. O público também se retirou, deixando-a a sós com o Roussaye.


- Como é o Egito? - perguntou. Desta vez seu sorriso foi mais quente. - Extraordinário. Os templos são quase incríveis, embora um os tenha diante dos olhos. Olhamos uma catedral construída há quinhentos anos e a consideramos antiga. Os templos egípcios as superam muitas vezes em antigüidade. E as pirâmides... - o General ficou um momento sumido em suas lembranças. Bonaparte passou a noite na maior. Na manhã seguinte, quando lhe perguntaram o que tinha visto, disse que ninguém lhe acreditaria. Na história do Egito, acrescentou com um matiz de tristeza, a breve ocupação fra ncesa é menos que uma piscada. Na história da França, Napoleão poderia ser não mais importante que isso. - Dentro de mil anos é possível que as pessoas tenham essa objetividade, disse ela com certa mordacidade, mas na atualidade Napoleão representa ao homem maior e mais malvado de nossa era. Roussaye ficou rígido e ela pensou se não teria ido muito longe. Embora quisesse estimular reações nele, seria um engano ganhar sua antipatia. - Você não é francesa, madame - disse ele friamente. Não seria lógico imaginar que possa vê-lo como nós. Interessou-lhe saber seus motivos. - Como vêem os franceses ao Bonaparte? Sou uma das muitas pessoas que pagaram um preço muito elevado por causa de sua ambição. É capaz de me convencer de que havia algum valor nela? Os olhos escuros do General sustentaram seu olhar. - Tem razão ao dizer que é o homem maior de nossa era. Em sua juventude, estar perto dele era sentir... sentir como se soprasse um vento. O Imperador tinha mais força e vitalidade que nenhum homem que tenha conhecido; mais força e mais visão. Jamais voltaremos a ver um homem igual. - Graças a Deus - disse ela, sem poder reprimir sua amargura. Ele se inclinou para ela com expressão exaltada. - Depois da revolução se elevaram contra nós as mãos das nações da Europa. Teriam nos destruído, mas não nos destruíram. Bonaparte devolveu a França o poder e o orgulho. Em toda parte fomos vitoriosos. - E em seus últimos anos, seu Imperador perdeu todos os seus exércitos. Centenas de milhares de soldados, incontáveis civis, morreram pela luxúria da França. Uma vez disse que para ele não eram nada as vidas de um milhão de homens. Você foi um dos que esqueceu seus juramentos às cegas e seguiu ao seu Imperador quando voltou de Elba? O General esteve um bom momento em silêncio. - Sim, respondeu finalmente. Ela fez uma inspiração profunda; devia controlar-se. - Acredita que foi correto responder ao seu chamado? - Não - respondeu ele, surpreendendo-a. Não posso dizer que foi correto, mas não importa. Napoleão era meu Imperador e o teria seguido até mesmo ao inferno. - Então realizou seu desejo. Dizem que Waterloo foi uma fiel aprovação do inferno. - O Imperador já não era o que havia sido, e cinqüenta mil soldados pagaram o preço.


Eu poderia ter sido um deles, mas Deus tinha para mim outros planos. Relaxou sua expressão. Embora seja uma salvação que não mereço, compreendi que há vida além da guerra. Estranha afirmação mística em um guerreiro. A entrada de duas pessoas na sala lhe poupou mais comentários. Levantou a vista e viu Rafe acompa nhado por uma preciosa mulher, miúda, de cabelos negros como o azeviche, e de figura arredondada por uma gravidez avançada. Roussaye se levantou, sua expressão transformada por um sorriso. - Magda, querida - disse Rafe, me permita que lhe apresente a madame Roussaye. Esteve me mostrando os quadros de nosso anfitrião. Resulta que somos algo assim como primos, porque é de Florença, e sua família está aparentada com minha avó italiana. Madame Roussaye saudou afetuosamente a Maggie. A julgar pela forma como se olhavam os Roussaye, era fácil imaginar que sua esposa era a salvação a que ele se referiu; a união entre os dois era quase evidente. Seria um bonapartista tão fervoroso o General para arriscar sua felicidade pessoal em uma conspiração traidora? Por desgraça, Maggie temia que ele fosse. A veemência da conversação anterior se desvaneceu na conversação geral. Os quatro compartilhavam um enorme interesse pela arte, e antes de separarem-se, decidiram ir juntos a visitar o Louvre em três dias. Quando voltaram para o salão estavam tocando uma valsa. Rafe introduziu Maggie na pista de dança sem lhe pedir permissão. Enquanto giravam ao compasso da música, ela pensou com pena que a opinião conservadora era correta; embora ele a tinha agarrada a prudente distância, de todos os modos a valsa era muito erótica para ser decente. Intensificada sua percepção dele pelo encontro anterior, não lhe era difícil advertir a similitude entre a proximidade e os movimentos da dança e a relação sexual. Não foi um alívio descobrir que a finalidade dele era estritamente de trabalho. - Que opinião teve do General Roussaye? Ela esperou três giros completos para responder: - Está consagrado a França e ao Imperador, e acredito que seja bastante capaz de participar de uma conspiração para restaurá-lo ao trono. Tem o melhor motivo de todos nossos suspeitos, além da inteligência e a convicção para conseguir seus fins. - Mas tem suas dúvidas - disse ele, lendo o implícito em seu tom. - O que passa é que me caiu bem, suspirou ela. Começando com m uito pouco subiu até sua posição por puro mérito. Além de suas habilidades militares, tem bom gosto e sensibilidade. Oxalá fosse o nosso vilão, mas é mais provável que seja Roussaye. - Se for assim, a prima que acabou de conhecer poderia ficar viúva dentr o em pouco, disse Rafe muito sério. Posto que Roussaye já quebrou seu juramento ao Luis uma vez, o menor indício de que está metido em uma conspiração o vai pôr em uma cela contígua ao do traidor Ney, à espera da execução. - Os homens são uns estúpidos, exclamou ela exasperada. Tem uma mulher formosa que o adora, ganhou dinheiro suficiente e legitimo para viver comodamente toda sua vida, e atiraria todo isso pela amurada.


- Também me caiu bem. Está segura de que é nosso homem? Ela negou tristemente com a cabeça, como olhando ao vazio. - É impossível estar segura, mas pressinto que o General faz algo ocultamente. Talvez não esteja metido na conspiração que procuramos, mas não sei, é possível que sim. Em momentos como esse detestava ser espiã. Se estivesse equivocada poderia contribuir com a ruína de um homem inocente. Todos os bonapartistas importantes estavam pisando em terreno muito perigoso, e um indício de suspeita podia arruinar um homem, inclusive enviálo ao pelotão de fuzilamento. Disse-se, inexorável, que estava em jogo algo mais que a vida de uma pessoa; o assassinato de um dirigente aliado podia jogar a Europa em outra guerra. - Teríamos que transmitir nossas especulações o quanto antes. Possivelmente Lorde Strathmore saiba algo que as corrobore. - Esta noite enviarei um mensageiro ao Lucien, mas creio que chegou o momento de falar com Lorde Castiereagh. Acostumada a trabalhar de modo indireto, Maggie se sobressaltou momentaneamente. Entretanto, o ministro do exterior sabia de seu trabalho e tinha motivos para confiar em suas especulações. Se os dois falassem com ele pessoalmente, poderiam convencê-lo da seriedade da situação. - Teríamos que nos encontrar com ele de um modo que não dê lugar comentários. - Isso é fácil, respondeu Rafe. Lorde e lady Castiereagh costumam convidar os visitantes britânicos distinguidos, e com toda modéstia posso dizer que eu o sou. Conhecem -me e se me acompanhar será igualmente bem recebida. Porei-me em contato com ele e lhe pedirei que organize um café da manhã ou almoço a sós conosco. - Faça com que seja o antes possível, disse ela em tom sombrio. Sinto nos ossos que algo vai ocorrer muito em breve. Acabou a valsa e saíram da pista de dança. Ela estava a ponto de lhe sugerir que partissem quando a orquestra começou outra valsa e lhes aproximou Robin. Saudou amavelmente ao Rafe e depois se inclinou diante ela. - Condessa Janos, concede-me a honra desta dança? Apesar do brilho resistente que apareceu nos olhos de Rafe, não lhe passou pela mente negar. Em público, ela e Robin só se tratavam como simples conhecidos, e não lhe teria pedido essa dança se não precisasse falar com ela. - Será um prazer, senhor Anderson - respondeu sorridente, lhe oferecendo a mão. Enviou um beijo ao Rafe e se afastou com o Robin nos rápidos giros da valsa. Com todos os anos que se conheciam e a intimidade que existia entre eles, nunca tinham dançado uma valsa. Não a surpreendeu descobrir que ele era um excelente bailarino, nem que se conheciam tão bem que não era necessário preocupar-se com os passos. - Acontece algo, Robin? - perguntou-lhe com o sorriso mais despreocupado na cara. - Soube de algo que queria te contar se por acaso você pudesse fazer algo. A seriedade de seus olhos contrastava com seu ar frívolo. Um de meus informantes de baixos recursos me deu o nome de alguém que poderia estar por trás da conspiração. Por desgraça não é um verdadeiro nome e sim um apelido. Ao homem o chamam-lhe Serpent.


- O Serpent? - Franziu o cenho, pensando . Não o ouvi jamais. - Eu tampouco. Não há ninguém com esse nome na vadiagem de Paris. Meu informante nem sequer sabia se é francês ou estrangeiro. Ao que parece o Serpent esteve recrutando delinqüentes para levar a cabo um atentado contra algum dos dirigentes aliados. Ela repassou tudo o que sabia, mas não encontrou nada que pudesse lhe dar alguma pista. - Averiguarei se alguma de minhas mulheres ouviu falar desse homem. Tem alguma outra pista? - Não, mas estive pensando... - interrompeu-se para sortear habilmente a um oficial russo bêbado cujo entusiasmo para dançar a valsa excedia a sua destreza. Uma vez que estiveram a salvo, continuou: É possível que o apelido provenha de um escudo de família ou algo assim? O homem que procuramos certamente é poderoso e de boa posição social, portanto é provável que sua família tenha brasão. Maggie sentiu um formigamento ao ouvi-lo. A sua maneira, Robin era tão intuitivo como ela, e não seria a primeira vez que um dado insignificante provocava um salto mental a um pouco totalmente diferente. Quando lhe vinha inspiração, geralmente tinha razão. - Isso é muito possível. Farei minhas indagações para descobrir que brasões levam algum tipo de serpente. Não podem ser muitos. Irá bem investigar algo concreto depois de tantos dias de frustração. Durante a última parte da dança lhe contou sobre seu encontro com o General Roussaye e suas suspeitas. Ele a escutou atentamente. Quando terminou lhe disse: - Verei se consigo encontrar alguma serpente em seu passado. Creio que estamos perto de um descobrimento. Mas pelo amor de Deus, Maggie, tome cuidado. Pareceu-me que meu informante considerava o Serpent um representante direto de Satã. Quem quer que seja, é um homem perigoso. Acabou a música. Robin tinha arrumado para que as últimas notas os levassem junto ao Duque do Candover. Com um elegante gesto, deixou-a em companhia de Rafe. Desejou-lhes boa noite e se afastou. Maggie o seguiu com o olhar; Robin devia estar tão cansado como ela, mas se o conhecia, ia passar o resto da noite nas casas de jogo clandestino e bares de Paris em busca de mais pistas sobre O Serpent. E dizia a ela que tomasse cuidado! Preocupada com seu amigo, não viu a carrancuda expressão com que a observava Rafe.

Capítulo 10


Na primeira hora da manhã seguinte, Maggie começou suas indagações sobre serpentes e outros animais heráldicos relacionados fazendo uma visita a uma frágil anciã que vivia no Faubourg St. Germain. Madame Daudet tinha perdido a todos seus descen dentes masculinos em guerras napoleônicas e ansiava a paz. Também conhecia a história, matrimônios e os brasões de todas as famílias importantes da França. Escutou atentamente o que necessitava Maggie e lhe prometeu que dentro das quarenta e oito horas seg uintes teria uma lista detalhada das possibilidades entre as famílias aristocratas antigas ou novas da França. Com sorte, ali poderia encontrar algumas pistas. Ao redor do meio-dia recebeu uma nota de Rafe lhe anunciando que almoçariam com os Castiereagh no dia seguinte. Maggie assentiu satisfeita e subiu ao seu quarto a trocar-se para ir ver uma mulher muito fofoqueira que estava inteirada de tudo o que ocorria entre as classes superiores de sociedade bonapartista. Era possível que também soubesse bastante de serpentes. Quando estava no salão, a ponto de sair, apareceu o mordomo com um cartão de uma visitante inesperada, a senhora de Oliver Northwood. Sentiu curiosidade pelo que quereria lhe dizer Cynthia, e ordenou ao mordomo que a fizesse passar. A jovem entrou muito nervosa; a palidez de rosto contrastava com seus cabelos escuros. - Alegra-me encontrá-la em casa Condessa - lhe disse. Preciso falar com você. - É obvio querida minha - respondeu Maggie em inglês. Gostaria de um café? Cynthia assentiu. Maggie deu a ordem ao mordomo e se sentou. Com um gesto convidou a Cynthia a sentar-se em um sofá perto da janela para poder lhe ler a expressão. Iniciou a conversação com comentários gerais aos que a jovem respondia com monossílabos. Esperou que lhes servissem o café com delicados bolos, e quando estiveram sozinhas lhe disse: - Se tiver algo s me perguntar ou me pedir, diga sem preâmbulos. Os grandes olhos de Cynthia olharam para outro lado. - É mais difícil que o que pensei. Você apenas me conhece e não tem nenhum motivo para escutar meus problemas, mas... mas preciso falar com outra mulher. - E me escolheu por nossa comum relação com o Candover? Cynthia a olhou surpreendida e logo sorriu. - Talvez foi por isso. Posto que temos um... um amigo comum, e você me escutou com amabilidade uma vez, pensei que poderia falar com você. Ergueu-se com visível esforço: Essa vez que falamos lhe contei que era infeliz em meu matrimônio. - Quando depois conheci seu marido naquela noite e entendi o porquê - lhe disse Maggie para animá-la a continuar: por que se casou com ele? Cynthia estendeu as palmas das mãos em gesto desesperado. - Acreditei que estava apaixonada. Oliver era bonito e elegante, e sua vida era tão interessante comparada com a minha em Lincolnshire, onde me criei. A tia que me


apresentou estava impressionada porque era o filho de um Lorde e me disse que tinha feito uma conquista fabulosa. Não olhei além de sua linhagem e elegância no vestir. Era bonito nesse tempo, faz sete anos, antes que seus excessos o danificassem. Eu só tinha dezoito anos, e me deslumbrou que um homem de mundo me cortejasse. Jamais me ocorreu refletir sobre seu caráter. Encolheu-se de ombros. Tive o que me merecia. É incrível que alguém escolha o companheiro de sua vida depois de uns poucos encontros e geralmente nas circunstâncias mais artificiais. Posto que Oliver pertencia a uma família nobre, meu pai não viu nenhum motivo para rejeitar seu pedido de mão. Eu estava tão contente de minha boa sorte que nunca me perguntei o que ele via em mim. - É muito severa consigo mesma. É você uma mulher muito atraente, da que qualquer homem poderia apaixonar-se. - Pode ser que assim seja, mas o importante era que tinha um bom dote. De toda forma, Oliver teria tido que casar-se bem, porque é filho menor, mas suas dívidas de jogo faziam urgente um matrimônio. Eu sou de uma família singela, de campo, que valoriza coisas antiquadas como a fidelidade. Não a vou aborrecer lhe contando como descobri que tinha outras mulheres, mas isso destroçou todas minhas ilusões. Quando o joguei na cara riu de mim por ser uma tola provinciana. Cortou-lhe a voz e ficou calada. Sempre prática, Maggie lhe serviu mais café. A jovem se engasgou ao beber; depois continuou sua deprimente historia. - Decidi lhe pagar com a mesma moeda, ruborizou-se e olhou a taça. Foi uma estupidez. As mulheres não são iguais aos homens; foi uma má forma de vingança. Além de minha aventura com o Rafe, tenho poucas boas lembranças desse tempo. Ele foi sempre amável e me disse que me pusesse um preço mais elevado. Voltou a levantar a vista. A princípio não entendi o que me quis dizer, mas depois sim. Comecei a me comportar de um modo que não envergonhasse ao meu pai se se inteirasse e me resultou muito mais fácil viver comigo mesma. - Mas algo foi mal para que tenha vindo para ver-me. - Apaixonei-me e fui mais feliz que nunca em minha vida, mas agora tudo está muito, muito pior. Olhou-a com expressão desolada. Michael Brewer é tudo o que deveria ter procurado em um marido, mas era muito tola para valorizar isso. É bondoso, digno de confiança honrado. Acima de tudo, ama-me, apesar de todos os enganos que cometi. Maggie a olhou compassiva; a jovem tinha motivos para sentir-se desgraçada; sua situação tinha poucas possibilidades de uma solução feliz. Cynthia deixou a taça na mesinha e começou a fazer girar nervosamente seu anel de núpcias. - Quero me casar e me instalar com o Michael em alguma casa de campo ter muitos filhos, me pôr roliça e me abrigar com ele no inverno. Isso é o que ele deseja também. Detesta a falsidade de nossa situação. - Mas enquanto viver seu marido isso não pode ser. Na Inglaterra é virtualmente impossível conseguir o divórcio. Embora tivesse o dinheiro e a influência para fazer passar no divórcio no parlamento, de todos os modos a sociedade a marginalizaria.


- Não há tempo para isso; estou esperando um filho. Maggie afogou uma exclamação. - E não é de seu marido? - Faz muitos anos que não vivemos como marido e mulher. Por desgraça, embora não me deseje para ele, tampouco quer que seja de outro. Estremeceu-se - Aterra-me pensar no que fará quando se inteirar de que estou grávida. - E isso não se pode ocultar por muito tempo, observou Maggie. O que pensa disto seu comandante? Cynthia retorceu as mãos. - Ainda não lhe disse. Quando o disser, ele vai insistir em que deixe ao Oliver e viva com ele. - Será um escândalo, mas não será o único. Talvez essa seja a melhor solução. - Você não conhece meu marido - disse Cynthia, pela primeira vez com voz trêmula. Oliver é terrivelmente vingativo, e demandaria ao Michael por apropriação ilícita. Michael não é rico, isso o arruinaria; sua carreira militar chegaria ao seu fim, e seria uma desonra para nossas famílias. E ao meu pai lhe romperia o coração, acrescentou em um sussurro. Os soluços a afogaram e enterrou a cabeça em suas mãos. - O pior de tudo, conseguiu dizer entre soluços, é que Michael poderia chegar a me odiar por ter arruinado sua vida. Rapidamente Maggie foi sentar se ao seu lado e a rodeou com o braço para lhe oferecer o necessitado consolo. Interiormente amaldiçoou as inflexíveis leis matrimoniais que obrigam ao marido e mulher a continuar atados por desgraçados que sejam. Cynthia se foi acalmando pouco a pouco e quando terminou de chorar, Maggie lhe deu um lenço limpo. - Suas opções são limitadas. Pode seguir com seu marido ou deixá-lo. Se o deixar pode voltar para a casa de seu pai, viver com seu comandante ou viver sozinha. Cynthia se endireitou e secou os olhos com o lenço. - Dito parece muito simples. Sim, eu desejo deixá-lo, mas será muito difícil. Além disso, ao Oliver isso não só feriria o orgulho, mas também o bolso, porque nos mantemos com dinheiro de meu pai. Meu dote se consumiu faz muito tempo, mas periodicamente meu pai nos envia um dinheiro que eu uso para os gastos domésticos. Se eu for, isso se acabaria. Com as somas que perde Oliver no jogo, é possível que não possa manter uma casa se eu não estiver lá. Com mão nervosa se tornou para trás uma mecha que lhe tinha caído sobre a frente. Embora talvez pudesse arrumar-se notei porque sempre tem dinheiro. Na cabeça de Maggie soou uma campainha de alarme. De modo que Northwood era um jogador contumaz? Tinham centrado toda a atenção na conspiração de assassinato por sua urgência, mas também estava o assunto de um possível espião na delegação britânica. Se existia essa pessoa, o misterioso O Serpent poderia estar utilizando seus serviços. Dada sua sincera aversão pelo Oliver Northwood, não lhe resultou difícil acreditá-lo um vilão. E se estava em contato com o principal conspirador... Dissimulou seu interesse. - O salário que recebe do Foreign Office deve ser bom, disse com naturalidade.


- É uma miséria, só duzentas libras ao ano. É possível que se convertesse em jogador preparado - comentou com indiferença - Supondo que se não pagasse suas dívidas ninguém continuaria jogando com ele. - É possível que seu marido esteja envolto em algo indevido? - O que quer dizer? Maggie ficou sua cara inocente. - É só uma esperança. Se tivesse algum secreto, poderia ser mais fácil convencê-lo que a deixe partir sem pôr dificuldades. Sorriu com picardia. Supondo que um dos motivos de querer falar comigo era receber idéias de uma européia não educada com a mentalidade inglesa de jogo limpo. O momentâneo sobressalto de Cynthia deu passo rapidamente ao sobressalto. - Poderia ser, sem que eu me desse conta. Ficou em silêncio pensando no que lhe havia dito sua anfitriã. É possível que oculte algo. Notei-o distinto quando começou a trabalhar para o Foreign Office. Essa mudança se acentuou mais desde que chegamos a Paris. Também tem mais dinheiro; mais do que se poderia atribuir a seu salário, quero dizer. - É possível que se deixe subornar? - Não tem muita influência para vender algo, respondeu Cynthia duvidosa. - Poderia fazê-lo acreditar que tem, disse Maggie. O suborno era algo comum, e se deixavam subornar muitas pessoas as que nunca lhes ocorreria espiar contra seu País. Northwood poderia ser uma delas. De todos os modos, valia a pena investigar a possibilidade. - Faz umas semanas, recordou Cynthia, me acabou o papel de cartas e fui ao seu escritório para procurar mais. Nesse momento ele entrou e se enfureceu muito, de fato, golpeou-me. Nesse momento não dei importância porque está acostumado a ser imprevisível, mas após há posto especial cuidado em guardar com chave todos seus papéis. Acredita que isso é significativo? - Pode ser que sim, pode ser que não. Alguns homens são furtivos por natureza. Mas se for culpado de algo e você conseguir descobrir seu segredo, isso lhe serviria de arma para defender-se. Olhou a Cynthia nos olhos e acrescentou muito séria: Não é nada agradável o que estamos falando. Sente-se disposta a atuar de um modo tão desonroso? Cynthia fez uma funda inspiração, mas manteve firme o olhar. - Sim. As mulheres têm poucas armas a nossa disposição e seria parvo não aproveitar uma. Talvez assim possa evitar uma tragédia maior, como um duelo, por exemplo. Não creio que Oliver se atreva a desafiar em duelo ao Michael, mas poderia estar equivocada. Estremeceu-se como se houvesse sentido uma corrente de ar. Não poderia suportar que Michael arriscasse sua vida por minha causa. - Se estiver segura... - disse Maggie satisfeita. Acredita que poderia abrir as gavetas com chave e dar um olhar em seus papéis? Cynthia mordeu o lábio, mas assentiu com a cabeça. - Tem que ter muitíssimo cuidado; não só fazê-lo quando ele não esteja e não possa surpreendê-la, mas também ocupar-se de não deixar nenhum rastro de que esteve pinçando.


Seu marido tem um temperamento violento, e se chegar a suspeitar poderia lhe fazer muito dano. Agora não tem que pensar só em sua vida. Maggie falou com a maior seriedade possível. Embora não a orgulhasse instigar a uma esposa a espiar ao seu marido, a oportunidade era muito boa para deixá-la passar. Além disso, se Oliver Northwood era realmente um espião, isso faria mais fácil a Cynthia escapar dele. - Prometo-lhe que tomarei cuidado. Curvou a boca em um rictus. Sei melhor que ninguém o que poderia fazer Oliver. - Se descobrir algo suspeito, diga-me isso primeiro - lhe aconselhou Maggie. Tenho bastante experiência do mundo e é possível que entenda melhor o que encontrou. Cynthia voltou a assentir e se levantou. - Não posso lhe agradecer o suficiente sua ajuda, Condessa. Falar com você me ajudou enormemente. Maggie também se levantou. - Talvez poderíamos ser menos formais, já que vamos ser conspiradoras. Chame-me Magda ou Maggie se o preferir. - Obrigado, Maggie. Ela se aproximou e lhe deu um emocionado abraço. Depois de voltar a insistir em que tomasse cuidado e acompanhá-la até a porta, Maggie retornou ao salão e se sentou a pensar no que acabava de inteirar-se. Além da aversão que lhe inspirava Oliver Northwood, seu instinto lhe dizia que o homem era capaz de traição. Não descartava a possibilidade de que fosse inocente, ou talvez culpado de algum tipo de corrupção de menor importância. Entretanto, dada a explosiva situação de Paris, a informação era muito valiosa. Um homem débil podia sucumbir facilmente à tentação. Tinha que decidir também se dizia ou não ao Rafe. Franziu o cenho. Embora Rafe não fosse amigo íntimo do Northwood, conhecia-o de toda a vida, em sua juventude ambos tinham formado parte do mesmo círculo social. Rafe teria dificuldade para acreditar que alguém desse grupo de ingleses fracotes e honrados fosse um traidor. Era muito mais fácil suspeitar de um desconhecido que de um conhecido. Decidiu não lhe comunicar ao Rafe suas suspeitas, a menos que Cynthia descobrisse alguma prova concreta. Pelo bem de todos, desejou que isso ocorresse e logo. Essa noite Rafe foi ao Salão dê Étrangers, o mais parecido que havia em Paris a um clube de cavalheiros. Era um lugar de reunião de jogadores empedernidos, e entre seus clientes mais assíduos se encontravam muitos dos homens mais ricos e influentes de Paris. Embora tivesse ido várias vezes ali com a esperança de ouvir algo útil, até o momento não tinha tido nenhum êxito. De todo modo se sentia melhor fazendo algo que não fazendo nada. Deteve-se na entrada da sala de jogos principal e contemplou a multidão de caras conhecidas. O salão era maior e mais elegante que o modesto Café Mazarin, mas os sinais da febre do jogo eram os mesmos. Aproximou-se para saudá-lo o proprietário, o marquês do Livry; o marquês tinha uma extraordinária semelhança com o Príncipe regente, tanto em sua obesidade como em seu ar


majestoso. - Que prazer lhe ver esta noite, excelência. Que jogo prefere? - Esperarei para ver que mesa me atrai, respondeu Rafe. O marquês assentiu, acostumado a que os jogadores esperassem sinais mágicos de que a fortuna os favorecia. Depois de lhe desejar que passasse bem, deixou-o para ir saudar um grupo de austríacos. Rafe agarrou uma taça de excelente borgon da bandeja que lhe aproximou um lacaio e começou a percorrer o salão. Teve uma sensação de inevitabilidade ao ver Robert Anderson sentado diante uma mesa de faraó; o jovem loiro tinha o dom de aparecer nos lugares mais inesperados. Pareceu-lhe muito provável que também estivesse metido nas turvas sombras da espionagem. Se fosse assim, para quem trabalhava? A resposta lógica seria que mantinha abertos os ouvidos em favor da delegação britânica. Mas ele tinha suas dúvidas. Oculto por uma coluna coríntia foi bebendo seu vinho enquanto observava o jovem. Voltou a ter a estranha sensação de que sua cara recordava a alguém, mas não conseguiu identificá-lo. Seus esforços por recordar foram interrompidos por uma saudação jovial: - Boa noite, Candover, alegra-me voltar a ver-te. Rafe se voltou sem entusiasmo a saudar o Oliver Northwood. Surpreendeu-lhe ver seu velho conhecido em um lugar onde se apostava forte, porque homens de mais fortuna que ele se arruinaram no Salão dê Etrangers. Enquanto falavam de coisas inofensivas Rafe continuou observando ao Anderson. O jovem empurrou a metade das fichas que tinha diante dele depois de perder uma aposta, tão imperturbável na derrota como na vitória; era tão loiro e angelical como um menino de coro. Era isso o que Maggie via nele, sua cara bonita? Ou se acreditava apaixonada por ele? Que demônios tinha Anderson que ele não tinha? Horrorizaram-no o violento ciúme que o embargava. O ciúme era uma emoção desconhecida para ele, e não gostava dela; sempre tinha estado bem disposto a dizer adeus a uma mulher que se sentia atraída por outro, mas isso não lhe funcionava tratando-se de Margot. Recordou a amargura que sentiu, há treze anos, quando se inteirou de sua intimidade com o Northwood. E nesse momento, a lembrança da raiva que sentiu quando viu o Anderson entrar sigilosamente na casa de Maggie pela porta de atrás foi um duro golpe em sua opinião de si mesmo como homem civilizado. Tentando dominar essas emoções primitivas, disse-se que Anderson só era um homem a mais na vida de Maggie. Não tinha nenhum sentido sentir ciúmes simplesmente porque o miserável era o único de seus amantes que ele conhecia. Mas esse pensamento não conseguiu acalmá-lo. Decidiu então que bem podia aproveitar a oportunidade para inteirar-se de algo mais a respeito de seu rival. - Seu colega Anderson me recorda a alguém - disse ao Northwood, mas não consigo recordar de quem. Que antecedentes tem? - Não tem. Northwood apurou sua taça de vinho. Simplesmente apareceu em Paris em julho, e Castiereagh lhe deu um posto na delegação. Deve ter trazido cartas de recomendação,


mas não sei de quem. Diz que não está aparentado com nenhum dos Anderson que eu conheço. Chamou um lacaio e trocou sua taça vazia por uma cheia. Vem aqui com freqüência. - Sim? Então seja qual for a família Anderson a qual pertence deve ser rica. Northwood franziu o cenho com a atitude de um homem que toma uma decisão. - Talvez não deveria te dizer isto, Candover, mas há algo condenadamente misterioso no Anderson. Saído de um nada, sempre colocando o nariz em coisas que não lhe incumbem, e logo desaparece como um gato guia de ruas. E tem mais dinheiro de que deveria. - Interessante - comentou Rafe, tentando imprimir sua vergonhosa alegria. Falou com o Castiereagh sobre suas suspeitas? Northwood olhou a seu redor para assegurar-se de que não havia ninguém perto que pudesse escutar. - Sim, falei com o Castiereagh, por isso estou aqui. O ministro me pediu vigiasse ao Anderson, de modo informal, sabe? Ao ver o olhar inquiridor de Rafe, acrescentou: Para ver se fala com alguém suspeito. Não deveria te dizer isto, mas sei que é de confiança, e quero te pôr em guarda. Já sabe como está a situação em Paris. Terá que andar com muito tato Refletiu um momento, como calculando se podia contar, e depois acrescentou em voz quase inaudível - Houve fuga de informação importante da delegação britânica. Não quero caluniar a um inocente, mas estamos vigiando estreitamente ao Anderson. Rafe nunca tinha visto tão sério o Northwood e pensou se não lhe teria julgado mal ao seu velho companheiro de colégio. Talvez sua afável forma de ser fosse só um disfarce. Observou-o, esforçando-se para ser objetivo. Que lhe desgostava sua vulgaridade, não tinha nenhum motivo para desconfiar dele. Sem dúvida o ciúme lhe havia nublado o julgamento. Esse mesmo ciúme lhe fazia muito fácil acreditar o pior do Anderson. Obrigou-se a recordar que estava em Paris para ajudar ao seu País, não a dedicar-se a intrigas pessoais. Mas se o jovem loiro era um traidor a Inglaterra, para ele seria um prazer que o agarrassem e castigassem. - Manterei os olhos abertos e talvez recorde porque a cara do Anderson me resulta conhecida, disse. Isso poderia ser importante. Com uma piscada de cumplicidade se despediu de Northwood e começou a percorrer as mesas, acabando na de trente et quarante. Esse era um jogo mais de azar que de habilidade, assim que lhe permitia estar a par do que ocorria no resto do salão. Viu quando o General Michel Rousse se sentava em uma cadeira desocupada ao lado do Anderson na mesa do Faraó; também observou que os dois homens comentavam algo com muito interesse; o comentário podia ser ou não ser sobre o jogo. Observou e franziu o cenho.

Capítulo 11


No dia seguinte, Maggie e Rafe fizeram em silêncio o trajeto para a Embaixada britânica para almoçar com os Castiereagh. Durante um momento ela considerou a idéia de lhe falar de suas suspeitas a respeito de Northwood, mas nesse dia ele estava na atitude do aristocrata fleumático e remoto, sua cara morena bonita e imperturbável. Almoçaram em uma sala de jantar privada, e a comida foi servida na baixela que pertenceu a Pauline Bonaparte, que Wellington tinha comprado junto com a casa no ano anterior. Muito em seu papel de amante do Duque, Maggie usava um vestido azul celeste e um meio enfeitado de plumas de avestruz combinando. Lorde Castiereagh estava simpático e conversador e o almoço foi muito agradável. Falaram de temas atuais até que puseram a cafeteira de prata na mesa e lady Castiereagh despediu com um gesto aos criados. O ministro do exterior iniciou a conversação séria: - Sabem as últimas notícias das Tullerías? Os dois convidados negaram com a cabeça. A corte do Rei francês nas Tullerías era um redemoinho de rumores e intrigas com as lutas pelo líder entre as diferentes facções monárquicas, mas nesse último tempo não tinha havido nenhuma notícia séria a respeito. - Ao Fouché o obrigaram a sair do governo, e dentro de uns dias se retirará Talleyrand. Apareceu um brilho de humor nos olhos do Castiereagh. Sempre que o Príncipe Talleyrand se vê aflito pelas críticas apresenta orgulhosamente sua demissão. Para sua grande surpresa, desta vez o Rei decidiu aceitá-la. Maggie mordeu o lábio pensando nas conseqüências; depois olhou ao Rafe, que estava muito sério. Embora Talleyrand fosse um personagem difícil e imprevisível, era também muito inteligente, além de ser um influente moderado. Sua saída poderia aumentar o perigo para outros moderados. - Já escolheram ao novo primeiro-ministro? - perguntou. - O Czar sugeriu que o Rei escolhesse a um dos monárquicos franceses que governaram em seu nome na Rússia, respondeu o ministro, ou ao Duque de Richelieu ou ao Conde do Varenne. Luis concordou em aceitar ao Richelieu. A opinião geral nos corpos diplomáticos é que só vai durar umas semanas. - Não esteja tão seguro disso, senhoria - disse Maggie. Já falei com ele, e creio que é capaz de dar algumas surpresas. Castiereagh a olhou interessado; talvez esperasse essa informação. - Que opinião teve sobre Richelieu? - É um homem de absoluta integridade, capaz de impor-se com energia se for necessário, respondeu ela sem vacilar. Será um fervoroso defensor da França, mas creio que você e ele se darão bem. Castiereagh assentiu lentamente. - Isso confirma minhas impressões. As negociações vão bem, e creio que dentro de outras duas semanas, os monarcas poderão voltar para seus respectivos países. Dirigiu um olhar tranqüilizador a sua esposa. Terá que solucionar um bom número de detalhes nos


próximos meses, mas creio que o pior já passou. - Espero que tenha razão, disse Rafe, mas tememos que as duas próximas semanas vão ser muito perigosas para você pessoalmente, Lorde Castiereagh. Brevemente lhe explicou os rumores ouvidos por ele e Maggie, e suas suspeitas. O ministro do exterior tomou com tranqüilidade as ameaças. - Lorde Strathmore já me tinha informado disto. Compreendo que há certo perigo, mas não é a primeira vez que estive em perigo, e não creio que esta vá ser a última. Esse estoicismo estava muito bem, pensou Maggie exasperada, mas um pouco de medo poderia ser algo muito útil. Olhou lady Castiereagh e viu que sua cara arredondada estava rígida e tinha apertada entre os dedos uma colher de prata. Enquanto seu marido se fazia de herói, Emily estava morrendo por dentro. Mas era a esposa de um político há muito tempo para fazer uma cena diante de alguém, e só ela notou sua ansiedade. Continuaram conversando até que o relógio da sala de jantar deu as duas; então Lorde Castiereagh se levantou. - Agora devo ir. Tenho uma reunião com os franceses e o Czar nas Tullerías. Supondo que será animada. Saiu com o Rafe, falando da Santa Aliança do Czar, e se dirigiram aos estábulos, onde estavam os cavalos da Embaixada e esperava o carro do Rafe. Lady Castiereagh acompanhou seus convidados até a porta de trás. Maggie ficou ali com ela um momento para lhe dizer: - Há um certo perigo, Emily, mas estou segura de que se sairá bem. -Só posso rogar que meu marido tenha o mesmo dom mágico de Wellington para evitar as balas - disse Emily em um débil intento humorístico. Falamos em postar guardas em todas as portas da Embaixada; agora vou insistir nisso. Olhou para seu bonito marido. Serei feliz quando tudo isto tiver acabado e voltemos para Londres. Às vezes desejaria que Robert se contentasse em ficar na Irlanda e cuidar ovelhas. Isso teria sido muito mais fácil para meus nervos. - Não me cabe dúvida, concedeu Maggie, mas se o tivesse feito não teria sido o homem que é. - Isso é certo. Sempre me digo isso. Com visível esforço compunha sua cara para parecer uma tranqüila anfitriã. Foi muito agradável lhes ver, lady Janos. Temos que voltar a nos ver muito em breve - terminou antes de voltar a entrar na Embaixada. Maggie começou a baixar os degraus até o pátio que separava a Embaixada dos estábulos; os dois homens foram a bastante distância dela. Tinham tirado o carro do Candover e um inquieto cavalo baio no qual Castiereagh ia a sua reunião. Um instinto lhe advertiu perigo e Maggie franziu o cenho. Passeou o olhar pelo pátio, depois por todas as janelas que davam a ele, mas não havia nada suspeito. Voltou o olhar ao pátio e viu que o cavalo do Castiereagh estava nervoso, agitava a cabeça e punha os olhos em branco. Pareceu-lhe que o animal era muito nervoso para cavalgar pela cidade, e estranhou que o moço responsável não o segurasse melhor. Rafe e Castiereagh já tinham chegado junto ao cavalo, mas estavam tão absortos na conversa que


não se fixaram na conduta do animal. Maggie passou o olhar o moço, que estava ao outro lado do cavalo; era um homem moreno, tinha uma cicatriz na cara, e o achou um muito estranho; algo não calçava. Enquanto tratava de descobrir o que o fazia parecer desconjurado, o cavalo lançou um furioso relincho que ressonou fortemente nos muros de pedra do edifício. O cavalo voltou a relinchar, encabritou-se, soltando-se da mão do moço, inclinou a cabeça, colocando-a entre as patas dianteiras, e escoiceou com as patas de atrás. Rafe e Lorde Castiereagh estavam muito perto para escapar, e as ferraduras se enterraram no ministro do exterior. Castiereagh caiu sobre o Rafe e os dois foram parar ao chão. Maggie que viu a cena horrorizada desceu correndo os degraus pedindo auxílio aos gritos. Acuado em um canto do pátio, o cavalo não podia pôr-se a correr, de modo que continuou dando coices e coices sobre o corpo inconsciente do ministro. Rafe conseguiu ficar de pé e agarrou ao Castiereagh pelas axilas; quando tratava de arrastá-lo para trás, o cavalo voltou a escoicear; desta vez um dos letais cascos quase golpeou ao Rafe na cabeça; conseguiu esquivá-lo, mas o casco lhe roçou o ombro fazendo que perdesse o equilíbrio. Ao cabo de um momento, voltou a agarrar ao Castiereagh e reatou a retira da. Maggie soltou uma maldição em voz alta quando chegou junto a eles. Onde demônios estava o moço responsável? O homem desapareceu tão logo o cavalo se empinou. Tirou o chapéu com plumas de avestruz e o agitou diante do cavalo enlouquecido com o fim de afastá-lo de Rafe e Castiereagh. O cavalo voltou a emitir um violento relincho, agitando os olhos e com o focinho cheio de espuma. Maggie se manteve firme e continuou agitando o chapéu. O cavalo começou a retroceder afastando-se dela; quando ia retrocedendo quase junto à parede do estábulo, ouviram-se gritos da Embaixada. Quando o cavalo se viu livre de seres humanos, girou-se e pôs-se a correr enlouquecido pelo pátio; do estábulo saiu correndo um moço jovem e ruivo e tratou de detê-lo. Maggie deixou a um lado seu chapéu e se aproximou do Rafe, que estava ajoelhado ao lado do ministro. - Como vai? - perguntou-lhe sem fôlego, ajoelhando-se também sobre os paralelepípedos. Castiereagh estava inconsciente e lhe saía sangue de uma ferida de um lado da cabeça, mas respirava. - Não sei, respondeu Rafe preocupado e sem deixar de examinar o corpo. O primeiro coice lhe deu totalmente nas costelas e outro lhe roçou a cabeça. Começaram a chegar pessoas da Embaixada, entre elas lady Castiereagh, com o rosto lívido. Automaticamente Rafe tomou o comando, ordenou que trouxessem uma maca e enviou um lacaio a procurar um médico. Maggie se levantou e rodeou com um braço a Emily. - Foi um feio acidente, mas estou segura de que ficará bem. Lady Castiereagh assentiu, mas parecia aterrorizada. Chegaram dois lacaios com uma maca improvisada, colocaram com muito cuidado o Castiereagh sobre ela e o levaram a Embaixada, seguidos por sua esposa. Magda acompanhou para ajudá-la enquanto esperavam


ao médico. Quando a procissão entrou na Embaixada. Rafe retrocedeu e entrou no estábulo. O moço ruivo tinha conseguido agarrar ao cavalo e fazê-lo entrar em uma baia. O animal, ainda selado, agitava-se inquieto, enquanto o moço esperava fora com expressão receosa. - Sou Candover, disse Rafe. Sempre foi assim o cavalo de Lorde Castiereagh? O jovem o olhou preocupado. Como todos outros criados da Embaixada, era britânico, e respondeu com forte acento rural da região ocidental. - Não, excelência. Samson é fogoso, mas nunca foi uma besta de caráter ruim. Está muito ferido sua senhoria? - Não saberemos enquanto não o tenha examinado o médico, mas creio que há boas possibilidades de que se recupere. - Vão ... vão sacrificar o Samson, excelência? - Não sei. Viu sangue na espuma que rodeava o focinho do animal. Agarrou um punhado de aveia, abriu a porta da baia, entrou e se aproximou tranqüilamente ao cavalo. - Quero olhá-lo mais de perto. Recordando todas as tradições ciganas que lhe tinha ensinado seu amigo Nicholas, serenou-se totalmente, de dentro para fora. Quando Samson jogou a cabeça para trás e aplanou as orelhas, sussurrou-lhe um montão de palavras sem sentido. O cavalo começou a relaxar e muito em breve lhe deixou acariciar o pescoço. Depois de acariciá-lo vários minutos, soprou-lhe nos olhos, outro truque cigano; o cavalo começou a respirar mais lentamente e ficou imóvel. Rafe aproximou a mão com aveia e muito em breve o cavalo estava comendo em sua mão. Quando o cavalo terminou de comer, com o maior cuidado lhe tirou o freio. Encontrou o que suspeitava; o freio tinha aderido uma pequena agulha, de modo que a menor pressão sobre a delicada pele do focinho lhe produzia uma dor insuportável ao animal. O moço olhou a agulha e depois ao Rafe. - Porque ia querer alguém fazer isto a um animal tão bom, excelência? Fazer isto é uma coisa muito cruel, inclusive a um canalha. - Posso imaginar, mas não o farei. Rafe voltou a observar ao cavalo. Esta agulha explica por que Samson se empinou, mas necessitava de algo mais para escoicear assim. Vejamos que mais podemos encontrar. Brandamente soltou a sela, tirou a cadeira e os arreios. Samson se agitou nervoso, de modo que Rafe lhe passou uma mão pelo suarento pescoço até que o animal voltou a tranqüilizar-se. Então examinou a zona que tinha estado coberta pelos arranjos, e não lhe surpreendeu encontrar um pequeno objeto metálico enterrado na pele. Samson se sacudiu bruscamente quando o tirou, e pelo flanco lhe correu um fio de sangue. O objeto tirado da ferida era uma espécie de «ouriço» metálico com quatro pontas, uma espécie de versão em miniatura das bolas com quatro pontas que se usavam para inabilitar os cavalos na guerra. O mostrou ao moço, que havia passado da surpresa à indignação. - Alguém queria fazer mal a sua senhoria, disse o menino com os lábios apertados.


O jovem não era nenhum parvo, e devia saber algo da tensa situação política que se vivia em Paris. - Quem se encarrega normalmente do cavalo de Lorde Castiereagh? - O cavalariço chefe, o senhor Anthony, mas agora ele não está aqui. Teve que ir ao Saint Denis esta manhã. - Sabe quem selou o Samson hoje? O moço refletiu e negou com a cabeça. - Não exatamente, senhor. Eu estava limpando arranjos e não vi quem era. Só percebi que passava algo quando ouvi o Samson. - Suspeitaria de alguém? Houve alguma pessoa suspeita no estábulo? - Não poderia assegurar com certeza, mas esteve trabalhando aqui um rapaz porque estávamos escassos de pessoal. Um dos moços teve que voltar para a Inglaterra porque morreu seu pai, e outro saiu mal parado em uma rixa guia de ruas e teve que faltar uns dias. Provavelmente foi o rapaz o que selou e tirou o Samson. - Como ele é? - De altura média, moreno, tem uma cicatriz na cara. O menino pensou mais. Olhos castanhos, eu creio. Era muito reservado, eu nunca falei com ele. Chama-se Jean Blanc. A descrição era a do capitão Henri Lemercier. Rafe olhou fixamente ao jovem para impressioná-lo com sua seriedade. - Não estranhe se não voltar a ver Jean Blanc. E não diga a ninguém o que descobrimos. Eu falarei pessoalmente com Lorde Castiereagh. Está claro? O menino assentiu. Rafe saiu do estábulo e foi reunir se com Maggie e lady Castiereagh. O médico demorou uma hora em dar seu veredicto sobre o estado do ministro do exterior, mas este era bom. Embora tivesse várias costelas quebradas e uma leve concussão cerebral, estava consciente e para grande exasperação de sua mulher, já estava fazendo planos para celebrar as reuniões em seu dormitório. Lady Castiereagh agradeceu comovida a Maggie e ao Rafe sua intervenção, que evitou que o acidente tivesse sido mais grave. Depois Rafe levou a sua poeirenta dama até seu carro. Durante a primeira parte do trajeto Maggie não abriu a boca, reclinada no respaldo acolchoado do assento com os olhos fechados. Já tinham passado a metade de caminho quando abriu os olhos e disse: - Poderia tê-lo matado diante nossos olhos. - Eu sei, respondeu ele em tom lúgubre. Isso não nos deixa nada bem como espiões e guarda-costas. - O que descobriu no estábulo? Rafe lhe explicou a agulha no freio, o objeto com puas enterrado no lombo do Samson e o misterioso moço francês, Jean Blanc. - Supondo que Blanc puxou a rédea ferindo o Samson no focinho, disse Maggie. Quando o cavalo se empinou, Blanc golpeou a cadeira, enterrando as puas e depois fugiu. - É possível que tenha fugido porque estávamos ali, e as coisas não lhe saíram conforme


o planejado, disse Rafe. Se o cavalo tivesse pisado ao Castiereagh, o teria matado imediatamente. Teria se armado um alvoroço tal que Blanc teria tido tempo de sobra para tirar a agulha e as puas, e a morte teria parecido um acidente. - Pareceu-me que algo não calçava quando vi esse moço - Maggie tratou de recordar o breve instante em que viu o homem - Não tinha aspecto de criado. Tinha o ar de um soldado, embora talvez isso não nos sirva de muito já que muitos franceses serviram no exército do Imperador. - Eu não o vi, mas pela descrição que me fez o moço, poderia ser um de nossos suspeitos secundários, o capitão Henri Lemercier. Conheci o Lemercier a noite que fui ao Café Mazarin. - E não me disse nada desse encontro embora sabíamos que se falou de assassinato ali? Rafe não lhe tinha contado o encontro porque quando partiu essa noite Lemercier estava falando com o Robert Anderson, e esse era um tema que desejava evitar. A menos que tivesse uma prova indiscutível da culpabilidade do Anderson, não tinha nenhum sentido acusá-lo diante de Maggie. - Não lhe disse, respondeu mansamente, porque Lemercier estava bêbado e não disse nada de interesse. Maggie o olhou com desconfiança, mas não seguiu com o tema. Rafe desejou saber que pensamentos passavam detrás desses grandes olhos cinzas cor de fumaça. No incidente do estábulo lhe tinham despenteado os cabelos dourados e o decote do vestido lhe acariciava o corpo sensual tão incrivelmente bem para deformar o julgamento de um homem. Se fosse seu amante lhe teria feito o amor ali mesmo, no carro. Obrigou-se a reavaliar o que sabia. O incidente que esteve a ponto de acabar em desastre o havia emocionado terrivelmente e, mais que nenhuma outra coisa, tinha -lhe feito compreender os perigos que entranhava esse trabalho. Era o momento de pôr em ordem de julgamento suas hipóteses em relação à lealdade profissional de Maggie, porque sua relação com o Anderson era uma maldita prova em contrário. O loiro e insípido Anderson, que parecia um menino de coro ou um Lúcifer caído, era quase com toda certeza um agente dos inimigos de Grã -Bretanha. Teria estado organizando o «acidente» do Castiereagh essa noite em que se encontrou com o Lemercier no Café Mazarin? E do que falava com o General Roussaye quando se encontraram no Salão dê Étrangers? E o mais importante de tudo, era Maggie a vítima do Anderson ou seu cúmplice? Embora essa tarde tivesse contribuído para salvar o Castiereagh, isso não queria dizer que não estivesse vendendo informação ou conspirando contra seu País. Entre a Margot Ashton e Magda Janos havia muitos anos dos quais ele não sabia nada para seguir confiando nela. Poderia ser uma mercenária que trabalhasse para qualquer que lhe pagasse, ou Anderson poderia tê-la convencido para que trabalhasse contra os interesses britânicos. Mas em certo sentido, isso não importava; desejava -a, fosse o que fosse ou fizesse o que fizesse. Se ele descobrisse a conspiração e se comprovasse que era traidora, ela poderia ter que escolher entre aceitá-lo ou ir à forca. Preferia que ela o aceitasse voluntariamente, mas, se fosse necessário, estava disposto a recorrer a tudo menos à violência, para possuí-la.


Não era uma idéia da qual se orgulhasse. O inglês estava se acostumando a essas viagens para ver o Serpent e já não estava preocupado como na primeira vez. De todo modo, quando entrou no quarto escuro onde o esperava seu amo, pensou que seu cabelo loiro o fazia um alvo visível até nessa escuridão; se tivesse sabido que ia vagar por esses caminhos tão escuros teria tido a previsão de nascer moreno. O fracasso do atentado contra Lorde Castiereagh fazia o mascarado parecer menos o diabo. Não podia deixar de pensar que havia formas mais simples de matar um homem que com um cavalo, e cometeu o engano de dizer isso ao seu misterioso anfitrião. - E se atreve a me criticar? Você, que não tem idéia de quais são os objetivos? É um estúpido. A voz sibilante soou como vento sobre o gelo. Com um arrepiante sotaque de frio humor continuou: Deve lhe alegrar, mon anglais, saber que o plano seguinte tem menos elementos de azar. Como de manhã, as sessões diplomáticas se celebrarão no dormitório do Castiereagh, devido as suas lesões, necessito das plantas detalhadas dessa parte da Embaixada; de todos os quartos, de todos os corredores, todos os armários embutidos ou dispensas, com suas medidas exatas. Além disso, informações sobre o pessoal e seus movimentos. - Isso é tudo? - perguntou o inglês com velado sarcasmo. O Serpent tomou a pergunta a sério. - Também preciso saber quem vai assistir a cada sessão. Isso eu preciso saber, sem falta, na noite anterior. Levantou-se, sua figura era ameaçadora a essa tênue luz. E você me dirá isso, mon petit Amis, a cada noite sem falta. O inglês assentiu a contragosto. Já não podia retirar-se, estava muito envolvido; mas necessitava de tempo, tempo para averiguar a quem pertencia o brasão que tinha visto no anel do Serpent, e para dissipar qualquer suspeita que pudessem ter dele. Decidiu lhe dar uma informação que guardava com reserva. - Ouviu falar da Condessa Janos, que afastou o cavalo de Lorde Castiereagh antes que se concluísse o trabalho? - Sim, é uma lástima que estivesse ali com seu amante, mas é impossível planejar tudo O Serpent encolheu ligeiramente os ombros, como dando a entender que certos impedimentos poderiam atrasá-lo, mas jamais derrotá-lo - É uma mulher muito formosa; não há ninguém como uma húngara na cama. - Não é húngara, disse o inglês. É uma inglesa chamada Margot Ashton, uma impostora, uma puta e uma espiã. - Seriamente? - A voz que resfolego continha ameaça, mas não contra seu visitante. Interessa-me, mon anglais, me diga tudo o que sabe sobre essa mulher. Se trabalhar para os britânicos, talvez seja necessário... tratar com ela. Em poucas palavras o inglês lhe disse tudo o que sabia sobre a Magda, Condessa Janos, que em outro tempo se chamou Margot Ashton. Era uma lástima que fora necessário sacrificar essa encantadora mulher, mas primeiro estavam os interesses próprios.


Capítulo 12

Na manhã seguinte, Maggie e Héléne Sorel foram a casa de madame Didet, que lhes tinha feito a lista de todas as famílias francesas em cujos brasões apareciam serpentes. Depois de uma obrigatória meia hora diante as taças de chá, a anciã lhes entregou a lista, escrita com uma letra tão frágil como ela mesma. Depois as deixou em liberdade para pesquisar na biblioteca. Ali as duas procuraram os sobrenomes em enormes livros com estampas em ouro, que continham figuras coloridas feitas à mão dos temas bélicos e brasões das famílias. Copiaram os escudos mais prometedores nas folhas de pergaminho translúcido que Maggie tinha comprado. Embora descartassem os dragões e outros animais populares da Idade Média, examinaram todos os que tivessem uma clara semelhantes com serpentes, entre eles a hidra de três cabeças que aparecia no escudo dos d'Aguste. A tarefa lhes levou quatro horas, e quando terminaram estavam as duas cansadas e sonolentas pelo ar viciado da biblioteca. Quando já se dispunham a partir, Héléne viu um livro sobre a aristocracia prusiana e o agarrou. Quando encontrou a página em que aparecia «Von Fehrenbach», a Condessa ficou tão imóvel que Maggie se aproximou para olhar por cima do seu ombro. O que viu a animou imediatamente. A figura principal do escudo dos Von Fehrenbach era um leão sustentando uma lança em cuja folha estava enrolada uma serpente. O lema estava em latim. - «A astúcia de uma serpente, a coragem de um leão» - traduziu Héléne com voz sem emoção. Maggie estremeceu. - De todos os nossos suspeitos, pensei que o menos provável era o Coronel Von Fehrenbach. - Isto não prova nada, disse Héléne com certa aspereza. Copiamos outros dez escudos semelhantes. - Mas nenhum que pertencesse a um suspeito, depois de refletir um momento, Maggie decidiu lhe repetir uma pergunta: Héléne, já te fiz esta pergunta e agora volto a perguntar: Há algo entre o Coronel Von Fehrenbach e você? Héléne se deixou cair em uma das poltronas estofadas em pele, sem olhá -la. - Não há nada além de... uma atração. Encontramo-nos várias vezes, sempre em público, e não falamos nada que qualquer pessoa não possa ouvir. Maggie também se sentou e arrumou o cabelo com os dedos manchados do pó dos velhos livros. Como ela, Héléne agia por instinto, que normalmente é um guia mais fidedigno que a lógica.


- Acredita que o Coronel poderia estar envolvido em uma conspiração contra a França? - Não, respondeu Héléne com firmeza. Olhou Maggie aos olhos. Eu investigarei mais de perto. Com o coração aflito pelo temor, Maggie se inclinou para ela. - Héléne, o que se a propõe fazer? Se o Coronel for o Serpent, é um homem perigoso. Na realidade, provavelmente ele é de todo modo. Héléne esboçou um tênue sorriso. - Não farei nada que me ponha em perigo ou a sua investigação - Ao ver a rebelde expressão da sua amiga, acrescentou - Não pode me impedir isso, sabe? Não sou sua empregada, e sim uma agente livre que trabalha contigo porque temos os mesmos objetivos. Maggie exalou um suspiro, observando os arredondados traços da cara doce da sua amiga. Embora parecesse tão inocente como um cordeirinho recém-nascido, Héléne era forte e inteligente. Se estava decidida a abordar a Von Fehrenbach, ela só podia esperar e desejar que disso saísse algo que valesse a pena. A pedido de Maggie, que lhe fez chegar uma mensagem, Robin foi vê-la em casa essa noite. Embora a lua ainda não estivesse cheia, iluminava o suficiente para que o vigilante que observava de detrás da porta de uma casa de frente não tivesse nenhuma dificuldade em identificá-lo: loiro e formoso como Lúcifer, tal como o havia descrito o Duque. O observador se reclinou em sua poltrona filosoficamente, contente de que seu lugar de observação fosse cômodo. Não era provável que um visitante de meia noite a bela Condessa tivesse pressa em partir. Não tinha idéia que outro par de olhos estava também observando a mesma casa. Maggie dormiu mal essa noite. Robin tinha achado promissores os desenhos dos brasões e pensava em mostrá-los a pessoas do submundo de Paris com a esperança de que se soltassem as línguas. Mas Robin lhe disse muito pouco e isso a pôs nervosa porque sentiu que lhe ocultava algo. Podia ter muitos bons motivos para lhe esconder coisas, mas o mais provável era que desejasse protegê-la e isso reforçava sua idéia de que estava fazendo um trabalho perigoso. Desejou fervorosamente que se assinasse o tratado para poder voltar para a Inglaterra, para a paz, a tranqüilidade e a segurança. Abriu os olhos e ficou olhando na escuridão. A idéia de uma casinha de campo na Inglaterra lhe incomodava à semanas. Embora lhe viria muit o bem a paz, os dias transcorreriam vazios e sem novidades. Poderia sair a passear, ler, fazer amigas e visitá-las pelas manhãs, dia após dia, mês após mês, ano após ano... A perspectiva não era lhe entusiasmante. Sentir-se-ia muito só nessa vida de respeitabilidade irrepreensível que tinha desejado. Não haveria homens como Rafe que a atacassem verbalmente ou lhe fizessem proposições desonrosas. Ao chegar a esse pensamento pôs-se a rir em voz alta. Se se apoiava em sua história, não haveria escassez de homens que lhe fizessem propostas. Simplesmente não haveria nenhum a quem desejasse aceitar. Mas como, em definitivo, era o motivo de seu desassossego. Rafe Whitbourne seguia sendo o homem mais fascinante que tinha conhecido: inteligente, mais que um pouco arrogante, tenro e enigmático alternativamente, e condenada, enloquecedoramente atraente. Enfeitiçava as mulheres como um andarilho, de modo que não


era de estranhar que ela tomasse parte de suas legiões de admiradoras. Aos trinta e um anos era capaz de perceber a sorte que tinha tido ao não casar-se com ele. Nesse tempo os dois eram uns meninos; ela estava tão apaixonada que jamais lhe ocorreu pensar que ele teria amantes, como a maioria dos homens da sua posição social. A primeira vez que tivesse ocorrido isso ela se haveria sentido destroçada, como ocorreu a Cynthia Northwood. Sabia que em lugar de entregar-se à promiscuidade, teria se convertido em uma arpía desmandada, tão pouco disposto a desentender-se dele como a aceitar suas infidelidades. Ele teria reagido com incredulidade e sobressalto, lamentando não ter-se casado com uma mulher mais sofisticada que compreendesse os costumes mundanos. E quanto mais ela tivesse lutado, mais ele teria se afastado. Teria morrido o amor e teriam se feito desgraçados. Tudo isso ela via com trágica clareza. Posto que acabava de pensar em quão afortunada era porque ele havia rompido o compromisso, por que essa conclusão não a fazia feliz? Desesperada, cobriu os olhos com o braço, em uma vã tentativa de ocultar as imagens do Rafe e a lembrança de como seu contato lhe desvanecia o sentido comum e o autodomínio. De pouco consolo lhe servia saber que a menor importância que ela teria na vida dele seria o de ter sido a única mulher que tinha rejeitado sua proposta de ser sua amante. Mas isso na realidade era melhor que nada? A visita de Maggie e Rafe ao Louvre com os Roussaye resultou educativa de modos inesperados. Em todas suas campanhas Napoleão saqueava os tesouros artísticos dos países conquistados e os instalava no antigo pa lácio, ao que chamou de Museu Napoleão, em cujas magníficas galerias eram celebradas recepções de Estado. As obras de arte eram um ponto litigioso importante nas negociações para o tratado. Compreensivelmente, os países conquistados desejavam a devolução de suas pinturas e esculturas, enquanto os monárquicos e os bonapartistas franceses estavam unidos em seu desejo de reter os troféus de suas conquistas. O litígio ainda não estava resolvido, embora fosse certo que no final os aliados ganhariam; o único soberano que estava a favor de deixar aos franceses suas botas de cano longo era o Czar da Rússia, que não tinha perdido nenhuma obra de arte. Quando os dois casais se detiveram para admirar um magnífico Tiziano, Roussaye fez uma referência indireta ao tema: - Temos que admirar estas obras de arte enquanto podemos; nunca antes se viu uma coleção assim, e é possível que o mundo nunca volte a ver uma igual. Estavam olhando o maravilhoso óleo com muito respeito quando os surpreendeu uma voz detrás deles: - Tem muitíssima razão, General Roussaye. Este museu é um dos melhores frutos do império. A Maggie lhe arrepiaram os cabelos da nuca ao ouvir essa voz tenebrosa e sussurrante. Voltou-se para olhar o Conde de Varenne. - Surpreende-me que um monárquico aprove algum ato do Bonaparte, disse Roussaye


em tom frio. - Sou monárquico, não tolo, General Roussaye - respondeu o Conde sorrindo. O Imperador foi o colosso de nossa era e só um parvo tentaria negar isso. O comentário suavizou muito a expressão do General. - Como você, continuou Varenne, vim me despedir de alguns de meus quadros prediletos. Assim que acabou de falar se ouviu uma comoção em outro ponto da galeria. Em meio de gritos em francês, o ruído de botas ao passo de marcha anunciou a entrada de um destacamento de soldados. Maggie reconheceu o uniforme prussiano. À vista dos incrédulos visitantes ao museu, os soldados começaram a tirar quadros da parede. O General Roussaye correu ao encontro deles. - Com que autoridade fazem isto? O prussiano que ia no comando se voltou e Maggie reconheceu o Coronel Von Fehrenbach. - Com a autoridade da propriedade, respondeu o Coronel com expressão fria e satisfeita. Posto que os negociadores não estão mais perto de um acordo justo do que estavam em julho, a Prussia leva o que lhe pertence. Desejosa de observar todos os detalhes e matizes do enfrentamento, Maggie começou a caminhar para o Roussaye, mas Rafe lhe agarrou o pulso e a fez parar em seco. - Não se meta nisto, lhe disse em um tom que não admitia réplica. O Conde de Varenne foi se colocar junto ao seu compatriota. - O Congresso de Viena permitiu a França conservar seus tesouros ele disse com voz menos enérgica, mas não menos hostil, e não há nenhuma segurança de que se revogue essa decisão. O que estão fazendo é um roubo. - Diga o que quiser, respondeu o alto prussiano tranquilamente, estou aqui por ordem de meu Rei. Temos o poder e o direito de nossa parte, e não tolerarei nenhuma intromissão. Os soldados começaram a guardar os quadros nas caixas de madeira que tinham trazido. Ao redor dos homens se congregou um grupo de cidadãos franceses com a cara tensa. Por um instante Maggie acreditou que tentariam expulsar dali aos soldados, mas passou o momento e os olheiros continuaram passivos. - Não seja tão justiceiro, Coronel - disse a voz sibilante de Varenne. Muitas das obras de arte que os aliados reclamam tão virtuosamente eram roubadas. Os cavalos de bronze de São Marcos, por exemplo, os venezianos saquearam de Constantinopla. - Isso eu não nego, respondeu Von Fehrenbach, com expressão cínica, mas a natureza de uma bota de cano longo desafia à moralização fácil. - É possível que todas as nações sejam saqueadoras, disse Roussaye com os lábios apertados, mas só a França fez acessível a todos tanta beleza. Inclusive os mais pobres dos pobres podem vir aqui e glorificar-se nela. - Muito de acordo, os franceses são os ladrões mais eficientes da história - concordou o Coronel. Estudaram as guias e enviaram os artistas para lhes certificar de não passarem por cima de nenhuma das melhores obras. Inclusive o Imperador fez pagar ao Vaticano o preço


de trazer em navio seus troféus a Paris. Mas não esqueçamos o que disse o próprio Wellington: bota de cano longo é aquilo ao que alguém pode lhe por a mão e conservá-lo. Von Fehrenbach se voltou para seus homens e acrescentou por cima do ombro. E a França não é capaz de conservar estes. Foi uma sorte que o Coronel estivesse acompanhado por esse considerável número de soldados, porque suas palavras causaram um rumor de raiva impotente entre os observadores. Depois de um momento em silêncio, o General Roussaye se girou sobre seus pés e voltou para seus acompanhantes. - Creio que é melhor que partamos. Agarrou a sua esposa pelo braço e puseram-se a andar pela galeria, afastando-se dos soldados. Maggie, Rafe e Varenne os seguiram em silêncio. Já se tinha propagado a voz do assalto ao Louvre e na Agrada du Carrousel se estava congregando uma multidão. À sombra do enorme arco da vitória que sustentava os cavalos de São Marcos, Maggie e seus companheiros tiveram o privilégio de ver como se levavam a Vênus de Nilo, logo seguida pelo Apolo Belvedere. Perto dela, um jovem com um avental manchado de pintura emitiu um gemido de pena. - Ai, oxalá Wellington tivesse ordenado que fizessem isto de noite para nos economizar o horror de ver como nos arrebatam isso. Embora a dor do artista fosse, eloqüente, Maggie não pôde evitar pensar friamente que os venezianos, os prussianos e outras vítimas da cobiça do Napoleão haviam sentido uma dor igual. - Por desgraça, vão jogar a culpa ao Wellington, disse Rafe em voz baixa detrás dela. Sua popularidade entre os franceses vai se desvanecer rapidamente. Roussaye se voltou a olhá-los; nos grandes olhos negros de sua mulher, que estava agarrada ao seu braço, havia uma expressão de pena. - Creio que não vou ser boa companhia, disse o General com admirável serenidade. Vos rogo que nos perdoem e partamos. - É obvio, General Roussaye, prima Filomena - respondeu Rafe, sempre tão cortês. Talvez possamos nos encontrar em outra circunstância menos controvertida. - Nada na França é sem controvérsia, disse o geral sorrindo sem humor. - Toda a França o acompanha em sua indignação, General - disse Varenne, falando pela primeira vez desde que se afastaram dos prussianos. Maggie viu o olhar de simpatia entre os dois franceses capazes e perigosos e lhe passou pela cabeça a inquietante ideia de que a França voltaria a ser o país mais perigoso da Europa se chegassem a unir os monárquicos com os bonapartistas. Graças a Deus havia tanto ódio entre as facções que era improvável que isso ocorresse muito em breve. - Lamento que tenham tido que presenciar essa cena - disse Varenne ao Maggie e Rafe quando já se partiram os Roussaye - Tinha ouvido rumores de que os prussianos estavam se impacientando com a lentidão das negociações, mas ninguém esperava que atuassem com tanta rapidez.


- Parece-me que as coisas vão piorar em lugar de melhorar, disse Rafe. A controvérsia pelas obras de arte está se convertendo no símbolo de todos os conflitos da conferência de paz. - A situação é muito explosiva, concordou Varenne. Como certamente você deve saber, há muita confusão no governo e temo que Richelieu não seja suficientemente forte para manter a ordem. Deixando a um lado o mau humor, olhou a Maggie. Não deveria falar destas coisas diante de uma dama. Maggie supôs que ele quis dizer que ela era muito parva para entender de política. Pois, quanto menos inteligente acreditasse era melhor. - Tudo isto é horroroso - gorjeou, agitando as pestanas. Acabam as guerras, poderia pensar-se que já não haveria mais problemas. - Temo que as coisas não sejam tão singelas, disse Varenne com um brilho satírico em seus olhos escuros. Espero com ilusão o dia em que possa me retirar para minha propriedade e me concentrar em meus próprios assuntos, mas isso não será muito em breve. - Sua propriedade está perto de Paris? - perguntou Maggie, que sabia muito bem a resposta. - Sim, não muito longe da casa do Imperador, em Malmaison. Chanteuil é provavelmente o melhor castelo medieval da França. - Isso soa maravilhosamente romântico. - É. Varenne lhe dirigiu um sorriso que poderia ter sido encantador se não fosse pela expressão calculista de seus olhos. Eu adoraria recebê-la na semana que vem, talvez? Maggie não conseguiu responder porque Rafe lhe adiantou, lhe rodeando a cintura com o braço: - Talvez depois. A Condessa e eu estamos bastante comprometidos para o futuro próximo. Parecendo divertido por essa reação possessiva de Rafe, Varenne agarrou a mão de Maggie e depositou um beijo nela. - Você e a encantadora Condessa serão bem-vindos no Chanteuil a qualquer momento, monsieur le duc. Dito isso partiu, desaparecendo entre a multidão de parisienses furiosos. Maggie observou suas largas costas, inquieta; o Conde a tinha tratado com paquera, mas pressentia que na realidade não estava interessado nela. - Creio que deveríamos partir daqui, Condessa - lhe disse bruscamente Rafe, interrompendo a análise de sua inquietação. Esta multidão poderia revoltar-se. Essas palavras a fizeram tomar consciência dos murmúrios e comentários ao seu redor, e sentiu o antigo medo que sempre lhe produziam as multidões. Vendo como as pessoas se separavam de Rafe para lhe dar passagem, agradeceu sua presença. Qualquer um pensaria duas ou três vezes antes de abordar ao Duque do Candover, não só por sua evidente riqueza, mas também por esse ar de cavalheiresca ameaça. Quando estiveram livres da multidão, Rafe procurou um carro de aluguel para que os levasse a Alameda dê Capucines.


- Foi interessante ver os três suspeitos juntos, comentou quando já estavam instalados no carro, mas não posso dizer que tenha mais idéia sobre qual deles é culpado do que. Tem alguma idéia sobre o tema? Ela repassou suas impressões sobre o enfrentamento no museu. - As mesmas que tinha antes, só que mais acentuadas. O Coronel Von Fehrenbach despreza aos franceses e goza da humilhação deles. Embora ainda não o imagino dirigindo uma conspiração, é possível que utilize outra pessoa de temperamento mais sinuoso. - E o General Roussaye? - Comportou-se com uma moderação insólita, disse ela passado um momento. Estava tão furioso pela invasão do Louvre que não me teria me surpreendido se tivesse induzido ao grupo de franceses a atacar os prussianos. - Não se teria arriscado a isso estando ali sua esposa. - Certamente esse foi um fator, concedeu ela. Além disso, é inteligente e deve ter percebido que expulsar dali os prussianos não ia fazer nenhum bem real. Mas é um guerreiro e tenho a impressão de que lhe custou muitíssimo esforço não atacar. Recorda minha suspeita de que poderia estar envolvido em algo secreto? Talvez partiu para não fazer algo que pusesse em perigo outro projeto. Eu apostaria muitíssimo que algumas partes de sua vida não suportariam a luz do dia. - E o que me diz do Varenne e seu tão romântico castelo? - perguntou Rafe com um sotaque sardônico na voz. - Nesse homem não confiaria mais que em minha capacidade de baixar sua ponte levadiça, disse ela sorrindo. Suspeito que é tão sinuoso por natureza que seria impossível determinar se está conspirando ou simplesmente quer ofuscar com princípios gerais. Rafe não correspondeu ao seu tom alegre e disse em tom sombrio: - Sinto-me como antes de uma tormenta, quando as nuvens estão se juntando. Queria Deus que soubesse de que lado vai soprar o vento. - Não é o conhecimento o que nos salva das tormentas, disse ela recorrendo a sua sabedoria arduamente adquirida, e sim a flexibilidade. Íon são que não se dobram, os que se rompem. - É esse um comentário indireto sobre almas rígidas como eu? - perguntou ele com as sobrancelhas arqueadas. Recorda que as flores se dobram diante a tormenta e de toda maneira ficam destroçadas, suas pétalas voam aos quatro ventos. - Não leve tão longe a analogia, excelência - disse ela sarcástica. Eu posso parecer uma rosa sem pétalas, mas sobrevivi a tormentas, mais violentas que as que você conheceu em toda sua vida. O carro se deteve diante da casa de Maggie e eles desceram. Posto que o prematuro final de sua expedição os fez retornar cedo, ele a seguiu e entrou com ela na casa. Notando que ele estava em um estado de ânimo estranho, lhe sugeriu: - Faz dias que não jogamos xadrez. Parece-te bom que terminemos a partida que temos na metade? Ele aceitou e se sentaram a jogar, mas os dois estavam tão distraídos em seus


pensamentos que teria sido difícil determinar qual dos dois jogava com mais descuido. Maggie quase não tinha idéia das jogadas tinha feito quando ele disse: - Xeque. Vendo que um bispo negro ameaçava ao seu rei, interpôs um cavalo branco em seu caminho. Rafe podia lhe comer o cavalo, mas então lhe comeria o bispo, restabelecendo o equilíbrio de poder, uma vez que salvava ao seu rei. - Eu adoro os cavalos, comentou ociosamente - se movem de um modo tão enganoso. - Como você, Condessa? Surpreendeu-a o tom duro de sua voz. - Supondo que sim, depois - toda a espionagem é a arte do engano. - A rainha branca vai se sacrificar pelo rei? Os olhos cinzas a perfuravam, e ela compreendeu que já não falava de xadrez. Os traços de sua cara estavam duros, e todo seu corpo irradiava tensão. Maggie apertou os lábios. Imaginou-se que em algum momento ele ficaria difícil, e ao que parecia esse momento tinha chegado. - O que quer dizer, Rafe? Em lugar de responder, ele moveu seu rei negro para capturar a rainha branca. - Sabe muito bem que essa jogada não é legal, disse ela exasperada. De que estranho argumento quer me convencer? Rafe agarrou a rainha branca e o rei negro e os tirou do tabuleiro. - Só isto, Maggie, que não te permitirei que se sacrifique pelo rei. Com ou sem seu consentimento, vou retirar-te do jogo.

CAPÍTULO 13

Maggie o olhou fixamente, perguntando-se de que imbecilidade estava falando. - Retirar-me do jogo? - perguntou friamente. Terá que falar muito mais claro. Com um violento movimento do braço. Rafe varreu do tabuleiro todas as peças; as figuras antigas esmaltadas caíram no tapete oriental, ricocheteando e entrechocando com ruído surdo, saindo disparadas em todas as direções. - Refiro-me ao Robert Anderson - espetou, seu amante, que é um espião e um traidor. Maggie se levantou com tanta brutalidade que sua cadeira caiu para trás. - Não sabe o que diz! Rafe também se levantou, alto, imponente. Desaparecido o homem do mundo, educado e fleumático, ele ardia de violenta emoção. - Sim - eu sei, minha dama rameira. Sei que vem ver-te a altas horas de noite, mesmo que Lucien tenha ordenado que não se comunicasse com ninguém da delegação britânica. - Levo muito mais tempo que você nestes jogos perigosos, excelência - disse ela sem desviar a vista de seu furioso olhar. Trabalho com quem merece minha confiança.


- Embora sejam traidores? Eu vi seu amante em encontros furtivos com o General Roussaye. Eu pessoalmente o vi falando com o Henri Lemercier no Café Mazarin, talvez planejando o atentado contra a vida do Castiereagh. Pela primeira vez ela sentiu apreensão, mas se manteve firme. - Isso não demonstra nada. Os espiões devem falar com todo mundo, não só com cidadãos respeitáveis. Ele deu a volta à mesa até ficar a uns poucos centímetros dela. - Então reconhece que é um espião? - Pois claro que ele é! Trabalhamos juntos durante anos. - Ou seja, foi seu amante durante anos - repetiu ele com os olhos frios como gelo. E sabe para quem trabalha? - Para os britânicos, é obvio. Robin é tão inglês como eu. - Embora isso seja certo, a nacionalidade não significa nada para um mercenário. Provavelmente vende ao melhor pagador e esteve te utilizando. Fechou os olhos. Está segura de que é inglês? - Estúpido ignorante! - explodiu ela. Suas acusações são ridículas, e não as escutarei. Deu meia volta, mas ele a agarrou fortemente pelo braço. - Ridículas? De onde procede seu dinheiro? Quem te paga os vestidos de seda, o carro e a casa na cidade? Ela soltou o braço. - Eu o faço, com o que me paga o governo britânico. - Paga-te diretamente? - Chega-me através de Robin, respondeu ela depois de um breve silêncio. Era exatamente o que ele supunha. - Escrevi ao Lucien lhe perguntando quanto te pagou o governo nestes doze anos passados. Pagaram-te umas cinco mil libras, o que não é suficiente para te manter um ano no estilo de vida que leva. Ela abriu mais os olhos, mas se negou a voltar atrás. - Talvez isso é o que pagou Lorde Strathmore, mas tem que ter outras agências britânicas que necessitam de informação. Provavelmente Robin trabalha com várias delas. Embora disse isso em tom desafiante, ele notou que sua revelação a tinha perturbado. Aproveitou essa vantagem. - Admiro sua lealdade, mas há possibilidades de que ele seja o espião da delegação britânica, e é quase uma certeza que está envolvido na conspiração contra Castiereagh. Minha única dúvida é se você é sua cúmplice ou é seu instrumento. - Isso eu não acredito, exclamou ela furiosa. Robin é o melhor amigo que tive em minha vida, e se tiver que escolher entre acreditar nele e te acreditar em você, escolho a ele. Vá! Fora daqui! Até esse momento Rafe se limitou a dizer suas suspeitas sobre a lealdade do Anderson, mas a negação do Maggie em pensar mal de seu amante lhe dissolveu o autodomínio. Agarrou-a pelos ombros.


- Porque a ele, Margot? Porque a ele e não a mim? Tão incomparável na cama? Acreditas que o ama, ou é que te mantenha neste nível de vida? Apertou-lhe fortemente os braços. Se for dinheiro o que deseja, pagarei seu preço, por elevado que seja. Se for relação sexual, me dê uma noite e depois decida quem é o melhor. Fez uma inspiração rouca. E se o defende por cega lealdade, pensa se um traidor merece esse tipo de lealdade. - E você se atreve a me perguntar por que prefiro ao Robin? - disse a rindo. Ele foi quem me salvou a vida e me deu um motivo para continuar vivendo. Ponho Deus por testemunha de que prefiro ser o instrumento de um traidor que a amante de um homem que me usou e julgou sem ter nenhuma prova, um homem cujos insensatos atos conduziram meu pai a me tirar da Inglaterra. Desceu a voz e ele viu em sua cara uma raiva que gelava o sangue: Meu pai não teria sido assassinado pelos franceses se não tivesse feito o que fez, Rafe. Por isso não posso te perdoar jamais. Quanto ao seu presunçoso egocentrismo masculino, acredito que tenha aprendido suas habilidades nas camas de todas as putas da Europa. Jamais me entregarei a um homem sem amor e você é incapaz de amar a alguém. É um libertino egoísta, arrogante e presunçoso e não quero voltar a ver-te. Agora, me solte! Levantou os braços tentando de escapar, mas ele era muito forte que ela. Passou-lhe uma mão pela nuca e a fez voltar o rosto para ele. - Meu deus, Margot - lhe disse com voz rouca - não brigue comigo. Só quero sua segurança. Beijou-a impetuosamente, com a esperança de que a paixão dissolvesse sua resistência. Sempre que se abraçavam se acendia o desejo entre os dois, rápido e impossível de negar. A princípio ela se debateu com violência, mas ele a segurou com firmeza e pouco a pouco ela se foi abrandando e começou a lhe responder com a intensidade igual a dele. Ela introduziu a língua em sua boca e desceu mão pela parte anterior de seu corpo, procurando. Ele gemeu de prazer quando ela o tocou e seu membro se endureceu de imediato. Assim era como deviam estar sempre, amando-se, não brigando. Deixou o abraço e começou a baixar as mãos lhe acariciando os quadris. Ela aproveitou esse momento de relaxamento para levantar violentamente o joelho, em um selvagem truque de briga suja de ruas. Dolorosamente consciente de que essa amostra de paixão só era uma mutreta, ele alcançou a separar-se e esquivou o golpe bem a tempo; o joelho lhe golpeou a coxa, sem alcançar a enterrar-se nos genitais, mas teve que soltá-la. Tão logo Maggie se liberou do abraço correu até a mesinha encostada à pa rede entre as duas janelas, tirou uma pistola da gaveta, voltou-se para ele e apontou. - Vá e não volte a se aproximar de mim nunca mais. Se fizer algo para machucar ao Robin farei te matarem. Embora lhe tremesse a voz, a pistola que segurava com ambas as mãos estava letalmente firme. Rafe olhou a pistola, incrédulo. - Maggie... - Não se aproxime! Martelou a pistola. Advirto-lhe isso, se fizer algum mal ao Robin morrerá embora eu já esteja morta. Sei organizar um assassinato, e não haverá na terra


nenhum lugar o suficientemente longe para te esconder. Agora agarre sua torpe afeição à espionagem, seu ciúmes e suas ridículas acusações e volte para a Inglaterra. Seguro que isso era uma mentira; o mais provável era que nem sequer tivesse a pistola carregada. Deu um passo para ela, e ela apertou o gatilho. O estampido foi ensurdecedor no espaço fechado. Rafe sentiu a vibração da bala ao passar perto dele; partes de algo rompido lhe golpeou a panturrilha e a fumaça lhe ardeu os olhos. Pensou que Maggie tinha disparado sem apontar a nada, mas depois de piscar para aliviar a ardência dos olhos, viu que tinha disparado no rei negro que tinha estado no tapete, perto de seu pé, e que ficou destroçado em mil fragmentos. Uma pontaria admirável; era evidente que com a mesma facilidade poderia lhe ter colocado a bala dentro do olho. Quando levantou a vista, ela já tinha carregado a arma e estava apontando-a novamente. - Como pudeste comprovar, não perdi minha pontaria, lhe disse implacável. Se tentar algo, a seguinte bale irá dirigida a ti. Ele pesou as possibilidades de tentar lhe tirar a pistola, mas havia uma boa distância entre eles, e viu assassinato nos olhos dela. Amaldiçoou-se por ter cometido a estupidez de atacar ao Anderson dessa maneira. Nas melhores circunstância s teria sido difícil convencê-la da traição de seu amante; ao misturar as provas com seu ciúmes tinha perdido toda possibilidade de fazê-la mudar de opinião. De todo modo, com a maior calma e convicção que conseguiu reunir, tentou: - Pelo seu próprio bem, Maggie, não confie em Anderson. Quer que morra Castiereagh, e talvez outros, devido a sua teimosia em não querer ver o Anderson pelo que é? Ele é a única pista para a conspiração que temos, e deveríamos dizer ao Wellington que o detenha para interrogá-lo. - Não me convenceu, excelência - respondeu ela, com os olhos cor fumaça tão hostis como sua voz. Como te disse, os espiões devem falar com todo mundo, especialmente com suspeitos como Lemertíer e Roussaye. Quanto ao dinheiro, talvez seja muito rico para compreendê-lo, mas a maior parte do mundo tem que ser prática nessas coisas tão sórdidas. Vender a mesma informação a mais de um inimigo de Napoleão poderia ser simplesmente bom negócio, não traição. - Mas não está segura, não é? - disse ele docemente, pressentindo que isso era só uma bravata para defender ao Anderson. Ela se esticou e ele se perguntou qual seria a sensibilidade do gatilho. Sentiu um comichão de fria diversão diante a idéia de que o nobre Duque do Candover podia ser assassinado em uma rixa entre amantes, com a ironia acrescentada de que nem sequer eram amantes. - Poderia apresentar provas irrefutáveis e dez testemunhas irrepreensíveis e que Robin seja um traidor, disse ela com o peito agitado, e possivelmente - só possivelmente, eu poderia te acreditar, mas de todo modo não me deitaria contigo. Vai voluntariamente ou chamo aos meus criados para que lhe joguem à rua? Desesperado, Rafe compreendeu que tinha fracassado e que seu fracasso piorava tudo. Embora Maggie estivesse erroneamente obstinada em defender o Anderson, ela seguia


considerando impossível que aprovasse ou justificasse uma conspiração de assassinato. Diante do seu desafio ela se empenharia ainda mais em descobrir a conspiração, embora só fosse para demonstrar que ele estava equivoca do. Isso poderia pô-la em grave perigo e ele não estaria ali para protegê-la. A pistola o seguiu sem tremer enquanto ele atravessava o salão até a porta. Com uma mão no pomo, voltou-se a olhá-la. Nem o fato de que o estivesse apontando ao coração, alterou-lhe o desejo. - Não irei de Paris enquanto isto não tenha acabado - lhe disse docemente - Se necessitar de ajuda a qualquer momento ou por qualquer motivo, sabe onde me encontrar. Dito isso saiu, e a porta voltou a fechar-se silenciosamente. Maggie deixou a pistola na mesinha, fraquejaram-lhe as pernas e caiu ao chão de joelhos; cruzou os braços sobre o diafragma, tentando conter as náuseas, enquanto por sua cabeça passavam as imagens da horrorosa cena. Muitas vezes tinha sentido curiosidade por saber o que haveria debaixo dessa tranqüila objetividade de Rafe; agora sabia, e desejaria não sabê-lo. Embora ele sempre tivesse deixado muito em claro que a desejava, ela nunca imaginou que sentisse esse ciúme tão violento. Seu comportamento tinha sido igual ao de treze anos atrás; nesse tempo ela o atribuiu ao amor, mas pelo visto as verdadeiras causas eram seu orgulho e possesividade. Poderia ser que lhe tivesse mentido a respeito do Robin? Embora o que lhe disse sobre ele era desconcertante, não era prova de que fizesse jogo duplo. De certo, Robin não comentou nada de seus encontros com o Roussaye e Lemercier, mas isso não significava nada, porque dificilmente falava de suas atividades em detalhes. Tampouco ela o informava de tudo o que fazia. O assunto do dinheiro, em troca... a isso sim era muito mais difícil lhe achar explicação. Embora durante a maioria desses anos não tivesse vivido com prodigalidade, Robin lhe tinha dado milhares de libras mais que a soma que Strathmore dizia lhe ter pago. Parte desse dinheiro tinha ido aos seus informantes, outra parte para seus gastos e outra estava investida em Zurich, onde gerava juros suficientes para permitir retirar-se a Inglaterra. Jamais tinha colocado em dúvida a quantidade de dinheiro que recebia, pois supunha que esse era o pagamento normal de uma espiã. Seria certo que Robin tinha estado servindo a mais de um País? Sempre tinha dado a entender que todo o dinheiro era britânico. Obrigou-se a pensar no tema da nacionalidade de Robin. Quando se conheceram lhe disse que era inglês, mas nunca lhe falou de sua vida anterior. Inquieta, deu-se conta de que podia ter nascido em qualquer parte, porque tinha o mesmo e infalível dom que ela tinha para os idiomas; de fato lhe tinha ensinado a forma de escutar que lhe permitia aperfeiçoar uma determinada pronúncia ou acento. Embora grande parte de sua vida fosse um mistério, ela nunca tinha duvidado de que era sincero com ela nas coisas importantes. Já não podia estar tão segura. Só duas semanas antes lhe havia dito que nunca confiasse em ninguém, nem sequer nele; ela não fez caso do comentário, considerando-o uma brincadeira, mas nesse momento a lembrança a atormentou.


Trêmula, levantou-se e foi ao aparador procurar a garrafa de conhaque. Serviu uma taça e bebeu a metade de um só gole. Isso a esquentou um pouco, mas não lhe deu nenhuma pista sobre no que devia acreditar. Rafe podia estar louco de desejo frustrado ou de orgulho ferido, embora apostasse que estava convencido do que lhe havia dito. Mas como poderia desconfiar de Robin, seu melhor amigo, que lhe tinha salvo a vida e a prudência? Às cegas apertou a taça quase sem notar como lhe queimava a garganta. Era estranho o quanto Rafe a afetava com seu mau comportamento e a traição do passado. Era capaz de despertar profundas emoções muito diferentes as da sólida e agradável amizade que compartilhava com Robin. Que lástima que Rafe usasse esse poder só para feri-la. O inglês entregou ao Serpent a informação requerida sobre a Embaixada britânica, adquirida não com pouco risco. Duas vezes estiveram a ponto de surpreendê-lo outros membros do pessoal, e acreditou ver suspeitas em seus olhos ao encontrá -lo em lugares onde não lhe correspondia estar. Mas ninguém lhe fez nenhuma pergunta difícil, e o dinheiro recebido era uma boa compensação por seus riscos. Desta vez a sala estava mais iluminada para que O Serpent pudesse ver as plantas. Esteve vários minutos estudando-os e finalmente emitiu um grunhido de triunfo: - Perfeito, absolutamente perfeito. O bom Deus deve tê-lo desenhado de acordo ao meu plano. Não tendo nenhum desejo de conhecer mais sobre esse plano, o inglês se levantou para partir. - Se não me necessitar para nada mais... O Serpent também se levantou e seus olhos brilharam duros nos buracos da máscara. - Não o despedi ainda, mon petit anglais. Meu plano necessita de sua complacente participação. Assinalou um lugar no plano com um forte dedo: Vê esta espaçosa dispensa? O inglês se inclinou a olhar. - Sim, o que tem ela? - Está diretamente debaixo do dormitório do Castiereagh. Disse-me que dificilmente é usada e que sempre está fechada com chave. Se estiver cheia de pólvora e explodir, vai fazer voar esse lado da Embaixada convertendo-a em escombros. Nesse instante o inglês compreendeu por que O Serpent queria saber quem assistiria às diferentes reuniões. Se escolhesse o dia correto poderia destruir ao Wellington e a todos os ministros aliados junto com o Castiereagh. - Você está louco! - exclamou. - Não, absolutamente, disse tranqüilamente o encapuzado. Meu plano é audaz, mas muito factível. A parte mais difícil será entrar a pólvora na Embaixada, mas como você pertence ao pessoal, isso não vai apresentar problemas insuperáveis. - Como pretende fazer explodir a pólvora? - perguntou o inglês, dolorosamente seguro da resposta. - Um cordão o fará muito bem. Um cordão de cera dura demorará horas em derreter-se.


Terá tempo de sobra para ficar a salvo, e ninguém suspeitará de você. - Não quero participar desta loucura! Se morrerem assim os líderes aliados, haverá uma perseguição nunca vista na França. - Ah, certo que haverá um certo alvoroço, mas os aliados serão como frangos sem chefe uma vez que tenham desaparecido seus líderes. E quando se dissipar o pó... - depois de uma teatral pausa. O Serpent acabou a frase, haverá uma nova ordem na França. - E a mim o que me importa a França? Não vou pôr meu pescoço na corda por ela. O inglês tentou afastar-se, mas O Serpent lhe agarrou o pulso como com garras de ferro. - Eu repetirei uma vez mais, mon ami - disse com voz de pesadelo: não tem escolha. Desafiar-me é morrer. Por outro lado, sua colaboração é essencial para esta tarefa em particular, e sou muito generoso para recompensar aos meus servidores. Fez uma pausa para que fizessem seu efeito essas palavras e continuou em tom mais suave: Fixe-se que não faço nenhum intento de comprar sua lealdade, porque sei que disso não tem nada. A cobiça é a melhor alavanca com criaturas como você, portanto lhe faço a promessa: ajude-me a triunfar e sua riqueza e poder superarão seus sonhos mais loucos. O inglês não sabia o que seria melhor, se trabalhar para o maldito O Serpent, se denunciá-lo, ou se fugir da França. Mas sim sabia a horrível verdade de que nos próximos dias teria que optar por um lado, e se escolhesse mal era um homem morto. Claro que de todo modo morreria se traísse ao Serpent ou se os britânicos descobrissem sua traição. Colaborar era sua melhor opção e a mais lucrativa. - Uma vez mais me convence o brilhantismo de sua lógica, disse asperamente. - Estupendo. O Serpent lhe soltou o pulso. Eu gosto dos homens que aprendem rápido. Agora sente-se, que tenho mais perguntas para você. Há vários agentes britânicos me farejando os pés e é necessário tirá-los de meu caminho. Diga-me tudo o que sabe destas pessoas. Dois dos nomes que lhe deu-lhe Serpent eram esperados, mas o resto foi uma surpresa; uma surpresa muito agradável, e bastante lógica se pensasse bem. O inglês reprimiu um sorriso de satisfação, não lhe ocorria nenhum outro a quem preferisse ver eliminado. Fazia muito que os criados se retiraram aos seus aposentos, e Maggie estava horas sentada à mesa da cozinha, com apenas uma vela e o gato da cozinha por companhia. Robin lhe havia dito que apareceria para vê-la se tivesse algo do que informá-la, mas a essa hora já não viria. Estava desesperada para falar com ele, para ouvir suas explicações sobre os pontos expostos por Rafe. Tinha que ter uma explicação razoável. E se lhe mentisse, ela perceberia. Não poderia dormir com tantas coisas sem resolver: suas traiçoeiras dúvidas do Robin e os ecos da horrorosa briga com o Rafe. Em um impulso decidiu que se Robin não viesse a ela, ela iria a ele. Tinha quartos perto da Agrada du Carrousel, contíguas ao Louvre e as Tullerías. Se não estivesse ali, o esperaria até que voltasse. Não seria a primeira vez que caminhava pelas ruas de Paris de noite.


Subiu ao seu quarto e pôs roupas de homem, contente de que a noite de setembro fosse bastante fresca para justificar a capa escura que ficava para ocultar sua figura. Como sempre que saía sozinha, agarrou a pistola e uma adaga. Embora preferisse evitar problemas, Robin tinha se encarregado de lhe ensinar a brigar. Robin, sempre Robin. Necessitava angustiosamente acreditar nele. Se não confiasse nele, em quem confiaria?

Capítulo 14

- Sempre foi você, Rafe - lhe disse Margot docemente, seus olhos nublados pelo desejo. Todos estes anos esperei que me encontrasse. Porque não veio antes? Beijou-o e lhe desabotoou a camisa para apertar seus lábios ardentes no oco sob sua garganta. Pareceu que a camisa desaparecia e seus cabelos dourados se deslizaram brandamente por sua pele; suas mãos desceram por seu peito e seu ventre, atormentando-o, excitando-o até a loucura... Rafe despertou para desagradável realidade com o coração desbocado e o corpo estremecido. Não tinha dormido muito, só o suficiente para que seus febris sonhos o deixassem convertido em nós. Deitou-se cedo, depois de escrever um relatório ao Lucien tão logo chegou ao hotel, de volta da briga com Maggie. Mas ela o obcecava, inclusive dormido. Cansativamente decidiu que bem podia fazer o mais absurdo. Vestiu-se com sua roupa mais singela e voltou para beco detrás da Alameda dê Capucines, onde um de seus homens observava a casa de Maggie de uma casa alugada, à frente da porta de trás. Fazia várias noites que tinha instalado ali a vigilância. Além de duas visitas do Anderson em noites diferentes, o vigilante não tinha visto nada de interesse, e provavelmente essa noite tampouco ocorreria nada especial. Mas como não podia manter-se longe, Rafe despediu de seu homem e ocupou ele seu lugar. Deveria ter retornado a Londres tão logo se inteirou de que a condenada espião de Lucien era Margot Ashton. Certamente sua estadia em Paris não tinha servido de nada ao seu País, e tinha feito estragos em sua ordenada vida. Com amargo ressentimento reconheceu que esse amor puro e juvenil que tinha sentido pela Margot se converteu nos negros acordes da obsessão. Ela era o único ser vivente capaz de destruir sua apreciada objetividade e a odiava por isso, inclusive enquanto se imag inava, sem poder evitá-lo, como seria lhe fazer amor. Já conhecia o sabor de sua boca, e sua imaginação lhe proporcionava claras imagens de como seria seu corpo, de como seria estar dentro dela, de como responderia... Uma vez mais obrigou os seus pensamentos a sair desse círculo insano. A força de seu


desejo era tão intensa que pela primeira vez em sua vida pensou se seria capaz de violá-la se lhe apresentasse a oportunidade. Pensou-o e evitou a pergunta, por medo da resposta. Maggie lhe havia dito que a desejava porque era inacessível, e ele sabia que havia certa justiça nisso. Ao fim e ao cabo, só era uma mulher e todas as mulheres são feitas mais ou menos igual. Também sabia por experiência que as mulheres mais formosas dificilmente eram as melhores amantes; as menos favorecidas pela natureza estavam acostumadas a esforçar-se mais. Se conseguisse fazer o amor a Maggie uma só vez, isso o liberaria de sua obsessão por ela, que estava arraigada nas lembranças de sua juventude. Mas não havia nenhuma possibilidade de que ocorresse isso. Colocaria-lhe uma bala se lhe aproximasse a quatro metros de distância. Era uma sorte que Anderson não tivesse visitado Maggie essa noite, porque ele haveria sentido a tentação de matá-lo com suas próprias mãos, e o jovem loiro era muito mais útil vivo. No dia seguinte poria o Wellington a par de suas suspeitas e insistiria para interrogá-lo, mas essa noite se ateve a sua mórbida vigilância. Além de uma débil luz na cozinha, o resto da casa estava às escuras. Perguntou-se se Maggie estaria dormindo ou estaria tão desassossegada como ele. As acusações contra Anderson a alteraram; talvez estivesse sofrendo de dúvidas. Grosseiramente desejou que assim fosse. Já era muito tarde quando viu sair da casa a uma figura escura que se movia c om o sigilo e a agilidade de um gato. Imediatamente compreendeu que era Maggie. Curioso pelo que iria fazer, deixou seu local de observação e se apressou a sair ao beco. Assim que tinha chegado a ele, viu quando outra figura saiu da casa da esquerda e começou a seguir Maggie. Por todos os infernos, quem mais a vigiava? Será que seus homens não tinham detectado à concorrência ou era algo novo? De repente se alegrou do impulso que o fez tomar o posto de vigilância essa noite. Se Maggie se metesse em algum perigo ele estaria ali. Confiava mais em sua própria capacidade para defendê-la que a de seus subordinados. Maggie os levou a uma perseguição divertida. Rafe admirou a velocidade com que caminhava, arrumando-se ao mesmo tempo para ser quase invisível. Evitando os bulevares bem iluminados, era uma sombra a mais nas estreitas ruas secundárias. De tanto em tanto olhava para trás, mas não tinha nenhum motivo para supor que alguém a seguia, e a mesma escuridão que a protegia ocultava também aos seus seguidores. Con sciente do aspecto ridículo de ter duas pessoas seguindo a outra, olhou para trás para certificar-se de que não o seguiam, mas parecia ele era o último do desfile. Quando se aproximavam da Agrada du Carrousel, compreendeu consternado que Maggie devia ir em direção ao alojamento de Anderson, que era por ali perto. Seria uma entrevista planejada, ou ia questioná-lo o com o que lhe havia dito? Isso era outra coisa que não sabia se desejava saber. De repente viu que Maggie se detinha no final da rua que dava à praça. Além dela viu o grande arco de triunfo que Napoleão tinha construído no centro da praça, coroando-o com os cavalos de bronze de São Marcos. A ondulante luz das tochas que rodeavam o monumento


iluminavam a um grupo de trabalhadores de pé em cima do arco; em toda a praça ressonava o ruído da percussão dos martelos; viu também a um supervisor com o uniforme de oficial britânico. Pelo visto, Wellington tinha decidido proteger os sentimentos dos franceses tirando esses exemplares mais visíveis da bota de cano longo de noite. Rafe lhe desejou um bom sonho ao velho Luis; o trabalho estava se realizando virtualmente sob as janelas do Rei no palácio das Tullerías. Parecia que Maggie estava duvidando entre passar pela praça ou dar um rodeio. Ouviu um estrondo atrás dele. Olhou para trás e viu aparecer um destacamento da Guarda Nacional Francesa que vinha de uma rua transversal em direção à praça. Pensando bem, recordou que desde há um momento se ouviu gritos, nas as labirínticas ruas medievais faziam parecer que vinham de mais longe. Vendo a boca escura de uma porta próxima que lhe oferecia amparo, apressou-se a subir alguns degraus e observou dali. Os guardas passaram correndo, seguidos por uma furiosa multidão de parisienses. Todas as multidões soavam igual, como uma besta raivosa, todo dentes, ventre e garras. Ninguém se fixou nele, em seu refúgio seguro por cima do redemoinho de gente. Ao ver os guardas e à multidão, os trabalhadores abandonaram suas ferramentas e se apressaram a baixar; uma vez no chão, correram para o palácio das Tullerías, onde se abriu uma porta que os deixou entrar. Judiciosa a gente do Luis ao não permitir que destroçassem os trabalhadores; Wellington se tomaria bastante mal que o Rei deixasse que assassinassem os soldados e cidadãos britânicos. No momento em que sua atenção estava na praça, perdeu Maggie de vista. Temendo que se visse apanhada no meio do torvelinho, desceu correndo os degraus e abriu passo vigorosamente por entre a multidão, em direção ao lugar onde a tinha visto por última vez. Embora ia atento a localizar ao outro homem que a vinha seguindo, não fez a menor tentativa de ocultar-se; com sua modesta roupa era simplesmente um a mais na viva multidão. Ouviu gritos perto da entrada da ruela da esquerda, seguidos por um rugido arrojado por uma voz francesa conhecida. - Aqui há outro espião inglês, um dos ladrões do Wellington! Frustrados pela fuga dos trabalhadores, os homens que estavam perto para ouvir se dirigiram para esse tumulto em busca de outro prisioneiro. Um momento se ouviu um grito de terror por cima do murmúrio geral. Era uma mulher. Maggie. Ativado pelo pânico, Rafe se lançou para ela, usando seu volume e suas habilidades pugilísticas para abrir caminho com chutes e patadas o mais rápido possível. Embora recebesse maldições e golpes, apenas os advertiu. Quando se aproximava do centro do distúrbio, ouviu o ruído de rasgão de tecido. - Uy, mas é uma mulher! - gritou entusiasmada a voz conhecida. O vozerio animal da multidão adquiriu outro tom. Rafe separou de um empurrão a dois jovens bêbados e se encontrou com o pesadelo que teve durante o distúrbio no teatro feito em uma horrível realidade. Maggie estava deitada no chão, mas seguia defendendo-se furiosamente, retorcendo-se,


dando chutes e brandindo uma adaga. O ombro e parte do peito se viam alvos contra o tecido rasgado de sua capa e à incerta luz lhe viu a cara deformada pelo medo, de um modo que ele jamais tinha visto. Um homem vestido com farrapos tentou lhe agarrar o pulso e lhe cravou a ponta da adaga na mão; com um chiado o homem retirou a mão sangrando. Com impressionante brutalidade uma bota lhe golpeou um lado da cara e acabou sua luta. Perdeu a consciência e a adaga caiu de seus dedos inertes. O homem que a golpeou a levantou até deixá -la erguida e a apertou contra seu peito apertando cruelmente com a mão um peito nu. Rafe o olhou e reconheceu a cicatriz no semblante triunfal de Henri Lemercier. - Terão que esperar na cauda, mês Amis, disse cordialmente. Eu a vi primeiro, mas não se preocupem que ela dá para muitos. Começou a retroceder arrastando-a para a ruela. Reconhecendo a dificuldade prática de violar a uma mulher em conjunto, outros retrocederam um pouco, alargando o espaço que rodeava a Maggie e ao seu raptor. A audácia era sua única esperança. Rafe se adiantou, golpeou ao Lemercier na garganta com o lado da mão e ao afrouxar a mão, agarrou a Maggie. Ao levantá-la notou a forma inconfundível de uma pistola no bolso da capa. Uma bala não lhe teria servido de muito a ela contra a multidão, mas poderia ser vir a ele. Ao tomar o corpo desmaiado sobre o ombro esquerdo, passou a pistola ao seu bolso. Depois pôs-se a correr pela ruela afastando-se da praça, rogando ao céu que a multidão demorasse para reagir. Só tinha avançado uns dez metros quando ouviu um rugido detrás: - Outro dos espiões do Wellington! - gritava Lemercier com voz afogada. Matem os dois! Uma pedra lhe golpeou o ombro e lhe fez dar um tropeção. Recuperou o equilíbrio, olhou para trás e viu que Lemercier tinha induzido os revoltosos a segui-los. O peso de Maggie lhe impediria de correr mais que a multidão; teria que tentar a única solução possível. Tirou a pistola e com uma mão a usou. Por sua mente voltou a passar, fugaz, a horrível imagem de Maggie violada por essa multidão, e pensou se não ser ia melhor colocar essa bala em seu coração. A idéia passou com a mesma rapidez que tinha chegado; não podia fazer mal a Maggie, nem sequer para salva-la de uma horrorosa morte. Levantou a pistola e estirou o braço apontando com a mesma deliberação que quando praticava o tiro em uma galeria. O disparo saiu com um ruído estranho e por um angustiante instante pensou que tinha saído mal; então a arma lhe golpeou a mão. Pareceu-lhe que o tempo transcorria mais lento e quase viu a bala girar, girar pelo ar até enterrar-se entre os olhos de Lemercier. Ainda nesse estranho movimento lento, a expressão do francês passou de cruel luxúria a horrorizada incredulidade. Brotou-lhe um pequeno jorro de sangue com osso e o impacto o fez cair nos braços dos revoltosos, cuja coesão se converteu em confusão ao perder o seu chefe. Rafe não perdeu mais tempo na observação. Voltou a agarrar Maggie e pôs-se a correr pelo labirinto de ruelas que rodeavam a praça, girando à esquerda, à direita, novamente à


esquerda. O inesperado disparo deteve a multidão tempo suficiente para ele perder-se de vista. Depois de correr a toda velocidade durante cinco minutos, sem perceber nenhum sinal de perseguição, deteve-se cambaleante. Não havia nenhum grama de Maggie que não gostasse exatamente tal como era, mas não era um peso-pena e sentia os pulmões a ponto de arrebentar pelo esforço. Respirando com dificuldade, depositou-a na calçada para lhe fazer um rápido exame. A escuridão não lhe permitiu ver muito, mas lhe pareceu que a respiração e os batim entos do coração do coração estavam bem. Ainda se ouviam gritos na distância, provenientes da Agrada du Carrossel. Tão logo recuperou o fôlego, agarrou-a nos braços e pôs-se a caminhar. Finalmente saiu a um dos bulevares e fez gestos a um carro de aluguel. Tão logo este parou, ordenou laconicamente ao chofer que os levasse ao Hotel da Paix. Na úmida intimidade do carro, colocou-a sobre seus joelhos, estendendo sua capa negra sobre os dois. Embora tivesse perdido o gorro, seus cabelos dourados seguiam ocultos sob um cachecol negro. Tirou-o e lhe apalpou brandamente o lugar onde tinha recebido o golpe, rezando que a pesada bota não lhe tivesse atingido totalmente; aliviado comprovou que seus abundantes cachos tinham amortecido o golpe. Durante o resto do trajeto a embalou em seus braços tentando esquentar seu frio corpo. Seus cabelos emanavam um sutil aroma exótico, reflexo da elegante e atraente Condessa. Entretanto, com uma vaga sensação de estranheza, deu-se conta de que a ternura superava ao desejo. Quando chegaram ao hotel desceu do carro, atirou uma moeda de ouro ao chofer e subiu os degraus sem voltar a vista atrás. O porteiro o olhou surpreso, mas não disse nada. Ninguém se atrevia a interrogar a um Duque, embora ele estivesse um com uma mulher inconsciente e com a roupa rasgada em seus braços. Um chute na porta de seus aposentos fez sair correndo o seu ajudante de quarto. Sem deter-se ordenou: - Diga ao zelador que desperte a uma garçonete e a envie aqui com uma camisola de dormir limpa. Depois vá procurar um médico. Quero que esteja aqui dentro de meia hora, mesmo que tenha que trazê-lo na ponta de uma pistola. A suíte era pequena e não tinha quartos para convidados, de modo que a levou a sua cama. A figura vestida de negro se via pequena na enorme cama de quatro postes. Não lhe escapou a ironia da situação. Tinha sonhado tê-la em sua cama, mas não assim. Deus santo, nunca assim. Acendeu as velas de um candelabro e o colocou na mesinha de noite. A cara pálida e suja de Maggie estava estranhamente aprazível quando cobriu o peito descoberto com a camisa rasgada. Entrou uma garçonete de roupão, bocejando e com uma camisola branca nos braços. Rafe levantou a vista para ela. - Pagarei-lhe a camisola. Dispa esta dama e arrume-a para dormir.


A garçonete piscou. Aos senhores que levavam mulheres ali normalmente lhes interessava as despir. Com o típico encolhimento de ombros francês cumpriu a sua tarefa. Rafe saiu da suíte. Seus conhecidos que sabiam de sua perícia com as mulheres teriam rido diante da idéia, mas depois de tudo que Maggie havia passado teria sido uma violação imperdoável ficar a olhá-la ou despi-la. Ao cabo de uns minutos a garçonete voltou para sua cama com os sonolentos olhos exagerados pela gorjeta que Rafe lhe deu. Quando voltou a entrar no dormitório encontrou Maggie coberta pelas mantas como se estivesse dormindo, e o único sinal de sua terrível experiência era um machucado na maçã do rosto. A garçonete lhe tinha escovado a cabeleira de modo que lhe rodeava os ombros como uma fina névoa dourada. A suave camisola de musselina tinha delicados bordados no pescoço, por isso parecia uma colegial, com a diferença de que uma colegial não teria a figura como ela. O médico não demorou a chegar, graças aos dotes persuasivos ou às ameaças de sua ajudante. Rafe se limitou a lhe dizer que a paciente tinha sido apanhada em meio de uma multidão alvoroçada, e o médico a examinou enquanto ele se passeava inquieto pelo salão abarrotado de móveis. Transcorrida uma eternidade, saiu o médico da habitação. - A jovem teve muita sorte. Além de uns poucos machucados e da dor de cabeça, estará muito bem. Não tem nenhum osso quebrado nem há sinais de feridas internas. Observando o estado de seu cliente, todo despenteado, acrescentou: Quer que lhe examine também? Não tem aspecto de ter escapado ileso. - Não me passa nada, respondeu Rafe fazendo um gesto de impaciência com a mão. Ou ao menos nada importante, corrigiu. Já aliviada sua ansiedade notou dores e machucados em todo o corpo. Era como da vez que caiu do cavalo durante uma corrida de obstáculos e a metade dos participantes passaram ao galope por cima dele. Enviou o seu ajudante de volta à cama, acendeu o fogo na pequena lareira, tirou a jaqueta e as botas e se sentou em uma poltrona junto à cama com uma taça de conhaque. Não queria que Maggie despertasse em um lugar estranho sem rostos conhecidos, de modo que ficaria com ela até que recuperasse a consciência. Estirando as pernas pensou sem humor que talvez ela o odiasse, mas ao menos era uma cara conhecida. Bebeu o conhaque lentamente, desejando poder apagar a imagem de sua bala atravessando o crânio de Lemercier. Posto que não podia apagá-la, se obrigou a olhar de frente o fato de que tinha matado um homem. Se tivesse mirado em um ponto menos letal, teria sido igualmente efetivo? Nesse momento tinha agido por puro instinto, e evidentemente esses instintos eram selvagens, ao menos se tratando de Margot. Se tivesse tido um canhão, teria disparado à multidão para salvá-la. Cansativamente pressionou as têmporas com os dedos. O disparo tinha sido necessário, e em iguais circunstâncias não vacilaria em repeti-lo; entretanto, tirar a vida de um ser humano não era um ato que se pudesse descartar como se não tivesse importância. Talvez


algum dia perguntaria ao seu amigo Michael Kenyon, que tinha sido soldado, se um dia se acostumaria alguma vez a matar. Ou possivelmente não lhe perguntaria nada. Pelo visto havia um bom número de pergunta cujas respostas na realidade não desejasse conhecer. Ficou adormecido quando o despertou um movimento inquieto. Incorporou-se e viu que Maggie se agitava na cama, respirando com dificuldade e com o rosto apavorado. No momento que a olhou ela se retorceu violentamente e começou a gritar, o mesmo grito de pânico capaz de gelar o sangue que lançou na praça. Totalmente desperto, de um salto foi sentar se no outro lado da ama. - Maggie, tudo está bem! Aqui está a salvo. Ela abriu os olhos, mas como estava aturdida, não o reconheceu. Quando fez uma inspiração para voltar a gritar, lhe agitou os ombros. - Acorde, Maggie. Não há nada a temer. Pouco a pouco ela enfocou o olhar e o viu. - Rafe? - perguntou, insegura, e com grande esforço se sentou na cama. - Sim, carinho. Não se preocupe; além de um golpe na cabeça, não te ocorreu nada. Falou-lhe docemente, mas suas palavras devem ter lhe recordado a multidão enlouquecida. Começou a chorar, dobrando-se para diante e estremecendo pelos dolorosos soluços. Rafe a rodeou com seus braços e ela se aferrou a ele como uma mulher a ponto de afogar-se. Em um remoto lugar de sua mente ele experimentou uma certa surpresa pelo grau de seu sofrimento. Acreditava que a Condessa, dura como pele curtida, era capaz de superar tudo. Mas essa não era a Condessa, era Margot, e estava sofrendo terrivelmente. Sustentou -a meigamente apertada contra ele, lhe sussurrando uma série de palavras consoladoras e tranquilizadoras. Quando se acalmaram os soluços, disse-lhe: - Lemercier foi o que lançou à multidão contra você. Viu-o? Ela assentiu com a cara oculta. - Se te servir de consolo, a justiça o visitou com bastante rapidez. Sobressaltada ela levantou a vista para ele. - O...? - Com sua pistola, terminou ele. Pura justiça poética. Brevemente lhe explicou o ocorrido e como se tinha arrumado para escapar dali com ela. Por sua cara passou uma expressão de satisfação que se desvaneceu rapidamente. - Não deixo de vê-los, disse com voz trêmula. As caras, as mãos, todas em cima, tentando me agarrar... Por muito que o tente, não consigo escapar. E então... e então... - Voltou a enterrar a cara no peito dele. - Maggie, disse ele com voz enérgica, lhe acariciando os cabelos. Já passou, está a salvo. Não permitirei que te ocorra nada. Ela levantou a cabeça e o olhou, com as pupilas tão dilatadas que seus olhos pareciam negros.


- Rafe, lhe disse com voz trêmula, quero... quero que me faça o amor.

Capítulo 15

Nesse dia cheio de drama, nada lhe tinha parecido tão assombroso como essas palavras de Maggie. - Sabe o que diz? - perguntou-lhe, incrédulo. Embora tivesse as pestanas pegas pelas lágrimas, seus olhos estavam bem acordados. - Sei o que te peço, e sei que não é justo para você, mas quero, preciso esquecer... Cortou-lhe a voz e estremeceu; fechou os olhos um momento e logo os abriu para renovar o pedido. - Rafe, se alguma vez me quis... Ele continuou resistindo. Em que pese a suas fantasias, descobriu que não desejava lhe fazer o amor nesse estado, toda machucada e aterrorizada. Queria que ela o desejasse como ele a desejava, e não só o considerasse um meio para apagar uma lembrança insuportável. Acariciou-lhe a bochecha com as pontas dos dedos, com expressão desolada. - Por favor, rogo-lhe isso... Rafe não pôde suportar ver rompido seu feroz orgulho. Girou-lhe a mão e lhe beijou a palma. - Meu deus, Margot! Esperei tanto tempo, tanto, tantísimo tempo... O desejo que o consumia há dias se acendeu até converter-se em fogo e por um instante lhe apagou a visão. Desejava mais que tudo no mundo enterrar-se nela, abandonar-se à paixão, mas esse não era o momento para um ato de amor desenfreado. Se desejava ajudá-la, devia acalmar-se e ser mais forte que ela. Agarrou-a pelos ombros, atraiu-a para si e a beijou. Tão logo a tocou, ela pôs-se a tremer. Ele ficou absolutamente imóvel. - É desejo ou medo o que sente? - Um pouco de ambas as coisas, respondeu ela sem olhá-lo. Que estranho lhe pareceu ter pensado se seria capaz de violá-la; a só idéia de que ela pudesse lhe ter medo era como um atiçador quente no ventre. Enquanto pensava o que lhe dizer, ela levantou a mão e a passou nervosamente pelo cabelo; ao fazê-lo a manga lhe subiu um pouco deixando ao descoberto um feio machucado no antebraço. Ao ver a mancha azul púrpura lhe soltou os ombros. A idéia de que uns desconhecidos tinham feito esse machucado em Margot lhe fez sentir desejos de matar. - Isto não é uma boa idéia, lhe disse entre dentes. Não quero fazer nada que vá lamentar depois. - Não lamentarei isto. Agarrou-lhe a mão e a apertou contra seu coração. Preciso


recordar que... que nem todos os homens são uns brutos depravados. - Posto que sou um libertino egoísta, arrogante e presunçoso, disse ele sem poder evitar um sotaque mordaz, está segura de que sou uma boa opção para restabelecer sua confiança nos homens? Ela se ruborizou. - Lamento haver dito isso. Não foi minha intenção te ferir. - Mmm, sim foi e não sem certa razão. É verdade que sou egoísta, decididamente arrogante e possivelmente bastante presunçoso. Fez um gesto de estar refletindo. Não sei se aceitaria isso de ser um libertino; agrada-me pensar que pratico meus vícios de modo civilizado. - Então me retrato desse insulto. Sorriu-lhe com os lábios trêmulos - Trégua? A intenção dele tinha sido diverti-la, mas ao olhá-la aos olhos viu neles uma total desolação. Com um calafrio compreendeu que o único que lhe impedia de desmoronar-se era sua força de vontade, e que inclusive a pessoa mais forte tinha seus limites. Se não conseguisse tirá-la do precipício do medo, ela podia cair nesse abismo. - Trégua, carinho. Novamente a estreitou em seus braços e se inclinou a beijá-la. Quando seus lábios se tocaram se produziu uma pequena emoção, como essa faísca que brota às vezes no meio do frio. Uma parte disso era a atração que sempre vibrava entre eles, mas desta vez havia inquietantes correntes subterrâneas. Ela respondeu ao seu beijo e diminuiu sua rigidez, mas a melhoria durou pouco. Fechou os olhos e voltou a ficar rígida. Depois começou a atirar torpemente a camisa e as calças. Agarrou-lhe as mãos e as imobilizou. - Temos horas até o amanhecer, e quero aproveitar bem cada momento, lhe disse em tom tranqüilizador. Relaxe, aceite e desfrute. Prometo-te que quando tivermos acabado, o que ocorreu na Agrada du Carrousel só te parecerá um remoto pesadelo. Ela mordeu o lábio. - Sinto muito, Rafe. Cada vez que fecho os olhos volto a ver as mãos e as caras. É como ser atacada por lobos. Fez uma inspiração entrecortada. Não posso dominar o terror, e o única emoção que conheço mais forte que o medo é a paixão. - É certo que a paixão consegue apagar todo o resto, ao menos por um momento, concordou ele. Mas também sabia que lhe seria difícil abandonar-se ao desejo se estava tão perto de desmoronar-se emocionalmente. Nesse momento viu a maneira pela qual devia atuar. Nenhuma só vez o tinha chamado «excelência», com esse afiado sarcasmo. Do mesmo modo, para ele a formidável Condessa tinha desaparecido, sendo substituída pela Margot Ashton. - Necessitamos de algo mais que uma trégua, Margot - lhe disse docemente. Tratemos de voltar para o que fomos antes, antes que a vida se fizesse tão dolorosa e complicada. Esqueça o distúrbio desta noite e todos outros incidentes que lhe deixaram cicatrizes e ceticismo. Simulemos que você tem dezoito anos e eu tenho vinte e um, e que o mundo é um lugar de promessas infinitas.


- Não sei se serei capaz, disse ela com pena. Oxalá fosse possível retroceder. - Levaria-te ao passado se pudesse, mas temo que isso supere meu poder. Meigamente lhe jogou para trás uma brilhante mecha que lhe roçava a bochecha. De todo modos, durante umas horas, possamos recriar o que poderia ter sido se o mundo fosse um lugar mais singelo ou mais amável. - O mundo não é simples e nem amável, disse ela amargamente. - Esta noite ele é. Levantou-lhe as mãos e as beijou como se fossem de porcelana tão fina como casca de ovo. Acredite Margot, embora só seja nas próximas horas. - Tentarei Rafe, disse ela estirando e relaxando lentamente os dedos. Ele reatou o beijo, centrando toda a atenção na sensual união de suas bocas. Essa era a noite de núpcias com a qual tinha sonhado quando estavam prometidos. Nada do mundo importava fora a suavidade dos seus lábios nos dela, a áspera e úmida textura de sua língua, o calor de seus seios apertados contra seu peito. Aos dezoito anos Margot era uma jovem inocente, mas também impetuosa e desejosa de novas experiências; embora nessa época ele tinha suficiente experiência para obter que tudo fosse sobre rodas, de todo modo seu juvenil otimismo o fazia acreditar em finais felizes. Por um instante se intrometeu em sua imaginação a feia realidade que tinha destruído esse otimismo, mas rejeitou o pensamento. Essa noite seria para eles o que poderia ter sido, e em silêncio prometeu que todas as sutis artes amorosas que tinha aprendido ao longo dos anos seriam o seu presente para ela. Do mesmo modo que para tranqüilizar ao assustado cavalo do Castiereagh gerou tranqüilidade interior, conseguiu transmitir esse estado de ânimo a Margot. Pouco a pouco foi diminuindo o medo e a tensão foi saindo como os grãos de um relógio de areia. Quando notou que seu corpo estava aliviado iniciou um atalho de beijos pela maçã do rosto até a orelha, lhe acariciando as delicadas e complexas formas com a língua. Ela emitiu um entrecortado suspiro de prazer, jogou a cabeça para trás. Com humildade ele pensou em quanta confiança se necessita para expor a vulnerável garganta a outro ser. Estranhamente, em que pese a todos os conflitos e à desconfiança que tinha havido entre eles, ela era capaz de confiar nele quando estava mais indefesa. Apertou seus lábios contra a delicada pele de sua garganta, sentindo os batimentos do coração de seu sangue e o suave murmúrio de sua respiração. Segurou-a com uma mão nas costas e começou a lhe soltar os pequenos botões que fechavam a parte dianteira da camisola. Quando ficou a descoberto a pele branca do peito, seus lábios foram baixando lentamente. Imaginar que essa noite era de uma época anterior sem complicações lhe produziu a deliciosa sensação de travessura e continuou beijando mais e mais abaixo. Quando lhe soprou brandamente no vale formado por seus peitos, ela estremeceu e começou a lhe esfregar as costas com dedos inquietos. Desabotoados os seis botões, a camisola já não se abria mais, de modo que procurou o lado inferior e foi subindo para tirá-la, mas quando chegou às coxas se deteve. O fato de que um homem vestido faça amor com uma mulher nua transmite aspectos de poder e domínio, não queria que Margot sentisse isso. Os dois deviam estar igualmente expostos.


Desceu da cama, tirou rapidamente a roupa e voltou a colocar -se junto a ela no momento em que ela abria os olhos para ver aonde tinha ido. A luz das velas cinzelava de modo espetacular suas maçãs do rosto altas, e observou que ainda ficava nela um indício de medo. - Não te abandonei, Margot - lhe disse brandamente. Estou aqui, estarei todo o tempo que queira que esteja e não mais. Embora na realidade, se ela desejasse que se detivesse ali não sabia se poderia suportá lo. Desta vez ela se aproximou mais a ele, lhe rodeando a cintura nua com seus esbeltos braços e apertando seus grossos lábios contra os dele. Ele supôs que essa noite falaria pouco, pelo qual correspondia a ele adivinhar o que necessitava. Durante o beijo profundo e sem pressa que seguiu, lhe subiu a camisola pelas sedutoras curvas de seu corpo; o vaporoso tecido ficou todo enrugado ao redor de seus ombros durante vários minutos porque nenhum dos dois podia suportar esperar o tempo suficiente para tirar a roupa pela cabeça. Finalmente ele se afastou, acabou de lhe de tirar a camisola e a deixou nua. Ao percorrê la com o olhar afogou uma exclamação involuntária; que parvo tinha sido ao pensar que todas as mulheres eram mais ou menos iguais. Margot era a essência do mistério feminino e o excitava como nenhuma outra mulher o tinha excitado jamais. - É tão formosa como sempre soube que seria, lhe disse com voz trêmula. Ela esboçou um fugaz sorriso e escondeu a cara em seu ombro, como a tímida virgem recém casada da sua imaginação. - É agradável fingir; começar de novo - sussurrou ela lhe acariciando o pescoço com seu fôlego. - Mais que agradável; é maravilhoso - lhe acariciou o cabelo, e as lustrosas mechas se enrolaram em seus dedos, mágico. Ela suspirou de prazer e com o movimento seus mamilos se deslizaram por seu peito; seu corpo se excitou dolorosamente, menos disposto que sua mente a aceitar a paciência. Por um instante oscilou perigosamente entre a luxúria e a moderação. Talvez ela já estivesse preparada... Não, era muito cedo. Ao longo dos anos, seus febris sonhos com ela tinham sido produto de seu eterno desejo, mas nessa noite suas necessidades deviam passar a um segundo plano. Dominou-se e a empurrou brandamente até deixá-la apoiada nos travesseiros. Ela cedeu, flexível como um salgueiro, como a jovenzinha confiante que tinha sido. Ele achou extraordinário que, ao menos por essa noite, ela tivesse conseguido deixar de lado sua tenaz independência em favor de uma rendição docemente feminina. Numerosos machucados, feios e obscenos, manchavam a perfeição cremosa do seu corpo. Instintivamente beijou um hematoma negro no antebraço antes de recordar que devia ter mais cuidado. - Doeu?


- Não. Fechou as mãos sobre uma dobra da colcha. OH, não. Interpretando isso como convite a continuar, acariciou brandamente cada ponto com a língua, nos ombros, cotovelos, quadris, costelas, abdômen e coxas. Mudanças irregulares na respiração dela acompanharam seu avanço como contraponto musical. Uma vez acariciado cada machucado, cavou as mãos sobre seus exuberantes peitos e enterrou a cara na fenda entre eles. Na bochecha sentiu os batimentos do coração de seu coração, potente e aceleradamente vivo. Se as coisas tivessem sido de outro modo, se a pistola tivesse disparado mal, esse coração indômito poderia ter sido silenciado para sempre. Desejoso de apagar o impensável, girou a cabeça e começou a lhe chupar o mamilo. Ela gemeu e se arqueou para cima, e o mamilo se endureceu em sua boca. Ela começou a subir e baixar os quadris com ansiosa impaciência, de modo que ele desceu as palmas seguindo as deliciosas curvas de sua cintura e dos quadris até as coxas. O sedoso arbusto de cabelo que lhe cobria a entreperna tinha um tom mais escuro que seus cabelos, cor carvalho de outono, não de trigo dourado do verão. Lambendo-lhe a quente superfície convexa de seu ventre, deslizou as palmas por entre os joelhos; ela afogou um gemido que não era de prazer e apertou as pernas. - Confia em mim, Margot - sussurrou ele. É natural que esteja nervosa na primeira vez, mas te juro que não te farei mal. Ela emitiu um som que pareceu sair dolorosamente de dentro. Depois, com visível esforço, obrigou-se a relaxar. Acariciou-lhe as pernas rígidas até notar que realmente estava relaxada; ao mesmo tempo e com o mesmo ritmo, acariciou-lhe com a boca e lhe beijou os peitos e o ventre. Quando sua mão chegou a entreperna, ela já irradiava ardor e desejo. Deslizou-lhe os dedos por entre os sedosos cachos cor torrada até entrar nos mistérios lugares mais abaixo. Quando a tocou ela emitiu um gritinho, levantando espasmodicamente os quadris e se apertou contra sua mão. Ele explorou mais para dentro até encontrar as delicadas dobras que vibraram nas pontas de seus dedos, bem molhados. Enquanto ele acariciava e explorava, lhe enterrou dolorosamente as unhas nos ombros. - Agora? - perguntou gemendo. - Logo, querida minha, logo. Continuou acariciando e explorando até notar que ela estava ao ponto da culminação; então, vibrando de angustiante desejo, colocou-se em cima dela. Penetrou-a pouco a pouco e o apertão acolhedor de seu corpo foi tudo o que tinha sonhado e mais. Sabendo que estava ao ponto da explosão ficou quieto, todo seu ser pulsando com uma insistência que afogava tudo o que não fosse ela. Maggie tinha imaginado que se sentiriam violentos ao unir seus corpos desconhecidos pela primeira vez, mas não foi assim. Talvez a natureza os tinha desenhado para ser o casal ideal um do outro; sentiu-se completa como jamais em sua vida. Como por vontade própria sua pélvis se apertou contra Rafe. - Devagar, ofegou ele.


Estava em cima dela afirmado nos cotovelos, seus largos ombros criados pela luz, seus fortes traços enigmáticos na sombra. Tinha visto seus machucados e novamente a pasmou a coragem e a força que ele usou para salvar uma mulher a quem desprezava. Estava magnífico, todo poder e elegância masculina, e saborearia cada instante do seu emparelhamento. Em um remoto lugar de sua mente sabia que pagaria um preço amargamente elevado por essa sorte, mas se negou a pensar nisso nesse momento. Desejando-o mais dentro dela, rodeou-o com os braços e o puxou para baixo, deleitando-se no duro peso do corpo afundando-a no colchão de penugem. Desde que Rafe chegou a Paris foram se reunindo nuvens de tormenta ao redor dela e enquanto ele se movia dentro dela, desencadeou-se a tempestade, arrastando-a violentamente, correndo por seu sangue, eliminando todo temor e toda dúvida. De repente um raio lhe fez arder em chamas todas as células do seu corpo. Gemendo, aferrou-se a ele como a única certeza no meio da tempestade. O tumulto passou, deixando seu corpo trêmulo e sua consciência fraturada. Demorou um momento em perceber que ele seguia duro dentro dela. Acariciou-lhe as costas suadas. - Não há... - Não se preocupe por mim, interrompeu ele. A noite é jovem. Embora isso não fosse certo, não se incomodou em discutir. Simplesmente bastava estar unida a ele, a salvo. Mas o desejo seguia ardendo dentro dela. Rafe entendia seu corpo melhor que ela, porque soube em que momento reatar o movimento. As primeiras investidas foram infinitesimais, mas lhe geraram uma surpreendente quantidade de excitação. Ela acompanhou seus movimentos e à medida que se acelerava o ritmo, acenderam-se mutuamente. A união entre eles era abrasadora, um desnudamento de mente e corpo temíveis em sua intensidade. Agitou a cabeça freneticamente enquanto seus corpos se fundiam com pasmosa força. A anterior tinha sido um prólogo, uma simples abertura à avidez mais urgente que tinha conhecido em sua vida. Desta vez a tormenta não era de vento, mas sim de fogo, um fogo que lhe abrasou a consciência até que só havia chamas em seu interior. Desapareceu o medo e a prudência, a raiva e o ódio, ficando só o abrasador conhecimento de que o homem que amava a tinha abraçada com paixão e deliciosa ternura. Chegou a fulgurante culminação, e foi consumida pelo fogo. - Amo-te, murmurou com voz entrecortada, incapaz de reprimir-se. Tempestade e fogo; desintegração e renascimento. No meio do incêndio o ouviu gemer: - OH, Deus... Deus me leve. Com impressionante precipitação se retirou, espremendo-a em seus braços e apertandose contra seu ventre; depois de vários movimentos violentos seu sêmen se derramou entre eles. Abraçou-o com todas suas forças, contendo as lágrimas que lhe acumularam entre as pálpebras. Novamente Rafe a protegia de um possível desastre. Durante os anos que tinham sido amantes ela e Robin tinham tido muitíssimo cuidado


de não conceber um filho, porque em suas perigosas vidas não havia lugar para uma família. Em sua mente soube que isso seguia sendo certo. Entretanto, parte de suas lágrimas se deviam à perda do que poderia ter sido, os filhos que poderia ter tido com Rafe nesses doze anos se tivessem se casado; o bebê que poderiam ter concebido na ternura dessa noite, levado pelo vento, como todos seus outros sonhos. Rafe tirou seu peso de cima e utilizou a camisola para secá -la e secar-se. Depois a estreitou em seus braços e os dois adormeceram sem falar. Não existiam palavras para descrever o que sentiam. Maggie despertou de um pesadelo, sufocando um grito de terror. Acumularam -lhe na mente todos os horrorosos medos ativados pelo incidente na Agrada du Carrousel: pânico, dor, destruição. Tremendo, se acomodou perto de Rafe, para refugiar-se. Ele irradiava segurança, inclusive dormindo. Sem poder conter-se acariciou o peito, alisando o pêlo escuro que sentia tão sensual contra seus peitos. Deteve-se ao notar que ele trocava a respiração; não queria desperta-lo. Mas descobriu que não podia tirar suas mãos de cima dele; incitava-lhe o suave calor de sua pele, o contraste entre sua pele morena e a dela branca. Um movimento sob o lençol lhe indicou que ao menos essa parte dele estava despertando. Como se tivesse vida própria, sua mão desceu o lençol e o tocou; a carne masculina ardente se inchou em sua palma. Ele continuou com os olhos fechados, mas levantou a mão e começou a lhe acariciar a nuca. Uma agradável sensação a percorreu toda inteira e começou a ronronar como uma gatinha; mais ainda, desejou rugir como uma leoa. Começou a beijá-lo, pondo a boca em outros lugares sensíveis: o pescoço sob a mandíbula, o oco formado pelas clavículas, seus joelhos planos e escuros, as fendas entre suas musculosas coxas e o liso ventre. Embora ele não abandonasse sua posição de costas, lhe acelerou a respiração e sua mão direita lhe acariciou todos os lugares ao seu alcance. Prometendo-se que desta vez o enlouqueceria, ela se inclinou a lhe beijar a parte mais sensível de todas, utilizando a boca e a língua para lhe demonstrar o que não podia dizer em voz alta. Ele conteve o fôlego e lhe tremeram as pernas. Ela redobrou seus esforços, deleitando-se em seu poder de excitá-lo. Desta vez a tormenta o arrastaria a ele igual à ela. Ele emitiu uma exclamação gutural e afundou o punho no colchão. Mas antes que ela conseguisse levá-lo a culminação, bruscamente ele abandonou a passividade, a fez rodar e inverteu as posições. Destramente a alagou de prazer, inflamando-a com sua ardente boca, levando-a até o êxtase, até que ela ofegou, frenética de necessidade. Finalmente chegaram juntos ao orgasmo, como pires ao chocar. Isso não era a recordada inocência da juventude, e sim a fogosa sensualidade da experiência direita e desavergonhada. Mesmo com o prazer embriagador, ela notou que ele só entregava totalmente o corpo, reservando a mente e o espírito, deixando um escuro vazio no coração mesmo depois da união sexual. Ao mesmo tempo que estremecia na libertadora convulsão final, chorava por dentro.


Rafe era o amante mais fabuloso que é possível imaginar, só que o que fazia era sem amor. Margot dormia em seu braço absolutamente imóvel nas profundidades do esgotamento, seus cabelos revoltos esparramados sobre seu peito. Estava tão cansado que mal conseguiu reunir a força para levantar a mão e lhe tirar as mechas de cabelos dourados dos olhos e seguir com os dedos o delicado contorno de sua cara. Entretanto, não conseguia conciliar o sono. Poderia dizer que tinha tido sorte, porque o destino lhe brindou com a oportunidade de liberar-se de sua obsessão lhe permitindo esse apaixonado interlúdio com a mulher que o tinha escravizado. E ao dizer isso teria se equivocado. Embora tivesse tido êxito em seu objetivo de lhe interromper brevemente a angústia de seus torturantes lembranças, para ele a vitória tinha sido vazia. Durante anos tinha sonhado que Margot se aproximava dele com doces palavras de amor e um embriagador convite. Essa noite se fez realidade uma parte de seu sonho, mas descobriu a amarga verdade de que o convite sem as palavras doces era seco. Se só tivesse havido silencio entre eles teria conseguido manter a ilusão de que eram amantes de verdade. Mas Margot estava tão sumida em seus pensamentos que lhe escaparam essas palavras de amor; essas palavras lhe doeram mais do que poderia ter imaginado porque sabia que eram dirigidas a outro homem. Era Anderson o que possuía seu coração; só a casualidade a levou a sua cama essa noite, com a desesperada necessidade de esquecer. Entretanto, apesar da dor, desejava que essa noite não acabasse jamais. Tinha desejado ter novamente a Margot Ashton, e com a agridoce perfídia que caracteriza a resposta dos deuses às orações humanas, tinha obtido o que desejava. O que não sabia então era que se encontrasse a Margot voltaria a apaixonar-se por ela com a mesma cegueira e impotência com que a tinha amado aos vinte e um anos. A paixão que tinha sentido pela Condessa Janos só era outro nome desse mesmo amor, embora seu exagerado cepticismo lhe tinha impedido de identificar suas emoções. Na penumbra, a tênue luz da aurora que marcava as janelas, reconheceu claramente que nunca tinha deixado de amar a Margot. Apesar de suas traições e mentiras, por muitas que fossem as camas pelas quais houvesse passado, amava-a, mais que à sabedoria, mais que ao orgulho, mais que a própria vida. E pela manhã ela o deixaria; todas suas barreiras voltariam a estar firmemente em seu lugar, talvez com uma capa adicional de vergonha pelo que tinha feito com tanta falta de vergonha. A ironia era esmagante. Rafael Whitbourne, quinto Duque do Candover, tinha sido o bem amado dos deuses, bento com saúde, inteligência, encanto e uma riqueza inimaginável. Quem cruzava em seu caminho lhe oferecia admiração e respeito. Entretanto, amaldiçoava seu destino com raiva desesperada e negra, porque a única mulher, que lhe importava mais que nenhuma outra, não podia amá-lo. Certamente o teria amado quando era jovem, mas não o suficiente para lhe ser fiel durante esses poucos meses de noivado. Jamais tinha sido o primeiro com ela, nem então nem agora, quando sua primeira lealdade era para um traidor e espião.


Contemplando a escuridão que ia sumindo, perguntou-se que impedimento o fazia incapaz de amar a qualquer mulher que não fosse aquela que não podia lhe corresponder. No dia seguinte teria, tempo suficiente para pensar nisso. No momento saborearia o pouco tempo que ficava com a única mulher que tinha amado em sua vida. Com a desolação que fica quando se perde toda esperança, pensou que esse era o único tempo que teria com ela.

CAPÍTULO 16

Maggie despertou profundamente descansada, embora a posição do sol lhe indicasse que ainda era cedo. À clara luz do dia resultava difícil acreditar que tinha tido a audácia de lhe pedir a Rafe que lhe fizesse amor. Entretanto, seu morno corpo junto a ela era prova irrefutável do ocorrido. Seu conhecimento do mundo a fez supor que ele a agradaria; embora as mulheres necessitem um motivo para ir à cama com um homem, normalmente os homens só necessitam de um lugar; ela tinha um motivo e ele a tinha colocado no lugar. Entretanto, o ocorrido entre eles ultrapassava em muito tudo o que tinha sido capaz de imaginar, e ficaria gravado em seu cérebro para sempre. Voltou a cabeça ligeiramente e contemplou a figura adorm ecida de Rafe. Seus numerosos machucados tinham adquirido uma melodramática cor arroxeada negra. Só Deus sabia como ele a tinha tirado da multidão. Sem seu título, riqueza nem influência, seguiria sendo um homem entre os homens: forte, valente e formoso para parar o coração dela, de um modo absolutamente masculino. Fechou os olhos angustiada. Sempre tinha sabido que se alguma vez fizessem amor ela voltaria a apaixonar-se perdidamente por ele, e tinha razão, porque isso ocorreu; o amor sempre tinha estado ali, desde que o conheceu, há treze anos. Talvez por isso nunca tinha podido amar ao Robin como ele merecia. Não, o problema não era o quanto amava ao Robin e sim como o amava. Aos dois, os queria mais do que era possível expressar com palavras, mas ao Rafe o amava com conflito e harmonia de uma vez, com desafio e compreensão. Era estranho pensar que os elementos mais violentos entre eles eram os que davam tanta profundidade e intensidade aos seus sentimentos. Em sua relação com o Robin sempre havia harmonia, e seu amor era o de amigos, quase o de irmãos. Rafe a desejava como par, era o homem típico que com mais profundidade a fazia sentir-se mulher. Tragou saliva e se desprendeu do braço de Rafe, com muito cuidado para não despertá lo. Embora nada gostaria mais que passar o resto da vida em sua cama, isso era impossível. Seguiam rodeados de conspiração e morte, e além disso havia as acusações contra Robin.


O assunto se resolveria de um ou outro modo e não voltaria a ver o Rafe. Considerando a ardente atração sexual que havia entre eles, era possível que ele seguisse desejando-a como amante, se a forma como o tinha utilizado não tinha ferido muito seu orgulho. Mas, jamais se atreveria a aceitá-lo. A lembrança dessa noite de paixão fazia quase impossível imaginar a vida sem ele; se se convertessem em verdadeiros amantes, não sobreviveria ao fim do romance. Quando chegasse o final, ele se comportaria com o maior encanto, é obvio, amável e um pouquinho aborrecido. Já podia imaginá-lo lhe colocando o dorso da mão na bochecha. Disse adeus a essas breves horas de intimidade, resistindo a tentação de beijá-lo uma última vez. Sua roupa estava bem dobrada e ordenada em uma poltrona, de modo que se vestiu, crispando o rosto de dor diante das muitas dores e hematomas que descobriu. Um tosco acerto dissimulou os piores rasgões de sua roupa, de modo que sua aparência ficou mais ou menos decente, além de estar vestida como homem, é claro. Foi sentar se na poltrona junto à janela, flexionou as pernas até o peito e com os braços apoiados nos joelhos esperou que Rafe despertasse. Ao cabo de um quarto de hora mais ou menos ele começou a mover-se. Seu primeiro movimento foi para o lado da cama que ela tinha ocupado. Ao não encontrá-la despertou, levantou-se apoiando-se em um cotovelo e percorreu a habitação com o olhar até encontrá -la ali sentada. Ao vê-la, relaxou um pouco e ficou olhando-a através do espaço que os separava com uma expressão indecifrável. - Bom dia, disse ela timidamente, com a esperança de que a intimidade da noite a nterior sobrevivesse à luz do dia. Ele a observou com esses olhos cinzas condenadamente tranqüilos. - É bom dia? Ele ia pôr difícil. Maggie pôs os pés no chão e se obrigou a sustentar seu olhar. - Bom, estou viva, pelo que estou profundamente agradecida. Não restaria muito de mim se aquela multidão tivesse acabado o que começaram. Tentando controlar o pânico que lhe produziu esse pensamento, continuou: Não há palavras o suficientemente fortes para lhe agradecer por ter me salvo a vida. - Não se incomode em buscá-las, espetou ele, seus olhos cinzas como partes de gelo. Não o fiz porque queria gratidão. Angustiada compreendeu que devia falar do ocorrido ao calor da noite; se não o fizesse, o faria ele, e temia o que poderia dizer. - Também te devo uma desculpa, disse com voz insegura. Salvou-me a vida e eu te utilizei de um modo imperdoável. Pedir-te o que te pedi foi um insulto à honra e ao bom gosto. Ajudou-me a sobreviver ao pesadelo... Espero que também encontre essa generosidade em seu coração para me perdoar. - Não tem importância, Condessa - respondeu ele com um sotaque sarcástico na voz. Não me cabe dúvida de que uma mulher de sua experiência sabe que aos homens normalmente não incomoda servir a mulheres aflitas. Além disso é extraordinariamente bela;


foi um privilégio ter a oportunidade de provar suas mercadorias. Maggie se sentiu como se lhe tivesse sido dado uma bofetada. Embora parecia que ia estar zangado, isso era muito pior que o que tinha imaginado. Nenhum homem gostaria de ser utilizado como remédio para a dor e a esse menos que a ninguém. O orgulho era talvez a mais profunda de suas emoções e ela o tinha ferido gravemente. Ao menos não se mofou das palavras de amor que lhe escaparam quando tinha as defesas baixas e seu coração falou sem censura. Se se tivesse burlado dessa declaração espontânea em um momento de descuido, a ferida teria sido insuportável. Mas no fundo de seu coração não podia lamentar o acontecido, até sabendo o muito que lhe custaria no futuro. - Eu sinto muito, repetiu docemente já se levantando e se dirigindo à porta. - Aonde demônios acredita que vai? - gritou ele. Ela se deteve, mas não se voltou a olhá-lo. - Vou ver Robin, é obvio. Tenho que falar com ele. - Quer dizer que consegui despertar algumas duvidas em sua mente feminina irracional? - Sim, maldito seja - replicou ela voltando-se para olhá-lo, devo lhe dar a oportunidade de explicar-se. Ele se sentou, deixando cair as mantas até o regaço e a perfurou com o olhar. - E o que vai fazer se ele não tiver nenhuma explicação satisfatória? - Não sei, respondeu ela com os ombros afundados. Simplesmente não sei. - Quando chegar ao salão ordene que tragam o café da manhã; reunirei-me contigo dentro de quinze minutos. Ao ver que ela abria a boca para protestar, lhe adiantou: Não te vou deixar partir sem café da manhã. Depois te levarei a ver o Anderson. Ela começou a balbuciar, sem saber bem se sentia -se divertida, alarmada ou ofendida por esse despotismo. Rafe a silenciou com um penetrante olhar. - Se pensa que te vou deixar andar pela rua, quer dizer que o golpe na cabeça te fez mais dano do que disse o médico. Todas as noites matam homens nas ruas de Paris. Anteontem à noite, sem ir mais longe, encontraram dois homens mortos perto da Agrada du Carrousel. E falando de médicos - agarrou um frasco pequeno e o atirou. O doutor deixou isto, porque me assegurou que teria uma dor de cabeça dos mil demônios. Agora tenha a bondade de sair, vou vestir-me. Sem esperar que ela saísse, desceu da cama magnificamente nu. Sabendo que se não partisse imediatamente, cairia na tentação de arrastá -lo de volta à cama, ela se apressou a desviar a cara e se dirigiu à porta. Tão logo Rafe falou da possibilidade de uma dor de cabeça, deu-se conta de que sim, ela lhe doía. Uma vez a salvo no salão, tragou uma das pílulas. Lástima que a dor do coração não se pudesse tratar com a mesma facilidade que uma dor de cabeça. Muito mal-humorado para esperar o seu ajudante, Rafe começou a barbear-se ele mesmo, com a mente fervendo de fúria. Desculpas e gratidão não era o que esperava de Margot. Com a imbecilidade mais absoluta, desejava que ela se apaixonasse magicamente por


ele. Mas tão logo despertou e a viu acomodada na poltrona junto à janela, tão espinhosa como um ouriço, soube que não tinha havido nenhuma transformação milagrosa nos seus sentimentos. Ao apertar involuntariamente a manga da navalha, sentiu uma ardência no lado da mandíbula. Soltou uma maldição ao ver o sangue que caía na bacia de porcelana. Raios, se não tivesse mais cuidado podia cortar-se acidentalmente. Aplicou-se uma toalha para estancar sangue, pensando o que diabos lhe ocorria. Margot, isso era o que lhe ocorria. Sempre se tinha orgulhado de comportamento sensato, civilizado. Na Câmara dos Lordes e entre seus amigos tinha fama por sua habilidade para persuadir partidos contrários e encontrar terreno comum para chegar a acordos. Entretanto, no instante que entrou na saleta da Embaixada da Áustria e reconheceu Margot, começou a desmoronar-se. Nessas duas últimas semanas tinha perdido os estribos mais vezes que em toda a década anterior. Já tinha claro que o único motivo de sua fama de ter uma posição equânime era que em sua vida não tinha havido nada que o inquietasse tanto que o fizesse descontrolar -se. Não podia apresentar-se a Margot nesse estado, de modo que se obrigou a fazer respirações lentas e profundas. Ela tinha sido totalmente sincera ao lhe dizer por que desejava que lhe fizesse o amor e não tinha nenhum direito a estar furioso com ela. Por sua própria dignidade devia deixar de atuar como um colegial malcriado. Tirou a toalha da face e comprovou que já não sangrava. Maggie tinha conseguido dominar-se depois do terror que sentiu e ele não podia fazer menos. Supôs que deveria sentirse orgulhoso de que seus esforços tivessem tido um efeito tão benéfico. E sim, se sentia condenadamente orgulhoso. Quando acabou de vestir-se e se reuniu com a Margot para tomar o café da manhã, já estava novamente controlado. Depois de um receoso olhar, relaxou. Ele se alegrou de poder seguir mantendo a aparência de homem civilizado. Não falaram muito enquanto tomavam o excelente café com croasans. Durante a primeira parte do trajeto ao alojamento do Anderson, quando estavam perto da praça, o carro teve que deter-se diante a multidão ali congregada. Enquanto o chofer fazia virar o carro, viram que a praça estava infestada por milhares de soldados austro-húngaros, seus uniformes alvos e a artilharia deslumbrantes à luz do sol. Com seu amparo, a tarefa de tirar os cavalos de bronze de São Marcos estava se efetuando sem incidentes. Quando tiraram o primeiro cavalo do arco, os soldados austro-húngaros lançaram gritos e da multidão de franceses se elevou um uivo de pena. Desta vez se ia para sempre o bota de cano longo do Napoleão. - Wellington deve estar furioso ao inteirar-se do de ontem à noite, comentou Rafe com triste sorriso, e decidiu fazer desdobramento de força. Agora é possível que Paris não o queira, mas Por Deus vão respeitá-lo. - Esperemos que essa maior impopularidade não aumente as possibilidades de que o assassinem, disse Maggie voltando-o para a realidade das possíveis consequências.


Fizeram o resto da viagem em silêncio. Bordearon a Agrada du Carrousel e o Louvre até chegar ao pequeno hotel onde se alojava Robin. Maggie entrou e Rafe ficou esperando -a no carro, lhe advertindo que se demorasse mais de dez minutos a seguiria. Isso não foi necessário porque ela voltou muito em breve com expressão preocupada. - Não houve resposta quando golpeei a porta, disse enquanto subia ao carro. O zelador me disse que Robin não ocupava suas habitações há duas noites. Rafe franziu o cenho. - Poderia ter passado as noites na Embaixada devido a ter tanto trabalho por fazer? Ela negou com a cabeça. - A delegação britânica tampouco sabe onde está. Ontem enviaram um moço a perguntar se Robin estava em suas habitações. Reclinou-se no luxuoso assento com o estômago retorcido em um doloroso nó. Se Robin tivesse fugido ao inteirar-se de que suspeitavam dele, queria dizer que era culpado; se fosse inocente não teria partido de Paris sem dizer a ela. Portanto, posto que tinha desaparecido sem deixar rastros, ou era culpado ou estava morto. Durante o trajeto para ir deixar Maggie em sua casa, Rafe esteve silencioso, com as sobrancelhas franzidas como nuvens de tormenta. Ela só podia estar agradecida de que se refreou de lhe dizer «eu lhe disse isso». Tão logo chegou em casa, enviou uma mensagem a Héléne Sorel, convidando-a a acompanhá-la a um almoço leve. Estando as coisas a ponto de uma crise, necessitava de uma colega que fosse capaz de ver coisas que ela não via. Depois se retirou ao seu dormitório, onde esteve duas horas consumindo-se com torturantes pensamentos. Queria muito ao Robin para preferir que fosse um patriota morto a um traidor vivo, mas se tivesse traído ao seu País, não queria voltar a vê-lo jamais. Héléne chegou pontualmente, com uma leve expressão interrogante em sua cara. Tão logo saciaram um pouco o apetite, Maggie a pôs a par dos últimos acontecimentos, entre eles o desaparecimento de Robin. Héléne a escutou com séria atenção, seus cabelos recolhidos em um recatado coque. Tinha o aspecto de qualquer outra jovem senhora francesa, mas suas perguntas eram precisas e inteligentes. - O quadro é maior e mais escuro do que imaginava, comentou quando Maggie terminou de falar. Tendo deixado o poder Talleyrand e estando Castiereagh na cama, dá a impressão de que o alvo mais provável para os assassinos é Wellington, não é? - Isso penso eu. Candover foi falar com o Wellington, para lhe advertir que tenha especial cuidado. Conhecem-se, portanto é possível que Wellington considere, mas é famoso por não fazer caso do perigo. Pode ser que uma advertência não trocasse muito as coisas. - Chegou o momento de reduzir o número de suspeitos disse Héléne. Terminei minhas indagações sobre o Coronel Von Fehrenbach, e esta noite vou fazer lhe uma visita. Acabada a entrevista, creio que já não será um suspeito. - Não posso me permitir perder mais amigos, lhe disse Maggie muito séria. Candover


vai pedir ao Wellington alguns soldados de escolta, a ssim, por favor, lhe peço que se acompanhe com soldados, por sua segurança. - Farei-o se insistir, mas terão que esperar fora e não entrar ao menos que eu os chame. Nos olhos castanhos de Héléne brilhava um brilho de humor enquanto escolhia mechas da fronte. Não serão necessários. Maggie desejou poder compartilhar a fé de sua amiga. Se ela podia estar desastrosamente equivocada respeito ao Robin, também Héléne podia estar equivocada a respeito de um homem que mal conhecia. - Se eliminarmos a Von Fehrenbach da lista, fica o General Roussaye como o suspeito mais provável. Exalou um suspiro. Desejava ir-se ao seu quarto e dormir eternamente, e não ter que enfrentar a um mundo no qual tinha perdido Robin, no qual Rafe a desprezava e no que talvez o destino da paz européia descansasse sobre seus esgotados ombros. Apoiou os cotovelos na mesa de mogno e enterrou a cara nas mãos, friccionando a dolorida cabeça e repetindo-se que não devia ficar melodramática. Soou um golpe na porta e entrou seu mordomo seguido por uma visita feminina. - Sei que não desejava ser incomodada, milady - disse o mordomo em tom de desculpa, mas a senhora Northwood disse que é muito urgente. Sobrepondo-se, Maggie se levantou. - Muito bem, Laneuve. O mordomo se fez a um lado para deixar passar à visita; Maggie afogou uma exclamação de horror ao ver a cara terrivelmente machucada de Cynthia. - Não tinha nenhum outro lugar aonde ir, disse a jovem com voz trêmula. Consternada, Maggie correu para ela e a abraçou. - Minha querida menina! Cynthia fraquejou um momento apoiada nela, mas logo se afastou com expressão resolvida. - Sinto muito, não era minha intenção fazer isso. Tenho que falar contigo. Olhou duvidosa a Héléne, que tinha servido uma taça de conhaque e a estava oferecendo. - Não se preocupe, pode falar livremente diante de madame Sorel. Somos íntimas amigas e ela é de toda confiança. Agora me diga, o que te ocorreu? Cynthia aceitou a taça e as palavras tranqüilizadoras; sentou-se em uma poltrona e abriu sua pequena maleta. - Consegui revisar o escritório de meu marido. - Surpreendeu-te e te golpeou por isso? - exclamou Maggie, sentindo-se tremendamente culpada por tê-la induzido a fazê-lo. - Não, golpeou-me por outros motivos, respondeu amargamente a jovem. Ontem quando pincei em seu escritório tive tempo de sobra para descobrir uma gaveta secreta, copiar tudo o que havia dentro e deixar todos os papéis tal como estavam. Tirou da maleta umas dez folhas escritas e as passou a Maggie. Não me atrevi a trazer os originais, mas pensei


que poderia encontrar algum sentido nestas cópias. Maggie deixou a um lado os papéis para olhá-los depois. - Se Northwood não se inteirou disso, por que te golpeou? - Por fim tinha decidido deixá-lo. Ficar era insuportável e Michael assegura que está disposto a encarar as conseqüências, faça o que faça Oliver. Mas ao Michael o enviaram à fortaleza do Huninguen e demorará uns dias em voltar, assim tive que esperar. Desgraçadamente, por ter tomado a decisão fiquei quase louca de alívio, e creio que Oliver notou que havia algo. Olhou as mãos com as unhas mordiscadas. Esta manhã Oliver entrou em meu quarto quando me estava vestindo e imediatamente percebeu meu estado. Sabia que o bebê não podia ser dele e se enfureceu. Fez sair a minha criada e começou a me golpear, me insultando com coisas horríveis e dizendo que esperava que perdesse ao asqueroso pirralho, e que se tivesse sorte que morreria eu também. Depois me deixou encerrada com chave em meu quarto - Pôs-se a chorar, mas conseguiu continuar entre soluços: Não posso voltar ali, me matará! Por favor, Maggie, posso ficar contigo até que volte Michael? - É obvio, lhe disse Maggie com carinho. Aqui não te encontrará jamais. Como escapou do quarto? Cynthia sorriu com certo orgulho. - Em minha infância eu era muito pouco feminina. Quando ele partiu ao trabalho, atei os lençóis e me deixei cair pela janela, depois agarrei um carro de aluguel e vim aqui. - Isso foi muito engenhoso, comentou Maggie com autêntico respeito. Mas agora deve descansar, tem que estar esgotada. Instalou Cynthia em uma dos quartos para convidados e mandou procurarem um médico para que examinasse as lesões da jovem. Depois se instalou com Héléne na sala de jantar para ver os papéis que tinha trazido Cynthia. Em sua maior parte continham frases rascunhadas, o tipo de coisas que uma pessoa rabisca enquanto pensa e que a outra pessoa resulta quase impossível decifrar. Havia uma lista de devedores de jogo, e outra com somas de dinheiro em francos, possivelmente de perdas ou lucros. Embora se sentisse decepcionada, pensou que era provável que nem sequer um imbecil como Northwood ia anotar coisas que o incriminassem, caso sempre que era culpado de algo mais que de bestialidades comuns. Era muito corrente que os escr itórios tivessem compartimentos secretos, e esses era o primeiro que se buscava. Seu escritório tinha uma gaveta secreta e o tinha cheio de apaixonadas cartas de amor inventadas que respaldariam sua reputação de cortesã se alguém as descobrisse. Com o Robin morriam de risada enquanto as escreviam. A lembrança lhe doeu, de modo que agarrou a página seguinte. Uma frase escrita no meio lhe atraiu a atenção em seguida: «Anderson espião? Possível perigo». Héléne viu a frase ao mesmo tempo. - Isto não prova nada contra Robin, disse Maggie com os lábios apertados. - Não, disse Héléne. Você segue acreditando em sua inocência, ma cherie? - Sim, respondeu desolada. Penso que desapareceu porque se aproximou muito do fogo, e com muita freqüência.


Com os olhos empanados agarrou a última folha. O desenho tomou por surpresa a ambas as mulheres porque era o de um dos brasões copiados na biblioteca de madame Daudet: a serpente de três cabeças da família d'Aguste. Debaixo estava escrito «O Serpent» e um triunfal «Eureca!». Depois de um comprido silencio, Maggie comentou: - É evidente que Northwood está metido em algum trabalho secreto. A pergunta é para quem? - E o que significa para ele este escudo? Se for o escudo do Serpent, o quebra-cabeças estará resolvido uma vez que saibamos com quem está conectado, disse Héléne pensativa. - Talvez por fim estamos avançando em algo, respondeu Maggie. Mas tenho a impressão de que estamos abrindo caixas chinesas, e que cada uma contém outra ainda mais complicada. Nesse momento entrou o mordomo a anunciar a chegada do médico. Héléne se levantou para partir, prometendo voltar essa noite depois da entrevista com o Coronel Von Fehrenbach. Maggie rogou que a iniciativa de sua amiga as aproximasse mais à meta antes que ocorresse outro desastre.

Capítulo 17

Héléne se vestiu com esmero para sua entrevista com o Coronel Von Fehrenbach; escolheu um vestido azul feminino, mas não provocante. Embora tivesse dois motivos para visitá-lo, nenhum dos dois era a sedução em seu sentido habitual. Candover a levou em seu carro até a casa de Von Fehrenbach. Também mandou que quatro oficiais britânicos se encontrassem com ele no edifício, onde esperariam na escada de atrás em caso de que ela necessitasse ajuda. Durante o trajeto Rafe lhe ofereceu uma pistola suficientemente pequena para que coubesse em seu bolso. Ela a rejeitou com repugnância. Para tranqüilizá -lo concordou em levar um apito cujo assobio era capaz de penetrar várias paredes se fosse necessário. Seus pensamentos voaram a Maggie e Rafe. Tinha percebido a tensão entre eles e pensou se isso se devesse a que se desejavam mutuamente e não tinham feito nada a respeito, ou se teriam feito algo... Pensar neles foi uma mudança agradável que a distraiu de sua preocupação, porque em que pese a sua fachada de confiança, a idéia de entrevistar o oficial prussiano a aterrava. O carro se deteve diante de uma mansão do distrito Marais, não longe da casa de madame Daudet. O edifício estava dividido em apartamentos, e o Coronel vivia em um deles


com um só criado, que deveria ter essa noite livre. Posto que Von Fehrenbach evitava as tentações da vida noturna parisiense, e saía somente quando o requeriam seus deveres, teria que encontrá-lo sozinho. Candover desceu e deu a volta ao edifício para encontrar-se com seus soldados e entrar pela porta detrás. Depois de passar uma nervosa mão pelo cabelo, Héléne também desceu e entrou no edifício. O zelador lhe indicou que o apartamento estava no segundo andar, para o lado da fachada. A mansão tinha sido construída em começos do século XVIII e conservava grande parte de sua magnificência. Quando se deteve diante da porta de Von Fehrenbach, olhou o corredor para a porta que ocultava o seu guarda-costas. Depois golpeou. Transcorridos uns momentos, o próprio Coronel abriu a porta, confirmando que o criado não estava. Embora Von Fehrenbach não vestisse seu uniforme, seu porte erguido deixava em claro que era um soldado. Seus cabelos loiro claro brilhavam chapeados à luz do abajur; era muito bonito, ao estilo de um Príncipe de gelo. Olharam-se em silêncio enquanto a forte e primitiva atração vibrava entre eles. Assim tinha sido sempre, desde a primeira vez que se viram, embora nenhum dos dois tinha reconhecido jamais. - Madame Sorel - disse friamente o Coronel, refletida a impressão em seu rosto além de uma complexa mescla de outras emoções. Que prazer mais inesperado! O que a traz aqui esta noite? - Um assunto de certa urgência. Para olhá-lo teve que jogar atrás a cabeça. Se lhe prometer não comprometê-lo, me deixará entrar para falar disso? Nas bochechas do Coronel apareceu uma tintura rosada, e se fez a um lado para deixá-la entrar. Agradeceu-lhe com um movimento da cabeça e Héléne entrou no salão e aceitou a poltrona em que ele a convidou a sentar-se. O apartamento era bem proporcionado e estava impecavelmente limpo, mas além de uma bem provida livraria, tudo era de uma fria austeridade. Era tal como tinha suposto; o estado interior de uma pessoa se reflete a sua volta e o Coronel tinha o inverno na alma. Sem incomodar-se em lhe oferecer algum refresco, Von Fehrenbach se sentou a uma certa distância e lhe disse em tom severo: - Sim, madame? Antes de responder Héléne dedicou um momento a lhe observar a cara, sentindo a tensão que havia debaixo dessa expressão impassível. Uma pontada de dúvida a fez pensar se não estaria equivocada a respeito da natureza dessa tensão. Talvez o Coronel tivesse planos sinistros para fazer mal a outros. De repente se alegrou de ter o apito na bolsa. Sem se dar ao trabalho de iniciar a conversa com as sutilezas sociais de costume, começou sem preâmbulos: - Há uma conspiração para interromper a conferência de paz mediante assassinato. O acidente que tem em cama ao Castiereagh foi, na realidade, um atentado contra sua vida, e é provável que Wellington seja o seguinte alvo. Von Fehrenbach elevou levemente as sobrancelhas. - Em Paris abundam as conspirações. O que tem a ver isso comigo?


Ela entrelaçou as mãos no regaço porque o que ia dizer era terrível. - Há certos motivos para pensar que você poderia estar detrás da conspiração. - O quê!? - Destroçada sua calma, o Coronel ficou de pé, furioso - Como se atreve a me acusar de uma coisa assim? Que tergiversação da lógica poderia levar a alguém a suspeitar de mim? Com um brilho de fogo azul nos olhos, acrescentou em um sussurro ameaçador: E porque tenho que ouvir dizer isto justamente de você? Ela não se moveu. - Essas são três perguntas e nenhuma delas tem uma resposta singela, Se sentar e escutar uns minutos, eu explicarei. Ao vê-lo vacilar, acrescentou: lhe convém muito ouvir-me. - É essa uma ameaça, madame? - perguntou ele com os olhos cerrados. - Absolutamente, Coronel. Como eu poderia ameaçá-lo? Você é um dos vencedores, um homem de posição e riqueza, enquanto que eu sou uma viúva de uma nação derrotada. Se está ameaçado, não é por mim. Vendo que ele continuava inseguro, acrescentou impaciente: Vamos, não tem medo de mim, não é? Não lhe custará nada escutar. Ele se sentou em uma poltrona mais perto dela e disse em voz tão suave que talvez ela tenha imaginado as palavras: - Nisso se equivoca, madame Sorel; sim, eu lhe tenho medo. Com um marcado alivio compreendeu que tinha razão, que todas as conversas entre eles tinham em mais de uma intenção. Mas antes de ocupar-se de seus próprios interesses, devia fazer o trabalho que a tinha levado ali. - Trabalhou-se muitíssimo em investigar esta conspiração, e se determinou que você era um dos muitos homens possíveis que tem a inteligência, a perícia e o motivo para organizá-la. - Adula-me sua avaliação de minha perícia, disse ele sarcástico. Agora me explique porque faria eu semelhante coisa. - Sabe-se que você odeia a França e todos os franceses. Duas vezes matou oficiais franceses em duelo. Também diz repetidamente que o convênio proposto é muito moderado. Se matassem o Wellington ou ao Castiereagh, o que ocorrerá ao tratado que está tão perto de sua aceitação? O Coronel arqueou as sobrancelhas surpreso. - Começo a compreender. Se assassinarem a qualquer dos dois, se sossegarão as vozes da moderação e toda a Europa exigirá represálias. A França seria desmembrada e empobrecida. - Agrada-lhe essa idéia, Coronel Von Fehrenbach? - Poderia me agradar, mas sou um soldado, não um assassino, disse ele secamente. Matei dois oficiais franceses predadores que atormentavam os oficiais aliados jovens. Isso difere muito de conspirar contra seu País. Meu dever é cumprir as ordens de meu soberano, não fazer política. - Creio-lhe e esse é um dos motivos que me trouxe aqui. Continuou sem encolher-se enquanto ele a observava com uma nova atenção. Ele estava começando a ouvir o que ela queria lhe dizer, e isso era o que tinha esperado. - Há algum outro motivo para que suspeitem de mim? - perguntou ele. Não sou o único


oficial aliado que odeia a França. - Há outro motivo, circunstancial, mas forte. Soubemos que o homem que dirige a conspiração chama-lhe Serpent. - Repito, o que tem que ver isso comigo? - «A astúcia de uma serpente e a coragem de um leão», citou ela, observando atentamente sua reação. Ele fez uma inspiração. - Claro, o lema de minha família. É interessante, mas como já disse, totalmente circunstancial. Em muitos escudos de família há serpentes. Refletiu um momento. Em realidade, não tem porque referir-se a um brasão. Há um General francês que apelidavam-lhe de Serpent, e, pelo que sei, o rei da vadiagem parisiense também se chama assim. - Que General é esse? - perguntou ela com repentino entusiasmo, passando por cima da última frase. - Michel Roussaye, disse ele olhando-a fixamente. Depois da batalha do Leipzig, meu amigo tentou capturá-lo junto a um pequeno destacamento de soldados franceses, e ele fugiu uma e outra vez, de modo muito parecido ao de uma serpente. É um excelente soldado. - O General Roussaye é outro dos principais suspeitos. - Como se beneficiaria se a França ficasse impedida pelo acordo de paz? Perguntou Von Fehrenbach exasperado. Você padece de falta de lógica em grande escala. - A um revolucionário poderia lhe vir muito bem um tratado que enfurecesse a França até o ponto de voltar a guerrear. O efeito de suas palavras foi imediato. O Coronel se retirou ao seu interior e pareceu esquecer que ela estava ali. Finalmente voltou a olhá-la. - Porque veio me dizer isto? Se suspeitam de mim, porque Wellington não se limitou a me fazer prender? - Há realidades políticas, respondeu ela. O Marechal Blücher ficaria furioso se prendessem um valioso ajudante de campo apoiando-se em provas tão débeis. Em realidade não há nenhuma prova, só são probabilidades. Por isso, este assunto está se levando com a maior discrição possível. Se se desse a conhecer a história da conspiração, o efeito poderia ser tão grave como um assassinato. - É possível, concordou o Coronel. Mas como já disse, não há nenhuma prova, o qual não se estranha porque não tenho feito nada. Que motivos há para acreditar que há uma conspiração? - Rumores e pequenas incongruências que não serviriam de nada em um tribunal. A única prova é o atentado contra Lorde Castiereagh, que se planejou para que parecesse um acidente. Além disso, é possível que tenham assassinado a um agente britânico porque estava se aproximando muito do Serpent. - Ou porque se meteu em uma rixa por uma mulher, acrescentou ele. Nunca me pareceu que os espiões sejam gente muito honradas. Perfurou-a com os olhos. O qual nos leva a você, madame Sorel. Respondeu a minhas outras perguntas, mas não porque você, de todos os homens e mulheres da França, veio aqui me acusar. Agora sim a conversa estava sendo francamente difícil. Sentiu molhadas as palmas.


- Tenho uma conexão não oficial com a inteligência britânica, explicou, e participei da investigação. - Ou seja, a dama é uma espiã - disse ele com desgosto. Ou é isso dizer duas palavras contraditórias? Espiar é só outra forma de putear, e tenho entendido que as espiãs se vendem de muitas maneiras. Héléne sabia que ia ouvir algo assim, mas de todo modo lhe doeu. - Jamais me vendi de maneira nenhuma, Coronel, disse em tom seco e não aceito dinheiro pelo que faço. Poderia ter vindo outra pessoa interrogá-lo, mas eu quis vir. - Porque? - inclinou-se para ela com expressão hostil. Volto a repetir, porque você? - Você sabe porque, Coronel. Olhou-o com toda a simpatia e sinceridade que possuía. Embora seus olhos podiam ter o frio azul do gelo nórdico, em suas profundidades viu uma dor lhe queimando em carne viva. Soltando uma maldição em alemão, ele deixou de olhá-la e se voltou para a livraria. De onde estava sentada, viu alguns dos títulos. Havia principalmente livros de filosofia e história e vários textos em latim e grego. O Coronel era um homem de amplos interesses. - Você fala em adivinhações, madame Sorel - disse ele sem olhá-la. - Falei muito claramente, embora talvez não em uma linguagem que você deseje reconhecer. Levantou-se e caminhou para ele, detendo-se a certa distância. Embora você não o admita, há algo entre nós desde que nos conhecemos. Ele se voltou a olhá-la, sua calma derretida pela fúria. - Muito bem, admito. Você me excita como uma égua em zelo excita a um semental. Você também sente, senão, não estaria aqui se pavoneando. Tantos franceses morreram que tem que procurar um semental de fora? Tenho que possuí-la aqui no tapete, lhe fazer o que quero que os aliados façam com a França? Héléne empalideceu. Tinha suposto que ele resistiria, e reconheceu que sua crueldade era a medida do muito que ela o afetava. Inclusive assim, suas palavras a feriram muito profundamente para ignorá-las. - Se o único que desejasse fosse a fornicação à ligeira, poderia encontrá-la facilmente sem ir a um homem que me insulta. - Então a que veio, madame? Suas palavras soaram desoladas, mas não tanto como seus olhos atormentados. - Desejo que me olhe, só uma vez, sem recordar que sou francesa e que você é prussiano, disse com firmeza em sua voz doce. Ele a olhou um comprido momento, com uma veia vibrando visivelmente sob sua clara pele nórdica. Depois deu meia volta e se afastou dela. - Isso, madame, é absolutamente impossível. Quando estava a uma distância prudente, voltou-se e lhe soltou com amargura: a olho e vejo minha casa incendiada, vejo minha esposa, meu filho e minha irmã assassinados. Assassinados pelos franceses, madame, por sua gente, talvez por seu irmão ou seu marido. Jamais poderei esquecer que somos inimigos. - Não sou sua inimiga, disse ela com doçura. Ele a olhou fixamente, movendo os músculos da cara.


- Sim, é. O único inimigo pior que tenho, sou eu mesmo por me sentir atraído por uma mulher da raça que odeio e desprezo. Você me tem feito passar muitas noites insone, madame. Agrada-lhe saber o quanto tem feito com que eu me despreze? Héléne não fez a menor tentativa de cortar a distância que os separava. De pé diante da livraria, era uma figura miúda, brandamente arredondada. Branda, mas inflexível. - Nunca me pode agradar o sofrimento de outra pessoa. Participei de espionagem para fazer embora seja uma pequena contribuição à paz. Eu tinha irmãos, Coronel; pessoas que morreram na retirada de Moscou e outros torturados por partidários espanhóis. Contaramme que demorou dois dias a morrer; esse era meu irmão mais novo, Fierre, que desejava ser pintor. Também tive marido, morto em Wagram dois meses antes que nascesse minha filha mais nova. Você combateu em Wagram, Coronel. Poderiam ter sido seus soldados quem o matou. - Esplêndido, madame Sorel, nós dois sofremos, disse ele com amargura. Tem minha permissão para odiar os prussianos tanto como eu odeio aos franceses. A satisfaz? - Não! - exclamou ela; a dor superava finalmente sua serenidade duramente adquirida em toda uma vida de perdas. Desejo ver o fim do ódio. Se em lugar da França tivesse sido Prussia a agressora, estaria menos morto meu marido? Quero que minhas filhas vivam em um mundo em que seus maridos envelheçam com elas, em que os meninos como meu irmão possam pintar flores e garotas formosas e escrever tolos poemas de amor em lugar de morrer chiando - Olhou-o suplicante, tentando imaginar como poderia derreter o gelo que lhe rodeava o coração - Como cristã, ensinaram-me a odiar o pecado, mas amar ao pecador. Odeio a guerra e o mal inexprimível que ocasiona, e se não formos capazes de aprender a nos amar os uns aos outros, estamos condenados a lutar e morrer uma e outra vez. - E acredita que se eu fosse capaz de amar, isso poria fim à guerra? Embora o tom fosse zombador continha também um traço de desejo de acreditar. - Não sei se poderíamos nos amar, talvez só haja entre nós pura atração física, respondeu ela com as bochechas molhadas pelas lágrimas. Embora visse que suas palavras o comoviam, temia que isso não fosse suficiente. O Coronel tinha vivido mergulhado em seu sofrimento durante muito tempo para arriscar-se de novo. - Se duas pessoas não forem capazes nem sequer de tentar, continuou com voz trêmula, não há esperanças para a humanidade. Estaremos condenados a sofrer nossos enganos eternamente. Von Fehrenbach começou a passear pelo salão, com os largos ombros rígidos. Deteve-se diante uma mesa em que havia um retrato em miniatura em moldura de prata junto a uma Bíblia fechada. O retrato era o de uma formosa jovem loira com um menino em seus braços. - É você uma mulher valente, disse ele com voz rouca olha ndo o retrato. Talvez as mulheres tenham mais coragem que os homens. Quando um corpo está mal ferido - morre, mas com um coração ferido sobrevive para sofrer uma dor sem fim. Acariciou a cara da mulher do retrato e logo olhou Héléne com expressão muito triste. Você pede muito, madame Sorel. Minhas forças não estão à altura da tarefa.


Tinha fracassado. - Não é que as mulheres sejam mais valentes, Coronel - disse contendo as lágrimas, somos mais tolas. Voltou-se e procurou um lenço em seu bolso. A vulgar ocupação de secar as lágrimas e assoar o nariz, deu-lhe a oportunidade de recuperar seu frágil controle. Depois atravessou o salão em direção ao vestíbulo. - O que vai dizer de mim aos seus superiores? - perguntou ele de trás. - Direi que creio que não esteja envolvido de nenhum modo. Vigiarão-lhe até que acabe a conferência, de modo que se estiver equivocada se reduzirão suas oportunidades para fazer vilanias. Pôs a mão na maçaneta. Adeus, Coronel Von Fehrenbach, não creio que voltemos a nos encontrar. Para sua surpresa ele atravessou o salão e se aproximou lhe olhando atentamente a cara, como se quisesse memorizá-la. - Efetivamente é você uma mulher muito valente. Depois lhe agarrou a mão e a beijou, não de modo romântico, mas sim com uma espécie de triste respeito. Enquanto o Coronel segurava a porta, ela se arrumou para sair com a cabeça muito erguida, mas quando se fechou a porta, apoiou-se na parede. Sentia-se incrivelmente cansada... Finalmente se endireitou, caminhou até a porta do extremo do corredor e a abriu. Quatro oficiais britânicos estavam sentados e jogando uma partida de cartas amistosa. Ao vêla se apressaram a ficar de pé. Todos eram muito jovens. Ela lhes sorriu e o tenente se ruborizou e abaixou a cabeça. Refletindo o alívio de vê-la sã e salva, Rafe lhe perguntou: - Foi bem a entrevista, madame Sorel? - Melhor podia esperar-se, respondeu ela suspirando. Karl Von Fehrenbach passeava inquieto por seu austero apartamento, agarrando um objeto e voltando-o para deixar onde estava, tirando livros e voltando-os para guardar sem abrir. Finalmente abriu ao azar um livro de Virgilio. Leu: “Omnia vincit amor: et nos cedamus amori.” “O amor tudo vence: nos rendamos também nós ao amor”. Fechou o livro de um golpe e o colocou com tanta violência na prateleira que trincou a coberta de pele. Apoiou a cabeça nos livros e pensou angustiado em Héléne Sorel, de pé ali no mesmo lugar onde estava ele nesse momento, miúda, docemente feminina. Era um anjo descido do céu para redimi-lo, ou um demônio do inferno enviado a seduzir o que restava de sua alma imortal? Fosse o que fosse, a mulher era valente para expor-se desse modo. Foi à mesinha e agarrou o retrato de Elke e Erik para olhar suas amadas caras. Sua esposa, que tinha o dom da risada, e seu filho, que havia herdado a altura de seu pai e a alegre natureza da sua mãe. Elke lhe tinha enviado o retrato três meses antes de morrer. Tinham incendiado a casa. Ele sempre rogava que tivessem morrido pela fumaça e não queimados pelas chamas. Dentro dele cresceu uma dor insuportável que dissolvia todas as densas que se


construiu para manter a dor à distância. Desesperado, abriu a Bíblia ao azar, com a esperança de encontrar orientação. O versículo que saltou aos seus olhos dizia: «São-lhe perdoados seus pecados porque amou muito». Se essa era uma mensagem de Deus, era muito dolorosa para suportá-la. Caiu de joelhos junto à poltrona Luis XVI estofado em brocado, e enterrou a cabeça em seus braços, dando rédea solta aos dilaceradores soluços de um homem que nunca tinha aprendido a chorar.

Capítulo 18

Essa visita ao Serpent foi curta. Ao inglês já não lhe importava que seu temido anfitrião estivesse mascarado; sabia a quem servia e no momento oportuno revelaria esse conhecimento. - A pólvora está toda na dispensa? - perguntou secamente O Serpent. - Sim, fui levando-a durante vários dias, e não há probabilidades de que ninguém a descubra. Embora alguém olhasse dentro, está em caixas que não despertariam suspeitas. - Muito bem, o mascarado assentiu satisfeito. Quinta-feira é o dia. - Depois de amanhã? - perguntou o inglês sobressaltado; de repente lhe pareceu muito perto. - Exatamente. A pólvora deve explodir o mais perto possível das quatro da tarde. O pavio que lhe dei deve demorar oito horas em derreter-se, de modo que acenda-o às oito da manhã. Confio que isso não apresentará problemas. O inglês refletiu. - Poderia ser difícil. Estes últimos dias estive jogando a me perder de vista, e poderia parecer suspeito que estivesse na Embaixada a essa hora. - Não me interessam as complicações que lhe cause sua vida pessoal, disse friamente O Serpent. Pago-lhe por resultados. Uma vez que o pavio esteja aceso pode partir para a distância que quiser, mas a explosão deve ser na quinta-feira. Esse é o único dia em que estará o Rei com outros Ministros no quarto do Castiereagh. Muito em breve Castiereagh se levantará da cama, e é possível que não volte a apresentar-se outra ocasião em que estejam todos reunidos nesse único lugar acessível. - Não se preocupe, arrumarei isso. O inglês estava impressionadíssimo pela magnitude da destruição que ia se produzir. Sim, certamente devia decidir-se por Serpent. A audácia de visão e a força de vontade do conspirador poderiam levá-lo ao topo durante o caos que seguiria à explosão, e quem lhe tinha ajudado subiria com ele. Era uma perspectiva embriagadora. Queria inteirar-se de outra coisa, não essencial, mas


de imensa importância pessoal. - Em relação aos espiões britânicos... O Serpent levantou impaciente a cabeça do que estava fazendo no escritório. - Desses já nos encarregaremos. Você não se preocupe. - Interessa-me a mulher, a Condessa Janos. O mascarado se tornou para trás e entrelaçou os dedos por cima das costelas. - A deseja para você, mon petit anglais? - perguntou divertido. É uma moça formosa, admito. - Sim, a desejo... ao menos por um tempo. - Posto que tem feito bem seu trabalho, deixarei-lhe tê-la como um prêmio. Agora vá, tenho muito que fazer. O inglês partiu ardendo de esperança. Jamais tinha perdoado a Margot Ashton por tê-lo desdenhado. Agora pagaria as humilhações recebidas por todas as demais mulheres. Pagaria, pagaria e pagaria. Héléne e Rafe voltaram para casa de Maggie e os três ficaram falando durante horas. Depois de comentar a entrevista da francesa com o Coronel prussiano, tentaram decidir o que deviam fazer a seguir. Os três pensavam que a situação era crítica e que deviam atuar com mais arrojo que o que empregavam normalmente os espiões. Durante a conversa, Maggie enviou uma mensagem a uma informante, e recebeu pronta confirmação de que ao Roussaye apelidavam-lhe de Serpent. Mordeu o lábio ao ler a resposta, porque meio esperava que Von Fehrenbach tivesse inventado essa história. Se Robin fazia visita furtivas ao Roussaye parecia provável que os dois fossem conspiradores. Ao Gene ral podia considerá-lo um patriota, embora mal orientado, mas era difícil julgar a colaboração de Robin como algo que não fosse traição. Seu coração rejeitava essa conclusão, mas sua mente não podia negar as provas em contrário que se foram acumulando. Certamente o próximo passo era confrontar o General Roussaye. Com esse fim, Rafe enviou uma nota ao General lhe pedindo permissão para visitá-lo quando fosse bom. Roussaye respondeu amavelmente sugerindo às onze da manhã no dia seguinte. Quando chegou a mensagem do General, Héléne se levantou para ir para casa porque estava cansada. Imediatamente Rafe também se levantou dizendo que a acompanharia, mas sua expressão deixou claro a Maggie que não queria ficar só em sua desprezível companhia. Tristemente aceitou a realidade de que qualquer simpatia que tivesse havido entre eles tinha desaparecido. Só esperava que a conspiração fosse neutralizada o mais breve possível para que não houvesse nenhuma necessidade de voltar a verem-se. Maggie começou o dia seguinte fazendo uma visita à Embaixada britânica. Embora aparentemente fosse uma visita de cortesia a lady Castiereagh, sua verdadeira finalidade era informá-la de suas suspeitas do Oliver Northwood. Explicou suas dúvidas a Emily, insistindo que transmitisse essa informação ao seu marido o quanto antes. Aflita, lady Castiereagh lhe prometeu fazê-lo em seguida, e a informou que Northwood não tinha ido trabalhar nos dois últimos dias; mandando uma nota dizendo que sofria de intoxicação por alimento e que voltaria para trabalho tão logo pudesse.


Maggie pensou muitíssimo durante sua volta a casa. A «intoxicação por alimento» de Northwood coincidia com a surra a sua esposa. Teria fugido quando descobriu que Cynthia tinha escapado de sua prisão, temeroso do que poderia dizer dele? Ou estaria procurando-a ele mesmo com o fim de obrigá-la a voltar com ele? Menos mal que a jovem tinha ido a sua casa; enquanto permanecesse escondida, estaria a salvo. O carro a deixou diante de sua casa e logo continuou para dar a volta até as cava lariças de atrás. Faltava menos de meia hora para que chegasse Rafe, que viria recolhê-la para a visita ao General Roussaye; quando começou a subir os degraus de mármore seus pensamentos já estavam na iminente entrevista. Ouviu deter um carro detrás dela e se voltou a olhar, pensando que Rafe tinha chegado cedo, embora o elegante carro de quatro portas azul escuro não lhe fosse familiar. Mas sim reconheceu ao homem que desceu dela. - Bom dia, Conde Varenne - o saudou com o mais radiante sorriso. Se vier me visitar, temo que lhe vou decepcionar; vou voltar a sair, quase imediatamente. A larga figura do Varenne estava embelezada com sua discreta elegância de sempre, mas a frieza de seus olhos a fez retroceder involuntariamente. - Quando a vi aqui senti o impulso de levá-la ao Chanteuil para ver minha propriedade, lhe disse ele. Os jardins não durarão muito tempo como estão. - Sinto muito, milorde, mas... - De verdade, querida minha, não aceitarei nenhuma desculpa, a interrompeu o Conde jovialmente. O trajeto daqui dura escassamente uma hora, e lhe garanto que será uma visita interessante. Pôs-lhe despreocupadamente a mão na cintura, para ajudá-la a subir ao carro. Maggie ficou paralisada; Varenne tinha uma adaga na mão e o pressionava com tanta força que a ponta lhe penetrou a musselina verde do vestido e lhe enterrou na carne. - Devo insistir, disse ele em voz baixa. Se tentasse chamar seus criados, teria a faca entre as costelas antes de abrir a boca. Com expressão pétrea, subiu ao carro, onde estava sentado, de costas aos cavalos, um homem de pele descorada vestido de secretário. Sem deixar de apoiar a adaga em seu flanco, o Conde se sentou junto a ela, a porta se fechou e o carro reatou a marcha. Todo o episódio não durou um minuto. Inclusive a mulher que observava da janela de cima não notou nada estranho. Uma vez que o carro estava em marcha, o Conde retirou a adaga. - É você uma mulher prudente, Condessa Janos; não lhe teria feito nada bem tentar armar uma cena. Sorriu-lhe ameaçador. Ou devo chamá-la senhorita Ashton? - Chame do que quiser, disse ela furiosa por ter sido apanhada com tanta facilidade. Vejo que meus instintos eram corretos. Desde o começo era evidente que era você desprezível, mas não consegui imaginar nenhum motivo possível para que um monárq uico conspirasse contra a liderança britânica. - A falta de imaginação é uma carência perigosa, como vai descobrir. Varenne fez um gesto ao secretário, que tirou um frasco e verteu umas gotas de um líquido viscoso em um


cachecol. Rogo-lhe que perdoe minha descortesia, senhorita Ashton, mas respeito muitíssimo suas capacidades e não quero que sofra nenhum dano prematuramente. Saiu graciosa do incidente na Agrada du Carrousel, embora seus esforços não lhe teriam servido de muito se não tivesse estado ali seu musculoso amante. O secretário se inclinou para ela e lhe aplicou o pano no nariz e na boca, lhe segurando a cabeça com a outra mão para que não pudesse girar. Quando tentou agitar-se, Varenne a segurou com força aterradora. - Candover me custou os serviços de Lemercier - lhe ouviu dizer enquanto ia perdendo a consciência - e isso eu não posso perdoar facilmente. De todo modo, sou um homem flexível. Posto que sobreviveu a essa pequena briga, encontrei-lhe um bom uso. Entregarei-a a um sócio meu que admira essa formosa carne e não lhe importará se estiver bem disposta ou não. Essas últimas palavras lhe produziram uma quebra de onda de terror, mas seus músculos já não obedeciam a sua vontade. Acompanhada pelo terror, caiu na escuridão. Rafe estava com os nervos alterados quando chegou à casa da Alameda dê Capucines; não sabia o que o alterava mais, se a idéia de confrontar ao General Roussaye ou ter que passar um tempo com a Margot. Já não podia pensar nela como Maggie; esse nome pertencia à esquiva e enlouquecedora Condessa. Durante esses momentos de intimidade, converteu-se totalmente em Margot Ashton para ele, e se negava a esquecer isso. A noite que passaram juntos já lhe parecia incrivelmente remota, como se tivesse ocorrido anos antes e não só no dia anterior. Pensou se haveria alguma possibilidade de que Margot chegasse a desejá-lo a ele se Anderson estava permanentemente fora de sua vida. Deus sabia, já tinha esperado treze anos. Franziu o cenho quando o mordomo lhe disse que a Condessa ainda não tinha retornado. Esperou impaciente quinze minutos e finalmente decidiu fazer chamar a Cynthia Northwood. Embora Margot lhe tivesse explicado porque a jovem estava ali, impressionoulhe ver a quantidade de machucados que tinha. - Como se sente, Cynthia? - Melhor do que me senti em muito tempo, Rafe - respondeu ela com tristeza. Só sinto não ter tido a coragem de partir antes. - Tem que ter tido muitíssima coragem para partir, disse ele contente de vê-la em bom estado mental. Embora sua aventura com ela tivesse terminado há muitos anos, seguia lhe tendo simpatia e gostava de seu caráter às vezes temerário. Ela precisaria de toda sua coragem quando chegasse o escândalo; esperava que o comandante Brewer demonstrasse ser igualmente forte. - Sinto te incomodar - continuou, mas queria saber se a Condessa disse que iria a outra parte além da Embaixada. Temos um compromisso urgente e me surpreende que ainda não tenha chegado. - Maggie voltou da Embaixada há meia hora mais ou menos, respondeu Cynthia, mas voltou a partir sem entrar na casa. Ocorreu que eu estava olhando pela janela e vi um homem descer de um carro. Falaram um momento e depois partiram juntos. Ao Rafe lhe revolveu o estômago.


- Conhece o Robert Anderson, da delegação. Era ele? - Não, era um homem moreno, não muito mais alto que Maggie, disse ela sem vacilar. Um francês eu creio. Rafe se obrigou a dominar seu ciúmes e pensar com clareza. Podia imaginar -se que Margot se fosse assim com o Anderson, mas lhe parecia impossível que qualquer outro a tivesse persuadido de romper o compromisso de ir visitar o Roussaye. Portanto, era possível que não tivesse ido voluntariamente. - Diga exatamente o que viu, Cynthia, todos os detalhes que recordar. Ela pôde acrescentar pouco mais além da cor do carro, porque os vidros da janela obscureciam os detalhes. Sua descrição do homem coincidia com a metade dos homens da França. Primeiro tinha desaparecido Anderson, agora Margot. Sentiu o começo do medo, e o melhor antídoto contra isso era a ação. Era mais importante que nunca que falasse com o Roussaye. Se resultasse que o General tinha raptado a Margot... - Devo fazer essa visita sozinho, disse energicamente ficando de pé. Envie uma nota a madame Sorel e lhe peça que me espere aqui. Eu devo demorar ao redor de uma hora, e é urgente que falemos. Dito isso partiu, deixando a uma preocupada Cynthia Northwood. Durante o trajeto à casa do Roussaye, decidiu que a melhor estratégia seria ofender o General com acusações e esperar que este revelasse algo se fosse culpado. No estado de ânimo em que se encontrava, seria-lhe mais fácil empregar um tom acusador. Roussaye o recebeu amavelmente em seu estúdio. Levantou-se de seu escritório e lhe ofereceu a mão. - Bom dia, excelência. Muito amável de sua parte me visitar, embora lamento que não lhe acompanhe a Condessa Janos. A minha esposa gostaria de falar com ela. - Esta não é uma visita social, Roussaye - lhe disse Rafe bruscamente. Estive realizando uma investigação secreta para o governo britânico e vim lhe dizer que o jogo acabou. Nem sequer O Serpent pode escapar esta vez. O General empalideceu e se deixou cair em sua poltrona. Depois de um instante de atordoamento, estirou a mão para uma gaveta. Imediatamente Rafe tirou uma pistola carregada de sua jaqueta. - Não o faça, Roussaye - disse apontando-o com mão firme. Está detido; tenho a soldados britânicos esperando fora. Embora pudesse me disparar, não poderia escapar. - Que ferocidade, disse o General com um indício de humor amargo. Ia tirar um charuto. Se estou detido, esta poderia ser minha última oportunidade de desfrutar de um prazer civilizado. Gostaria de um? Com exagerado cuidado, tirou uma caixa de charutos com incrustações de nogueira e a colocou sobre o escritório; depois tirou um. Cortou um extremo e o acendeu com tranqüila elegância, como se tivesse todo o tempo do mundo. Um impressionante desdobramento de savoir faire em um homem que se encontrava diante do desbaratamento de seus planos e a muito provável perda de sua vida.


Rafe rejeitou o charuto que lhe oferecia e se sentou frente a ele diante da mesa, apontando-o com a pistola. Já haveria tempo depois para chamar os soldados. Antes o General tinha que responder a algumas perguntas. Roussaye deu uma longa chupada e logo soltou a fumaça com um suspiro. - Há uma coisa que quereria lhe pedir, Candover, como um cavalheiro a outro. Juro-lhe que minha esposa não sabe de nada disto. Rogo-lhe que faça tudo o que possa para que ela não sofra por meus pecados. Observando lentamente a dura expressão de seu visitante, acrescentou: Filomena é sua parente. Isso deveria significar algo, mesmo que um homem de sua distinta linhagem não possa aceitar como cavalheiro a um homem de meu humilde berço. Rafe apertou os lábios diante o sarcasmo. - Farei uso de toda a influência que tenho. Diferente de você, eu não faço a guerra às mulheres. - Isso é imerecido, Candover - respondeu o General, com um indício lhe chateação na voz - Embora nenhum oficial consiga sempre refrear seus soldados, eu fazia o possível para reduzir ao mínimo as atrocidades que com tanta freqüência se cometem na guerra. - Não me refiro à guerra, refiro a hoje e à Condessa Janos - Rafe se levantou e se inclinou sobre a mesa, sua alta figura tensa de ameaça. Desapareceu, provavelmente foi raptada. Se lhe ocorrer algo e você estiver detrás disto, juro-lhe que não vai viver o suficiente para o pelotão de fuzilamento. O General tirou o charuto da boca e o olhou assombrado. - Não tenho a mais remota idéia do que está dizendo. Porque teria que ter eu algum desejo de fazer mal à Condessa? Além do fato de que é uma mulher encantadora, meu interesse está em preservar a vida, não em destruí-la. - Formosas palavras, General - disse amargamente Rafe. Depois que disser o que fez a Margot, talvez possa me explicar como racionaliza um assassinato como preservação da vida. Roussaye o olhou atentamente. - Estou começando a pensar que aqui há um mal-entendido. Do que me acusa exatamente, e por que teria que estar metida nisto sua dama? A Rafe estava começando a chatear a calma que tinha admirado. Fugazmente pensou se seu imperturbável controle teria vexado assim os outros ao longo dos anos. Lançando ao vento a discrição, disse: - A Condessa é uma agente britânica, e contribuiu que modo importante a descobrir sua conspiração. Supondo que você se deu conta do que fazia e decidiu eliminá-la, mas é muito tarde. Já sabemos do atentado contra a vida do Castiereagh, e que Wellington era seu próximo alvo. Depois que me disser o que fez a ela, desejo saber quais eram seus planos futuros. Disparei em seu sócio Lemercier e por Deus que dispararei a você se for necessário fazê-lo. Roussaye jogou atrás a cabeça e soltou uma gargalhada. - Isto seria cômico se não fosse porque provavelmente acabarei igualmente morto como se de verdade fosse culpado do que me acusa - Deu outra chupada ao charuto - Minha vilania, a qual aparentemente você era ignorante, foi uma tentativa de salvar os meus distinguidos colegas que estão na lista de morte do Rei Luis. Ao ver o olhar do Rafe,


estendeu-se mais: Vamos, Candover, não me diga que não sabe da lista de morte, nela estão os nomes de muitos dos chefes militares imperiais. É só questão de tempo que executem ao Marshal Ney e a outros vinte. Os consideram «traidores». É pura casualidade que eu não esteja na prisão com eles. Contemplou a cinza no extremo de seu charuto com expressão meditabunda. A traição está acostumada ser questão de pontos de vistas. Todos os condenados eram soldados honrados; seu único delito consiste em ter servido do lado perdedor. Tinha a esperança de conseguir ajudar a uns quantos a escapar. Inclusive alguns de seus compatriotas estão de acordo em que as represálias do Rei são monstruosas. De fato, um britânico esteve me ajudando. Exalou uma fina fumaça. Não lhe direi seu nome de modo que não perca o tempo com ameaças. Embora suponha que seu governo não executaria a um britânico por participar de uma conspiração frustrada de fuga. - Era Robert Anderson? - perguntou Rafe com a boca seca. Roussaye guardou silêncio um instante e depois disse: - Está você bem informado. Pasmo, Rafe reorganizou rapidamente tudo o que sabia. Se Roussaye dizia a verdade, eliminava uma importante prova da traição do Anderson. Muitos homens, ele incluído, não estavam de acordo com o desejo de vingança dos monárquicos. O dinheiro do Anderson podia ser suspeito, mas tal como tinha sugerido Margot ao defendê-lo, ele poderia ter estado vendendo a mesma informação em vários ligar sem trair realmente a seu País. Quanto ao General, seu apelido O Serpent podia ser uma coincidência; ao fim e ao cabo, o escudo com a serpente de três cabeças encontrado nos papéis do Northwood ainda não estava explicado e poderia ser o símbolo do verdadeiro O Serpent. O único possível elo era a relação entre o Lemercier e Roussaye, e o fato de que os dois fossem oficiais bonapar tistas não significava que fossem conspiradores. - Henri Lemercier também trabalhava com você? O General enrugou o nariz como se tivesse sido introduzido um mau aroma na fumaça do charuto. - Insulta-me você. Lemercier é um chacal, um oficial da pior índole. Jamais levantaria um dedo para ajudar a ninguém a menos que lhe pagassem bem. Se o preço estivesse bom, estrangularia a sua avó e prepararia um fricasé com ela. Aturdido, Rafe desarmou a pistola e a guardou. Talvez Roussaye fosse um excelente embusteiro, mas Margot sempre tinha duvidado de que tivesse o temperamento de um assassino, embora tivesse suspeitado que estivesse envolvido em algo secreto. Suas intuições estavam resultando ser incrivelmente acertadas. - Devo-lhe uma desculpa, lhe disse sobressaltado. Espero que perdoe minhas acusações. - Espere, o General levantou a mão. Porque pensou que eu desejava assassinar ao Castiereagh ou ao Wellington? Sem eles, França se veria obrigada a aceitar uma paz muito mais punitiva. - Exatamente. Parecia possível que um verdadeiro revolucionário desejasse ver a França humilhada até o ponto de estar disposta a voltar a guerra. Agora, se me desculpar, devo partir para começar a procurar Margot.


Roussaye moveu a cabeça de lado a lado. - Engenhosa forma de pensar, mas lhe asseguro que não faria nada para prolongar o sofrimento de meu País; a França não se pode permitir outro Waterloo. Se houver uma conspiração que ameaça a paz, interessa-me tanto como a você descobri-la. Se me disser o que sabe, talvez possa ajudar, Rafe vacilou um instante e logo se sentou, amaldiçoando-se por ter estado tão enfeitiçado por Margot que não lhe fez mais pergunta quando podia fazê-lo. Já era muito tarde; estando Anderson e Margot fora do quadro, estava impedido por sua ignorância. Sem ter acesso a suas fontes de informação, não tinha idéia de aonde ir, de modo que qualquer ajuda lhe viria muito bem. Brevemente lhe explicou o que sabiam ou imaginavam, e lhe deu os nomes de todos os suspeitos principais e secundários que tinham estado invest igando. O General lhe escutava atentamente; obscureceu-lhe o rosto com a notícia do desaparecimento do Robert Anderson, mas só o interrompeu quando Rafe disse que Varenne tinha sido um dos suspeitos. - Porque Varenne? Os monárquicos têm o maior interesse em que as coisas sigam como estão. Rafe teve que pensar para recordar. - Ao começo se pensou que os ultra monárquicos poderiam querer assassinar o Rei para que o sucedesse o Conde d'Artois. Uma vez que ficou claro que o ataque ia dirigido aos líderes britânicos, eliminamos o Varenne da lista. Roussaye assentiu. - Nunca o tinha visto antes de nosso encontro no Louvre, de modo que fiz umas quantas indagações. Varenne trabalhou muitíssimo em espionagem monárquica durante seu exílio, mas agora suas atividades são legítimas. Continue, por favor. Depois que Rafe terminou sua explicação, o General ficou refletindo enquanto o ar ficava cinza azulado com a fumaça. - Conheço a maioria desses homens, disse finalmente e de todos eles, Lemercier era o mais propenso a meter-se em uma conspiração. Entretanto, não era o suficientemente inteligente nem ambicioso para ser o chefe. Precisamos saber para quem trabalhava. Refletiu outro momento. Talvez eu possa descobrir isso. Se descobrirmos a identidade do empregador do Lemercier, poderíamos ter o seu Serpent. Começarei as indagações esta tarde, e o comunicarei se me inteirar de algo importante. O que vai fazer, pedir homens ao Wellington para procurar a Condessa? - Não, sem ter idéia de onde procurar, poderíamos pôr em sua busca a todos os soldados aliadas que estão na França e não encontrá-la. De todo modo, você me deu uma idéia. Se Varenne trabalhou na espionagem do Rei, é possível que ainda tenha algumas fontes de informação. Talvez consiga convencê-lo que me ajude, pelo bem da Condessa. Pareceu-me que a admirava. - Quem não a admiraria? - disse Roussaye, sorrindo pela primeira vez desde que o Duque lhe fez as acusações. Depois recuperou a seriedade e apertou os dedos na bituca do charuto. Vai informar ao Governo realista de meu interesse em liberar os prisioneiros?


- Não entregaria a um homem por ser leal aos seus amigos, respondeu Rafe ficando de pé. Mas pense no que faz, General, sua esposa também merece sua lealdade. - Eu sei. Roussaye ficou em silêncio um comprido momento. Quando me disse que estava detido, tive uma visão de minha mulher viúva, meu filho ainda não nascido órfão. Não quero que aconteça. Além disso, acrescentou como burlando-se de si mesmo , seria um mentiroso se não reconhecesse que a vida me é doce, agora ma is que nunca. Rafe lhe ofereceu a mão. - Não há nada mau em desfrutar da vida. Deus sabe que há bastante sofrimento no mundo. Depois do apertarem as mãos, partiu, perguntando-se que demônios faria a seguir.

CAPÍTULO 19

Maggie recuperou lentamente a consciência, acompanhado por uma sensação de náuseas que atribuiu à droga que lhe tinham dado. Notou que estava deitada em uma cama; quando abriu os olhos tinha a visão tão imprecisa e a luz era tão tênue que só conseguiu ver formas vagas. Pelo silêncio supôs que estava sozinha, de modo que se atreveu a mover a mão direita e foi apalpando com tato por sobre a cama. De repente roçou com a mão um objeto redondo e peludo e alguém for quebra de onda de terror a invadiu toda inteira. Levantou-se bruscamente, embora sua mente lhe dissesse que essa forma e textura não eram as da cabeça de um homem. Girou a cara à direita, o que lhe aumentou a sensação de vertigem, e piscou para esclarecer visão. Então voltou a piscar ao ver que na escuridão se materializavam dois brilhantes círculos dourados. Quando estava ao ponto de um ataque de histeria, aos círculos dourados se acrescentou um focinho rosado bocejando e brilharam dois pequenos olhinhos. O alívio foi tão imenso que quase se pôs a rir. Quem a acompanhava na cama não era um violador a não ser um gato. Parecia um novelo sobre o travesseiro, e era muito grande, muito peludo e muito negro, com o nariz achatado característico de um verdadeiro gato persa. O tolo bichinho deve ter penetrado na habitação quando a depositaram ali. Sentando-se com muito cuidado para não enjoar-se, disse-lhe: - Se for o gato do Varenne, anda em muito má companhia, Rex. Ou também está preso por espionar? Arranhou-lhe a sedosa cabeça negra e foi recompensada por um ronronar tão vibrante


que ela o sentiu no colchão. - Por certo, chama-se Rex, não é? Posto que o gato não o negou, deu o assunto como resolvido. Desceu as pernas da cama, cautelosamente ficou de pé e comprovou seu estado. Além de um ligeiro enjôo e a boca seca, sentia-se bastante bem. Embora o vestido de musselina verde estivesse enrugado, não a tinham violado enquanto estava inconsciente, e esse tinha sido seu maior temor. Agarrou-se no poste da cama para firmar-se e passeou o olhar pelo quarto. Havia poucos móveis, os indispensáveis, e em outro tempo, muitíssimo tempo atrás, devia ter sido um quarto atraente, mas nesses momentos as paredes estavam sujas e as cortinas da cama desfiadas. A escuridão se devia às cortinas, igualmente puídas, fechadas na janela. Caminhou até a janela e as abriu. Entrou em torrentes a bendita luz do dia, completando a tarefa de lhe limpar a mente. Pela posição do sol deduziu que seria primeira hora da tarde, ou seja, que tinha estado inconsciente umas duas ou três horas. A janela dava a um precipício de uns sessenta metros que caía em sobre um rio. Olhar para baixo lhe produziu outra sacudida de vertigem. Por ali não havia escapamento. Ao que parecia Varenne a tinha levado ao Chanteuil, sua propriedade junto ao Sena. Dedicou um tempo a explorar seu contorno. Como supunha, a maciça porta estava fechada com chave, e não havia nada no quarto que pudesse utilizar como arma. Suspirando voltou a se jogar na cama. Imediatamente Rex saltou sobre seu colo ronronando com grande estrondo e ameaçando lhe deter a circulação com seu peso. Arranhou-lhe a cabeça, pensando que era uma tolice encontrar consolo na presença de um gato. Mas era assim; sempre tinham gostado dos gatos e Rex era um esplêndido exemplar de sua espécie. Apoiou-se na cabeceira e avaliou sua situação. Embora seus motivos fossem um mistério, era evidente que Varenne era o Serpent. Amaldiçoou-se por deixar que a lógica dominasse a sua intuição. A falta de motivo aparente do Varenne era menos importante que a desconfiança que lhe inspirava, e deveria ter suspeitado mais dele. Entretanto viu uma fresta de esperança; se Varenne a tinha raptado a ela, era possível que tivesse feito o mesmo com Robin. Era possível inclusive que Robin estivesse embaixo desse mesmo teto, vivo, e não fosse um traidor. Essa possibilidade a fez sentir-se melhor. Posto que essa manhã tinha que ter ido com o Rafe visitar o Roussaye, sua ausência já teria sido descoberta, embora na realidade isso não servisse de nada porque a ninguém lhe ocorreria suspeitar que era Varenne quem a tinha rapta do. Seria melhor preparar-se para uma longa estadia. O único destaque que ocorreu na hora seguinte foi um repentino movimento do Rex, que levantou a cabeça, saltou da cama e correu pelo quarto a uma velocidade surpreendente em um animal tão dorminhoco; um chiado, interrompido bruscamente, deixou em claro que tinha apanhado a um camundongo. Maggie estremeceu ao vê-lo instalar-se com o flácido corpinho e começar a comer. Embora compreendesse o gato, por ser um predador, identificava-se mais com o camundongo.


Os raios do sol indicavam que era meia tarde quando um chiado na fechadura anunciou a aparição do Conde de Varenne. Acompanhavam-no um rufião com uma arma e um criado ancião que colocou uma bandeja coberta na única mesa e logo partiu. Pelo menos não pretendiam fazê-la morrer de fome, pensou com ironia; em umas poucas horas mais, o camundongo do Rex poderia ter começado a lhe parecer apetitoso. Tão logo entrou o Conde no quarto, Rex saltou ao chão e se meteu debaixo da cama, demonstrando assim que era um gato sensato. Enquanto o guarda a apontava com sua arma, Varenne de deteve a uns três metros dela. As pálpebras cerradas faziam seus olhos semelhantes aos de um réptil; talvez a isso se devesse seu apelido. - Espero que não se ofenda se mantiver distância, senhorita Ashton - disse ele, tão cortês como se estivessem reunidos para tomar o chá. Já vê o enorme respeito que lhe tenho. - Não consigo imaginar porque, respondeu ela elevando as sobrancelhas; certamente não demonstrei ter uma grande inteligência neste caso. Nem sequer entendo porque está você por trás desta conspiração. - Os motivos de sempre, senhorita Ashton: poder e riqueza. Percorreu-a com seu arrepiante olhar. Tenho que confessar que estava convencido de que não era outra coisa que uma cortesã em busca de um protetor rico. Foi uma surpresa descobrir quem e o que é. - Orgulho-me de surpreendê-lo, disse ela sarcástica. - Entretanto, continuou ele sem fazer caso do comentário, a informação que tenho de você é incompleta. É correto o nome de senhorita Ashton ou adquiriu alguns maridos ao longo dos anos? - Nenhum legalmente, respondeu ela asperamente. O Conde sorriu malicioso. - Não me cabe dúvida de que houve muitos sob corda, como seu amigo loiro. Acelerou o pulso de Maggie. - Supondo que se refere ao Robert Anderson. Tem-no aqui também? Foi intenso seu alívio ao vê-lo assentir. - Sim, embora seu alojamento seja menos cômodo que o seu. Está quase diretamente debaixo deste quarto, cinco andares mais abaixo. Os castelos têm certos inconvenientes como residência, mas têm excelentes masmorras. - O que vai fazer conosco? Varenne esboçou um sorriso arrepiante. - Uma de minhas sócias sussurra por conhecê-la melhor, de modo que lhe darei a oportunidade de fazê-lo. Depois, tudo dependerá do quão disposta se mostrar a colaborar. Você poderia ser muito valiosa, querida minha. Maggie sentiu náuseas novamente e teve que fazer um esforço para não refletir a repugnância em sua cara. - E Robin? - Eu esperava que me resultasse útil, mas é um jovem muito teimoso. Não tem muito sentido mantê-lo aqui indefinidamente. Moveu a cabeça com falso pesar. Mas não quero


aborrecê-la pensando em voz alta. Se puder lhe oferecer algo para fazer mais cômoda sua estadia... Embora duvidasse que ele acreditasse que ia levar a sério o irônico comentário, respondeu: - Uma escova para o cabelo, um pente e um espelho iriam muito bem. Além disso, uma bacia, sabão, água e algo para ler. Ele sorriu com autêntico humor. - É você uma mulher muito regulável, senhorita Ashton. Quer ficar apresentável para seu novo amante? Ela desejou cuspir nele, mas sorriu docemente. - É obvio. Terei que tirar o melhor partido possível às circunstâncias. Varenne olhou ao guarda. - Se encarregue de que lhe tragam o que pediu. Depois os dois homens partiram. Tão logo ouviu girar a chave na fechadura, Maggie se dobrou na cama e cobriu a cara com as mãos. Umas horríveis náuseas lhe agitaram o estômago e se concentrou em dominar os violentos desejos de vomitar. Deus santo, quanto tinha lutado para não ser vítima, e durante doze anos o tinha conseguido. Mas nesses momentos estava presa em acontecimentos que lhe demonstravam quão impotente era na realidade. Não era outra coisa senão moeda de troca ou o impotente troféu para um conspirador. E desta vez não estavam nem Rafe nem Rob in para protegê-la. A primeira pequena vitória foi controlar as náuseas. Quando conseguiu, levantou-se trêmula e se aproximou da janela; ali inspirou ar fresco. Abaixo, viam-se as rochas da base do escarpado. Aliviada compreendeu que sempre teria a possibilidade de saltar. Apertou os lábios; essa seria uma covardia, e não tinha sobrevivido a tantas coisas para agora morrer sem batalhar. De todo modo era um consolo saber que restava o precipício como último recurso. Dirigiu-se à mesa e na bandeja encontrou um prato com um saboroso guisado, uma garrafa pequena de vinho, meia barra de pão e várias frutas. Resolutamente se sentou a comer, porque necessitaria de toda sua força. Um suave miau junto à cadeira lhe anunciou que Rex se reuniu com ela, claramente desejoso de acompanhá-la na comida. Sorriu ao vê-lo mover a enorme pata esperançado; atirou-lhe várias partes de carne ao chão. Provavelmente ele era o único aliado que ia encontrar ali. Quando Rafe voltou de sua visita ao Roussaye, estava-o esperando Héléne Sorel. Tal como tinha temido, ainda não se sabia nada de Maggie. Héléne tinha interrogado minuciosamente a Cynthia a respeito do que tinha visto, mas não conseguiu inteirar-se de nada mais sobre o raptor de Maggie. - É Roussaye nosso homem? - perguntou Héléne com a expressão rígida pela ansiedade. - Não, respondeu ele começando a passear-se inquieto pela sala. Convenceu-me de que seu desejo de paz é tão forte como o nosso. Vai tentar descobrir para quem trabalhava Lemercier.


- Oxalá tenha êxito. Não temos nenhuma outra pista, não é? Rafe sucumbiu a seu mórbida curiosidade sobre como trabalhava Margot. - Não, a menos que você possa utilizar as mesmas fontes que utilizava Maggie, disse. É possível isso? - Não, ela conhece centenas de mulheres de toda a cidade, lavadeiras, criadas, vendedoras ambulantes de toda a Europa na realidade. Eu era simplesmente uma delas, só que nos fizemos amigas. Nós duas necessitávamos de uma amiga. Rafe interrompeu seu passeio e a olhou assombrado. - Toda a informação ela recebia de mulheres? Héléne estalou a língua com repugnância. - É você tão injusto como o Coronel Von Fehrenbach. Porque os homens sempre supõem que a única maneira como uma espiã pode trabalhar é deitando de costas? Pense, excelência. As mulheres estão em todas as partes e entretanto as tratam como se fossem invisíveis. Os homens falam de planos secretos diante das criadas, jogam papéis importantes ao lixo; alardeiam de suas proezas diante das prostitutas. O método de Maggie era recolher muitos pedacinhos de informação e logo lhes encontrar sentido - Mordeu-se o lábio e depois continuou: Supondo que em algum lugar tem que haver uma lista de seus informantes, mas estará bem escondida e certamente em algum tipo de código. Até no caso de que eu pudesse encontrar e decifrar essa lista, a maioria de suas mulheres não falaria com uma desconhecida. Nossa lealdade vai à causa de Maggie e a ela pessoalmente. O dinheiro era secundário. Rafe tamborilou com os dedos sobre o suporte da chaminé, pensando na revelação de Héléne. Seu ciúme o tinha feito supor que Margot vendia seu corpo para obter informação, com a cínica conivência de Anderson. Maldita seja, como é que havia se equivocado em tudo? - O que vai fazer agora, acudir ao Wellington? - perguntou-lhe Héléne interrompendo seus pensamentos. - Não, como disse ao Roussaye, quão único poderia fazer Wellington seria me emprestar alguns soldados, e sem saber onde procurar, isso não nos serviria de nada. Enviei uma mensagem urgente ao homem de Londres que me enviou aqui. Seguro que ele terá algumas sugestões úteis, mas sua resposta demorará vários dias. - E enquanto isso? Rafe fez um gesto de desespero. - Se Roussaye consegue descobrir ao empregador do Lemercier, é possível que cheguemos à origem da conspiração. Além disso, não me ocorre nada mais. Voltarei para Hotel da Paix e me espremerei os miolos. Anote-me seu endereço e a comunicarei se me ocorrer algo. Héléne foi ao escritório a agarrar pluma, papel e tinta, e escreveu seu endereço. - Eu também tentarei pensar o que outra coisa poderíamos fazer, disse lhe entregando o papel. Tem que haver alguém que nos possa ajudar; se me ocorresse quem... Intercambiaram um triste olhar e Rafe partiu. Durante o trajeto ao hotel lhe ocorreu que valia a pena falar com o Conde do Varenne. Se, como lhe havia dito Roussaye, o Conde foi um espião monárquico durante seu exílio, era


possível que ainda tivesse fontes de informação úteis. Esteve no hotel o tempo suficiente para ficar roupa de montar e lhe perguntar ao zelador a forma de chegar ao Chanteuil. Depois se pôs em marcha no cavalo baio castrado que tinha comprado na primeira semana de sua estadia em Paris. Ir a cavalo não só ia ser mais rápido que ir de carro, mas também além de tudo, ia lhe proporcionar o exercício físico que necessitava para liberar suas angustiosas emoções. A rota o levou para o oeste, mais à frente do palácio imperial do Malmaison, comprado pela Josefina Bonaparte como aprazível retiro campestre. Ali viveu retirada Josefina depois que Napoleão se divorciou dela por não lhe dar um herdeiro; e ali morreu. Dizia-se que ali também passou Bonaparte seus últimos três dias de liberdade em chão francês, porque desejava estar perto do espírito da mulher a quem nunca deixou de amar. Era uma história romântica, e ao passar junto à propriedade, Rafe sentiu uma pontada de compaixão pelo Açougueiro de Córsega, que tinha continuado amando quando não era nem prudente nem conveniente. Isso era talvez quão único tinha em comum com ele. Demorou menos de uma hora em chegar ao Chanteuil. As portas de ferro estavam oxidadas, mas eram maciças, como o muro de pedra cinza que protegia a propriedade. Um porteiro ancião o olhou de cima abaixo com muita desconfiança antes de lhe permitir a entrada. Uma vez dentro, viu que o castelo era tão espetacular como tinha afirmado Varenne. A fortaleza original se erguia sobre um escarpado rochoso do que se dominavam os campos dos arredores. A curva do Sena em que estava situado o rodeava por três lados. Ao longo dos séculos se foi ampliando o edifício incorporando novas estruturas, e sob a torre da comemoração se estendiam amplos jardins estilo francês, mas o efeito geral seguia sendo ameaçadoramente medieval. Contemplando o castelo enquanto cavalgava para o meio galope pelo cascalho do comprido caminho de entrada, passou fugaz por sua mente a idéia de que Chanteuil seria o lugar perfeito para ambientar algum dos horripilantes melodramas da senhora Radcliffe. O imóvel delatava os efeitos de comprimentos anos de negligência; os jardins se converteram em um matagal de arbustos e malezas, e a maioria das dependências exteriores estava em mal estado. Embora fossem apreciáveis as obras de reparação para devolver ao Chanteuil seu passado esplendor, Varenne necessitaria de vários anos e uma considerável fortuna para finalizar a tarefa. Quando se deteve diante a porta principal e desmontou, aproximou-se um criado a agarrar o cavalo para levá-lo a estábulo. Impaciente, com a sensação de estar perdendo um tempo precioso, subiu os degraus de dois em dois e golpeou energicamente a porta com a aldrava, rogando que sua visita produzisse algum resultado. O ancião mordomo que abriu a porta também o examinou minuciosamente antes de aceitar um cartão para seu amo. Pelo menos, graças a Deus, Varenne estava em casa; já era hora de que algo fosse bem. O Conde do Varenne estava trabalhando em sua biblioteca no meio do aroma rançoso de livros antigos quando o mordomo lhe apresentou o cartão; ao vê-lo sorriu com imensa


satisfação; certamente os deuses estavam do seu lado. Quem ia sonhar que a próxima mosca ia meter se só no tecido e apresentar seu cartão à aranha? E essa mosca era ouro sólido. - Veio sozinho o Duque? - Sim, milorde. Varenne olhou ao secretário enrugado que o acompanhava na biblioteca. - Grimod, vá à sala de armas do torreão ocidental e traga outra escopeta e munições. Voltou-se para mordomo: Diga ao Lavisse que venha, espere dez minutos e logo traga o Candover. Embora ainda não tivesse acabado o verão, no enorme vestíbulo onde esperava Rafe fazia frio e entravam correntes de ar. Observa ndo a um camundongo que passava correndo pelas lajes irregulares do piso, pensou como seria no inverno, com o ar frio e a umidade do rio; supôs que seria condenadamente desagradável. Varenne teria muitíssimo trabalho em fazer habitável essa úmida fortaleza medieval. Passado um bom momento apareceu o ancião mordomo arrastando os pés e lhe fez um gesto de que o seguisse. Depois de um comprido e lento trajeto por corredores de pedra irregular e escadas estreitas, o mordomo abriu uma porta e lhe indicou que entrasse. - A biblioteca, milorde, resfolegou. Tão logo deu o primeiro passo lhe cravaram duros objetos metálicos nos lados. - Mãos acima Candover, disse uma voz amável. Essas são escopetas de caça, a essa distância o deixarão convertido em farrapos. Rafe viu que dois homens tinham estado esperando-o com escopetas. Compreendendo que seria suicídio tirar sua pistola, levantou lentamente os braços. Que imbecil tinha sido, que condenadamente imbecil. Ficou quieto enquanto um criado o revistava e lhe tirava a pist ola; finalizado o registro, disse em tom irônico: - Supondo que encontrei à Condessa Janos. - Certamente, respondeu Varenne, e lhe asseguro que está muito bem, e adaptando-se com extraordinária rapidez ao seu cativeiro por certo. Com um gesto o convidou a sentar-se em uma das cadeiras frente a ele do outro lado do escritório. Os guardas continuaram perto da porta apontando-o. - Sua falsa Condessa é toda uma sobrevivente. Sabia que é tão inglesa como você e que não tem um só osso aristocrático em seu delicioso corpo? Tomando por surpresa a expressão pétrea do Rafe, soltou um sorriso maligno. Não se julgue com tanta dureza, Candover, eu tampouco imaginava. Mas basta de falar dessa mulher, interessa -me mais você. Sabe alguém que está aqui? Rafe pensou na possibilidade de mentir e dizer que sim, mas sua hesitação durou muito; Varenne interpretou corretamente seu silêncio. - Estupendo, não falou com ninguém desta visita. Estando tão perto do momento crítico, eu não gostaria que meus homens perdessem tempo a procurando a quem o houvesse dito. Ou seja, que a conspiração estava a ponto de levar-se a cabo e nem ele nem Margot poderiam fazer nada a respeito.


- Satisfaça minha curiosidade, Varenne. O que pretende fazer? Se for morrer, quero saber por que. - Morrer? - repetiu o Conde surpreso. O que lhe faz pensar que vou eliminar desnecessariamente a um homem de sua riqueza? Isso seria um esbanjamento, e não cheguei onde estou desperdiçando minhas oportunidades. E isto me leva a outra pergunta. Diz-se que sua fortuna sobe a oitenta mil libras anuais. É correto isso? - Mais ou menos, respondeu Rafe com um encolhimento de ombros. Varia um pouco, segundo os juros que dão os diferentes investimentos. - Esplêndido! Um autêntico sorriso iluminou a cara do Conde, seus olhos bril hantes como ágatas. Posso tomar uns quantos minutos livres, de modo que vou satisfazer sua curiosidade, ou uma parte ao menos. Acompanharia a uma taça de Bourbon? É de uma colheita excepcionalmente boa. Rafe se sentiu como se tivesse entrado no manicômio, mas aceitou o convite assentindo com a cabeça; viria-lhe bem um gole. Transcorreram uns minutos entre que trouxessem as taças e servissem o vinho. Depois de beber um gole, com um gesto confirmou que em realidade era excelente. - Perguntou-me o que pretendo fazer. É muito simples; a França necessita uma mão forte que a dirija, e não a vai consegui-la dos restos decadentes da casa do Bourbon. Depois que se execute meu plano se armará um caos, e estou preparado para intervir e solucioná -lo. Por minhas veias corre sangue real e parte dele é inclusive legítima. Os monárquicos me aceitarão com os braços abertos; ao fim e ao cabo os servi do exílio. Sou um deles. - Dada a incapacidade dos Bonapartistas, seria possível convencer aos monárquicos admitiu Rafe, interessado em seu pensamento, mas e os bonapartistas? Nunca vão aceitar a um monárquico que quer voltar para antigo regime. - Mas é que eu não quero voltar para o antigo regime, meu querido Duque, e isso é o que me faz único - disse Varenne com ar de suficiência. Sou um homem flexível, sei tagarelar sobre os direitos do homem, falar de «liberdade, igualdade e fraternidade» tão bem como qualquer revolucionário. Já tenho bonapartistas trabalhando para mim. Recorde que Napoleão falava de liberdade e criou a maior tirania que conheceu a Europa. Se as pessoas disserem uma enorme mentira com ousadia, pode fazer quase tudo. - Isso é muito engenhoso, Conde - Rafe agarrou a garrafa de vinho e encheu as duas taças. Não sabia se Varenne era um louco ou um gênio, nem se havia alguma diferença entre ambas as coisas - Mas eu diria que será difícil pôr de acordo em algo às duas facções. O Conde negou com a cabeça. - Com o Napoleão, a França se converteu na maior potencia do império romano. Nenhuma verdadeira francesa deseja renunciar a isso, e nisto entram também os monárquicos. - Ou seja, que vai reunir toda a nação em armas, poder a glória, uma vez mais - disse Rafe. Mas esquece você de um grupo. Que me diz de todas essas pessoas que estão cansadas de lutar, que desejam viver em paz? - O lobo sempre vai comer o cordeiro, Candover - Sem dúvida Varenne acreditava no


que dizia, mas Rafe pensou em Margot e seu exército de mulheres, em Héléne Sorel, no tenaz pragmatismo do Michel Roussaye, e não viu muito prós nos seus argumentos. C ordeiros com coragem suficiente poderiam vencer inclusive os lobos mais ferozes. Mas esse não era o momento para discutir filosofias. - Se não for matar, o que vai fazer comigo? Você é um seguro, Candover. Embora meu plano seja excelente, cabe a possibilidade de que fracasse. O caos é difícil de controlar, inclusive no caso de que alguém o esteja esperando. Se subir outra pessoa ao topo, necessitarei muitíssimo de dinheiro. - Não é já um homem rico? - Tento dar essa impressão, mas já viu o estado em que se encontra minha propriedade, e a conspirações são caras. Nestes momentos estou quase na miséria. Se meu golpe de estado tiver êxito, terei toda a riqueza que necessito e você voltará intacto a Inglaterra. Se fracasso, encolheu de ombros supondo que estará você disposto a pagar uma soma substanciosa por sua vida e liberdade. - Pela minha e pela da Condessa também. - Tanta afeição tomou por ela? - exclamou Varenne surpreso. Realmente terei que descobrir o que faz que seja tão especial. Depois de tudo só é uma mulher. Rafe descobriu que a expressão «ver vermelho» não era só uma metáfora. Rugiu-lhe o sangue, e se um pequeno fragmento de juízo não lhe tivesse recordado que havia homens armados na porta, haveria tentado destroçar ao Varenne com suas mãos. Algo disso deve ter se refletido em sua cara, porque o Conde disse: - Se são tão fortes seus sentimentos, seguro que poderemos arrumar algo. Claro que não o liberaria sem que me dê sua palavra de cavalheiro inglês de que não vai tomar nenhum tipo de represálias. Essa é uma das coisas encantadoramente divertidas dos ingleses, tomam muito a sério suas promessas. Soou um golpe na porta e entrou um mensageiro com uma nota. Varenne a leu e franziu o cenho. - Sinto muito, Candover, não posso continuar conversando. Há assuntos que requerem minha atenção. Peço-lhe desculpas pela qualidade do alojamento, mas se estivesse muito cômodo não teria nenhuma pressa em pagar seu resgate e partir. Olhou aos guardas. Façam o favor de acompanhar o nossa hóspede ao calabouço. Os pensamentos discorreram velozes por sua mente enquanto os homens armados o empurravam a sair da biblioteca e pôr-se a caminhar pelo corredor. Varenne bem podia estar louco, mas não se podia negar que seu plano era diabolicamente engenhoso. Dada a precária situação política da França, um golpe bem escolhido podia levar o Conde ao poder supremo. O trono de Luis descansava sobre areia, e um líder forte, capaz de unir às facções, seria bem recebido. Cabia também a possibilidade de que uma vez realizada a façanha, o resto da Europa aceitasse qualquer líder francês que tivesse um ápice de respeitabilidade. Sim, era possível que desse resultado o plano de Varenne, e que a França se encontrasse nas mãos de outro Napoleão. A perspectiva era aterradora.


Depois de baixar vários lances de escada de caracol de pedra, chegaram ao andar mais baixo do castelo. Se já a parte superior era úmida e desagradável, as masmorras eram muitíssimo piores; cheiravam a morte e a crueldades de épocas antigas. Finalmente chegaram a um lúgubre hall em que havia uma maciça porta de ferro. Lavisse agarrou um enorme chaveiro pendurado de um gancho na parede e introduziu uma chave na velha fechadura. Enquanto seu companheiro apontava ao Rafe com a escopeta, Lavisse manipulou o antiqüíssimo mecanismo até fazer girar a chave. O guarda abriu a porta o suficiente para que passasse um homem e se voltou para Rafe. - Que desfrute de sua estadia aqui, sua maldita excelência, lhe disse com insolente sarcasmo. Depois, com um forte empurrão nas costas, lançou-o de cabeça dentro da masmorra. Ainda caído de bruços no chão de pedra, Rafe se deu conta de que havia outra pessoa na cela.

CAPÍTULO 20

Receoso, Rafe permaneceu em sua posição de quatro mãos no chão, esquadrinhando seu interior. A cela era mais ou menos cúbica, de uns três metros por lado, as paredes de pedra sem polir. O único mobiliário era um cubo para águas sujas em um canto e um montão de palha com um par de mantas. Entrava um pouco de luz por uma janela com barrotes perto do teto. Embora pouca, a luz era suficiente para que identificasse o homem loiro escancarado sobre a palha. Maldição, isso era o único que lhe faltava. Antes de levantar-se fez uma respiração longa e profunda. Embora devia alegrar-se de que Robert Anderson estivesse vivo e não fosse amigo do Conde do Varenne, o último homem que teria escolhido para compartilhar prisão era o amante de Margot. - Lamento que também tenham pego a você, Candover - disse Anderson, sem incomodar-se em levantar-se. O que aconteceu nestes últimos dias? - Distúrbios, raptos, conspiração, o de sempre. Limpou-se o pó das calças e continuou, com mais seriedade: Varenne tem à Condessa. - Maldição, exclamou. Com o rosto sombrio, Anderson se sentou, e o movimento fez que aparecesse uma careta de dor em seu rosto. Temia isso. Sabe se está bem? - Isso me disse Varenne, se lhe poder acreditar. Quando seus olhos se acostumaram à luz, viu que seu companheiro estava em bastante mal estado, o braço esquerdo apoiado no colo e sua cara terrivelmente lívida. Esquecendo seu ciúme exclamou:


- Pelo amor de Deus, homem, o que lhe têm feito? Anderson sorriu sem humor. - Devido a minha legendária ferocidade, Varenne enviou a quatro rufiões para me trazer aqui. Tentei declinar o convite, mas insistiram. Algo clicou na memória do Rafe. - Na manhã seguinte ao seu desaparecimento encontraram dois franceses mortos não identificados perto de seu hotel. Teve algo que ver com isso? - Resisti muitíssimo a aceitar sua hospitalidade, respondeu Anderson com um sorriso mais autêntico. Observando a figura magra e a beleza quase feminina de seu companheiro, Rafe compreendeu que tinha cometido outro equívoco. - Recorde-me de não me encetar em nenhuma briga com você, disse meio sorrindo. - Duvido de que seja mais perigoso que um pardal neste momento. Rafe observou que tinha a cara exageradamente branca, inclusive para uma pessoa de sua cor clara; se aproximou e ficou de joelhos na palha, junto a ele. - Será melhor que lhe olhe o braço. Soltou um suave assobio ao ver o horrível inchaço que lhe chega va também a mão e o pulso. Com supremo cuidado começou a lhe examinar a zona. - Golpeou a alguém com muita força? - Não, quando cheguei aqui estava bastante ileso, mas Varenne tinha vontades de conversar e eu não. O brilho do suor em sua cara indicou ao Rafe o muito que custava aparentar essa despreocupação. Ao seu pesar, aumentou a admiração por seu rival. - Minha impressão é que estão fraturados um dos ossos do pulso e três dedos, disse. Por sorte, as fraturas se vêem limpas. Deixe-me tirar a jaqueta para poder lhe enfaixar essa parte. Isso o aliviará um pouco. Rafe tirou o colete, rompeu-o em tiras e começou a pôr em prática os conhecimentos de primeiros socorros adquiridos no terreno de caça. Enquanto o enfaixava apareceu em sua mente a odiosa imagem dessa mesma e elegante mão acariciando a Margot. Ficou imóvel, tentando dominar o ciúme, repetindo-se furioso que não era nem o momento nem o lugar para entregar-se a esses pensamentos. Depois de um momento conseguiu reatar o trabalho. Em honra de sua própria dignidade, pôs especial esmero em fazer o menos dolorosas possíveis suas manipulações; de todo modo, estas estiveram a ponto de acabar com o estoicismo do jovem. Quando terminou de enfaixá-lo e lhe deixou o braço preso em uma tipóia, Anderson estava deitado na palha, com a fronte molhada de suor. Devia estar meio inconsciente de dor. Passado um momento, quando já respirava com normalidade, Anderson lhe disse: - Posto que de todo modo Varenne acabou capturando a Maggie, talvez deveria lhe ter escrito a maldita nota. Ao ver o olhar interrogante do Rafe, continuou: O Conde queria que escrevesse a Maggie convidando-a a vir aqui. Disse-me que me quebraria ossos até que concordasse. Só lhe disse que era canhoto quando já me tinha fraturado três dedos e já não


havia nenhuma possibilidade de que a letra me saísse normal. Deveria ter trabalhado minha mão direita. Enquanto se acomodava na palha aos pés do Anderson, Rafe se surpreendeu vendo o humor negro do incidente. - Eu gostaria de ter visto a cara de Varenne quando lhe disse isso. - Não teria se divertido, rompeu-me a mão de pura irritação, disse Anderson. Em qualquer caso, estive em prisões piores. A palha é fresca, as mantas limpas e, posto que isto é a França, servem um vinho bastante passável com a comida. Nesta estação a temperatura é bastante decente, embora não passaria o inverno aqui. Rafe tentou reprimir um calafrio diante a perspectiva. Seguro que, Varenne não os teria ali muito tempo. - A curiosidade profissional resiste em morrer, disse Anderson. Deu-lhe Varenne alguma idéia do que se propõe? Rafe o pôs à corrente das entrevistas com Von Fehrenbach e com o Roussaye, falou da morte do Lemercier sem explicar os detalhes e logo repetiu o que lhe havia dito Varenne sobre seus motivos. Depois de fazer várias perguntas, Anderson soltou um suspiro e fechou os olhos um momento. - Estava muito equivocado com ele. Sinto-me como um estúpido. - Somos muitos os que, como você, não deduzimos o que se passava, replicou Rafe amargamente. Todo mundo estava equivocado. E ele mais que ninguém. Depois disso havia pouco a dizer. Os dois ficaram sentados à luz que ia diminuindo pouco a pouco, sem falar. Embora houvesse muitas coisas que Rafe teria gostado de perguntar ao Anderson, nenhuma delas lhe pareceu apropriada. Transcorreram as horas e Rafe chegou à conclusão de que a pior parte do encarceramento devia ser o aborrecimento. A cela era incômoda, as paredes de pedra não ofereciam nenhum estímulo, e se tivesse que passar muito tempo ali ficaria louco muito em breve. Invejou a tranqüilidade do Anderson; esgotado pela dor, passava a mais velha parte do tempo dormindo, e inclusive quando estava acordado, fazia ornamento de uma reflexão filosófica que a ele parecia muito difícil poder imitar. Claro que, conforme havia dito, tinha experiências anteriores; talvez a prática aperfeiçoava a técnica. Ao cair da noite lhes levaram o jantar com as precauções de costume: um homem entrou em deixar a bandeja e outro ficou na porta apontando-os com uma arma. A comida era um guisado de carne muito decente, pão e fruta, mais uma jarra que continha uns quatro litros de vinho tinto. Além dos pratos e taças de estanho, os únicos outros utensílios eram colheres brandas que se dobravam facilmente e não se podiam usar como armas. Embora depois devessem recolher a bandeja, pratos e colheres, deixaram -lhes o vinho e as taças para beber. A quantidade de vinho não era para embebedar-se, mas sim suficiente para soltar as línguas. Até o momento a conversa entre eles tinha consistido em comentários esporádicos sobre os possíveis planos do Varenne.


- Porque Margot é como é? - perguntou de repente Rafe, quase sem dar-se conta. Anderson esteve calado um bom momento. - Porque não o perguntou a ela? - disse finalmente. Rafe emitiu um sorriso áspero. - Não creio que me responderia. - E se ela não diria, porque acredita que eu vou dizer? Rafe guardou silêncio, procurando algum argumento convincente. Em lugar de responder à pergunta, disse: - Sei que não tenho nenhum direito de perguntar, mas desejo, bem necessito entendê-la. Conheci-a muito bem em outros tempos ou acreditei que a conhecia, mas agora é um mistério para mim. Depois de um momento de silêncio ainda mais longo, Anderson respondeu em tom hostil: - Maggie esteve diferente desde que soube que você viria a Paris; vi-a irritada, triste. Eu a conheci quando tinha dezenove anos e sei muito pouco de sua vida anterior. Mas sim, sei que alguém tinha começado a tarefa de destroçá-la e que os malditos franceses acabaram a tarefa. Se foi você quem fez isso, que me mate se lhe disser algo. A escuridão já era quase total; só um débil raio de lua iluminava a cela. A figura do Anderson era apenas perceptível a sua direita, negro contra negro. Na escuridão, a dor de treze anos estava muito perto. A duras penas procurou a jarra de vinho e encheu os dois copos. - Alguma vez lhe contou o ocorrido? - Não. Anderson respondeu em tom seco, mas Rafe detectou um indício de curiosidade. Se o homem estava apaixonado por Maggie, também devia lhe interessar seu passado. No anonimato que lhes proporcionava a escuridão, seria fácil fazer uma confissão que não lhe ocorreria jamais fazer à luz do dia. - Cada um de nós conhece uma parte importante do passado de Margot, disse. Porque não intercambiamos informação? Antecipando-se às objeções, acrescentou: Sei que isso não é cavalheiresco, mas lhe juro que não desejo lhe fazer nenhum dano. Pareceu-lhe que quase ouvia os fatores que estava pesando Anderson em sua mente. Ao fim o jovem respondeu em tom pesaroso: - Meu pai sempre dizia que não tenho nem um só osso cavalheiresco em meu corpo e tinha razão. Mas lhe advirto que não é uma história agradável. Correspondia-lhe começar, portanto se lançou: - Margot Ashton fez sua apresentação em sociedade durante a temporada de mil oitocentos e dois. Sua linhagem não passava de respeitável, sua fortuna era insignificante e segundo a opinião geral não era uma beleza clássica, e entretanto poderia ter escolhido entre os melhores partidos de Londres. Ficou um momento em silêncio, recordando a primeira vez que viu Marg ot, quando entrava em um salão de dança. Um olhar foi suficiente para se afastar do grupo em que estava e dirigir-se diretamente para ela, abrindo caminho entre a multidão como uma faca quente


corta a manteiga. A mulher que acompanhava a Margot reconheceu imediatamente ao herdeiro do Candover e fez as apresentações, mas ele quase não percebeu; só lhe importava Margot. Ela sorriu um pouco divertida ao ver sua expressão, mas tão logo seus olhos cor fumaça se encontraram com os dele sua atitude mudou e, como um eco, seus sentimentos se acenderam nela. Ou ao menos isso era o que acreditava ele nesse tempo. Só depois tinha percebido que essa reação ocorreu quando ela já sabia quem era ele. - Parecia ser um perfeito conto de fadas, continuou em voz alta, um amor a primeira vista e todas essas necessidades. O Coronel Ashton não permitiu que nos comprometêssemos oficialmente antes que terminasse a temporada, mas chegamos a um acordo entre nós. Nunca fui tão feliz como fui nessa primavera. Então ocorreu... - interrompeu-se, incapaz de continuar. - Não se detenha agora, Candover, justo quando vamos chegar ao essencial, disse Anderson. O que ocorreu a esse sonho de amor juvenil? Rafe tragou saliva. - Foi bastante simples. Uma noite saí com um grupo de amigos e conhecidos, e um que tinha bebido o suficiente para ser indiscreto contou que... que Margot se entregou a ele uns dias antes, em um jardim, durante um baile. Bebeu um bom gole de vinho para molhar a garganta ressecada. - Ao olhar para trás, vejo como reagi mal. Era jovem e idealista e estava totalmente desequilibrado pelo amor. Em lugar de aceitar seus atos como curiosidade, experimento ou o que fosse, na manhã seguinte, quando a confrontei, agi como se ela tivesse cometido o maior crime desde Judas. Sentiria-me feliz em aceitar qualquer defesa, ou embora fosse uma mínima manifestação de remorso, mas ela não fez a menor tentativa de negar. Limitou-se a me jogar o anel na cara e partiu do salão. Bebeu outro pouco de vinho e exalou um forte suspiro. - Então decidi que tinham razão as pessoas que me haviam dito que ela era uma caça fortuna, e que só lamentava ter perdido a sua presa. Mas em poucos dias soube que seu pai e ela tinham saído da Inglaterra de viagem ao Continente. Creio que isso não teria ocorrido se ela não estivesse se sentido tão desgraçada como eu, assim suponho que poderíamos dizer que nos destruímos mutuamente. Anderson mudou de posição fazendo ranger a palha. - Vejamos se entendi bem. Você lhe perguntou se tinha tido relações com esse amigo dela e ela não o negou? - Na realidade, disse Rafe em interesse da exatidão, não perguntei, simplesmente lhe disse o que sabia. Anderson ficou de pé com bastante esforço e começou a passear pela cela soltando uma impressionante série de palavrões. Ao final se deteve e disse em tom enojado: - Dada a estupidez da nobreza britânica, não consigo entender como é que não se extinguiu, toda a raça inteira. Aceitou a palavra de um bêbado sem pô-la em dúvida, quer dizer que nunca conheceu Margot. Você merecia o que obteve, mas Deus sabe que ela não. Rafe se avermelhou de ira, mas as palavras do Anderson lhe fizeram pensar.


- É evidente que você não sabe muito sobre a nobreza, senão, não faria essa afirmação tão cortante. Nenhum homem de honra mentiria jamais a respeito de um assunto tão sério. Inclusive bêbado perdido, foi surpreendente que dissesse algo. Provavelmente nem isso teria acontecido se Northwood tivesse sabido que eu estava comprometido com a Margot. - Northwood? - Anderson parou em seco. Seria Oliver Northwood? - Sim, exatamente; esqueci que você trabalha com ele. Outra fileira de palavrões saiu da boca do jovem. - Se não você for um estúpido, é muito ingênuo e honrado para viver neste mundo tão imperfeito, espetou. Não posso acreditar que tenha aceito a palavra de um homem como Northwood contra Maggie, mas é possível que nesse tempo fosse mais acreditável que agora; mais sinceramente acho que certamente não. - Não seja ridículo, disse Rafe acalorado. Porque Northwood ia caluniar assim a uma jovem inocente? - Use sua imaginação, Candover - respondeu Anderson exasperado. É possível que estivesse ciumento de você. Ao parecer não fazia falta ter muito discernimento para observar que você e Maggie estavam tão unidos como a trama de um tecido. Possivelmente o fez por despeito, porque ela o tinha rejeitado, ou foi o alarde de um homem imaturo. Talvez você nunca teve que inventar proezas, mas muitos jovens o fazem. Demônios, conhecendo o Northwood poderia ter mentido por pura maldade. Rafe se sentiu obrigado a apresentar alguma refutação: - Porque é tão duro com o Northwood? De acordo, sempre foi um vaidoso e tratou mal a sua esposa, mas isso não o converte em mentiroso. Sempre se presume que um cavalheiro é sincero enquanto não se demonstre o contrário. - Que critério mais maravilhoso. Porque não aplicou a mesma norma a Maggie? - disse Anderson em tom mordaz, deixando-se cair sobre a palha. Esse «vaidoso» a quem defende com tanta energia leva anos vendendo informação sobre seu País a todos que queiram pagar. Pelo que isso sei dele, duvido que tenha um só osso sincero em seu gordinho corpo. - O que...? - gaguejou Rafe, sentindo-se como se o houvessem desnudado. Embora nunca tivesse sido amigo do Northwood, conhecia -o há mais de vinte anos. Tinham ido aos mesmos colégios, educaram-se pelas mesmas normas; jamais tinha tido motivos para duvidar de sua sinceridade. Entretanto, isso explicava muitas coisas. Apareceu em sua mente a cara pálida da Margot quando a acusou de infidelidade. Como se teria sentido ele se a pessoa que mais devia confiar nele tivesse aceito uma calúnia sem pô-la em dúvida? Teria se sentido exatamente igual a ela: furioso e profundamente ferido. O que foi o que lhe disse então? Algo sobre a sorte que tinham ambos por ter descoberto seus verdadeiros caracteres antes que fosse muito tarde. Nesse tempo ele interpretou essas palavras como reconhecimento de culpa, e isso confirmou em sua crença a acusação do Northwood. Mas nesse momento sua resposta adquiria um significado totalmente distinto. Cobriu a cara com as mãos. - Meu Deus! - gemeu- . Que imbecil...!


Seus fôlegos encheram a cela, e só a presença do outro lhe impediu um desmoronamento total e esmagante. Embora tivesse sido terrível sua dor pela imaginada traição dela, o consolava acreditar que era ele o ofendido. Já não ficava esse consolo e via seus atos como devia tê-los visto Margot. Fosse o que fosse o que tivesse sido ela depois podia atribuir a sua traição, ao seu ciúme e a sua falta de confiança. A tênue esperança que tinha de reconquistar seu amor se fez em migalhas entre as ruínas de seu orgulho. Como poderia voltar a confiar nele novamente se lhe tinha falhado de modo tão horroroso? Por seus próprios atos tinha perdido o que lhe mais importava no mundo, e não encontrou palavras suficientemente fortes para expressar sua amargura. A Robin foi diminuindo a ira e para seu pesar começou a sentir compaixão por Candover. Pobre diabo, tinha que sentir uma dor dos mil demônios assim derrubado de sua elevada moralidade ao compreender que ele mesmo era o causador de seus sofrimentos e dos do Maggie. Um homem como Candover, que evidentemente era honrado até a medula dos ossos, tinha sido prisioneiro fácil para a ardilosa crueldade de Northwood. Pese ao comentário de Candover, Robin estava muito familiarizado com o mundo dos aristocratas ingleses, com seus jogos infernais, seus clubes e seus códigos de cavalheiros. Nesse mundo teria sido natural acreditar em um companheiro e talvez Northwood desse a impressão de ser amável e sincero. Por outro lado, a um jovem romântico uma jovem teria parecido uma criatura misteriosa, quase mágica. Fazia falta a maturidade para entender que a semelhança entre homens e mulheres era maior que as diferenças. Dada a paixão e o sentimento de posse do primeiro amor, a Robin resultava fácil entender o engano do Candover: suas emoções cegaram seu julgamento. Quem não foi estúpido em sua juventude? Certamente ele tinha sido, embora sua estupidez tomasse formas diferente da do Candover. Também conhecia Maggie o suficientemente bem para estar seguro de que seu temperamento tinha contribuído ao problema. Se tivesse tido a sensatez de pôr-se a chorar e negar a acusação, em meia hora teria ficado tudo arrumado e poderiam ter estado felizmente casados durante esses doze anos. Nesse caso, ele não a teria conhecido, o que teria sido uma perda para ele, embora um ganho para ela. Procurou a taça do Rafe e a colocou na mão dele. - É um pouco tarde para o suicídio, se for essa a direção a que o leva o sentimento de culpa, lhe disse com certo matiz de humor. Ainda estremecido, Rafe se endireitou para beber, desejando ter algo mais forte. Ao longo dos anos se havia sentido orgulhoso de sua atitude civilizada, pensando que deveria ter aceito as infidelidades de Margot em troca de seu encanto e companhia. Inclusive tinha lamentado que ela estivesse mais em harmonia com a moralidade de seu mundo que ele, e tinha atribuído a imaturidade sua violenta reação. Mas na realidade tinha estado mais perto da verdade com seu idealismo juvenil que com


o elegante cinismo que tinha cultivado depois. Margot Ashton tinha sido tão fiel e amante como ele acreditava antes do desastre. Era ele, Rafael Whitbourne, herdeiro do ducado do Candover, a respeitado vértice da sociedade, que tinha sido indigno desse amor. - Não estranho que Maggie não queria ter nada a ver com você quando chegou a Paris, disse Robin. Se me tivesse contado dessa relação, jamais lhe teria sugerido que se aproximasse a menos de sete léguas de você. Tentando agarrar a pesada jarra com a mão boa; Rafe lhe ajudou a ench er sua taça. A jarra estava mais leve, e se esvaziou ao encher a taça do Anderson. Tinham bebido o equivalente a duas ou três garrafas cada um. Rafe desejou que houvesse mais, embora não houvesse álcool suficiente na França para afogar o que sentia. - Parece-me que você continua apaixonado por Maggie, comentou Anderson, como se tratasse do assunto mais corriqueiro. - Estou tão desequilibrado por ela como estava aos vinte e um anos - Rafe fez uma trêmula inspiração - Sempre me tinha orgulhado de meu equilíbrio. Virou a taça de vinho de um gole. É muito boa para mim. - Isso não vou discutir. - O que ocorreu nos anos transcorridos após, e como se converteu na espiã Margot? Disse-me que me contaria isso. Sabendo como tinha começado sua viagem compreendia melhor à mulher receosa, ligeiramente frágil em que se converteu Margot, sua dureza e sua desconfiança, seus brilhos de humor e vulnerabilidade. Mas ainda havia muito que desejava, necessitava, saber. - Já houve muitas emoções violentas nesta cela para uma noite, disse Anderson cobrindo-se com uma das mantas. O resto da história eu contarei pela manhã; a essa hora é possível que já me tenham passado os desejos de lhe tirar os dentes de uma patada. Enquanto se acomodava na palha, acrescentou: se vai passar a noite flagelando-se, por favor, faça-o em silêncio. Anderson tinha razão, pensou Rafe, já havia suficiente para uma noite. Envolveu-se na outra manta, pois o frio ia aumentando e se acomodou na palha. A diferença de seu companheiro, pressentia que não ia poder dormir.

CAPÍTULO 21


Considerando a quantidade de vinho que tinha bebido a noite anterior, Rafe se sentia bastante bem à manhã seguinte; inclusive tinha dormido um pouco. Quando Anderson começou a despertar, ele já tinha assimilado e aceito sua nova situação. Não existia a menor possibilidade de que Margot o perdoasse, mas de todo modo desejava ter a oportunidade de lhe pedir perdão por seu julgamento errôneo. Parecia-lhe muito importante fazê-lo. O café da manhã consistiu em pão recém saído do forno, manteiga fresca, geléia de morangos e uma enorme quantidade de excelente café quente. - Comi bastante pior em respeitáveis posadas inglesas, comentou enquanto passava geléia no pão. - Lástima que as ambições do Varenne não estejam dirigidas à hotelar ia a não ser à ditadura, disse Anderson. Rafe observou ao seu companheiro; embora assegurava que sentia muito melhor o braço, era provável que estivesse mentindo; tinha a cara avermelhada e dava a impressão de ter febre. Novamente esteve a ponto de reconhecer. Quanto mais o olhava mais familiar lhe resultava sua cara, mas seguia lhe falhando a memória. Acabavam de terminar de tomar o café da manhã quando se abriu a porta. Rafe supôs que seria o criado que vinha a levá-la bandeja, mas entrou Varenne acompanhado com seus guardas armados de escopetas. Sem incomodar-se em preâmbulos simpáticos, disse secamente ao Anderson: - Supondo que Candover lhe explicou o que me proponho fazer. Anderson terminou de beber seu café antes de responder: - Sim. Interessava-me saber no que me equivoquei. - Estupendo. Colocou a mão em sua jaqueta negra e tirou uma pistola. Apontando-a ao centro da frente do Anderson, disse: Resistiria a matar a um homem que não sabe por que morre. Embora lamente a necessidade de fazer isto, não con segui imaginar nenhuma circunstância em que você possa me ser útil, e vivo será sempre um perigo. É uma lástima que não o tenha convencido a ficar ao meu lado, mas no caso de que agora fingisse fazê-lo, não confiaria em suas promessas. Diante o olhar horrorizado do Rafe, acrescentou: Quer fazer uma última oração ou deixar uma mensagem, Anderson? Se for assim, se apresse, porque me espera um dia muito ocupado. Anderson olhou ao Rafe, com a cara muito pálida: - Por favor, transmita meu amor a Maggie. No silêncio que seguiu a suas palavras, o ruído que fez Varenne ao martelar a pistola soou como o golpe na bigorna do julgamento final. Embora fosse muito cedo, a Embaixada britânica bulia de atividade quando chegou Oliver Northwood, e vários de seus colegas que tinham estado trabalhando toda a noite o saudaram aliviados. Embora estivesse de cama, Lorde Castiereagh gerava suficientes cartas, propostas, memorandos e rascunhos de tratado para ter totalmente ocupados dez homens, e a falta de mãos estava cobrando seu preço no pessoal.


Ouviu vários colegas expressarem sua preocupação pelo Robert Anderson, que tinha desaparecido há vários dias. Para ele não foi nenhuma surpresa; tinha muito boa idéia do que lhe tinha ocorrido; bem merecido a esse cachorrinho arrogante. Pouco antes das oito, Northwood pediu desculpas por se ausentar um momento e se dirigiu ao corredor que ficava sob o dormitório do Castiereagh. Depois de comprovar nervosamente que não havia ninguém no corredor, abriu a porta da dispensa e entrou, fechando-a com chave. Não tinha pensado como seria acender uma vela em um espaço fechado cheio de pólvora, e lhe suaram as mãos enquanto fazia os preparativos necessários. Primeiro acendeu uma vela normal para formar um pequeno charco de cera derretida no chão. Sobre ela instalou firmemente o pavio compacto de cera de abelha. Quando se esfriou a cera do chão e o pavio ficou assegurado, com seu canivete abriu um buraco na esquina de uma caixa de pólvora. Por último tirou de seu bolso uma bolsinha com pólvora e com ela fez um magro furo da caixa até o pavio, acabando-o com um pequeno montículo ao redor da base. Com supremo cuidado acendeu o pavio e saiu cautelosamente da dispensa, certificandose de que não entrasse nenhuma corrente de ar que pudesse levar a chama à pólvora antes de tempo. O Serpent lhe havia dito que o pavio demoraria umas oito horas em consumir -se. Se tudo fosse bem, embora existia a remota possibilidade de que alguém sentisse o aroma de uma vela acesa dentro dessa parte da Embaixada tão pouco usada, a explosão teria que produzir-se às quatro da tarde. A essa hora já faria muitíssimo tempo que ele estaria longe. Quando esteve a salvo no andar de cima, tirou seu lenço e se secou a frente. Merecia todos os malditos francos que lhe tinham pago, e mais. Nos dois últimos dias tinham aumentado as medidas de segurança, e tinha soldados em todas as entradas, revistando os desconhecidos. Em sua qualidade de empregado regular, ele o tinha tido fácil; O Serpent jamais poderia ter feito isso sem ele. Talvez devesse lhe pedir mais dinheiro. De volta ao escritório dos secretários copistas, Northwood se instalou a fazer uma boa cópia de uma das intermináveis cartas. A única outra pessoa presente na sala era um assistente antigo de apelido Morier, que o olhou com sorriso cansado: - Alegra-me lhe ver, Northwood. Seguro que se encontra bem para trabalhar? Noto-lhe um aspecto meio cinza. Não podia estar nem na metade de mal do que estaria Morier depois da explosão; o homem ia assistir à reunião dessa tarde e voaria, tão morto quanto os peixes gordos. Northwood desprezou o pensamento, desassossegado; Morier sempre tinha sido amável com ele, e era uma lástima que ficasse preso no incêndio. Bom, isso ele não podia evitar. - Ainda me sinto bastante mal, disse sorrindo, fazendo o valente, mas pensei que poderia trabalhar um par de horas. Sei como estão sobrecarregados de trabalho. É um mau momento para estar doente. - Muito bem, murmurou Morier e se voltou para seu documento. Northwood trabalhou duas horas; sabendo que o pavio estava se consumindo até chegar ao barril de pólvora lhe produzia arrepios na nuca. Quando não pôde suportá -lo mais, explicou que devia partir e não


teve nenhum problema em parecer doente. Morier e os outros secretários que tinham chegado, compadeceram-no por sua enfermidade e lhe agradeceram ter feito o esforço de ir por umas horas. Quando partia, Oliver pensou que isso era suficiente para pôr apreensivo inclusive a um homem sem consciência, mas reprimiu o desassossego. Face à atitude amistosa, sabia que os outros membros da delegação o olhavam de cima, acreditavam-se mais inteligentes que ele. Bom, estavam equivocados; ele teria mais poder e riqueza que todos eles. Na Rué do Faubourg St. Honoré agarrou um carro de aluguel e voltou para sua casa e pôs o traje de montar. Tinha chegado o momento de visitar Conde do Varenne e lhe fazer ver o quanto esperto era Oliver Northwood. Com sorte, O Serpent teria também ali o prêmio prometido; a preciosa e inalcançável Margot Ashton estaria finalmente em seu poder. Tão logo foi uma hora decente, Héléne Sorel enviou um mensageiro ao alojamento do Candover para saber se por acaso se inteirou de algo novo. Em menos de três quartos de hora voltou seu lacaio com a má notícia de que não tinham visto o Duque desde a tarde anterior. Embora o dia estivesse agradavelmente quente, a notícia gelou a Héléne até a medula dos ossos. Era possível que a ausência do Duque não indicasse nada importante, mas dado o desaparecimento de Maggie e do Robert Anderson devia supor o pior. Se o desconhecido O Serpent tinha seqüestrado os outros três, estaria ela também em sua lista? Por sua cabeça passou a tentação de fugir imediatamente ao campo, onde estavam suas duas filhas a salvo. Estando tão perto de sua conclusão a conspiração, O Serpent não se incomodaria em segui-la até ali. O que podia fazer ela sozinha, sem ajuda? Fechou as mãos firmemente e rejeitou essa solução. Se o pior acontecesse e ela também desaparecesse, sua mãe cuidaria de suas netas, fielmente e bem. Se havia algo que pudesse fazer, preferia fazê-lo antes que viver covardemente. Mas havia algo que pudesse fazer? Era muito pouco importante para convencer a qualquer funcionário do governo de que o perigo era iminente, inclusive embora soubesse que forma tomaria a conspiração, coisa que não sabia. Abriu as mãos e resolutamente se levantou da poltrona. Havia uma coisa que lhe podia ter ocorrido antes, e se ocuparia disso em seguida. O som da pistola liberou o Rafe de sua momentânea paralisia. A resignação que viu na cara do Anderson foi como um interruptor que lhe abriu a memória, e teve a quase segurança de que sabia quem era o jovem loiro. - Varenne, disse com voz rangente de autoridade, matar ao Anderson seria um grave engano. Recorda que me disse que jamais desperdiça nada? O dedo que estava a ponto de apertar o gatilho se deteve, mas o Conde o olhou incomodado. - Não se intrometa, Candover. A você vale a pena conservar a vida por seu possível preço, mas um espião não pertence à mesma categoria. - Se só fosse espião poderia ser certo, concordou Rafe, seu olhar fixo no Conde. Mas este


homem a que está a ponto de matar tão dispendiosamente é Lorde Robert Andreville, irmão do marquês de Wolverton, um dos homens mais ricos da Grã-Bretanha. - O que?! Varenne olhou a sua vítima . É certo isso? - Sim, respondeu Anderson. Muda algo isso? Durante um comprido e tenso momento, Varenne pesou os possíveis benefícios e os riscos. Depois desarmou a pistola e voltou a guardá -la na jaqueta. - Sim, embora se estiver mentido sempre posso eliminá-lo depois. - É a verdade, disse Rafe. Eu fui ao colégio com seu irmão mais velho. Varenne assentiu distraidamente, sua mente já posta em outros assuntos, e partiu com seus pistoleiros. Rafe sentiu uma quebra de onda de asco ao pensar em quantos outros foram assassinatos despreocupada e eficientemente. Provavelmente o tinha colocado na mesma cela com o Anderson para intimidá-lo com sua execução. Teria sido uma demonstração de poder bastante eficaz. Quando deixaram de ouvi-los passos no hall, o jovem loiro fez uma explosiva expiração e se apoiou na parede de pedra, com os olhos fechados. Ao cabo de um comprido momento, abriu-os e disse com elogiável tranquilidade: - Pensei que meus pecados me tinham alcançado desta vez. Minha dívida com você é considerável, Candover. Desde quando sabe quem sou? E quanto a isso, como me reconheceu? Não me pareço muito com meu irmão. - Não estava seguro. Foi uma hipótese apoiada em uma experiência anterior, que recordei no momento em que Varenne martelou sua pistola - Notou que lhe fraquejavam as pernas e se sentou na palha - Sua expressão me recordou a de seu irmão, Giles, quando morreu sua esposa. Embora estivesse duvidoso a respeito da sua identidade, certamente valia a pena tentá-lo. - Alegro-me de que sua mente trabalhou mais rápido que a minha - disse Anderson, ou melhor dizendo Andreville, emocionado - Nunca me ocorreu que minhas conexões fossem importantes nisto. - Eu tinha a vantagem de saber que ao Varenne interessava me reter para cobrar resgate se fracassassem seus outros planos. Também concordou em aceitar resgate por Margot. Rafe observou atentamente ao seu companheiro. Já confirmado o parentesco lhe resultou fácil ver sutis semelhanças familiares. - Conheço Giles desde Eton, continuou: ele me avantajava em um par de anos. Embora não vá a Londres com freqüência, quando vai sempre tentamos nos reunirmos alguma noite. De vez em quando fala de seu pícaro irmão mais novo Robin. - Isso serviria para animadas conversações durante o jantar, disse Andreville com ironia. - Para dizer o mínimo, sorriu Rafe. É certo que se arrumou para que o expulsassem de Eton no primeiro dia de aula? Andreville sorriu com certa tristeza. - É certo. Eu queria ir ao Winchester, mas meu pai insistiu em que devia seguir os passos dos incontáveis Andreville e ir a Eton. Esse foi um ano muito movimentado. O velho não queria se deixar derrotar por um menino de oito anos, de modo que tive que conseguir que


me expulsassem de três colégios para que me deixasse ir aonde eu queria. - E por que esse empenho em ir ao Winchester? - Um amigo ia ali e meu pai se opunha; qualquer dos dois motivos teria bastado, respondeu irônico. Em todo caso, creio que você exagerou ao supor que meu irmão estaria disposto a pagar um resgate por mim. Dado meu passado tão pouco ortodoxo, talvez fosse um alívio para ele que eu desaparecesse sem deixar rastros e não seguisse envergonhando a família. - Giles não faria nunca isso. Rafe refletiu um momento. No caso de que tivesse dificuldades para reunir o dinheiro exigido, tenho entendido que você herdou consideráveis bens de outra pessoa. - De meu tio avô, concordou Andreville. Mais ou menos em cada geração aparece uma ovelha negra na família. Tio Rawson foi a anterior a mim, assim nos dávamos às mil maravilhas. Mas se eu fosse uma variedade comum de espião não estaria em posição de pagar meu resgate; esta não é uma profissão lucrativa. - A propriedade Candover, disse Rafe encolhendo os ombros poderia ter -se dado até outras vinte ou trinta mil libras em caso de necessidade. Andreville o olhou surpreso. - Faria isso por alguém a quem mal conhece e que não lhe cai muito bem? Que seu companheiro tivesse detectado seu oculto ressentimento lhe produziu certo desconforto. - Margot não gostaria que o matassem. De todo modo teria sido ideal que tivesse ido a Eton ou Oxford; assim eu o teria conhecido e nos teríamos economizado bastante confusão. Andreville o olhou horrorizado. - Ir a esses infernos podendo gozar das alegrias do Winchester e Cambridge? Rafe se pôs a rir. - Supondo que trabalha para Lorde Strathmore. Como o conheceu? - Há uma vaga conexão familiar entre os Andreville e os Fairchild. Sempre nos demos bem com o Lucien, mas como estávamos em colégios distintos, víamo-nos de vez em quando. Também ouvi falar dos famosos Anjos Caídos, é obvio. Na realidade, uma vez me encontrei com Lorde Michael Kenyon quando estava trabalhando na Península, embora ele não me conheceu por meu verdadeiro sobrenome. Mas isso é outra história - Levantou-se até ficar sentado - Acabava de terminar meu primeiro ano em Cambridge quando entrou em vigor a Paz do Amiens, portanto decidi tomar um ano livre e fazer o grande tour. Viajando pela França me dei conta de que voltaria a estalar a guerra, só era questão de tempo; inteirei-me de algo que pensei eu seria uma informação útil para o governo britânico e a enviei ao Lucien, porque sabia que acabava de aceitar um cargo no Whitehall. Ele veio imediatamente a Paris, contou-me que trabalhava no serviço de inteligência e me perguntou se estaria disposto a ficar no continente na qualidade de agente britânico - Encolhendo os ombros continuou: Sendo jovem e estúpido, pareceu-me que isso era toda uma aventura e aqui estou. - Porque demônios Lucien não me falou de você quando me enviou a Paris? - disse Rafe pensando em voz alta.


- Neste trabalho se converte em segunda natureza não dizer mais do que o absolutamente necessário. Lucien lhe enviou para trabalhar com Maggie; não havia nenhuma necessidade de que soubesse que eu também era um agente. Rafe esteve um momento assimilando isso. - Entretanto, Lucien não conhecia a Margot o suficiente para estar seguro de que é inglesa. - Isso se deve a que a conheceu através de mim, e eu só lhe disse que era inglesa; não havia nenhuma necessidade de que soubesse seu verdadeiro nome nem seu passado. Rafe fez um gesto de desagrado. - Não posso deixar de pensar que as coisas se teriam simplificado muitíssimo se tivesse havido menos segredos. - Neste caso isso é certo. A expressão do Andreville se escureceu. Mas em diversas ocasiões morreram homens devido a terem colegas torturados que disseram seus nomes. Rafe decidiu que era o momento de voltar ao tema que mais lhe interessava. - Você me ia falar da vida de Margot durante os anos transcorridos desde que a conheceu. - Se estiver bem seguro de que quer conhecê-la... É uma história difícil de ouvir. - Se for difícil de escutar, deve ter sido tremendamente pior para ela vivê-la, disse Rafe com expressão inexorável. Quero saber tudo. - Como quiser. Andreville se levantou agitado e foi se apoiar na parede da jane la. Creio que você sabe que Maggie, seu pai e seu criado Willis foram atacados por uma bando de exsoldados que se dirigiam a Paris. - Sim, a notícia produziu um escândalo na Inglaterra. Mas não se soube de nenhum detalhe, e a isso se deve que se acreditei que Margot tinha morrido. - Os três estavam comendo em uma estalagem rural, começou Andreville em tom monótono, quando chegaram uns seis ex-soldados; já vinham bêbados e começaram a intimidar a todos os hóspedes. O Coronel Ashton tentou tirar dali ao grup o discretamente, mas alguém reconheceu seu acento inglês, acusaram-nos de ser espiões e os soldados os atacaram. Ashton e Willis se defenderam, é obvio, mas não podiam contra tantos. Ao final, o Coronel se jogou sobre sua filha para protegê-la, com a esperança de que não a matassem. Lhe esticou a pele da cara até deixar marcados os delicados ossos. O pai do Maggie morreu deitado em cima dela, Candover, sangrado por muitas feridas de faca e balas. - Meu Deus, murmurou Rafe. Margot adorava ao seu pai; vê-lo morrer assim... Só pensar o pôs doente. Bom, Andreville o tinha prevenido. Preparando-se para o que temia vir, perguntou: - O que se passou então? - Que demônios acredita que aconteceu, Candover? - disse Andreville com uma ira mal controlada. Uma jovem atraente como Maggie, nas mãos de uma bando de ex-soldados bêbados ? Rafe também se levantou e começou a passear; não era mais capaz que Andreville de permanecer sentado diante uma atrocidade assim. Angustiado, recordou o estado quase


histérico de Margot na Agrada du Carrousel e depois. Deus santo, com razão tinha esses pesadelos com mãos que a rasgavam e caras ferozes; com razão necessitava que lhe recordassem que nem todos os homens são selvagens. - Posto que tinham uma garota formosa e uma adega cheia de vinho, continuou Andreville sem olhá-lo, não sentiam nenhuma pressa em continuar seu caminho, de modo que se instalaram ali a desfrutar. Durante todo o dia seguinte e na metade do outro, seguiram embebedando-se e violando-a cada vez que a um deles lhe dava vontade. Deu a casualidade que eu passasse por ali, disfarçado de capitão de granadeiros franceses. Quando me viram as pessoas do povoado, saíram e o prefeito suplicou que fizesse partir esses porcos antes que destruíssem todo o povoado. Eu ia continuar meu caminho, já que ia sozinho e nem sequer era um verdadeiro oficial. Mas quando o prefeito me disse que tinham uma garota inglesa... apoiou a palma da mão direita na parede. Tinha que tentar. Bom, entrei na estalagem, elogiei os soldados por seu patriotismo e engenho ao apanhar os espiões, repreendi-os por seu excesso de zelo e os animei a continuar a caminho de Paris porque o Imperador os necessitava. Rafe imaginou essa magra e elegante figura arengando a uma bando de bêbados armados e compreendeu por que Margot se apaixonou por ele. Lorde Robert teria sido pouco mais que um menino nesse tempo. - Como conseguiu liberar Margot e que não a levassem com eles? - Pura força de personalidade, respondeu Andreville em tom ainda mais seco. Garanti que eu levaria a garota a Paris para interrogá-la. Seu cavalo e a bagagem estavam no estábulo, assim eu a ajudei a montar e partimos a toda pressa. Não levou muito tempo para perceber que tipo de garota tinha resgatado. Estava meio morta pelo que lhe tinham feito, tinha o vestido esmigalhado e coberto pelo sangue de seu pai. Qualquer outra mulher teria estado louca ou inconsciente. Mas Maggie... - lhe relaxou um pouco a cara. Quando detive os cavalos a um quilômetro mais ou menos do povoado, para me apresentar e lhe dizer q ue estava a salvo, apontou-me com uma pistola; tinha-a escondida no alforje. Jamais esquecerei essa imagem: tremiam-lhe as mãos, tinha a cara tão machucada que nem sua mãe a teria reconhecido, e havia passado por uma experiência tão horrorosa que não a desejaria nem a Napoleão. Mas estava inteira. Depois de um comprido silencio, acrescentou em voz baixa: É a pessoa mais forte que já conheci em minha vida. Rafe percebeu que se estava passeando por seu extremo da cela com os punhos apertados, os olhos abertos sem ver. Jamais em sua vida havia sentido um desejo mais intenso de estar sozinho, para assimilar o horror do que lhe tinha ocorrido a Margot. Ver assassinarem ao seu pai diante dela; ter sua iniciação sexual como vítima de uma bando de brutos... Como tinha conservado sua prudência? E não só tinha sobrevivido, mas também além de tudo se converteu em uma mulher extraordinária. Pasmava -o pensar na força e resistência necessárias para isso. Além de seu sofrimento impotente por ela havia o entristecedor conhecimento de sua culpa. Se ele não a tivesse ferido de modo tão horrível, ela não teria estado na França. Com razão o tinha acusado de ser o responsável pela morte de seu pai. Era certo e não existia na


terra de Deus nenhuma maneira de emendar a catástrofe que tinha provocado indiretamente. A furiosa energia que o agitava por dentro era insuportável. Rafe, a quinta essência do homem civilizado, abrasado pela necessidade de fazer algo fisicamente violento, preferivelmente matar com suas mãos os agressores da Margot. - Se lhe servir de consolo, disse Andreville interpretando corretamente sua expressão, é muito provável que a maioria dos homens que formaram a Grand Afirmei desse tempo já morreram. Só cabe esperar que cada um deles tenha morrido de forma lenta e dolorosa. - Só cabe esperar, repetiu Rafe com voz rouca. Imaginou a um desses homens anônimos esfolado vivo a açoites pelos partidários espanhóis; a outro morto de gangrena depois de dez dias com uma bala no ventre e a um terceiro congelando-se lentamente nos estepes da Rússia. As visões não lhe serviram de muito. Obrigou-se a relaxar-se, músculo por músculo. Se não o fizesse, enlouqueceria. Andreville tinha voltado para seu rincão e estava recostado na palha. Rafe viu marcadas em sua cara as emoções sentidas durante seu relato e olheiras escuras sob seus olhos azuis. Posto que ele também amava a Margot, devia ser uma tortura para ele falar disso. Quando já tinha recuperado um pouco seu frágil domínio, disse: - Supondo que as coisas melhorariam depois disso. - Sim, embora eu me encontrei em uma espécie de dilema. Não podia deixar abandonada a Maggie no meio da França, mas estava comprometido em um trabalho muito importante. Quando o expliquei, ela me disse que não tinha nenhum motivo para voltar para a Inglaterra e me perguntou se podia levá-la comigo. E isso foi o que fiz. Aluguei um apartamento em Paris. Aproveitando que nos parecemos na cor, dissemos que ela era minha irmã viúva. Converteu-se em Marguerite para o resto do mundo e na Maggie para mim, porque já não queria ser Margot Ashton. Esquecendo a lesão do braço, tentou fazer um gesto com a mão esquerda e lhe contraiu de dor o rosto. Antes que chegássemos a Paris pedi que se casasse comigo, para que tivesse o amparo de meu sobrenome; assim também, se me ocorresse algo ela teria uma herança considerável. Rafe tragou saliva. - Ou seja, na realidade são marido e mulher, disse com voz apagada. - Não, não aceitou, alegando que não devíamos nos casar devido simplesmente a más circunstâncias. Em troca, ofereceu-se a ser minha amante se eu quisesse. Ou seja, que assim foi como começou. - Assombra-me que pudesse suportar que um homem a tocasse. - Também me surpreendeu, mas me disse que queria ter lembranças mais felizes para substituir as más, explicou Andreville. Eu tinha minhas dúvidas sobre o acerto, resíduos de uma boa criação, seguro, mas aceitei. Só tinha vinte anos e na realidade não desejava me casar, mas só um idiota caipira rejeitaria essa oferta de uma mulher como ela. Embora Andreville subtraísse importância ao fato por ele, Rafe imaginou o carinho e a paciência infinitos que deve ter necessitado para ajudar a Margot a superar essa espantosa experiência e converter-se na mulher apaixonada que era. Sentiu uma profunda gratidão porque ela tinha encontrado um homem assim para ajudá-la. Com igual intensidade lhe doeu


o fato de não ter sido ele esse homem; quando mais o necessitava ele não tinha estado com ela. Sentiu a necessidade de agradecer ao Andreville o que tinha feito. - Ela teve sorte de te ter, lhe disse. - Nós dois tivemos sorte ao nos termos mutuamente. Voltou para cima a palma da mão boa. Após trabalhamos juntos. Eu viajava pela Europa conforme era necessário; às vezes estava ausente durante meses. Viajei com exércitos, cruzado o Canal com contrabandistas, enfim, fiz muitas outras coisas desagradáveis e cabeças-de-vento que parecem fabulosas aventuras quando a gente é jovem e estúpido. Sorriu irônico. Quando era menino me rebelava contra a formal respeitabilidade inglesa, mas tenho que dizer que a partir dos trinta anos essa rebeldia perdeu sua atração. Em todo caso, minha casa era sempre o lugar onde estava Maggie. Normalmente era Paris; ela levava uma vida sossegada, não como agora que faz o papel de Condessa e freqüenta a boa sociedade. Criou sua própria rede de informantes e resultou ter um espetacular talento para reunir informações. O resto, creio que já sabe. Rafe exalou um suspiro. - E pensar que eu decidi que você tinha que ser o espião infiltrado na delegação. Andreville arqueou as sobrancelhas. - Sim? Rafe lhe contou sobre os vigilantes que tinha colocado e como descobriu suas visitas noturnas a Margot e seus encontros com o Roussaye e Lemercier. Também lhe explicou as conclusões a que tinha chegado pela quantidade de dinheiro que recebia Maggie dele por seu trabalho de espionagem. - Embora suas conclusões fossem equivocadas, acho que tem talento para este trabalho, comentou Andreville. Na realidade teria sido melhor que tivesse me conhecido do começo, mas como lhe disse, ser furtivo se converte em hábito. Já sabe por que me comunicava com o Roussaye. Quanto ao Lemercier, queria descobrir o que fazia, porque tinha a segurança de que estava comprometido na conspiração. - E o dinheiro? Isso era a prova mais sólida em seu contrário. - Maggie não sabia quanto pagava Whitehall pela informação, de modo que aceitava o que eu lhe dava sem fazer perguntas. Nunca lhe disse que a maior parte do dinheiro era meu, porque teria se colocado toda suscetível e teria exigido independência se tivesse sabido que eu mantinha a casa, embora fosse também meu lar. Além disso, como não queria casar-se comigo, meu desejo era me assegurar de que tivesse dinheiro suficiente para viver comodamente se me acabasse a sorte. - Poderia tê-la nomeado sua herdeira embora não estivessem casados. - Eu fiz isso, mas havia muitas possibilidades de que de repente eu desaparecesse sem que ninguém soubesse o como nem o quando de minha morte. Nesse caso meus bens teriam ficado bloqueados indefinidamente, e logicamente meu testamenteiro ing lês não teria podido comunicar-se com ela enquanto seguia a guerra. Olhou ao Rafe com curiosidade. Falou a Maggie de suas suspeitas de mim? Rafe assentiu. - Como reagiu quando você quis convencê-la de que eu era um traidor? Não sabe quase


nada do meu passado e havia fortes provas circunstanciais contra mim. - Se negou terminantemente a acreditar e me expulsou de sua casa a ponta de pistola. E se pensa em me dizer que ela poderia me ensinar umas quantas lições sobre lealdade, não se incomode, já sei. Passou distraidamente a mão pelos cabelos. Obrigado por me dizer tudo isto. Precisava saber de tudo. Sentou-se na palha e voltou a tentar dominar a angústia, a dor, o sentimento de culpa e a raiva que ameaçavam afogá-lo. Ao entender a solidez do laço que unia Margot com o Andreville compreendia também que nunca tinha tido a possibilidade de conquistá -la. Surpreendia-o e o humilhava, recordar com que arrogância tinha imaginado que seria capaz de seduzi-la e dobrá-la a sua vontade. O único motivo que a tinha impulsionado a aferrar-se a ele naquela noite era a necessidade de apagar as horrorosas lembranças reavivadas pela multidão enlouquecida da Agrada du Carrousel. Pensando bem, esse apaixonado abraço dentro do carro depois do distúrbio no teatro devia ter a mesma causa. Ele tinha causado estragos em sua vida; pensou que ao menos podia fazer uma coisa, insignificante, para expiar em algo sua culpa: encarregar-se de que Andreville não se inteirasse jamais da noite que ela havia passado em sua cama. Inclusive o mais tolerante dos homens não gostaria de saber que sua amante se deitou com outro e ele não queria ser causa de discórdia entre Margot e o homem de sua escolha. Já a tinha feito sofrer muito. Embora o esforço quase o matou no momento, alegrava-se profundamente de ter feito o necessário para impedir que ela ficasse grávida. Era possível que acabada a guerra, ela quisesse iniciar uma família; mas lhe teria resultado difícil explicar um bebê de cabelos negros ao Andreville. Fechou os olhos e inclinou a cabeça até apoiá-la na parede. A amarga ironia era que ao ajudar Margot a esquecer, tinha descoberto uma magia e uma lembrança que o atormentariam toda sua vida. Se alguma vez ela desejou vingar-se, tinha-o conseguido plenamente. - Se sairmos com vida desta, vai se casar com ela Lorde Robert? - perguntou cansativamente. Andreville esteve um bom momento em silêncio. - Certamente é minha intenção propor-lhe de novo, disse finalmente. Por certo, prefiro que não me chame de Lorde Robert. Esse nome pertence a outra vida, assim como a mulher a quem você chama Margot, para mim sempre será Maggie. - Como prefere que a chame? - Meus amigos me chamam de Robin. Eram amigos, então? Rafe não estava muito seguro, mas certamente entre eles havia um vínculo, composto de respeito, perigo em comum e amor pela mesma mulher. - Normalmente me chamam de Rafe. Sorriu. Meu verdadeiro nome é Rafael, mas como disse Margot quando nos conhecemos, me pôr o nome de um arcanjo foi particularmente inapropriado. Seu companheiro de cela pôs-se a rir e o silêncio que seguiu foi um silêncio agradável.


CAPÍTULO 22

- O Conde do Varenne quererá me ver, disse com segurança Oliver Northwood ao decrépito mordomo do Chanteuil. Pareceu que o criado duvidava, mas pôs-se a caminhar rengueando para o interior do castelo. Northwood o seguiu silenciosamente; não queria dar tempo ao Conde para pensar muito. Quando o mordomo entrou na biblioteca para anunciar a visita, o inglês também entrou. O Conde estava sentado diante um escritório coberto de pilhas de papéis cheios de cifras. Ao ver o Northwood, fechou os olhos. - Conhecemo-nos, monsieur? - Pois claro que sim, Conde O Serpent, respondeu Northwood ousadamente. Ou não devo lhe chamar assim diante de seus criados? Ele queria ser aceito como sócio valioso e não como o humilde par de mãos alugadas que tinha sido até esse momento. A frieza do sombrio olhar do Varenne confirmou sua identidade. Passado um momento o Conde esboçou um sorriso e despediu o mordomo. - Não tem por que preocupar-se com os criados. Todos os homens que há em minha propriedade, do cozinheiro aos soldados de meu pequeno exército, são-me leais, e todos esperam com ilusão que a França tenha melhores dias. Indicou-lhe uma cadeira. Tenha a bondade de tomar assento, monsieur. Vejo que lhe tinha subestimado. Como descobriu minha identidade? - Pelo selo de seu anel. Encontrei o escudo. Decidindo que devia pôr em vigor sua apólice de seguros, acrescentou. Por certo, deixei um relato selado com tudo o que sei a alguém que o levará às autoridades no caso de que eu desapareça. - Não havia nenhuma necessidade de tomar essas precauções, assim como muito em breve não haverá necessidade ter as coisas em segredo. Fez na Embaixada o que tínhamos acordado, imagino. - Tudo foi segundo o plano. Dentro de umas quatro horas, a metade dos diplomatas de Paris serão só uma lembrança. - Fez muito bem, mon petit anglais, muito bem. Olhou seu relógio. Lamento não ter tempo para conversar, mas este é um dia muito ocupado. Meus soldados devem estar preparados para o que for que venha. Estou considerando os assuntos aos que tenho que atender depois da explosão... mil coisas. Guardou o relógio. Veio por seu prêmio?


- Em parte por isso e em parte para me assegurar de que não me esqueça quando subir ao poder. Northwood relaxou. Embora ao entrar tinha visto um brilho de ameaça nos olhos de Varenne, esse amável aristocrata estava resultando ser muito menos ameaçador que o mascarado O Serpent. - Prometo-lhe que não será esquecido, disse o Conde com um amável sorriso. Mas como lhe disse estou muito ocupado. Talvez gostaria de passar as próximas horas divertindo-se com a Condessa Janos? Northwood se passou uma ansiosa língua pelo lábio superior. - Esperava que a tivesse aqui. Posso vê-la agora? - Se quiser. Como lhe disse, trabalhou bem e é justo que goze de uma recompensa por seu trabalho. Siga-me. Varenne o guiou pela escada até o segundo andar e logo por um poeirento corredor até uma porta com os dourados desgastados. Tirou uma chave do bolso interior de sua jaqueta e a entregou ao Northwood. - Não esqueça de fechar com chave a porta. Esta é uma moça muito preparada e não quero vê-la solta no castelo. Northwood agarrou a chave com dedos ávidos. Tinha esperado muito tempo para isso. - Terei-a muito ocupada para que cause problemas. - Desfrute-a, mas não lhe faça muito dano, monsieur Northwood. Eu também quero prová-la quando não estiver tão ocupado. Northwood assentiu, pôs a chave na fechadura e a fez girar. Foi desesperador ter que esperar duas horas para que a anciã madame Daudet despertasse, mas sua criada se negou rotundamente a incomodar a sua senhora. Héléne ardia de impaciência. Além de encontrar o livro que continha o escudo com a serpente de três cabeças da família d'Aguste, não tinha feito outra coisa senão angustiar-se. Era uma lástima não lhe ter perguntado antes por esse escudo, mas naquele momento só tinha sido uma possibilidade entre muitas. Por fim chegou o momento e entrou madame Daudet no salão a saudar sua visitante. A anciã era pouco mais que um conjunto de encaixes negros sobre delicados ossos, mas em sua cara ainda se via energia e o espectro de sua perdida beleza. - O que posso fazer hoje por você, filha? Veio também sua bonita amiga loira? - Não, madame - respondeu Héléne. Vim porque estou preocupada com ela. A Condessa Janos e outros amigos desapareceram, e a única pista que tenho é que poderia estar comprometido alguém da família d'Aguste. Poderia me dizer algo sobre essa família? A anciã franziu os lábios. - Há pouco a dizer, porque a linha direta se extinguiu. Nos cinqüenta últimos anos, mais ou menos, não houve nenhum nobre d'Aguste. A decepção do Héléne foi tão amarga que chegou a sentir seu sabor. - O que se passou há cinqüenta anos? - perguntou, tentando se agarrar a algo. - Vejamos... - murmurou madame Daudet, fazendo retroceder sua mente todos esses


anos. A última dos d'Aguste foi uma filha única chamada Pauline. Casou-se com o Conde de Varenne, e morreu o sobrenome d'Aguste. Pauline foi a mãe do atual Conde. Era uma garota estranha; há sangue debilitado nos d'Aguste. - Varenne! - exclamou Héléne. Depois de agradecer a madame Daudet, saiu correndo do apartamento e desceu à rua. Ainda não sabia o que ia fazer, mas pelo menos sabia quem era O Serpent. Michel Roussaye olhou preocupado as notas que tinha feito depois de visitar vários clubes e cafés onde se reuniam os oficiais bonapartistas a beber, jogar e recordar a gloriosa época do império. As reações ao ouvir o nome do capitão Henri Lemercier tinham sido caras inexpressivas, expressões de desgosto ou, de vez em q uando, um olhar duro seguido por uma lacônica negação de conhecê-lo. A falta de informação não era surpreendente, posto que nesse tempo era judicioso ser discreto, mas ele tinha percebido outra coisa muito inquietante. Em todos os cafés, tinha ouvido fragmentos de rumores de que ia haver uma mudança. Várias vezes ouviu sussurros a respeito do Serpent, um homem que conduziria uma vez mais a França à glória que se merecia. Inclusive dois ou três homens que recordavam o apelido que lhe davam no exército lhe perguntaram indiretamente se ele ia ser o próximo líder. Ele tinha se apressado a negar veementemente toda vinculação com esse papel, mas as insinuações o preocupavam. A maioria dos oficiais eram como ele, estavam cansados e desejavam dar uma oportunidade à paz, mas ainda ficavam uns quantos fanáticos para quem a verdadeira felicidade estava nos dias das grandes vitórias; esses homens se negavam a ver que preço tinha pago o País por uma passageira degustação de glória. Ainda mais alarmante era a notícia que recebeu seu criado quando foi entregar uma mensagem ao Duque do Candover: que o Duque tinha saído na tarde anterior e não tinha retornado. Roussaye soltou uma maldição entre dentes. Primeiro Robert Anderson, logo a Condessa Janos e agora Candover; a crise devia estar perto. Impaciente, ficou de pé e decidiu ir ao Silve, outro popular café bonapartista. Era cada vez mais urgente descobrir quem era o empregador do Henri Lemercier. Maggie estava sentada em uma puída poltrona de orelhas tentando ler uma horripilante novela francesa, enquanto Rex dormia junto aos seus pés; estava deitado de costas, meio dobrado, como uma vírgula, com as enormes patas peludas no ar; olhou-o sorrindo afetuosamente. Se não estivesse roncando teria duvidado de que estivesse vivo. Que lástima que ela não pudesse relaxar assim. Nas vinte e quatro horas passadas tinha feito todos os planos possíveis, e nesses momentos não tinha nada que fazer fora de esperar. Suspirando deixou na mesa a novela e se agachou a arranhar o pescoço ao Rex. O gato era um entretenimento muito melhor que o livro, porque parecia ao criado que se encarregou de lhe levar as coisas que tinha pedido pensava que às mulheres gostam de ler as tolices mais horrorosas. Além de ter personagens muito absurdos para serem acreditáveis, a novela tinha um argumento de espionagem que era uma pura idiotice. O autor não tinha idéia do pouco atraente que era o trabalho de espião.


Nesse momento lhe teria encantado entregar-se ao trabalho de espionagem mais aborrecido do mundo. Estar seqüestrada podia parecer emocionante em um livro, mas na vida real era uma combinação de terror e tédio. Depois de fazer os escassos preparativos que lhe permitia sua situação, não ficava fazer outra coisa que esperar. Ouviu um chiado na fechadura. Posto que já lhe tinham servido o almoço, o visitante devia ser ou Varenne ou, pior ainda, o sócio ao quem tinha sido prometida. Endireitou -se e secou as palmas molhadas na saia, enquanto Rex se escondia debaixo da cama. Quando viu entrar Oliver Northwood quase se sentiu aliviada. Era homem áspero, grosseiro, agressor de sua esposa e traidor a seu País, mas ao menos era uma magnitude conhecida, que não tinha nem a inteligência nem a perversidade calculada do Varenne; contra ele teria uma possibilidade. Enquanto ele fechava com chave a porta, obrigou-se a esquecer o horror da violação; a esquecer a janela aberta que prometia pôr fim ao terror e a dor; a esquecer tudo o que não fosse o papel que tinha decidido representar. Se não o representasse bem, seus pesadelos se converteriam em uma brutal realidade. Northwood se voltou a olhá-la, com a cara larga e fofa, saboreando o triunfo sem nenhuma dissimulação. Suporia que estava assustada, ou talvez isso era o que desejava, e lhe jogaria em cima imediatamente se ela se encolhesse de medo ou lhe suplicasse. Em todo caso, era bastante possível que se o tratasse com simpatia, como se estivessem em uma reunião social, ele agisse do mesmo modo. Levantou-se e lhe dirigiu seu mais encantador sorriso. - Senhor Northwood, que prazer lhe ver! Desejava que fosse você, mas o Conde não me quis dizer isso que homem mais travesso. Indicou-lhe a cadeira estofada em brocado que tinha colocado junto à mesa. Sente-se. Gostaria de um pouco de vinho? Desconcertado, Northwood se sentou. Com o aprumo de uma anfitriã em seu salão, Maggie serve uma parte da jarra de vinho de seu almoço em seu copo e o passou. - Tome. Lamento que só seja um vinho ordinário, mas não tenho nada melhor para lhe oferecer. Ele agarrou o copo com expressão perplexa. - Alegra-se de verdade? - É obvio! Sempre me agradou, sabe? - Pois, tinha um modo condenadamente estranho de demonstrá-lo, Margot Ashton, disse ele em tom beligerante. Sempre me tratou como um lixo. Ela se sentou na cadeira situada frente a ele, arrumando as dobras de musselina verde de modo que deixava ao descoberto um indício de seus tornozelos. Essa manhã tinha dedicado considerável tempo em seu penteado, deixando-os cabelos soltos em um estilo pensado para a penteadeira, e também a lhe fazer certas modificações no decote. A julgar pela expressão do Northwood, sua aparência estava tendo o efeito desejado. - Ah, murmurou com um delicado suspiro, sempre pensei que o entenderia. Somos espíritos afins, sabe? Sempre o pressenti. Visivelmente agradado por suas maneiras coquetes, ele se reclinou no respaldo de sua


cadeira. Mas não ia se deixar aplacar com tanta facilidade. - Se somos espíritos tão afins, porque demônios era sempre tão desdenhosa comigo, tanto quando fez sua apresentação em sociedade como nestas últimas semanas? Ao Candover nunca tratou assim. - Claro que não. Acrescentou um tom de exasperação na voz para continuar: Esse homem é terrivelmente ciumento e seria um risco paquerar com qualquer outro estando ele presente. Mas você é muito mais preparado que ele. Disse-me que me parecia com uma garota que conheceu em outro tempo, mas não me reconheceu, e isso quando estivemos comprometidos! O simplório acredita que sou uma Condessa húngara. - Ah, bom - disse Northwood tragando um terço do vinho, claro que sou pr eparado, embora me guardo de que saibam os da Embaixada. Todos se acreditam superiores - Ficou meditabundo um momento - Então porque Candover recebe o tratamento real e eu não? - Porque ele é rico, é obvio - respondeu ela abrindo bem os olhos com aspecto de candura. Não acreditará que as mulheres vão perder o tempo nele por outro motivo, não é? - Não diga tolices, disse ele com rancor. O bode sempre teve a todas as mulheres que quis, incluindo minha esposa. - Bom, é que sempre foi muito, muito rico, não? - demarcou ela como querendo-o fazer entrar em razão - Ah, não é mal parecido, mas é uma lata, dentro e fora da cama. Sorriu maliciosa, enquanto em silêncio pedia perdão pela enorme mentira que ia dizer: De verdade, Oliver, importa-se que lhe tateei? Sempre penso assim em ti, se Candover tivesse que depender de seus atributos físicos para ter uma amante, nenhuma mulher voltaria para uma segunda sessão. Isso era o que Northwood desejava ouvir. Inclinou-se para ela com avidez. - Que virilidade tem então? - perguntou. - Bom, em realidade uma dama não deve falar dessas coisas. Digamos somente que onde se esperaria encontrar mais, teria que conformar-se com o menos. Emitiu um sorriso e se balançou um pouco na cadeira, insinuando acessibilidade com sua postura. Além disso, é um fenômeno de trinta segundos, sem absolutamente nada de imaginação. Vamos, nem sequer sabe... Enumerou umas quantas variações exóticas sobre o tema, e teve a satisfação de ver que ao Northwood quase lhe saíam os olhos das órbitas em fascinada lascívia. Inclinou a cabeça e adotou uma expressão pensativa: - Apesar de que perdi todo esse fabuloso dinheiro a verdade é que me senti bastante aliviada por não me casar com ele. Além de ser chato e horrivelmente ciumento, é espantosamente afetado. Mas em meus dezoito anos me sentia tão orgulhosa por ter conquistado o herdeiro de um ducado que não me importava como era. - Tem que me agradecer que haja rompido o compromisso. Maggie sentiu um calafrio na nuca, mas as arrumou para ronronar: - Como foi isso? - Foi fácil. Tem razão, Candover não é muito preparado. Qualquer um percebia que estava loucamente perdido por você, inclusive sem proclamas.


- Sim, seguia-me por toda parte como um cervo em zelo. Northwood bebeu mais vinho com expressão sombria. - Sempre o desprezei. Estivemos juntos no colégio, meu berço é tão bom como o dele, e condenadamente superior ao desse cigano amigo dele, mas Candover sempre parecia ter muito pedigree para relacionar-se com meninos como eu. Só porque tinha uma fortuna e era herdeiro de um grande título, atuava como se isso o fizesse superior a mim. Mas eu observo às pessoas, sabe? Sei quais são suas debilidades. - Qual era sua debilidade? - perguntou ela, interrompendo a corrente de autocongratulações e voltando-o para tema. - Vamos, sua debilidade foi você, é obvio. Ele te acreditava pura e perfeita. Decidi que descobrisse que não era. Olhou-a desafiante. Embora a ele conseguiu despistá-lo, eu sabia que parecia muito boa para ser certa. Era evidente que era uma fulana quente. Maggie teve que tragar saliva para poder lhe dizer admirada: - Que perspicaz foi, Oliver. O que fez, então? - Uma noite saímos um grupo e estivemos bebendo e conversando. Quando vi que Candover estava perto para me ouvir, expliquei que você tinha aberto as pernas para mim no jardim de detrás, durante um desses bailes. Fingi que estava muito bêbado para me dar conta de que dizer isso era uma indiscrição, mas sabia perfeitamente o que dizia. Sorriu com absoluta perfídia. Candover reagiu como se tivesse recebido uma patada no estômago. Levantou-se e partiu, e pouco depois me inteirei de que tinha partido de Londres. Ela observou essa cara avermelhada e presunçosa, sentindo congeladas as veias. Embora sua opinião de Northwood nunca tinha sido elevada, de todo modos a horrorizou ouvi-lo gabar-se do ato cruel e malvado que teve tantas conseqüências catastróficas. Tinha um dom especial para a astúcia vil; algo dito por um bêbado é muito mais convincente que uma calúnia dita em estado sóbrio. Com razão Rafe foi vê-la naquela manhã meio louco de sofrimento e ciúme. Sua falta de confiança seguia sendo uma traição, mas muito mais compreensível. Embora se sentisse doente, não se atreveu a sucumbir ao mal-estar. Se perdesse a serenidade nesse momento, ficaria a mercê dessa besta. Fez um gesto de desaprovação com os lábios: - A verdade, Oliver, isso não foi nada amável de sua parte. Feriu-o e te asseguro que tomou muito mal, mas além de tudo me causou todo tipo de problemas. Se me desejava para ti, o único que tinha a fazer era esperar que passasse um tempo decente depois das bodas. - Te teria interessado uma aventura? - perguntou ele, cético, mas disposto a deixar-se convencer. - É obvio. Adotou uma expressão melancólica. Tendo o anel colocado no dedo, teria podido fazer tudo o que tivesse querido. Candover é muito orgulhoso para manchar seu sobrenome com um divórcio, fizesse o que fizesse sua esposa. Ah, claro que lhe teria dado um herdeiro, o justo é justo, mas depois disso... - Dirigiu-lhe um sorriso imenso. Levantou-se e lhe serviu o resto do vinho no copo, cuidando de lhe dar uma boa visão do amplo decote de seu vestido. Depois voltou a sentar-se e se cruzou de pernas, deixando à


vista uma boa parte de panturrilha. - Antes de nos entregarmos ao prazer, poderia satisfazer minha c uriosidade? Estive me perguntando o que lhes propõem Varenne e você. Northwood estirou a mão e lhe deu um forte apertão em um peito. Se demonstrasse chateação ou medo ele entraria em suspeitas, de modo que lhe ofereceu um sedutor sorriso. Bem disposto a continuar alardeando de preparado, lhe disse: - Esta tarde vamos fazer voar a Embaixada britânica. Ela abriu mais os olhos involuntariamente. - É possível isso? Imagino que para fazê-lo se necessitaria de uma enorme quantidade de pólvora. - Em realidade só vamos voar um setor, mas aí é onde estarão todos os importantes. Colocou-lhe a mão pelo decote e lhe beliscou o mamilo. Maggie necessitou de todo o autodomínio tão arduamente adquirido para não golpeá-lo. Obrigando-se a pensar em quantas vidas estavam em jogo, apertou-lhe o joelho, como se a excitasse o mal trato de um porco. - Hão-me dito que todas as reuniões importantes se celebram no dormitório do Castiereagh, disse com voz rouca. - Exatamente. Debaixo do dormitório há uma dispensa, que enchi de pólvora e vai explodir esta tarde às quatro. Ninguém a vai descobrir tampouco; tenho aqui a chave da dispensa. Jactancioso se golpeou o bolso da jaqueta. - Ah, então tem que partir logo. Fazia-me ilusão que ficasse - Como se acabasse de ocorrer-se uma ideia, perguntou: Não vais correr muito perigo ao fazer estalar a pólvora? - Aí é onde entra o engenho, alardeou ele. Deixei um pavio aceso na dispensa. Quando se consuma, chama-a vai tocar um montinho de pólvora, vai chegar às caixas e bum!, Todos os que estiverem reunidos no dormitório do Castiereagh vão voar em malditos pedaços. Maggie estremeceu e tratou de simular que o estremecimento era de entusiasmo pela idéia. - Que fantástico! Como teria gostado de participar de um ato tão importante. Ele a esquadrinhou com os olhos. - Sim? Eu te acreditava muito leal como espião britânica. - O que pôde te induzir a pensar isso? Uma garota sem fortuna como eu tem que aceitar o dinheiro de onde venha, e eu o aceitei de todo o mundo. Já sabia o plano, portanto era o momento de atuar, porque se não o fazia rápido perderia a iniciativa. Levantou-se e se estirou voluptuosamente pondo os braços sobre a cabeça. Ele seguiu com olhar ávido o suave movimento de seus peitos. - Fiz tudo o que foi necessário por dinheiro, Oliver. Emit iu um sorriso sonoro, estilo quarto, e estirou a mão para ele. Ele a agarrou e a sentou em seus joelhos, tal como ela esperava. - Mas algumas coisas as faço por mim... Com a respiração entrecortada, lhe desceu o vestido por um ombro e lhe agarrou o peito nu. Ela o olhou profundamente aos olhos e acabou a frase:


- ... e este será um absoluto prazer. Inclinou a cabeça para que ele a beijasse, murmurando: Ai, Oliver... No instante em que ele esmagava seus lábios contra os dela, agarrou a jarra de porcelana, que tinha colocado no lugar preciso, e a estrelou na cabeça com toda sua força. O golpe fez um ruído horripilante, uma mescla de polpa e porcelana se quebrando, e a água molhou aos dois. Pelos olhos do Northwood passou um brilho de incredulidade e logo caiu para um lado, arrastando com ele a cadeira e a ela. A queda a deixou sem fôlego, mas rapidamente se levantou, temendo a partes iguais têlo matado ou não tê-lo golpeado com a suficiente força. Aliviada comprovou que estava inconsciente, mas vivo. Antes tinha tirado os cordões da cortina e com eles lhe atou os pulsos e os tornozelos. Com outra parte de cordão lhe amarrou as pernas à maciça mesa. Também rasgou o tecido do forro da cortina para tirar uma tira e com ela o amordaçou. Depois lhe pinçou os bolsos. Além da chave do quarto, encontrou um chaveiro com várias chaves. Como não sabia qual seria a da dispensa da Embaixada, agarrou todas. Abriu a porta e apareceu a cabeça para olhar a ambos os lados do corredor. Não havia ninguém. Deu-lhe um rápido olhar ao gato negro, que se estava esfregando contra seus tornozelos. - Vamos, Rex, carinho. Iremos procurar ao Robin. No café Silves, Roussaye se sentou a uma mesa em que estava Raoul Fortrand, companheiro de luta durante a campanha da Itália. Tão logo pôde pôs o tema do Henri Lemercier. - O porco - Fortrand cuspiu no chão com desprezo - Sempre foi um canalha, e antes de morrer demonstrou. Com o pulso acelerado, o General se inclinou para ele. - No que estava trabalhando? E para quem? - Deus sabe, respondeu Fortrand encolhendo-se de ombros, em algo ilegal, asseguro. Soube que estava trabalhando para o Conde do Varenne. Dizem que Varenne esperava ser o primeiro-ministro depois do Talleyrand, e que ficou furioso quando o Rei escolheu ao Richelieu. Talvez Varenne queria que Lemercier assassinasse ao novo primeiro-ministro. Roussaye refletiu um momento. A propriedade do Varenne estava nos subúrbios de Paris, a escassamente uma hora, um lugar muito conveniente para conspirações e prisioneiros. Era possível que estivesse equivocado, mas seu instinto de soldado lhe exigia investigar, e fazê-lo bem acompanhado. Levantou-se e passeou o olhar pelo café; havia uns vinte homens, muitos deles ex companheiros de armas. Com voz de campo de batalha, exclamou: - Mês Amis! Fez-se silêncio na sala e todos se voltaram para ele. Subiu à cadeira para que todos pudessem vê-lo. - Meus amigos, tive a má notícia de uma conspiração contra o Duque do Wellington, soldado só inferior ao próprio Bonaparte. Dizem que o Duque de ferro vai ser assassinado e


que vão culpar aos bonapartistas. Vão perseguir aos homens como nós, que servimos fielmente a nossa nação, e é possível que levem a França ao lado de uma guerra civil. O silêncio foi absoluto. Roussaye olhou um a um os rostos conhecidos: Moreau, que perdeu um braço em Waterloo; Chabrier, um dos poucos sobreviventes da desastrosa campanha de Moscou; Chamfort, com quem tinha compartilhado alojamento no Egito. - Poderíamos encontrar as respostas, continuou com voz tranqüila e talvez resgatar a uma formosa dama, no Chanteuil, a propriedade do Conde do Varenne. Virão comigo? Os homens começaram a levantar-se e a aproximar lhe oferecendo suas armas. Elevando a voz por cima do ruído de vozes, continuou: - Todos os que tenham cavalos e armas, me sigam. Vamos fazer uma última cavalgada pela França. Héléne Sorel levava duas maçãs correndo quando o cansaço e o sentido comum fizeram que diminuísse o passo. Estava segura de que Varenne era o Serpent, e sua aparente falta de motivação tinha protegido suas atividades. Mas, santo céu, o que devia fazer ela? Estava detida em uma esquina do Faubourg St. Germain, com a angustiosa indecisão refletida na cara, quando de repente se interrompeu diante o ruído dos cascos de um cavalo que passava. Levantou a cara e viu o Karl Von Fehrenbach inclinado sobre seus arreios, olhando-a com uma expressão incerta na cara. - Madame Sorel, quanto me alegra vê-la. Estive pensando... - interrompeu-se bruscamente ao lhe ver a expressão angustiada e lhe perguntou: O que acontece? Ela sabia que o Coronel vivia perto dali e que só era uma casualidade que passasse, mas ao olhar seus ombros largos e capazes, não pôde evitar pensar que o céu o tinha enviado. O Coronel era um homem influente, e posto que sabia de seu trabalho de espionagem, talvez acreditaria em sua história. Guardou silêncio um momento para ordenar seus pensamentos, e depois lhe contou a história da conspiração: o desaparecimento dos três agentes britânicos, sua segurança de que Varenne tinha que ser o conspirador, e sua crença de que Chanteuil continha as respostas. O Coronel a escutou sem interromper, seus olhos azul claro muito atentos. Quando ela terminou de falar, ele se inclinou e lhe estendeu a mão. - Há uns barracões prussianos perto da estrada St. Cloud. Ali poderei reunir alguns homens para ir investigar a propriedade do Varenne - Ao vê-la titubear, acrescentou impaciente - Para economizar tempo deve vir comigo, para nos indicar o caminho ao Chanteuil. Se tiver razão, não há tempo a perder. Héléne lhe agarrou a mão e ele a subiu facilmente ao cavalo. Ela se acomodou de lado, diante dele. - Mas, e se estiver equivocada? - perguntou nervosa. - Se está equivocada, há compensações, disse o sério Coronel prussiano, não com um sorriso, mas sim com um brilho travesso nos olhos. Pela primeira vez desde que o conhecia, era possível acreditar que o Coronel só tinha trinta e quatro anos, a mesma idade dela. Repentinamente Héléne tomou consciência do seu corpo magro e atlético, e do calor do


braço com que ele a segurava. Por um momento desapareceu a serena e mundana viúva, e se ruborizou como uma adolescente. Então Von Fehrenbach sorriu. Depois apertou os pés nos flancos do cavalo e empreenderam a marcha.

Capítulo 23

As possibilidades eram virtualmente nulas, mas de qualquer modo Rafe e Robin decidiram tentar escapar da próxima vez que alguém entrasse na cela. Não muito depois da comida de meio-dia, ouviram chiar a chave na fechadura; imediatamente ocuparam os postos acordados anteriormente. Posto que Robin não estava em condições para lutar, recostou-se com aspecto inocente na palha enquanto Rafe se ocultava no rincão junto à porta, para atacar a quem quer que entrasse. A porta se abriu com um som especial; Rafe iniciou o salto, e teve que frear em seco ao ver que era Margot quem entrava na cela. - Robin, está aqui? Sem ver o Rafe, Margot correu para o Robin e se ajoelhou junto a ele lhe dando um forte abraço. Graças a Deus que está bem. tive tanto medo... Embora fizesse um gesto de dor quando lhe apertou o braço lesado, Robin correspondeu ao abraço. - Estou bastante bem, Maggie. E temos reforços, acrescentou olhando para seu companheiro da prisão. Maggie se voltou, seguindo seu olhar. - Rafe! Ficaram olhando fixamente durante uma eternidade que deve ter durado uns dois pulsos. Com os cabelos dourados soltos ao redor dos ombros, parecia uma valquíria. Rafe deu um passo involuntário para ela e logo se obrigou a deter-se ao ver uma fugaz expressão de alarme em seu rosto. Temeria talvez que ele fizesse algo que poderia envergonhá -la diante de Robin? Beijá-la, possivelmente, ou começar a lhe dizer o quanto a amava? - Alegra-me ver que está bem, Condessa - se apressou a dizer - Alegra-me mais ainda que a chave estivesse pendurada fora. Esse era um comentário estúpido, mas esperava que lhe transmitisse a mensagem de que não queria lhe causar nenhum problema. Ela deve ter entendido porque se serenou sua expressão. - Não sei se devo me alegrar de ver-te ou lamentar que também esteja prisioneiro, disse. Olhou ao Robin e franziu o cenho ao ver a tipóia. Não está em seu melhor aspecto, carinho. O que te passou no braço? Embora os três estivessem impacientes por escapar, passaram uns quantos minutos


ficando à corrente dos últimos incidentes. Maggie lhes contou o da pólvora e de como estava tudo preparado para que fizesse explosão essa tarde. - Maldição! - exclamou Rafe - Robin, há alguma possibilidade de que alguém detecte o aroma do pavio aceso e descubra a pólvora antes que seja muito tarde? - Virtualmente nenhuma, respondeu Robin preocupado. Essa dispensa está em um corredor que não se usa quase nunca. Até no caso de que alguém suspeitasse algo, provavelmente vão perder tempo procurando a chave, e é possível que a que tem Margot seja a única. Rafe tirou rapidamente seu relógio, olhou a hora e voltou a guardá-lo. - Temos umas duas horas para sair daqui e chegar à Embaixada. - Refletiu um instante. Tenho uma idéia geral da disposição do terreno. Algum de vós viu o castelo o suficiente para saber a melhor maneira de escapar? - Sinto, disse Robin negando com a cabeça. Trouxeram-me inconsciente e me jogaram aqui imediatamente. Minha ignorância é total. - Eu vi algumas parte do interior procurando o caminho para chegar aqui, disse Margot. Embora Varenne dissesse que Robin estava encerrado diretamente sob o quarto em que eu estava, demorei uma eternidade em encontrar esta cela; os andares inferiores do castelo são um labirinto de escadas de serviço e passagens. Por sorte há muitas poucas pessoas, não vi nem a um só criado, embora uma vez ouvisse vozes. - Supondo que o único plano possível é tentar roubar cavalos, cavalgar a todo galope e esperar que cheguemos a tempo na Embaixada, disse Robin. Se nos descobrirem, teremos que nos separar, a ver se um de nós consegue chegar sozinho. Rafe abriu a porta e sentiu uma pressão no tornozelo. Desceu a vista e viu um gato negro que se esfregava coquetemente em sua perna. - Este é Rex, Maggie se agachou a agarrá-lo e o gato se acomodou em seus braços ronronando. Fazia-me companhia, e como lhe dava comida somos amigos para toda a vida. Creio que o levarei comigo para que nos dê sorte. Olhou receosa ao Rafe, como se esperasse que ele fosse se opor. Rafe achou ridícula a idéia, é obvio, mas ao ver como ela o tinha pego pensou que talvez encontrasse alguma espécie de consolo nele. - Não sei muito bem se isto é um melodrama ou uma farsa, disse com travessa ironia. Traga-o se for preciso, mas se prepare para deixá-lo se te impedir de caminhar rápido. Ele corre muito menos perigo que nós. Sustentando a porta para que saíssem os outros dois, disse: É a hora. E se alguém conhece alguma boa oração, por favor, que a diga. Oliver Northwood recuperou a consciência e se encontrou molhado, amarrado de pés e mãos e amordaçado. A ira lhe limpou a mente. Enquanto lutava com os cordões amaldiçoava mentalmente a zorra que lhe fez isso. Deveria tê-la violado imediatamente em lugar de cair vítima de sua mentirosa língua. Notou que os cordões abrandados pela água cediam ao puxa -los. Voltou a soltar uma maldição, desta vez agradecendo que lhe tivesse voltado a sorte. Depois de dez minutos de resistência, ficou livre das ataduras.


Levantou-se e procurou as chaves nos bolsos. Tal como supunha, a chave do quarto tinha desaparecido, de modo que começou a golpear a porta e a gritar. Novamente teve sorte. Havia um criado nas cercanias e logo estava fora de sua prisão. Correu até a biblioteca do Varenne e irrompeu na sala sem golpear a porta. O Conde continuava sentado diante da sua mesa trabalhando com seus infernais planos. Varenne levantou a vista. - Escapou! - gritou Northwood . A zorra anda solta em alguma parte do castelo! O Conde observou friamente ao seu visitante, despenteado e manchado de sangue. - Permitiu que uma mulher da metade de seu tamanho lhe fizesse isso? Superestimei suas capacidades. - Não há nenhuma necessidade de me insultar, disse Northwood avermelhando de raiva. Essa zorra descarada seria capaz de enrolar a um santo. É perigosa. - Deliciosamente perigosa, murmurou Varenne, mais divertido que alarmado. Puxou um cordão para chamar um criado. Não irá longe. Além disso, que problemas poderia causar uma mulher sozinha? - Sabe o que vai ocorrer na Embaixada esta tarde, balbuciou Northwood, remexendo-se inquieto. - O que?! Imbecil, para que o disse? O Conde curvou os lábios em uma careta de desgosto. Não necessito de resposta, é evidente que quis se pavonear. Meu respeito pela senhorita Ashton cresce por horas. Nesse momento entrou um lacaio. - A mulher escapou, lhe disse Varenne. Ponha todos os criados em sua busca. Olhou com expressão irônica a cabeça ensangüentada do Northwood. Diga -lhes que levem escopetas e que vão em dois. É uma moça muito feroz. - Milorde, disse o lacaio tão logo o Conde deixou de falar, justamente vinha lhe informar que a dama liberou os dois ingleses. Andam soltos em algum lugar dos andares baixos. A serenidade do Conde se desintegrou e ficou de pé de um salto. - Jesus! Só era uma ameaça de pouca importância, mas os três juntos são perigosos. Diga aos criados que embora prefira que os capturem vivos, deverão disparar se for necessário. Terão que impedir que os ingleses saiam do Chanteuil. O lacaio assentiu e partiu. Northwood começou a ir atrás dele, mas Varenne o deteve. - Aonde vai? - Ajudar na busca. Quero ser eu quem a encontre. - Necessito-lhe em outra parte, disse o Conde, novamente com a voz controlada. A parte inferior do castelo é um labirinto de corredores, e os prisioneiros poderiam esconder-se ali indefinidamente. Isso seria uma moléstia, mas não um desastre. O verdadeiro perigo é que consigam chegar ao estábulo e roubem cavalos. Se o conseguirem, poderiam chegar a Paris a tempo para desbaratar meu plano. Portanto, você e eu vamos esperá -los no estábulo, até que seja muito tarde para deter a explosão. - Muito bem, contanto que se castigue a essa zorra embusteira, grunhiu Northwood. - Não tema. Será castigada.


Varenne abriu uma gaveta de seu escritório e tirou uma caixa de mogno em que havia duas pistolas de duelo. Carregou as duas e passou uma ao Northwood. - Supondo que sabe usar isto? O inglês o olhou carrancudo. - Não se preocupe, tenho uma pontaria excelente. Quando foram baixando à planta principal, ouviu-se um disparo de escopeta na distância, proveniente de debaixo. O Conde moveu a cabeça satisfeito. - Talvez vai ser desnecessária nossa espera no estábulo. De todo modo, não podemos nos permitir nenhum risco. Antes de sair deu a ordem de que os soldados de seu pequeno exército rodeassem o estábulo e se ocultassem. Embora os três britânicos conseguissem chegar até ali, não iriam além. Varenne tomou um atalho para o estábulo, que estava construído em pedra na ladeira mais baixa da colina. O estábulo se alargava para trás, com currais de ambos os lados de um corredor muito amplo. Todos as baias estavam ocupadas, e o ar cheirava a animais e a feno fresco. Dois cavalos relincharam em sinal de saudação, mas Varenne não lhes fez caso e entrou em um quarto comprido e estreito à direita, onde se guardavam os arreios. Northwood entrou atrás dele. - Porque vamos esperar aqui? - Porque ainda tenho a esperança de capturá-los vivos, imbecil - respondeu o Conde exasperado. Dirigiu-se à janela do outro extremo e olhou para fora. Deve ver isto. O inglês se reuniu com ele na janela, mas não viu nada. - O que quer que veja? - Isto. A suas costas Northwood ouviu o inconfundível som de uma pistola ao ser martelada. Sobressaltado se voltou e se encontrou diante o canhão da pistola do Varenne. - Deixou que ser valioso, mon petit anglais, lhe disse o Conde friamente. É você muito estúpido para conhecer seu lugar e me desgostou muitíssimo sua intenção de me coagir. Em último gesto pelos serviços emprestados, estive disposto a lhe conceder uma aventura com a Condessa, mas até isso você danificou. Não posso perder mais tempo com você. - Maldito bode francês! Desesperado, tentou tirar sua pistola mas não teve a oportunidade. Tranqüilamente Varenne apertou o gatilho. A pistola retrocedeu em sua mão e o disparo ressonou estrondosamente no espaço fechado. O impacto da bala lançou ao Northwood de costas contra a parede. Emitiu um som áspero como um fôlego, levou a mão ao peito e com uma expressão de incredulidade na cara deslizou lentamente para o chão e caiu de bruços, escancarado com a pistola debaixo dele. Varenne passou por cima de sua vítima lhe cravando as costelas com a ponta da bota. A única reação foi uma lenta expansão de sangue sob o corpo. Em geral, o Conde não intervinha diretamente nas mortes; isso era um assunto muito


asqueroso. Com uma careta de repugnância, afastou-se; os criados recuperariam a arma depois. Não fazia nenhuma graça compartilhar o quarto de arreios com um cadáver, mas matar ali ao imbecil lhe tinha evitado danificar com sangue o tapete da biblioteca, e esse tinha sido seu objetivo. Voltou a carregar sua pistola com meticuloso esmero. Uma pistola e o elemento surpresa era tudo o que necessitava para capturar aos prisioneiros fugitivos. Só tinha que ameaçar de morte à falsa Condessa e seus amantes se entregariam imediatamente. Os estúpidos. Maggie não deixava de observar ao Robin enquanto avançavam rapidamente pelos lúgubres corredores. Embora caminhasse junto a eles, seu rosto revelava a quantidade de esforço que lhe custava. Ela tinha uma enorme fé em sua formidável força de vontade, mas rogava em silêncio que lhe durassem as forças até ter escapado do Chanteuil. Preocupar-se com o estado de Robin tinha a vantagem de lhe impedir de pensar em Rafe. Sua primeira reação ao vê-lo tinha sido de uma alegria pura e sem complicações, face às perigosas circunstâncias. Mas sua fria indiferença a pôs rapidamente em seu lugar. Era evidente que ele não via a hora de terminar sua missão para não voltar a vê-la nunca mais. Mas esse não era o momento nem o lugar para pensar em seus problemas pessoais. Esmagou resolutamente sua aflição e voltou a atenção ao momento presente. Para escapar do castelo teriam que subir pelo menos dois andares, e logo encontrar a saída. Nas lajes dos corredores seus passos faziam muito pouco ruído. O castelo parecia quase deserto; subiram um lance de escada, giraram à direita e entraram em outro corredor sem ver ninguém. De repente lhes acabou a sorte. Faltava muito pouco para chegar ao final do corredor quando de uma intercessão saíram dois homens corpulentos armados, justo diante deles. - Ponham-se a correr! - gritou Rafe, lançando-se de cabeça e enterrando-se no homem que vinha na frente. Maggie se deteve, aterrorizada pela idéia de deixar atrás ao Rafe. - Vamos, Maggie! - ordenou Robin, agarrando-a pelo braço e empurrando-a para o caminho que acabavam de percorrer. Ela resistiu um instante, mas a pressão no braço não lhe deixou alternativa. Com o Rex acomodado em um ombro, correu junto ao Robin e de repente o odioso ruído de um disparo ressonou nos corredores de pedra. Dado que os quartéis prussianos estavam fora do caminho principal ao St. Cloud, os companheiros do Coronel Von Fehrenbach só se encontraram com os soldados franceses quando estavam a uns setecentos metros do Chanteuil. Os prussianos chegaram à estrada principal em ângulo reto de um caminho que tinham tomado como atalho. Os cavalos chiaram quando ambos os grupos frearam em seco para impedir o choque. Quando os prussianos se encontraram diante dos oficiais franceses armados, vibrou entre eles a desconfiança e hostilidade mútua. Uma só faísca teria acendido uma refrega em grande escala. Um francês soltou uma maldição e um jovem e nervoso prussiano começou a levantar seu mosquete. - Não! - gritou Von Fehrenbach, levantando uma imperiosa mão, antes de que se


desencadeasse a catástrofe. Héléne estava ao lado do Coronel, em um cavalo emprestado pelos soldados prussianos. Ao reconhecer o General Michel Roussaye, açulou a seu cavalo e saiu ao campo aberto, gritando: - Não disparem, somos amigos! Ver intervir a uma mulher atraente aliviou a tensão, talvez porque a falta do adequado traje de montar deixava à vista uma indecente quantidade de pernas. Von Fehrenbach trotou atrás dela, encontrando-se com o Roussaye no espaço em meio dos dois grupos. Depois de uma breve explicação sobre aonde ia cada grupo, o Coronel refletiu um momento. - Talvez deveríamos unir nossas forças, General Roussaye, sugeriu. Roussaye arqueou as sobrancelhas com expressão cética. - Franceses e prussianos cavalgando juntos? O olhar do Coronel se encontrou com a de Héléne, que estava esperando nervosa em seu vértice do triângulo. - Isso não deveria ser impossível, disse, quando os homens compartilham um mesmo objetivo. Ofereceu a mão ao General. Tentamos seguir adiante juntos? Roussaye esboçou um sorriso e estreitou a mão do prussiano. - Muito bem, Coronel. Em lugar de olhar para trás, avancemos para diante, juntos.

Capítulo 24

Embora o ataque do Rafe agarrou por surpresa aos dois homens, o mais alto levantou sua escopeta e disparou os dois canhões. Rafe conseguiu golpear a arma e desviá -la para cima, de modo que o disparo deu no teto, mas o estrondo foi ensurdecedor e uma lasca de pedra desprendida lhe fez um pequeno corte no pulso. Sem alterar-se, o homem alto levantou a escopeta sobre a cabeça para usá-la como um pau. antes de que pudesse atirar-lhe Rafe lhe deu uma feroz patada na virilha. O homem se dobrou lançando um uivo de dor. Contente ao ver que não tinha esquecido as lições aprendidas nas já remotas rixas de botequim quando era estudante, Rafe voltou a atenção ao seu outro inimigo, um indivíduo largo, meio calvo, que tentava torpemente atingi-lo com sua arma. Antes que o obtivesse, Rafe lhe deu um murro direito que teria derrubado a um boi pequeno. O homem alto se lançou contra Rafe, em uma débil tentativa de reatar a briga; Rafe se esquivou dando um passo a um lado e logo descarregou o lado da mão sobre sua nuca. O criado foi reunir se com seu companheiro no chão. Rafe agarrou rapidamente as duas armas e as bolsas com munições; sem deter-se


carregar a escopeta descarregada, pôs-se a correr pelo corredor detrás da Margot e Robin. A briga não tinha durado um minuto, de modo que os alcançou ao girar pela seguinte esquina. Rafe estava tão garbosamente bonito que Maggie se teria detido a olhá-lo se tivesse tido tempo, que não tinha. - Estou admirada, excelência - resfolegou, olhando as duas escopetas. Não sabia que no salão do Jackson aconteciam esse tipo de luta. - Não acontece, mas recebi uma educação universitária liberal - respondeu ele meio rindo. O corredor acabava em uma porta. Robin a abriu e se encontraram cara a cara com outro par de criados. Maggie, que já ia a meio caminho atravessando a porta, chocou de frente com eles. O impacto lhe cortou o fôlego, mas o efeito foi pior no Rex, que até o momento se deixou levar com surpreendente passividade. O gato saiu disparado com um horripilante chiado de ira felina, e foi cair sobre o homem que tinha se chocado com Maggie, e suas unhas e patas traseiras arranharam e rasgaram com efeito sangrento. Usando a cara do homem como um trampolim para escapar, deixou ao homem chiando e a cara banhada em sangue. Rex desapareceu no corredor, sua cauda negra arrepiada de fúria. Rafe fez retroceder ao Maggie de um puxão, e fechou a porta nos narizes dos desmoralizados buscadores. - Não vá atrás desse maldito gato! - disse-lhe enquanto corriam pelo corredor por onde tinham vindo. - Não, excelência - foi a única e sarcástica resposta que permitiu a ela sua dificultosa respiração. - Pasmoso, disse ele ao entrar em outro corredor, é a primeira resposta total que a ouço dizer, Condessa. - Saboreia-a. É primeira e a última. O breve interlúdio de humor acabou quando chegaram a uma intercessão de dois corredores. Frente a eles apareceram dois homens, atraídos pelo ruído do disparo. Maggie olhou para trás e viu que os dois atacados pelo gato se recuperaram e vinham atrás deles. - À direita! - ordenou Rafe. E isto fizeram. Passou-lhe uma das escopetas e uma bolsa com munições. Enquanto ela e Robin corriam pelo corredor da direita, Robin levantou a outra escopeta e martelou os dois canhões. depois de descarregar um canhão sobre os homens que tinha diante, voltou-se e descarregou o outro sobre os que tinha detrás. Não se incomodou em apontar, confiando em que os tiros desanimariam aos perseguidores. Depois seguiu os seus companheiros. Ao ver que Robin estava a ponto de cair, Maggie se deteve junto a uma porta no meio do corredor. Estava fechada com chave. Fazendo uma oração silenciosa, procurou a chave do dormitório no chaveiro que havia guardado depois de deixar amarrado o Northwood. Com imenso alívio, comprovou que a chave girava na fechadura. A porta se abriu a uma escada que subia. Nesse momento chegou Rafe.


- Graças a Deus que as fechaduras são antigas e toscas, disse ela - É provável que a mesma chave sirva para todas. Vamos! - Eu não posso... lhes seguir - disse Robin em um fôlego, apoiando-se na parede com o rosto lívido. Jamais conseguirão escapar se tiverem que ficar me esperando com freqüência. Eu ficarei aqui com uma escopeta carregada, talvez consiga fazer ganhar um pouco de tempo. - Não seja idiota, ladrou Rafe antes de que Maggie pudesse dizer nada. Rodeou-o com o braço livre e começaram a subir. Maggie fechou a porta com chave e os seguiu. Com sorte, os caçadores não adivinhariam que seus prisioneiros tinham saído por ali. Subiram o que ela calculou que seriam dois andares antes de chegarem a outra porta. Esta dava a um corredor mais largo e melhor mantido que as passagens de serviço de abaixo. Estavam no setor do castelo onde viviam os amos. Depois do bulício de abaixo lhes pareceu estranhamente silencioso. Rafe deixou ao Robin sentado com as costas apoiada na parede e carregou as escopetas. - Pela direção da luz, creio que o rio está à esquerda, ou seja, que temos que ir à direita para sair do castelo. - Pode continuar um momento mais? - perguntou Maggie ao Robin preocupada. Robin estava pálido e com a cara coberta de suor, mas conseguiu ficar de pé. - Agora que recuperei o fôlego, estou bem. Não se preocupe, cavalguei mais de cem quilômetros em pior estado. - Mentiroso - Meigamente lhe jogou atrás o cabelo molhado de suor que lhe caía sobre a fronte - Por sorte não temos que cavalgar cem quilômetros. Ao ver a intimidade entre seus companheiros. Rafe se sentiu como um intruso. Prometeu-se que se sobrevivessem, partiria o mais discretamente possível; eles nem sequer se dariam conta de que se foi. - É hora de continuar, disse em tom abrupto. Varenne assegurou que tinha um pequeno exército, e já devem estar todos fora entre o castelo e o estábulo. Margot, se prepare para disparar. Ela assentiu muito séria, e ele agradeceu as habilidades tão pouco femininas que lhe tinha ensinado seu pai. Também agradecia que Robin reconhecesse friamente suas limitações. Com sorte talvez poderiam conseguir sair dali com vida. Uns poucos minutos de exploração os levou a uma escada que baixava ao térreo. - Provavelmente as portas estão vigiadas, disse Rafe em voz baixa. Procuremos um quarto do lado oriental para sair por uma janela. Baixaram sigilosamente e logo encontraram um descuidado salão de festa cujas janelas só estavam mais ou menos a um metro e meio do chão. Rafe abriu uma janela e ajudou Maggie e ao Robin a baixarem e depois se reuniu com eles de um ágil salto. - Vemos se o estábulo está custodiado pelos soldados do Varenne? - Seria melhor que não estivessem - Margot voltou a empunhar a escopeta - Nos está acabando o tempo. O comentário lhes moderou o entusiasmo. Embora salvar suas vidas fosse a principal prioridade, distava muito de ser sua única preocupação.


Quando as forças combinadas de franceses e prussianos chegaram ao Chanteuil, não viram ninguém, e a porta estava fechada com chave. Héléne observou nervosa como Von Fehrenbach desmontava e começava a golpear os barrotes. Finalmente apareceu um ancião porteiro. - Abra esta porta em nome do Marechal Blücher e do Exército Aliado de Ocupação, ordenou o Coronel. Dado que o porteiro parecia estar preso no chão, Roussaye lhe gritou: - Não lhe fará nenhum dano enquanto obedecer as ordens. As palavras tranqüilizadoras do francês obtiveram o que a ordem do prussiano não, e depois de um minuto de manipulações, a porta se abriu. Os cavaleiros começaram a entrar. No momento em que entravam os prussianos, ouviu-se o ruído surdo de disparos proveniente do castelo que coroava a colina. Von Fehrenbach fez girar seu cavalo e ficou de frente a Héléne. - Espere aqui, madame Sorel, até que tenhamos dado conta de quantos canalhas tem Varenne. Ela assentiu, com as cansadas mãos agarradas às rédeas. - Tome cuidado, por favor. Ele assentiu e lhe fez uma saudação tocando-a na fronte. Depois açulou ao cavalo para os sons das balas. Observando aos homens ao galope pelo caminho de entrada, Héléne murmurou uma oração, rogando que tivessem chegado a tempo. Maggie e companhia não viram ninguém no atalho cercado por arbustos que conduzia ao estábulo. O enorme pátio do estábulo se via terrivelmente deserto, e foi um alívio chegar à porta. Rafe tirou o fecho, fez-se até lado e empurrou a porta com o pé, com a escopeta pronta se por acaso houvesse perigo dentro. Suas precauções foram desnecessárias; pelo visto, no estábulo não havia ninguém, só cavalos. Provavelmente os moços responsáveis tinham saído a participar da busca dentro do castelo. Rafe passeou o olhar pelo interior. - Robin, disse depois, você agarra os melhores ca valos. Maggie, você vá procurar os arreios. Eu montarei guarda. Os outros dois assentiram e ficaram em movimento, os três de acordo como uma boa equipe de trabalho. Quando Maggie se voltou para a direita para olhar o quarto dos arreios, pensou que era extraordinário que se dessem tão bem, sendo os três líderes por natureza, mais acostumados a dar ordens que recebê-las. Seus pensamentos foram interrompidos quando ao entrar no quarto uma tenaz de ferro a levantou do chão. Antes de que pudesse gritar um aviso aos seus companheiros, uma mão de ferro lhe tampou a boca. Debateu-se ferozmente para escapar, mas não pôde contra a força de seu atacante. Seu braço foi torcido cruelmente até obrigá-la a soltar a arma; depois lhe girou a cabeça para que o visse. Encontrou-se olhando os negros olhos do Conde do Varenne; ele a olhou com seu habitual sorriso cordial, e lhe enterrou o canhão de sua pistola na têmpora. Ficaria um


arroxeado se sobrevivesse. - Felicitações por escapar de meus homens no castelo, lhe disse, com a respiração um pouco entrecortada pelo esforço de dominá-la. Não me surpreende de todo, você e seus amantes são adversários formidáveis. Alguma vez compartilharam a cama os três? Isso explicaria a harmonia que há entre vocês. Sem incomodar-se em esperar resposta, obrigou-a a caminhar diante dele até a parte principal do estábulo. Uma vez ali, tirou-lhe a mão esquerda da boca e a rodeou fortemente com o braço, à altura do diafragma, lhe segurando os braços nos lados. Agora pode chiar tudo o que queira, Condessa. Robin se girou bruscamente ao ouvir a voz do Varenne. A furiosa maldição que soltou fez voltar-se para o Rafe, que se deteve em seco, paralisado de horror. - Estou seguro de que nenhum destes dois cavalheiros deseja que lhe ocorra nenhum mal a sua formosa e falsa Condessa, bramou Varenne. Solte a arma, Candover. Depois, levantem os dois as mãos em cima da cabeça e fiquem no centro do estábulo. Imediatamente Rafe deixou a um lado a escopeta e foi ficar junto ao Robin. Margot tinha a cara branca e havia medo em seus olhos, mas disse com voz clara: - Não permitam que lhes detenha. Só é uma pistola de duelo, não pode nos ferir os três. - Embora a Condessa demonstre uma admirável disposição para o martírio, não lhes aconselharia tentar nada, cavalheiros. Varenne começou a retroceder para a porta segurando firmemente Maggie contra seu corpo. Meus homens estão ocultos fora e não escapariam jamais. Dei-me este trabalho porque prefiro capturá -los vivos, mas lhes advirto que ao menor movimento de qualquer um dos dois, estourarei os miolos desta dama. Quando Oliver Northwood recuperou borrosamente o conhecimento, compreendeu que estava morrendo. Havia muito sangue sob seu corpo e o calafrio final lhe estava metendo nos ossos. A princípio pensou que as vozes soavam em sua cabeça, mas logo se deu conta de que as pessoas que mais odiavam no mundo estavam falando a poucos metros dele, na parte principal do estábulo. Saber que seus inimigos estavam tão perto o tirou de sua letargia. Embora o menor esforço o esgotasse, ainda restava um pouco de força e por Deus que a usaria bem. Demorou uma eternidade em ficar de joelhos e outra para ficar de pé. Alegrou-o descobrir que ainda tinha a pistola do Varenne. Armou-a, o que foi um ato muito lento porque não tinha nenhuma sensação nos dedos. A ferida do peito não lhe sangrava muito, devia estar sangrado, mas tinha muito claro o que devia fazer. Piscou para esclarecer a visão e começou a caminhar, afirmando-se com uma mão na parede para não cair. Não restava muito tempo, mas jurou que seria suficiente para matar a quem odiava mais. Para o Rafe a cena era um quadro do inferno: ele e Robin imóveis com as mãos acima, Varenne retrocedendo lentamente para a porta de trás, Margot com os cabelos esparramados sobre os ombros, seus maçãs do rosto destacadas em seu rosto rigidamente sereno. Quase consumido pela fúria, continuou absolutamente imóvel, não atrevendo-se a provocar a fúria


do Conde. De repente, pela porta do quarto dos arreios, detrás do Varenne, viu aparecer uma figura silenciosa, empapada de sangue. Com a cara desfigurada por uma horrível mescla de ódio e de raiva, Oliver Northwood levantou uma pistola igual a do Conde. O canhão oscilou fracamente em suas mãos quando tentou centrá-lo entre as omoplatas do Varenne. Por um instante Rafe ficou paralisado, sem saber se a intervenção do Northwood ia ajudar ou causar mal a Margot. Então compreendeu que o disparo lhe produziria um espasmo na mão e o Conde apertaria o gatilho de sua pistola. - Cuidado, Varenne! Northwood está atrás de você. - Acreditava-o mais inteligente, Candover - se burlou o Conde. Não conseguirá me enganar para que me volte a olhar um homem morto. Varenne não foi o suficientemente rápido para entender a importância de que tivesse renomado ao Northwood, mas o brilho que viu nos olhos de Margot lhe indicou que ela sim tinha entendido. Sem ouvir, sem pensar em outra coisa que não fosse seu objetivo, Northwood levantou a outra mão para firmar a pistola, e então, com uma horrível expressão de triunfo, apertou o gatilho. O disparo desmoronou o quadro. O impacto lançou Varenne para diante, e caiu arrastando com ele a Maggie. Alertada pela advertência do Rafe, ela já estava se debatendo frenética quando soou o disparo. Quando tentava se afastar do canhão da pistola do Varenne, esta disparou, lhe queimando a bochecha com a pólvora. Golpeou-se forte ao cair e ficou meio aturdida, cravada no chão sob o pesado corpo do Conde. Sentiu sangue morno na cara; talvez a ferida tivesse sido mortal e estava muito adormecida para sentir dor. De repente lhe tiraram de cima o corpo do Conde e Rafe a ajudou a sentar-se. - Meu Deus, Margot, como se sente? Embalando-a contra seu peito, apalpou-lhe brandamente o lado da cabeça, amaldiçoando e orando alternadamente em voz baixa. - Creio... creio que o sangue é do Varenne, conseguiu dizer ela com os lábios ressecados. Rafe a estreitou em seus braços com tanta força que ela acreditou que lhe iam romper as costelas. Estava tremendo violentamente e lhe custava respirar com a cara enterrada na áspera lã de sua jaqueta. Mas face ao desconforto de sua posição, desejou deter o mundo e ficar em seus braços para sempre a salvo e quente. A voz do Robin a voltou para a realidade: - Em qualquer momento vão entrar os homens do Varenne a investigar o disparo. Embora o Conde nos preferia vivos, é provável que seus leais servidores sejam menos generosos. Recolheu a escopeta do Rafe e a firmou no peito com o braço bom. Quantas munições temos? O abraço acabou com a mesma brutalidade com que começou. Rafe soltou Maggie com uma expressão severa, indecifrável, em seus olhos. Enquanto a ajudava a ficar de pé, respondeu: - Não muita. Margot, agarre a outra escopeta enquanto eu selo os cavalos. Se sairmos os


três juntos a todo galope, ao menos um poderia conseguir escapar. O coração martelava no seu peito enquanto selava os cavalos. Se não saíssem imediatamente e cavalgassem como uma fúria, não chegariam a tempo à Embaixada. Alegrou-lhe ver que um dos cavalos era o seu. Era um animal excepcionalmente manso e iria muito bem ao Robin. Soou um disparo fora seguido por uma saravaida de balas. Uma bala entrou pela parte superior da porta e Rafe se agachou instintivamente, soltando uma maldição em voz baixa. Varenne não mentiu ao dizer que tinha um exército fora. Foram diminuindo os ruídos de disparos, como se os combatentes se estivessem afastando do estábulo. Perplexo, Rafe conduziu dois dos cavalos até a parte dianteira do estábulo. antes que pudesse ir procurar ao terceiro, abriu-se lentamente a porta. - Rendam-se! - gritou uma voz em francês. A resistência é inútil. Margot levantou a escopeta e Rafe agarrou a outra, mas não dispararam. Quem ia entrando, movia-se com a mesma precaução com que Rafe tinha atuado antes. Era um homem alto, sua figura recortada contra a luz do pátio, a inconfundível forma de uma pistola em sua mão... Maggie foi primeira em identificar o uniforme e o cabelo loiro do Coronel Fehrenbach. Desceu a escopeta quase enjoada de alívio. - Espero que tenha vindo nos resgatar, Coronel - lhe disse com voz entrecortada , porque certamente necessitamos do senhor. Ao reconhecer sua voz, ele desceu a pistola e abriu de par em par a porta, revelando que o General Roussaye estava atrás dele. - Então chegamos a tempo, disse o prussiano com um leve sorriso. Madame Sorel estará agradada. - Chegou a tempo para nós, disse Rafe, mas se não conseguir chegar a Paris na próxima hora, os ministros estrangeiros reunidos na Embaixada britânica voarão literalmente. Enquanto os três tiravam os cavalos. Rafe lhes fez um breve resumo da situação. Seguiam ouvindo-se disparos pela direita, ao outro lado do caminho principal. - Nossos homens estão levando aos homens do Varenne para o rio, explicou Roussaye. Não durarão muito sem chefe. Alguns já se renderam. Maggie montou e observou preocupada o esforço que custou ao Robin subir à sela de seu cavalo. - Conseguirá, carinho? - O cavalo vai fazer a maior parte do trabalho, respondeu ele. Fechou os olhos um momento, sua cara pálida como um pergaminho. Voltou a abri-los e conseguiu esboçar um sorriso tranqüilizador. Talvez seja útil no outro extremo, posto que conheço a Embaixada melhor que você ou Rafe. Isso era inegável, de modo que ela não disse nada mais. Se Robin não conseguisse fazer toda a viagem, ela e Rafe teriam que arrumar-se sozinhos. Nenhum cavalo levava sela de mulher, de modo que Maggie ia escarranchada com suas longas pernas visíveis. O animal se agitou nervoso quando chegou pelo ar o aroma de fumaça


de pólvora. - Envio uma escolta para que os acompanhe? Rafe negou com a cabeça. - Os cavalos estão descansados, e em três podemos ir mais rápido que um grupo grande. Nos deseje sorte. Enviarei-lhes recado se tivermos êxito. Os três britânicos esporearam seus cavalos e saíram ao galope do pátio do estábulo.

CAPÍTULO 25

Uma vez passado todo, Maggie nunca teria muito claros os detalhes do trajeto. Fez uma saudação tranquilizadora a Héléne na porta quando saíram da propriedade, mas não se deteve para lhe explicar nada. Cavalgar rapidamente junto aos dois homens que mais amava no mundo lhe produzia uma tremenda euforia. Tinham sobrevivido a uma série de horrores e no momento se sentia invencível, como se nenhuma quantidade de pólvora pudesse lhes fazer mal. Durante o trajeto pela zona rural não encontraram nenhum obstáculo à velocidade, mas quando chegaram à cidade, o denso tráfico os obrigou a diminuir o passo. Rafe ia à cabeça, estabelecendo a maior velocidade possível. Maggie não deixava de vigiar ao Robin, que cavalgava com implacável resolução, sem atrasar em nenhum momento o grupo. Nas proximidades da Embaixada, lhe evaporou a euforia e só sentiu o esgotamento, e seus nervos tensos pelo medo semelhavam arames de aço. Quando por fim reduziram a marcha ao meio galope na Rué du Faubourg St. Honoré, com os cavalos suados e estremecidos de fadiga, ouviu soar quatro badaladas na torre de uma igreja, anunciando que a hora fatal tinha chegado. Detiveram-se e apearam diante da Embaixada, deixando as rédeas aos meninos guias de ruas que estavam mais perto para as agarrar. Rafe agarrou o braço bom do Robin para ajudálo e subiram correndo os degraus. - Margot, quando entrarmos, suba diretamente ao quarto do Castiereagh e lhes diga que devem evacuar o edifício. Dê-me as chaves do Northwood para ir com o Robin à dispensa onde está a pólvora. Ela assentiu e lhe passou as chaves. Os instintos cavalheirescos do Rafe seguiam funcionando, pensou com ironia; acima ela teria mais possibilidades de sobreviver que eles. Se morressem, não sabia se desejaria continuar vivendo, mas esse não era o momento para discutir. Os guardas postados na porta os reconheceram apesar do pó e da desarrumação de seus trajes e de sua aparência.


Assim que o cabo que estava ao mando do grupo os saudou. Rafe se apressou a lhe dizer: - Houve uma conspiração para fazer voar a Embaixada, e a explosão pode produzir-se a qualquer momento. Acompanhe à Condessa Janos e ajude a evacuar às pessoas da zona onde se celebra a reunião. Maggie atravessou correndo o vestíbulo, seguida corajosamente pelo confuso cabo. - À esquerda, indicou Robin. Com um esforço sobre-humano que se refletia em sua cara, Robin pôs-se a correr a uma velocidade que quase igualava a do Rafe. Passaram como um raio junto a criados que os olharam surpreendidos, sem deter-se dar explicações. Desceram por uma escada, giraram à esquerda, tomaram um corredor à direita, passaram por uma porta, logo outro corredor à esquerda... Sem a orientação do Robin, Rafe jamais teria encontrado o caminho. - Aqui, disse Robin detendo-se diante uma porta. Rafe tinha ido olhando as chaves enquanto corria, e introduziu na fechadura a que tinha mais indicações de ser a correta. Perdeu uns preciosos segundos tentando fazê -la girar, mas não era essa a chave. Provou com outra. Sentiu o aroma acre do pavio consumindo-se dentro. Quanto tempo restava? Minutos? Segundos? Maldição! Tampouco era essa a chave. Ao menos que a chama chegasse à pólvora antes que abrissem a dispensa, morreria sem saber que tinha fracassado. Eureca! A terceira chave entrou bem na fechadura. Girou-a violentamente e atirou do pomo. Ao abrir a porta, a corrente de ar que entrou moveu a chama, que desceu para a pólvora acumulada na base, a menos de um centímetro de distância. Com uma sincronização tão perfeita como se a tivessem ensaiado, Robin se lançou de cabeça dentro da dispensa no preciso instante em que Rafe abriu a porta; caiu ao chão e pôs o braço atravessado sobre o monte de pólvora. Nesse mesmo instante a chama tocou o explosivo e correu pelo pavio a uma velocidade mais rápida que a do olho para segui-la, e se esparramou em partículas ao tocar o braço do Robin. Durante um minuto os dois golpearam furiosamente as faíscas de vermelho vivo que voaram pela dispensa. O ar se impregnou de aroma de enxofre e nuvens de fumaça lhes arderam os olhos. De repente tudo acabou e se relaxou a tensão, já não havia mais fogo. Robin se desabou no chão tentando recuperar o fôlego, enquanto Rafe se apoiava desfalecido no marco da porta. Quase não podia acreditar que tivessem chegado a tempo, que estavam vivos e em um estado bastante passável. Alguns membros do pessoal da Embaixada os tinham seguido e estavam se congregando perto da porta, fazendo comentários em voz baixa, confusos. Rafe olhou a um que tinha aspecto de ter autoridade. - Pode lhe dizer aos ministros que a evacuação é desnecessária. O homem assentiu e se voltou para subir e cumprir seu encargo. Robin levantou a cabeça e olhou ao Rafe com um sorriso irônico em sua cara pálida.


- Estou preparado para uma nova profissão. Já estou muito velho para este tipo de emoções. Rafe lhe devolveu um lento sorriso. - Creio que eu nasci muito velho. Sentiu um intenso sentimento de camaradagem com esse homem que era ao mesmo tempo amigo e rival. Não, rival não, porque isso significaria que o assunto ainda não estava decidido. Robin não era seu rival, e sim o vencedor. Bom, ele tentaria estar à altura de sua famosa esportividade. Ajudou o Robin a levantar-se e o sustentou ao ver que fraquejava. Passada a crise, Robin estava meio morto. Apareceu Margot abrindo-se passo por entre os olheiros. Rafe viu que sua cabeleira cor trigo dourado parecia um desastre, o vestido verde tão enrugado e esmagado que mal era decente, e em sua cara viu o mesmo esgotamento que estavam experimentando ele e Robin, mas nunca a tinha visto mais formosa. Sem dizer uma palavra, ela os rodeou com seus braços e enterrou a cara entre os dois. Rafe lhe rodeou a cintura com o braço livre, desesperado por tocá-la. Muito logo ela levantou a cabeça e se separou dele; com uma pontada de dor ele viu que seguia rodeando ao Robin com o braço. Tinha que dizer algo: - Conseguiu fazer sair às pessoas do dormitório do Castiereagh? - O que vai! - respondeu ela com uma careta. Menos mal que chegaram a tempo; ainda não tinha conseguido convencer os guardas de que me deixassem entrar, e muito menos pôr em movimento aos augustos personagens. Tomando em conta o tempo que demoram para ficar de acordo em um tratado, teriam estado até Natal debatendo se evacuariam ou não. Os observadores partiram e chegou outro homem a reunir-se com eles. O Duque do Wellington não tinha uma estatura excepcional, e seu famoso nariz aquilino era mais notório que formoso, mas até o mais tolo dos mortais teria percebido em seguida de que esse era um homem digno de respeito. - Creio entender que descobriu a conspiração no momento crítico, Candover. - É pouquíssimo meu mérito, respondeu Rafe. Estes meus companheiros foram quem conseguiram. - Jamais teríamos chegado a tempo aqui sem o Duque do Candover, disse Robin. Rafe pensou que talvez devesse apresentar Margot e Robin ao Wellington, mas não sabia o que nome prefeririam, nem se era necessária a apresentação. Wellington solucionou o problema oferecendo a mão ao Robin. - Você deve ser Lorde Robert Andreville. Ouvi falar de você, senhor. Robin pareceu surpreso, mas não tanto como Margot, que o olhou com expressão de incredulidade. Wellington se voltou para ela. - E você deve ser a «Condessa Janos». - Chamaram-me assim, respondeu ela sorrindo. Wellington a saudou com uma inclinação.


- Lorde Strathmore tinha razão. - Em que excelência? - Disse-me que era você a espiã mais formosa da Europa, respondeu ele com um brilho travesso em seus olhos azul claro. As bochechas de Margot Ashton, impassíveis diante da morte e do desastre, tingiram-se de um favorecedora cor rosa. Wellington voltou para a seriedade. - É impossível mensurar a importância do que vocês fizeram. Além do Castiereagh, Richelieu, eu e de todos os ministros de exteriores aliados, que estão acima, desceu a voz, estão também o Rei Luis e seu irmão o Conde d'Artois. Os três afogaram uma exclamação. Se tivesse tido êxito a conspiração, e a explosão tivesse matado ao Rei, ao seu herdeiro e aos principais ministros, o caos na França teria sido horroroso. Bem poderia ter saído vencedor Varenne, em uma luta em que toda a Europa teria sido a perdedora. - Nenhum de nossos visitantes sabe nada do ocorrido, continuou Wellington, e talvez seja melhor assim. Não nos conviria que alguém se sentisse em perigo na Embaixada britânica, não é? - Quando chegamos nós dissemos a vários soldados e membros do pessoal, disse Rafe. - Eu falarei com eles pessoalmente, disse o Duque de ferro. Quando eu tiver explicado, compreenderão a importância de manter a boca bem fechada. Ao Rafe não coube a menor dúvida disso. Wellington os olhou atentamente a cada um. - Castiereagh vai querer lhes ver, mas podemos deixar para amanhã. Agora lhes aconselho a descansar, os três têm um aspecto bastante ruim. Já se girava para partir quando recordou outra coisa. - Agora devo voltar para a reunião, mas há um assunto que me interessa confirmar. O ministro do exterior temia que um de seus ajudantes, Oliver Northwood, estivesse comprometido neste assunto. É certo isso? Rafe titubeou e olhou aos seus companheiros. A cara de Robin estava inexpressiva, mas os olhos cor fumaça da Margot tentavam lhe dizer algo. Escolheu cuidadosamente as palavras: - Ao que parece Northwood suspeitou que ocorria algo ruim e foi ao Chanteuil investigar. Sua oportuna intervenção foi essencial para fazer fracassar a conspiração, e foi a sua mão a que acabou com a vida ao Conde do Varenne, o homem que dirigia a conspiração. Infelizmente, Northwood morreu das feridas infligidas pelo Conde. Os perspicazes olhos do Wellington o observaram atentamente. - É essa a história? - Sim, disse Rafe com firmeza. Wellington assentiu e partiu. - Descansar, suspirou. - Esse Robin é o melhor conselho que ouvi há tempos, disse Robin. Passar um mês ou


mais dormindo seria um bom começo. - Você, meu moço, não vais voltar para esse tétrico buraco a que chama de casa, disse Margot com energia. Vou te levar a minha casa, para te cuidar como é devido. - Submeto-me a sua vontade superior - respondeu ele, esboçando um sorriso enviesado. Com súbita e surda dor, Rafe sentiu vibrar e romper o vínculo que os unia. Novamente ele ficava de fora. Com expressão duvidosa, Margot lhe perguntou se queria ir a sua casa com eles. Ele declinou o convite alegando que devia enviar uma mensagem ao Chanteuil, escrever um relatório para o Lucien e fazer outras mil coisas. Tal como tinha se prometido, não disse nenhuma só sílaba nem fez nenhum gesto que pudesse fazer suspeitar ao Robin que tinha havido algo mais que amizade entre ele e Margot. Já lhe tinha destroçado a vida uma vez e não o voltaria a fazê-lo. Durante um momento Margot o olhou com uma emoção indefinível em sua cara. Não podia ser pena essa emoção, pensou ele. Depois, Margot rodeou com um braço ao Robin e os dois partiram. Observá-los afastar-se juntos foi o mais difícil que tinha feito em sua vida. Rafe se foi ao Hotel da Paix em um carro da Embaixada, especialmente colocado ao seu dispor. Fez o trajeto em um estranho estado de torpor, sentia o coração talhado em pedacinhos por uma faca. Entretanto, mesmo que tivesse voltado a descobrir a Margot só para perdê-la, ficava algo de imenso valor: saber a verdade sobre seu passado lhe havia devolvido sua fé no amor, e por isso ao menos, estava profundamente agradecido. Quando chegou ao hotel, passou pelo vestíbulo indiferente a tudo; só desejava chegar à intimidade de seu apartamento. Não viu o homem loiro e alto que estava falando com o zelador, e de repente se sobressaltou com uma voz conhecida: - Rafe, que demônios ocorreu? Piscou para esclarecer a visão e se encontrou diante do Lucien, poeirento pela viagem. - O que faz em Paris? - perguntou-lhe bobamente. - Preocuparam-me tanto seus informes que decidi vir em pessoa, lhe explicou seu amigo. Pedi ao Saint Aubyn que se encarregasse de meu trabalho, e aqui estou. Arqueou as sobrancelhas ao ver sua desastrosa aparência. Se for um Anjo Caído, deve te sido golpeado forte e ricocheteado várias vezes. Rafe fechou os olhos e os manteve assim um instante; alegrava-o imensamente ver seu amigo. Com um gesto o convidou a acompanhá-lo aos seus aposentos, e enquanto caminhavam lhe fez um sucinto resumo: - Conspiração fracassada, os maus estão destruídos e os virtuosos, entre eles seus agentes Maggie e Andreville, seguem vivos. Além disso... - Quando entraram em seu salão, fez uma inspiração entrecortada e continuou: Não me peça que te explique nada mais até amanhã. Gostaria de me acompanhar enquanto me embebedo muito até perder a consciência? Lucien o observou um momento com olhar perspicaz e compassivo e depois lhe deu um suave tapinha no ombro:


- Onde guarda o conhaque? Tão logo chegaram a casa, Maggie acomodou o Robin em um quarto e mandou que procurassem um médico para que lhe tratasse a mão lesada. Antes de ir-se descansar ela, foi ver Cynthia, para lhe dar a notícia da morte do Northwood. Além de lhe explicar a história oficial que tinham acordado tacitamente. Contoulhe também os fatos reais. Oliver Northwood poderia ser um herói para o resto do mundo, mas Cynthia o conhecia melhor e merecia saber a verdade. Quando Maggie terminou de falar, Cynthia desceu a cabeça e começou a retorcer o lado de seu xale com dedos nervosos. - Não queria que acabasse assim. Não queria voltar a vê-lo nunca mais, mas tampouco o queria morto. Levantou a cara para Maggie. Talvez te resulte difícil acreditar, depois da forma como me tratou. - Creio que eu entendo, respondeu Maggie docemente. Formou parte de sua vida durante muitos anos. Seguro que haverá algumas boas lembranças. Cynthia fechou os olhos um momento com o rosto congestionado pela aflição. - Há alguns, só um punhado possivelmente, mas sim, houve algumas ocasiões felizes, em que pese todas as coisas que fez, Oliver não era um homem mau, não é? Maggie pensou no ato de crueldade que Northwood cometeu com tanta frivolidade e que causou tanto sofrimento a ela e ao Rafe. Isso lhe trocou a vida para sempre, e ele o fez pelo mais mesquinho dos motivos. Era mau isso? A conseqüência desse ato do Northwood ela tinha perdido ao Rafe e ganho ao Robin, e preferia não julgar se sua vida era melh or ou pior pelo caminho que Northwood a tinha obrigado a tomar. - Sua intervenção contribuiu a um resultado afortunado. Talvez no final quis emendar o que tinha feito. - Talvez, disse Cynthia sorrindo tristemente. Foi generoso de sua parte e de seus amigos lhe dar o benefício da dúvida. Isso lhes fará mais fáceis as coisas a sua família, sobretudo ao seu pai. - Manchar sua reputação não teria feito nenhum bem, e salvá-la não faz nenhum dano. Dito isso, Maggie deu um forte abraço a Cynthia e se retirou. Uma vez só em seu quarto, deixou-se cair esgotada na cama com o vestido sujo e amassado. Pensou em Rafe e teve que fechar os olhos para conter as lágrimas. A forma como a abraçou quando pensou que a bala do Varenne a tinha ferido queria dizer que ainda a queria um pouco. Mas isso não era amor. O breve período em que se amaram estava tão morto como as flores que tinham florescido na primavera já acabada há tanto tempo. Era pura má sorte que esses sentimentos nunca tivessem morrido nela. O futuro se estendia diante ela em dolorosa solidão. Talvez devia lhe perguntar ao Robin se ele se casaria com ela; embora aos vinte anos não gostava de casar-se, talvez a idéia lhe resultaria mais atraente agora. Sabia que se o pedisse, aceitaria pelo mesmo sentido de responsabilidade que fez que lhe oferecesse matrimônio quando ela tinha dezenove anos.


Mas no mesmo instante em que lhe passou a idéia pela cabeça, compreendeu que não podia lhe pedir isso. Robin merecia uma mulher que o amasse com alma e coração. Depois de tudo o que tinha feito por ela, não devia privar o da oportunidade desse tipo de amor. Soluçando se deu a volta na cama e enterrou a cara no travesseiro. No futuro não se daria permissão para chorar pela injustiça de sua situação. Já tinha aprendido a viver sem o Rafe uma vez, e voltaria a fazê-lo. Mas nessa só hora deixaria correr as lágrimas sem contê-las. Ganhou o direito a dar-se esse gosto.

CAPÍTULO 26

Essa manhã Héléne Sorel estava sentada em seu salão bebendo uma tardia taça de café enquanto olhava sua correspondência. Com os raios do sol de princípios de outono que iluminavam a elegante sala, o drama do dia anterior já parecia um sonho febril. Roussaye e Von Fehrenbach tinham dispersado ao pequeno exército do Varenne, e só um punhado de seus homens tinham resultado feridos de pouca gravidade. Além dos guardas prussianos, não restava ninguém na propriedade que poderia ter sido o centro de um novo império. Tinha desaparecido a ameaça à paz e ela tinha feito sua contribuição. Disse-se que a sensação de desilusão que sentia não era outra coisa que essa espécie de depressão que vem ao final de uma enorme empreitada. Era hora de pensar no futuro. Dentro de algumas semanas não haveria nenhum risco em trazer para suas filhas a Paris. A idéia lhe alegrou um pouco o coração. Mas continuou contemplando o sedimento de café moído na taça, pensando por que não se sentia mais feliz. Nesse momento entrou a garçonete a lhe anunciar que madame tinha uma visita, um senhor prussiano muito alto. Depois de pensar, horrorizada, em seu penteado e em que não usava seu melhor vestido de manhã, Héléne molhou os lábios ressecados com a língua e disse à criada que fizesse passar ao seu visitante. No dia anterior o Coronel a acompanhou a casa e se despediu com uma respeitosa inclinação, mas não lhe disse nada que viria a vê-la. Sem dúvida só vinha inteirar-se por sua saúde, e lhe perguntar se essa frenética cavalgada teria tido algum mau efeito. Karl Von Fehrenbach estava muito bonito, seus cabelos loiros resplandeciam a luz da manhã. Também estava muito sério, e se inclinou sobre a mão que lhe ofereceu Héléne. À saudação seguiu um incômodo momento de silêncio. - Estive pensando no que me disse no dia que foi ver-me, disse o Coronel finalmente. - Sim? - perguntou ela com o pulso mais acelerado.


- Disse-me que alguém devia pôr fim ao ódio - continuou ele, com os olhos nublados pelo esforço de expressar suas emoções e que desejava que a olhasse sem recordar que é francesa e que eu sou prussiano. Héléne não disse nada, esperando, com sua expressão mais acolhedora e alentadora possível. Depois de outro comprido silêncio, o Coronel continuou com dificuldade: - Tentei me desconectar de todo sentimento, mas não consegui; a dor seguia ali. Mas se o coração pode sentir dor, também pode sentir emoções mais felizes, não é? - Emoções como o amor? - sugeriu Héléne com acanhamento. - Exatamente. - Olhou-a aos olhos, muito sério. Se você estiver disposta a perdoar minha frieza, talvez... talvez possamos tentar. - Isso eu gostaria sobremaneira, disse ela com um radiante sorriso. A tensão de sua cara relaxou e pareceu que o Coronel se tirava anos de cima. - Está livre neste momento para ir passear em Longchamps? Tenho o carro fora. Héléne piscou surpreendida; certamente o Coronel não perdia tempo. Mas, claro, por que perderia? Já tinham perdido bastante tempo. - Terei um enorme prazer em sair com você, disse levantando da poltrona. - Há uma coisa... com sua permissão... Aproximou-se e a atraiu para a ele, lhe dando tempo de sobra para afastar-se. Mas ela se manteve firme, quase tremendo de esperança e temor. Seus lábios eram calidamente masculinos, não os que teria esperado de um Príncipe de gelo. Com um suave suspiro, ela se acomodou contra ele, jogando a cabeça para trás para lhe fazer mais fácil saborear as profundidades de sua boca. O que começou como uma suave exploração foi aumentando a paixão a toda escala. Ela sentiu uma quebra de onda de vida que lhe fez formigar até os dedos dos pés. Abraçaram-se com mais força, desejando encher anos de vazio. Héléne se sentiu meio enjoada por seu sabor e suas carícias, por seu forte corpo apertado contra o dela, pela avidez com que a acariciava, modelando as curvas de seu corpo miúdo. Transcorrida uma eternidade que era só um começo, deu-se vagamente conta de que estava quase apoiada na parede, e que sem os fortes braços do Coronel segurando-a, derreter-se-ia e cairia ao chão a convertida em um feliz atoleiro. Ele levantou a cabeça com a respiração tão entrecortada como a dela. - Eu desejei fazer isto do momento em que a conheci - lhe disse, lhe acariciando meigamente a bochecha. Agora a levarei a passear e depois a almoçar ao melhor café de Paris, e várias vezes durante o passeio haverá mais beijos? - Sim! Transbordante de alegria, Héléne se agarrou em seu braço e saíram até seu carro. O Coronel sempre seria um homem reservado, mais sério que emotivo, mas isso estava bem. Ela tinha emotividade suficiente para os dois. Lucien resultou ser um excelente companheiro para embebedar-se. Não só não lhe fez nenhuma pergunta, mas também a hora bastante cedo o enviou a deitar-se; portanto, na manhã seguinte Rafe despertou só com uma leve dor de cabeça. Encontrou ao Lucien


dormindo placidamente em um sofá de seu salão. Enquanto tomavam o café da manhã, Rafe lhe contou detalhadamente todo o ocorrido, ou melhor dizendo, quase tudo; houve várias omissões, todas relacionadas com a Margot. Teve a impressão de que Lucien se dava conta, mas uma vez mais seu amigo soube que era melhor não perguntar. Depois do café da manhã, Lucien se foi à Embaixada e Rafe ficou terminando seu café; nesse momento chegou um mensageiro com um pequeno pacote dirigido ao Duque do Candover. Olhou-o sem nenhum entusiasmo, seguro de que sabia o que continha. E não se havia equivocado; dentro do pacote encontrou o estojo de veludo com as malfadadas esmeraldas. A breve nota dizia: «terminou a comédia. Obrigado pelo empréstimo. Sempre, Margot». Pensou se teria alguma importância que ela tivesse assinado Margot. Sem dúvida só era um reconhecimento de que ele já não a chamava Maggie. Tirou o colar de esmeraldas e deixou deslizar-se por seus dedos as frias pedras, recordando o quão formosa que estava ela com o colar. E com os brincos, o adorno perfeito para essas deliciosas orelhas... Tinha dedicado um bom tempo a escolher as pedras, e não as imaginava em nenhuma outra mulher. Impulsivamente decidiu ir a sua casa e devolver-lhe. Era possível que as aceitasse como presente de núpcias. Desejava que Margot tivesse algo dele. Também queria despedir-se de modo civilizado, porque no dia anterior tinha estado mais que um pouco louco. Mas pelo visto até essa simples ambição estava destinada ao fracasso. Quando pouco depois chegou a casa da Margot e o fizeram passar ao salão, só estava ali Lorde Robert Andreville, que o saudou com visível prazer. Banhado, barbeado e impecavelmente vestido, Robin teria parecido normal se não fora pela tipóia que lhe segurava o braço. Parecia que sua capacidade de recuperação era tão extraordinária como sua força e energia. Fazia bom par com a Margot. Rafe lhe devolveu a saudação e aceitou o convite a sentar-se. - Está Margot em casa? - perguntou. - Não, foi ao Chanteuil, disse algo sobre um gato, respondeu Robin sorrindo. - Meu Deus, vai trazer aqui a essa besta sarnenta? - sem poder resistir a sorrir também. - Sem dúvida. Os prussianos não vão desatender aos cavalos, mas ela temia que, tendo fugido todos os criados, ao gato o deixassem morrer de fome. Rafe moveu a cabeça admirado. Que típico da Margot, depois de todo o ocorrido não se esquecia do gato, que, para ser justos, não tinha nada de sarnento. Desvaneceu-lhe o bom humor e só ficou um vazio. Nem sequer teria a oportunidade de despedir-se. - Lamento não tê-la visto, disse levantando-se. Posto que amanhã volto para Londres, poderia lhe entregar isto? - passou- o estojo ao Robin. Gostaria que fossem dela, quer dizer, se você não se opuser. Robin o observou com olhar escrutinador.


- E por que ia me opor? Rafe sentiu uma quebra de onda de irritação diante essa deliberada estupidez. - Como seu futuro marido, talvez não te pareça bom que ela aceite jóias de outro homem. - Como seu futuro marido...?- Robin moveu ligeiramente o estojo em sua mão direita e depois o deixou na mesa encostada entre as janelas. O que te faz supor que nos vamos casar? - Se bem recordo, disse-me que iria pedir que se casasse contigo. Robin o olhou longamente, com a cara por uma vez séria. - Certamente que eu disse que ia pedir, não disse que me aceitaria. Francamente, duvido que me aceite. Rafe se sentiu como se o tivessem golpeado com um pau no diafragma: aturdido, confuso, e sem saber o que significava o golpe. - E por que não te vai aceitar? Foram amantes durante estes doze últimos anos, e pelo que pude ver, levam-lhes às mil maravilhas. Robin se levantou, dirigiu-se a uma janela e ficou ali olhando para fora, sumido em seus pensamentos. Tomada uma decisão, voltou-se para o Rafe e se apoiou no batente, de modo que seu rosto e corpo ficaram a contraluz. - Isso não é exatamente assim. Já não somos amantes há mais de três anos. Para ser exatos, três anos, dois meses e - pensou um momento- cinco dias. - Mas se eu te vi entrar em sua casa de noite, com meus próprios olhos. E beijá-la, recordou Rafe com dolorosa clareza. Robin se encolheu de ombros. - Profissionalmente continuamos sendo companheiros, e amigos também. - Então, por que... ? - Rafe não acabou a frase, ao dar-se conta do horrorosamente íntima que teria sido sua pergunta. - Por que já não somos amantes? - perguntou Robin imperturbável. Porque a Maggie já não parecia bom. Ao começo não quis casar-se comigo porque não estava apaixonada por mim. Com os anos trocaram muitas coisas, mas não isso. - E não te importou que ela já não...? Robin pôs o rosto inexpressivo. - Ah, claro que me importou, mas se entender um pouco de Maggie, saberá que não lhe pode exigir nada. Fora compartilhar uma cama, nossa amizade continuou igual, que era o que mais importava; embora a gente sempre possa encontrar mulheres para relações físicas, Maggie há uma só. Até o ano passado, quando ela adotou o papel de Condessa Janos, continuamos vivendo na mesma casa quando eu não estava fora arriscando o pescoço. Só quando comecei a trabalhar na delegação britânica começamos a fingir que somos simples conhecidos. Rafe sentiu a desesperada necessidade de encontrar lógica ao que estava ouvindo. - Mas acredita que há alguma possibilidade de que te aceite, se não, não estaria pensando em propor-lhe de novo. Robin titubeou um instante e logo disse com voz tranqüila:


- Houve um tempo em que me senti bastante otimista. Maggie queria voltar para a Inglaterra para levar uma vida tranqüila em algum lugar agradável, como Bath, por exemplo. Eu pensei que esperaria uns três meses, iria vê-la e voltaria a lhe fazer a proposta. Pensei que então ela teria estado disposta a me aceitar por puro aborrecimento. Desceu a vista e fez uns acertos na atadura do pulso. Poderia ter resultado muito bem. Eu sou rico, ela é formosa e somos os melhores amigos do mundo. A maioria dos matrimônios tem muito menos. Mas a situação mudou e já não creio que vá aceitar minha oferta. Era o momento para fazer a pergunta definitiva nessa extraordinária conversação. - Está apaixonado por ela? Robin ficou imóvel, sua magra silhueta escura contra a luz da janela. - Apaixonado? A verdade é que não sei o que significa isso. Talvez me falte o temperamento para sentir uma grande paixão. Certamente não estou apaixonado como Maggie definiria isso. Ficou em silêncio um instante, e logo disse, mais para si mesmo que para o Rafe: Passaria pelo fogo por ela, mas isso não é o mesmo. Sentindo-se como se o tivessem partido em dois, Rafe atravessou a distância que os separava e se colocou muito perto do Robin para lhe ver a cara. - Porque me disse tudo isto? - perguntou-lhe em voz baixa. - Porque creio que Maggie está apaixonada por você. Eu sabia que tinha amado a alguém antes que nos conhecêssemos, e vi como esteve desde que chegou a Paris. Acrescentou em tom sardônico: Embora não haja nenhuma garantia de que ela esteja disposta a esquecer o passado e casar-se contigo, pelo que vi em sua forma de atuar, supondo que ao menos você gostaria de pedir-lhe. A dolorosa confusão do Rafe começou a dissipar-se, arrastada por uma esperança quase insuportável. - Estava a ponto de partir a Inglaterra sem voltar a vê-la. - Sei, por isso falei. - É um homem generoso, disse depois de um estremecido silêncio. - Quero que Maggie seja feliz. Trocando a expressão, continuou com um indício de ferocidade na voz: Mas se te casar com ela e a fizer desgraçada, terá que responder diante mim. - Primeiro terei que responder diante mim, e te garanto que nisso serei mais duro do que seria você. Fez uma inspiração entrecortada. É horrivelmente inadequado dizê-lo, mas obrigado. Agarrou o estojo com as jóias e saiu qua se correndo. Robin afastou a cortina e observou ao Duque sair da casa, saltar a seu carro e empreender a marcha para o Chanteuil a toda velocidade. Soltou a cortina e se voltou, com os lábios apertados. Efetivamente, era um homem generoso. E também um con denado estúpido.


Capítulo 27

Embora em circunstâncias normais Maggie não teria sentido nenhum desejo de voltar para o Chanteuil, ir procurar ao Rex oferecia um bom pretexto para não estar em casa se Rafe chegasse para perguntar pela saúde dela e de Robin. O dia estava ensolarado e fazia um calor do verão, o que lhe fez muito agradável o trajeto. Ao chegar ao castelo, os guardas prussianos que custodiavam a porta lhe disseram que todos os criados do Varenne tinham fugido e que não havia ninguém na propriedade. O sargento que estava no comando a reconheceu por tê-la visto no dia anterior, pelo que se deixou convencer facilmente quando lhe explicou que tinha ido procurar um gato e talvez passear pelos jardins. Não lhe levou muito tempo conseguir o primeiro objetivo; a pessoa que disse que os gatos são muito isolados e guardam distâncias, não conhecia o Rex. Não estava a cinco minutos dentro do castelo chamando-o quando chegou correndo a saudá-la, preparado para receber comida e adoração. Ela, que não tinha um cabelo de tola, levava consigo um pouco de frango. Depois de comer, Rex se sentiu muito feliz de dormir sua sesta sobre seu ombro. O jardim estava formoso, exuberante de vegetação, e as flores resplandeciam com o colorido esplendor dos últimos dias anteriores à geada. Maggie agradeceu não notar nenhum rastro da maldade do Varenne. Quando Rex começou a lhe pesar muito, decidiu sentar-se a desfrutar do sol. Em uma pequeno canto totalmente rodeado por sebes altos, encontrou um banco de pedra sob um caramanchão coberto de flores. Deixou-se cair nele agradecendo a sombra. O lugar estava extraordinariamente tranqüilo, o silêncio interrompido só pelos cantos dos pássaros e a suave cascata de uma pequena fonte situada no centro do jardim. Rex dormia com a cabeça apoiada em sua saia e o resto do corpo escancarado no banco com uma pata no ar. O gato seria um excelente professor quando levasse uma vida normal, porque certamente tinha um extraordinário talento para relaxar. A paz do lugar lhe acalmou os nervos. Embora essas últimas semanas tivessem sido horrorosas, a experiência tinha valido a pena, porque em certo sentido ela e Rafe faziam as pazes. Além disso, tinha a inesquecível lembrança de uma noite para acariciar o resto de sua vida. Seus pensamentos foram interrompidos pelo ruído de passos sobre o cascalho. Levantou a vista e viu Rafe que se aproximava rapidamente pelo caminho. Ao vê-la se deteve e logo continuou caminhando para ela em passo mais lento, com expressão reservada. Embora trouxesse os cabelos revoltos pelo vento, estava vestido com sua habitual e maldita elegância, e estava tão bonito que de repente ela percebeu que se esquecia de respirar.


Embora esse encontro lhe custaria outra noite de lágrimas, não podia fazer menos que reagir diante sua presença. - Boa tarde, excelência - o saudou, com um sorriso cuidadosamente despreocupado. O que te trouxe para o Chanteuil? - Você. Posso me sentar? Ela assentiu e ele se sentou ao outro lado disto Rex com um ar estranho. Algum guarda que me disse que talvez estivesse no jardim, parece um lugar deserto. Ela assentiu. - Não ficou ninguém, nem um cozinheiro nenhuma faxineira. É uma sorte que tenha vindo a procurar o Rex. Talvez pudesse sobreviver com os ratos do castelo, mas se sentiria sozinho. É um bichinho sociável. Em lugar de responder. Rafe lhe olhou a cara com expressão absorta. Notou-lhe uma sutil diferencia; talvez só eram imaginações dela, mas aos seus olhos se parecia menos com um Duque e mais ao jovem por quem se apaixonou. - Um motivo para vir, disse ele antes que o silêncio se fizesse insuportável, é que desejo te pedir desculpas. Northwood foi o que assegurou que te tinha deitado com ele. Ao olhar para trás, custa-me entender como pude ser tão estúpido para lhe acreditar. Ela teria preferido falar do tempo ou dos jardins, mas talvez houvesse coisas que deviam dizer-se, já que provavelmente essa seria a última vez que se veriam. - Ontem me inteirei de que tinha sido Northwood, quando se gabou do que tinha feito. Foi muito preparado ao fingir que esta va bêbado; é mais fácil acreditar num sussurro que num grito. Rafe fez um gesto de dor. - Deus sabe como fui castigado por meu ciúme irracional. Lamento profundamente, Margot. Não confiar em ti foi o pior engano de minha vida. Ficou um momento em silêncio, como procurando as palavras apropriadas; depois continuou hesitante: Meus pais viviam como um matrimônio da moda. Depois de cumprir seu dever e me produzir a mim, dificilmente estavam sob o mesmo teto, e muito menos na mesma cama. Eu desejava outro tipo de matrimônio, quando te conheci pensei que tinha encontrado o que procurava. Mas penso que no fundo não acreditava que me fosse possível obter essa felicidade, e por isso fui tão vulnerável à calúnia do Northwood. - Não recordo te haver ouvido falar de seus pais antes, disse ela em voz baixa. - Havia muito pouco a dizer, respondeu ele com um encolhimento de ombros. Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos; sua falta mudou tão pouco minha vida que quase não notei que já não estivesse. Meu pai era fiel seguidor da máxima de Lorde Chesterfield, de que não há nada tão vulgar como a risada. Era muito cumpridor de suas responsabilidades para com seu herdeiro, como também consciencioso na atenção a seus inquilinos e em ocupar seu banco na Câmara dos Lordes. Um verdadeiro cavalheiro inglês. Desceu a cabeça e começou a acariciar a sedosa barriga do Rex. Ter como sogro ao Coronel Ashton era... uma perspectiva estimulante. Essas palavras, ditas em tom monótono, fizeram doer o coração de Maggie. Aos seus


dezoito anos jamais lhe ocorreu pensar que esse Rafe alto e seguro de si mesmo não só a desejava, mas também a necessitava. Porque lhe diria isso? Não por compaixão, seguro. Decidiu lhe fazer a pergunta que muitas vezes lhe havia passado pela cabeça, geralmente tarde em uma noite solitária. - Se eu tivesse negado a acusação do Northwood, teria me acreditado? - Creio que sim. Eu desejava, com desespero, que me fizesse tragar essas palavras. Ficou calado e depois acrescentou com pena: O fato de que não fizesse a menor tentativa de negá-lo pareceu prova de sua infidelidade. - Meu maldito, maldito temperamento, disse ela com tristeza, sentindo a dor dessa velha angústia. Senti-me tão furiosa e doída que tive que escapar antes de cair destroçada diante ti. Deveria ter ficado e brigado. - Minha falta de confiança foi mais repreensível que sua justificada fúria - disse ele, com os lábios apertados, autor recriminando-se. Se seu pai não se visse obrigado a te afastar de Londres, não teria morrido na França. Ela negou com a cabeça. - Agora me toca pedir desculpas. Face ao que disse quando tivemos aquela horrível briga, nunca te culpei que sua morte. É verdade que o motivo de sair da Inglaterra foi a ruptura do compromisso, mas ficamos mais tempo na França porque meu pai enviava informes aos quartéis do exército. Estava seguro de que a paz não duraria, de modo que aproveitava nossas viagens como cobertura para observar às tropas e os armamentos franceses. Olhou ao Rafe com expressão irônica. Como vê, descobri de modo natural meus dotes de espião. Rafe soltou um suspiro. - Obrigado por me dizer isso. Tranqüiliza-me um pouco. - A vida é uma tapeçaria de acontecimentos entrelaçados, disse ela. Se não tivéssemos vindo a França, se não tivessem matado ao meu pai, se não me tivesse colocado a trabalhar com o Robin, quem sabe o que teria ocorrido em Paris esta semana? Varenne poderia ter tido êxito e Europa estaria em caminho para a guerra novamente. Assim, talvez a morte de meu pai não foi tão sem sentido como me pareceu no momento. - Espero que tenha razão. É consolador acreditar que saiu algo bom das tragédias do passado. Tirou o estojo de veludo do bolso e o deu. Outro motivo para vir foi que quero que fique com isto. Ao reconhecer o estojo ela tentou devolver-lhe. - De maneira nenhuma posso aceitar estas esmeraldas. São muito valiosas. Ele arqueou as sobrancelhas. - Se te desse de presente flores as aceitaria. Qual é a diferença? - Umas cinco mil libras pelo menos, disse ela mordaz. Provavelmente um bom pouco mais. Ele pôs a mão sobre a dela, em cima do estojo. - O preço não tem importância. O que importa é que são de coração, não mais nem menos como seriam as flores.


O calor que passava por suas mãos unidas debilitou a resolução de Maggie. A verdade era que desejava as esmeraldas, nem tanto por sua beleza ou valor, mas porque procediam dele. - Muito bem, disse em voz baixa, se realmente quiser que fique com elas, aceito-as. - Eu gostaria de te dar muito mais. Essas palavras desencadearam nela uma quebra de onda de fúria. Por que tinha que dizer isso e danificar tudo? Levantou-se bruscamente, deixando as jóias e a um indignado Rex no banco. - Não quero que me dê nada mais, lhe ladrou. Isto já é muito. Leve estas malditas esmeraldas e as dê a uma mulher que expresse seu agradecimento da forma que deseja. Com as costas rígida, saiu ao sol e arrancou uma rosa de uma das roseiras. Enquanto lhe tirava os espinhos se disse que não ia perder sua serenidade. Essa foi outra resolução condenada ao fracasso. Rafe se aproximou por detrás e lhe apoiou as mãos nos ombros. Embora não houvesse nada abertamente sensual em seu contato, sua proximidade minou suas boas intenções com horrorosa facilidade. - «venha viver comigo e seja meu amor - citou ele com voz profunda e melosa- e os prazeres todos provaremos...» Ela se afastou bruscamente e só quando estava a uma distância prudente se voltou para ele. - Vá ao diabo. Rafe Whitbourne; já passamos por isso. Não quero ser seu amante. Ele poderia tê-la seguido e empregado todas as embriagadoras armas dos sentidos para fazê-la mudar de opinião. Mas não o fez. - Não te peço que seja meu amante. Peço-te que seja minha esposa. E Maggie que tinha acreditado que as coisas não podiam piorar mais; o quanto equivocada estava. O que lhe pedia Rafe era o mais profundo desejo de se u coração, e suas palavras lhe desencadearam uma quebra de onda de medo e dor. Mas não se atreveu a investigar as causas do medo e a tristeza. - Faz-me uma grande honra, excelência - disse com os lábios apertados, mas nós dois sabemos que os homens como você escolhem para casar-se as virgens ricas e formosas de dezoito anos. Soltou um sorriso frágil. Eu não sou nenhuma dessas coisas. As aventuras perigosas podem ser como uma droga, não permita que uns poucos dias de emoção lhe danifiquem o julgamento. Em que pese a sua terminante negativa, Rafe sentiu um comichão de esperança. Margot não havia dito que não o amava, e esse era o motivo pelo qual tinha rejeitado ao Robin, e o único motivo que importava. - E para bem ou para mau, eu não sou «homens como eu», simplesmente sou o único Rafael Whitbourne, disse ele no tom mais persuasivo. Também tenho dinheiro suficiente para duas pessoas, ou para cem inclusive, de modo que a fortuna não é um problema. Beleza? Isso está nos olhos de quem olha e a meus olhos você é a mulher mais cativante do mundo. Sempre foi e sempre o será. Quanto à idade - se aproximou e a olhou aos olhos incitando-a a lhe acreditar, a única garota de dezoito anos que não me paralisou de aborrecimento foi você,


e a mulher em que se converteu é ainda mais irresistível que quando era jovem. Ela abriu a boca para responder e lhe pôs o índice sobre os lábios. - Sendo assim, por que não quer se casar comigo? Acreditou ver um sombrio brilho de angústia em seus olhos, mas imediatamente ela mascarou sua expressão e tirou o dedo de seus lábios. - Porque me conheço muito bem, Rafe - disse com voz tranqüila. Jamais te compartilharia com outra mulher. A primeira vez que tivesse uma aventura me converteria em uma arpía furiosa e faria desgraçados aos dois. Supondo que você poderia me ocultar suas aventuras, mas jamais viverei uma mentira, por maior que seja o encanto com que se diga. - Não queria um matrimônio na moda aos vinte e um anos e tampouco o quero agora, disse ele com ênfase. Se nos casarmos, juro-te que jamais te darei motivos para duvidar de minha fidelidade. - Todo mundo comete enganos Rafe, respondeu ela sem fazer caso do juramento. Não precisa se casar comigo por ter acreditado no Northwood. Eu gosto de minha independência e não tenho nenhum desejo de renunciar a ela. - Está segura? Ninguém pensa com clareza com os punhos apertados, e isto é muito importante para decidir quando a gente está alterada. Com um som afogado, mescla de risada e pranto, ela olhou as mãos e viu que tinha os nódulos alvos. Estirou os dedos e viu que lhe tremiam. - O amor que nós tivemos quando fomos jovens foi muito real e muito especial, disse com voz entrecortada, mas não podemos voltar para ele. Aceita que se acabou, Rafe. Ele lhe agarrou a mão esquerda e lhe friccionou as marcas que se deixou na palma com as unhas. - Para que voltar atrás quando podemos avançar para frente? Agora podemos contribuir com profundidade e sabedoria ao amor, coisa que não poderíamos ter feito então. Ela mordeu o lábio e negou com a cabeça. - Não poderíamos sequer tentar? - insistiu ele. A vida não oferece muitas segundas oportunidades, Margot. Pelo amor de Deus, não desperdicemos esta! Ela deu um rápido olhar a sua cara e viu que tinham desaparecido as capas de indiferença civilizada, e estava aberta de um modo que não tinha visto nele desde a manhã quando pôs fim ao compromisso deles. Não se sentindo capaz de igualar sua coragem, afastou-se até a fonte no meio do jardim. No centro da fonte, um querubim de pedra sustentava em alto um dedinho do qual emanava água. Contemplando o querubim como se fosse a escultura mais bela do mundo, disse amargamente: - Engana-se. Rafe. Não há segundas oportunidades, nem na vida nem no amor. Ele ficou calado, e o silêncio se alargou. Ela começou a ter a esperança de que tivesse entendido e deixasse de tentar que trocasse de opinião. Mas devia ter sabido que ele não se renderia tão facilmente. - Não siga fugindo, Margot. Você mesma me disse que foi um engano ter fugido há treze anos. Não te permitirei que volte a fazê-lo. O medo soterrado cobrou muito caro. - Deixe-me em paz Rafe, lhe disse com brutalidade. Sei o que quero e nisso não entra me


casar contigo. Ele se preparou para o que viria, porque compreendeu que se não falassem de todo o horror do seu passado, ela continuaria dando razões superficiais para explicar porque não aceitaria bem o matrimônio. - Sei o que ocorreu na Gascunha, Margot. Ela o olhou horrorizada e ele acrescentou: - Sei tudo. - Disse-lhe isso Robin? - Sim, quando estávamos na masmorra. - Maldito seja! - exclamou, jogando faíscas pelos olhos. Não tinha nenhum direito de falar disso e muito menos contigo. - Eu o convenci... tinha uma imperiosa necessidade de saber. - Ou seja. que a isso se deve sua proposta, disse ela enfurecida. Ao sentimento de culpa. É muito generoso de sua parte estar disposto a aceitar uma mercadoria danificada para que seja sua Duquesa, mas não é necessário, maldito seja. Sei cuidar de mim perfeitamente, sem sua caridade. A ele lhe contraiu a cara. - É assim como se vê, uma mercadoria danificada? Ela se sentou no lado da fonte e cobriu a cara com as mãos. Até então só Robin tinha conhecido todos os detalhes dessa horrorosa história. Não podia suportar que Rafe, justamente ele, conhecesse também sua desonra. O ensolarado jardim desapareceu e as negras lembranças pareceram avassalá-la. Obrigou a sua mente a afastar-se delas, e se encontrou cara a cara com a realidade de que sua absoluta impotência tinha sido mais aniquiladora que a dor. Após aquilo, toda a sua vida tinha sido de certo modo uma tentativa para demonstrar que não era impotente. Tratou de controlar-se, desesperada para evitar a humilhação definitiva de desabar-se diante o Rafe. - Mais que danificada disse asperamente, danificada sem possibilidades de reparação. Por isso agradeci a oportunidade de ficar na França com o Robin, e por isso não podia permitir que Lorde Strathmore conhecesse meu verdadeiro nome. Margot Ashton estava morta e eu queria que continuasse assim. - Margot Ashton não morreu; converteu-se em uma mulher extraordinariamente forte, disse Rafe com imensa doçura. Já sofreu por muitas vidas, fez bem mais sequer a maioria das pessoas poderiam sonhar. Não vou negar que me sinto terrivelmente culpado do que sofreu, mas esse não é o motivo para te desejar por esposa. - Não quero ouvir mais - disse ela levantando cansativamente a cabeça, temerosa do que poderia acrescentar. Sem lhe fazer caso, ele se sentou ao seu lado no lado da fonte e continuou muito sério: - Aos vinte e um anos amava com o melhor de mim. Assusta va-me o muito que dependia de você, porque te amava mais que ao meu orgulho e honra. Cortou várias folhas de erva e as enrolou distraidamente entre o polegar e o indicador. Ao te perder só ficou o orgulho e a honra, e caí em todas suas armadilhas. Quando penso no homem em que me


converti, eu não gosto muito dele. Normalmente era educado, cortês, porque ser grosseiro teria sido me rebaixar. Se de vez em quando me mostrava arrogante se devia ao fato de que ser Duque dava forma e estrutura a uma vida essencialmente sem sentido. Voltou-se para ela e a olhou seriamente aos olhos. Você é o que dá sentido a minha vida, Margot. Paradoxalmente, ao expor tanto de si mesmo a estava fazendo mais vulnerável a ele. Maggie sentiu ainda mais medo e desviou o olhar para que ele não visse sua covardia. - Não quero ter a responsabilidade de dar sentido a sua vida. - Não tem escolha - disse ele, enrolando as folhas de erva no dedo como um anel. Será assim, quer nos casemos ou quer não voltemos a nos ver nunca mais. Com cada palavra lhe minava mais e mais as defesas. A horrorosa lembrança da Gascunha se uniu ao medo que sentiu quando lhe propôs matrimônio, formando uma corrente de pânico, e se sentiu incapaz de seguir ocultando seus sentimentos: - Não tenho a coragem de voltar a tentar, Rafe! - exclamou. A idéia de me arriscar contigo me aterroriza. Comparada com isso, a ameaça do Varenne de me voar os miolos foi um jogo de meninos. As folhas de erva enroladas em seus dedos se romperam. Rafe esteve em silêncio um comprido momento. - Minha vida foi fácil comparada com a tua - disse finalmente, mas algo conheço do medo, passei doze anos vivendo uma vida comandada por ele. Não queria me arriscar a sofrer novamente a dor que senti quando te perdi, e por isso mantive a vida a distância, não me permiti jamais ser íntimo com uma mulher a quem poderia amar. Não devia seguir escutando, pensou ela, mas era absolutamente incapaz de partir. - Então deveria entender o que sinto - respondeu, com a voz entrecortada, quase gemendo. Por favor, Rafe, renuncia à idéia. - Não, enquanto não estiver convencido de que é um caso perdido, disse ele energicamente. Mesmo reconhecendo que lhe amar me aterroriza, devo me arriscar, porque inclusive a dor é preferível ao vazio que conheci nestes doze últimos anos. Olhou-a com expressão premente: Depois do distúrbio da Agrada du Carrousel me disse que a única emoção mais forte que o medo é a paixão. Mas está equivocada - Com infinita ternura lhe jogou para trás uma mecha que lhe tinha caído na bochecha - Não é a paixão, é o amor o que é mais forte que o medo. Amo-te, e creio que você também me ama, ao menos um pouco, se não, não teria compartilhado minha cama. Existe amor... Dê-lhe a oportunidade de sanar as feridas do passado. Ela desejou o que ele lhe oferecia como uma mulher morrendo de sede deseja a água. Mas não podia aceitar. Desde a chegada dele a Paris, tinha experimentado uma emoção brutal atrás de outra e as barreiras que tinha erguido para sobreviver estavam se desmoronando. A tormenta de medo intensificou sua força até a de um furacão que ameaçava destroçar tudo sem remédio. Só confiava em uma forma de distração. Deslizou-se pelo lado de mármore da fonte, rodeou-lhe o pescoço com os braços e o beijou com avidez se desesperada. Com sua calma feita em migalhas, ele a estreitou fortemente em seus braços. Na intensidade do abraço, o medo se retirou um pouco, expulso


pela loucura ardente do desejo. Soltou-lhe os botões das costas e lhe desceu o vestido até lhe deixar nus os ombros. Mas em lugar de beijá-la se deteve com as mãos tremendo. - Deveríamos falar - disse com a voz entrecortada, não nos tirar a roupa. Ela abriu os olhos aturdidos. - Falar não servirá de nada. Rafe, a paixão sim, ao menos por um momento. Desceu a mão por seu ventre até tocar o vulto do membro masculino, que se endureceu imediatamente em sua palma. Ele conteve o fôlego. - Deus santo, Margot. Sem poder resistir a ela, agarrou seu disposto corpo e a estendeu sobre a erva aquecida pelo sol. Entrelaçaram as pernas e se despojaram da roupa para poder beijar e acariciar essa carne ofegante. Mais à frente do medo, ela emitiu um estremecido suspiro de alívio quando ele a penetrou em um rápido e potente ato de posse. Mas em lugar de continuar até a chamejante conclusão, ele ficou imóvel, com os braços trêmulos pelo esforço, enquanto vibrava dentro dela. - Ainda não, meu amor - ofegou. Não terminei de falar do medo. A vida te ensinou a ter medo, mas não tem por que ser assim. Deixe-me te amar. - Não é isso o que estamos fazendo? Resolvida a rendê-lo ao desejo, moveu provocativamente a pélvis. Involuntariamente ele se introduziu mais, mas novamente conteve o fôlego e retrocedeu um pouco, com a cara brilhante pelo suor. - Isto não é amor, é um ato sexual, glorioso e embriagador, mas não é o mesmo que fazer amor. - Deixa de falar de amor! - gritou ela lhe golpeando e lhe arranhando os ombros e o peito. Agarrou-lhe os pulsos e as esmagou na erva com suavidade, mas implacável. - Tenho que falar - resfolegou, porque foi o fracasso do amor o que nos pôs em caminhos tão tristes e terríveis. - Isto não é um maldito debate parlamentar. Rafe! Desejando mais que nunca esquecer, contraiu os músculos da vagina em uma enlouquecedora carícia. Ele gemeu e desceu a cabeça, e o cabelo lhe caiu sobre os olhos. Ela voltou a apertar e pensou que tinha ganho ao notar que ele estremecia violentamente. Mas uma vez mais seu autodomínio a derrotou. Ele levantou a cabeça e lhe disse com voz rouca: - Deixe-me te amar, Margot, porque a paixão nunca vai dar nada fora de um alívio temporário. - Pode ser que tenha razão - sussurrou ela, com um desejo inexplicável de chorar. Mas a paixão... é mais segura que o amor. Ele firmou os braços para sujeitar-se sobre ela, tampando o sol com seus largos ombros, enchendo o mundo para que não houvesse nada real fora dele. - A segurança não é suficiente. Não podendo suportar seu perfurante olhar, ela fechou os olhos e tentou freneticamente


restabelecer a inconsciência da paixão. - Olhe-me! - ordenou-lhe ele. Embora não quisesse obedecer, abriu os olhos, consternada ao comprovar parecia não ter vontade própria. - Merece mais que simples segurança, Margot - continuou ele em tom mais suave. Já sofreu as penas do amor, dê-se permissão para sentir as alegrias. Capa por capa tinham ido, caíram suas defesas e de repente se desintegrou a última, soltando-a em um redemoinho de medo, sofrimento e fúria. Só tinha conseguido sobreviver não se permitindo jamais experimentar totalmente o horror do passado, mas nesse instante a alagaram as lembranças com uma violência e uma ferocidade que lhe estilhaçaram o espírito. O grito de agonia de seu pai e seu sangue caindo na cara; as horríveis mãos rasgando-a como ganchos de ferro, e a atroz dor da violação que lhe destruía para sempre a inocência. Atos inqualificáveis, inimagináveis para uma jovem de dezoito anos criada na inocência. Desvanecido o desejo, gritou de terror, estremecendo com soluços que lhe faziam doer até a alma. Tinha frio, muito frio, e estava absolutamente sozinha... Imediatamente Rafe lhe soltou os pulsos e a estreitou em seus braços, protegendo-a da tormenta com seu corpo e seu espírito. - Amo-te, Margot, lhe sussurrou em tom premente. Sempre te amarei. Não terá que voltar a estar sozinha. Sempre soube, na medula mesma de seus ossos, que se alguma vez enfrentasse todo esse horror morreria. E entretanto não morreu. Rafe a tinha envolta em seus braços, estava dentro dela, protegendo-a com sua ternura e sua força; suas prementes e repetidas palavras de amor eram como uma corda salva-vidas que lhe impediam de cair na aniquilação. Pouco a pouco, o redemoinho de terror foi perdendo força e lhe tranqüilizou a respiração. O passado não havia mudado; as lembranças seguiam sendo amargas e as cicatrizes profundas. Mas o amor estava dissipando as nuvens do terror com a mesma tenacidade com que o calor do sol dissolve a névoa matutina. O medo decresceu deixando um oco, e pouco a pouco, como a ascensão da maré, esse oco no centro de sua alma se foi enchendo de amor. O calor do amor dissipou as trevas e a alagou de luz. E com o amor se acendeu novamente o desejo, não a avidez desesperada que a dominava antes, e sim uma emoção expansiva em que o amor e a paixão eram inseparáveis. Embora ele se abrandou enquanto a abraçava protegendo-a da tormenta, seguiam unidos tão intimamente como podem estar um homem e uma mulher. Acesa a paixão, decidiu deixar falar com seu corpo e se arqueou contra ele. - Amo-te Rafe, sussurrou. Com um rouco gemido ele entrou nos ritmos primitivos do emparelhamento. Não havia nele nem um indício da distância que ela tinha notado na primeira vez que fizeram o amor. Estava totalmente com ela, em corpo e espírito. No frenesi por fundir em um seus corpos separados, ele gerou outra tormenta com suas


potentes investidas, mas esta era do vento alvo do desejo. Ela gemia, gritava e se aferrava a ele, agitando-se descontrolada. Violentas contrações a abrasaram toda inteira, emanadas do lugar de sua união. Ao seu grito ecoou o gemido profundo dele ao liberar seu sêmen dentro dela. A descida do êxtase foi um torvelinho lento de tranqüilidade e luz. Quando recuperou lentamente os fragmentos de sua consciência, notou que Rafe estava tremendo igual a ela. Acariciou-lhe as suarentas costas até ter a respiração bastante tranqüila para falar. - Como sabia que me sentia tão sozinha? - murmurou. Ele se incorporou um pouco apoiando-se no cotovelo, e lhe contemplou a cara, revelando em sua expressão quanto lhe havia afetado esse cataclismo emocional dela. - Supondo que vi a semelhança. Ao olhar para trás compreendi que o medo à perda fez isolar-me, para me proteger dos riscos das emoções profundas. Mas o que descobri não foi segurança e sim a solidão. Supus que te havia passado o mesmo. - Passou-me isso, exatamente - disse ela pensativa. Nunca esqueci o ocorrido, mas tampouco nunca me permiti senti-lo totalmente. Para sobreviver tinha que isolar-me, para me proteger do terror. E ao me fazê-lo me isolei de tudo e de todos. - Fala no passado. - É que é passado, porque você não me deixou isolar-me desta vez. Obrigado, Rafe. Olhou seus olhos cinza claro e curvou sua boca em um sorriso. Em caso de que não o tenha deixado claro antes, eu te amo. Ele lhe devolveu o sorriso com encantador carinho. - Como creio que te repeti umas quarenta ou cinqüenta vezes, eu também te amo. - Parece que por uma vez estamos de acordo, riu ela. O rosto dele se escureceu um pouco. - Sinto muito, mas me descontrolei tanto que esqueci me retirar a tempo. Titubeou um momento e acrescentou: Espero que não haja... nenhuma conseqüência indesejável. Maggie sentiu crescer sua sorte interior e teve uma agradável sensação de poder feminino. - Essa conseqüência não me desagradaria, disse serenamente. E suponho que você gostaria de ter um herdeiro. Ele pareceu surpreso e de repente a olhou com o rosto iluminado, mais radiante que o sol que os iluminava. - Isso significa que se casará comigo? Acariciou-lhe meigamente os cabelos revoltos. - Se estiver seguro de que deseja uma lady com um passado manchado, nada eu gostaria mais que ser sua esposa. - Se estiver seguro! - exclamou ele. Rindo a agarrou em seus braços e rodou com ela até deixá-la em cima dele. Jamais estive tão seguro de algo em minha vida. - Tinha razão. Rafe. O amor é mais forte que o medo e é muitíssimo mais agradável. Esfregou a bochecha contra a dele. Bendito seja por ser mais valente que eu. - Valia a pena correr o risco. Acariciou-lhe amorosamente as costas nuas. Preocupava-se


que eu fosse incapaz de resistir aos encantos de outras mulheres, mas recorde que dizem que um libertino reformado é o melhor dos maridos. Ela pensou um momento, e decidiu que entre eles devia haver uma total sinceridade. - A verdade é que nunca acreditei nisso. Sei que disse a sério, mas me vêm à mente as manchas imutáveis dos leopardos. - Sempre gostei das mulheres em proporção direta a quant o me recordavam de ti, mas nunca nenhuma lhe chegou à sola dos sapatos da Margot original. Sorriu. Resulta-te mais fácil me acreditar se te disser que pastei em campos suficientes para saber que a erva não é mais verde? - Com isso me convenceu, disse ela e apoiou a cabeça em seu ombro rindo. Por que será que uma afirmação ignóbil é mais convincente que uma nobre? - Pela natureza humana, suponho. Enquanto jaziam languidamente abraçados, Rafe pensou que seria melhor proteger Margot do sol, porque sua pele branca se queimaria mais facilmente que a sua morena. Brandamente a depositou sobre a exuberante erva e se afirmou em um cotovelo para lhe fazer sombra com seu corpo. - É formosa à luz das velas e mais formosa ainda à luz do sol. Delicadamente lhe tocou um dos hematomas das costelas, que nos últimos dias haviam passado de um azul negro a um verde amarelado. - Alegrarei-me quando tiverem desaparecido estes hematomas, disse com os lábios tensos. É um milagre, Margot. O que suportou teria matado a qualquer um menos forte. Agarrou-lhe a mão e a pôs sobre o coração. - Não há nada que não tenha algum valor, amor. Desde dia que morreu meu pai até há dez minutos atrás, o medo foi meu companheiro constante, sempre tão perto de mim como minha sombra. Entretanto, curiosamente, não tinha medo das coisas pequenas, porque o pior que podia imaginar já tinha ocorrido. Em muitos aspectos, fiz-me mais forte, capaz de atos que antes teriam sido impensáveis. Por isso podia ser uma boa espiã. Beijou-lhe a fronte. - Minha indômita Condessa, muito em breve Duquesa. - Tenho um pedido,disse ela hesitante. - O que seja. Ela duvidou entre várias maneiras de expressar o que queria dizer. Finalmente disse: - Robin é minha família. Sempre o será. Sorriu-lhe irônico. - E não quer que eu atue como um marido idiota ciumento e possessivo. De acordo. Gosto de Robin e o respeito muitíssimo. Com um pouquinho de esforço creio que serei capaz de me convencer de que é seu irmão. Sempre será bem recebido em nossa casa, e de verdade espero que nos visite com freqüência. É isso o que queria ouvir? - Sim, meu amor. Um objeto sedoso se apertou sensualmente contra seu lado; Rex tinha decidido que não havia perigo em tornar-se ao seu lado.


- E Rex? - perguntou sorrindo. - Também é bem recebido, riu Rafe. Toda casa que se aprecie necessita de um gato, e agora que me reformei... A risada de Maggie ressoou no jardim quando levantou a cara para a de Rafe, deslizando seus dedos por seus cabelos negros e moldando seu corpo contra o dele, no mais puro prazer do amor. Quando seus lábios voltaram a unir-se, pensou fugazmente quanto agradecia que esse jardim estivesse muito, muito resguardado, porque tinham que ressarcir-se de muitos, muitos anos.

Nota histórica Embora o Congresso de Viena seja muito conhecido, da Conferência de Paz celebrada em Paris em 1815 se sabe relativamente pouco. Entretanto foi o acontecimento essencial que acabou com as guerras napoleônicas. Embora tenha tomado certas liberdades, os acontecimentos secundários da novela são certos. Durante o verão e outono de 1815 Paris foi um foco de conspirações, complôs de assassinato e contracorrentes políticas. É certo que um cavalo escoiceou ao Lorde Castiereagh em meados de setembro e que durante os dias seguintes as reuniões importantes se celebraram em seu dormitório na Embaixada britânica. Tanto as obras de arte como os prisioneiros políticos bonapartistas foram temas muito polêmicos, e os incidentes do Louvre e da Agrada du Carrousel estão descritos com exatidão. Mas nisto os franceses riram por último; embora o tratado final enviou aos seus países os tesouros artísticos roubados que estavam em Paris, a ninguém ocorreu incluir as muitas obras de arte que estavam repartidas em museus da província. Alguns dos principais militares bonapartistas foram executados, o que causou muita indignação em toda a Europa. Marshal Michel Nay, «o mais valente dos valentes» morreu com grande coragem diante de um pelotão de fuzilamento. Com a ajuda de três súditos britânicos, outro oficial de elevada fama escapou da prisão vestido com roupa de mulher, demonstrando uma vez mais que, tratando-se de farsa, a arte não supera à vida real. Às vezes se chama reacionários ao Congresso de Viena e ao Tratado de Paz, porque a Santa Aliança não lhe vinculem do Czar se confunde com a Quádruplo Aliança, que foi o verdadeiro Tratado de Paz assinado em 20 de novembro. Foi a Santa Aliança a que utilizaram as forças reacionárias, enquanto que a Quádruplo Aliança teve uma esplêndida nova idéia: que em tempos de problemas no futuro, as grandes potencias se reuniriam a discutir a situação. Esta foi a semente da que depois nasceria a Sociedade das Nações e as Nações Unidas no século XX. Os estadistas que administraram o acordo eram homens tenazes e pragmáticos, que desejavam a paz em sua época e que tiveram que trabalhar com os materiais disponíveis em


um continente destroçado. O que conseguiram foi melhor que o que tinham sonhado: até 1914 não houve na Europa outra conflagração que afetasse a todo o continente. Enquanto isso, a Embaixada britânica ainda tem sua sede na mansão que comprou Wellington de Pauline Bonaparte, a Princesa Borghese, e me disseram que sua baixela ainda adorna a mesa em algumas ocasiões. Fim


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