Mary jo putney anjos caídos 03 um baile com o diabo(1)

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Um Baile com o Diabo Dancing on the Wind

Mary Jo Putney

S ÉRIE OS ANJOS CAÍDOS 3

Napoleão deixou atrás de si uma Europa que se agita em meio de alianças e pactos, de conflitos fronteiriços, de ameaças e de ações militares. A diplomacia tem um papel muito importante, e também, depois dela, o mundo oculto da espionagem. Um jovem e atrevido conde é o chefe do serviço secreto inglês. Em seu caminho tropeça em uma mulher, uma peça a mais do quebra-cabeça; alguém, embora ele não queira reconhecer, que será capaz de despertar antigas emoções em seu coração.

DISPONIBILIZAÇÃO E PESQUISAS: YUNA, GISA, MARE E ROSIE TRADUÇÃO E FORMATAÇÃO: GISA REVISÃO: ELISONETE BATISTA REVISÃO FINAL: ROSIE PROJETO RE VIS ORAS TRADU ÇÕES

Donzela? Taberneira? Espiã!


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Kit Travers amaldiçoou em silêncio. Quem iria suspeitar que aquele disfarce de donzela despertasse o instinto sexual do desconfiado, intrigante e bastante bêbado Roderick Harford? E quem iria supor que seria justamente o conde de Strathmore quem evitaria na última instância a agressão? Na Londres de 1814 proliferavam como poucas vezes antes as intrigas e as pequenas conjurações, e ser espião não era coisa fácil para uma mulher de berço nobre. Ela sabia, começava a comprovar na própria pele. Com licença para... Seduzir Lucien, o conde, também chamado Lúcifer, as mulheres diziam que sua beleza era diabólica; tão atraente como era inalcançável seu coração. Essa qualidade, a de sedutor, e a condição de membro destacado da nobreza lhe abriam as portas dos clubes mais restritos, permitiam-lhe confraternizar com conspiradores e delatores, algo realmente útil para sua missão: desmascarar um temível espião.

PREFÁCIO Eton, inverno de 1794 Depois dos funerais foi enviado de volta ao colégio. O que mais se poderia fazer com um rapazote, inclusive um que acabava de se transformar no menino mais rico da Grã-Bretanha? O flamejante conde de Strathmore, Lucien Fairchild, estava desesperadamente ansioso para retornar a Eton. Ali, com seus amigos, poderia provar e fingir que nada havia mudado; que quando voltasse para Ashdown ao final do trimestre encontraria seu pai, sua mãe e sua irmã ainda vivos e sãos. É obvio, sabia o que tinha ocorrido na realidade, mas ainda não estava preparado para aceitar o caráter definitivo da morte. Talvez quando completasse os doze anos as coisas fossem mais fáceis. Seu antigo título tinha sido visconde Maldon. O diretor de Eton saiu para receber sua carruagem e apressou-se em chamá-lo de Strathmore, assim como os empregados do colégio que carregaram suas malas, mas às suas costas ouviu em duas ocasiões que alguém murmurava: «O conde órfão». Lucien se encolheu ao ouvir a frase; soava insuportavelmente patética. Odiava sua fraqueza por esse mesmo motivo, mas ao menos isso desapareceria em poucas semanas. Já era tarde avançada quando chegou à casa de hóspedes em que residia. Assim que tirou o casaco e as luvas em seu quarto, foi em busca de seus amigos pessoais, que viviam todos na mesma casa. Como de costume, estavam reunidos no quarto de Rafe, que era o maior e o mais popular. Lucien entrou coxeando no quarto sem se incomodar em bater na porta. Seus três amigos estavam deitados em diversas posturas, divididos pela mobília. Nicholas era um visconde, Rafe um marquês, e Michael o filho mais novo de um duque, mas esses títulos eram mera cortesia, enquanto que Lucien agora era parte do reino. Oxalá não fosse. Quando a porta se abriu escancarada, todos levantaram os olhos. Por espaço de algum tempo se fez um silêncio sepulcral. Naturalmente, todos estavam cientes da notícia. Lucien sentiu que a alma caía aos seus pés. Frágil por causa da aflição e de uma solidão primitiva que sabia que lhe acompanharia durante o resto de sua vida, experimentava a desesperada necessidade de que seus amigos continuassem sendo os mesmos. Não se acreditava capaz de suportar que eles se sentissem muito diferentes para tratá-lo como sempre. Nesse momento, Nicholas deixou seu livro de lado e se esticou para abandonar seu lugar junto ao fogo. Seu sangue cigano o fazia ser mais desinibido que os outros, e para ele foi completamente natural rodear os ombros de Lucien com um braço e lhe acompanhar até a lareira. 2


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— Fico feliz de que tenha voltado — disse com simplicidade — Chegou bem a tempo para comer um pouco de queijo torrado. Lucien se sentiu profundamente agradecido pela naturalidade de seu amigo, fazendo com que se sentisse real outra vez. Ao longo das duas últimas semanas se perguntava de vez em quando se não seria um fantasma, igual a sua família. Enquanto se sentava sobre o tapete, em frente ao fogo, os outros meninos deixaram seus livros e começaram a torrar pedaços de queijo cravados em compridos garfos. Quando já estavam dourados e derretidos, espalhavam sobre fatias de pão, um jantar perfeito para uma noite úmida e fria. A conversa se desenvolveu com naturalidade e girou em torno de notícias sobre o colégio que tinham acontecido durante a ausência de Lucien. Não foi necessário que ele falasse nada, o que foi uma sorte porque não estava certo de seria capaz de pronunciar alguma palavra com o nó que tinha na garganta. Pouco a pouco, à medida que a opressão que sentia no peito ia aliviando, pôde contribuir com um ou outro comentário. E também descobriu, com leve assombro, que sentia fome pela primeira vez depois do acidente. Quando acabou o queijo. Rafe disse: — Encontrei na cidade uma coisa que gostaria de ter em sua coleção, Luce. Levantou-se e procurou em sua mesa, e retornou com um pequeno objeto na mão. Tratava-se de uma tartaruga mecânica de corda com uma miniatura em bronze que representava uma sereia encarrapitada sobre a casca. Nem sequer a corrosiva dor que lhe embargava impediu Lucien se sentir intrigado. — É uma carapaça de tartaruga autêntica, não? — virou o artefato nas mãos, estudando o fino trabalho de artesanato, e em seguida deu corda e o deixou no chão. A tartaruga se lançou para frente pesadamente. Embora avançasse sobre umas minúsculas rodas ocultas, a cabeça e as patas se moviam como se estivesse andando de verdade. Sobre a carapaça, a coquete sereia agitava o braço para frente para trás, lançando sedutores beijos aos moços que a contemplavam. Lucien sorriu por um instante antes que a realidade caísse de novo sobre ele como uma pedra. Tinha sido seu pai quem havia lhe dado de presente seu primeiro brinquedo mecâ nico e o animou a colecioná-los e construí-los; seu pai, que agora jazia na cripta familiar em Ashdown com seu riso apagada para sempre. Lucien piscou para conter as lágrimas que ameaçavam transbordar em seus olhos. Oxalá existisse realmente um lugar de fantasia cheio de sereias e de magia em que ninguém morresse nunca. Quando conseguiu dominar-se, disse: — Está certo de querer se livrar disto, Rafe? Nunca vi nada parecido. Rafe deu de ombros. — Quando quiser vê-lo, já sei aonde tenho que ir. A tartaruga foi diminuindo a velocidade até parar, e Lucien deu corda outra vez e a deixou no chão. Por fim pôde fazer uma referência indireta ao que tinha acontecido e disse em voz baixa: — Começaram a me chamar de o conde órfão. Fez-se um violento silêncio antes que Michael dissesse: — É um apelido asqueroso. Soa como se você fosse um mendigo. Os outros assentiram para mostrar concordância. Lucien já tinha imaginado que o compreenderiam. — Temos que procurar um apelido melhor antes que esse pegue — disse Rafe com firmeza. — Luce, como você gostaria que o chamassem? 3


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Nicholas deu um sorriso. — Que tal a Serpente de Strathmore? Soa mais perigoso. Lucien refletiu. Uma serpente, brilhante e mortal. Todo mundo tinha medo das serpentes. Entretanto... — Não esse não está bom, não é adequado. — Eu tenho uma idéia melhor. — Michael sorriu abertamente e levantou o livro que estava estudando. Era O Paraíso Perdido de Milton. — Já que se chama Lucien, o mais natural é que escolha o apelido de Lúcifer. — Perfeito — disse Nicholas entusiasmado. — Lúcifer, o arcanjo rebelde que preferiu reinar no inferno a servir no céu. Loiro como é, será um grande luzeiro da alvorada. — É um apelido muito elegante — concordou Rafe. — Pessoalmente, eu creio que Milton sente uma secreta predileção por Lúcifer. Como personagem é muito mais interessante que Deus, que age como um chefe prepotente. — Se nós começarmos a nos referir a você como Lúcifer, dentro de algumas semanas todos os meninos em Eton farão o mesmo. — Os olhos verdes de Michael faiscaram maliciosos. — Os professores dirão que é sacrílego. Ficarão furiosos. Lucien se recostou na cama e fechou os olhos enquanto pensava. Os apelidos eram importantes; se chamassem alguém de Eton de uma coisa tão idiota como Sopro podia ser algo que perseguisse um homem durante toda a vida. Lúcifer era um apelido de grande força; um ser capaz de rir de Deus. Seria muito preparado para amar muito. E era certo de que um perigoso e orgulhoso anjo caído não choraria de noite. Tratou de compor uma expressão fria e irônica. Sim, aquilo lhe ficaria muito bem. — De acordo — disse devagar. — Serei Lúcifer.

CAPITULO 1

Londres, outubro de 1814 Transcorridos dois dias, já tinha ficado para trás o momento de chorar. Agora devia passar à ação. Já tinha formulado as perguntas óbvias às pessoas apropriadas, e terminado com as mãos vazias. Além de sua intuição, não havia prova alguma de que tivesse acontecido nada de espantoso. É claro que neste caso sua intuição era infalível. Pelo menos, graças a Deus, o pior ainda nã o tinha ocorrido. Se agisse depressa, talvez pudesse impedir o desastre final. Mas o que podia fazer? Em uma situação assim não existiam as fontes convencionais de ajuda, e embora houvesse homens aos quais podia pedir auxílio, não se atrevia a confiar em nenhum. Obrigou a si mesma a pôr fim naquele frenético andar de um lado ao outro do quarto em desordem que mostrava os efeitos de sua fútil busca. Supunha-se que era uma mulher inteligente, de modo que já era hora de que agisse como tal. Sentou-se em frente à mesa de escritório, pegou uma pluma, molhou-a no tinteiro e começou a escrever tudo o que sabia. Primeiro as datas, as horas e as respostas das pessoas às quais tinha interrogado; em seguida sua própria teoria sobre o ocorrido que se apoiava em sua maior parte em conversas que recordava pela metade, mas que se encaixavam com os fatos, assim procederia como se estivesse certa. Afinal, não tinha nenhuma outra. A tinta secou na pluma enquanto pensava no que ia escrever a seguir. Havia uma necessidade crucial de obter informação; se 4


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pudesse averiguar exatamente o que tinha ocorrido, poderia pensar em uma solução. Embora não precisasse de aliados, a parte mais dura da investigação deveria recair sobre ela. Não só sua habilidade era de um singular valor, como também não havia ninguém mais, nem sequer Jane, que pudesse levar o assunto tão a sério. Pouco a pouco foi surgindo um plano de atuação, que a fez contrair o rosto enquanto elaborava uma lista de lugares que deveria investigar e formas de começar a fazê-lo. Alguns dos métodos necessários poderiam ser perigosos, e sabia que não era uma mulher valente. Mas não tinha alternativa; uma espera passiva seria algo insuportável. A idéia mais ousada era surpreendentemente simples. Enquanto a escrevia, repreendeu-se a si mesma por não ter pensado nela imediatamente. A pluma começou a voar sobre o papel à medida que iam lhe ocorrendo mais idéias. Logo tinha escrito tudo o que necessitaria para transformar-se em outra pessoa. Embora talvez fosse mais exato dizer que ia se transformar em meia dúzia de pessoas diferentes.

CAPITULO 2

— Detenha-se agora mesmo, maldito milord! Deteve-se imediatamente. Lucien Fairchild, nono conde de Strathmore, que exercia a profissão de chefe do serviço secreto de inteligência em um plano informal e um enigma por decisão pessoal, reconhecia um assassino somente ao ouvi-lo. Virou-se lentamente para olhar de frente o homem que acabava de lhe abordar, amaldiçoando a si mesmo por ter se tornado mais descuidado desde que terminou a guerra. Deveria ter sabido. Embora tivesse terminado a luta nos campos de batalha da Europa, o clandestino mundo das conspirações, a política e o poder duravam eternamente. Havia se encaminhou de volta para sua casa ao sair do clube e já era tarde, passa va da meianoite. Os paralelepípedos estavam cobertos de folhas secas e a uma quadra dali se ouvia o retumbar das carruagens que atravessavam a Praça de Hanover, mas Lucien se encontrava sozinho na rua escura com uma... Não, duas figuras escuras e corpulentas. O tênue resplendor das estrelas se refletia com um brilho apagado nos largos canos das duas pistolas que apontavam ao seu coração. Ganhar tempo. Averiguar a quem está se enfrentando, e por que. — Conhecemo-nos, senhor? — perguntou Lucien cortês. — Não pessoalmente, mas dizem que você esta há dois anos procurando Harry Mirkin, de modo que decidi que já é hora de me apresentar. — O homem soltou um sorriso zombador. — Estou decepcionado. Dizem que se chama Lúcifer porque você é um diabo perigoso, mas não é mais que um pálido janota, muito bonito para assustar a um velho ladrão de carteira do East End. — Lamento muito não satisfazer suas expectativas. A reputação de alguém costuma ser distorcida. — Lucien apontou para Mirkin com sua bengala de cabeça de marfim. — Por exemplo, corre o rumor de que você é o rei dos baixos recursos de Londres. Dizem que os franceses lhe pagaram para que assassinasse os dirigentes Lordes, com a esperança de afundar o governo e de que a Grã-Bretanha se retirasse da guerra. Era verdade esse rumor? — Sim, é verdade — disse Mirkin com ar rancoroso. — E teria conseguido se não tivesse sido por você e por essas gangues de informantes seus. Esse fracasso me custou perder meu bando, minha posição nos baixos recursos e as cinco mil guinés de ouro que teriam me pago se tivesse 5


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tido êxito. Tive sorte de escapar com vida. — Bom pagamento por um trabalho, mas um preço muito baixo por trair seu país — murmurou Lucien. — tentei lhe encontrar, mas não posso dizer que tenha procurado com muito afinco; tinha coisas mais importantes a fazer. — Foi um erro não acreditar que eu era importante! — É evidente que o subestimava. — Lucien brincou com sua bengala e afrouxou o punho do mesmo às escondidas — Você fez um bom trabalho ao se esconder. Em que esgoto esteve escondido? Seu oponente cuspiu sobre a calçada. — Estive na pestilenta Dublin, e tudo por sua culpa. Retornei para recuperar o que é meu, e vou começar matando lorde Lúcifer, por colocar o nariz em assuntos que não são de sua incumbência. — Estou seguro de que isso fará maravilhas a sua reputação quando se souber que necessitou de ajuda para matar um homem desarmado — disse Lucien secamente. Mirkin fez um gesto com a mão mostrando seu tímido acompanhante, que se encontrava a apenas dois metros de Lucien. — Meu irmão Jimmy não me trairá. A única coisa que saberão é que você está morto e que foi minha obra. — Seu tom de voz se tornou venenoso —: Suplique por sua vida, Strathmore. Quero que se arraste como a serpente que é. Tenso e disposto para a ação, Lucien respondeu em tom neutro: — O que você disser Harry. Quer que fique de joelhos? Por um muito breve instante, mostrou os dentes de predador. — Isso me agradaria. Arraste-se bem e pode ser que lhe dê uma morte rápida. De outro modo, acabará com duas balas na barriga e demorará semanas para morrer. Mirkin abaixou ligeiramente a pistola enquanto aguardava que seu inimigo se humilhasse. Então, aproveitando que o outro tinha a guarda baixa, Lucien se lançou de repente contra Jimmy. Aquela manobra era um risco, mas com sorte danificaria a pontaria dele e evitaria que Mirkin disparasse por medo de ferir seu irmão. Lucien ganhou a aposta, embora só por um triz; quando o corpulento homem se equilibrou sobre seu assaltante, sua pistola disparou. A bala explodiu junto à cabeça de Lucien e uma chuva de grãos de pólvora lhe salpicou o rosto. Sem fazer caso da ensurdecedora explosão, Lucien rodou sobre suas costas e libertou com um puxão a cabeça da bengala, deixando a descoberto um estilete afiadíssimo e reluzente. Agarrou-o com ambas as mãos para que apontasse diretamente para cima, para o homem que caía nesse instante sobre ele. Um momento depois, Jimmy se empalou sobre a navalha com um impacto que fez vibrar todo o corpo de Lucien. O homem soltou um grito estremecido que terminou tão rapidamente como tinha começado. Então caiu sobre Lucien todo o peso do cadáver, lhe esmagando contra o chão. Antes que pudesse se libertar, Mirkin rugiu: — Maldito bastardo assassino! — Virou a pistola e apertou a culatra contra a cabeça de Lucien, e depois lançou o braço para trás para repetir a operação. — Por isso vou te fazer em pedaços. Um estalo de dor alagou o crânio de Lucien, que se agarrando a consciência com grave determinação, espetou-lhe: — Se conseguir, pelo menos terá ganhado honestamente minha morte. Quando Mirkin jogou o pé para trás para lhe dar um chute, Lucien se separou do corpo de Jimmy e o lançou contra as pernas de seu atacante, em seguida ficou em pé, cambaleante. Perdeu uns segundos preciosos tentando liberar também seu estilete, mas estava cravado com muita força no peito de Jimmy. Teria que enfrentar Mirkin desarmado. 6


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— É um bastardo trapaceiro, heim? — Mirkin levantou sua pistola — Vou te dar um tiro como deveria ter feito no início. Mas antes que pudesse disparar, Lucien lançou um chute e arrancou a pistola da mão do outro homem. A arma saiu voando na escuridão e foi cair com um ruído metálico. — Por Deus, se não posso te dar um tiro, arrancarei sua cabeça com as mãos, porco asqueroso! — gritou Mirkin enquanto se equilibrava sobre Lucien em uma investida que fez com que os dois caíssem ao chão. Lucien lutou e conseguiu escapar do mortal abraço, mas Mirkin tinha começado sua carreira de delinqüente como ladrão no cai de Londres, e ainda tinha o tamanho e a força bruta de um estivador. Imobilizou Lucien sobre os paralelepípedos e a seguir fechou as mãos ao redor de sua garganta e apertou com todas suas forças, bloqueando o ar e ameaçando lhe quebrar a traquéia. Lucien, com a visão obscurecida, o empurrou para cima para desequilibrar seu atacante e a seguir lhe golpeou com o joelho na virilha. Mirkin se encolheu instintivamente, o qu e deu a Lucien uma oportunidade para desembaraçar-se dele. Rápido como um gato, ficou em pé com um salto, agarrou a cabeça de seu inimigo por trás e, com uma retorcida selvagem, quebrou-lhe o pescoço. Depois do horrível estalo, tudo ficou em silêncio exceto pela respiração agitada de Lucien. Deixou que o corpo inerte de Mirkin desabasse no chão e depois deu um passo para trás e secou o suor da testa com o pulso. — De certo modo me fez um favor, Harry — ofegou. — Eu não gosto de matar a sangue frio, mas se é em defesa própria não sinto nenhum remorso. Começaram a aparecer homens das casas vizinhas, atraídos pelo som do disparo que Jimmy havia efetuado. Deviam ter transcorrido não mais de três ou quatro minutos desde que Mirkin e seu irmão lhe haviam abordado. Tempo suficiente para matar dois homens. Chegou meia dúzia de vizinhos levando candelabros. Um deles, um conhecido de Lucien chamado Winterby, exclamou: — Meu Deus, Strathmore está ferido. Chamem um médico! Lucien olhou para o chão e viu que sua capa de cor bege estava manchada de um intenso vermelho. — Não é necessário, não é sangue meu. — O que ocorreu? —Dois assaltante me atacaram. — Lucien se agachou e recolheu seu chapéu. Agora que já havia passado a crise, se surpreendeu ao descobrir que estava tremendo pela reação. Tinha estado muito perto, muito perto. — É surpreendente que um homem não possa estar seguro nem sequer em Mayfair — disse alguém em tom indignado. Um homem magro que se ajoelhou para examinar os corpos dirigiu um olhar estranho a Lucien. — Os dois estão mortos. — Felizmente, levava comigo meu estilete. Lucien recuperou as duas partes de sua bengala. Depois de limpar a lâmina com a capa estragada, enroscou o punho sobre a base outra vez. O homem magro deu uma olhada para Mirkin, cujos olhos frágeis estavam fixos e cujo pescoço aparecia torcido em um ângulo estranho e impossível. — Muito afortunado — disse secamente. Outra voz murmurou: — Não estranho que o chame de Lúcifer. Winterby, elevando a voz para sossegar o comentário, disse: 7


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— Venha a minha casa para tomar uma taça de conhaque enquanto esperamos o juiz. — Obrigado, mas moro bem em frente, na praça, prefiro ir para minha casa. O juiz poderá falar comigo lá. Deu um último olhar nos cadáveres dos dois homens que tinham tentado lhe matar. Que vida tão estranha era a sua, em que um esquecido assunto do passado podia sair à luz e lhe destruir a qualquer momento. Se Mirkin não houvesse sentido a imperiosa necessidade de explicar-se, seria ele que estaria estendido no chão nesse momento. Voltou-se com gesto cansado para a Praça de Hanover, acompanhado por um dos lacaios de Winterby, que levava um lampião. Aquele ataque tinha servido muito bem para lhe recordar que já era hora de se encarregar de certo assunto sem terminar. Harry Mirkin tinha sido somente um instrumento em mãos de outra figura mais poderosa, um agente de Napoleão que tinha trabalhado durante anos contra a Inglaterra. Mentalmente, Lucien o tinha apelidado de o Fantasma, porque era esquivo como um espectro e sempre permanecia em segundo plano enquanto realizava suas maldades. Depois da abdicação de Napoleão na primavera, Lucien tinha se concentrado em seguir de perto as ocultas intrigas de traição que ferviam pelo Congresso de Viena. Esse trabalho era mais urgente que encontrar o Fantasma, mas o Congresso estava atuando bem, e tinha chegado o momento de destruir o espião cujas atividades tinham prolongado a guerra e poderiam complicar a paz. Mas por onde começar? Havia indícios de que o Fantasma era um inglês de bom berço, muito possivelmente alguém que o próprio Lucien conhecia. Avaliaria até a menor prova que possuía, acrescentaria uma dose de instinto e idea lizaria um plano para capturar o traidor. Enquanto subia os degraus que conduziam a sua casa, esboçou um sorriso irônico, r indo de si mesmo. Nem sequer um fantasma poderia evitar Lúcifer.

CAPITULO 3

Era o momento oportuno para entrar e roubar. Os convida dos varões do castelo de Bourne se encontravam na parte debaixo, bebendo e farreando, e seus criados de quarto estavam fazendo o mesmo nos aposentos dos serviçais; ela, Kit Travers, estava mais disposta do que nunca. Secou as mãos úmidas no tecido de seu vestido enquanto dizia a si mesma que era Emmie Brown, criada, conscienciosa e não muito inteligente. Sua touca desajeitada reforçava essa imagem, com o benefício de um aplique de que lhe ocultava o rosto. Ninguém adivinharia jamais que não era o que parecia ser. Tomou o aquecedor em uma mão e uma lamparina na outra e abandonou a segurança da escada traseira para sair no corredor superior da ala oeste do castelo Bourne. A luz que piscou da lamparina revelou uma dúzia de portas, todas idênticas. Por sorte, era costume de a casa colocar um cartão que identificava o ocupante em um suporte situado junto à porta de cada convidado. Presumivelmente, aquilo resultava de utilidade para o ilícito tráf ego de altas horas da noite. Em uma ocasião, Kit tinha ouvido falar de um pretendente amoroso em busca de seu amante que irrompeu pela porta gritando: «Lady Chupeta está pronta para servir John, o Grandalhão?», só para tomar conhecimento de que tinha invadido acidentalmente o dormitório do bispo de Salisbury, que tinha setenta anos. Aquela lembrança quase a fez sorrir. 8


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As frivolidades se desvaneceram assim que levantou a lamparina para examinar o primeiro cartão. Senhor Halliwell. Pelo que ela sabia aquele não era um membro do clube dos Demônios, de maneira que avançou até a próxima porta. Sir James Westley. Aquele figurava em sua lista, assim deixou a lamparina no chão e, vacilante, girou a maçaneta da porta. Esta se abriu sem dificuldade sob sua mão. Com o coração acelerado, penetrou no quarto procurando agir como se tivesse todo o direito de estar ali. De todos os modos, sentiu alívio ao ver que o local estava tão vazio como se acreditava que devia estar. Pôs o aquecedor sobre o fogo e depois começou a revistar o guarda roupas. A julgar por suas roupas, Westley era de constituição forte e de gostos elegantes. Repassou rapidamente os objetos pendurados, prestando uma atenção especial aos bolsos, mas não descobriu nada de interesse. Continuando, foi tirando uma por uma as gavetas que continham roupas. Nada. Depois de um superficial exame para certificar-se de que tudo estava exatamente igual como tinha encontrado, fechou o guarda roupa e se dirigiu à mesa escritório. Havia várias cartas metidas em uma carteira de couro. Nervosa e consciente de que o tempo urgia, folheou-as com toda a pressa. Uma vez mais, não encontrou nada que parecesse importante. Quando já não havia nada mais que revistar, passou o aquecedor sobre os lençóis e depois partiu. No próximo quarto se alojava o Honorável Roderick Harford. Excelente; este era um fundador dos Demônios e um dos homens que mais a interessavam. Mais reservado que Westley tinha fechado sua porta com chave. Kit olhou para a esquerda e para a direita para certificar-se de que estava sozinha e extraiu uma chave que devia encaixar nas singelas fechaduras da maioria dos quartos do castelo. Se a descobrissem lá dentro, afirmaria que tinha encontrado a porta aberta, e presumiriam que a fechadura não tinha funcionado bem. A chave entrou com uma leve sacudida. Kit entrou no quarto e começou a revistá-lo, assim como tinha feito no de Westley. Harford era um homem muito mais alto que o outro, e mais descuidado com sua roupa; seus objetos interiores mostravam manchas de rapé. Deveria despedir seu criado de quarto. Quanto tempo tinha transcorrido? Dado que todos os hóspedes haviam passado uma exaustiva jornada de caça, talvez se retirassem cedo. Nervosa, passou as mãos entre vários montes de gravatas dobradas. Se pelo menos soubesse o que estava procurando! Uma vez mais, parecia que não havia nada de interesse. Então, na última gaveta, sob uma pilha de camisas, descobriu um livro grande e pesado, intitulado Concupiscência. Folheou-o e fez uma careta. Pelo visto, o Honorável Roderick tinha certo gosto pelos desenhos obscenos e, bem desagradáveis. Obviamente, era um homem ao qual teria que vigiar. Movia-se em volta da mesa de escritório quando de repente ouviu uma chave que girava na fechadura. Durante um momento de terror, acreditou que lhe ia parar o coração. Como a porta não estava fechada, o homem de fora começou a mover a chave, tentando abrir o que já estava aberto. A paralisia momentânea de Kit desapareceu, e se lançou a agarrar o aquecedor e em seguida voltou a jogar para trás os cobertores da cama. Quando o Honorável Roderick Harford entrou no quarto, ela estava inocentemente ocupada em passar o aquecedor pelos lençóis. Em pessoa era inclusive maior do que sugeria um estudo de suas roupas. — O que está fazendo aqui, moça? — grunhiu com voz perturbada pela bebida. — Meu quarto estava fechado com chave. — Estava aberto, senhor — disse ela com forte acento rural. Arredondou os ombros para rebaixar um pouco sua postura e continuou —: Se você não quer que esquente sua cama, senhor, eu irei. 9


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— Essa maldita fechadura provavelmente está aí desde que Enrique VIII dissolveu as Igrejas. Candover deveria substituir-las — disse Harford em tom ácido. Fechou a porta e cruzou o quarto com passadas um tanto instáveis. — Não vá, moça. Esta noite faz frio, e agora que penso, far-me-ia bem um pouco de calor na cama. Alarmada pelo brilho dos olhos do homem, Kit se esca puliu para um lado no momento em que ele tentava tocá-la. — Já estou indo, senhor. — lançou-se para a porta. — Não tão depressa, querida. — Agarrou-a pelo pulso para obrigá-la a ficar. — É uma vadia bastante fraca, mas servirá para um rápido amasso. Foi fácil mostrar terror. Lutando para se desprender, Kit gemeu: — Por favor, senhor, sou uma garota decente. — Haverá uma guiné de ouro para você — disse ele com um sorriso de bêbado. — Talvez duas, se me mantiver quente. — Atraiu-a para ele com um puxão e a abraçou, com um fétido aroma de vinho do Porto. Lutar seria inútil contra um homem com o dobro de seu tamanho, de modo que se obrigou a relaxar, embora mantivesse a boca fortemente fechada para proteger se da tentativa de invasão de sua língua. Ele tomou sua imobilidade como aceitação e murmurou: — Assim está melhor, querida. — E moveu uma mão até seus seios. —Me mostre quão quente és. Ela aproveitou que ele tinha afrouxado a mão para escapar. Conseguiu chegar até a porta, e já estava a meio do corredor quando ele a apanhou novamente. — Você gosta de brincar, não é? — disse jovialmente. — É mais vivaz do que parece. Prisioneira do pânico, Kit o empurrou violentamente no peito e lhe fez perder o equilíbrio. Ele se agarrou a ela para evitar cair, e conseguiu arrastá-la consigo ao chão. Ambos terminaram esparramados na soleira da porta, com as cabeças no corredor, Harford por cima. Enquanto Kit abria a boca em busca de ar, ele tirou seu corpete e conseguiu rasgá-lo até a cintura. —Muito melhor do que eu esperava — disse com voz rouca. — Talvez te dê cinco guinés. Havia temido muitas coisas desta noite, mas uma ocasional violação por parte de um homem que nem sequer conhecia seu nome não era uma delas. Aterrorizada, t entou gritar, mas o grito ficou abafado pela boca dele. De repente, sentiu que o peso cansativo do homem desaparecia e que podia respirar de novo. Por cima dela uma fria voz disse: — A senhorita não parece mostrar interesse, Harford. Kit levantou a vista e descobriu um homem alto e loiro que empurrava seu atacante contra a parede. Embora o elegante recém-chegado não parecesse exercer pressão alguma, Harford era incapaz de libertar-se. — Ocupe-se de seus assuntos — ofegou Harford ao mesmo tempo em que tentava inutilmente se soltar da garra do homem loiro. — É uma criada, não uma senhorita. Ainda não conheci nenhuma criada que não tenha se sentido bajulada de que um cavalheiro queira montá-la. — Parece que esta noite você conheceu uma. Outra coisa seria que ela se mostrasse disposta, mas não é educado violar às criadas do anfitrião — disse a fria voz em suave tom de recriminação. — Candover se chatearia muito, e você já sabe a boa pontaria que tem. Ele o soltou, e Harford se apressou em entrar no quarto com um bocejo. — Boa noite, Strathmore. Kit ficou rígida. Santo Deus, seu salvador era Lucien Fairchild, o conde de Strathmore, um homem que chamavam, sempre em sussurros e depois de olhar em todas as direções, Lúcifer. Ele e vários de seus amigos libertinos eram conhecidos coletivamente como os Anjos Ca ídos. Não sabia que era membro do clube dos Demônios. 10


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Entretanto, não pôde ser mais cavalheiresco quando lhe ofereceu uma mão para ajudá -la a se levantar. —Encontra-se bem, senhorita? Perguntando-se se não teria saído do fogo para cair nas brasas, ela aceitou sua mão e ficou de pé. — Sim, milord. Quando lhe olhou o rosto, sofreu uma impressão distinta. Era igual o seu xará, Lúcifer. O conde irradiava um brilho mais deslumbrante que o de um homem mortal. Se o vício tinha lhe estragado, ainda não se revelava em seu rosto, mas seus olhos de cor verde dourada continham a fadiga de um homem que viu as chamas do inferno. Esperava que não fosse seu inimigo, porque adivinhava que seria um adversário letal. Ele lhe apertou a mão com força. — Como se chama? Ela estava tão impressionada que disse de forma automática: — Kit — antes de se lembrar que havia se unido à servidão da casa com o nome de Emmie Brown. Furiosa por ter revelado sua verdadeira identidade, converteu seu engano em um balbucio—: Kit... Kitty, milord. Ele a percorreu com o olhar. — Talvez valha à pena bater-se em duelo por você, Kitty. Ao dar-se conta de que o corpete rasgado tinha lhe deixado um seio virtualmente descoberto, retrocedeu encolhendo-se e usou sua mão livre para cobrir-se com o tecido rasgado. Imediatamente, ele soltou a mão e disse, voltando para sua anterior atitude objetiva: — Tome uma xícara de chá e vá para a cama, Kitty. Uma boa noite de sono profundo você ficará bem. Embora não havia nada que quisesse mais, Kit respondeu: — Ainda não terminei meu trabalho, milord. —Por esta noite, o resto dos convidados pode dormir entre lençóis sem esquentar. Eu me encarregarei de explicar ao duque para que não a castiguem. — Seu olhar a percorreu novamente. — Diga à governanta que atribua esta tarefa a alguém de mais idade na próxima vez que venha uma visita para uma partida de caça. Agora vá, Kitty. E para seu próprio bem, aprenda a afiar as garras. Contente em obedecer, ela inclinou a cabeça e se apressou a partir como se fosse uma moça aterrorizada até perder a cabeça. Não teve nenhum problema em fingir. Dobrou a esquina do corredor e se refugiou atrás da porta que ocultava as escadas dos serviçais. Uma vez a salvo, deixou-se cair sobre o último degrau, pôs de um lado as ferramentas de seu ofício e enterrou o rosto entre as mãos trêmulas. Havia meia dúzia mais de homens cujos quartos deveria ter revistado, mas não se atrevia a continuar. Tudo indicava que o grupo que havia no salão ia desfazer cedo, e se encontrasse com algum outro convidado febril talvez não tivesse tanta sorte. Furiosa, repreendeu-se por ter conseguido tão pouco. Tinha acalentado a esperança de descobrir algo que reduzisse sua busca, mas tinha demorado vários dias em conseguir que a contratassem como criada, e a partida de caça quase tinham terminado. No dia seguinte, todos os hóspedes partiriam e ela não teria se informado de nada. Ficou de pé com dificuldade, notando os hematomas que havia feito ao cair no chão. Ela também poderia partir essa noite, já que seria incapaz de descobrir algo mais. Emmie Brown, criada fracassada, desapareceria. A governanta se limitaria a murmurar algo a respeito de quão difícil resultava obter bons serventes e lhe diria que partisse com vento fresco. Enquanto subia os escuros degraus que conduziam ao minúsculo quarto do desvão em que 11


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nunca tinha dormido, jurou que a próxima vez faria melhor. Não tinha alternativa, pois o fracasso era algo impensável. Enquanto caminhava lentamente pelo corredor em direção a seu dormitório, Lucien refletia sobre os caprichos da natureza. A criada era uma jovem simples vinda do campo, vulnerável e inocente, não muito rápida de raciocínio e com os ombros encolhidos próprios de alguém que se envergonha de sua estatura. Entretanto, tinha captado por um instante seu perfil, e este possuía a pureza do rosto de uma moeda grega. Talvez fosse isso o que tinha atraído Harford. Não, provavelmente ele nem notou; o Honorável Roderick não era dos que distinguiam essas coisas. Afastou a criada de seus pensamentos e entrou em seu quarto, tirou a gravata de lenço e se agachou para acender o fogo. Em seguida se acomodou em uma poltrona e contemplou a suave chama enquanto sua mente refletia a cerca de toda uma variedade de acontecimentos, tentando encontrar alguma pauta comum. Não estava fazendo progressos, de maneira que foi um alívio ouvir que alguém batia suavemente à porta, nas costas dele. — Entre. Não lhe surpreendeu ver que seu visitante era o duque de Candover. Seu anfitrião e ele não tinham tido a oportunidade de falar em privado durante a partida de caça. O duque entrou levando duas taças de cristal e uma garrafa embaixo do braço. — Estavas tão ocupado em analisar os outros convidados que mal tocastes sua taça de Porto, assim pensei que talvez gostasse de tomar um pouco de conhaque antes de deitar. Lucien riu levemente. — Muito atencioso Rafe. Suponho que também tinha a esperança de inteirar-se de por que te pedi que convidasse um grupo tão variado de pessoas a vir ao castelo de Bourne e avisando-o com tão pouca antecedência. — Sempre é um prazer pôr meu esplendor ducal a seu serviço, Luce, mas tenho que admitir que sinto curiosidade pelo que traz nas mãos desta vez. — O duque serviu conhaque para os dois, entregou a Lucien uma taça e a seguir tomou assento na cadeira que havia no outro lado do fogo. — Há alguma outra maneira de poder te ajudar em sua investigação? Lucien titubeou, pensando no quanto devia dizer. Quando necessário, tinha recrutado os velhos amigos, incluído Rafe, em seu trabalho de inteligência, mas nunca o fazia sem uma boa razão. — Desta vez não, você é muito respeitável. Seria estranho que fizesse algo mais que convidar Os homens que me interessam para uma casual partida de caça. Falando nisso, obrigado por me fazer o favor; organizar os convites para o famoso castelo de Bourne aumentou minha categoria com os Demônios. Rafe emitiu um leve assobio. — É obvio. Já estava estranhando que me pedisse que convidasse esses homens em particular. São todos do clube dos Demônios. Por que está investigando esse grupo? Acreditava que não era mais que uma coleção de caveiras, mal organizados que gostavam de considerar-se os herdeiros do antigo clube Fogo do Inferno, sem seu comportamento criminal. — Isso é verdade na maior parte — concordou Lucien — A maioria deles é formada por jovens que gostam de se acreditarem arrojados e perigosos. No final de um ano ou dois, tornam-se muito velhos para seguir cometendo as travessuras infantis do grupo e o abandonam. Mas existe um círculo íntimo denominado os Discípulos que talvez esteja empregando as bebedeiras e a freqüência em prostíbulos como cobertura para outras atividades menos aceitáveis. — Fez uma careta. — O que significa que, em um futuro previsível, vou passar muito tempo em companhia de homens de interesses, mas bem limitados. 12


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— Meus convidados são todos Discípulos? — A maioria deles, creio, embora seja difícil ter certeza. — Lucien franziu o cenho. — É uma lástima que não tenha vindo o irmão de Roderick Harford, lorde Mace. Creio que os dois, junto com seu primo lorde Nunfield, constituem a espinha dorsal da organização. Tenho que ganhar a aprovação de Mace para ser admitido no grupo. — Suponho que já conhece Mace, não? Imagino que, por norma, conhece todo mundo em Londres. — Nem tanto, embora o tento. Mace e eu somos meros conhecidos, ele não é o tipo de homem que eu escolheria como amigo. Suspeita de todo o mundo, e particularmente de mim. — E com razão — disse Rafe com voz cortante. — Suponho que aqui há implicações políticas, ou do contrário não estaria investigando esse grupo. — Supõe bem. Ao menos um funcionário do governo sofreu chantagem por algo que aconteceu durante uma das orgias dos Demônios. Felizmente, teve a sensatez de ir até mim, mas pode ser que haja outras vítimas que não o tenha feito. — Lucien observou o conhaque que continha sua taça. — Também tenho razões para acreditar que alguém do grupo está vendendo informação aos franceses. As sobrancelhas escuras de Rafe se juntaram. — Seria terrível se fosse verdade, mas agora que Napoleão já não está , um espião não deveria ser uma grande ameaça. — Durante a guerra, morreu um de meus agentes na França porque um homem de Londres revelou sua identidade à polícia de Napoleão. E ainda houve mais danos. — Lucien entreabriu as pálpebras. — Pode ser que a guerra tenha terminado, mas eu ainda não estou preparado para esquecer e perdoar. — Se o responsável for um Demônio, será melhor que espere receber ajuda do inferno. — O duque sorriu. — Inclusive assim, eu te respaldarei para que ganhe. — Naturalmente — disse Lucien em tom mais leve. — Como chefe dos Anjos Caídos, eu sou o primeiro que tem direito a reclamar ajuda dos diabos. Rafe se pôs a rir, e ambos relaxaram em um amistoso silêncio. O duque, contemplando ociosamente as chamas, perguntou: — Alguma vez se perguntou quantos quilos de queijo torramos em frente a fogos como este em nossos dias de colégio? Lucien soltou uma risada. — Não posso dizer que eu não me tenha perguntado isso, mas agora que expuseste a questão, não poderei dormir calculando quantos. Rafe ficou sério de repente e disse: — É cansativo querer saber sempre a resposta? — Muito — respondeu Lucien laconicamente, perdendo o sorriso. Depois de um prolongado silêncio, o duque disse em voz baixa: — Nenhum homem pode salvar o mundo, por muito que se esforce. — Isso não significa que não tenhamos que tentar Rafael. — Lucien dirigiu à seu amigo um olhar irônico. — O problema que têm os velhos amigos é que sabem muito. — Certo — respondeu Rafe calmamente. — Mas isso também é uma vantagem. — Pela amizade. — Lucien levantou sua taça e a seguir bebeu um longo gole de conhaque. Era irônico que ele e seus três amigos mais íntimos de Eton tivessem adquirido o apelido de Anjos Caídos quando invadiram Londres depois de sair de Oxford. Exceto o próprio Lucien, eram os homens mais honoráveis do mundo. Quando a tragédia destroçou a infância de Lucien, o que lhe salvou foi o caráter bondoso e alegre de Nicholas, a tranqüila aceitação de Rafe, e a inquebrável 13


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lealdade de Michael. Se não tivesse sido por eles, teria sido consumido pela solidão e o sentimento de culpa. Sabia que era incrivelmente afortunado por ter seus amigos. Não era culpa de ninguém que nem sequer uma profunda amizade pudesse reparar o dano sofrido por uma alma que tinha sido rasgada pela metade. Enquanto apurava sua taça, recordou o incidente que havia se produzido no corredor. — Tive que separar Roderick Harford de uma de suas criadas, uma moça chamada Kitty. Pretendia ampliar as obrigações da jovem de um modo que não agradava a ela. Rafe fez uma careta. — Harford é um ordinário. Espero que não volte a me pedir que o convide a vir outra vez, isso poderia pôr em perigo inclusive uma velha amizade. A garota encontra-se bem? — Um pouco agitada, mas não ferida. Disse-lhe que por esta noite deixasse o trabalho que restava por fazer e que fosse se deitar, que eu me encarregaria de desculpá-la com você. — Muito bem. Pela manhã falarei com a governanta para me assegurar de que não castigue essa moça por abandonar suas obrigações. — Bocejou e ficou de pé. — Você vai partir com os outros amanhã, ou ficará uns dias? — Vou retornar a Londres. Tenho muito que fazer antes de me converter em um verdadeiro Demônio. — Oh, eu não sei nada disso. Só te lembre do primeiro ano que todos estivemos em Londres. Os dois riram, e depois Rafe partiu. Lucien continuou olhando o fogo. Como homem que desgostava dos excessos, não sentia nenhuma vontade de infiltrar-se no clube dos Demônios, mas não tinha mais outro jeito a não ser fazê-lo. Embora o que tinha explicado a Rafe era verdade até onde sabia, o que não havia dito era que tinha seu aguçado instinto de caçador em pleno estado de alerta. O clube do Fogo do Inferno original de cinqüenta anos atrás havia sido famoso tanto por sua libertinagem como pelos excessos de seus membros, entre os quais se encontravam muitos dos homens mais influentes da Inglaterra. O clube tinha sido fundado por sir Francis Dashwood, um homem muito rico e depravado. Além de elevar a corrupção a novas alturas, os membros se divertiram burlando a religião e jogaram na política com conseqüências de grande repercussão. Se não tivesse sido pelo clube do Fogo do Inferno, muito provavelmente as colônias americanas não teriam se rebelado e se convertido em uma nação independente. Os atuais Demônios não tinham pretensões tão elevadas. Na teoria, simplesmente formavam uma dissipada associação que se regalava à bebida e às prostitutas, não muito diferente de outra dúzia de grupos semelhantes. Entretanto, Lucien tinha a sensação de que atrás daquela fachada havia algo muito errado, e estava decidido a descobrir do que se tratava. Era uma lástima que não gostasse das orgias. Na manhã seguinte, o grande salão do castelo de Bourne fervia de hóspedes e seus serventes preparados para partir. Protegido pelo estrépito geral, o duque disse a Lucien: — Perguntei à governanta pela criada. Harford me disse que é um membro da servidão: era o primeiro dia de trabalho da moça, e pelo visto ele a alterou tanto que saiu fugindo no meio da noite. Lucien pensou no ar de vulnerabilidade da jovem. — Parecia tímida. Espero que tenha a sensatez de procurar seu próximo emprego em uma casa mais tranqüila. O lar de um vigário, talvez. — Há um detalhe estranho: a governanta me disse que a garota se chamava Emmie Brown, não Kitty. 14


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Surpreso, Lucien disse: — Não poderia tratar-se de duas moças diferentes? — Não, Emmie Brown era inquestionavelmente a criada com quem você falou, e não há nenhuma Kitty empregada na casa. Lucien se encolheu de ombros. — Pode ser que Kitty fosse um apelido de infância que a garota soltou impulsivamente porque estava alterada. Era uma explicação plausível. Entretanto, enquanto conduzia de volta a Londres, mais de uma vez se surpreendeu perguntando-se por aquela jovem tinha dois nomes. Isso lhe dava um ar de mistério, e os mistérios não o agradavam.

CAPITULO 4

O passo seguinte da campanha de Lucien para ser aceito pelos Demônios se deu na noite seguinte ao retornar a Londres, quando visitou uma taberna chamada A Coroa e o Abutre, sede das farras mensais do grupo. Roderick Harford o tinha convidado a ir e lhe disse que também estaria ali seu irmão, lorde Mace. Caía uma fria chuva, e Lucien se alegrou de entrar no ambiente quente e cheio de fumaça da taberna. A taverna que havia na frente estava lotada de homens mal vestidos trabalhando. Depois de dar uma olhada à cara indumentária de Lucien, o homem que atendia ao balcão apontou com o dedo polegar às suas costas. — Seus elegantes amigos estão ali. Enquanto Lucien atravessava o salão em direção à parte posterior do edifício, acompanhoulhe uma explosão de risadas. Os Demônios estavam de bom humor. Deteve-se um instante na soleira para examinar o lugar. Era a primeira vez que visitava A Coroa e o Abutre. Iluminada por um fogo e um punhado de velas, viu uma c ena agradável em uma noite de inverno. Havia umas duas dúzias de homens ajeitados ao redor das mesas, com jarras nas mãos. A maioria deles era jovem, mas também havia alguns de mais idade. Viu também uma mulher, uma garçonete um tanto descarada que interca mbiava sarcasmos engraçados com seus clientes. Alta e voluptuosa tinha o rosto muito maquiado e usava uma suja cabeleira composta por uma massa de cachos de uma chamativa cor vermelha que lutavam para escapar da touca. Sua surpreendente figura era enfatizada pelo avental que usava ao redor da cintura, notavelmente estreita. Entretanto, o que tinha embevecidos os homens era sua ágil língua com vocabulário chulo. Quando um jovem lhe perguntou em tom de recriminação: —Por que está de repente tão antipática comigo? Ela respondeu com aspereza: — Porque economiza tempo. Estalou uma gargalhada geral. Quando sossegou, outro jovem exclamou: —Conquistaste meu coração, querida Sally. Vêem comigo esta noite e cavalgaremos até Gretna Green. —Todo esse caminho no lombo de um pangaré cheio de ossos? — Rebolou os quadris de forma sugestiva. — Posso encontrar uma montaria melhor aqui em Londres. O duplo sentido produziu mais gargalhadas. Quando se desvaneceram, o pretendente disse 15


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com um exagerado sorriso impudico: —Não encontrará melhor cavaleiro que eu, Sally. —Saia, pirralho — se burlou ela. — Não sabe nenhuma palavra sobre montar, e eu posso demonstrá-lo. —Como? — perguntou ele, indignado. A jovem inclinou o cântaro e verteu sem cuidado, mais bebida na jarra do rapaz. — Dizendo que se o mundo fosse um lugar sensato, todos os homens montariam de lado. Aquele comentário revolucionou a todos ali presentes. Até Lucien riu a gargalhadas. Uma vez ganho o duelo verbal, a moça saiu andando do salão, rebolando provocativamente. Possuía uma sensualidade terrestre capaz de atrair a atenção de qualquer homem. —Assim Lúcifer se dignou nos fazer uma visita. Meu irmão me disse que talvez viesse — disse devagar uma voz profunda. — Deve sentir-se como em casa entre os moradores do inferno. Lucien olhou a sua direita e viu lorde Mace ajeitado em um canto em que podia observar tudo o que ocorria na sala. Tão alto e magro como seu irmão menor, Mace constituía uma atraente figura de cabelo escuro e olhos sem luz. Tomando o comentário de Mace como um convite, Lucien se aproximou lentamente até o assento vazio que o homem tinha ao lado. —Farei tudo o que puder. Ia dizer mais, mas se interrompeu freado por algo que não esperava ver: atrás de Mace havia um cabide de madeira, e sobre ela uma enorme a ve com a cabeça coberta por um capuz que se movia passando o peso de uma pata à outra. —Quem é seu amigo emplumado? Os estreitos lábios de Mace se esticaram em um sorriso. —Este é George, o abutre que dá nome a este lugar. O dono da taberna foi ator em outro tempo, e aluga o abutre cada vez que se necessita um no teatro. — Dirigiu à ave um olhar afetuoso. — Lhe dá um toque agradável, não é? —Decididamente ambiental — admitiu Lucien. Nesse momento Sally apareceu com um cântaro cheio em uma mão e uma jarra na outra. Colocou a jarra diante de Lucien. —Aqui está, bonitão. Que se delicie com o ponche do diabo. E partiu com um rebolado dos quadris. Tinha desviado o olhar e seu rosto ficou eclipsado pela chamativa cabeleira, mas a fugaz visão que Lucien conseguiu captar de suas feições revelou que estava tão maquiada que talvez tentasse dissimular possíveis cicatrizes de varíola. Não que aquilo importasse; poucos homens se lembrariam da moléstia ao olhá-la no rosto. A jarra continha cerveja morna acrescentada de uma potente dose de álcool. —Já vejo por que chamam isto de ponche do diabo — comentou. — Queima igual às chamas do inferno. —Depois de duas jarras, será capaz de recitar as sagradas escrituras ao reverso — disse Mace com sardônico humor. — Ou me acreditarei capaz de fazê-lo, o que equivale ao mesmo. — Lucien fez um gesto com a cabeça em direção à garçonete. —Alguma vez ela atende nas cerimônias? Tem aspecto de ser bastante animada. Mace fechou os olhos. — O que sabe você de nossos rituais? —Corre o rumor de que os Demônios se disfarçam de monges medievais. Depois de uma cerimônia, cada «monge» escolhe um par em um grupo de «monjas» recrutadas entre as melhores prostitutas de Londres. Dizem que algumas dessas monjas são de fato damas da sociedade que saem para se divertir. — Lucien soltou um sorriso malvado. — Ouvi dizer que em certa ocasião 16


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um monge e uma monja ficaram horrorizados ao despir-se e descobrir que eram marido e mulher. Mace juntou suas grossas sobrancelhas. — Está bem informado. —Se metade de seus membros bebem como esponjas, não se pode esperar que sejam discretos. — Lucien esboçou um sorriso desbotado. — Me pareceu que seu grupo estava de bom humor. Ultimamente a vida está se tornando aborrecida, por isso aceitei o convite de seu irmão. —Fazemos o que podemos para evitar o aborrecimento — Mace estudou o rosto de Lucien com franco cepticismo no olhar. — Roderick me disse que você está interessado em unir-se a nós. Surpreende-me. Dá a impressão de ser muito refinado, muito esnobe para querer tomar parte de um grupo que se dedica à vida dissipada. —Eu gosto dos contrastes. E também gosto de intriga. — Lucien dedicou longos segundos a arrumar o punho da camisa. — Sobretudo, eu gosto de confundir as expectativas das pessoas. Mace sorriu ligeiramente. —Então temos algo em comum. —Creio que temos também outros interesses mútuos. Ouvi dizer que lhe interessam os brinquedos mecânicos. — Quando Mace assentiu de novo, Lucien extraiu de seu bolso um objeto de prata de forma cônica. — Viu alguma vez algo como isto? Olhe pela ponta. Mace elevou o cone até o olho e olhou dentro, e em seguida conteve a respiração. —Fascinante. Leva algum tipo de lente que fragmenta o mundo em várias imagens idênticas? —Exato. — Lucien tirou um segundo objeto igual do bolso e olhou por ele. Imediatamente, a estadia se dividiu em múltiplas imagens. — Conheço um naturalista que se interessa pelos insetos. Em certa ocasião me disse que as libélulas têm olhos divididos em facetas e que devem ver assim. Pareceu-me muito curioso, de modo que decidi tentar reproduzir o efeito. Um cortador de lentes me fez estas seguindo minhas especificações, e eu me encarreguei de procurar quem as montasse. Na falta de um nome melhor chamo de lente de libélula. Piscou quando, em um rápido olhar pelo local, através do objeto se topou com Sally de repente. Uma dúzia de pares de exuberantes seios se balançou diante dele, e também uma dúzia de esbeltas cinturas. O efeito resultava bem assustador. —Você fabrica alguma outra curiosidade mecânica? — perguntou Mace. Lucien abaixou a lente de libélula, reduzindo Sally a uma singularidade. — Eu mesmo desenho e construo os mecanismos, mas tenho um ourives que se encarrega de fazer a parte exterior. —Eu mesmo faço. — Mace esboçou um sorriso curto e reservado. — Ao longo dos anos consegui reunir uma coleção de objetos mecânicos que é absolutamente única. Talvez se ensine algum dia. Tentou devolver a lente de libélula, mas Lucien fez um gesto de rechaço com a mão. — Fique se gostar. Eu tenho várias. —Obrigado. — Mace contemplou pensativamente Lucien. — Gostaria de assistir a próxima vez que celebrarmos um ritual? —Eu adoraria. Mace levantou de novo a lente e observou Sally. —Uma fêmea, mas bem exagerada. A moça que está acostumada a estar aqui normalmente é mais do meu gosto..., mais esbelta, menos vulgar. —Essa é outra coisa que temos em comum. Nesse momento se aproximou um homem para falar com Mace, de maneira que Lucien abandonou seu assento. Jarra na mão estudou com o olhar seus companheiros. A maioria dos 17


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Demônios recordava amalucados estudantes universitários, mais revoltosos que malvados. No outro canto do salão havia um jovem muito bêbado que desabotoou as calças e disse com ar tosco e presunçoso: — Viu o que tenho reservado para ti, Sally? Depois de lhe dirigir um olhar aborrecido, ela respondeu: — Já vi melhores. Em meio das risadas e uivos que se seguiram, o jovem, com o rosto avermelhado, voltou a fechar a calça enquanto a garçonete saía do lugar caminhando com toda calma. Lucien sorriu abertamente e depois voltou sua atenção aos Demônios de mais idade, entre os quais se encontravam os libertinos mais notórios de toda Londres. Alguns estavam sentados juntos, de modo que foi se reunir com eles ao ver que sir James Westley fazia um gesto para que se aproximasse. — Me alegro de lhe ver, Strathmore. Queria lhe dizer o muito que gostei da visita ao castelo de Bourne. — O robusto barão soltou um ligeiro soluço e o rebateu com um gole de ponche. — Fez um bom trabalho ao organizar a visita com Candover. Já o vi dar sessões na Câmara que derrubariam um elefante, mas foi um anfitrião agradável. Seu vizinho era lorde Nunfield, um primo de Mace e Roderick Harford que tinha a mesma constituição arredondada deles. Disse em tom aborrecido: — Tem sorte de ter um amigo que vive em uma região tão boa para a caça, Strathmore. — Curvou a boca em um sorriso zombador característica. — Tenho entendido que você e Candover são amigos íntimos desde que iam ao colégio. A insinuação sexual era inconfundível. Com deliberada ambigüidade, Lucien r espondeu: — Você já sabe como é o colégio. — Os meninos sempre serão meninos — concordou Harford. Seu olhar posou na garçonete, cujos seios se agitavam deliciosamente enquanto servia ponche em uma mesa próxima. — Mas eu creio que nos colégios deveria haver também estudantes femininas. As aulas seriam muito mais interessantes. Uma faísca de interesse brilhou nos olhos de lorde Chiswick, o último homem que estava sentado à mesa. Filho de um bispo tinha dedicado sua vida a violar todos os Dez Mandamentos que lhe tinha sido possível. — Ultimamente me aborrecem as falsas monjas. Provavelmente seria divertido que nossas companheiras de jogos se disfarçassem de colegiais na próxima vez. Seria um maravilhoso contraste entre inocência e experiência. Harford assentiu pensativo. — Vale a pena estudá-lo. Recorda-me à filha do guarda-florestal, quando eu tinha quatorze anos. — Começou a descrever o encontro com tanto detalhe que foi tedioso. A anedota foi seguida pelas lembranças de outros dos presentes. Até Lucien fez sua contribuição contando uma história, embora fosse completamente inventada; não tinha por costume falar de seus namoricos com ninguém. Foi uma tarde insossa, a conversa raramente se levava mais acima da cintura. Não obstante, do ponto de vista de Lucien foi um tempo bem investido. Quando soaram as badaladas da meianoite, todos os Demônios pareciam tê-lo aceitado como um dos seus. Para combater o aborrecimento, manteve em todo momento o olho atento às freqüentes idas e vindas de Sally. Ácida e zombadora era uma perita em divertir seus clientes e ao mesmo tempo afastar de um lado mãos muito longas. Não era precisamente o tipo de mulher que normalmente despertava seu interesse, mas havia algo nela que lhe intrigava uma esquiva sensação de familiaridade. Ou melhor, tinha visto ela antes em algum lugar. 18


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À uma da madrugada, a maioria dos Demônios tinha partido e Lucien estava pensando que também era hora de ir. Então viu que o mais falador dos jovens admiradores da garçonete, lorde Ives, ficava em pé com dificuldade e a seguia com passo decidido até o exterior do estabelecimento. Embora a moça parecesse ser bastante capaz de cuidar de si mesma Lucien não pôde reprimir seu instinto protetor, de maneira que se despediu de seus companheiros que ainda estavam acordados, levantou-se e seguiu Ives e Sally em silêncio. A velha taberna era um labirinto de corredores ladrilhados. A garçonete se encaminhou com passo apressado por um deles, fazendo ruído com os saltos, e dobrou à esquerda, e em seguida à esquerda outra vez, até acabar em um armazém meio cheio de barris de cerveja. Parecia não ter se dado conta de que Ives a seguia de perto, deixou a vela sobre um barril e se inclinou para encher um cântaro. Lucien se deteve nas sombras do corredor. Se não fosse necessária sua ajuda, desapareceria. Não faria nenhum bem a sua imagem de libertino continuar defendendo a mocinhas em apuros, e ali aonde iam os Demônios havia mocinhas em apuros com certa regularidade. Quando a garçonete se levantou de novo, Ives lhe perguntou com voz turva: — Se não quiser cavalgar comigo, Sally, preciosa, pelo menos me dará um amasso rápido antes de ir para casa? Ela se sobressaltou e derramou um pouco de cerveja do cântaro, e a seguir disse com amabilidade: — Ainda que eu quisesse, o que não é o caso, duvido que fosse de utilidade, moço. O álcool pode aumentar o desejo, mas faz desaparecer a capacidade. Lucien se surpreendeu de ouvir uma citação de Shakespeare na boca de uma garçonete. Mesmo assim, não havia razão alguma para que Sally não gostasse do dramaturgo tanto como um aristocrata. Ives, menos literário, disse: — Se dúvida de minha capacidade, prove-me e te demonstrarei o contrário. Os cachos de cor cenoura da jovem se balançaram quando ela sacudiu a cabeça em um gesto negativo. — Meu homem se chama Assassino Caine, e não gostaria nada que eu distribuísse minhas atenções por aí. — Deu um empurrãozinho em Ives. — Vá para casa, moço, e te coloque na cama para dormir sozinho. — Então me dê um beijo. Só um beijo. Antes que ela pudesse replicar, Ives a atraiu para si e a abraçou, esmagando sua boca contra a dela e lhe espremendo o generoso seio com uma mão. Lucien adivinhou que Ives não pretendia lhe causar verdadeiro dano, mas em sua bebedeira não era consciente de sua força nem se dava conta de que a mulher estava lutando para escapar. Recordou com desagrado à donzela do castelo de Bourne e decidiu intervir. Deu um passo à frente, mas antes que pudesse entrar no ambiente que faziam de armazém, Sally deu um forte pisão no pé de seu admirador. — Ai! — exclamou Ives, e levantou a cabeça. Sem retirar a mão do seio, perguntou-lhe em tom de recriminação—: Por que fez isso? — Para me libertar, pirralho — respondeu Sally sem fôlego. — Não vá — rogou ele, apertando o globo amadurecido que lhe enchia a mão. Ela deu outro empurrão no seio e conseguiu escapar dele. Antes que Ives pudesse agarrá-la de novo, a jovem lhe alfinetou: — Não sou o que você quer, a não ser isto. — Introduziu a mão no corpete e tirou um enorme busto postiço que lançou no rosto de seu atacante. — Que passe bem, pirralho. 19


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Ives a soltou e se inclinou para trás sobre os calcanhares quando aquele objeto mole e parecido com um travesseiro ricocheteou no nariz antes de cair no chão. Ficou olhando assombrado as onduladas curvas de algodão e depois voltou a por o olhar na garçonete. Agora as pregas de seu corpete caíam frouxos sobre um seio de modestas dimensões. Para mérito dele, o jovem pôs-se a rir. — É uma mulher de coração falso, Sally. — Não é meu coração que é falso — replicou ela em tom impertinente. — Agora me largue de uma vez para que possa fazer meu trabalho. — Sinto muito... Agi mal — disse Ives. — Estará aqui na próxima vez que os Demônios se reunirem? Sally encolheu os ombros. — Pode ser que sim, pode ser que não. Ives lhe mandou um beijo pelo ar e saiu do armazém pela outra porta, que levava a parte dianteira da taberna. Sally ainda estava olhando para ele quando ouviu o sorriso de Lucien. Deu um salto, virou-se bruscamente e o descobriu nas sombras. — Mas se não é o próprio Lúcifer em pessoa — disse em tom mordaz. — Gostou do espetáculo? — Imensamente. — Penetrou no cômodo. — Pensei que talvez necessitasse de ajuda, mas é evidente que me equivoquei. — Lúcifer em resgate? — disse ela com duro sarcasmo. — E eu que acreditava que queria uma parte de meu traseiro postiço. Agora que já não usava o falso busto, era óbvio que só sua magra cintura era natural. Se tirasse o enchimento dos quadris, ficaria uma figura leve e feminina que Lucien achava mais atraente que aquelas exageradas curvas de algodão. —Por que esconde uma figura que é perfeitamente agradável do jeito que é? — Pode ser que você goste das mulheres esquálidas, mas a maioria dos homens prefere uma fêmea bem roliça que tenha um bom traseiro. — Ao ver que ele sorria, disse acidamente —: Talvez pareça uma brincadeira, meu lindo milord, mas esse recheio me serve para colocar no meu bolso três libras extras por semana. — Não estou rindo de você — lhe assegurou Lucien. — Admiro a inteligência em qualquer lugar em que a encontro. Ela abaixou a cabeça, aparentemente desconcertada pelo elogio. No silêncio que seguiu, Lucien teve plena consciência da inata sensualidade da moça, que não devia nada a sua fraudulenta figura. Ela estava bastante próxima para ver que a pele que havia debaixo daquela pesada maquiagem carecia de buracos, e adivinhou que era mais jovem do que tinha lhe parecido à primeira vista. — Também estaria mais bonita sem a pintura. Ela levantou a cabeça e o fulminou com o olhar. — Não pedi sua opinião, milord. Acredite, conheço muito bem meu ofício. Seus olhos eram claros e luminosos, embora não conseguisse identificar a cor com aquela tênue luz. De novo experimentou a incomoda sensação de que ela lhe era familiar, e disse: — Tenho a sensação de que a vi antes. Alguma vez trabalhou em um teatro? Ela pareceu horrorizar-se. — Pode ser que seja garçonete, mas não há nenhum motivo para que me insulte. — Nem todas as atrizes são prostitutas — repôs ele mansamente. — A maioria, sim. Antes que ele pudesse replicar, uma voz chamou da sala da taberna: 20


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— Sally, onde diabo se enfiou? Ela recolheu o busto postiço e se voltou ostentosamente. — Se me desculpar, tenho que recolocar o enchimento. Lucien se deu conta que se sentia estranhamente resistente a partir. Sally lhe intrigava, e desejava saber mais a respeito dela. Era um impulso que lhe consternava, pois nunca tinha sido muito dado a seduzir criadas. Disse em tom leve: — Diga ao Assassino Caine que é um homem de sorte. Mas quando saiu da taberna, surpreendeu-se esperançoso de que lorde Mace convidasse à garçonete na próxima orgia, e de que ele pudesse reconhecê-la disfarçada de monja.

Kit se recostou contra os barris, com o coração descontrolado. Como podia ter sido tão tola de ficar de bate papo com um de seus suspeitos? Em particular com lorde Strathmore, cujos olhos de pálpebras caídas não deixavam escapar nada, e cujo encanto o fazia duplamente ameaçador. A taberna devia estar enfeitiçada pelo espírito indecente de alguma garçonete desaparecida há tempo que havia se apropriado da mente e da língua de Kit, porque tinha sido impossível absterse de replicar com seu oponente. Não devia acontecer de novo. Embora Strathmore não a tivesse reconhecido como a criada do castelo de Bourne, lhe havia parecido familiar, e um novo encontro seria desastroso. Tinha ido A Coroa e O Abutre porque pensou que uma noite trabalhando entre os Demônios lhe proporcionaria um melhor conhecimento da personalidade de cada um. A garçonete habitual, Bela, não tinha querido perder uma festa tão lucrativa, mas Kit prometeu lhe passar todas as gorjetas que recebesse e mais cinco libras. Tentada mas precavida, Bela lhe perguntou por que uma dama queria fazer semelhante coisa. Kit, sem pestanejar sequer, largou-lhe toda uma história a respeito de que era a irmã de um dos Demônios e tinha apostado que seria capaz de se disfarçar de tal modo que seu irmão não poderia reconhecê-la. Divertida pela idéia, Bela disse para Kit o que tinha que fazer e em seguida a apresentou como uma prima sua que a ia substituir nessa noite, pois ela se sentia indisposta. Em conjunto, a coisa tinha ido bem. As engenhosas acuidades de Kit tinham dissimulado sua falta de experiência e ninguém suspeitou que fosse uma impostora. — Sally! — bramou outra vez o proprietário. — Deixa já de vadiar aí e te ponha a limpar a sala de trás. Depois de moldar o busto postiço para que adquirisse uma forma convincente, retornou ao trabalho com fadiga. Era exaustivo representar um papel tão distinto de sua verdadeira forma de ser, mas pelo menos, pensou amargamente, estava se acostumando a ser machucada por homens bêbados e muito carinhosos. Logo seria uma perita em escapulir-se de abraços não desejados. Como seria ser beijada por lorde Strathmore? Ele sorriria com esses olhos verdes dourados, nos quais brilhava a diversão, e seu tato seria leve e seguro. Ou melhor, uma mulher não iria querer escapar dele... Aquele pensamento a fez estremecer e acelerar o passo. Uma coisa sabia com certeza: que não ia ser como as demais. Depois de limpar a sala já vazia, retornou à taberna principal, onde ainda restavam alguns indivíduos tenazes em postura indolente junto ao fogo. Estava se preparando para partir quando um deles se levantou e se aproximou dela. Seu receio se dissolveu ao reconhecer a figura fornida e poderosa e disse com um sentimento de esperança: — Permanece acordado até muito tarde, senhor Jones. Tem algo que me comunicar? O homem negou com a cabeça. — Nenhuma só coisa desde a última vez em que nos falamos. Vim para acompanhá-la até sua casa. 21


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Tragando sua desilusão, Kit murmurou: — Bendito seja. Não gostaria nada de caminhar sozinha pelas ruas. Ele lhe dirigiu um olhar divertido enquanto ela vestia a capa. —Você cresceu, heim? Quase não me dei conta de que era você. Ela sorriu fracamente. — Essa era a idéia. O homem acendeu o candelabro que tinha trazido e sustentou a porta aberta para que Kit passasse. Uma vez fora, a jovem tremeu de frio e se aconchegou na capa para proteger-se da gelada névoa. — Esta noite vou à Rua Marshall. Ele assentiu com um gesto e ambos puseram-se a andar um ao lado do outro, iluminando o caminho com o candelabro. Quando já estiveram a uma boa distância da taberna, o homem perguntou: — Averiguou algo de utilidade? —Só em termos gerais. A maioria dos Demônios parecem bastante inofensivos. Tenho a impressão de que Chiswick, Mace, Nunfield, Harford e Strathmore são os mais perigosos. Os quatro primeiros possuem uma espécie de frieza que lhes faz parecerem capazes de qualquer tipo de maldade. — deteve-se para rodear uma poça especialmente suja. — De Strathmore não sei o que pensar. Há algo ameaçador nele, entretanto se mostrou disposto a intervir quando um dos mais jovens me abordou no armazém. O senhor Jones murmurou uma mordaz maldição. — Não deveria se colocar em situações nas quais tem que agüentar esses insultos. Kit apertou os lábios. — Espero que não me faça perder tempo tentando me convencer de novo para que mude de idéia. — A esta altura já devo ter superado isso, não acredita? — respondeu ele com ironia. — Não descarte Strathmore, porque teve um instante de cavalheirismo, mas de todo esse grupo ele foi o mais difícil de investigar. Todas minhas pesquisas terminaram em um beco sem saída. Esse homem é um mistério, e isso o converte em um indivíduo perigoso. — Seu relatório dizia que Strathmore não está há muito tempo com os Demônios, de modo que provavelmente não seja o homem que estamos procurando. — Está com eles o tempo suficiente — disse Jones com gravidade. — Não faz muito, matou dois assaltantes, um deles com suas próprias mãos. Ao menos, ele declarou que eram assaltantes. Você deve se manter afastada dele. Kit estremeceu ligeiramente ao recordar os olhos felinos do conde. — Essa é minha intenção. Depois disso já não houve nada mais a dizer. Quando eles chegaram à pequena casa da Rua Marshall, Kit convidou o senhor Jones a tomar uma taça rápida para combater o frio, mas ele declinou o oferecimento. — Se não voltar para casa logo, minha Annie começará a suspeitar. — Soltou uma gargalhada grave e profunda ao mesmo tempo em que acendia a vela de Kit com seu candelabro. — Acredita que as demais mulheres me acham irresistível, e isso faz bem a meu velho coração. — Me informará do que... — Sim — disse ele amavelmente. — Se souber de algo, lhe comunicarei imediatamente. Kit fechou a porta com chave quando ele partiu e depois se apoiou sobre ela pelo espaço de uns instantes, sentindo que os silenciosos cômodos lhe davam as boas-vindas. Como sempre, foram cedendo os medos que a atormentavam e foi possível acreditar que tudo iria bem. 22


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Endireitou-se ao notar um corpinho pequeno e quente que lhe roçava os tornozelos ronronando. — Não trate de me enrolar, Viola. Só está interessada em seu jantar. Kit pegou a gata listrada e gordinha e a subiu ao ombro, em seguida tomou o candelabro e se encaminhou para a diminuta cozinha que havia na parte posterior da casa. Era um apartamento pequeno mas cômodo, com uma sala de estar e um dormitório. No andar de cima havia um apartamento similar em que vivia a atriz Cléo Farnsworth. Embora Cléo era em realidade mais jovem que Kit, tinha um grande coração e fazia às vezes de mãe de Kit e Viola. Depois de dar de comer à gata, Kit acendeu um pequeno fogo e começou a despir-se com cansaço. A característica mais peculiar do apartamento era uma parede cheia de armários embutidos. Depois de pendurar sua roupa, abriu o armário da esquerda, no qual havia várias prateleiras com cabeças de gesso sem feições. Todas, exceto uma usavam perucas de todas as cores, todos os comprimentos, todos os estilos. Com uma sensação de alívio, tirou a peruca ruiva e passou os dedos por seu cabelo emaranhado, cor castanha claro. Também supôs um alívio tirar os recheios que alteravam sua figura e guardá-los no armário seguinte, e depois esfregar o rosto para eliminar a maquiagem. Por último se meteu na cama, onde Viola já estava roncando recostada sobre um almofadão. Enquanto esperava que lhe viesse o sono, rezou para que o descanso lhe trouxesse a inspiração que tão desesperadamente necessitava.

O ancião elevou suas sobrancelhas ao tempo que deixava entrar o visitante. — Não havia lhe reconhecido, milord. Você parece um encarregado das luzes. — Bem. Era isso o que eu pretendia. — Lucien tirou o gorro. — Obrigado por me receber tão tarde. O velho soltou um sorriso e conduziu seu hóspede à biblioteca. — Um agiota termina se acostumando aos horários excêntricos, há muitas pessoas que não desejam serem vistas. O que posso fazer por você, milord? Não creio que tenha necessidade de meus serviços. — Tem razão, não é dinheiro que necessito, a não ser informação. - Extraiu uma lista do bolso. — Eu gostaria de saber quais destes homens recorreram a você ou a colegas seus. Em particular, se houver algum que tenha necessitado de dinheiro desde que o imperador abdicou na primavera passada. Ou se alguém tomou um empréstimo antes, mas o necessitou mais recentemente. O ancião lhe dedicou um olhar perspicaz, mas se absteve de expressar em voz alta suas deduções. Depois de examinar a lista, disse: — Falarei com meus colegas e depois lhe darei alguma informação. — Deixou o papel sobre a mesa e disse devagar — : Há um pequeno assunto. Não estou seguro de mencioná-lo, mas... Ao ver que não terminava a frase, Lucien lhe insistiu: — Sim? — Um jovem que me deve uma considerável soma de dinheiro me disse que no centro e no leste da Europa as pessoas como eu são vítimas da violência da ralé. Uma revolta, um incêndio, e nas cinzas ficam canceladas todas as dívidas pendentes — Estendeu as mãos, com preocupação no rosto. — Fingiu que se tratava de uma brincadeira, mas eu não creio que fosse. Lucien franziu o cenho. — Isso não aconteceu na Grã-Bretanha durante séculos, mas a ralé é imprevisível. Como se chama esse jovem? — Quando o homem disse, assentiu com expressão dúbia. — Muito bem. Não 23


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tem nada que temer, esse indivíduo não voltará a lhe incomodar. O ancião disse com nervosismo: — O que vai fazer? Não queria carregar uma morte, embora seja a de um porco avaro e depravado. — Nada tão drástico. Além disso, se morrer ele não poderia lhe pagar a dívida. Sei de uma coisa que lhe persuadirá a comportar-se como é devido. Com o semblante mais relaxado, o homem disse: — Tem tempo para tomar uma xícara de chá, milord? — Esta noite, não. Tenho umas visitas mais a fazer no East End. Voltarei dentro de três noites. — E depois de despedir-se com um aperto de mãos, desapareceu na noite. Enquanto retornava à biblioteca, o ancião se perguntou que tipo de visitas teria que fazer o conde. Encolheu-se de ombros e abriu um livro de contas. Duvidava que sua imaginação chegasse tão longe.

CAPITULO 5

Lucien introduziu o mecanismo saltitante na estatueta de prata e estudou o encaixe das duas peças. Muito justo em um ponto. Tirou o artefato, pegou uma lixa de joalheiro e começou a raspar a parte indicada. Estava fazendo um objeto como presente de bat ismo do menino que esperava seu amigo Nicholas e queria que fosse especial. Também sabia por experiência que a concentração que requeria aquele trabalho permitia que os lugares mais recônditos de sua mente fossem desfazendo-se em uma combustão lenta até que os dados desconexos começassem a adquirir formas novas. Por desgraça, esta noite sua mente não fazia progresso algum. Estava acumulando informações a respeito de todos os Demônios, uma mescla de cuidadosas investigações financeiras e de impressões pessoais. Entretanto, não se achava mais perto de saber qual deles podia ser um espião que o dia em que começou as suas quixotescas pesquisas. Sua única prova era uma informação que tinha chegado de um de seus agentes em Paris. Nos arquivos do chefe de inteligência de Napoleão, o agente tinha encontrado várias referências misteriosas a uma valiosa fonte de informação inglesa. Uma das referências dizia implic itamente que o informante era membro do clube dos Demônios. Aquilo era tudo o que Lucien tinha para trabalhar. Supunha que o espião estava motivado pela cobiça mais que por idéias políticas, mas isso não servia de grande ajuda; resultou que a metade dos Demônios tinha problemas econômicos provocados pelo jogo e por gastar acima de suas possibilidades. Terminou de lixar, recostou-se para trás e esticou os adormecidos músculos. Normalmente tinha paciência quando tinha que tê-la, mas se sentia inexplicavelmente inquieto. Estava começando a cansar-se de passar tanto tempo com os Demônios. Pela manhã sairia em outra partida de caça, desta vez na propriedade de lorde Chiswick. Embora não se trata sse de uma atividade oficial dos Demônios, a outra meia dúzia de convidados eram todos membros veteranos do clube. Não formavam um grupo muito estimulante; para Lucien custava um esforço considerável mesclar-se e comportar-se como um deles. Passou-lhe pela mente a imagem da exuberante garçonete de A Coroa e o Abutre. Com um sorriso irônico, compreendeu que sua inquietação obedecia a algo mais básico: seu corpo desejava uma mulher. Deu uma olhada ao relógio e viu que eram onze horas. Não muito tarde para ir a um 24


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dos discretos prostíbulos que atendiam aos cavalheiros ricos e com discernimento, e aonde as mulheres eram cálidas e bem dispostas. Vacilou, debatendo-se entre a luxúria e a prudência, antes de sacudir a cabeça em um gesto negativo. Sua necessidade não era ainda demasiada forte para que aquele capricho valesse à pena o que ia lhe custar. Pela enésima vez, desejou ser como outros homens e poder levar uma mulher para cama sem sofrer emocionalmente. Por desgraça, para ele isso era impossível. Quando era um esplêndido jovenzinho, tinha perseguido com entusiasmo os prazeres que ficavam a disposição de um homem rico. A paixão era tão embriagadora que levou anos para reconhecer que a gratificação sexual invariavelmente vinha seguida da depressão. Havia um antigo epigrama que dizia: post coitns, triste, quer dizer, depois do coito, tristeza. Mas o que Lucien sentia ia muito além da triste sensação de mortalidade que às vezes experimentavam outros homens; seus ataques de melancolia eram mais profundos e duravam várias horas, em algumas ocasiões dias inteiros. Depois de sondar os cantos mais escuros de sua mente, chegou à conclusão de que o problema era a falsa ilusão de intimidade que provocava o acasalamento. Quando terminava o encontro e retornava a sua solidão, sempre seguia a desolação. Quando por fim compreendeu o alto preço que estava pagando por uns poucos minutos de prazer, escolheu com pesar uma vida mais monástica. Ocasionalmente, quando a paixão e o desejo de proximidade superavam seu autocontrole, saía a procurar uma mulher, sempre com a esperança de que dessa vez fosse diferente, de que pudesse dar e receber prazer e despertar com um sorriso no dia seguinte. Mas isso nunca tinha ocorrido. Seu olhar se fixou no retrato a carvão de si mesmo e de sua irmã, Elinor, desenhado dois anos antes da morte dela. Era obra do artista que tinha ido a Ashdown, a propriedade dos Strathmore, para realizar um retrato formal a óleo de toda a família. A pintura era bela e ocupava um lugar de honra, mas Lucien preferia o desenho a carvão, que conseguia captar melhor o delicado e sobrenatural encanto de Elinor. Contemplou atentamente as duas cabeças loiras tão perto uma da outra. Ambas luziam essa expressão despreocupada das crianças nascidas de pais amorosos e que jamais conheceram a crueldade nem padecido necessidades. Às vezes custava recordar que já tinha sido tão feliz. Com o rosto tenso, voltou a inclinar-se sobre a bancada de trabalho e estendeu uma mão para pegar a chave de fenda menor. Se ele se concentrasse o suficiente, poderia perder-se de novo.

Kit tinha levado diligentemente à prática as instruções de Henry Jones, e levou só alguns minutos para forçar a simples fechadura das portas duplas. Depois de entrar na biblioteca às escuras, conteve a respiração e escutou atentamente. Ao longe soavam risadas em tom de soprano. Lorde Chiswick podia ser qualquer coisa menos pouco hospitaleiro; trouxera dez prostitutas de Londres para que entretivessem seus hóspedes. A noite era uma criança, de modo que tinha tempo para revistar a maioria dos quartos dos convidados. Estava se convertendo em uma delinqüente perita; já que desta vez, entrar desta forma em uma casa, só a aterrorizava, mas não a fazia tremer de pânico. Subiu sem fazer ruído às escadas de trás que levavam aos quartos dos convidados. Não tinha podido conseguir outro emprego de criada, mas suas indagações no povoado a conduziram até um homem mal-humorado que tinha sido antigo lacaio de Chiswick. Por uma modesta soma, o homem lhe descreveu os costumes da casa e lhe desenhou uma planta do edifício. Também lhe disse que Chiswick sempre levava prostitutas à suas festas, para escândalo da vizinhança. Aquilo deu a Kit a idéia de vestir-se de prostituta e penetrar na casa para continuar com suas investigações. Uma peruca loira e uma versão modificada do enchimento e os cosméticos que 25


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usou para ser Sally a fariam parecer uma rameira como Deus manda. Qualquer hóspede que a visse suporia que fazia parte do entretenimento proporcionado por Chiswick. Franziu o cenho ao ver que desta vez não havia cartões que identifica vam os ocupantes dos quartos. Teria que identificá-los ao mesmo tempo em que efetuava a revista. Com as palmas das mãos úmidas, deslizou-se para o interior do primeiro quarto.

Lucien soube que a orgia estava começando quando a voluptuosa ruiva que estava a sua direita se sentou em seus joelhos. — Parece muito sozinho, querido — paquerou. — Deixa que Lizzie cure isso. — Rodeou-lhe o pescoço com os braços e lhe plantou um beijo com sabor de vinho. Foi um encantador abraço que lhe recordou à garçonete Sally, embora o corte do vestido de Lizzie não deixava lugar a dúvidas de que suas curvas eram autênticas. À medida que o beijo ia prolongando-se. Lucien pensou em aceitar sua oferta. Havia passado muito tempo desde a última vez que esteve com uma mulher... muito. Talvez a alegre franqueza de Lizzie lhe impedisse de cair na melancolia depois. Mas aquilo era fazer muitas ilusões; envolver-se inconscientemente com uma desconhecida provocava as piores depressões. Um instante depois, lamentaria ter sucumbido à tentação. Não tinha tanto interesse para que valesse a pena. Por outro lado, o celibato se fazia notar muito em meio a uma orgia. Se não participasse, ao menos devia dar a impressão de estar fazendo-o. As coisas tinham progredido enquanto ele beijava Lizzie. Ouviu um profundo grunhido masculino que surgia por debaixo da mesa, e ao abaixar a vista viu uma mulher demonstrando sua destreza profissional com Roderick Harford. Chiswick, com os braços ao redor de duas loiras, encaminhava-se para uma sala contínua provida de um suave tapete e de um fogo acolhedor. Nunfield estava deitado de barriga para baixo, chupando os dedos dos pés de uma morena. Outros convidados estavam também se acasalando em diversos cantos. Lucien deixou que a ruiva ficasse em pé outra vez e se levantou da cadeira. Jogou-lhe um braço ao redor dos ombros e a acompanhou ao exterior da sala de jantar, até o corredor. — Você não gosta de ter público, querido? Eu penso o mesmo. — Se acomodou contra ele e começou a lhe acariciar com mão perita. Aquilo quase bastou para fazer pedacinhos de sua resolução, mas não de todo. — Sinto muito, Lizzie, mas esta noite prefiro dormir sozinho. — largou-se dela suavemente. — Sofri uma forte queda caçando e tenho hematomas em toda parte que me causa incômodos. — Está certo disso? — disse ela, tentadora. — Tenho que fazer algum trabalho e você é o melhor de todos. Ao notar umas leves olheiras sob os olhos da jovem, Lucien sugeriu: — Por que você não vai descansar também? Ela titubeou. — Para falar a verdade, tive um dia muito cansativo e não me importaria em dormir profundamente por uma noite inteira. Mas os negócios são negócios, e lorde Chiswick gosta de tirar proveito de seu dinheiro. — Amanhã direi aos outros que esteve sensacional. Chiswick jamais saberá. Ela sorriu abertamente. — Muito bem, será nosso segredo. — Percorreu-lhe de cima abaixo com admiração. — Te devo uma, querido. Vêem ver-me alguma vez, quando nós dois estivermos mais animados. Lizzie Lariche, me procure no vestíbulo do Teatro Real. Deu-lhe boa noite e se dirigiu para seu quarto, não sem uma pontada de arrependimento. 26


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Era uma moça atraente, e talvez a procurasse na próxima vez que a luxúria vencesse a prudência. Para sua surpresa, viu que por debaixo da porta de seu dormitório se filtrava uma réstia de luz. Abriu uma fresta e viu uma mulher esbelta no canto mais afastado do quarto. Supôs que se tratava de uma criada, até que viu o vestido de noite, translúcido e de cor vermelha intensa. Era outra das vadias de Chiswick, desta vez uma de cabelo loiro e encaracolado. Reprimiu um suspiro; aquilo já era muita hospitalidade. Sua capacidade para tirar garotas bonitas de sua cama não era ilimitada, de modo que talvez tivesse que render-se ao inevitável. Mas sua diversão se evaporou quando se deu conta de que a mulher estava revistando seu armário de roupas. Depois de examinar os objetos pendurados, a jovem fechou as portas de cima e centrou a atenção nas gavetas da roupa íntima. Ali encontrou uma caixa que continha vários de seus artefatos mecânicos, que tinha trazido para mostrar ao lorde Mace. Antes que a garota pudesse abrir a caixa, ele lhe disse em tom glacial: — Se está procurando dinheiro, não vai encontrar aí. A moça soltou de repente a caixa, que caiu ao chão e se abriu espalhando seu conteúdo. Ao voltar-se para ele, os flutuantes cachos dourados lhe dançaram ao redor do rosto e os olhos se aumentaram pela impressão. Ele poderia ter sido compreensivo se não a tivesse pegado com as mãos na massa no ato de roubar. Fechou a porta atrás de si, cruzou os braços e se apoiou contra a porta. — Está acostumada a roubar seus clientes? — Eu... Não estava roubando, milord. — Sua voz grave e de timbre agradável tinha um forte sotaque de Yorkshire. — Claro que não — repôs ele em tom seco. — Simplesmente se perdeu e se encontrou com meu armário por engano. Ela se olhou fixamente as mãos apertadas. — Estava... Estava procurando o senhor Harford e não sabia qual era seu quarto, assim que me pus a olhar no armário se por acaso podia reconhecer sua roupa. Talvez aquilo fosse certo, embora ele duvidasse. De todo modo, pensou que a tinha detido a tempo. Aquele escasso vestido não podia ocultar grande coisa, se a garota pretendia roubar algo; nem sequer conseguiria ocultar grande coisa em seu próprio corpo. Estudou-a apreciativamente. Era difícil mostrar-se ofendido com uma mulher de pernas tão longas e elegantes. — Duvido que Harford necessite de seus serviços. A última vez que eu o vi estava ocupado com uma de suas colegas. — Oh. — Depois de uma embaraçosa pausa, disse — : Cheguei tarde... Lorde Chiswick estará zangado comigo. Pensando em Chiswick e nas loiras, Lucien disse: — Duvido que tenha percebido sua ausência durante algum momento. — Mesmo assim, será melhor que o encontre. Lamento muito ter entrado acidentalmente em seu quarto. De verdade, não era minha intenção levar nada. — Pôs-se a andar em direção a ele, segura de que ele se separaria da porta e a deixaria sair. — Boa noite, milord. Mas Lucien não se moveu. Contemplando sua flexibilidade de movimentos, o desejo que levava dias lhe formigando começou a inflamar-se de verdade, correndo por suas veias e lhe acelerando o pulso. Embora a jovem não fosse tão atraente como Lizzie, tinha algo que lhe intrigava. Talvez fosse o impossível contraste de acanhamento e aspecto mundano. Ou talvez fosse uma calada dignidade que resultava visível inclusive naquelas circunstâncias. As razões não eram importantes; o que importava era que quanto mais a olhava, menos lhe preocupavam as conseqüências da paixão. — Já que Harford não está disponível, você pode ficar e ganhar o dinheiro comigo. 27


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Aquelas palavras quebraram o silêncio igual a uma pedra lançada em um lago, enviando ondas em todas as direções. Kit se deteve em seco. Não estava equivocada em temer Strathmore, porque seu olhar felino de cor verde dourada era hipnotizador. Seu pulso se acelerou, e não soube bem se a causa era o medo ou a emoção. Ele estendeu uma mão. — Vêem aqui — lhe disse em tom suave e profundo. Ela desejou pôr-se a correr. Mas em vez disso, sua mão, como se tivesse vontade própria, levantou-se e pegou a dele. Aqueles longos dedos se fecharam ao redor dos seus e a atraíram aos braços de seu dono. Sabia que aquele homem seria diferente, e era. Em lugar de machucá-la, abraçou-a com suavidade, alisando seu cabelo despenteado, lhe acariciando as costas, apoiando a bochecha em sua cabeça enquanto ela ia se acostumando a seu contato. Fechou os olhos. Calor. Força. Um erotismo sutil que lhe roubou os sentidos. Pouco a pouco, seu corpo se acalmou e se amoldou ao dele. — Como se chama? — murmurou Lucien. Ela não respondeu, porque ao fazê-lo estragaria o momento. Pela primeira vez desde que tinha começado suas pesquisas, sentiu-se segura. Tinha estado tão sozinha, tão assustada... Levantou o queixo para beijá-la. Ela sentiu que um calafrio a percorria quando os lábios de ambos se tocaram. Embora fosse um beijo sem exigências, não teria podido interrompê-lo embora fosse para salvar sua vida. Fez-se mais profundo até converter-se em uma voluptuosa união de lábios e línguas, em uma harmonia dos pulsos dos dois. Sem um pingo sequer de força física, aquele homem foi derretendo sua resistência. O feitiço se rompeu quando Kit sentiu as mãos cálidas dele nos ombros nus. Santo Deus, ele tinha desatado os laços que seguravam as costas do corpete e depois tinha lhe abaixado as finas mangas do vestido. Se não o detivesse, logo estaria nua, e não era só sua roupa o que ele estava lhe tirando, mas também suas defesas e sua determinação. Como tinha podido esquecer tão facilmente que ele formava parte do inimigo? Não era por acidente que lhe chamavam Lúcifer. Lançou uma sufocada exclamação e se separou bruscamente dele empurrando seu peito com as mãos. — Tenho que ir. — Voltou a subir as mangas. — Me... Comprometi de modo especial com o senhor Harford. Se ele me eximir dessa obrigação, retornarei. Deslizou-se rodeando Lucien e se dirigiu para a porta. Dentro de um momento seria livre...

CAPITULO 6

Lucien amaldiçoou seus botões quando a garota passou a seu lado. Por que ele tinha tido que pôr o olho em uma prostituta que possuía um sentido de responsabilidade muito desenvolvido? Estendeu uma mão para atraí-la de novo para si. — Pode ir procurar Harford mais tarde, se é que ainda vais querer. Ela se afastou graciosamente, girando-se ao mesmo tempo em que ele. Por um instante o perfil de seu rosto se recortou contra a luz da lamparina. Um perfil delicado, puro como o de uma moeda grega... A revelação lhe deixou estupefato. Não podia ser possível... a semelhança era mera coincidência. 28


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Mas o instinto lhe dizia outra coisa. O desejo se desvaneceu, e Lucien se lançou atrás dela, e a agarrou pelo cotovelo quando já estava na metade do caminho para sair no corredor. Puxou ela sem cuidado para obrigá-la a entrar de novo no quarto e fechou a porta com um golpe. A seguir a obrigou a virar-se para ver de novo seu inconfundível perfil. — Por Deus, realmente é você! Ela tentou escapar. — Me solte! Não sei do que está falando. Lucien se perguntou se lorde Mace a teria colocado ali para lhe espiar. Se fosse assim, isso queria dizer que Mace suspeitava de seu futuro novo membro, e então a situação era mais perigosa do que ele acreditava. Mas a moça que se sacudia sob sua garra não tinha aspecto de ser uma espiã endurecida, nem tampouco uma prostituta. Tinha beijado um ser inocente, um ser inocente que aprendia depressa. — Não acredita que vai poder me enganar de novo, minha querida trombadinha. — Segurou-a pelo ombro para poder estudar seu rosto de perto. Com a outra mão passou os dedos por suas feições. — Você foi muito esperta em utilizar cosméticos para alterar sutilmente a forma e os traços de seu rosto. Sua própria mãe teria tido dificuldade para reconhecê-la. E tem voltou a usar enchimento, embora não tão descaradamente como quando fingia ser Sally. A resistência da jovem se esgotou, e ficou olhando fixamente, com os olhos verdes cheios de lágrimas. — O jogo terminou, não é mesmo? — Tinha desaparecido todo vestígio do sotaque de Yorkshire. — Sim, é. — Soltou-lhe o pulso. — Quem diabos é você? Ela se virou de costa e apertou as mãos trêmulas contra as têmporas. — Não vou lhe fazer nenhum dano — disse Lucien mais suavemente, — mas quero a verdade. Qual é seu verdadeiro nome? Kitty? Emmie Brown? Ou Sally, como a descarada garçonete da taberna? Ela suspirou e levantou a cabeça. — Meu nome é Jane. Mas não penso em dizer meu sobrenome. Já tenho muitos problemas. Lucien suspeitou que isso quisesse dizer que ele podia reconhecer a sua família; seu ar natural era o de uma jovem bem educada, das que se encontravam nos salões de Londres mais que em uma taberna. — Por que persegue os Demônios? Ou somente estava tentando distrair a mim? — Não é você quem me interessa, lorde Strathmore, a não ser outro de seus sócios. — Qual? Kit hesitou. — Vai ter que me dizer algo — replicou ele bruscamente. — Tenho certeza de que conhece como se castiga o roubo. Já que você é bonita, não creio que acabe ondeando ao vento em Newgate, mas se eu decidir apresentar acusação, certamente se verá transportada para lá. Kit empalideceu. — Por favor, não me entregue ao juiz. Juro que só quero aquilo a que tenho direito. Ele franziu o cenho. — Sua presa é um homem que a desonrou ou arruinou? Ela começou a caminhar nervosa pelo quarto, seu vestido pálido flutuando e balançando ao redor dos tornozelos. — É meu irmão o arruinado, embora o assunto também me afetasse. — Seu irmão perdeu uma fortuna nas cartas? 29


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Ela se deteve e o olhou. — Como sabe? — O supus — respondeu Lucien em tom prático. — O jogo é a maneira mais rápida de arruinar um homem. Mas que tipo de porco sujo poderia deixar que sua irmã se arriscasse para salvá-lo de sua própria loucura? — James não é assim. — Jane foi até a lareira e contemplou os carvões amontoados. — Não poderia se pedir um irmão mais responsável. Tinha estado no exército e retornou para casa para convalescer de suas feridas. Justo antes da data em que devia voltar para seu regimento, tentaramno para que jogasse uma partida de cartas com... Com certo homem. Meu irmão foi coagido, enganado, e provavelmente drogado. Quando despertou na manhã seguinte, o homem tinha deixado uma nota escrita à mão em que dizia que assumiria o direito sobre as propriedades de nossa família se James não lhe pagasse vinte mil libras no prazo de sessenta dias. Lucien emitiu um rápido assobio. — Um mau negócio, se é que é certo. Como reação a aquela condição, Jane o olhou furiosa. — Meu irmão não é um mentiroso, e não inventou essa história. — Se ele se sentiu enganado, por que não desafiou esse homem para um duelo? — E piorar a situação? O homem que o enganou — esboçou um sorriso sem humor— ao qual, para efeito desta conversa, chamarei de capitão Sharp, possui grande influencia. Produzir-seia um terrível escândalo que teria destroçado a carreira de meu irmão. James atira bem e provavelmente teria matado seu rival. Do contrário... — estremeceu-se. — Não quero nem pensar na alternativa. Eu lhe disse que retornasse para seu regimento porque tinha um plano que resolveria o problema. — De modo que ele se foi alegremente e deixou a situação em suas mãos. — Lucien sacudiu negativamente a cabeça. — Qual é seu plano, colocar uma faca entre as costelas de sua presa? Não é uma boa idéia. Ela começou a tamborilar com os dedos sobre o suporte da lareira. — Acredite, não me imagino mesmo como lady MacBeth. Eu soube que o capitão Sharp fez este tipo de coisa a outros jovens, normalmente moços como meu irmão, que são de bom berço, mas não muito ricos nem influentes. Tem o costume de deixar as notas perto, sobre a pessoa ou sobre sua bagagem. Eu tinha a esperança de recuperar a nota antes que transcorram os sessenta dias. — Diz como se o roubo fosse uma situação perfeitamente lógica, em vez de uma perigosa loucura. — Lucien tentou decidir se aquela era a mulher mais corajosa que tinha conhecido, ou a mais tola. Provavelmente fosse ambas as coisas. — James e você são gêmeos? Houve uma incômoda pausa antes que ela respondesse: — Não, eu sou três anos mais velha que ele. O que lhe faz pensar que pudéssemos ser gêmeos? Ele se encolheu de ombros. — É que parecem estar unidos de uma maneira pouco comum. Uma sombra cruzou o expressivo rosto de Jane. — Isso é porque nossos pais morreram quando éramos jovens. Ficamos os dois sozinhos. — Não havia nenhum outro parente que cuidasse dos interesses da família? — Um primo se fazia de guardião, mas está há vários anos vivendo no estrangeiro. — Talvez eu possa ser de ajuda — se ofereceu Lucien. Além de realizar uma boa ação, com isso obteria mais informação a respeito de um dos Demônios. Adivinhava que o tal capitão Sharp era Harford ou Nunfield. Os dois possuíam uma desagradável reputação de jogadores. 30


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— Não seja ridículo — disse ela, surpreendida. — Isto não é problema seu. — Faria bem em aceitar qualquer ajuda que possa obter, querida — disse ele meigamente. — Esta é já... Qual, sua terceira tentativa de aproximar-se o bastante de sua presa para lhe roubar o que deseja. Ou houve mais ocasiões das que eu não estou informado? Jane sorriu com tristeza. — Você me viu em todas as ocasiões. — É um milagre que ainda não a tenham violado ou detido — repôs ele com exasperação. — Se disser a quem está seguindo, existem muitas possibilidades de que eu possa tirar você e seu irmão desta confusão. Ela entreabriu as pálpebras. — Já vejo que vou ter que ser mais direta. Sua reputação não é precisamente imaculada, lorde Strathmore. Pode ser que me considere uma tola por rechaçar sua ajuda, mas seria muito mais se confiasse em você. Já que ele estava fazendo todo o possível para parecer misterioso e ligeiramente ameaçador, aquelas palavras não deveriam ter lhe magoado, mas o fizeram. Disse em tom ácido: — O fato de que não a tenha entregado a um juiz deveria lhe dar algum motivo para confiar em mim. — Essa é uma prova débil, dado que o juiz mais próximo é lorde Chiswick — replicou ela amavelmente. — Como você mesmo disse, não gostaria de ser interrompido no meio de uma orgia. Lucien esteve a ponto de começar a rir em voz alta. Agora que já tinha desaparecido o medo inicial de Jane, a jovem se mostrava formidavelmente dona de si mesma. Talvez confiasse mais nele se encontrasse uma solução para seu problema. — Mencionou um guardião. Suponho que você terá mais de vinte e um anos, mas e seu irmão? — Fará vinte e um em fevereiro. Lucien assentiu com satisfação. — Excelente. Já que James não era maior de idade quando contraiu a dívida, o capitão Sharp não poderá lhe tirar nem um só peni. Jane abriu muito os olhos, debatendo-se entre a esperança e a dúvida. — Como pode ser isso? Os jovens podem contrair dívidas de jogo. — Por uma questão de honra, a maioria dos jovens paga suas dívidas se lhes for possível, mas não se pode obrigá-los legalmente a fazê-lo. Em um caso como este, no qual seu irmão se considera enganado, é pouco provável que o capitão Sharp persista no assunto com o guardião de vocês — respondeu Lucien. — Foi uma tolice da parte dele perder tempo com um moço que era menor de vinte e um anos. — Talvez ele não se desse conta. James parece mais velho, e está no exército desde os dezessete anos. — deixou-se cair na beirada da cama com uma expressão de atordoamento. — Não tinha me ocorrido pensar que legalmente ainda não é considerado um homem. — Sugiro-lhe que consiga um advogado de dentes bem a fiados que escreva ao capitão Sharp repudiando a dívida. Se não souber a quem recorrer, eu posso lhe dar vários nomes. — Isso não será necessário; conheço alguém que servirá. — Ofereceu-lhe um sorriso deslumbrante. — E pensar que estive andando por aí, me pondo em ridículo, quando na realidade não existia nenhum problema. — Mas se não o tivesse feito, eu não a teria conhecido, e isso teria sido uma verdadeira lástima — disse Lucien com suavidade. Os olhares de ambos se encontraram e entre eles vibrou uma sensação primitiva e poderosa: 31


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homem e mulher admirando um ao outro e desejando estar mais juntos um do outro. Ela tragou saliva, notando um nó crescente na garganta, e Lucien compreendeu que a jovem se sentia incômoda com a atração que sentia por ele. Seus olhos mostravam a alarmada fascinação de uma virgem nervosa. — Tenho que ir. — ficou de pé e esteve a ponto de pisar em um dos dispositivos mecânicos que haviam caído ao chão. Ajoelhou-se e começou a recolher os brinquedos espalhados. — Sinto muito ter derrubado essas coisas. Espero que não tenha acontecido nada a nenhum deles. Lucien se aproximou e se ajoelhou a seu lado para ajudá-la. Os dedos de ambos se roçaram ao tentar pegar um pequeno pingüim prateado e preto. No instante do contato, ele notou um leve tremor na mão da jovem. Ela disse rapidamente: — O que faz este bichinho? Lucien tomou o pingüim mecânico, deu voltas à chave e o deixou no chão. Com um grave zumbido, o boneco se inclinou para frente e de repente saltou para trás em uma cambalhota perfeita. Quando aterrissou sobre suas largas patas palmadas, Jane lançou uma leve exclamação: — Não posso acreditar! Enquanto estava dizendo isso, o pingüim deu outro salto mortal para trás, e outro mais. Jane se sentou sobre os calcanhares, rindo a gargalhadas e apertando a cintura com uma mão. Parecia alguém que levava muito tempo sem rir, e Lucien se sentiu feliz de contemplá -la. Nos últimos minutos tinha sido uma jovem inocente e assustada, uma ninfa sensual e um oponente de olhar frio; agora era uma alegre menina. Lucien adivinhou que todas aquelas facetas dela eram genuínas, mas haveria alguma delas que representasse sua parte mais profunda, mais essencial? Aquela mulher era um fascinante quebra-cabeça, que ele pensava resolver. Jane, com lágrimas nos olhos de tanto rir, perguntou: — De onde o tirou? — Eu desenhei e construiu o mecanismo do salto. É um presente de batismo para o filho de um amigo. Kit pegou o brinquedo e o examinou atentamente. — Você possui talentos inesperados, lorde Strathmore. Por que um pingüim? — Meu amigo tem uma dúzia deles em sua propriedade. Provavelmente são os únicos pingüins que há em toda Grã-Bretanha. É uma delícia contemplá-los. Kit supôs que parecia lógico que Strathmore tivesse amigos tão pouco comuns como ele próprio. Pegou outro dos brinquedos, um coelho vestido formalmente e sentado em uma cadeira tocando um violoncelo. Deu-lhe corda e o coelhinho começou a mover o arco para frente e para trás ao som de uma melodia que saía de dentro. — Encantador. Você também fez este? — Não, é francês. Um amigo o encontrou para mim em Viena. — Examinou a figura e lhe endireitou uma orelha com cuidado. — Se dobrou um pouco ao se chocar contra o chão. Ela sorriu ao ver a concentração de Strathmore. Não parecia ameaçador. Entretanto, embora a tivesse tratado com cortesia, cavalheirismo inclusive, seguia lhe dando medo. Era um homem de profundos recônditos, e percebia que o sentimento desumano formava parte de sua natureza tanto como o encanto. Pegou o último dos brinquedos, envolveu-o em um dos panos de veludo que tinham caído da caixa e o pôs junto a seus companheiros. A seguir se levantou e voltou a deixar a caixa na gaveta da roupa interior. Parecia que ainda ficava nela um pouco de Emmie, a criada. Quando já tinha recolhido tudo, disse: —Boa noite, lorde Strathmore. Não posso lhe agradecer o suficiente por sua ajuda. 32


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Ele também se pôs de pé e estava estudando seu rosto com incômoda percepção. Kit se perguntou nervosa se ele suspeitaria que ela tinha lhe mentido a respeito de seu mítico irmão e suas dívidas de jogo. — Desejo vê-la outra vez — disse Lucien em voz baixa. Aquelas palavras resultaram mais surpreendentes do que poderia ter sido uma acusação. O coração deu um pulo, em parte devido ao medo, mais por causa da impressão que lhe produziu ao se dar conta de que também ela desejava lhe ver de novo. Depois de recordar a si mesma todas as razões pelas quais não podia fazer tal coisa, disse com calma: — Isso não é possível, milord. Ele arqueou as sobrancelhas, em um gesto que lhe fez parecer-se mais a Lúcifer. — Por que não? — Porque não quero ser sua amante, e não existe nenhuma outra relação possível entre nós. Um brilho de diversão surgiu em seus olhos, lhes fazendo parecer mais dourados que verdes. —Você me acusa injustamente. Não tenho feito nenhuma sugestão inapropriada desde que descobri que não era verdadeiramente uma prostituta. Por que não possamos ser amigos? Tinha sido mais fácil tratar com os Demônios que haviam se limitado a exceder-se. Deu um discreto passo para trás. — A amizade entre homem e mulher é incomum no melhor dos casos, e não existe entre quem é de desigual condição social. Eu não circulo nas mesmas rodas que você, milord, de modo que não poderemos ser amigos. — Tolices — replicou ele sem alterar-se. — É evidente que é você de bom berço, e embora, como você mesma assinalou faz um momento, minha reputação não é precisamente imaculada, me considera socialmente aceitável. Me diga onde posso vê-la, e prepararei a apresentação mais formal que qualquer um poderia desejar. Decidida a tomar a ofensiva, Kit lhe perguntou abertamente: — Que deseja de mim, lorde Strathmore? — Sinceramente não sei — repôs ele devagar. — Mas tenho a intenção de averiguar. — Prepare-se para uma desilusão. — Rodeou-o e se encaminhou para a porta. — A não ser que vá me reter como prisioneira, parto já. — Aguarde — ordenou Lucien. Ela se deteve, enervada, sabendo que se encontrava totalmente a mercê dele. Para seu alívio, Lucien disse simplesmente: — Acompanharei você até lá em baixo. Não seria seguro que fosse sozinha. Tinha razão, reconheceu Kit em silêncio. Era muito tarde para revistar mais quartos. Àquela hora já teria terminado a primeira parte da orgia, e os Demônios que ainda pudessem sustentar -se em pé estariam a caminho de seus próprios dormitórios, procurando a comodidade. Um deles poderia estar com humor para ter outra companheira de cama. — Muito bem — aceitou. — Vim até aqui cruzando a biblioteca e deixei a porta aberta para poder sair pelo mesmo lugar. Lucien desatou a gravata e a jogou em um lado, e a seguir tirou o casaco. Quando começou a desabotoar os botões da gola da camisa, viu a expressão de alarme da jovem e a interpretou corretamente. — Temos que ter o aspecto de nos ter comportado de maneira imprópria — ele lhe explicou com um sorriso aparecendo nos olhos. Com o cabelo loiro revolto e a camisa aberta deixando descoberto seu amplo peito, aparentava a viva imagem de um libertino, o tipo de homem que nenhuma mulher podia resistir. 33


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E ele sabia quanto a afetava, maldito fosse. Os dois sozinhos naquele quarto, e os dois próximo à cama, era uma situação quase tão íntima como se fossem amantes de verdade. Lucien a examinou com olhar crítico. — Tem que parecer mais imoral. E lhe desceu uma das mangas do vestido. Como a parte posterior do corpete estava ainda desatada, o tecido escorregou facilmente, deixando descoberto o ombro esquerdo. Quando os dedos dele roçaram sua pele nua, faltou pouco para que o coração de Kit lhe saltasse do peito. Ao notar sua reação, Lucien hesitou, tentado de converter aquela tentativa de camuflagem em uma carícia. O momento ficou flutuando entre os dois. Por fim, para alívio de Kit, ele se afastou e abriu a porta. Depois de esquadrinhar atentamente o corredor, rodeou-lhe os ombros com um braço e a conduziu para fora do quarto. Ouviram-se umas vozes no andar de abaixo, mas não havia ninguém à vista. Metendo-se em seu papel, Kit lhe passou um braço pela cintura e procurou parecer uma vadia satisfeita. Era fácil fingir sentindo o corpo quente dele perto do seu. Sua proximidade avivou o fogo que o beijo anterior tinha acendido. Recordou com tristeza que só tinha que conservar aquela difícil calma alguns minutos mais; logo se veria livre de seu inquietante acompanhante. Uma vez no andar de baixo, passaram junto a um Demônio que estava com uma mulher seminua que lhe servia de apoio enquanto ambos se dirigiam à escada. Em meio da tênue luz, Kit não tinha idéia de quem se tratava. Ao passar em frente à saleta lhes chegou um tenebroso dueto de tenor e soprano que cantava uma canção e Kit supôs que seria horrivelmente embaraçosa se entendesse o que dizia toda a letra. Mas, tal como Strathmore havia dito, ela estava a salvo com ele. Pelo menos, a salvo de outros homens; do conde mesmo já era outra coisa. Separou-se dele assim que entraram na biblioteca e recuperou a capa que tinha escondido atrás do sofá. Quando esteve bem agasalhada em suas dobras, abriu as cortinas e abriu a porta dupla. O ar da noite era frio e penetrante. Lucien disse com suavidade: — Suponho que terá um cavalo ou uma carruagem aguardando para levá-la segura para casa. Kit estudou seu rosto. À luz da lua possuía uma beleza fria e sobrenatural. O que teria ocorrido se ambos se conhecessem por acaso, de um modo normal e sem complicações? — Sim, milord. Já não tem por que se preocupar por meu bem-estar. Antes que pudesse sair ao exterior, ele a segurou pelos ombros e a atraiu para si. — Meu nome é Lucien. — E em seguida inclinou a cabeça e a beijou com tranqüila possessividade. Tão rapidamente o abraço de um varão presunçoso chegava a parecer natural, inclusive desejável. O coração se acelerou ao devolver o beijo. Soube com bastante clareza que jamais esqueceria aquele momento nem aquele homem. A intimidade da proximidade masculina, o erótico contraste entre a brisa gelada e o calor da carne, a leve carícia do hálito dele em sua têmpora ao soltá-la... Tudo isso ficaria gravado na alma. — Pergunto-me se Jane será seu verdadeiro nome — disse Lucien, pensativo. — Provavelmente não seja, mas não importa. Descobrirei quem é na realidade. Seu tom frio e prosaico era o aspecto mais desconcertante daquele encontro tão surpreendente e irreal. — Não, não fará — replicou ela, sentindo que o medo prevalecia por cima da bruma de sensualidade que a tinha envolvido. — Lhe agradeço outra vez, milord, e adeus. Em minha vida não há espaço para você. 34


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— Já procurará um — disse ele com total segurança. — Até a próxima vez, minha querida. Ela sumiu na noite, com o pulso acelerado e pensando no que ele havia dito de «ondear ao vento». A frase era um eufemismo de morrer na forca, o que era certamente uma possibilidade se prosseguisse com suas atividades delitivas. Mas aquelas palavras também descreviam sua investigação. Sentia-se como se estivesse ondeando freneticamente no meio do ar, lutando para permanecer flutuando em uma situação precária em que o menor passo em falso a faria precipitar-se no vazio. Por essa razão o enigmático conde era perigoso, porque a fazia perder o equilíbrio. Rogou ao céu que seus caminhos não voltassem a se cruzar.

INTERLÚDIO

Chegou a criada, silenciosa e de rosto inexpressivo, o que significava que era hora de preparar-se. Depois de tirar a roupa normal, colocou uma camisola de seda negra transparente que lhe deixava a metade dos seios descoberto e a cobria só até a metade das coxas. Logo a criada a ajudou a colocar o espartilho de brocado negro, puxando os laços com tanta força que mal pôde respirar. A seguir foi a vez da meias de renda preta que foram atadas ao espartilho com cintas de cor escarlate. As altas botas que calçou em cima eram feitas de couro negro flexível que se aderia à curva de seus joelhos. Tinham sido especialmente confeccionadas com saltos altos e finos que dificultavam o caminhar. Sentou-se enquanto a criada lhe ocultava o cabelo castanho claro sob uma peruca de um vermelho chamativo, tão longa que lhe roçava as nádegas. Batom para dar um aspecto carnudo e cruel a seus lábios e para proporcionar um rubor intenso e febril a suas pálidas bochechas. Por último, uma meia máscara negra com aberturas para os olhos em forma de malvado ângulo e luvas de pelica pretas e longas até o cotovelo. Ficou em pé e examinou seu aspecto em um espelho. Toda de preto, branco e escarlate, era uma caricatura da feminilidade com uma cintura diminuta que exagerava seus seios e quadris e com pernas indecentemente longas. A criada expressou sua aprovação com uma inclinação de cabeça e partiu. Para preparar-se mentalmente, contemplou com olhar fixo o engenhoso e repugnante objeto mecânico que haviam lhe presenteado, pensando no que devia fazer. Quando se sentiu mais preparada que nunca, foi ao quarto continuo e começou a acender as dezenas de velas que lotavam todas as superfícies. Uma vez que estiveram todas acesas, o quarto adquiriu o resplendor alaranjado de uma sala de espera do inferno. Ele não demoraria em chegar. Pegou o chicote e o fez estalar uma vez para prová-lo. Perfeitamente equilibrado. Tudo estava preparado para a estréia. Entretanto, ficou em tensão ao ouvir girar a chave na fechadura. Apesar de seu estudo, havia muitas coisas que não sabia. Rapidamente ficou de costas para a porta, como se lhe fosse indiferente. Notou que ele entrava, ouviu a chave girar de novo atrás dele, e escutou o ruído de sua pesada respiração. Brincou com uma longa mecha de falso cabelo vermelho, lhe fazendo esperar. Quando a impaciência o venceu, disse com voz rouca: — Aqui me tens, minha ama. O que é que mandas? Ela se voltou lentamente, empregando seu corpo para expressar arrogância, desprezo, 35


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dominação. Ele a observou com olhos ávidos. Quando ele tentou falar de novo, ela exclamou: — Silêncio! O chicote se agitava em sua mão semelhante à cauda de um gato furioso. À medida que a tensão ia aumentando, o rosto do homem foi cobrindo-se de suor e o branco dos olhos foi se fazendo mais visível. Então, de repente, com um feroz movimento de braço, ela fez estalar o chicote. O violento estalo rompeu em pedaços o asfixiante silêncio. Seu olhar se cravou n o dele e lhe ordenou em tom ameaçador e letal: — Te ajoelhe, escravo.

CAPITULO 7

Kit despertou gritando. O coração lhe pulsava desbocado enquanto t entava recordar o pesadelo, mas este já estava se dissolvendo em imagens fragmentadas. Olhou as mãos, meio surpreendida de vê-las nuas em vez de cobertas de couro preto. Havia algo importante no sonho, algo desesperadamente importante, mas tinha se desvanecido e não conseguiu recordá -lo. Acendeu a vela que estava próximo à cama com dedos trêmulos. O relógio marcava um pouco mais da meia -noite. Deslizou para fora da cama, mas as pernas se dobraram sob seu peso e caiu de joelhos com a cabeça lhe dando voltas. Tinha desaparecido de seu corpo até o último grama de energia, e a tinha deixado tão necessitada como um bebê. Quando o mundo cessou de girar a seu redor, ficou de pé meio tonta e vestiu um roupão em cima da camisola. Em seguida foi à cozinha e pôs água no fogo. Viola, que tinha dormido sobre a cama, entrou caminhando lentamente na cozinha com um miado interrogante. Kit a pegou e a acomodou contra si. O corpo morno do felino aliviava sua intensa sensação de solidão, mas não o suficiente. Enquanto esperava que a água fervesse, ouviu que a porta principal da casa se abria. Tinha que ser Cléo Farnsworth, cuja presença seria uma bênção naquele preciso momento. Kit deixou a gata no chão e se apressou em cruzar a sala e abrir sua porta. Quando apareceu no vestíbulo comum, viu que Cléo, uma escultural loira de vinte e tantos anos, estava subindo a escada. —Boa noite, Cléo. — Kit tentou que sua voz não soasse desamparada. — Gostaria de uma xícara de chá e algo de comer? — Você não se importa? Não há nada como pisar em casa para abrir o apetite. — A atriz desceu as escadas e franziu o cenho. — É muito tarde para que estejas acordada. Aconteceu alguma coisa de errado? Kit se sentiu tentada em desabafar todas suas preocupações, mas conseguiu controlar o impulso. — Só que tive um pesadelo — disse ao mesmo tempo em que voltava para interior de seu apartamento. — Estou muito cansada. Tenho a sensação de estar vivendo três vidas diferentes, e cada uma delas exaustiva. — Bom, e assim mesmo. Você teve duas semanas muito ocupadas. — Me parece muito mais tempo. — Kit inclinou o bule e derramou a água fervendo sobre as folhas de chá. Em seguida tirou queijo, cebolas em conserva e algumas empadinhas de salsicha que tinha comprado em uma padaria. — Como foi a apresentação desta noite? 36


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Cléo encolheu os ombros. — Regular. O teatro só encheu pela metade. Tenho voltado a dizer a Whitby que é muito cedo para levar ao palco O Magistrado, mas nunca presta atenção a uma simples mulher. Mesmo assim, aplaudiram-me bastante por meu papel. Depois de comer rapidamente um pedaço de queijo, duas empadinhas e meia dúzia de cebolinhas em conserva, Cléo empurrou para trás sua cadeira e deixou escapar um pequeno e feminino arroto. — Você já decidiu o que vai fazer a seguir? —Me apoiando nas investigações que realizei até agora, há vários homens que considero como suspeitos mais prováveis — respondeu Kit. — O senhor Jones me deu seus endereços em Londres, de modo que revistarei a casa de cada um deles. — Oh, Kit! — exclamou Cléo - Isso inclusive é mais perigoso que o que fez até agora. O senhor Jones não pode procurar um ladrão de confiança que possa fazer esse trabalho por você? Kit sorriu ligeiramente. — Duvido que existam ladrões de confiança. Além disso, ninguém mais que eu pode encontrar o que estou procurando, porque não estou certa do que é. — Supondo que tem razão — admitiu a atriz. — Mas como vai fazer? Embora o senhor Jones a tenha ensinado a forçar fechaduras, corre o risco de encontrar com os serviçais. — Irei pelos telhados e entrarei pelas janelas de cima. Ter crescido como uma selvagem no meio do campo me transformou em uma boa atleta. Cléo estremeceu. — Não quero nem pensar nisso. De todo o modo, conseguiu se sair muito bem até agora. Roga a Deus para que sua boa sorte continue. — Minha sorte foi anormal. — Kit deu um pouco de queijo a Viola, que espreitava debaixo da mesa. — Não foi tão mal quando dois dos Demônios tentaram me maltratar, não tinham nem idéia de que eu não era o que parecia. Mas um dos mais astutos me pegou remexendo em seu quarto na casa de lorde Chiswick e me reconheceu de ocasiões anteriores. Deixou-me partir depois que contei uma série de mentiras. Não creio que falei de mim a outros, mas como acredita que meu problema já está resolvido, estarei em apuros se me surpreender de novo. Cléo riu ligeiramente. — Se isso ocorrer, estou certa de que poderá inventar outra história convincente. Quem era esse cavalheiro? — O conde de Strathmore. — Strathmore! — As expressivas sobrancelhas de Cléo se ergueram para cima. — Lúcifer em pessoa. Você gosta de correr perigos. — Você sabe tudo de todo o mundo. — Kit começou a coçar um ponto na parte interior da coxa, mas em seguida se deteve. Não podia se arriscar a deixar uma cicatriz. — O que sabe dele? — Saber, não sei muito, mas não faltam rumores — disse Cléo devagar. — Se move em todos os níveis da sociedade, do mais baixo até o mais alto. Embora não seja jogador, quando joga tem a sorte do próprio diabo, e dizem que arruinou mais de um homem. Quando era mais jovem era considerado um dos melhores partidos no mercado do matrimônio, mas ouvi dizer que as esperançadas mães lhe deixaram por impossível. E cabe perguntar por que, já que é rico, bonito e muito cortejado. — Nada disso parece estranho. — É certo que esse tipo de fofoca não significa grande coisa — admitiu Cléo. — Mais preocupante é o fato de que em uma ou duas ocasiões cavalheiros de bom berço desapareceram da sociedade sem deixar rastro. Ouvi dizer que talvez Strathmore tivesse algo que ver com esses 37


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desaparecimentos, mas como possui amigos nos lugares mais altos, ninguém se atreve a lhe acusar abertamente. Aquilo não era o que Kit desejava ouvir. Apertou os lábios. — Talvez seja um seqüestrador, um assassino ou algo pior. — Talvez. — A expressão de Cléo se tornou pensativa. — Eu o conheci em uma ocasião no camarim, e me agradou. Um homem muito inteligente. Poderia ter seduzido qualquer mulher das que estávamos ali para levá-la à cama, e entretanto não o fez. Coisa q ue me pareceu estranha, já que poucos cavalheiros deixam passar uma atriz bonita. — Seu semblante ficou grave. — Não permita que te pegue outra vez, Kit. É um homem ardiloso, não há dúvida. Eu não descartaria que fosse ele quem você anda procurando. — Me agrada também. — Kit esvaziou o resto do chá em sua xícara. — Por desgraça. — Como estás a tua dança? Só o fato de pensar nisso já fazia com que Kit se sentisse mais cansada. — Creio que já aprendi os passos — respondeu sem entusiasmo. — Me mostre? Kit piscou. — À uma da manhã e de camisola? Cléo sorriu abertamente. —Por que não? Eu cantarolarei a música. — ficou de pé, foi até a sala e se sentou em uma cadeira, e em seguida começou a cantar uma melodia sem letra com uma voz treinada que encheu o apartamento. Um tanto inibida, Kit ajustou um pouco mais o roupão e começou a dançar. Era um ritmo alegre, e conforme se movia marcando os passos ia se sentindo mais forte. Quando terminou, Cléo disse em tom crítico: — Não está ruim, mas agora repete com mais entusiasmo. E mostre um pouco de perna, isso é o que os cavalheiros querem ver. — Começou a cantarolar outra vez, desta vez batendo palmas com força para acompanhar o ritmo. Kit voltou seus pensamentos para si por um instante, dizendo a si mesma que era uma coquete irresistível, uma sedutora fantasia para um homem. Imaginou Lucien Fairchild contemplando-a, seus olhos dourados brilhantes de desejo... Uma forte onda de calor a percorreu ao pensar nele. Começou a girar sobre si mesma ao redor da sala, livrando-se por um triz de se chocar contra a mobília. Desta vez se inundou na música, pisando forte com os calcanhares e girando de modo que o roupão se levantava acima dos tornozelos. Terminou com um floreio que converteu as palmas de Cléo em um verdadeiro aplauso. — Muito bem, Kit! Terá um grande êxito. A temporária fortaleza de ânimo de Kit começou a ceder. Talvez sua forma de dançar fosse um êxito, mas esse era o que menos importante de seus objetivos. O tempo corria com velocidade aterradora, e o objetivo crucial a vida ou morte seguia mostrando-se tão esquivo como sempre. Lucien se sentou à mesa do escritório para pôr por escrito o que tinha averiguado em suas investigações sobre os Demônios, mas o lápis se distraiu e começou a desenhar. Tinha uma facilidade para o desenho que lhe era muito útil na hora de desenhar seus brinquedos mecânicos. O que surgiu no papel desta vez não foi um pingüim, a não ser o rosto de uma mulher. Uma vez terminada, estudou o resultado. Lady Némesis, tão misteriosa como esquiva. Mentalmente a chamou de Jane, pois era seu nome mais recente. Embora tivessem se visto três vezes e tinham compartilhado dois beijos realmente muito bons, não tinha certeza de como era ela exatamente. Tinha as maçãs do rosto realmente tão altas, ou era um truque de sua destreza 38


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em se maquiar? Seu rosto era um oval perfeito ou um pouco mais largo? E sua boca... Ao tato tinha comprovado a suavidade daqueles lábios, mas não podia definir sua forma precisa. A única coisa que podia afirmar conhecer era sua figura esbelta e elegante, que achou mais atraente que as artificiais curvas de Sally, a garçonete. Tentou desenhar de diferentes maneiras antes de render -se. Nenhum dos desenhos parecia ser correto. Era enlouquecedor saber que poderia cruzar com ela pela rua sem recon hecê-la. Com um suspiro, reclinou-se na cadeira e apoiou os pés na mesa. Aquela maldita mulher estava se convertendo em uma obsessão. Havia dito que a encontraria, e assim o faria, embora localizar uma jovem sem nome que poderia estar em qualquer parte da Grã-Bretanha era como procurar um gato preto em um porão de noite. Mas quando a encontrasse que diabos iria fazer com ela? A forte atração que tinha experimentado na casa de Chiswick tinha cedido até um nível manejável, mas continuava desejando levá-la para a cama sem pensar nas conseqüências. Já havia se sentido deprimido antes, e voltaria a estar; pelo menos, a linda e valente Jane valeria esse preço emocional. Mas ele não seduzia as virgens de boa família, o que ela era sem dúvida alguma, apesar de sua confusa forma de agir. As mulheres como ela eram dessas com as quais alguém se casa. O que significava que ele não tinha nenhum direito de procurá-la. Seu olhar pousou no desenho dele e Elinor. Há muito tempo tinha decidido que não se casaria a menos que encontrasse uma mulher com a qual pudesse compartilhar a profunda intimidade emocional que tinha faltado durante tanto tempo em sua vida. Seria um homem mais feliz se jamais tivesse conhecido essa intimidade. Entretanto, embora ainda sentisse a dor da perda, não podia lamentar tê-la tido uma vez. Estava já voltando para o tema que lhe ocupava quando entrou seu mordomo para anunciar: — Lorde Aberdare veio lhe ver, milord. — Nicholas! — Lucien se levantou e estreitou a mão de seu amigo, que tinha entrado seguindo os passos do mordomo. — Não sabia que viria a Londres. — Não mais do que eu. Mas Rafe me fez vir por causa desse voto de respeito das negociações de paz em Gante que está propondo à Câmara dos Lordes. — Meu Deus, fez você vir de Gales para isso? — Lucien fez um gesto mostrando uma cadeira e depois tomou assento ele mesmo. — Te advirto que Rafe tem razão: Já que a guerra com os americanos está em um ponto morto, não tem sentido que a Inglaterra exija concessões territoriais. A resolução de Rafe solicita que o governo suavize sua postura e aceite as fronteiras existentes, o que é o único modo de chegar a um acordo. Mas mesmo que se aprove a resolução, não terá força de lei. — Certo, mas quando a Câmara dos Lordes late, o governo escuta, e Rafe necessita de todos os votos que possa conseguir. Por isso me fez vir. — Nicholas se deixou cair com naturalidade em uma cadeira e esticou as pernas. — Já é hora de pôr fim a uma guerra que não deveria nunca ter começado. — Isso é muito certo. Foi absurdo cair em um conflito com os Estados Unidos quando estavam lutando por nossas vidas contra Napoleão. O quanto antes fizermos as pazes, melhor. — Sobre tudo tendo em conta que nossos desconhecidos primos começaram a ganhar as batalhas — disse Nicholas em tom irônico. Lucien lhe perguntou: — Como está minha condessa favorita? — Clare está tão tranqüila como sempre. — Nicholas esboçou um sorriso triste. — Sou eu quem parece um feixe de nervos. Ela afirma que não há motivo para preocupar-se porque provém de uma longa linha de robustas camponesas que retornavam aos campos meia hora depois de dar a luz a seus filhos. Não duvido que tenha razão, mas me alegrarei quando o bebê tiver nascido. 39


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Lucien tirou o pingüim mecânico de uma gaveta. — Fiz isto como presente de batismo. Você pode levar isso com você quando voltar à Gales. — O que fez desta vez? — Nicholas girou à chave. Quando o pingüim começou a dar cambalhotas para trás, Nicholas se afundou em sua cadeira, dando risada. — Que mente mais estranha e maravilhosa você tem, Luce — ofegou quando pôde voltar a falar. — Clare adorará. Mas o que você fará para igualar isto se nós tivermos mais filhos? — Os pingüins sabem fazer outras coisas. Nadar. Deslizar-se sobre a barriga. Dançar. Verei quando chegar o momento. Nicholas pegou outra vez o pingüim. Ao fazê-lo, viu os desenhos de Jane que descansavam sobre a mesa. Tomou um deles e o contemplou. — Um rosto interessante. Cheio de personalidade e inteligência. Está apaixonado? — Absolutamente — respondeu Lucien, repressivo. — Não é mais que uma mulher que dá mais problemas que um saco de gatos. Seu amigo riu. — Parece promissor. Quando poderemos esperar um anúncio interessante? Lucien pôs os olhos em branco. — Não tente me convencer das vantagens do casamento. Só existe uma Clare, e você a descobriu primeiro. Já que eu me nego a me conformar com menos em uma mulher, estou condenado a passar o resto de minha vida solteiro. Seus filhos poderão me chamar tio Lucien e falar de minhas excentricidades às minhas costas. Nicholas, intuitivo como um gato, percebeu a tristeza que subjazia sob a frivolidade superficial, porque dirigiu a Lucien um penetrante olhar. — A propósito de nada — disse lentamente, — Clare disse que a razão pela qual, nós os Anjos Caídos, ficamos tão íntimos era que nenhum de nós tinha uma verdadeira família, de modo que tivemos que inventar uma. Era uma verdade tão inesperada e acertada que fez Lucien calar momentaneamente. Por fim disse: — A propósito de nada, em efeito. Como é viver com uma mulher que vê tanto? — Alarmante às vezes. — Nicholas sorriu amplamente. — Maravilhoso a maior parte do tempo. Lucien decidiu que já era hora de mudar de assunto, antes que sua inveja fosse muito visível. — Teve alguma notícia interessante de seus parentes ciganos? O sorriso de Nicholas se desvaneceu. — Essa é uma das razões pelas quais eu queria falar com você. Um primo longínquo com quem viajei pelo continente enviou uma mensagem recentemente a Aberdare em que diz que correm persistentes rumores de que Napoleão tem a intenção de levar a cabo uma volta triunfal do exílio. Nicholas havia passado vários anos perambulando pela Europa com seus parentes ciganos. Tinha ido a todas as partes e ouvido de tudo, e a informação que tinha recolhido e enviado de volta a Londres foi de incalculável valor. Com a esperança de que desta vez seu amigo talvez se equivocasse, Lucien disse: — Cabe esperar rumores assim do Corso. É uma lenda viva. —Certo, mas isto vai além do que se esperaria — repôs Nicholas. — Meu primo disse que houve agentes do imperador movendo-se em segredo pela França, vendo a atitude do povo, e que chegaram à conclusão de que a maioria apoiaria de novo o imperador. Também ouviu rumores de que há homens poderosos entre os aliados, britânicos, prussianos e austríacos, que ajudariam porque querem que Napoleão retorne. Parece que descobriram que a guerra era um negócio muito 40


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rentável. — Chacais — disse Lucien com violência mal contida. Talvez tivesse terminado a luta, mas deveria ter recordado que a avareza e a violência eram eternas. Era hora de deixar de pensar em uma mulher esquiva e concentrar-se no verdadeiro trabalho. — É provável que esses rumores não sejam mais que especulações e falar por falar, mas não podemos nos arriscar. Farei indagações. E também me porei em contato com meus colegas da Prússia e Áustria. Se existir um plano já esboçado para restaurar o imperador, talvez possa ser cortado pela raiz antes que se desenvolva. — Espero isso — disse Nicholas gravemente. — De verdade que espero.

A noite estava nublada, mas seca, perfeita para a atividade de um delinqüente. Vestida completamente com roupas pretas de homem e provida de uma corda forte e fina e de um gancho, Kit começou sua carreira de ladra na mansão que lorde Nunfield possuía na cidade. A casa seguinte à sua se encontrava temporariamente vazia, de modo que conseguiu escalála sem medo de que alguém a ouvisse. Dali era fácil cruzar o telhado até a casa de Nunfield. As luzes do porão indicavam que os criados estavam tendo uma tranqüila noite em sua sala de estar. A parte de cima da casa estava às escuras. Depois de prender a corda ao redor de uma chaminé, Kit a enrolou na cintura e desceu até o nível de uma janela traseira. Aquilo era um trabalho exaustivo, inclusive para alguém que sempre tinha sido atlética até um ponto na da feminino. Por sorte, a janela que tinha escolhido estava fechada só por um simples trinco que poderia se abrir com uma navalha. Fez uma pausa para tomar ar, pois estava ofegando profundamente, tanto a causa do cansaço como dos nervos. Desta vez, se a pegassem, não haveria forma de explicar sua presença ali. Quando o pulso foi tranqüilizando, colocou mãos à obra. Havia se aperfeiçoado a efetuar revistas, e foi capaz de percorrer os pisos superiores do modesto lar de lorde Nunfield muito rapidamente. Embora dedicasse especial atenção ao dormitório do dono, revistou todos os quartos. Tudo transcorreu sem erros. Desgraçadamente, não encontrou nada de interesse. Quando se debruçou pela janela e pegou a corda que estava que pendurava, estava inclinada a pensar que Nunfield não era seu homem. A próxima saída seria à casa de lorde Mace. Depois de encarapitar-se de novo ao telhado, disse a si mesma que a noite tinha sido um êxito em um aspecto: desta vez não tinha sido surpreendida pelo inquietante lorde Strathmore. Ao menos por isso podia agradecer.

A proposta de Rafe de chegar a um rápido acordo com os Estados Unidos atraiu um número surpreendente de pares à Câmara dos Lordes. O tema deu lugar a um vivo e ocasionalmente violento debate. O próprio Rafe foi muito eloqüente ao promover sua resolução, e Lucien e Nicholas também pronunciaram breves discursos de apoio. O debate prosseguiu até passada da meia-noite. Quando o assunto foi levado a votação, Rafe aguardou com rosto impassível como se o resultado fosse indiferente. Lucien se sentou à direita de seu amigo e lhe foi dando conta de como iam os votos. Ia ficar apertado, muito apertado, e a câmara inteira guardava um tenso silêncio. A resolução ganhou por um só voto. Ao tempo que se elevava um murmúrio de vozes, Rafe se permitiu um sorriso de júbilo. — Me alegro de que tenha vindo, Nicholas. — Esperemos que a resolução sirva para algo bom. — Nicholas bateu no ombro de Rafe. — 41


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Bem feito. Temia que ganhassem os partidários de esmagar às colônias. Rafe se voltou para Lucien. — Gostaria de vir à minha casa para celebrar? Talvez possamos achar alguma outra forma de exercer pressão que se possa apresentar ao governo. — Irei mais tarde. — Lucien percorreu a lotada câmara com o olhar. — Há algumas pessoas que quero saudar. Lucien não se surpreendeu ao ver que Mace e Nunfield tinham comparecido, nem ao ver que votavam contra a medida proposta. Abriu caminho através da multidão em direção a eles. Mace levantou as sobrancelhas quando Lucien se uniu ao grupo. — Realmente está a favor de nos render diante dessa escória de americanos? — Não se trata de uma rendição, mas sim de um compromisso — replicou Lucien enquanto se colocavam de um lado da massa de homens que saíam da câmara. — Não vejo razão para continuar uma guerra inútil. — Você fala como se abrigasse tendências perigosamente liberais — disse Nunfield com fingido horror. — Provavelmente leia os radicais como Leigh Hunt e L.J. Knight e esteja de acordo com eles. — Às vezes sim. — Lucien fez um gesto para mostrar a multidão. — A paz não tem que ser um assunto radical. A maioria das pessoas que estão aqui têm parentes do outro lado do Atlântico. Eu mesmo tenho. Deveríamos transformar os americanos em nossos amigos, não queimar sua capital. — É certo que nos deram o tabaco, pelo qual lhes devemos algo. Falando de tabaco... — Mace extraiu uma caixinha dourada de rapé e a abriu com uma elegante giro da mão esquerda. Depois de inalar uma pitada, lançou um suspiro de prazer. — Delicioso. Quase tão agradável como o óxido nitroso. Alguma vez o provou? Embora a expressão de Mace fosse natural, havia uma nota em sua voz que fez Lucien entender que a pergunta era significativa. — Não, mas ouvi falar dele, naturalmente. Tenho entendido que a inalação desse gás produz um efeito parecido à intoxicação, só que sem a dor de cabeça no dia seguinte. — É inclusive melhor — assegurou Mace. — Diferentemente do álcool, que costuma lhe deixar taciturno, o nitroso lhe faz sentir-se em paz com o mundo. Por isso o chamam, às vezes, de gás da risada. Tenho um químico que fabrica nitroso para mim, e ocasionalmente convido alguns amigos a apreciá-lo comigo. Vou fazer isso amanhã de noite. Gostaria de nos acompanhar? —Eu adoraria — respondeu Lucien, não de todo sincero. — É uma dessas coisas que sempre quis provar. — Então, até manhã. — Mace se despediu com uma inclinação de cabeça e se foi. Enquanto Lucien retornava em busca de Rafe e Nicholas, permitiu-se um sorriso de satisfação para seus amigos. O óxido nitroso tem fama de soltar a língua e as inibições, de maneira que talvez se inteirasse de algo interessante de outros convidados da festa. Do mesmo modo, teria que certificar-se de que Mace não soubesse nada dele. Era uma sorte que Lucien tivesse experiência em seguir seu próprio conselho.

CAPITULO 8

Lucien chegou deliberadamente tarde à festa do óxido nitroso de lorde Mace. Sua casa se 42


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encontrava só a duas quadras da de Strathmore, de maneira que foi a pé. Como o tempo era inusitadamente frio para essa época do ano, mais próprio de janeiro que de novemb ro, tinha as ruas inteiras para si. As cortinas da casa de Mace estavam fechadas, o que a deixava tão escura que parecia desocupada. Entretanto, um impassível mordomo atendeu prontamente à chamada à porta de Lucien, tomou sua capa e lhe conduziu até a sala. As mortiças lamparinas iluminavam aproximadamente uma dúzia de pessoas, homens em sua maioria, mas entre os quais também havia algumas mulheres. O que distinguia aquela de outras reuniões sociais eram os sorrisos bobos e as grandes bexigas de couro que todos os convidados inalavam periodicamente. Vários serventes se moviam ao redor em silêncio, trazendo recipientes novos quando os convidados lhes assinalavam com um gesto que deviam substituí-los. Lucien percorreu a sala com o olhar, procurando seu anfitrião. Havia vários convidados conversando e rindo juntos, embora sua conversa parecesse um pouco desorientada. Outros, talvez mais intoxicados, tinham-se voltado para si mesmos em estado de transe, mais interessados por suas próprias sensações que pelos que os rodeavam. Em um canto estava lorde Nunfield sentado em uma cadeira, alternando pequenos goles de vinho com inalações de sua bolsa de gás. Muito perto dele se encontrava lorde Chiswick sentado no chão em companhia de uma mulher que ria bobamente estendida sobre seu colo. Levantou sua bexiga desinflada e fez um gesto a um criado para que se aproximasse. — Está vazia — disse em tom queixoso — Necessito mais. O criado trouxe em silêncio outra avultada bexiga e a substituiu pela gasta. Depois de uma ávida chupada à longa pipa, a expressão de Chiswick se dissolveu em um sorriso abençoado. Nesse momento Mace disse com voz fria: — Me alegro de que tenha podido vir, Strathmore. — Obrigado pelo convite. Lucien deu a volta e verificou que seu anfitrião tinha o rosto avermelhado e as pupilas dilatadas de tal modo que seus olhos pareciam negros. Se o óxido nitroso era o causador daquilo, explicava-se que houvesse tão pouca luz. — Terá que esforçar-se para ficar ao nível dos outros — disse Mace. — Venha aqui, onde há mais silêncio. O conduziu a um saguão contínuo e ambos se acomodaram em poltronas revestidas de couro. Um criado se apressou a lhes trazer duas bexigas de gás. Lucien examinou a sua e calculou que teria um volume aproximado de quatro litros. — Como se produz o gás? — Esquentando certa substância... Nitrato de amônia, creio — explicou Mace. — Naturalmente, não permito que o químico o prepare aqui porque em ocasiões a m istura explode. Adiante, prove um pouco. Lucien ajustou o longo cachimbo de tubo e começou a inalar o gás com a esperança de que não lhe apodrecesse o cérebro. Uma vez esvaziada a bexiga, disse: — É relaxante, mas nada mais. Mace afastou para um lado a bexiga e entregou a seu hóspede uma nova. — Demora uns minutos em fazer pleno efeito. Pela metade da segunda bexiga, Lucien começou a sentir-se enjoado, embora não fosse desagradável. Inalou outra vez e um vibrante formigamento se estendeu por todo o corpo, dançando nas veias e ricocheteando nas extremidades. As cores lhe pareceram mais brilhantes e se sentiu eufórico, intensamente vivo. — Interessante. Começo a entender por que você gosta disto. 43


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— Chega a ser inclusive melhor — disse Mace ao mesmo tempo em que fazia um gesto para que trouxessem mais. — Se o nitroso fosse fácil de obter, a bebida sairia de moda. Lucien riu, porque o comentário lhe pareceu muito gracioso. Não havia se sentido tão despreocupado desde que era menino. Mace tomou um caderno e um lápis da mesa que tinha ao lado. — Descreva as sensações que está experimentando. Meu químico está recolhendo dados sobre a reação de distintas pessoas ao gás. — É como... Como ser música. — Lucien fez um gesto com as mãos para explicar o inexplicável. — Em certa ocasião, um amigo me levou a Abadia de Westminster para ouvir o Messias de Hendel. O edifício inteiro vibrava com o som de centenas de instrumentos e vozes. Isto se parece um pouco. — Zumbem-lhe os ouvidos? Lucien parou a pensar. — Sim, vibram ao mesmo ritmo que meu coração. Mace seguiu fazendo perguntas, embora às vezes Lucien lhes perdesse o fio. O tempo começou a tornar-se impreciso quando lhe puseram nas mãos outra bolsa de gás, e depois outra mais. Deu-se conta de que Mace estava inalando o nitroso muito mais lentamente. Embora fosse evidente que o outro homem queria lhe intoxicar, não parecia que valia a pena preocupar-se com isso. Em uma ou duas ocasiões Lucien tentou reunir sua mente dispersa, mas nem sequer pôde recordar a razão pela qual queria tentar. Tomava as coisas muito a sério, todos seus amigos diziam, de modo que deveria aproveitar aquela oportunidade para relaxar e desfrutar. Havia uma pequena fresta de sua mente que se mantinha afastado, vigilante, mas carecia de poder para agir. Simplesmente observava. Depois de várias perguntas sobre suas reações ao óxido nitroso, Mace lhe perguntou como por acaso: — Por que quer unir-se ao clube dos Demônios, Strathmore? Desta vez eu gostaria que me dissesse a verdade. — Quero saber... Saber... — A mente de Lucien ficou momentaneamente em branco e não era capaz de recordar o que era o que estava empenhado em averiguar. Nos segundos que transcorreram enquanto procurava a resposta, reconheceu o duro brilho dos olhos de seu anfitrião. Mace tinha esperado aquele momento. Não era algo inesperado. O que surpreendia Lucien era que, apesar de anos de prática em guardar segredos, queria soltar impulsivamente a verdade. Os habituais muros que representavam a racionalidade e a inibição se desvaneceram, e tinha a língua disposta a dizer que estava procurando um espião e que pretendia lhe destruir quando o encontrasse. A parte de sua mente que permanecia afastada lhe disse friamente que se desse essa resposta e Mace fosse o espião, havia excelentes probabilidades de que ele mesmo não sobrevivesse a essa noite. Seria fácil fingir uma morte acidental: um escorregão nos paralelepípedos, um assalto por parte de ladrões desconhecidos, e teria desaparecido. A sociedade ficaria impressionada e consternada, durante um dia ou dois. Lutando por evitar dar uma resposta, Lucien balbuciou: — Sinto muito... O zumbido é cada vez mais forte. É difícil ouvir com clareza. Mace afiou o tom de voz: — Me diga o que é o que pretende averiguar. —Quero averiguar... — Lucien, sem retroceder em seu empenho, tentou enfocar sua mente fragmentada, conectar com aquela pequena parte de si mesmo que ainda conservava a clareza. Esfregou a testa, mas não chegou a notar a pressão de seus próprios dedos. Droga, pensa! 44


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Duvidava que pudesse mentir, nem sequer para salvar sua vida, mas viu com uma onda de alívio que podia oferecer verdades menores. — Queria averiguar... Mais a respeito de você e dos outros. Às vezes me sinto... Muito cansado de mim mesmo. Sou muito sério. Invejo essas pessoas capazes de viver para o prazer, porque eu não sei fazê-lo. — deu-se conta com certa surpresa de que aquelas eram coisas que nunca tinha visto em si mesmo. Mace repetiu a pergunta de vários modos diferentes, mas agora que Lucien tinha pensado nas respostas já pôde responder mais facilmente. No final Mace se reclinou em seu assento e lhe contemplou com as pálpebras entreabertas. — Felicitações, Strathmore, acaba de passar na prova de entrada ao clube. Ninguém pode ser iniciado no grupo sem sofrer a prova do óxido nitroso, já que parece que converte os homens em seres mais cândidos do que o habitual. Agradecido por poder baixar a guarda, Lucien perguntou: — Alguma vez alguém fracassou? — Normalmente não, mas você poderia tê-lo feito. Perguntava-me por que queria unir-se a nós, os homens complicados me fazem ser precavido. Mas posso entender que esteja aborrecido de tanta sobriedade. Nós lhe curaremos isso. Para os homens ricos e de bom berço como nós, o prazer é um dever. — Mace inalou profundamente de uma nova bexiga de gás e seus olhos injetados em sangue brilharam com um fogo interior. — As simples satisfações animais estão ao alcance de qualquer um, mas os refinamentos do êxtase requerem talento e imaginação. Já saberá, Strathmore, já saberá. Mace se levantou e fez um gesto a um lacaio para que lhes trouxesse duas bexigas cheias. Logo disse a Lucien: — Já que vai ser um de nós, posso lhe mostrar algo especial. Lucien se sentiu percorrido de cima abaixo por uma sensação de enjôo ao ficar de pé e se agarrou ao encosto da poltrona. Quando a cabeça se estabilizou, seguiu Mace para o exterior da sala. Não sentiu nada quando golpeou a coxa contra a aguda quina de uma mesa; de fato, não sentia seu corpo absolutamente. Não estava tão intumescido, parecia desligado. Muito estranho. Na metade do caminho para as escadas, voltou-se e olhou para baixo, ao vestíbulo. Se caísse pelas escadas e se espatifasse contra as lajes de mármore, tampouco sentiria nada. — Vamos — disse Mace com voz impaciente e um tanto turva. — É você uma das poucas pessoas que podem apreciar isto plenamente. Lucien, obediente, continuou subindo o segundo lance de escada e depois um corredor que conduzia à parte de trás da casa. Ao chegar, Mace abriu com chave uma porta que dava a uma sala em que havia uma mesa de trabalho no centro e balcões de vidro ao longo das paredes. Quando Mace acendeu uma lamparina, Lucien disse, mas de modo desnecessário: — Aqui é onde guarda sua coleção de objetos mecânicos. — Observou o interior de uma vitrine e viu um grupo de três figuras, uma das quais parecia estar cortando a cabeça da outra. — Da Baviera? Mace assentiu com a cabeça. — São João Batista sendo decapitado. Muito estranho. Mas não é nada comparado com os que eu desenho. Servindo-se de uma pequena chave que fingia ser uma algibeira, abriu o único armário que tinha portas opacas. Em seguida, tirou um objeto mecânico e o depositou sobre a mesa. Depois de lhe dar corda com uma longa chave, deu um passo para trás para que seu convidado pudesse ver com clareza o objeto. Constava de duas figuras esquisitamente esculpidas, uma mulher nua e um homem também 45


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nu estendido entre as pernas dela. Com um chiado metálico de engrenagens, começaram a fornicar. Lucien ficou olhando como investiam as nádegas nuas da figura do homem e como se agitavam os braços da mulher em suposto êxtase. Aquela visão desencadeou uma frieza interior tão profunda que nem sequer a euforia gerada pelo gás pôde fazê-la desaparecer. O estimado «brinquedo» de Mace era uma caricatura da sexualidade, um símbolo da cópula mecânica e irresponsável que Lucien odiava na vida real. Em seu atual estado de desin ibição, não desejou outra coisa a não ser lançar aquele desagradável artefato no chão com um tapa e fazê-lo em pedacinhos. O impulso era tão forte que lhe tremeu o braço pelo esforço de reprimi-lo. Com voz de estudada neutralidade, disse: — Nunca vi nada igual. Excelente artesanato. Você tem uma mente... Muito engenhosa. — Não pode haver no mundo outra coleção como esta. Eu desenho os objetos e construo os mecanismos, e um ourives faz as figuras. — Mace tirou outra amostra. Esta representava uma mulher com dois homens, cada um deles comportando-se de um modo mais do que imaginativo. — Acho que é uma tarefa... Excitante. Lucien inalou da nova bexiga de gás, mas não pôde eliminar por completo sua sensação de asco. Felizmente, Mace não estava olhando seu hóspede; estava muito absorto em admirar suas pequenas monstruosidades. A única coisa que Lucien tinha que fazer era pronunciar comentários adequadamente admirativos da fabricação das peças, com alguma que outra pergunta a respeito de aspectos técnicos pouco habituais. Por fim todos os objetos estavam sobre a mesa, como representação de uma galeria de variações sexuais. Mace disse com a voz enrouquecida: — Me ajude a lhes dar corda para que todos funcionem ao mesmo tempo. Lucien lhe atendeu a contra gosto, começando por uma mulher e um cavalo. Odiava tocar aqueles objetos, mas não fez caso do que representavam e assim conseguiu cumprir sua parte na operação de lhes dar corda. Depois que ambos os homens percorreram a mesa de um extremo ao outro, transcorreram possivelmente dez segundos durante os quais todos os objetos estiveram funcionando, enchendo a habitação com seu coro de zumbidos mecânicos. Uma das figuras — Lucien não estava seguro de qual delas — tinha uma pequena buzina que simulava grosseiramente gemidos de prazer. Mace contemplou seus tesouros até que o último deles ficou sem corda. — Vou levar um às mulheres que estão lá em baixo — disse com voz espessa. — Gostaria de me acompanhar? Lucien conteve uma resposta sincera. — Não, obrigado. Ainda me sinto um pouco enjoado pelo gás. Mace acompanhou seu convidado para fora da sala. — O enjôo passa rapidamente — disse ao mesmo tempo em que fechava a porta com chave. — Se precisar deitar-se, os quartos que estão no outro lado da sala são para os convidados. Ansiando por estar a sós, Lucien aceitou a sugestão. A ala dos convidados estava maravilhosamente silenciosa e escura. Encontrou uma cadeira tropeçando com ela, e se sentou. Quando terminou o último vestígio do óxido nitroso, já estava sereno de novo. Sua mente vaga va à deriva em um mar prazer não ganho. Um barulho na janela o tirou de sua lassidão. Espiou por ela e viu uma figura negra e magra cuja silhueta se via recortada contra o vidro como uma aranha humana. Uma imagem pouco provável; talvez o gás produzisse alucinações. Nesse momento a moldura esquerda da janela se abriu de repente, deixando entrar uma rajada de ar frio e uma ágil forma humana. O intruso 46


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aterrissou no chão com um ruído surdo e depois se levantou. O som de sua respiração trabalhosa encheu o quarto. Um homem racional teria pensado duas vezes antes de atirar-se sobre um ladrão que poderia estar armado, sobre tudo se nem sequer se encontrava em sua própria casa, mas Lucien não era racional naquele momento. Teria conseguido se não tivesse tropeçado em outra cadeira na escuridão. A cadeira caiu ao chão com estrondo, lhe fazendo perder o equilíbrio e alertando sua presa. O intruso deixou escapar uma leve exclamação de alarme, saltou pela janela e desapareceu. Lucien olhou pestanejando o negro retângulo de céu noturno e se perguntou se tudo aquilo não teria sido produto de sua imaginação. Mas a janela certamente estava aberta. Espiou por ela e descobriu uma corda pendurando a cinqüenta centímetros em frente a ele. Ao olhar para cima, viu a forma escura do ladrão engatinhando até o telhado. Empurrado pelo mesmo instinto que lhe tinha feito cruzar o quarto, Lucien se apoderou da corda e se lançou ao exterior. Enquanto subia rapidamente para cima, o observador mental registrou um vento frio, mas não experimentava desconforto algum. A euforia da droga seguia alagando todo seu corpo, e subiu sem esforço como se tivesse asas. Inclusive a arriscada proeza de saltar na beirada para subir no telhado foi levada a cabo com toda facilidade. Soltou a corda e se ajoelhou sobre o lado aplanado enquanto reconhecia o terreno. O telhado era bastante plano para caminhar sobre ele se toma sse cuidado. Onde estava o ladrão? À direita não, onde se estendia uma longa superfície de telhas de ardósias. O indivíduo devia ter ido para a esquerda, onde havia uma cumeeira saliente do telhado que podia servir de esconderijo. Sua hipótese foi confirmada quando compreendeu que o som amortecido de deslizamento que ouviu correspondia à corda, que estava sendo içada e afastada para a esquerda. Quando se deu conta disso, o extremo da corda já estava fora de seu alcance. O ladrão devia encontrar-se do outro lado da cumeeira do telhado. Lucien subiu, valendo-se do ângulo que formava o telhado principal e a da cume ira para apoiar as mãos, joelhos e pés. Assim que levantou a cabeça para cima do ponto mais alto da cumeeira, foi açoitado pela força do vento. Abaixou-se rapidamente e se segurou com uma mão sobre a haste do beiral enquanto procurava sua presa. Embora o negro traje o fizesse quase invisível, o ladrão foi traído por sua própria rapidez de movimentos. Tinha cruzado todo o telhado e estava já a meio caminho da casa continua. Lucien o seguiu, com o instinto de caçador pulsando em suas veias com a mesma euforia que sentia ao galopar a cavalo por cima de campos e cercas. Deu uma gargalhada enquanto deslizava sobre as traiçoeiras telhas. Raposas e ladrões não eram mais que desculpas; o que importava era a perseguição. O deus da caça lhe protegia para que pudesse deslocar-se a uma velocidade que rapidamente diminuiu a distância entre ele e sua presa. Com a mente mal conectada ao corpo, lançou-se da cumeeira às chaminés, e dali ao telhado do seguinte edifício. O ladrão olhou para trás e cuspiu uma maldição ininteligível ao ver que ainda lhe seguiam. Então se lançou de um salto por cima do vão que separava a segunda casa da próxima. Ao chegar ao outro lado agarrou o que parecia ser uma corda que tinha deixado ali antes. Depois de recuperar o equilíbrio, lançou-se como um raio através das telhas e desapa receu atrás de outra cumeeira, levando a corda consigo. Quando alcançou a beirada, Lucien saltou sobre o vão sem hesitar. Mas a sorte tinha acabado. O telhado tinha uma inclinação mais pronunciada que os dois anteriores, e seus pés escorregaram sob seu peso ao aterrissar. Chocou-se com força e rolou, e a seguir começou a escorregar sobre as telhas de barriga para baixo. Tentou deter a descida, mas não havia nada em que se agarrar. Seus dedos deslizavam sobre a camada de gelo que cobria as telhas de ardósia. 47


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Com leve assombro se deu conta de que estava caindo inexoravelmente para sua morte. A droga que tinha lhe nublado a mente lhe produzia uma bendita sensação de despreocupação, bloqueando também a dor e o medo. Entretanto, embora sua mente mostrasse total indiferença diante da morte iminente, seu corpo, de forma a refletir, lutava por sobreviver, arranhando e tentando se agarrar nas pedras planas e escorregadias. Ao chegar ao lado do telhado, a mão que se agitava no ar encontrou um rebordo decorativo na pedra que conseguiu frear sua queda, e Lucien se encontrou oscilando precariamente sobre o lado, com a cabeça e os ombros suspensos por cima de três pisos e meio de negro vazio, pendurado nas pontas dos dedos. A gravidade era sua inimizade, e muito em breve lhe derrotaria. Era uma estúpida forma de morrer. Nesse momento uma voz gritou: — Agarre-se a isto! Lucien levantou os olhos e teve uma fugaz impressão de algo que voava para ele das sombras de um grupo de chaminés. Antes que pudesse registrar o que era, uma áspera corda lhe golpeou o rosto e o fez perder a tenaz segurança na beirada e precipitar-se de cabeça pelo mesmo lado. No momento de cair, por pura sorte conseguiu agarrar a corda com a mão esquerda. A corda se esticou e sua queda freou em seco com um puxão que lhe provocou uma forte sacudida nos músculos do ombro e o braço. Terminou balançando-se de uma mão no vazio, com o vento assobiando a seu redor. De momento se limitou a ficar ali pendurando felizmente, estupefato pelo improvável de sua situação. Mas a realidade caiu sobre ele quando se deu conta de que seus dedos em tensão iam se soltando pouco a pouco. Agarrou a corda com a outra mão e começou a subir com o mesmo estranho otimismo que lhe tinha metido naquele embrulho. Uma vez que esteve de novo a salvo sobre as telhas, levantou-se sobre mãos e joelhos e lutou por aspirar ar. Não sentia nenhuma dor, mas seu corpo insistia em tremer violentamente. Uma voz grave cortou o vento dizendo: — Graças a Deus! Que ladrão tão peculiar. Tinha que conhecer-lo. Engatinhou para cima até as chaminés, sustentado pela corda. Quando chegou a seu destino, o ladrão fugia de novo, mas ainda estava o bastante perto para que Lucien lhe agarrasse pela parte de trás do casaco. — Não tão depressa, meu amigo ladrão. Devo lhe agradecer por ter salvado a minha vida. O ladrão tentou escapar, mas perdeu pé sobre as telhas geladas e se chocou contra Lucien. Juntos caíram no seguro ângulo que formavam a chaminé e o telhado, Lucien debaixo, sua presa esparramada em cima dele. Depois de recuperar o fôlego, Lucien se deu conta de que havia algo muito familiar na sutil forma do ladrão. E também na esquiva e picante fragrância de cravo, que não era precisamente o que alguém esperava encontrar em um arrombador de casas. Recentemente tinha conhecido outra pessoa que também usava esse aroma de cravo. Com uma sensação de inevitabilidade, arrancou com um puxão o lenço preto que ocultava o rosto do ladrão. O rosto pálido e oval foi reconhec ido imediatamente inclusive no meio da escuridão. Lucien sorriu abertamente ao mesmo tempo em que imobilizava contra si a forma estendida e deliciosamente feminina da jovem. — De maneira que voltamos a nos encontrar, lady Jane. Ou como se chama esta noite. Começo a acreditar que estamos destinados a estarmos juntos. — Isto não é o destino, a não ser uma farsa — soltou Jane. Acompanhou o comentário com uma cotovelada no estômago de Lucien, em seu afã de escapar dele. O golpe lhe teria doído se seu corpo e sua mente estivessem devidamente conectados entre si. 48


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— Deve estar desejando que a transportem à Nova Gales do Sul — afirmou Lucien, ao mesmo tempo em que a abraçava com força para lhe imobilizar os braços. — Acreditei que lorde Mace estava ausente, porque a maioria das janelas estava às escuras. — Privada do movimento dos braços, tentou lhe dar uma joelhada na virilha. Felizmente, ele a segurava bem perto para que ela não tivesse espaço para lhe fazer nenhum dano. — Você é muito forte para ser mulher - disse meio sem fôlego. — Claro que, se não fosse não estaria pulando pelos telhados de Londres como um macaco enlouquecido. — Olhe quem fala! Era você que estava se arriscando como um demente. É incrível que não tivesse caído antes. — Empurrou com força com mãos e cotovelos, tentando se libertar de seus braços - Me solte maldito ordinário! — É que não quero soltá-la – replicou ele com simplicidade assustadora – Neste momento só estou fazendo o que quero. — Deveria ter deixado você cair do telhado! — Muito adequado – admitiu Lucien – Mas já que não o fez, tenho uma idéia melhor. E a beijou.

CAPITULO 9

Kit, furiosa, surpreendeu-se respondendo ao beijo. Era uma loucura, depois de os dois terem estado estendidos em um telhado gelado e tendo ela cometido um delito de importância, mas o humor e a sensualidade daquele homem eram irresistíveis. Seus braços eram um retiro de calor em contraste com a frieza da noite, sua boca e sua língua brincalhona um convite aos prazeres eróticos. À medida que o corpo de Kit foi se relaxando, Lucien afrouxou sua garra de aço e começou a acariciá-la. Inclusive sob as várias camadas de roupa de inverno que os separavam, Kit sentiu que sua pele vibrava em cada ponto onde ele a tocava. Uma grande mão se deslizou pelo quadril e se introduziu sob o casaco para lhe acariciar as costas com um ritmo suave que relaxou a tensão de seus músculos. Centímetro a centímetro, lábios, mãos e torso, foram entregando-se a ele, amoldando seu corpo ao dele. Não percebeu que lhe tinha sido tirado a camisa das calças até que sua mão entrou em contato com as costas nua dela. Aquilo teria implicado em outra deliciosa carícia se os dedos não estivessem frios como o gelo. A magia do momento se quebrou e Kit emitiu um murmúrio e se afastou de repente. — Isto é absurdo — disse de mau humor, como se não tivesse sido uma participante entusiasmada. — Você pode ficar aqui se quiser, mas eu vou partir deste telhado antes que morra congelada. Lucien levantou uma mão e lhe roçou a bochecha com delicada ternura. — Eu a manterei quente. Quando tentou aproximar o rosto para beijá-la de novo, ela se apressou em levantar-se e se sentou sobre os calcanhares, apoiada na chaminé. Esta noite Strathmore era um homem diferente, movia-se e falava com deliberada lentidão, diferente da penetrante intensidade das ocasiões anteriores. Depois de adivinhar a razão daquele comportamento, disse-lhe friamente: — Está bêbado. Não é necessário que se comporte como um idiota. 49


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Ele passou os dedos pelo cabelo despenteado. — Não... Não estou bêbado — disse com precisão. — É óxido nitroso. Aquilo explicava por que não tinha notado sabor a álcool ao lhe beijar. — Degenerado — murmurou. — Embora que outra coisa pode se esperar de um Demônio? — Você é muito interessante — protestou Lucien. — vou ser sincero com você. E sinceramente, minha pequena delinqüente, eu desejo você. — endireitou-se e tentou tocá-la de novo. — Nunca tinha beijado uma criminosa. Ela não sabia se ria ou o empurrava telhado abaixo. Conformou-se em afastá-lo com um tapa. — Não sou pequena, sou tão alta como muitos homens. Agora vou pegar a corda e descer antes que quem quer que viva nesta casa nos ouça brincar de correr aqui em cima e mande procurar o vigilante. Lucien rompeu a rir. — O vigilante é muito sensato para andar pela rua em uma noite como esta. — Nesse caso, nós deveríamos mostrar a mesma sensatez — replicou Kit. — É capaz de descer sem quebrar o pescoço? Ele pensou detalhadamente. — Creio que sim. Não era uma afirmação muito tranqüilizadora, mas sua força e seu instinto de auto conservação e sua capacidade atlética foram os que lhe salvaram antes. Já que desciam pela parte de trás da casa aterrissariam em um jardim cercado, Kit pegou uma ponta da corda, comprovou que estava firmemente atada à chaminé e engatinhou até o lado da casa que dava ao beco. Não havia ninguém à vista e as janelas estavam escuras, de modo que enrolou a corda ao redor da cintura e se preparou para a descida. — Quando chegar ao chão puxarei a corda duas vezes — disse para Strathmore, que a tinha seguido. — Em seguida você desce, e pelo amor de Deus, tome cuidado. Depois da ágil manobra de balançar-se do telhado na corda, Kit começou a descer escorregando de modo controlado. As luvas de couro lhe protegiam as mãos de possíveis arranhões. Tocou o chão com pé seguro, mas ao fazê-lo escorregou em uma placa de gelo que havia bem debaixo da corda. Por sorte ainda estava presa a corda, o que a salvou de cair. Afastou-se com cuidado e depois fez o sinal para Strathmore. Logo que ele chegasse ao chão, ela pensava em sair correndo com tal velocidade que envergonharia uma lebre assustada. O atrevido conde ficaria sozinho, e que se arrumasse como pudesse. Lucien desceu tão depressa que Kit se perguntou como suas mãos teriam. Dizendo-se a si mesma que aquilo não era de sua conta, preparou-se para começar a correr. Nesse momento, Strathmore se chocou com a placa de gelo e se estatelou contra o chão. A violência do impacto a fez expressar um gesto de dor. —Você está bem? — Creio que sim. — Lucien tentou se levantar, mas caiu de novo quando o tornozelo direito se dobrou. — Pensando melhor, acho que não. — Mas que inferno! — disse Kit com convicção. — Será que quebrou a perna? — Não creio. — apalpou-se o membro em questão. — Este tornozelo protesta cada vez que o trato mal. Dentro de um dia ou dois ele estará bem. — Com ajuda da corda, levantou-se e em seguida se apoiou pesadamente contra a parede da casa. — Dói-lhe muito? — Querida, neste momento não há nada que me doa. — Deixou escapar um sorriso. — Poderia ter me mutilado o pé com uma faca sem afiar e eu não saberia. Se alguma vez eu for 50


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obrigado a me submeter à faca de um cirurgião, antes penso me entupir de óxido nitroso. — Deu um passo com cautela e caiu sobre o joelho. — Entretanto, embora o tornozelo não me doa, demonstra certo empenho em não me deixar andar. Kit lançou um suspiro. — Ajudarei você a chegar até a porta de lorde Mace. Por favor, não chame até que tenha tido a oportunidade de escapar. — Agradeço a oferta — disse ele cortesmente, — mas na realidade prefiro não voltar para casa de lorde Mace. — Se ficar aqui fora nesse estado, sem nem sequer uma capa para abrigar-se, estará morto antes que amanheça — assinalou-a, procurando conter sua fúria. — Vivo a umas duas quadras daqui. Não se preocupe, posso percorrer essa distancia por mim mesmo. — Tentou demonstrá-lo e esteve a ponto de voltar a cair. E teria ca ído, se não fosse pela parede. Resignada, Kit lhe rodeou os ombros com um braço. Strathmore era muito grande e maciço. — Ajudarei você a chegar a sua casa, se acreditar que pode chegar até lá sem ter mais problemas. — Não lhe garanto nada, querida. — Apesar de tudo, havia uma nota de humor em sua voz. Procurando não pensar no comprido e duro corpo do homem, Kit pôs-se a andar em direção a rua. Deviam ter o aspecto de dois bêbados ajudando um ao outro a chegar em casa. — Se você não tivesse se intrometido — disse em tom ácido, — teria podido partir quando julgasse conveniente e teria escapado com minha corda. Agora terei que comprar uma nova. — Eu a comprarei. — Lucien refletiu um momento. — Pensando bem, não vou fazer. A última coisa que quero é animá-la a seguir com essa vida de delinqüente. E não é que você necessite que a animem. Apostaria que não me perguntou onde é a minha casa porque já averiguou isso enquanto urdia seu plano para me roubar. Equivoco-me? Não se equivocava, de modo que Kit não quis dar mais importância ao comentário oferecendo uma resposta. A princípio ele manteve uma conversa ininterrupta e boba, mas depois ficou em silêncio, pois sua respiração ia se tornando mais árdua. Pelo menos, o mau tempo tinha feito que as ruas estivessem desertas. A meia quadra de seu destino, tropeçaram em outra placa de gelo e ambos caíram. Kit não se machucou, mas o conde deixou escapar uma forte exclamação. Enquanto a garota lhe ajudava a levantar-se, ele murmurou: — O efeito do óxido nitroso está começando a desaparecer. Por desgraça. Os duzentos últimos metros pareceram intermináveis. Quando por fim alcançaram a casa, Kit franziu o cenho ao pôr o pé nos altos degraus de mármore. — Chamarei para que seus criados apareçam. É preciso um par de homens para lhe ajudar a subir até a porta. — Existe um modo melhor — ofegou Lucien. — Pelo beco. Quando chegaram a uma porta situada ao nível da rua na parte posterior da casa, Kit se sentia tão cansada que não estava segura de quem sustentava quem. Quando ele ordenou; — Vire-se por um momento. Ela obedeceu sem nem sequer tentou enganá-lo e dar uma olhada. Ouviu o ruído do mover de uma pedra, seguido de uma chave entrando em uma fechadura. Voltou-se, picada pela curiosidade. — Se guarda uma chave escondida atrás de um tijolo, é por que deve fazer isto com certa freqüência. Por que não usa a entrada principal como um conde como Deus manda? 51


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— Às vezes eu gosto de ficar despercebido. — Abriu a porta e revelou um triste vestíbulo iluminado por uma pequena lamparina de azeite. — Estou começando a pensar que é você tão ladrão como eu. — Ajudou-o a entrar, pensando que era perigoso sentir tal camaradagem por um suspeito. — Vejo que há um corrimão nessa escada, assim suponho que você poderá subir por si mesmo. — Agarrou o corrimão e o entregou a Lucien. — Boa noite, lorde Strathmore. Tinha deixado a fuga para muito tarde. Antes que pudesse dar um passo, um braço grande e poderoso a rodeou pela cintura e a freou em seco. — Não tão depressa, minha amiga trapaceira. Kit se preparou para a batalha, mas ele a tranqüilizou dizendo: — Uma trégua, querida, ao menos por esta noite. Seria muito pouco cavalheiresco entregá -la em mãos da lei quando me salvou a vida. — Então é o que quer? — perguntou ela com cautela. — Quero que venha ao andar de cima e procure se aquecer para não terminar congelada em algum bueiro. O conde tinha razão: Agora que o calor do corpo dele já não a envolvia, estava tremendo sem poder evitar. Quando ele trancou a porta, ela o acompanhou escada acima. Embora Strathmore se apoiasse pesadamente sobre o corrimão, conseguiu bem sem a ajuda de Kit. Esta se perguntou se não estaria exagerando a lesão para convencê-la a lhe acompanhar. Muito provavelmente; resultava óbvio que o conde era um homem matreiro, exatamente o tipo de malfeitor que estava tentando caçar. Entretanto, apesar de seus receios, não podia ter medo dele. Sentia um estranho tipo de relação entre ambos, a sensação de que os dois eram espíritos afins. Racionalmente, sabia que aquele sentimento era uma fantasia criada pela necessidade de companhia. Nunca tinha levado bem o fato de estar sozinha, e era malvadamente tentador derrubar os problemas de alguém sobre outra pessoa. Quem dera que se atrevesse a confiar em Strathmore! Talvez se arriscasse se sua vida fosse a única que estava em jogo, mas não podia jogar com a segurança de outro. Contudo, embora o conde fosse um monstro, por esta noite estaria a salvo; o fato de resgatálo lhe tinha proporcionado uma margem de graça. Fez uma careta ao recordar o terror que sentiu quando ele estava deslizando para a morte. Strathmore podia ser inquietante e incômodo, mas não queria lhe ver morto. Quando chegaram ao andar de cima, ele a conduziu à biblioteca, onde ainda brilhavam algumas brasas. Kit se aproximou da lareira e ficou de joelhos para avivar o fogo enquanto Strathmore empregava a lamparina para acender um candelabro de velas. Depois ele foi coxeando até um armário e tirou uma garrafa de conhaque e duas taças. Serviu uma generosa medida de licor em cada taça e esvaziou a sua de um gole só. Depois de enchê-la de novo, sentou-se em uma das poltronas que cercavam a lareira e começou a lutar com suas botas. A esquerda saiu facilmente, mas a do pé lesado resultou ser mais difícil. Uma vez que o fogo começou a arder alegremente, Kit bebeu um gole de conhaque. A ardência a fez piscar, mas certamente serviu para esquentá-la. Depois de um segundo gole mais cauteloso foi ajudar o conde. Quando se ajoelhou para tirar a bota, notou um contato leve na cabeça ao mesmo tempo em que ele lhe tirava o lenço e o baixava até os ombros. — Esta é por fim sua verdadeira cor de cabelo, não? Muito bonito. Ela levantou o olhar e conteve a respiração. Os olhos do conde estavam dourados, de uma calidez mais embriagadora que o conhaque. Procurando parecer desenvolta, respondeu: — É simplesmente castanho claro, do mais comum. Afastou para trás as mechas que tinham escapado do coque que usava na nuca. 52


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— Você subestima seu cabelo. É como a seda nova, resplandecente e com fios de cor âmbar e bronze. Kit se estremeceu quando os dedos do conde lhe roçaram a têmpora. Como sedutor, era um de primeira classe. Inclinou-se com determinação e puxou a bota, mas sem êxito. Ao ouvir a forte inspiração que fez ele, disse: — Talvez fosse melhor cortá-la. — E estragar meu melhor par de botas? — exclamou ele, escandalizado. —Tente de novo, sobreviverei. Kit se encolheu de ombros e puxou outra vez com todas suas forças, quase indo aterrissar no chão quando a bota saiu de repente. Um espasmo cruzou o rosto do conde ao mesmo tempo em que reprimiu uma maldição. Ela tocou com suavidade o tornozelo inchado. — Tem certeza de que não está quebrado? — Muita certeza. — O conde tirou a gravata de lenço e a utilizou para formar uma grosseira atadura com a qual envolveu o tornozelo. Em seguida pegou uma banqueta estofada e apoiou nela o pé ferido. — Como lhe disse isto já me aconteceu antes. Não é mais que uma torção. — É uma lástima que não tenha óxido nitroso para eliminar a dor. Ele fez uma careta. — Foi uma experiência interessante, mas não queria repeti-la. Esse gás faz perder o controle, um estado que eu não gosto muito. — Isso não me surpreende. Sentindo a necessidade de ocupar-se com algo, encontrou uma manta dobrada no sofá e a estendeu sobre o conde. Continuando, tirou a capa molhada e o lenço, voltou a pegar sua taça e se acomodou na poltrona que havia do outro lado do fogo. Strathmore se acomodou com um suspiro. — Que noite tão estranha foi esta. — Arqueou uma sobrancelha em direção a Kit. — Devo felicitá-la por mentir tão bem. Orgulho-me de saber conhecer as pessoas, mas você certamente me enganou na casa de Chiswick. Que demônios traz entre as mãos? Ela apertou os lábios. — Deveria ter sabido que me convidava para me interrogar. Faria melhor me arriscando a passar frio. — Teria que estar morto para não ser curioso — disse Lucien laconicamente. — Você foi muito convincente em seu papel de irmã angustiada. De verdade tem um irmão? Ela abaixou o olhar à taça que tinha nas mãos. — Se fui convincente, foi porque havia... Havia algo de verdade emocional no que lhe disse. Entretanto, a história era falsa. Não tenho nenhum irmão, nem no exército nem em nenhuma outra parte. — Então por que vigia os Demônios? Ela elevou o olhar de novo com expressão desafiadora. — Por que tenho que responder a suas perguntas? — Basta o fato de que eu tenha o dobro de seu tamanho e que seja notavelmente desumano? Uma repentina gargalhada iluminou seu grave semblante. — Esta noite não, milord. Deixando à parte o fato de que declaramos uma trégua, não pode se mover rápido o suficiente para me apanhar. Ele lhe dirigiu-lhe um olhar feroz. — É um dia triste aquele no qual um homem não pode ser respeitado em sua própria casa. Ela riu outra vez, e ele lhe perguntou com suavidade: 53


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— Quem é você? Kit esteve a ponto de responder, mas se conteve. — Diabo de homem! Está tentando me desarmar com humor. — Depositou sua taça de conhaque com um tinido de cristal. — Mas não vai ser tão fácil me apanhar. — Bom, valia a pena tentar. — O tom leve se desvaneceu. — Pode ser que esta noite haja uma trégua entre nós, mas não posso lhe permitir que continue com suas atividades delinqüentes. Além de ser ilegal, a invasão de moradia é um passatempo muito perigoso. — Se você é tão virtuoso, por que é um Demônio? Lucien tinha se perguntado quando tocaria no assunto. — Não sou um membro oficial do clube, embora logo o seja. Kit, surpreendida, disse: — Por que se incomoda em entrar no clube? Essa turma não parece ir com seu estilo. — Eu tenho amigos de muitos tipos. Os Demônios são divertidos, de uma maneira sem complicações. Quando quero ter uma companhia mais cerebral, procuro em outra parte. — Contemplou-a com olhar pensativo por cima da borda de sua taça enquanto bebia um gole. — Minha desculpa é o gosto depravado, mas o que esse grupo interessa a você? Mostrou-se assombrosamente persistente. Com a indecisão desenhada no rosto, Kit se levantou de seu assento e começou a caminhar pelo cômodo, movendo-se com esbelta e inconsciente elegância. As máscaras que tinha usado nos encontros anteriores tinham caído para deixar descoberta um breve indício da mulher que ela era na realidade. Entretanto, essa mulher ainda seguia sendo um paradoxo. Em seu trabalho, Lucien tinha conhecido mais pessoas temerárias das que lhe corresponderia conhecer, normalmente homens, mas às vezes também mulheres, que se jogavam no perigo e assumiam riscos. Jane não era uma dessas pessoas, porque não parecia encontrar prazer em suas ações audazes. Havia nela uma falta de confiança que era muito real, mas que em troca estava unida a uma força férrea e profunda que a fazia meter-se na boca do leão uma e outra vez. Uma vez tomada a decisão, Kit se virou e se encarou com ele. — Já que há uma trégua entre nós e que você não é um Demônio iniciado, vou dizer a verdade. Dá amostras de ter consciência, talvez o que vou contar lhe convença a abandonar o clube. O óxido nitroso devia lhe afetar ainda, porque disse impulsivamente: — A verdade será uma mudança agradável. Ela franziu o cenho. — Este assunto não é para dar risada. Sou jornalista. Escrevo ensaios e artigos para diversas publicações. Estou trabalhando em uma reportagem sobre o clube dos Demônios. Na teoria, não é pior que qualquer outro grupo de homens privilegiados e libertinos, mas recebi a informação de que algumas de suas práticas ultrapassam a depravação do original clube do Fogo do Inferno. — Como quais? — Raptar e assassinar jovens moças inocentes como parte de suas cerimônias — disse ela de uma vez. Lucien ficou sério imediatamente. — Se isso for certo, é espantoso. — Estou muito segura de que é lama. Lucien pensou nos membros que conhecia. Era impossível acreditar que o jovem lorde Ives, por exemplo, tolerasse um ritual de assassinato. — Custa-me acreditar que a maioria dos Demônios participe de semelhantes atividades. — E provavelmente tenha razão. Creio que a maior depravação se limita a um círculo mais 54


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íntimo. — Os Discípulos? Kit lhe olhou com dureza. — São familiares? — Só sei que existem, não conheço suas identidades nem qual é seu propósito. Você acredita que estão se valendo do grupo mais amplo para disfarçar suas atividades? — Exatamente. Possuo algumas prova, mas quero ter mais antes de escrever meu artigo. — Que tipo de provas encontrou? — Conheci uma jovem que conseguiu escapar do lugar onde a mantinham prisioneira. Contou-me o que ouviu seus raptores e alguns dos criados falarem. Como sua informação é limitada, estive tentando conseguir mais. Lucien tamborilou com os dedos no braço da poltrona. — Já é bastante estranho que uma moça seja jornalista, mas que, além disso, persiga um assunto como este exige uma boa dose de credulidade. — De outro modo, acredita que estou mentindo de novo? — espetou ela. — Se houvesse mais mulheres jornalistas, escrever-se-ia mais sobre esses assuntos. A Inglaterra está cheia de mulheres e crianças que sofreram maus tratos, uma situação que muitos homens consideram normal. Aquelas palavras destilavam convicção. Também produziam um débil eco no mais recôndito da mente de Lucien. Algo que tinha lido... — Como se chama? Talvez tenha visto algum de seus artigos. — Já que jamais tomariam a sério uma mulher que escreve, escrevo sob vários pseudônimos diferentes, dependendo da publicação. Aquilo era plausível; a maioria dos escritores que trabalhavam para a imprensa variada e popular possuía múltiplas identidades. — Eu leio muito. Me diga um nome que você utiliza com freqüência. Kit hesitou. — você me dá sua palavra que de não vai revelá-lo? — depois que ele assentiu, disse —: Para o Examiner, sou L. J. Knight. — Santo Deus! — exclamou Lucien. Aquela publicação semanal era famosa por sua coragem e seu zelo reformista; de fato, os dois irmãos que a dirigiam se encontravam atualmente no cárcere por seu desrespeitoso tratamento ao Príncipe Regente. — L.J. Knight, o agitador radical, é uma jovem? — Não precisa ser homem nem velho para ver que há muitas coisas em nossa sociedade que necessitam de uma mudança. De fato, minha juventude e meu sexo são uma vantagem, já que eu vejo o mundo de forma distinta dos escritores varões - respondeu Kit com frieza. — Tinha vinte anos quando apresentei pela primeira vez um ensaio a Examiner. Leigh Hunt o comprou imediatamente e pediu mais. Ainda sem acreditar em tudo, Lucien disse: — Surpreende-me nunca ter ouvido dizer que L. J. Knight era uma mulher. — Comunico-me com Leigh Hunt e com meus outros editores por correio ou por mensageiro especial. Querendo provocá-la, o conde disse: — Pareceu-me que foi muito dura com lorde Castiereagh no artigo que escreveu sobre ele no verão passado. — Está me confundindo com outro jornalista. Eu nunca escrevi sobre o ministro dos Assuntos Exteriores. — O brilho irônico de seus olhos demonstrava que tinha reconhecido a 55


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armadilha. Lucien pensou em servir-se de mais conhaque, mas chegou à conclusão de que necessitava de toda sua lucidez mental. — Conseguiu algo roubando os Demônios? — Não tanto como poderia ter feito se você não houvesse se interposto em meu caminho uma e outra vez — repôs ela, moderando sua exasperação com um pouco de humor. — Não obstante, escalar moradias só é parte de minha investigação. As provas aumentam por momentos, e logo estarei pronta para escrever meu artigo. — O que averiguou? Kit sacudiu negativamente a cabeça. — Seria uma idiota se lhe dissesse mais. Lucien estudou com respeito sua figura esbelta e feminina. Era muito corajosa para enfrentar homens malvados, armada somente com uma pluma. — Querida, é você uma fonte constante de surpresas. — Assim como você. Para ser um esbanjador profissional, possui uma mente notavelmente inquisitiva. — Inclinou a cabeça. — Você chama todas as mulheres de «querida»? — Só as que me agradam. Que são muitas, de fato. — Cabe esperar tal coisa de um libertino. — Eu disse as que me agradam, não que as persiga sexualmente — replicou ele. — São duas coisas totalmente distintas. — Parece-me incomum que os homens gostem de verdade das mulheres. Por que você seria diferente? — Quando era pequeno, meu amigo mais íntimo era uma menina — respondeu Lucien depois de uma pausa intencional. — Além disso, sigo sem saber qual é seu verdadeiro nome, de modo que «querida» é bastante neutro. Kit sorriu ligeiramente. — Na realidade me chamam de Jane. — Lady Jane Knight? Ou Luisa ou Laura? — Já lhe disse tudo o que tinha intenção de lhe dizer, milord, de modo que pode deixar de fazer perguntas. — Dirigiu-lhe um olhar sereno. — Agora que disse a verdade, compreende por que investigo os Demônios? — Sim, mas sigo sem aprová-lo. Está você brincando com fogo. — Então pode ser que eu me queime. — Kit se levantou e vestiu o casaco, que estava desprendendo vapor brandamente junto ao fogo. — Pois que assim seja. Boa noite, milord. Quando começava a envolver o lenço ao redor da cabeça, Lucien se levantou de seu assento, pegou sua bengala e se aproximou dela coxeando. — Onde vive? Kit lançou um suspiro. — É você muito perseverante. — É uma qualidade que deve entender. E isso é acaso a única coisa que temos em comum. — Elevou sua mão livre e acariciou com suavidade a branda curva da mandíbula de Kit com os nódulos. — Não somos inimigos, você sabe. Ela retrocedeu. — Não tenho tanta certeza disso como você. — Vai negar que existe certa atração entre nós? —Embora não seja tão boa mentindo — disse ela sardonicamente. — Mas a atração é uma coisa pequena e sem importância. Pode ser que lhe seja difícil acreditar que uma mulher possa 56


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interessar-se mais pela justiça e pela vida intelectual que pelos homens, mas esse é meu caso. Vivemos em mundos diferentes, lorde Strathmore. — É isto pequeno e sem importância? — Atraiu-a para os seus braços e a beijou, não com o prazer nublado pela droga que tinha sentido no alto do telhado, mas com os sentimentos que se geraram após. Paixão, desejo, esperança. As mãos dela se apoiaram sobre seus antebraços, abrindo-se e fechando-se espasmodicamente ao mesmo tempo em que sua mão tomava um seio. Através das várias camadas de tecido Lucien notou como o mamilo se endurecia sob sua palma. Ela enchia seus sentidos, o tato, o olfato, o ouvido. Quando inclinou a cabeça para beijá-la no pescoço, ela sussurrou: — Não, Lucien. Não... Não posso me permitir o luxo de que o desejo me distraia. Está me dando mais motivos para lhe evitar. O delicioso som de seu nome pronunciado pelos lábios dela apagou totalmente o senti do daquelas palavras. Kit retrocedeu pela metade e ele a seguiu, mas lançou uma leve exclamação ao sentir uma pontada de dor no tornozelo, que já tinha esquecido. — Maldição! — Com a testa coberta por uma camada de suor, agarrou-se a uma cadeira para não cair. — É incrível como a dor supera o desejo. — Se eu soubesse, teria me sentido tentada a lhe dar um chute no tornozelo antes. — Kit pegou o casaco e se dirigiu para a porta. — Já é hora de eu ir. Ele tomou uma lamparina e a seguiu. — Iluminarei o caminho até a saída. — Ofereceu-lhe um sorriso que era tão perigosamente sedutor como seus beijos. — Com a bengala em uma mão e a lamparina na outra, não há grande coisa que possa fazer para seduzi-la. Embora se pensar nisso, talvez me ocorra algo. — Então não pense nisso — disse Kit. Entretanto, quando chegaram à escada, pegou a lamparina sem dizer nada para que ele pudesse agarrar-se ao corrimão. Era outro exemplo do estranho modo em que trabalhavam juntos, uma harmonia instintiva que só tinha experimentado com outra pessoa. Não falaram até chegar à porta lateral. Lucien fez girar a chave na fechadura, mas manteve a mão segurando a maçaneta enquanto perguntava: — Onde você vive, Jane? À luz da lamparina, seus olhos eram de uma reluzente cor dourada. Ela não era um par apropriado para um homem assim, pensou Kit desesperada. Ele era um professor de mistérios que ela nunca tinha conhecido e fazia uso de seus conhecimentos com desumana gentileza, persuadindo-a mais que obrigando-a. Sabedora de que devia partir antes que desaparecesse sua última fresta de juízo, disse rapidamente: — Wardour Street. Tenho um apartamento no número 96. Mas o que lhe disse em outra ocasião é a verdade, lorde Strathmore: Na minha vida não há lugar para você. — Talvez possa aparecer. — Lucien soltou a maçaneta da porta e deu um passo para trás para deixá-la sair. A noite tinha piorado. Por sorte, seu destino se encontrava a só umas quadras dali. Enquanto caminhava pelas silenciosas ruas, surpreendeu a si mesma se perguntando como seria ser livre para corresponder ao interesse dele. Se as intenções de Strathmore fossem honradas, não vis... Se ela completasse felizmente sua missão... Entretanto, por mais que tentasse, não conseguia imaginar os dois juntos de maneira significativa. Tinha representado toda uma variedade de papéis e ainda representaria algum mais, mas nenhuma de suas identidades pertencia ao mundo de esplendor e riquezas do conde de 57


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Strathmore.

CAPITULO 10

Depois que Jane partiu, Lucien estava tão cansado que quase não pôde chegar ao final dos três lances de escada que conduziam a seu quarto. Entretanto, quando se deixou cair na cama, com o tornozelo doendo intensamente, sentia-se profundamente satisfeito. Sua dama misteriosa tinha admitido que existia uma atração mútua, e emb ora ainda duvidasse dela, já tinham dado os primeiros passos para uma relação mais gratificante. Jane. Ficou pensando no nome. Não a via realmente como Jane, mas estava começando a acostumar-se com o nome. Jane, serenamente sensual, tímida, mas decidida, com uma língua ácida e o coração de uma leoa. Tinha sido um prazer vê-la sem perucas nem maquiagem. Por fim tinha um rosto autêntico para visualizar. Gostava da suave ondulação de seu cabelo, e sua cútis sem maquiar possuía a delicada transparência das pérolas. Sobretudo, gostava da inteligência e a individualidade que irradiava agora que já não usava nenhum disfarce. Foi caindo pouco a pouco no sono, pensando em seus claros olhos cinza e no doce calor de seu esbelto corpo. O óxido nitroso lhe deixou um presente de despedida: uma noite inquieta cheia de sonhos horripilantes. O primeiro foi de paixão com Jane, que era um montão de mulheres em uma s ó, mas sendo sempre ela mesma em todo seu esplendor. Entretanto, depois de uma satisfação sem comparação, ela começou a dissolver-se em seus braços. Ele tentou retê-la, mas se desvaneceu nas sombras, lhe deixando a sós com uma dor que lhe rasgava a alma. Despertou ao amanhecer empapado em suor. As imagens já estavam desaparecendo, deixando atrás de si somente uma entristecedora sensação de perda. Provavelmente os sonhos fossem uma advertência de que devia evitar Jane no futuro. Quanto mais a desejasse, mais dano lhe faria se a intimidade emocional fosse inalcançável. Não era acidental o fato de que tivesse levado uma vida quase de celibato durante anos, e certamente seria mais sensato que continuasse vivendo assim. Apertou os lábios. Já era muito tarde para voltar atrás. Custasse o que custasse, devia prosseguir em seu empenho, porque Jane tinha tomado posse de sua mente e de sua imaginação como nenhuma mulher já tinha feito. Iria se arriscar. Ao mesmo tempo em que fazia soar a campainha para o chá, disse a si mesmo que se seus sonhos continham uma mensagem, era que devia manter-se afastado do óxido nitroso. A breve euforia cobrou um alto preço. O tornozelo de Lucien tinha melhorado durante a noite. Depois de algumas boas massagens e uma excelente bandagem que seu criado de quarto lhe aplicou, já podia caminhar bem o bastante para sair de casa. Como concessão à lesão, viajou em uma carruagem fechada em vez de ele próprio conduzir. Inevitavelmente, seu destino foi Wardour Street. Localizava-se no Soho, uma zona povoada por artistas, escritores, excêntricos e estrangeiros, justamente o tipo de lugar em que alguém esperaria encontrar uma mulher independente como Jane. Ao desembarcar de sua carruagem, bengala na mão, sentiu a emoção bulir como o champanha em seu interior por voltar a vê-la. Esperava que estivesse em casa; se assim fosse, iria convidá-la para dar um passeio. Seria um prazer vê-la à luz do dia em vez de na escuridão da noite. Sua relação até esse momento não poderia ter sido mais noturna se fossem morcegos. Sorriu 58


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abertamente quando viu que a outra calçada da rua ostentava uma taberna chamada A Raposa Intrépida. Parecia um nome apropriado, para a ocasião. Sua emoção começou a desvanecer-se quando observou o número 96 da rua. Parecia pertencer a uma casa independente em vez de estar dividida em apartamentos. Mesmo assim, as aparências podiam ser enganosas, de modo que chamou vigorosamente à porta utilizando a aldrava de bronze. A porta foi aberta por uma delicada criada muito os olhos ao ver o elegante cavalheiro que aguardava nos degraus da entrada. Fazendo uso de seu sorriso mais lisonjeador, Lucien disse: — Meu primo me pediu que eu fizesse uma visita a sua amiga Jane neste endereço, mas não recordo o sobrenome da jovem dama. A senhorita Jane está em casa? — Oh, aqui não vive nenhuma jovem dama, senhor. — A criada soltou um sorriso. — Exceto eu, naturalmente, mas me chamo Molly, não Jane. Tem certeza de ter o endereço correto? Uma fria raiva lhe percorreu o corpo e sua mão apertou com força a bengala. A bruxa tinha voltado a pegar no seu pé. Permaneceu absolutamente imóvel até que recuperou o domínio de si mesmo o bastante para dizer: — Muito provavelmente me equivoquei. Talvez seja o número 69 a casa que estou procurando. Se não, escreverei a meu primo e lhe pedirei que me esclareça isso. Depois de tocar cortesmente o chapéu, deu meia volta e retornou coxeando até sua carruagem. Que inferno, como tinha sido tão idiota em acreditar que ela havia lhe dito a verdade? Gostaria de jogar a culpa de seu equívoco ao óxido nitroso, mas o que havia lhe intoxicado verdadeiramente era Jane, a única mulher que tinha conhecido que pudesse lhe fazer doer o cérebro. Ao subir à carruagem, ordenou a seu cocheiro: — Para a ponte de Westminster. Quero ir a prisão de Surrey.

Leigh Hunt lançou um olhar ausente desde sua mesa quando a porta de sua cela se abriu com um chiado. Ao reconhecer seu visitante, ficou em pé com um sorriso agradável. — Strathmore, me alegro de lhe ver por aqui. Os dois homens se estreitaram as mãos. Como já tinha visitado o diretor do jornal em outras ocasiões, Lucien não se surpreendeu de ver o papel com um desenho gradeado de rosas que decorava as paredes de pedra, nem o céu azul e as nuvens pintadas no teto. Leigh Hunt não era homem que deixasse que algo minúsculo como a prisão estragasse seu gosto pela vida. Entrou um guarda com um grande vaso de flores. — Vi um vendedor de flores como estas e pensei que talvez gostasse — explicou Lucien enquanto o guarda depositava o vaso sobre o piano. — Obrigado. — Hunt acariciou as brilhantes pétalas de um crisântemo. — Estão esplêndidas para esta época do ano. — Logo terminará sua condenação, não é assim? — Em fevereiro. — Leigh Hunt fez uma careta. — Já estou contando os dias. Procurei fazer com que esta cela ficasse o mais cômoda possível, mas apesar de tudo, continua sendo uma prisão. — Mostrou uma cadeira com um gesto da mão. — Por favor, sente-se e me conte o que ocorre na cidade. — Como você continua dirigindo o Examiner desta cela, provavelmente saberá melhor que eu. Mesmo assim, pode ser que não ficou sabendo de... — Lucien lhe relatou várias anedotas que sabia que agradaria a ele. Pouco a pouco, Lucien foi conduzindo a conversa para o tema que o tinha levado ao cárcere. 59


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— A propósito, chegou-me o rumor de que um de seus redatores, L. J. Knight é na realidade uma mulher. Leigh Hunt lançou uma gargalhada. — Que soberba tolice! — A história me pareceu pouco provável — admitiu Lucien. — Como é Knight na realidade? A julgar por seu idealismo, suponho que é jovem. — Na realidade não sei. Nunca o vi em pessoa: comunicamo-nos pelo correio. Interessante. Continuando, Lucien lhe perguntou: — Knight vive no campo? — Não, em Londres. — De modo que é possível que seja uma mulher que utiliza um pseudônimo para ocultar seu sexo. Hunt negou com a cabeça. — Na teoria é possível, quem sabe, mas nenhuma mulher poderia escrever ensaios tão cheios de força nem tão bem racionais. Se Leigh Hunt tivesse conhecido alguma vez uma mulher como Jane, talvez não estivesse tão seguro daquela afirmação. Naturalmente, ela podia ter mentido ao dizer que era L. J. Knight, mas Lucien estava inclinado a acreditar; seu zelo e seu conhecimento dos tema públicos tinham resultado muito convincentes. — Acredita que Knight se importaria que eu lhe fizesse uma visita? Eu gostaria de estreitar sua mão. Não é sempre que estou de acordo com suas opiniões, mas possui uma mente muito lúcida. É um prazer ler seus artigos. Hunt franziu o cenho. — Duvido que aceite visitas. Pelo que entendi, ele tem uma saúde ruim, por isso vive muito afastado. Lucien assentiu levemente. Ser um inválido era o disfarce perfeito para uma mulher pouco convencional, e exatamente o tipo de inteligência que esperaria de Jane. — Não queria sobrecarregar as forças desse homem — disse em tom piedoso, — mas tenho uma proposta a lhe fazer. A guerra terminou e é hora de que a Inglaterra olhe para o futuro. Eu gostaria de publicar um panfleto sobre minhas idéias sociais e econômicas. Entretanto, sou um escritor medíocre, de modo que preciso contratar alguém que apresente minhas opiniões de modo eficaz. Se puder me dar o endereço de Knight, lhe enviarei uma nota e pedirei que considere o projeto. Se não lhe interessar, não incomodarei mais. Hunt vacilou. — Knight sempre se negou a receber a minha visita. De todos os modos, é pouco comum que um escritor de poucos recursos não se interesse em ter mais trabalho, sobretudo com um cavalheiro tão generoso como você. Seu endereço é o número 20 da Frith Street. Soho outra vez. Lucien não acreditou que fosse uma coincidência. Já que Jane também havia dito impulsivamente um endereço do Soho quando ele a tinha pressionado, existiam muitas possibilidades de que vivesse naquela área. Aquilo reduzia sua busca a proporções manejáveis. Dirigiu a conversa para outros temas, e depois de alguns minutos mais partiu. No caminho de volta a Londres, avaliou a informação que tinha conseguido. Em seu trabalho tinha conhecido muitos tipos de embusteiros, incluídos os que diziam falsidades por esporte e os que não eram capazes de distinguir a fantasia da realidade. Jane não era assim; seus embustes obedeciam a um propósito. Supôs que não podia censurá-la por mentir a respeito de seu domicílio, porque ele a tinha pressionado para que revelasse algo que ela preferia manter oculto. Mas embora sua fúria tivesse diminuído, não tinha acontecido o mesmo com sua determinação de 60


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encontrá-la. Era tarde, de modo que a visita a Frith Street teria que esperar até o dia seguinte. Perguntouse o que encontraria ali; provavelmente, a matreira Jane fazia que lhe enviassem o correio a outro lugar distinto de sua casa. Mas o endereço talvez levasse a alguma outra coisa. Como nada mais podia fazer a respeito daquele assunto no momento, centrou seus pensamentos no Fantasma. Um espião francês era mais importante que uma exasp erante jovenzinha. Sua cabeça sabia disso perfeitamente, mas não seu coração.

Vestida com uma insossa capa e um gorro mole que lhe sombreava o rosto, Kit entrou na quitanda. A proprietária, uma robusta mulher de meia idade que possuía um rosto agradável, estava nesse momento ocupada com um cliente idoso, mas ofereceu a Kit um breve sorriso de boas vindas. Kit se entreteve em inspecionar os produtos até que o outro cliente partiu. Em seguida disse: — Bom dia, senhora Henley. — Me alegro de vê-la outra vez, senhorita. Há passado muito tempo — disse a outra mulher em tom afável. — O que gostaria para hoje? — Uma dúzia de ovos, por favor, e duas libras dessa couve de Bruxelas. — Enquanto a senhora Henley selecionava as verduras, Kit murmurou—: Pode ser que venha alguém perguntando por L. J. Knight. Provavelmente um cavalheiro encantador e muito persuasivo. A senhora Henley disse: — Não se preocupe querida, não saberá nada por minha boca. — Quanto menos lhe diga, melhor, porque é um tipo muito inteligente. Entrou outro cliente na loja, de modo que a senhora Henley disse, levantando a voz: — Gostaria de levar algumas destas laranjas, senhorita? São um pouco caras, mas muito doces. — Têm bom aspecto — admitiu Kit. — Coloque seis. Uma vez que as laranjas estiveram já adicionadas à cesta, Kit entregou à mulher o dinheiro pela compra. Escondida entre as moedas pequenas havia um guine de ouro. Disse em voz baixa: — Isto é para ajudar os gastos de entregar a correspondência. De momento não quero recolhê-lo pessoalmente. A senhora Henley lhe devolveu um sorriso de cumplicidade ao mesmo tempo em que guardava o dinheiro no bolso. Depois se voltou para o novo cliente. Kit saiu da loja discretamente. Não deveria ter dito tantas coisas a Lucien... Sacudiu-se mentalmente e mudou o nome para Strathmore. Claro que nem tudo tinha sido verdade, mas não acreditava que ele demorasse muito em separar o joio do trigo. Talvez nesse mesmo momento estivesse interrogando Leigh Hunt, o qual lhe conduziria diretamente à loja da senhora Henley. Também temia que ele se sentisse furioso pelo engano. Era irônico que ela, que sempre tinha sido uma apaixonada pela verdade, agora estivesse dizendo tantas mentiras distintas que lhe era difícil de mantê-las por todo o tempo. O fato de não ter alternativa não a fazia sentir-se melhor. Lançou um suspiro e deixou de um lado suas preocupações com Strathmore. Era hora de começar a preocupar-se com o que ia fazer na noite seguinte. Não serviria de nada misturar todas suas ansiedades.

Lucien não se surpreendeu ver que o número 20 da Frith Street era uma combinação de uma quitanda e uma agência de correios. Com um fluxo contínuo de uma clientela feminina em sua 61


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maior parte entrando e saindo todo o dia, para Jane seria simples recolher suas cartas discretamente. Quando se deram conta de que um homem — não somente isso, mas também alguém de uma de óbvia riqueza e posição — tinha entrado na loja, começaram a trocar olhares nervosos. De uma em uma, se apressaram em terminar seus afazeres e partir, embora não sem antes examinar o intruso. Ele permaneceu de pé tranqüilamente, com as mãos apoiadas no punho de sua bengala, mas no fundo foi divertido ver que era capaz de limpar um estabelecimento só com sua presença. Quando os demais clientes partiram, a proprietária se voltou para ele sem mostrar a menor surpresa diante da visão de um elegante cavalheiro entre as cestas de nabos e batatas. Era muito provável que Jane a tivesse advertido de que ele poderia apresentar -se perguntando por L. J. Knight. — O que posso fazer por você, senhor? — perguntou a mulher. — Quer comprar algumas laranjas boas, talvez? Com grande pesar, viu que a mulher não parecia fácil de subornar. Toda a informação que obtivesse teria que surrupiar de maneira indireta. — Estou procurando meu tio. É um velhinho encantador, mas tão firme como pode ser. Periodicamente foge de casa. Chegou a meus ouvidos que desta vez alugou um apartamento no Soho e que está fazendo que lhe enviem o correio neste endereço. Chama-se L. J. Knight. Sabe se recolhe suas cartas aqui? A mulher pareceu desconcertada, como se esperasse uma pergunta distinta. — Me soa familiar o nome de seu tio, mas não recordo sua fisionomia. Lucien dedicou à mulher um sorriso que desarmava a qualquer um. — Permita-me ser sincero com você? Temos medo de que desta vez o velho tenha escapado com uma aventureira. Provavelmente seja ela que esteja recolhendo a sua correspondência. Lhe é familiar esta mulher? — Tirou de um bolso interior um desenho que tinha feito de Jane. Se não estivesse observando tão de perto a quitandeira, não teria captado seu ligeiro e involuntário gesto de abrir os olhos. Lucien estava disposto a jurar que a tinha reconhecido. No cabo de um momento ela disse: — Pode ser que a tenha visto, mas não posso dizer com certeza. Não é um rosto memorável. Lucien não estava de acordo com aquilo, mas era certo que Jane não possuía nenhum traço que fosse relevante. Necessitaria ser um artista excepcional para capturar sua singularidade, e seu talento não estava à altura daquela tarefa. A quitandeira lhe devolveu o desenho e comentou: — Não parece ser uma aventureira. — Isso é o que a faz tão perigosa. Embora tenha o aspecto de que a manteiga não se derreteria em sua boca, possui uma reputação alarmante. Tememos que possa fazer mal ao tio James quando se der conta de que não tem dinheiro por direito próprio. Uma faísca de diversão brilhou nos olhos da quitandeira ao reconhecer que Lucien estava inventando toda a história. — Se a garota for difícil, não há dúvida de que seu tio retornará para casa. — Assim espero. Nem sempre demonstrou ter muito bom juízo quando houve mulheres no meio. — Lucien se perguntou ironicamente se estava falando de seu tio ou de si mesmo. Depois de agradecer à proprietária da loja por responder a suas perguntas, se foi. Poderia ter colocado alguém para vigiar a quitanda, mas duvidava que lhe servisse de algo. Jane era muito esperta para ir em pessoa, agora que ele conhecia o local. Seria mais produtivo fazer que um de seus agentes perguntasse por ela no Soho, usando o seu desenho. Embora lento esse trabalho com freqüência dava resultado. Com o tem po terminaria 62


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encontrando-a. Mas o que ia fazer com ela quando a encontrasse?

INTERLÚDIO

Quando o ouviu entrar na sala de espera, apurou o chá e deixou a xícara com muito cuidado sobre a mesa. Em seguida se levantou e sacudiu a cabeleira negra que lhe caía reta em cascata até a cintura. Esta noite usava um traje de renda negra que era justo ao corpo como uma segunda pele, do profundo decote até as botas que chegavam às coxas. A abertura do bordado de renda enganava ao olho, fingindo revelar mais do que realmente revelava. Contraiu os lábios para ouvir o leve zumbido procedente da sala contínua. Pegou um chicote e saiu rebolando com a arrogância própria de um oficial de cavalaria. — Não toque em nada sem minha permissão, escravo — lhe espetou ao mesmo tempo em que dava uma chicotada no pulso do homem. Embora fosse um chicote dos mais suaves, a correia lhe produziu um vergão. Ele se encolheu e deixou o objeto mecânico, mas lhe brilhavam os olhos quando caiu de joelhos. — Peço-te humildemente perdão, minha ama. Deu-lhe um tapa no rosto, um golpe oblíquo que evitou o olho e lhe deixaria só uma leve marca. — Não aceito suas desculpas, escravo. Tem que ser castigado. Tire a roupa e fique tão nu como as demais bestas. Ele obedeceu com mãos torpes pela ânsia enquanto despia seu corpo forte de pele curtida. Depois ficou de mãos e joelhos sobre o chão. Ela descarregou com fúria o chicote sobre sua espinha dorsal. Ele soltou uma exclamação e levantou a cabeça para olhá-la fixamente com as pupilas escuras. Tinha ido muito longe, muito longe. Aquela era a parte mais difícil, conter-se enquanto ia aumentando lentamente o grau de dor. Se procedesse com muita pressa, perderia ele, e muito mais. Ela deu outra chicotada, com mais suavidade, e ele relaxou com um grave gemido de prazer. Com tanto cuidado como um artista pintando um retrato, começou a estalar o chicote por todo seu corpo, controlando seu grau de excitação com olho crítico. Também lhe insultou, lhe lançando todo o impropério mais obsceno que conhecia dizendo o quanto asqueroso e repugnante que era. A diatribe acrescentou lenha ao fogo de sua excitação. Quando o chicote brando alcançou o limite de sua efetividade, substituiu-o por um de correia mais dura que fazia brotar o sangue a cada golpe. Ele começou a estremecer-se ao ritmo da flagelação, aceitando açoites que antes teriam sido muito dolorosos. Por fim, ela se viu livre para lhe golpear com todo o ímpeto de sua raiva. Açoitou-lhe uma e outra vez, totalmente possuída pela violência, quase até deixar de ser humano. Os uivos dele foram fazendo-se cada vez mais fortes e encheram toda a casa, até que seu corpo coberto de suor começou a tremer de prazer. Quando tudo terminou, ele ficou estendido no chão, sobre um tapete de pele de ovelha, seu sangue manchando a lã branca, todo o corpo enfraquecido e satisfeito. — É soberba, minha ama — ofegou. — Soberba. Asfixiada pelo asco que sentia de si mesma, ela girou sobre seus calcanhares e saiu do quarto. 63


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CAPITULO 11

Kit despertou tremendo e com o corpo ensopado de suor. Tinha tido o pesadelo mais real de sua vida, que a tinha deixado com uma sensação de náuseas. Tentou extrair algum sentido das imagens, mas sem êxito; tinha sido um sonho tão alheio a sua experiência que era como tentar entender chinês. Somente as emoções eram reconhecíveis: raiva e angústia tão intensas que ameaçaram em afogá-la. Viola subiu nos pés da cama e caminhou por cima das mantas miando brandamente. Kit quase gritou de alívio quando a gata lhe deu uma leve batida na bochecha em um gesto inconfundível que reclamava o café da manhã. A normalidade do pedido da gata a ajudou a rebater a corrente de mal-estar que a tinha engolido. Antes de nada relaxou, músculo por músculo, até que deixou de tremer. Depois encheu sua mente de sentimentos positivos: paz, amor, esperança, até que todo o tormento desapareceu por fim. Uma vez restaurada a calma, saltou da cama e vestiu um roupão para se proteger do gélido ar matinal. Depois subiu Viola sobre o ombro e se encaminhou para a cozinha, dizendo a si mesma com determinação que estava fazendo progressos. Tinha saído ilesa da noite anterior sem desonrar a si mesma, e tinha tido a oportunidade de estudar um de seus suspeitos bem de perto para descartá-lo. Embora aquela fosse uma informação negativa, supunha outro pequeno passo adiante. Deu de comer à gata, pôs a chaleira no fogo e tirou um pedaço de pão. E então, no momento de levantar a faca para cortar uma fatia, em sua mente brilhou de repente um brilho fugaz do pesadelo que tinha tido. Embora os detalhes fossem vagos, tratava-se claramente de algum tipo de brinquedo mecânico. Ficou petrificada, sustentando a faca no ar, com uma sensação de opressão no estômago. Só conhecia um homem capaz de criar semelhantes artefatos. Santo Deus, que não seja Lucien, implorou. Por favor, que não seja ele. Mas se fosse ele... Ficou olhando com os olhos em branco o reluzente fio da navalha. Mesmo que o homem que procurava fosse o conde de Strathmore, nada a dissuadiria de perseguir seu objetivo. Lucien dirigiu um olhar taciturno às pilhas de informação que tinha recolhido sobre os Demônios. Constituíam um total desconcerto de abundantes dados a respeito de suas finanças, sua política, seus assuntos amorosos, seus vícios públicos e suas virtudes secretas. Entretanto, depois de dar uma olhada no material não sabia muito mais do que já tinha deduzido por pura intuição. A maioria dos Discípulos tinha problemas econômicos de caráter crônico. Vários deles contavam com acesso direto a segredos do governo, e todos se moviam em círculos em que podia obter informação conversas indiscretas de funcionários. Qualquer um deles podia ter recebido dinheiro da França. Tampouco estava fazendo progressos em sua busca pela mulher misteriosa. Por um espaço de dois dias, seu investigador tinha procurado em todo Soho mostrando o retrato de Jane às pessoas. Alguns residentes e lojistas acreditaram conhecê-la, mas nenhum deles pôde dar seu nome ou seu endereço. Provavelmente a falha estivesse no desenho, mas Lucien suspeitava que o 64


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problema era a camaleônica capacidade dela para adotar um aspecto distinto cada vez. Seguindo um impulso, decidiu deixar de lado os papéis e ir jantar em seu clube. Talvez uma agradável conversa entre amigos pudesse lhe limpar a mente imprecisa. Os negócios e o prazer se combinaram entre si quando Lucien se encontrou com lorde Ives no clube. Embora não suspeitasse que Ives fosse o Fantasma, sempre existia a possibilidade de que o jovem Demônio dissesse algo interessante a respeito de outros membros do grupo. Mais concretamente, a Lucien agradava a companhia do jovem. Alguém capaz de rir de si mesmo depois de ter sido golpeado no nariz com um busto postiço valia a pena ser cultivado. Enquanto tomavam uma taça do Porto, Ives disse: — Tenho que me retirar cedo. Esta noite vou ao teatro. — Drury Lane? — Não, o Marlowe, o novo que foi aberto em Strand. Já esteve lá? — Ainda não, embora tenha a intenção de visitá-lo — repôs Lucien com uma faísca de interesse. — Ouvi dizer que está fazendo uma forte concorrência aos dois teatros de patente real. — E é certo, são magníficos em comédia. — Ives sorriu amplamente. — E têm as mais maravilhosas bailarinas de toda Londres. — Já colocaste o olho em alguma? — Tenho colocado algo mais que o olho — respondeu Ives com um toque de encantador orgulho juvenil. — Gostaria de me acompanhar esta noite? Só me reunirei com Cléo depois que a peça tenha terminado, e tenho o camarote inteiro somente para mim. Esta noite representam a obra mais popular da companhia. Estou certo de que será muito divertida. — Eu gostaria. Sempre gostei de teatro, mas ultimamente estive muito ocupado para a ssistir. O jovem começou a dissertar em plano erudito sobre o teatro, passado e presente. Via claramente que era apaixonado pelo tema. Também mencionou que tinha conhecido lorde Nunfield por seu mútuo interesse pelo teatro e que essa afinidade o tinha levado a unir-se aos Demônios. Quando terminaram o Porto, Lucien assinalou: — O teatro é um lugar especial, assim como sua gente é de uma casta especial. — Eu admiro sua maneira despreocupada de viver a vida — disse Ives pensativamente enquanto saíam da sala de jantar do clube. — Não seria maravilhoso que todas as mulheres fossem desinibidas como as atrizes? — Não estou seguro de que o mundo esteja preparado para aceitar isso. — Lucien fez um gesto para que trouxessem seus casacos e seus chapéus. — Quando você se casar, vai querer que sua esposa seja tão livre como uma bailarina de teatro? Ives sorriu com tristeza. — Touché. Cada homem tomou sua própria carruagem para mais tarde poder partir separadamente. Voltaram a juntar-se no vestíbulo dos camarotes e subiram imediatamente, pois a representação já tinha começado. Só os dois teatros que contavam com patentes reais, Drury Lane e Covent Garden, tinham permissão para apresentar dramas «sérios». Outros teatros, como o Marlowe, margeavam um pouco a lei ao incluir música e dança, de modo que suas representações podiam anunciar-se como concertos. Lucien e Ives ocuparam seus assentos no momento em que a orquestra estava terminando uma vigorosa interpretação da «Música aquática» de Hendel. Depois da música veio a obra principal. Segundo o pôster, intitulava-se A Cigana. Era um divertido disparate que começava com um jovem nobre e atra ente chamado Horacio que era deserdado por seu padrasto, o duque de Omnium, depois que um malvado primo fizesse todos 65


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acreditarem que ele tinha desonrado o sobrenome da família. Com o coração destroçado, o jovem fugiu para o bosque, onde foi salvo da morte por uma companhia de ciganos. Quando Horacio se uniu a seus novos amigos para um banquete ao redor do acampamento, Ives disse em voz baixa: — Dentro de um momento sairá um coro de garotas dançando. Cléo encabeça o grupo. Vistosamente embelezadas e fazendo soar os colares de moedas que levavam no pescoço, as moças entraram em cena. Cléo era uma jovem vivaz de rosto agradável e olhos sedutores. Quando levantou a saia por cima da cabeça, o que ressaltava de maneira impressionante uma figura já por si impressionante, elevou os olhos para o camarote que eles ocupavam e sorriu para Ives. Parecia a deliciosa resposta às preces de um jovem. Depois o coro se retirou para trás e outra jovem cigana saltou ao palco para executar um solo. Sua aparição provocou uma onda de aplausos. A recém chegada não era uma grande beleza, mas possuía abundantemente o traço indefinível que faz com que os melhores artistas sejam capazes de captar a atenção de todos os que lhes vejam. A garota saltou e realizou piruetas por todo o palco, elevando as saias para deixar ver uma delicada c orrente de ouro ao redor de um esbelto tornozelo. À medida que o ritmo ia acelerando, a saia foi subindo mais, oferecendo uma sedutora visão de suas pernas e permitindo vislumbrar fugazmente um joelho. Possuía umas pernas verdadeiramente soberbas. Quando a moça se deteve por um instante em sua execução, seu olhar se encontrou com o do cativado Horacio. Ambos olharam fixamente um ao outro. Ela possuía um elegante perfil, puro como o de uma moeda grega. Lucien conteve a respiração de repente, paralisado por uma impressão tão forte que resultou quase física. Não era possível. Que inferno, não era possível. Lutando para se controlar, perguntou: — Empresta-me os binóculos? Ives os entregou amavelmente. A ampliação da imagem demonstrou que a vista não o tinha traído. Os longos membros e o perfil clássico eram inconfundíveis: pertenciam a Jane. Os nódulos ficaram brancos ao redor dos binóculos. A mulher que ele tinha acreditado uma sabichona reservada e idealista era na realidade uma atriz. Além disso, uma atriz que não mostrava o menor acanhamento na hora de mostrar uma indecente quantidade de seu maravilhoso corpo diante um teatro repleto de desconhecidos. Devolveu os binóculos e se permitiu só uma leve curiosidade no tom de voz ao perguntar: — Quem é a bailarina que executa o solo? — Essa é a senhorita James, Cassie James. Interpreta a Anna, a parte romântica. É muito boa, não é mesmo? Era mais que boa; era surpreendente. Rodeava -a uma espécie de resplendor que iluminava o palco e eclipsava o resto dos atores. Tão hipnotizado como Lucien, Horacio se levantou de seu lugar junto à fogueira e começou a dançar com Anna. Ela jogou o cabelo preto para trás com um gesto sedutor e agitou exageradamente os babados das saias ao dançar, as elevando cada vez mais alto em cada giro. — Em qualquer momento veremos a famosa tatuagem — disse Ives em voz baixa. — Não perca olho do joelho direito. Efetivamente, as saias voaram para o alto para deixar ver um desenho na face interior da coxa, bem encima do joelho. A visão desatou um rumor ensurdecedor nos homens que havia entre o público. Anna fez revoar de novo as saias, provocando novos uivos. Em Lucien chiavam os dentes. — O que representa essa tatuagem? Uma flor? 66


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— Não, uma mariposa. Ives lhe entregou novamente os binóculos, e, na nova pirueta que Anna executou, Lucien teve o privilégio de ver uma frívola mariposa preta e vermelha gravada na suave pele da coxa. Sentiu o impulso de envolver à moça em sua capa e tapa-la da cabeça aos pés, sentiu o desejo de lhe retorcer aquele traiçoeiro pescoço. E também desejou, quase com desespero, colar os lábios naquela enlouquecedora, sedutora mariposa e deixá-los escorregar mais acima... Sentindo-se à beira da asfixia, fechou os olhos até que pôde respirar de novo. Quando voltou a abri-los, já estava caindo o pano de fundo para o intervalo. Voltou-se para seu companheiro. — Me fale de Cassie James. — Gostou dela, não foi? — Ives sorriu abertamente. — Bom, dizem que está destinada a ser uma estrela da comédia como foi a senhora Jordão. Começou no teatro em Londres faz três ou quatro anos, creio, mas só lhe davam pequenos papéis, de modo que passou a percorrer as províncias. Faz dois anos a vi no Teatro Real de York na produção Em que ela se inclina a conquistar, e esteve excelente. O diretor do Marlowe decidiu que Cassie estava pronta para atuar em Londres, então a contratou para esta temporada e escreveu A Cigana para ela. Tanto a atriz como a obra tem sido um grande êxito. Para Lucien não importavam seus triunfos no teatro. — A senhorita James tem algum protetor atualmente? — Não, que eu saiba. Creio que é das que preferem ter uma variedade de amantes. — Detalhes, por favor. — Você está verdadeiramente interessado, não é mesmo? Sinto muito, mas de verdade que não sei quem a levou para cama. É bastante discreta, para ser atriz. Em York a vi no camarim em atitude bem mais descarada com um indivíduo das colônias..., um canadense, creio, ou talvez fosse americano, mas não tenho idéia de como se chamava. — Ives refletiu durante uns momentos. — Nunfield estava atrás dela. Eu estava com ele na noite em que ela estreou em Londres em setembro passado. Ele reagiu exatamente igual a você agora. Lucien voltou a experimentar a sensação de sufoco. — Conseguiu algo dela? — Creio que não, mas não poderia jurá-lo. Sei que estava preparado para lhe oferecer uma generosa carta branca. Lucien se perguntou com quantos homens teria se deitado «Jane» enquanto representava o papel de uma rapariga em apuros com ele. Representar. Aquela era a chave. Isso explicava as perucas, a maquiagem, à capacidade para adotar diferentes personalidades. Nem sequer Ives, que conhecia Cassie James, uma atriz cômica em ascensão, a tinha reconhecido quando fez insinuações a Sally em A Coroa e o Abutre. A única pergunta que importava era por que a moça estava investigando os Demônios. Uma nauseante possibilidade era que fosse amante de Nunfield e estivesse espiando o grupo a pedido dele, fosse procurando informação ou porque os dois achavam a idéia perversamente divertida. Ou talvez tivessem sido amantes e ele a tinha mandado embora, e agora ela estava procurando alguma forma de vingar-se. Uma coisa estava clara como água: uma vez mais, tinha-o enganado como a um chinês. Terminou o intervalo e começou o segundo ato de A Cigana. Floresceu o romance entre Anna e Horacio, e ambos estavam a ponto de celebrar um casamento cigano quando apareceu o duque de Omnium implorando a seu filho que lhe perdoasse por ter acreditado nas malvadas mentiras que seu primo tinha contado. Depois de reconciliar-se com seu pai, Horacio pediu para Anna que fosse sua esposa e lhe ofereceu luxos e um futuro como duquesa de Omnium. Com lágrimas nos olhos, ela declinou a 67


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oferta por causa de sua origem humilde, dizendo que não era digna de converter-se em duquesa. Quando os dois amantes estavam a ponto de se separarem para sempre, o rei dos ciganos fez sua aparição triunfal, acompanhado de todo o coro de bailarinas ao som dos pandeiros. O rei explicou que Anna era na realidade filha de um conde que tinha sido raptada quando era menina. Por causa de sua deliciosa beleza. Uma vez estabelecido que provinha de aristocrático berço, Anna aceitou a oferta de Horacio. A obra finalizou com o elenco completo, incluído o duque de Omnium, dançando alegremente ao redor da fogueira. Como amostra das tradições ciganas, a obra resultava absurda; Lucien tomou nota mentalmente de dizer a Nicholas que fosse vê-la, já que seu amigo acharia escandalosa a descrição de sua raça. Em troca, funcionava como entretenimento, e Cassie James era a melhor da representação. Uma vez que os atores haviam saudado o público e abandonado o palco, Ives disse: — Vou procurar Cléo. Quer ir ao camarim comigo, ou prefere que nos despeçamos aqui? Lucien ficou de pé e pegou a capa que tinha deixado sobre uma cadeira vazia. — Eu o acompanharei ao camarim. Não sabe quanto anseio em conhecer a incrível senhorita James.

CAPITULO 12

O camarim fervia de exuberantes atores e atrizes e seus amigos. O tumulto que se organizava depois da representação sempre punha Kit nervosa, de modo que suportou a ronda de saudações com as costas grudada à parede. Tinha uma dúzia de homens formando um semicírculo em frente a ela, que lhe ofereciam cumprimentos exagerados e rivalizavam por monopolizar sua atenção. Tinha chegado a desfrutar com as sugestivas graças que faziam os cavalheiros. Quando um admirador lhe disse: — Esta noite você foi um anjo, senhorita James. Ela respondeu atrevidamente: — Se isso for certo, será melhor que se aprimorem um pouco os anjos. A multidão que a rodeava estalou em risadas. Um indivíduo mais bem vaidoso lhe disse com grande sentimento: — Tem certeza de que não deseja aceitar minha carta branca? Desejo fervorosamente me converter em seu protetor. Dedicou-lhe um olhar pensativo. — Os homens sempre estão tentando me proteger, mas nunca consigo imaginar do que. O grupo começou a propor com entusiasmo sugestões sobre de qual deles precisava proteger-se mais. Enquanto os jovens a bombardeavam com nomes, Kit vigiava o resto do camarim atenta a uma surpresa, uma impressão ou qualquer outra reação que pudesse ser significativa para suas investigações. Lorde Ives tinha vindo, e agora estava saindo da sala levando pelo braço uma sorridente Cléo. Pelo que Cléo havia dito, o moço era um jovem decente. Não viu nenhum outro Demônio. Os que eram assíduos ao teatro já deviam ter visto A Cigana fazia muito, de modo que não era provável que averiguasse grande coisa esta noite. Centrou de novo a atenção em seus admiradores quando um jovem muito sério tentou lhe 68


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pôr um panfleto religioso na mão. — O teatro não é uma vida adequada para uma mulher decente — disse com gravidade. — Leia isto e verá o que está errado em sua vida. Ela rechaçou o panfleto e disse com um malicioso sorriso: — Errar é humano... e produz uma sensação divina. No estrondo de risadas que seguiu, o jovem sério optou por uma rápida retirada. Um homem solene e de mais idade disse a Kit: — Meu Deus, você tem uma língua rápida. Ela agitou as pestanas exageradamente. — Deus não tem nada a ver com isso. Mais risadas. Kit percorreu a sala com o olhar para ver se tinha entrado alguém novo, e então ficou paralisada pela impressão: Lorde Strathmore avançava para ela através da multidão com a atitude resolvida de um leopardo faminto. Amaldiçoou para si mesma. Deveria ter imaginado que sua sorte não podia durar; Strathmore possuía uma extraordinária capacidade para localizá -la. Sua reação instintiva foi sair correndo, mas conseguiu reprimi-la. Não poderia mover-se com rapidez em meio daquela multidão. Além disso, sairia melhor parada se fica sse no camarim. Ele não poderia fazer nada muito audaz em um lugar público. Mas o subestimava. Enquanto ela procurava conservar o domínio de si mesma, Strathmore alcançou a parte interior do círculo de admiradores. Trazia sua pose de Lúcifer, irradiando tal aura de temível força que os outros homens retrocederam instintivamente. Entretanto, suas maneiras foram impecáveis quando lhe disse: — Querida, esta noite estiveste magnífica. — Levantou-lhe o queixo e lhe deu um beijo superficial e possessivo, como se fossem amantes já consolidados. Era impossível não responder a calidez de seus lábios, mas Kit desconfiou do deslumbrante sorriso. Colou as costas à parede e se perguntou que travessura ele estaria planejando. — Me alegro de que te tenha gostado da função — disse com cautela. — É uma contínua surpresa, querida — disse ele em tom grave, íntimo. — Cada vez que te vejo atuar, tenho a sensação de ter conhecido uma mulher nova e fascinante. Enquanto Kit tentava procurar uma resposta apropriada para aquelas palavras de duplo sentido, ele abriu a capa que tinha pendurada no braço. O volumoso objeto era bastante grande para envolvê-la com duas voltas. Então, em uma rajada de vertiginosos movimentos, fez exatamente isso, afastando-se com violência da parede e enfaixando-a tão estreitamente nas dobras da capa que os braços ficaram imobilizados nos lados. Ela cuspiu: — Que diabos está fazendo? — Você se queixou de que estava me tornando descuidado — respondeu Lucien com voz sedosa, — assim decidi remediá-lo. — Levantou-a nos braços e lhe deu um rápido beijo nos lábios, desviando habilmente a cabeça para um lado quando ela tentou lhe morder. — Esta noite, recuperamos o romance. Furiosa, Kit tentou lutar para libertar-se, mas não podia fazer nada presa naquele montão de tecido. Um de seus admiradores disse jovialmente: — Já imaginava que uma peça de primeira classe como Cassie devia ter um protetor, mas não tinha idéia de que fosse você o afortunado, Strathmore. Não me estranha que tenha rechaçar os outros. — Tenho consciência da minha boa sorte. — Seu tom brando de voz era desmentido pelo perigoso brilho verde de seus olhos ao olhar para Kit. — Não há outra mulher em toda a 69


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Inglaterra como Cassie James. O caminho de saída cruzando a sala foi acompanhado de obscenas sugestões a respeito do tipo de coisas que aquelas pessoas podiam achar românticas. Kit tentou soltar-se, mas os braços de Lucien a prendiam contra seu largo peito com a força de uma garra de aço. Conseguiu lançar o cotovelo e afundar-lo no plexo solar, e ele acusou o golpe com uma careta, mas seu sorriso não se alterou em nada, mas disse baixinho: — Não te aconselho que faças uma cena, querida. Um rápido olhar aos homens que riam a seu redor fez Kit compreender que não serviria de nada pedir ajuda. Qualquer protesto se consideraria como parte de um jogo de sedução entre amantes. Um amável visitante abriu a porta para Strathmore, o qual lhe agradeceu com uma inclinação de cabeça e saiu ao corredor. Suas passadas levantaram um sonoro eco enquanto levava Kit nos braços para o exterior do teatro vazio. Ainda que ela gritasse ninguém a ouviria por cima do estrondo que reinava no camarim. Quando chegaram à porta lateral, o porteiro lhes fez uma profunda reverência. — Sua carruagem está esperando, milord. Strathmore lhe fez um gesto com a cabeça. — Obrigado, Smithson. Kit tentou uma vez mais se libertar-se, mas sem êxito. — Me ajude, senhor Smithson — disse em tom urgente. — Isto não é uma brincadeira, estão me seqüestrando. O porteiro sorriu indulgente e lhes deixou sair. — Sua senhoria me falou antes de seus planos, senhorita. Divirta-se. Você trabalha muito, e necessita de um pouco de diversão. A carruagem de Strathmore aguardava bem em frente à saída. A respiração dos cavalos formava nuvens no frio ar da noite. Smithson abriu a portinhola e desceu os degraus para os dois passageiros. O conde, depois de introduzir Kit na carruagem e depositá-la sobre o assento de couro, entregou ao homem uma moeda de ouro. Kit aproveitou o momento em que ele estava de costas para t entar escapar da capa, mas antes que pudesse conseguir algo Strathmore subiu à carruagem atrás dela e fechou a porta. Imediatamente, o coche começou a rodar pelo beco conhecido que conduzia a Strand. O movimento lançou Kit contra um lado do veículo, e o medo se c onverteu em pânico. Ao longo de todos os improváveis encontros de ambos, não tinha acreditado de verdade que Strathmore fosse lhe fazer dano, mas agora se perguntava se sua opinião sobre dele não seria completamente errônea. Em questão de momentos, havia passado da segurança à prisão. Tão rapidamente, tão facilmente. Strathmore podia assassiná-la essa noite e jogar seu cadáver no Tamisa. Se investigassem algum dia o seu desaparecimento, a única coisa que ele faria seria dizer que haviam passado uma noite esplêndida e que ele a tinha deixado em perfeito estado de saúde. Ninguém duvidaria jamais de que um elegante nobre pudesse mentir com tal facilidade. Fechou a mãos em dois punhos debaixo da capa e mordeu o lábio até notar o sabor do sangue. Nunca havia sentido tão desamparada, tão a mercê de um homem. Frenética, procurou a fonte de força que nunca tinha lhe falhado. Quando encontrou o que estava procurando, uma onda de tranqüilidade começou a filtrar-se no terror que sentia. Não estava sozinha. Respirou fundo e o medo cedeu até um ponto em que foi possível pensar de novo. Devia ser forte, tanto como o homem que a tinha capturado. Fechou os olhos e inventou um novo papel para representar: o de uma atriz mundana e experimentada que não temia a nada. Quando acreditou que poderia ser convincente, abriu os 70


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olhos e disse com serenidade: — Você tem o costume de raptar mulheres, milord? — Não como norma — respondeu ele no mesmo tom, — mas me pareceu adequado, já que a mulher em questão ao que parece é incapaz de dizer a verdade. — Minha sinceridade ou a falta dela não são de sua incumbência. — Suas frias palavras ficaram um tanto rebaixadas pelos tropeços que deu a carruagem e que a fez se chocar contra o assento. Sem poder utilizar os braços, era impossível conservar o equilíbrio. Strathmore a segurou pelos ombros e a colocou de costas contra o canto, onde pudesse se escorar e se proteger do movimento do veículo. — Recorde que Lúcifer é o Príncipe da Mentira, e isso me dá o domínio sobre você — disse o conde ao mesmo tempo em que se recostava contra seu lado do assento. — Você é um de meus seguidores mais devotos. — E uma merda — replicou ela de forma pouco elegante. — Meu desejo mais devoto é lhe evitar. O constante esforço por fim deu seus frutos, e Kit se libertou da capa. Quando a empurrou a um lado, Lucien disse: — Sugiro-lhe que continue com a capa. A portinhola de seu lado está fechada com chave, de maneira que não poderá escapar por ela, e esta noite faz um frio do cão. Maldito homem, tinha razão; fazia muito frio e seu disfarce de cigana não tinha sido desenhado para que a aquecesse, de modo que se envolveu de novo na capa. Enquanto o fazia, tentou a fechadura da portinhola de seu lado, mas era verdade que estava fechada com chave. Deixou escapar um suspiro, recostou-se contra o canto e se aconchegou um pouco mais no tecido. Pesadas dobras de lã levavam o fraco e penetrante aroma da colônia que ele usava. — Aonde me leva? — Para jantar. Alguém que trabalha tanto como você sobre o palco deve ter um apetite atroz. A resposta era tão prosaica que Kit esteve a ponto de começar a rir. O medo cedeu um pouco mais. — Tem razão: depois de uma representação sempre tenho uma fome canina. Por que não se limitou simplesmente a me pedir que lhe acompanhasse? Eu não gosto que me peguem assim. — Não? — disse ele com mordaz sarcasmo. — Tenho entendido que muitos homens a manusearam. Ela lançou uma leve exclamação e replicou: — Ora, e o que é o que você pretende? Não tem nenhuma relação comigo, nem familiar nem de matrimônio, e não tem direito a censurar minhas ações. — Não a estou censurando — repôs o conde sem alterar-se. — De fato, eu adoro estar livre das limitações que impõe a respeitabilidade. Era muito cansativo pensar que você era virtuosa. Agora posso provar métodos mais persuasivos. — Se for a sedução o que se propõe, começou muito mal, milord — disse Kit com horrível formalidade. Antes que ele pudesse responder, a carruagem se deteve com um chiado e um lacaio abriu a portinhola. Strathmore apeou e em seguida a ajudou a fazer o mesmo com tanta cortesia como se ela fosse um hóspede de honra e não de uma virtual prisioneira. Quando Kit pôs o pé em terra, descobriu que se encontravam em frente do hotel Clarendon. Pelo menos ele falava sério sobre o jantar. Apressou-se a arrumar a capa de modo que formasse uma alta gola ao redor do pescoço e lhe ocultasse o rosto. O que menos precisava era ser reconhecida por alguém. Tomando-a pelo cotovelo com mão firme, Strathmore a escoltou enquanto subiam os 71


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degraus. Uma vez dentro, disse ao maítre d'hotel, que lhes saudava com uma profunda reverência: — Um sala de jantar privado, Robecque, e que nos sirvam em seguida um jantar adequado para uma dama com apetite. Com champanha. Robecque vacilou com o mal-estar desenhado no rosto. — Sinto muitíssimo, lorde Strathmore, mas temo que todos as salas de jantares privados estão reservadas — disse com acento francês. Strathmore arqueou as sobrancelhas. — Oh? O francês reagiu a aquela única sílaba brandamente pronunciada como se tivessem lhe colocado uma faca na garganta. — Por aqui, milord, milady — disse imediatamente. — Acabo de recordar que resta uma sala livre. Precedeu-lhes por um corredor privado até uma estadia pequena e profusamente mobiliada. — Em seguida lhes trarão champanha e um jantar de seu gosto. Uma vez que Robecque havia se despedido com outra reverência e desaparecido, Kit disse em tom irônico: — Suponho que acaba de forçar esse pobre homem a retirar uma sala que um mortal menos importante tinha reservado para esta noite. — Muito provavelmente. — Impassível Strathmore lhe retirou a capa, roçando fugazmente com os dedos nos antebraços nus dela. Ela estremeceu ligeiramente e se afastou. — Minha necessidade era mais urgente — explicou o conde enquanto pendurava o objeto em um gancho do néon. — E sua carteira mais avultada. — Teve a sensação de que se sentar a deixaria em desvantagem, por isso começou a caminhar pela sala, as saias ciganas sussurrando contra seus tornozelos ao avançar, já que o grosso tapete absorvia as pisadas de suas suaves sapatilhas. Havia jantado no Clarendon uma ou duas vezes, em ocasiões especiais, mas nunca tinha estado em uma sala de jantar privada. Constituía um mundo de rosas de inverno, reluzentes vidros e o brilho apagado da madeira encerada. Seu olhar pousou no divã estofado de veludo que havia no canto, e logo olhou à outra parte. Não faltava nada para quem tivesse acudido ali para uma sessão de luxo. Abriu-se a porta e apareceu um pelotão de serventes. Enquanto um deles baixava o pequeno candelabro e acendia as velas, outro se encarregou de avivar o fogo. Um terceiro abriu uma garrafa de champanha e o último vinha empurrando um carrinho lotado do qual escapavam fumaça de vapor de pratos cobertos com tampas de prata. A comida cheirava deliciosamente, e tinha chegado tão logo que Kit suspeitou que estavam lhes servindo o jantar de outra pessoa. Strathmore disse ao garçom encarregado: — Obrigado, Petain. Agora pode ir. Nós nos serviremos, de modo que não lhe necessitaremos durante o resto da noite. O garçom se inclinou ligeiramente e em seguida tirou sua tropa do cômodo. Quando ficaram a sós, Kit disse: — Tendo em conta o serviço que lhe dispensam, estou começando a pensar se não será você o dono deste estabelecimento. Ele se encolheu de ombros. — Em certa ocasião prestei um pequeno serviço ao maítre d'hotel, e ele não o esqueceu. — Suponho que isso quererá dizer que ele perdeu uma fortuna com você as cartas e que você decidiu generosamente não lhe colocar no cárcere como devedor. 72


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— Algo parecido. — Lucien retirou uma cadeira da mesa e lhe fez um gesto de convite. — Começamos? Kit decidiu ficar cômoda e tirou as presilhas que prendiam a peruca negra. Depois de tirar e deixá-la pendurada em um gancho junto à capa, sacudiu o cabelo e passou os dedos por ele para soltar as esmagadas mechas. Supunha que teria o aspecto de um dente de leão que perdeu todas as sementes, entretanto quando se sentou viu admiração nos olhos do conde. Ele serviu champanha para os dois e levantou sua taça para Kit. — Pela mulher mais confusa e de maior talento que conheci. — Isso é um elogio ou um insulto? Lucien sorriu levemente. — Uma mera constatação dos fatos. — mostrava-se civilizado e charmoso até paralisar o coração a uma mulher. Kit teria acreditado que era um completo cavalheiro a não ser pelo duvidoso brilho de seus olhos verdes dourados. Incomodamente consciente da tensão sexual que havia entre eles, Kit provou o champanha. As borbulhas lhe fizeram cócegas na língua e formigaram seu sangue, relaxando seus músculos tensos. Sentindo-se um pouco mais calma, concentrou a atenção na comida. O sabor era inclusive melhor que o cheiro. Depois do linguado com alcachofras, os alho-poró fervidos, o frango com molho de damasco e o creme de pistache, sentiu-se melhor preparada para enfrentar seu adversário. Ele tinha comido muito pouco e estava recostado em sua cadeira, com uma perna cruzada sobre a outra e o cabelo reluzente como ouro tecido à luz das velas. Agora que se recuperou das tensões da função no teatro, Kit sentia uma intensa consciência física dele. Cada vez que se encontravam, a interação entre ambos era mais profunda, e ela se perguntou com nervosismo o que lhes proporcionaria a noite. Com a esperança de manter um tom ligeiramente social, disse-lhe: — Obrigado por esta excelente janta. — Sempre vi que era mais produtivo interrogar alguém que não está faminto. — Tomou um pequeno gole de seu champanha. — E acontece que tenho algumas perguntas a lhe fazer. Ela respirou fundo e deixou a faca e o garfo belamente sobre o prato. A batalha tinha começado.

CAPITULO 13

Kit elevou o olhar e cruzou com o dele. — Não tenho nada a lhe dizer. — Como, não tem mais historia inventadas para me contar? Sinto-me decepcionado — repôs o conde com fino sarcasmo. — Você é um dos embusteiros mais criativos que conheci jamais. — É você quem deveria falar — replicou ela. — Duvido que tenha uma só fibra de sinceridade em todo o corpo. No teatro convenceu todo mundo de que somos amantes. — Sou sincero quando é conveniente e quando não me custa nada — disse ele com suavidade. — Ambos temos muito em comum. Tem certeza de que não poderá fazer alusão a outro irmão enganado nem a outra investigação jornalística? Kit negou com a cabeça. — Estou cansada de mentir. Como já lhe disse, não tenho nenhuma obrigação de responder a 73


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suas perguntas, assim não o farei. Dou-lhe minha palavra de que não tenho a intenção de fazer mal a nenhuma pessoa inocente. Além disso, não penso dizer nada mais. — Eu gostaria de saber a que chama você culpado e inocente. — Estudou seu rosto. — Foi muito inteligente fingindo ser L. J. Knight. Como ninguém sabe como é esse indivíduo, o que você diz torna-se difícil de refutar. Até poderia ser certo, embora eu não apostaria um peni por isso. É mais provável que seja simplesmente uma leitora habit ual do trabalho de Knight. Algum comentário? — Eu bem que queria lhe formular algumas perguntas. — Entreabriu os olhos. — Me parece que você também tem segredos, porque seu comportamento não é precisamente o de um cidadão honrado e direito. Por que esse empenho em me interrogar? — Resulta-me difícil reprimir minha curiosidade por uma mulher que pratica habitualmente a fraude, a invasão de moradia e outra variedade de delitos importantes. — Acompanhou sua explicação com um sorriso que a Kit cortou a respiração. Mesmo que Strathmore não fosse o canalha que estava procurando, certamente resultava uma ameaça para ela e para sua missão. Então, por que seguia sentindo-se atraída por ele? A lembrança dos beijos que tinham compartilhado era tão vivida como as chamas que ardiam na lareira. E igualmente quente. Tinha que ir antes que o ambiente se tornasse mais íntimo. — Se me considerar uma delinqüente e tem provas disso, deveria chamar um juiz — disse sem alterar-se. — Mas se decidir me entregar à lei, recorde que não me faltam amizades influentes que iriam em minha ajuda. Aquilo provocou um brilho escuro nos olhos de Lucien. — Seria um desperdício enviá-la ao cárcere, querida. Não lhe agradaria, e ali você não me seria de nenhuma utilidade. — Suponho que se propõe a me seduzir, mas devo declinar essa honra. — levantou-se da cadeira. — Tenho que ir. Quando Kit rodeou a mesa em direção à porta, o conde elevou uma mão. Embora não a tocasse, ela se deteve apanhada na rede de sua formidável concentração. — A sedução implica tomar vantagem de uma mulher resistente ou indefesa — disse. — Você não é nenhuma das duas coisas. — Suponho que devo lhe agradecer — repôs Kit secamente, — mas já declarei que não estou disposta, lorde Strathmore. Tem a intenção de me reter aqui pela força? O conde respondeu com suavidade: — Não creio que a força seja necessária. Estava sentado, o que o fazia parecer menos ameaçador, mas seus olhos... Ah, seus olhos seguiam sendo perigosos, porque prometiam delícias que deixariam sua alma nua. Kit se endureceu para resistir a sua potente atração e lhe disse: — Se tiver a esperança de me persuadir para me levar à cama, pense duas vezes. Ele lhe dirigiu um sorriso lento. — Tenho uma paciência infinita, no final sempre consigo o que quero. — Pegou-lhe uma mão e entrelaçou seus dedos com os dela. — Te nega a me chamar de Lucien. Kit tragou saliva, tentando resistir ao efeito subversivo daquela quente mão. — Utilizar seu nome de batismo implicaria em uma intimidade entre nós da qual eu não quero tomar parte. — Não? — Com o olhar fixo nos olhos dela, atraiu-a para si e em seguida levantou as mãos unidas de ambos e lhe beijou a parte interior do pulso, percorrendo com a língua o traçado azul de uma veia. 74


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O efeito a impressionou, fazendo que todas as células de seu corpo vibrassem de desejo. Tentou escapar, mas embora seu abraço fosse doce, era também inexorável. Lucien começou a acariciar o sensível vão da palma da mão com o dedo polegar, e ela não pôde encontrar a vontade que necessitava para libertar-se. Com certo desespero, disse: — O fato de ser uma atriz não converte uma mulher em uma rameira, milord. — Não, mas implica que uma mulher possa ser... menos convencional que a maioria. — Sorriu lentamente. — E a única coisa que sei de você é que não é convencional. Aumentou a pressão na mão dela, mas era a luz verde de seus olhos o que a atraía para ele. Começou a respirar mais depressa, tanto pela emoção como pela inquietação. Possuía uma incrível capacidade para ler a mente, porque em vez de beijá-la a sentou sobre seus joelhos. — Devo te chamar de Cassie ou Jane? — Cassie é um nome artístico. Na realidade me chamo Jane. Ele começou a lhe massagear a nuca com suavidade. — Jane. Um nome tão comum para uma mulher tão notável. — Eu não sou notável, só me dou bem em criar fantasias — disse Kit, e a seguir se perguntou por que teria dito tanto. Aquele era um homem inclusive mais perigoso do que tinha imaginado, porque provocava nela o desejo de confiar. Parecia completamente natural sentir seus braços ao redor, apoiar a cabeça em seu ombro. Desejava tirar de si todos seus medos e refugiar-se em sua força, porque estava cansada, imensamente, dolorosamente cansada, de sua solitária luta. Embora não fosse tão tola para se render a aquela ânsia de união, logo se dissipou sua rigidez inicial. Deixou-se levar, contente de estar em seus braços, vagamente consciente do gostoso aroma da comida e das flores, dos distantes sons de risadas e conversas. Mas t udo aquilo não era mais que um ruído de fundo para a profunda realidade de Lucien. Ele enchia seus sentidos, sua tranqüila respiração lhe agitava brandamente o cabelo na têmpora. Como ele mesmo havia dito, tinha paciência. Durante um longo momento se limitou em abraçá-la e massageá-la lentamente para drenar a tensão de seus músculos e seus tendões. Sentiuse rodeada de seu calor e seu desejo, uma coisa que pouco a pouco foi elevando sua temperatura até igualá-la a dele. Mal se deu conta do primeiro contato de seus lábios na testa, de como se converteu em um delicado percurso pelas feições de seu rosto. Uma carícia muito leve nas pálpebras fechadas, uma exalação tentadora e erótica no ouvido. Por último, a leve pressão de um dedo sob o queixo lhe inclinou a cabeça para trás e, em um suave deslizar, a boca dele se apoderou da sua. A carícia aveludada de sua língua agiu como um bálsamo sobre o ponto do interior do lábio que ela havia mordido na carruagem. Custava-lhe recordar por que tinha tido tanto medo dele. O prazer que a envolvia se fez cada vez mais denso, e se converteu em ânsia quando tomou o seio na mão. O beijo se fez mais profundo, explorador, invocador. Ele lhe afastou a blusa de cigana do ombro e ela agradeceu a sensação fresca do ar e o quente consolo da mão dele. Enquanto brincava com o mamilo cada vez mais endurecido, murmurou: — Como Jane é um nome muito simples, vou te chamar de lady Jane. Como soube? Aquele pensamento a tirou de seu entorpecimento. Levantou a cabeça, inquieta, e compreendeu quão idiota tinha sido. — Tenho que ir. — Esta vez não, lady Jane — repôs ele com voz rouca. Desceu a cabeça e apertou a boca contra o seio dela. Kit sentiu que seu sangue adotava o mesmo ritmo que o ir e vir de sua língua. Arqueou o corpo e se retorceu no colo dele, sabendo 75


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com um sentimento de culpa que não estava tentando escapar a não ser entregar-se mais plenamente. Um de seus descuidados movimentos fez que ele perdesse o equilíbrio, e os dois estiveram a ponto de cair. Os reflexos do conde os salvou de se estatelarem contra o chão. Depois de recuperar-se rapidamente, ele a tomou em seus braços e percorreu a curta distância que havia até o divã. Depositou-a ao longo da superfície estofada e depois se sentou a seu lado. Sustentando seu olhar, deslizou-lhe a blusa dos ombros e desatou os laços da parte dianteira do corpete. Debaixo, a anágua subia e descia ao rápido ritmo de sua respiração, até que lhe desceu as peças até a cintura. Também afastou a um lado sua modéstia com igual facilidade, porque todo o acanhamento de Kit se desvaneceu no olhar de admiração que viu nele. Lucien apanhou os seios recém liberados em suas mãos fortes e cálidas e se inclinou para frente para chupá-los. Kit deixou escapar um gemido involuntário e fechou os olhos, alagada por uma corrente de novas e delirantes sensações. O leve raspar do queixo dele contra sua frágil pele nua; os dentes mordiscando com força deliciosamente controlada; as mãos percorrendo seus membros e seu torso como se pretendessem memorizar cada textura e cada curva. Tinha perdido as sapatilhas, e sentia o veludo como uma voluptuosa carícia sob os pés descalços enquanto os movia com inquieto desejo. Só existia ele, só este momento... Mas não era verdade. Havia coisas muito mais importantes em sua vida que a gratificação do desejo sexual. Em uma frenética chamada à prudência, levantou as pernas e apoiou as mãos contra os ombros de Lucien para afastá-lo dela. — Basta! Está me assustando. Ele ficou imóvel e levantou a cabeça, olhando fixamente seu rosto. — Suponho que não será um medo físico. — Não — disse ela com sinceridade. — Me assusta ir muito depressa. Fazer algo do que possa me arrepender. Lucien esboçou um sorriso triste. — Faria se sentir melhor saber que você também me assusta? Vai me custar muito caro, lady Jane. De fato, já me custou muito. Produziu-lhe uma sensação de poder o fato de saber que podia afetar assim um homem. Entretanto... — Pode ser que isso me faça sentir melhor, mas não mais segura. — Por isso te empenha em fugir sempre de mim? Porque não me negará que há algo muito intenso entre nós. — Ao mesmo tempo em que falava, sua mão se deslizou pela perna esquerda dela, do joelho até o pé. Um estremecimento que a desorientou a percorreu por inteiro quando o polegar dele começou lentamente a traçar círculos sobre o peito do pé. — Não posso negar que existe atração — disse com a voz entrecortada, — mas isso não significa que vá me render a ela. Entretanto, aquelas palavras eram desmentidas pelo irresistível impulso de tocá-lo. Suas mãos afrouxaram a resistência e se moveram pelos ombros dele, apalpando os duros músculos sob o elegante traje sob medida. Tirou-lhe o casaco e deslizou as mãos abertas e famintas, pelos flancos e a estreita cintura. Ele não riu da debilidade dela, mas sim se limitou a lhe sorrir aos olhos com calado triunfo e a lhe acariciar de novo a perna. Desta vez, fez em direção ascendente e afastando a volumosa saia para deixar descoberto o bracelete que usava no tornozelo. Fixou o olhar no brilho do ouro. — Isto é esplêndido para atrair a atenção para suas maravilhosas pernas — disse enquanto percorria o círculo de elos de ouro com a ponta de um dedo. 76


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Ela aspirou profundamente, contraindo os dedos dos pés contra o veludo e os das mãos contra o flanco dele. — Esse bracelete pertence à moça cigana. A simples Jane que sou na realidade jamais teria a audácia de usá-lo. — A simples Jane? — O olhar do conde era um tanto zombador. — Uma corrente de ouro pode se tirar, mas isto — lhe levantou um pouco mais as saias para revelar a mariposa tatuada na coxa direita — serve só para deixar os homens loucos. Assim como tem me deixado louco. Inclinou-se para frente e percorreu o desenho com a língua, soltando seu hálito quente sobre a parte interior da coxa. Kit abriu muito os olhos e toda a parte baixa do corpo se esticou de puro desejo. — Lucien — disse. — Oh, Deus, Lucien... A contenção que ele tinha mostrado até então se dissolveu em um instante. Esticou-se junto a ela, seu duro corpo moldando as curvas suaves dela, e a beijou com sensual veemência enquanto sua mão subia devagar entre as coxas, queimando a seu passo a pele sensível até o lado das calcinhas curtas que Kit usava sempre que executava aquela provocadora dança. Uma palma longa e quente se deslizou sobre o leve tecido. As pontas de uns dedos encontraram a costura aberta e se introduziram através dos suaves cachos até as dobras de seu sexo, úmidos e quentes, deslizando-se até o mais fundo, o mais íntimo. Doce, embriagadora tortura. Kit gemeu ao sentir como a paixão lhe percorria todo o corpo ridicularizando toda moralidade e todo o juízo. Não podia suportar aquela agitação, aquele frenesi, não podia suportar... A liberação, quando veio, foi radiante. Lançou um grito, um som que se afogou nas profundidades de sua boca ao mesmo tempo em que ele monopolizou sua essência para si mesmo. Estava absorvendo-a, no entanto, ao mesmo tempo a estava convertendo mais em si mesma ao desatar seus desejos escondidos. Voltou a si lentamente, com a parte inferior do corpo ainda vibrando com leves sacudidas de prazer. Sentia-se fisicamente saciada como nunca antes, e o processo a tinha aproximado de Lucien de um modo que não podia ter imaginado antes desta noite. Essa revelação foi seguida de uma furiosa recriminação: Santo Deus, como tinha sido tão louca? Não podia se permitir o luxo de perder-se nele. Ainda que não tivesse uma desesperada missão para cumprir, seria o cúmulo da idiotice deixar que um libertino se fizesse dono de sua alma. Tinha sido fraqueza lhe permitir semelhante intimidade. E essa intimidade estava a ponto de fazer-se ainda maior. Ele pegou a sua mão e a levou até a dura protuberância masculina que pressionava contra a coxa dela. Através das várias camadas de tecido que os separavam, Kit notou uma pulsação quente e insistente. Apertou com precaução. Lucien gemeu e se moveu contra a mão, com os olhos fechados e a respiração agitada. Existia uma profunda satisfação em dar e agradar a ele e em ver que se encontrava tão indefeso como ela há alguns minutos. Gravemente, notou que aquela mútua vulnerabilidade era um elemento crucial do vínculo que unia os amantes. Suas reflexões terminaram quando ele começou a desabotoar a calça. Queria completar sua união, e ela o ansiava com idêntica intensidade. Desejava tê-lo dentro de si, o converter em parte de si mesma, fazer que se perdesse no êxtase. Mas não se atrevia. Não se atrevia. Procurou com toda a pressa em sua mente até encontrar a desculpa necessária, e lhe sussurrou: — Ainda não. Devo... Devo tomar precauções. Lucien abriu os olhos nublados, dourados pela paixão. 77


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— Tomarei cuidado. — Seus dedos suaves como plumas lhe roçaram a têmpora. — Jamais te faria mal. Sua ternura era uma arma tão potente como o desejo. Sem fôlego, se escapuliu antes que sua vontade se desmoronasse de novo. — Será melhor não ter que retroceder — lhe prometeu quando ele estendeu a mão para atraíla outra vez. Lucien soltou uma ligeira risada e abaixou a mão. — Evidentemente, sabe que esse é um argumento quase irresistível. Odiando-se a si mesma, ela ficou de pé e lhe tocou o cabelo emaranhado. Lucien parecia menos intimidador do que o normal, já não era Lúcifer a não ser Apolo, nascido do sol. O remorso lhe perfurou as vísceras, e, entretanto sua malvada e mentirosa língua continuou: — Demorarei só um minuto... Tenho comigo tudo o que necessito, e há um reservado bem no final do corredor. — apressou-se a colocar a roupa para que tivesse certa aparência de ordem. O sorriso dele foi uma carícia. — Volte logo, lady Jane. Ela se inclinou e o beijou. — O farei — disse com voz rouca. — Eu... Odeio ter que te deixar, ainda que seja por um instante. — Isso, pelo menos, era verdade. Ele se recostou sobre o divã e jogou um braço sobre os olhos fechados. Embora d esse a impressão de estar relaxado, seu corpo seguia tenso, insatisfeito. Kit nunca voltaria a lhe ver tão crédulo. Embora no futuro se encontrassem em circunstâncias menos conflitantes, ele nunca a perdoaria pelo que estava a ponto de fazer. Antes que o remorso pudesse desmoronar totalmente sua resolução, lançou-se a recuperar suas sapatilhas e deslizar os pés nelas enquanto caminhava. Titubeou quando viu a capa e a peruca penduradas nos ganchos de madeira junto à porta. Teria que retornar para sua casa andando, e necessitaria da capa para evitar se congelar e para ocultar seu absurdo e chamativo disfarce de cigana. Tampouco podia abandonar a peruca. Pegou as duas coisas em silêncio e saiu pela porta. O corredor estava vazio, de modo que colocou a peruca na cabeça e empurrou com pressa o cabelo dentro dela. A seguir se envolveu na capa para que ninguém a reconhecesse. Quase ninguém, porque tropeçou com o maítre d'hotel quando estava a ponto de sair por uma porta lateral. O homem fechou os olhos ao notar seu cabelo despenteado e ver que estava sozinha, mas era muito discreto para fazer comentários. — Espero que a senhorita tenha desfrutado do jantar. Adotando sua pose mais nobre, Kit inclinou a cabeça e disse em francês: — O jantar foi soberbo, monsieur. Como sempre. Com um brilho de prazer nos olhos, ele abriu a porta. Antes de sair ao exterior, a curiosidade fez Kit dizer: — Lorde Strathmore mencionou que em certa ocasião prestou a você um pequeno serviço. O estilo profissional do francês desapareceu de repente e disse com veemência: — Não foi pequeno, mademoiselle. Tirou minha família da França sã e salva. Por isso minha vida está ao seu dispor. Foi uma surpresa a mais em uma noite que já tinha visto muitas. Enquanto se encaminhava para mais próximo de seu domicílio, amaldiçoou em silêncio ao conde por sua complexa personalidade. Ainda que suspeitasse que ele tivesse feito muitas coisas que não suportariam um exame de perto, era acreditável que pudesse agir com generosidade e heroísmo. Mas como diabos ele teria conseguido resgatar pessoas da França quando o Continente tinha fechado aos ingleses a 78


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maior parte das duas últimas décadas? Provavelmente incrementava seus ganhos com o contrabando ou com algo igualmente infame. Apesar da intimidade que ambos acabavam de compartilhar, o conde seguia sendo um homem de mistérios. E os mistérios eram perigosos.

As imagens de Jane perseguiam Lucien enquanto aguardava sua volta. Seus ágeis membros, sua hipnotizadora diversidade, a suave e doce sensualidade de suas reações. Intrigava-lhe como jamais uma mulher havia lhe intrigado, e ansiava possuí-la. Talvez na intensidade do acasalamento pudesse por fim chegar a sua caprichosa alma. Perguntou-se pelo fato de que levasse consigo medidas anticoncepcionais. Com a maioria das mulheres, teria suposto que aquilo era um sinal de promiscuidade, mas no caso de Jane, talvez só quisesse dizer que era muito inteligente para permitir que a pegassem sem estar preparada. Mesmo assim, não podia excluir a possibilidade de que estivesse se enganando porque não queria pensar que nessa noite não era mais que um episódio casual na vida de uma atriz sem escrúpulos. Sentia-se resistente em analisar seus próprios sentimentos, mas certamente não eram casuais. Seus dedos tamborilaram inquietos sobre o divã enquanto se perguntava quanto tempo demoraria a voltar. Já tinham transcorrido vários minutos. Dez provavelmente? Cinco, com certeza. Parecia mais tempo. Não deveria tê-la deixado escapar de sua vista. Abriu os olhos de repente e, com súbita e dilaceradora certeza, soube que ela não ia voltar. A egoísta rameira tinha recebido sua satisfação e depois o tinha deixado ali se consumindo. Deus misericordioso, como tinha sido tão idiota? O que tinha aquela mulher que podia enganar uma e outra vez a um homem que estava acostumado a ser notável por sua cautela? Nunca tinha se mostrado violento com uma mulher, mas se Jane estivesse ali, existia uma possibilidade real de que fizesse uma exceção. Se ela estivesse ali, não se sentiria violento... Pelo menos, não daquela maneira. Mas que inferno! Ficou de pé com um salto, pegou furiosamente o lado da mesa do jantar e a derrubou contra o chão. A baixela se espatifou com um satisfatório estrondo de louça feita em pedacinhos e prata tilitante. Torceu a boca ao contemplar como o vinho se derramava sobre o tapete oriental. Aquele resultaria ser sem dúvida o jantar mais caro de sua vida, de todos os modos possíveis. Ouviu-se uma discreta batida na porta, seguido da voz do maítre d'hotel. — Está tudo bem, milord? Lucien, com expressão sombria, esticou a roupa e o semblante. Não pensava permitir que ninguém adivinhasse o que aquela bruxa lhe tinha feito. Ao cruzar a sala, sua ira se acendeu de novo ao ver que ela tinha lhe roubado a capa e recuperado sua peruca. Maldita bruxa de sanguefrio, trapaceira, ladra... Enquanto abria a porta, disse: — Um pequeno acidente, Robecque. Fui abominavelmente torpe. Envie-me a conta pelos danos. O francês deu uma olhada ao desastre e guardou seus pensamentos para si. — Como você desejar, milord. Lucien se deteve um momento na soleira. — Minha amiga se foi sem problemas? Não me agradou deixar que fosse para casa sozinha, mas é uma jovem muito teimosa..., muito apegada a sua independência. — Uma mulher para recordar — disse Robecque admirativamente. — Seu francês é excelente. Tão bom como o seu, milord. 79


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— É uma mulher de infinitos talentos. — Na próxima vez que se vissem, e certamente que se veriam, ela pagaria pelo que tinha feito esta noite.

CAPITULO 14 Assim como sua presa, Lucien considerava muito bom modificar seu aspecto. Na manhã seguinte, disfarçado, se encontrava procurando um coche de aluguel em Oxford Street quando viu que se aproximava o duque de Candover. Para lhe confundir, disse-lhe com sotaque de Yorkshire: — Desculpe-me, cavalheiro, a ópera é perto daqui? Com o aspecto de sentir-se incomodado por ser parado por um desconhecido, Rafe respondeu friamente: — Há cinco minutos seguindo à esquerda. Lucien mudou para sua voz natural e disse: — Muito obrigado, excelência. Rafe se sobressaltou e em seguida se virou. — Luce, é você? — Em carne e osso — respondeu Lucien, — e agradecido de que não me tenha dado um murro ao te perguntar. O duque lançou um bufo e saltou à calçada. — O que tens entre mãos desta vez? — Uma pequena investigação, embora te agradeceria que não fosse anunciando por toda Mayfair. — Como o faz? — perguntou-lhe Rafe, baixando a voz. — É evidente que te escurecer o cabelo e usar lentes e roupas gastas te faz mudar muito, mas são coisas superficiais. — Percorreu seu amigo com um olhar inquiridor. — Suas feições seguem sendo as mesmas, mas parece mais baixo e gordo do habitual, e passas totalmente despercebido. Se não te conhecesse desde que tinha dez anos, não teria idéia de quem és. — Todo disfarce começa na mente — explicou Lucien. — A riqueza, o poder e a posição proporcionam à pessoa um tipo de confiança que resulta inconfundível. Se a gente deixar essas coisas de lado e pensar em si mesmo como um ser insignificante e sem segurança econômica, criase uma aura muito distinta. — Suponho que sim — admitiu Rafe, — embora não posso imaginar a mim mesmo desejando fazer uma coisa assim. Eu gosto bastante da riqueza, do título e do poder. — Representa tão bem o papel de aristocrata arrogante que seria um delito abandoná -lo — concordou Lucien. — Falando nisso, será melhor que nos separemos. Poderia prejudicar sua reputação de homem altivo se o virem falando com um personagem tão comum como James Wolsey de Leeds. — Sou perfeitamente respeitoso com a classe baixa sempre que se observe a devida deferência — disse Rafe brandamente. — Não esqueça de puxar a aba do chapéu ao se despedir. Lucien sorriu. — Ouvi dizer que as negociações em Gante estão indo melhor. O duque assentiu com um gesto. — Com sorte conseguiremos alcançar a paz nas Américas até o Natal. — Assim seja. Depois de despedir-se com uma inclinação de cabeça, Lucien deteve um coche de aluguel e 80


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foi até o teatro Marlowe. Uma vez ali, apresentou-se como um jornalista que estava escrevendo um artigo sobre Cassie James. A jovem dama tinha se apresentado com freqüência ao público do norte do país, e aos leitores interessaria o êxito que tinha obtido em Londres. Sua presença foi aceita com naturalidade, e passou várias horas rondando de um lado para outro, fazendo perguntas e tomando notas. Era muito hábil surrupiando informação; por desgraça, ninguém tinha nada útil para lhe contar. Era algo universalmente aceito que a senhorita James era uma jovem encantadora, nada presunçosa. E também muito profissional. Entretanto, gostava da intimidade mais que à maioria da s pessoas. Ninguém sabia onde vivia nem conhecia detalhes de sua vida pessoal, além de que na noite anterior seu aristocrático amante a tinha levado do camarim, e aquilo já foi bastante estranho. Embora se supunha que a jovem ti vesse um protetor, não sabiam que se tratava de alguém de classe tão alta. A garota tinha feito muito bem, e lhe desejavam êxito. Lucien encontrou certa satisfação no fato de que ninguém tivesse reconhecido que James Wolsey era o conde de Strathmore. Foi a única satisfação que teve nessa jornada de trabalho. Nem sequer o diretor do teatro pôde lhe ajudar. Durante um descanso no ensaio de uma nova produção, que pareceu consistir em proferir insultos a torpes bailarinas, explicou que a senhorita James interpretava pequenos papéis em várias obras diferentes, mas, que sua suplente a substituiria durante uma semana ou duas porque ela tinha pedido uma temporada livre para visitar uma tia doente. O leve tom de sátira de sua voz sugeria que o diretor pensava que a tia era uma invenção; ele estava no camarim na noite anterior, quando raptaram a sua estrela em alta. Não obstante, a garota retornaria para a seguinte representação de A Cigana, já que aquele era seu papel mais importante. O senhor Wolsey devia contar a seus leitores que estava sendo preparada outra obra em que a senhorita James apareceria. Interpretaria um papel vestida de calça comprida, e não era arriscado dizer que logo toda Londres se plantaria a seus pés para adorá-la. Não, não tinha idéia de onde vivia a moça. Tendo em conta que a maioria das atrizes eram criaturas muito temperamentais, deu graças a sua boa estrela de que Cassie guardasse suas coisas para si mesma, aparecesse quando dizia que ia fazer e nunca atirasse objetos em seu sofrido diretor. Agora, se o senhor Wolsey lhe desculpava, devia retornar a seu trabalho. Lucien saiu do teatro frustrado e nada surpreso. Uma vez mais, lady Jane havia coberto bem seu rastro. Quando chegou em casa, ficou sabendo que em sua ausência um jovem anônimo tinha entregue um pacote. O abriu em seu escritório e descobriu que se tratava de sua capa perdida e uma nota sem assinar que dizia: «Pense o que pense de mim, não sou uma ladra». Não melhorou seu estado de ânimo o fato de ver a prova de que, a seu estranho modo, Jane era honrada. Sentiu-se tentado a lançar a capa contra a parede, mas se conteve; o pesado tecido de lã não teria se espatifado de maneira satisfatória. Além disso, já tinha permitido a si mesmo muitas emoções no que concernia a Jane. Já era hora que deixasse de lado a luxúria e analisasse aquela mulher objetivamente, como faria com qualquer outro objeto de investigação. Jogou a capa sobre o sofá e depois se sentou em sua mesa com uma folha de papel de tamanho comum e uma pluma. Para começar, o que era que sabia realmente dela? O único fato indiscutível era que era uma atriz, uma mulher de mundo brilhante na hora de interpretar papéis, de uma moça tímida e inocente até uma comprometida intelectual. Também era como ele em muitos aspectos... Maldita fosse por isso, porque esse detalhe era a razão fundamental de sua obsessão e de sua raiva. Os dois eram matreiros, capazes de mentir com plena c onvicção. Em seu caso era 81


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convincente porque em seus enganos sempre havia uma finalidade; sinceramente acreditava que seu fingimento tinha como resultado final o bem de seu país. Devia haver um fundo semelhante de sinceridade em Jane, ou do contrário não seria uma embusteira tão persuasiva. De fato, assim havia dito quando lhe explicou por que sua história sobre seu inexistente irmão fora tão convincente. Aquela sinceridade subjacente era a razão de por que ele seguia acreditando nela uma e outra vez. O que era que fazia que ela se arriscasse repetidamente sua vida e sua reputação? Pôs a pergunta por escrito e a sublinhou duas vezes. Se soubesse a resposta, entenderia por fim. Voltou a pensar nas histórias que ela havia inventado. Primeiro foi uma irmã que tentava ajudar a um irmão mais jovem, em seguida uma articulista decidida a trazer à tona as violações e a exploração sofridas por moças indefesas. O elemento comum era a proteção, e sua apaixonada preocupação tinha resultado extremamente convincente. Seu enlouquecedor e imprevisível comportamento provavelmente era causado pelo desejo de proteger alguém. Poderia ser um amante a pessoa que ela tentava proteger? Apertou os lábios. Não gostava da idéia, mas um amante que estivesse em apuros explicaria a ambivalência das reações da jovem para ele. O fato de debater-se entre a atração por um homem e a fidelidade a outro poderia facilmente ter como resultado beijos ardentes alternados com fugas amalucadas. Por um momento, a visão de Jane com outro amante esteve a ponto de destruir sua obstinada imparcialidade. Demorou um tempo em suprimir o suficiente a imagem para poder prosseguir com sua análise. As persistentes tentativas de Jane em espiar os Demônios indicava que seu objetivo se encontrava dentro daquele grupo. Ao que parecia, um dos membros devia ter algo que ela procurava e não tinha encontrado ainda. Portanto, se ele se mantivesse perto dos Demônios, certamente se encontraria de novo com ela, mas estava cansado de esperar. Pensativo, deu uns pingos com a pluma sobre a superfície de couro da mesa enquanto estudava outras vias de investigação. Jane tinha demonstrado conhecer bem os escritos de L. J. Knight. Sua pretensão de ser essa pessoa provavelmente era falsa, mas talvez se movesse em círculos em que se falava habitualmente do trabalho daquele jornalista. Provavelmente freqüentava salões onde escritores, artistas, atores e todo um leque de seres excêntricos se acotovelavam entre si e falavam da vida, da política, da arte. Em um lugar assim era onde teria se informado de que o ensaísta em questão nunca se deixava ver e de que poderia adotar tranqüilamente sua identidade, ao menos por um tempo. Lucien sempre tinham gostado dos salões, pois neles se davam as conversas mais animadas de Londres, mas ultimamente tinha estado muito ocupado para visitá-los. Já era hora de percorrer de novo o circuito. Começaria pelo de lady Graham, uma viúva rica de opiniões liberais e natureza gregária cujas reuniões quinzenais atraíam algumas das pessoas mais interessantes e controvertidas da Grã-Bretanha. Certamente ali encontraria alguém que conhecesse uma atriz cômica em alta. Deixou a pluma com a sensação de que no fim tinha feito algum progresso. Mas era hora de afastar a um lado o mistério de Jane e preparar-se para ir jantar com lorde Mace. Com sorte, esta noite lhe informariam da data do próximo ritual dos Demônios. Nessa ocasião poderiam ser admitido formalmente no grupo, e isso lhe aproximaria da possibilidade de encontrar o traidor. Enquanto arrumava a gravata, sorriu ironicamente. Era melhor Jane se apresentar esta noite, com sua esbelta figura de longas pernas e seus cambiantes traços disfarçados como um dos lacaios de Mace. Se o fizesse, desta vez ele não seria tão tolo para perdê-la de vista. 82


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CAPITULO 15

Assim que Lucien entrou na casa de Mace, alguém lhe jogou um manto escuro e pesado por cima e uma voz — a de Roderick Harford?— disse em tom sinistro: — Chegou o momento da verdade, Strathmore. Para converter-se em um Demônio, tem que passar pela cerimônia de iniciação. Escolhe prosseguir para o desconhecido, ou prefere retirar -se e não converter-se jamais em um de nós? Lucien reprimiu um suspiro. Deveria ter imaginado que os Demônios fariam algo infantil como aquilo. — Desejo ser parte desta sociedade — disse gravemente — assim seguirei em frente. — Obedeça todas as ordens — entoou Harford. — Espera só o inesperado, e deixa que as chamas do inferno lhe transformem. Umas mãos anônimas puxaram para baixo o escuro tecido que cobria Lucien. Ao que parecia, tratava-se de uma túnica envelope e com capuz que tapava completamente o rosto. Depois que alguém lhe atasse as mãos para frente frouxamente, foi conduzido através da casa para por fim sair ao exterior e subir em uma carruagem. Uma voz grave ia avisando dos degraus e as voltas, mas era desorientador não poder ver nada. Cético, supôs que aquele tratamento era pensado para minar a confiança de um homem e lhe tornar mais suscetível às tolices que seguissem. O passeio na carruagem foi longo e os levou para fora de Londres. Ninguém pronunciou palavra, mas os seres humanos raramente permanecem totalmente silenciosos. Pelos ruídos da respiração e das mudanças de postura, adivinhou que lhe acompanhavam três homens. Finalmente, a carruagem se deteve com uma sacudida e alguém ajudou Lucien a desembarcar. No gélido vento flutuavam os aromas úmidos e terrestres do campo e o som de suaves ondas. Depois de uma breve caminhada sobre a grama, insistiram que ele subisse em um bote de coberta plana. Era tão estreita como uma balsa, desenhada para avançar com ajuda de uma vara por águas pouco profundas. Balançou perigosamente quando Lucien pôs o pé nela, de modo que se apressou a sentar-se. Outros três bamboleios quando seus acompanhantes subiram a bordo. A balsa se afastou da margem e deslizou suavemente sobre a água. Frente a eles começou a tanger gravemente o sino de uma igreja, como se estivesse contando os anos de alguém que acabava de falecer. A viagem foi curta, e logo a balsa roçou o cascalho. Os passageiros desembarcaram, Lucien foi golpeado no queixo de um lado. Havia mais homens esperando na margem, porque ouviu pés que se arrastavam e uma tosse apagada. Tratava-se de um grupo muito maior, talvez de duas dúzias de pessoas. Alguém lhe fez girar-se para a direita e depois tirou o capuz da túnica. A peça caiu, e ele de repente voltou a ver. Viu uma colina sobre a qual se elevava um castelo medieval iluminado pela lua cheia, que tocava suas antigas pedras com uma luz fria e misteriosa. O lúgubre tangido de defuntos do sino da igreja fez que Lucien estremecesse, mas dominou o semblante para mascarar sua reação. Era puro teatro, mas do mais efetivo. Se fosse supersticioso, estaria já meio enlouquecido pelo medo. A seu redor havia possivelmente trinta homens vestidos com túnicas brancas com capuz, que carregavam grandes círios acesos. Parecia um conclave de espectros. A túnica que usava era 83


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negra, provavelmente por causa de sua categoria de noviço. O homem que estava mais perto era Roderick Harford, que, levantando os braços, exclamou: — Qual é nossa contra-senha? Os falsos monges responderam em coro: — Faz o que deseja! — Qual é nosso objetivo? — O prazer! — Vamos, pois, irmãos, a nosso sagrado ritual. Um homem que usava um medalhão ao redor do pescoço empreendeu o caminho colina acima e o resto do grupo pôs-se a andar atrás dele, partindo em fila de um. O vento açoitava as chamas das velas jogando caprichosas sombras sobre a paisagem. Harford fez um gesto a Lucien para que se unisse ao final da comitiva, e ele mesmo ocupou a retaguarda. O castelo estava rodeado por altas muralhas. Uma pesada porta de ferro deu passagem ao grupo para jardins bem cuidados. O caminho serpenteava entre arbustos e algumas estatua s que Lucien olhou fugazmente. Por isso pôde distinguir na tênue luz, uma dessas estátuas representava um falo de mármore de quase seis metros de altura. Pura ilusão, sem dúvida. Seu destino era a capela, que parecia ser o único edifício que se encontrava intacto. À medida que foram se aproximando, viu que a entrada estava flanqueada por estátuas de um homem nu e de uma mulher também nua, cada um sustentando um dedo contra os lábios em sinal de silêncio. Ambos estavam tão bem dotados fisicamente que uma pessoa média se sentiria tristemente inferior. Esculpidas em relevo sobre a entrada se viam as palavras Fay ce que voudras. «Faz o que deseja». A frase já havia lhe soada familiar anteriormente, e agora recordou que se tratava do lema do antigo clube do Fogo do Inferno. Perguntou-se o que Jane pensaria de toda aquela falta de moderação masculina, e conteve um sorriso ao pensar nisso. A porta com partes de ferro se abriu com um chiado e a procissão penetrou na capela. Vários braseiros resplandeciam ao redor do sacrário, enchendo o ar de fumaça de incenso que ardia nos olhos. Embora tivessem tomado o cuidado de conservar o ambiente de uma antigüidade que desmoronava, Lucien adivinhou que a estrutura tinha sido restaurada recentemente. Certamente, a dúzia de vitrais que representavam apóstolos praticando atos impudicos era nova e inegavelmente imaginativa. Olhou para cima e viu que a abóbada do teto tinha sido decorada com um afresco igualmente obsceno. Assim como o resto da igreja, as imagens eram uma mescla eclética de arte cristã e pagã. Homens com patas de cabra copulando com anjos e monges libidinosos perseguindo ninfas gregas. Era evidente que os Demônios gostavam da variedade. Os monges formaram um círculo ao redor do lugar e Harford sussurrou: — Caminhe até o altar e ajoelhe-se. Quando o sacerdote lhe ordenar que se levante, fique de pé junto ao corrimão durante toda a cerimônia. Dirija-se ao sacerdote como Professor. Lucien obedeceu, com o pensamento irreverente de que se soubesse que tinha que esperar tanto por aquele jantar, teria jantado mais cedo. Prostrar-se sobre a fria pedra não era diversão alguma quando se tinha o estômago vazio. Nesse momento se abriu uma porta situada atrás do altar e ouviu umas passadas se aproximarem com um suave roçar de uma túnica de brocado escarlate. Lucien se conteve para não olhar, mas reconheceu em seguida a voz rouca de Mace quando este lhe perguntou: — Compreende a gravidade do compromisso que está a ponto de assumir, noviço? Tentando experimentar uma apropriada sensação de reverente respeito, Lucien respondeu: — Compreendo-o, Professor. — As pedras do chão lhe raspavam a bochecha. — Se levante e me olhe, noviço. — Quando Lucien obedeceu, Mace seguiu dizendo —: Jura 84


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solene lealdade a esta irmandade, sabendo que jurar em falso atrairá sobre ti as maldições dos Demônios? — Sua voz rugia como o trovão, e em seus olhos brilhava o perigo. A segurança de Lucien desapareceu. Recordando-se a si mesmo que nunca devia subestimar a outro homem, disse: — Juro, Professor. O olhar de Mace lhe sondou e julgou. Por fim assentiu com a cabeça. — Que assim seja. Voltou-se e utilizou uma vela para acender fogo dentro de um grupo de pedras que havia sobre o altar. O aroma acre de ervas queimadas se uniu ao do forte incenso. O serviço que seguiu não foi uma missa negra, a não ser uma estranha mescla de pagão e cristão blasfemo, ambos sinistros e uma brincadeira de si mesmos. Falando em latim e francês e também em inglês, a voz de Mace subia e descia seguindo um ritmo que tecia um potente feitiço de mistério. À medida que a fumaça foi fazendo-se mais densa, Lucien começou a sentir-se enjoado. Supôs que as ervas que estavam queimando continham algum narcótico, como a beladona e o beleno. A penetrante mistura produzia um estado receptivo em que era fácil acreditar que estavam invocando poderes místicos. Obrigou-se a tomar nota mentalmente de tudo, porque aquela análise lhe ajudava a manter-se à margem. Preferia assim; o sacrilégio nunca tinha sido seu estilo. Quando o ritual alcançou seu momento culminante, Mace gritou: — Já é um dos nossos! — Introduziu os dedos em um cálice negro e a seguir salpicou em Lucien com o conhaque aromatizado com enxofre, em uma paródia de batismo. — dentro da sociedade dos Demônios, nosso novo membro será conhecido com o nome místico de Lúcifer. — Bem-vindo Lúcifer! — os monges fizeram coro. Mace se voltou de costas e lançou um punhado de pólvora sobre o fogo que ardia no altar. Uma violenta labareda se elevou de repente em direção ao teto, enquanto negras nuvens de fumaça se dispersavam em todas as direções. Sobre o altar, a densidade da fumaça tomou uma forma ameaçadora, como se o diabo tivesse atendido à chamada. O ar da capela se eletrificou com a tensão que reinava. Mace levantou os braços e pronunciou uma frase ininteligível. A figura diabólica começou a dissolver-se, e com ela a tensão que se apoderou dos presentes. Lucien admitiu para si que o espectro em forma de fumaça tinha sido um bom golpe de efeito; se lhe dessem um pouco de tempo, ele mesmo poderia reproduzi-lo sem dúvida alguma. Pelo visto, Mace estava usando suas habilidades técnicas para a lgo mais que brinquedos obscenos. Mace desceu os braços e o brilho exaltado que havia em seus olhos foi se apagando. — Venham, irmãos, celebremos. Um monge afastou para o lado uma cortina preta que havia no canto, revelando um corredor que conduzia a um salão de banquetes. Imediatamente, o ambiente de solenidade foi substituído por um animado falatório de vozes enquanto os Demônios iam passando para o salão e se acomodavam nos divãs em estilo romano que se alinhavam contra as paredes. Ao ver que Lucien hesitava, Mace o chamou com um gesto para a cabeceira da sala. — Venha se sentar comigo, Lúcifer. — estendeu-se sobre seu divã. — O que lhe pareceu o serviço? — Impressionante — respondeu Lucien sem mentir enquanto se reclinava sobre o divã estofado em couro. — Certamente, não é tão simples como a adoração ao diabo que o clube do Fogo do Inferno praticava. Deve ter requerido um considerável estudo combinar em tão singular mistura os costumes clássicos, cristãos e pagãos. 85


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— Sabia que você seria capaz de apreciar os múltiplos níveis de significado. Nem todos nossos membros são tão cultos. — A diversão brilhou em seus olhos. — Certamente, terá que dar ao diabo o que lhe pertence, mas o satanismo é muito banal, um mero investimento dos costumes cristãos. Resulta muito mais interessante inventar uma religião própria. Estava descrevendo suas investigações quando entrou no salão um grupo de moças vestidas com trajes de seda transparente que deixavam ver cada uma das curvas e fendas de seu corpo. Somente seus rostos eram invisíveis, pois os tinham cobertos com complicadas máscaras de plumas. Nunfield tinha ocupado o divã contínuo ao de Lucien. Quando entraram as moças, disse: — O tema desta noite é a Turquia. A mim, pessoalmente, eu gosto que as vadias se vistam de monjas, os hábitos deixam tudo à imaginação. Mas muitos de nossos irmãos preferem o óbvio. — Fez um gesto a uma das garotas, que trazia uma jarra. A jovem se inclinou para frente e serviu vinho em suas taças, deixando ver como balançavam seus seios atrás dos véus que flutuavam por cima do torso. — Umas criaturas encantadoras, não e? — Apreciativamente, Mace acariciou um redondo traseiro. A mulher soltou um sorriso e se esfregou contra a mão dele. — Roderick é o encarregado de trazer as moças, e tem um gosto excelente. — São profissionais? — perguntou Lucien, nada surpreso de inteirar-se de que Roderick era o principal alcoviteiro. — A maioria sim, mas nem todas. — Mace sorriu como escárnio. — Algumas delas são mulheres de alta classe, das que alguém poderia encontrar na corte da rainha. Por isso usam as máscaras. Se você tivesse uma irmã, talvez a encontrasse aqui. Ou sua esposa. Lucien reprimiu um sentimento de asco. — Uma idéia tentadora. É uma lástima que eu não tenha nenhuma coisa nem outra. Mace levantou sua taça. — Pela libertinagem! — Depois de um olhar de desafio, apurou sua taça de um só gole. Lucien fez o mesmo. Se estiver em Roma... Chegou outra moça levando uma travessa de salsichas fumegantes que tinham sido recortadas de forma que parecessem falos. Lucien agarrou uma delas e mordeu o extremo. As coisas que tinha que fazer por seu país! O banquete rapidamente degenerou em uma versão atualizada de uma orgia romana. Sempre que era possível, dava-se à comida uma forma sugestiva, e o vinho e os licores corriam sem cessar. À medida que a noite foi avançando, as risonhas moças que os serviam foram sentando-se sobre os divãs. Alguns dos casais, entre eles Nunfield e uma morena rechonchuda, transaram ali mesmo; outros se levantaram e saíram dando tombos em direção aos cômodos privados que se situavam em uma sala adjacente. Depois que Mace desapareceu com uma das mulheres, Lucien se levantou e escapuliu às escondidas entre os jardins, com a sensação de que não poderia suportar um minuto mais naquele fétido ambiente. O ar frio era refrescante, embora ainda se sentisse enjoado pela quantidade de álcool que tinha consumido. Manter-se à altura de Mace uma taça atrás de outra era algo que podia fazer cair o mais forte. Passou pelos caminhos iluminados pela lua e foi tomando nota automaticamente de seu desenho no caso de algum dia fosse de utilidade. Quando subiu uma escada de pedra que conduzia à parte de cima da parede, descobriu que o castelo não estava situado sobre uma ilha. A água que tinham cruzado se via como um rio prateado pela lua que rodeava parcialmente a colina. O castelo era provavelmente uma ruína da época normanda, reconstruída pelos Demônios. Os jardins tinham um belo desenho, embora a s estátuas obscenas em seguida fossem 86


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tediosas. Dobrou uma aguda esquina e deparou com uma Vênus de mármore que se inclinava para tirar um espinho do pé. Tinha sido colocada no meio do caminho para que quem passasse tropeçasse de bruços contra suas nádegas nuas. Deu-se conta de que não era o único que passeava por ali quando viu lorde Ives contemplando uma estátua de Zeus violando um cisne. Lucien mostrou as figuras com um gesto. — Pode me considerar um puritano, mas não imagino como um cisne poderia me excitar. A não ser que eu fosse outro, claro. O jovem sorriu. — Leda também teria estado a salvo comigo. Estes deuses gregos eram bastante lascivos. Os dois homens recomeçaram o passeio juntos e continuaram pelo atalho. Lucien disse: — Está tomando um descanso para recuperar as forças antes do próximo encontro? Ives titubeou e depois soltou uma risada um tanto violenta. — Na realidade estava pensando em ir cedo para casa. Provavelmente pensará que sou um idiota, mas é que não me diverti muito com a garota que escolhi. Estive todo o tempo pensando que gostaria mais de estar com Cléo. — Não me parece que você seja idiota. — Lucien pensou em Jane, que tinha mais sensualidade em um único olhar sedutor que todas aquelas garotas seminuas juntas. — A paixão sem sentimento pode satisfazer ao corpo, mas o prazer desaparece tão rapidamente como chegou, e não deixa mais que o vazio. — Exatamente, isso. Alegro-me de não ser o único que se sente assim. — Ives fez uma careta. — Se Cléo soubesse de que me deitei com outra mulher, me deixaria. Não é uma cortesã, sabe. Há outros homens que estariam dispostos a pagar mais por seus favores, mas ela me escolheu porque preferia minha companhia. — Se cultiva profundos sentimentos por essa jovem, talvez devesse deixar os Demônios. Ives assentiu, como se aquela sugestão confirmasse o que ele mesmo pensava. — Creio que tem razão. É uma necessidade arriscar-se a perder algo valioso por uns poucos minutos de prazer com uma mulher cujo nome não me recordarei na manhã seguinte. Decidido a investigar um pouco mais, Lucien lhe perguntou: — Os Demônios levam os rituais a sério? — Talvez Mace, um pouco, pois é pagão de coração, mas na realidade é somente um divertimento. A maioria de nós está nisto pela diversão e pelas garotas. O passeio lhes tinha levado de volta à capela, onde já haviam se apagado os ruídos da farra. A lua estava se ocultando pelo oeste. — Como e quando a gente vai para casa? — perguntou Lucien. — A maioria dorme aqui por causa de seus excessos, mas eu vou partir já. Gostaria de retornar a Londres comigo em meu barco? Lucien vacilou, tentado, mas por fim negou com a cabeça. — Isso seria pouco educado, tratando-se de minha primeira vez. Ficarei até que os outros se vão. Ambos se despediram e Lucien voltou a entrar no salão de banquetes. Depois do frescor da noite, o ambiente rançoso e sobrecarregado daquele lugar era asfixiante. Havia vários corpos dormindo espalhados pelos divãs e pelo chão, homem e mulher enredados juntos. Em um canto viu Westley deitado de costas e rindo bobamente enquanto uma mulher nua derramava vinho em sua boca. Ninguém mais parecia estar acordado. Lucien estava procurando um lugar tranqüilo onde poderia dormir o resto da noite, quando Nunfield surgiu de um dos quartos privados movendo-se com exagerado tato de uma pessoa completamente bêbada. Grudada em seu braço vinha uma rameira de aspecto exuberante que usava uma máscara de plumas de faisão um 87


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pouco mais acima. — Lúcifer! Estava lhe procurando. — Nunfield soltou um soluço. — Tem que ir com Lola. Possui uma destreza insuperável. — Obrigado, querido — ronronou a jovem com os olhos brilhantes atrás das fendas da máscara. — Faço o que posso para agradar. — Estendeu uma mão sinuosa e pegou o pulso de Lucien. — Vêem comigo e procurarei te dar o que te recomenda o médico. Lucien estava procurando uma maneira de se negar quando viu o duro olhar de Nunfield. Rechaçar a oferta chamaria muito a atenção, de modo que devia fingir que a aceitava. Uma vez que estivesse a sós com a mulher, se desembaraçaria dela tal como tinha feito na casa de Chiswick. Adotou uma pose de bêbado e disse com pesada galanteria: — Será um prazer, madame Lola. — E lhe ofereceu o braço, num movimento que esteve a ponto de lhe fazer perder o equilíbrio. Ela se agarrou habilmente a seu cotovelo e o guiou até uma sala privada. Lucien notava o olhar de Nunfield lhe perfurando as costas quando cruzaram o salão esquivando-se dos corpos estendidos no chão. A sala continha um divã bem largo para dois. Lola colocou de lado sua máscara e empurrou Lucien para baixo de modo que ficasse sentado sobre a borda. Depois se sentou escarranchada sobre seus joelhos para lhe beijar ardentemente. Tal como havia dito Nunfield, possuía uma destreza insuperável. Entretanto, Lucien percebeu a sensação que debaixo daquela exagerada demonstração de paixão havia uma natureza fria e calculadora como a de um réptil. Sentindo-se enojado, separou-se dela e disse com olhar nublado: — É uma pena que não a tenha conhecido antes, Lola, antes de ter consumido toda a energia que tinha. — Soltou um soluço para maior credibilidade. — Eu... Sinto muito. Deveria ter bebido menos. Estava a ponto de afastá-la de seus joelhos quando a mulher começou a lhe acariciar descendo uma mão por seu torso. O cafajeste carente de princípios que estava unido a seu corpo começou a endurecer-se sob a perita manipulação daqueles dedos. A mulher proferiu um grito de satisfação. — Não se preocupe querido, ainda tem muita vida neste pequenino. Lola se ocupará de tudo. Pela dura faísca de luz que viu nos olhos da jovem, adivinhou que no fundo desprezava os homens e desfrutava ao lhes ver indefesos nas angústias da luxúria. A maioria dos homens não se dava conta ou não se preocupava sequer do que ela opinasse, pois seu comportamento descaradamente carnal era o que constituía as fantasias masculinas. Mas não as suas. O h, Deus, não as suas. Desejava sair dali, mas sabia que devia seguir representando seu papel de libertino. Enquanto ele se debatia entre o dever e a inclinação, Lola lhe empurrou contra o divã. Em seguida lhe levantou o lado da túnica de monge e atacou os b otões das calças. Quando sua boca quente se fechou sobre ele, Lucien sentiu que suas veias se inundavam de um desejo primitivo que paralisou sua razão e sua vontade. Fazia muito tempo, demasiado, sem se deitar com uma mulher, e não podia continuar negando seu corpo. Os serviços de Lola o levaram a culminação em questão de minutos, mas não houve nada satisfatório no alívio físico. Mal tinha acalmado aquela fome selvagem quando a desolação se abateu sobre ele. O que ele estava fazendo ali com uma rameira vulgar? Por que acreditava que seus planos ocultos eram necessários para aquele país? Inglaterra tinha sobrevivido durante séculos sem ele, e ainda duraria muito tempo depois que ele desaparecesse. Era um idiota ao pensar que suas ações poderiam mudar algo; o trabalho de sua vida era tão fútil como as cinzas. 88


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Tentou rebater seu desespero invocando a lembrança de amigos e familiares, mas um instante depois se deteve, sentindo-se muito sujo para ser digno daquelas recordações. O que Jane pensaria se o visse agora? O estômago lhe deu um tombo ao pensar nisso e lhe deixou um gosto amargo da bílis na boca. Continuar com aqueles pensamentos terminaria lhe deixando louco. Dolorosamente, fechou o pensamento a suas emoções e as obrigou a ocultarem-se naquele lugar oculto que lhe tinha salvado uma vez atrás de outra. Uma vez recuperada levemente a prudência, abriu os olhos. Lola estava estendida no divã ao seu lado, sonolenta e feliz consigo mesma. Embora não conseguisse reunir forças para tocá-la, fez o tipo de observações que se esperaria de um homem em tais circunstâncias, agradecendo à mulher que lhe tinha servido e adulando um pouco a sua destreza. O relatório que ela referiria a Mace e Nunfield tinha que ser impecável, e isso era o que importava, não? Assim que foi dignamente possível, saiu de uma vez daquela sala e daquela prostituta. Era uma pena que não pudesse escapar com a mesma facilidade de sua alma ferida e suja.

CAPITULO 16

Já era meio da tarde quando Lucien retornou por fim para sua casa, mortalmente farto de fingir ser um libertino. A primeira coisa que fez foi tomar um longo banho quente, como querendo lavar seu corpo da contaminação espiritual da orgia dos Demônios. Embora tivesse preferido uma tranqüila noite em casa, reparando algum brinquedo mecânico, era a noite da reunião no salão de lady Graham, assim devia aventurar-se a sair. Consolou-se com a idéia de que uma dose de conversa inteligente dissiparia sua depressão embora não descobrisse nenhuma pista do paradeiro de Cassie James. Quando entrou na luxuosa casa de lady Graham, a anfitriã lhe recebeu com um afetuoso sorriso. — Lucien, que agradável surpresa. Senti falta de seu malvado senso de humor. - Deu-lhe um leve beijo. — Passou muito tempo. Não imagino o que posso ter feito que parecesse tão importante para não me deixar tempo para este prazer. Lady Graham lhe dirigiu um olhar ardiloso. — Tenho certeza de que teve que ser realmente importante, e certamente nada parecido ao que se está acostumado a comentar sobre você. Deve conhecer alguns de meus convidados. Esta noite veio muita gente. Já conhecerá muitas das pessoas que estão aqui, mas lhe garanto que verá algumas caras novas muito interessantes. Por exemplo, minha inteligente amiga lady Jane Travers, a quem conheço desde minha apresentação na sociedade, faz trinta anos. Não gosta de mover-se nos círculos de moda, de maneira que provavelmente você nunca a terá encontrado. Possui um curioso senso de humor e sólidas opiniões sobre a forma em que o governo deve agir. Procure uma mulher ruiva que meça um e oitenta. — Pelo que você diz, parece uma autêntica amazona. Sem dúvida será uma defensora das teorias de Mary Wollstonecraft Godwin. Lady Graham arqueou as sobrancelhas. — É obvio. Assim como qualquer mulher inteligente. E você está de acordo, m eu querido radical vestido de senhor elegante. Em certa ocasião você passou uma noite inteira discutindo pelos direitos da mulher com um horrível Tory, assim não tente me vender gato por lebre. 89


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Lucien se pôs a rir. — Deveria ter imaginado que se lembraria disso — Enquanto sua anfitriã lhe guiava até a sala, lhe perguntou em tom casual — A atriz Cassie James comparece em seus salões? — Não, mas não me importaria que o fizesse — respondeu lady Graham. — A vi no Marlowe em uma obra cigana, é uma jovem de grande talento. Não será a última vez que ouçamos falar dela. — Ao perceber um jovem que estava sem nada que fazer fez-lhe um gesto para que se aproximasse. — Senhor Haines, há aqui uma pessoa que eu gostaria que conhecesse. Depois de apresentar os dois homens, lady Graham abandonou Lucien e foi saudar outro convidado. O senhor Haines demonstrou ser um aspirante a poeta que mostrou grande entusiasmo em falar do mérito do novo poema épico de Byron, O Corsário. Como Lucien não tinha lido e que tinha uma pobre opinião da poesia de autocomiseração de Byron, a conversa durou pouco. Lucien passou a próxima hora abrindo passagem através do salão principal, escutando mais que falando. Os temas de conversa eram muito variados, desde acaloradas discussões a respeito da política do czar Alejandro até o iminente êxito das negociações de paz e a última novela satírica da senhorita Austen. Desfrutou do bate-papo, mas suas indiretas pesquisas sobre Cassie James foram infrutíferas. Todo mundo tinha ouvido falar da atriz, e vários dos convidados tinham visto a representação da obra, mas nenhum afirmou conhecê-la pessoalmente. A investigação resultava freqüentemente uma tarefa tediosa e improdutiva, de modo que aceitou filosoficamente o fracasso e passou ao salão contínuo, que era menor, mas estava igualmente abarrotado. Nesse momento surgiu lady Graham e se agarrou em seu braço. — Deixe que o presente a lady Jane, que está ali, no canto. Interessa-lhe muito o teatro, de modo que talvez conheça essa atriz pela qual você perguntou. Lucien localizou facilmente lady Jane, porque a mulher ultrapassava meia cabeça do grupo de pessoas que a rodeavam. Seu cabelo vermelho já estava se tornando castanho com algumas mechas prateadas, mas ainda era uma mulher formosa. Junto a ela, de pé e meio escondida, havia uma mulher mais jovem vestida de cinza. Era fácil passar despercebida, porque mantinha o olhar baixo e tinha a atitude anônima de um parente pobre. Parecia baixa ao lado de lady Jane, embora devesse ter uma estatura considerável. Lucien não teria reparado nela exceto porque sua quietude resultava chamativa em um salão cheio de gente animada. A jovem retrocedeu e se voltou rapidamente para evitar que uma mão que alguém agitou com entusiasmo a golpeasse. Tinha um perfil encantador, puro como o de uma moeda grega... Lucien ficou paralisado em seco. Não, não era possível. Outra vez, não. — A jovenzinha que está ao lado de sua amiga — disse, contendo. — Me parece tê-la visto antes. Quem é? — Que jovenzinha? — Lady Graham se deteve também e seguiu a direção do olhar de Lucien. — Oh, refere-se você a lady Kathryn Travers, a sobrinha de Jane. Na realidade não é uma jovenzinha, deve já ter uns vinte e quatro anos e vai a caminho de ser uma solteirona. É uma jovem agradável, embora nunca tenha nada a dizer. Seus pais estão mortos, de modo que agora vive com Jane. Uma raiva pura e abrasadora lhe percorreu as veias. Tinha acreditado que nada mais podia lhe surpreender no que se referia a ela, mas aquela bruxa o havia pegado uma vez mais com a guarda baixa. O novo papel que estava interpretando superava inclusive seu próprio limite. Era o cúmulo do descaramento: uma desavergonhada atriz disfarçada de afetada rapariga. Não somente isso, mas também membro da aristocracia! Como sempre, sua interpretação era perfeita até o mínimo detalhe. Se não a conhecesse tão bem, se não a tivesse tido em seus braços nem tivesse beijado aqueles lábios mentirosos, talvez 90


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tivesse conseguido lhe enganar, porque a atitude que mostrava agora era tão reservada que parecia uma desconhecida. Entretanto, seu rosto era inegavelmente a de Emmie, a de Sally, Jane e Cassie James. Teve uma visão fugaz dela estendida debaixo dele, meio nua e com os olhos nublados pela paixão. Tinha acreditado nela, mas não voltaria a fazê-lo. Desta vez não seria tão crédulo e simplório. Em um tom de voz que revelava somente um interesse médio, disse: — É obvio, lady Kathryn Travers. Não tinha certeza de tê-la reconhecido. É uma jovem muito calada, mas com uma mente interessante debaixo desse acanhamento. — Surpreende-me que tenha tido ocasião de conhecê-la — comentou lady Graham. — Como estou segura de que já está informado, provém de uma antiga família, mas os varões Travers sempre foram famosos por serem um pouco indomáveis, e nenhum deles nunca teve um só guineu. Não havia dinheiro para proporcionar a lady Kathryn uma apresentação na sociedade de Londres, e atualmente leva uma vida muito tranqüila com Jane. — De todos os modos, tive o prazer de conhecê-la. — Com um sorriso resplandecente e um tanto perigoso, começou a abrir passagem entre a multidão. — E não posso lhe dizer quanto ansiava renovar esse prazer. Quando chegaram ao grupo do canto, lady Graham disse: — Jane, eu gostaria que conhecesse meu amigo, lorde Strathmore. Lucien, lady Jane Travers. Quando pronunciou o nome de Lucien, lady Kathryn voltou rapidamente a cabeça e ficou com o corpo rígido. Somente alguém que a estivesse observando de perto, como ele, teria notado, porque o rosto da jovem se via carente de toda expressão. Lucien se inclinou sobre a mão de lady Jane e disse todo o apropriado. Ela era quase tão alta como ele, e em seus olhos cinza se lia astúcia e segurança. — É um prazer, lorde Strathmore — disse. — Você pronunciou alguns discursos muito notáveis na Câmara dos Lordes. Alguma vez pensou ocupar um cargo público? — Nunca — se apressou a responder Lucien. — É muito mais fácil assinalar o que está errado do que corrigi-lo. Lady Graham riu, e depois continuou com as apresentações: — Naturalmente, já conhece lady Kathryn Travers. Lucien disse em tom amistoso: — Passou muito tempo, lady Kathryn. Ela enrugou a testa. — Vimo-nos antes, lorde Strathmore? Resistindo à tentação de elogiá-la por sua hábil exibição de perplexidade, lançou um rebuscado suspiro de pena. — Que humilhante resulta descobrir que você não se recorda de uma ocasião que, entretanto eu tenho gravada na memória. Estávamos sustentando uma conversa das mais fascinantes quando nos interromperam. Ela cometeu o erro de olhá-lo diretamente. Embora conseguisse omitir a expressão de seu rosto, não pôde ocultar de todo a tensão de seus olhos nem o rápido pulsar que lhe pulsava na garganta. Uma mulher mais fraca teria saído fugindo dali. Lucien olhou às outras duas mulheres e disse brandamente: — Fiquei impressionado com a exposiçã o que fez lady Kathryn das teorias da Mary Wollstonecraft Godwin. Suas idéias sobre a educação das mulheres eram extremamente interessantes. De fato, estou pensando em apresentar um projeto de lei à Câmara dos Lordes que se ocupe de algumas das desigualdades que lady Kathryn expôs, de modo que tenho que falar 91


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com ela de novo. Se nos desculparem... Sem esperar uma resposta, pegou lady Kathryn pelo cotovelo com garra de aço e a arrastou através da sala lotada de gente. Se não recordava mal, havia um escritório na parte detrás da casa em que poderia lhe torcer o pescoço em completa paz e intimidade. Seguindo-lhe a contra gosto pelo corredor vazio, ela tentou resistir, dizendo: — Lorde Strathmore, não será muito apropriado que vá sozinha com um desconhecido. Ele a olhou com dureza. — Não sei o que somos um para o outro, mas está claro que não somos desconhecidos. — Ao ver que ela parecia querer protestar de novo, disse em tom mais suave —: Quer que eu levante a voz e diga a todo mundo quão maravilhosos são seus seios nus? Ou como era o som que fez quando eu te beijei a tatuagem que tem na coxa? Ela parou em seco e se ruborizou intensamente. Em seguida o semblante se tornou pálido e sua resistência caiu. Lucien a arrastou até o escritório que estava na penumbra e fechou a porta de um golpe atrás dele. Quando a soltou, Kathryn imediatamente se retirou para o canto mais afastado do escritório esfregando o cotovelo e o olhando com o mesmo receio como se ele fosse um fugitivo escapado de um hospital para lunáticos. — Lady Jane é sua cúmplice, ou talvez outra vítima de suas mentiras? — Acendeu uma vela com a lamparina, que soltava uma luz tênue, e a utilizou para acender as velas dos candelabros que havia espalhados pela sala. Queria ver até o último tom da expressão do rosto da jovem. — Não creio que esteja além de sua capacidade convencer uma mulher inocente de que é um familiar que ela nem sequer sabia que tinha. — Apagou a vela com um forte sopro. — Inclusive se apropriou de seu nome. Pensei em você como Jane desde que insistiu em que era seu nome verdadeiro. Entretanto, tenho que admitir que Kathryn fica melhor que nenhum outro dos nomes que usou. — Não sei do que está falando — disse ela, agitada. As lágrimas que tremiam em seus olhos cinza era um toque profissional, mas em lugar de apaziguar sua ira a inflamaram ainda mais. — Como? E a cigana bailarina, e essa apaixonada busca pela justiça social? Nem sequer os sugestivos sarcasmos de uma garçonete? — Começou a avançar em direção a ela. — Estou decepcionado. Eu sei que poderá inventar uma história nova, provavelmente meia dúzia. Talvez seja uma espiã de Napoleão que tem estado em desgraça desde que o imperador abdicou. Ou é acaso uma rainha perseguida de um reino dos Bálcãs, que está tentando recuperar seu trono? Ela correu a proteger-se atrás do sofá. — Parece-me que esta ficando louco, lorde Strathmore. Ou que está muito bêbado. Lucien foi também na direção do sofá, seguindo-a. — Asseguro-te que não estou bêbado, e se estiver louco, é você que me tem feito sair do normal. Ela fugiu de novo. — Não se aproxime de mim! — Não se faça de inocente. Se houver algo que espero de ti é uma coragem sem reservas de nenhum tipo. Ela se apressou a escapulir para a outra ponta do sofá antes que o conde a agarrasse. — Não sou quem você acredita que sou! Lucien se deteve por um instante e a contemplou com um gesto exagerado e teatral. — A mesma fisionomia, a mesma figura, a mesma cor. — Sua boca se endureceu. — E os mesmos mentirosos olhos cinza. Só mudou o nome, e isso não conta, porque cada vez que nos 92


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vimos fingiste uma identidade diferente. Ela tentou escapar outra vez, mas a sala era muito pequena. Em duas rápidas passadas o conde a teve encurralada. Ela colou as costas na parede e balbuciou: — O que vai fazer? —Me resulta tentadora a idéia de assassinato. — Levantou uma mão em direção a ela. — Mas me conformarei terminando o que ficou interrompido quando escapou da última vez que nos vimos. — Não me toque! — gritou ela. — Vou... Vou gritar pedindo socorro. — Com todas essas pessoas falando aí fora, não lhe ouvirão. — assim que a tocou, se deu conta de que uma boa parte de sua cólera era desejo frustrado. Desejava-a... Santo Deus, como a desejava, embora não pudesse confiar nela nem um pouco. Envolveu-a em seus braços, precisando sentir aquele esbelto corpo em contato com o seu. — Não lute contra o inevitável — ele disse com suavidade. Mas ela lutou tentando se libertar. — Nisto não há nada de inevitável! — Não? — Suave, mas implacável, o conde reteve sua cativa nos braços. — Relaxe, querida. Não vou te fazer dano, porque não posso seguir zangado com você, por muito que tente. Ela emitiu um som abafado e escondeu o rosto no ombro dele. Lucien lhe acariciou as costas, aguardando pacientemente que a mútua e intensa atração que havia entre ambos liberasse sua magia. Pouco a pouco, a rigidez de seu corpo foi abrandando-se e voltando toda feminilidade com aroma de cravo. Apoiou a bochecha sobre o cabelo cacheado dela, suspenso em um curioso estado intermédio entre uma sensação de paz e um desejo transbordante. — É uma lástima que não possamos estar assim todo o tempo — murmurou Lucien enquanto deslizava brandamente as mãos ao longo das curvas familiares de suas costas e sua cintura. Mas aquelas palavras arrancaram a jovem de seu estado de mansidão. Plantou-lhe as mãos no meio do peito e o empurrou para se livrar do abraço. — Não deveríamos estar assim não! Lucien lhe segurou as mãos contra a parede em ambos os lados para que não pudesse escapar. — O problema é que há outro homem em sua vida? Diga-me isso para que pelo menos saiba o que enfrento. — Não é a mim quem você quer na realidade! — exclamou ela com veemência. — Equivoca-te. Desejo-te muito. — Lucien lhe roçou a bochecha com as pontas dos dedos em uma etérea carícia. Sua cútis possuía a delicadeza lisa e frágil de uma flor. — E desta vez, tenho a intenção de te conseguir. — Não! — mordeu-se o lábio, como se lutasse com uma decisão. No final de alguns instantes respirou fundo e disse nervosamente —: Não queria lhe dizer isto. — Me dizer o que? — perguntou ele, animando-a. Ela respondeu com um sorriso irônico: — Temo lorde Strathmore, que me confundiu com minha irmã, minha irmã gêmea Kristine.

CAPITULO 17

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Depois de alguns instantes de desconcerto, Lucien lançou uma gargalha da. — Alegra-me ver que sua imaginação não se debilitou, mas tenho certeza de que você é capaz de inventar algo melhor que uma mítica irmã gêmea. Parece um argumento tirado de uma novela gótica. — Kristine não é mítica, é uma atriz cômica que atua com o nome artístico de Cassie James. É óbvio que você a conhece, mas pode ter a completa segurança de que não me conhece. — Tragou saliva. — De modo que lhe rogo que não me culpe do que minha irmã tenha feito. Lucien titubeou. Mas que droga, a garota era muito convincente. Estudou seu rosto sincero. Cada traço, cada linha, cada plano era exatamente como ele os recordava. O suave cabelo castanho com brilhos dourados e a figura magra e elegante eram igualmente familiares. Não havia nenhum sinal da descarada vitalidade de Sally nem de Cassie, mas o comportamento da jovem era similar ao de Jane quando esta afirmou ser uma jovem dama que tentava ajudar a seu irmão. Apoiando-se nos fatos, lady Némesis era muito capaz de representar o papel da tímida lady Kathryn Travers, uma parente pobre. Também tinha respondido durante breves instantes a seu abraço, de maneira tão natural como se ele lhe fosse familiar. Entretanto, havia algo em sua voz que o fazia perguntar-se se não poderia estar lhe dizendo a verdade. Só havia um modo de averiguar, pois inclusive uma atriz consumada seria difícil ocultar sua identidade em um beijo. Atraiu-a para si e inclinou a cabeça. Mas antes que seus lábios pudessem tocá-la, ela se separou dele com um puxão e lhe partiu o rosto com uma bofetada. — Como se atreve, senhor! Sim, tinha muita força. Mas o que lhe fez soltá -la não foi a força, a não ser o tom de virtude ultrajada que notou em sua voz. Custava acreditar que até a atriz de mais talento pudesse falar de forma tão parecida com uma virgem a quem insultaram. Com a bochecha ardendo, observou uma vez mais o rosto de Kathryn. Mas embora fizesse uso de todo seu treinado poder de observação, a jovem seguia lhe parecendo exatamente a mesma víbora trapaceira que havia trazido o caos a sua ordenada vida. Com a exceção, talvez, de que possivelmente houvesse mais vulnerabilidade no profundo daqueles claros olhos cinza d o que tinha visto antes. — Não existem gêmeos realmente idênticos — disse devagar. — Sempre há diferenças sutis, e neste caso não vejo nenhuma. E me acredite, estou falando como uma pessoa que te estudou com grande concentração. Ela se ruborizou e abaixou a cabeça, sentindo-se sobressaltada pelo quente olhar do conde. — Durante toda nossa vida, as pessoas sempre disseram que Kristine e eu éramos as gêmeas mais idênticas que tinham visto — respondeu entrecortadamente. — Mas me acredite, se Kristine estivesse aqui, você poderia nos distinguir imediatamente. Nem sequer notaria que eu estou aqui, porque ela possui o tipo de vitalidade que atrai todos os olhares. — Há muitos atores e atrizes que possuem essa capacidade, e podem ocultá-la quando desejam — replicou Lucien sem impressionar-se. Fechou as pálpebras. — Quando lady Graham nos apresentou, você me reconheceu, embora tentasse ocultar sua reação. — Não foi reconhecimento, a não ser alarme — disse ela asperamente. — Você estava me olhando como se eu fosse uma barata. — Não precisamente como uma barata — repôs ele com um involuntário sorriso. — Sua expressão era suficiente para aterrorizar uma mulher inocente. — A jovem foi até a lareira, com a cabeça levemente inclinada. — Não sei o que haverá entre Kristine e você, e francamente, não quero saber. A única coisa que desejo é que me deixem em paz. — Sigo sem estar convencido de que tenha uma irmã. — Lucien cruzou os braços e se apoiou contra a parede, contemplando-a com ar pensativo. — Dado que minha experiência me diz que 94


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você é uma hábil embusteira, necessitarei de provas mais sólidas que simplesmente sua palavra. Ela levantou o rosto e lhe dirig iu um olhar glacial. — Não vejo por que tenho a responsabilidade de lhe oferecer provas. Estava me ocupando de meus assuntos quando você me tomou de assalto. Santo Deus, e se de verdade era uma inocente desconhecida que jamais o tinha visto? Uma idéia estremecedora. — Se está dizendo a verdade quanto a que tem uma irmã gêmea, deverei uma humilhante desculpa. Uma faísca de sorriso brilhou nos olhos da jovem, como se aquela perspectiva a agradasse. — Prepare-se para humilhar-se, lorde Strathmore, porque Kristine é tão real como você. À medida que foi relaxando-se, Kathryn, paradoxalmente, ia parecendo cada vez menos à mulher que ele conhecia. Tinha a mesma inteligência rápida como o raio, mas neste caso estava unida a uma fria reserva que era nova para ele. É obvio, uma atriz seria perfeitamente capaz de simulá-la. Era mais provável que obtivesse a informação mostrando-se conciliador em vez de acusador. — Sei que é uma rabugice de minha parte, lady Kathryn, mas se importaria de me explicar por que você e sua irmã têm vidas tão diferentes? Ao compreender a implicação de que o conde tinha aceitado sua história, ela relaxou ainda mais e se sentou junto ao fogo. — Na realidade é bastante simples. Meu pai era o quarto conde de Markland. Os Travers jamais possuíram distinção alguma além de seu encanto, seu caráter indômito e uma certa tendência a produzir gêmeos idênticos. A sede da família, Langdale Court, estava em Westmoreland. Lucien tomou assento na cadeira que se encontrava diante da jovem. -Estava? Ela deixou escapar um suspiro. — Meu pai herdou um montão de dívidas e teve bastante pressa em acumular outro montão de dívidas próprias. A casa ia se desmoronando ao nosso redor enquanto nós crescíamos. Minha mãe morreu quando nós tínhamos dez anos, e depois disso nos tornamos meio selvagens. Se algumas senhoras da vizinhança não se preocupa ssem por nós, teríamos sido umas completas bárbaras. Meu pai conseguiu manter na linha os administradores enquanto viveu, mas a pós sua morte, ocorrida há cinco anos, a propriedade foi a leilão, o título passou a um segundo primo da América, e Kristine e eu ficamos sem um guineu. — Seu pai era tão irresponsável que não fez nenhuma previsão para o futuro de suas filhas? — Pensar no futuro não era próprio dele — respondeu a jovem secamente. — Suponho que acreditou que com o tempo conseguiria para nós um dote com os lucros de algum jogo de cartas, mas nunca colocou mãos à obra. Minha mãe era filha de um vigário que a deserdou quando fugiu para casar-se com meu pai, de modo que tampouco recebemos ajuda dessa parte da família. Kristine e eu nos encontrávamos na mesma situação que outras moças de bom berço, mas sem fortuna. — O que não é uma boa situação absolutamente. — Exato. Alguém pode casar-se, encontrar trabalho ou converter-se em uma parente pobre e viver da caridade. — O matrimônio pareceria à opção mais lógica. As duas são jovens muito atra entes. — É preciso muita beleza para superar a falta de um dote — respondeu ela, irônica. — E, além disso, havia... Outras razões. Lucien se perguntou quais poderiam ser, mas se negou a permitir que lhe desviassem de seu 95


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objetivo. — Foi então que você foi viver com lady Jane? A jovem assentiu. — Felizmente, a tia Jane tinha herdado uma modesta independência de sua avó, suficiente para manter uma casa aqui, em Londres. Eu aceitei de boa vontade quando ela nos ofereceu um lar, já que não creio prestar para ser uma boa tutora, e certamente não creio que sirva para nada mais. Quando a jovem ficou em silêncio, Lucien tentou: — E Kristine? Ela contemplou as chamas que dançavam na lareira. — Minha irmã é dez minutos mais velha que eu, e herdou o que correspondia ao encanto e a fogosidade dos Travers. É muito cabeçuda, muito independente para conformar-se levando uma vida tranqüila com uma tia intelectual. Sempre lhe encantou atuar, e estava acostumada a organizar com freqüência peças de teatro e concertos. De modo que decidiu lançar o recato aos quatro ventos e tentar fazer carreira no teatro. — Assim vocês são o exemplo clássico da gêmea boa e a gêmea má. Ela não percebeu a ironia que gotejava em seu tom, e respondeu com dureza: — Kristine não é má, simplesmente é mais corajosa que a maioria. Nunca tomaria a saída de um covarde. Era assim como Kathryn tinha salvado a vida, com a saída de um covarde? — Pode ser que o teatro não seja ruim — disse Lucien meigamente, — mas é uma opção pouco usual para uma jovem de boa família. Sua reputação ficaria destroçada. — Kristine me disse uma vez: De que serve a reputação quando o que se trata é de pôr comida em cima da mesa? Já que estava condenada a ser pobre, pelo menos decidiu divertir -se. Ela escolheu empregar um nome artístico para não envergonhar sua família, embora não haja precisamente muita família a que envergonhar. Levou vários anos, mas como já sabe, está indo muito bem. — Você mantém contato com ela? Com uma expressão de aflição no rosto, Kathryn voltou o olhar para o fogo. — Embora a tia Jane tenha opiniões políticas radicais, seus valores morais pessoais são do mais elevado. Desaprovou profundamente a decisão de Kristine e a mandou embora de sua casa. Isso fez com que seja difícil ver minha irmã. — Em outras palavras, teve que escolher entre sua irmã gêmea e ter um teto em cima da cabeça — adivinhou Lucien. — Um dilema difícil. — Absolutamente. Kristine tomou a decisão pelas duas, com a mesma eficácia com que sempre tomou decisões no passado. A dor que escapava de sua voz foi muito penetrante para o gosto de Lucien. — Tenho certeza de que ela sente falta de você assim como você dela. O rosto de Kathryn se contraiu. — Nenhuma coisa nem outra, lorde Strathmore. Você queria saber por que minha irmã e eu temos vidas tão diferentes, e agora já sabe. Agradecerei que não divulgue esta informação. Jane não gostaria que fosse de domínio público que Cassie James é na realidade uma ovelha negra dos Travers. — Diz isso como se sua tia fosse um pouco tirana. — Foi muito boa comigo — replicou Kathryn com maior frieza ainda - Não penso tolerar que lhe faça nenhuma crítica. Lucien admirou a lealdade da jovem e esperou que fosse recompensada com a mesma 96


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moeda. Apesar da atitude pouco afável de Kathryn, havia nela uma certa vulnerabilidade que o empurrava a protegê-la, embora ainda não estivesse convencido de todo que não fosse uma desavergonhada embusteira. — Embora possam surgir atrizes das melhores famílias, entendo que lady Jane não queira que as pessoas conheçam essa conexão. Entretanto, já que vocês são gêmeas idênticas, tentar ocultar a relação parece um exercício fútil. Ela se encolheu de ombros. — Não acredito. Ainda que geralmente nos considerem atraentes, não temos nenhum sinal particular ou claramente distintivo, como o cabelo vermelho ou uma estatura pouco comum. Quando Kristine atua, usa disfarces e maquiagem que mal a fazem parecer ela mesma, e muito menos parecer-se comigo. Como meu círculo de amizades é reduzido, são poucas as pessoas que estão em situação de notar a semelhança. Ninguém estabeleceu ainda a relação. Lucien sorriu. — Compreendo seu ponto de vista, mas você não é muito justa consigo mesma nem com sua irmã. Embora suas feições não sejam chamativas, o efeito de conjunto é... Memorável. — Seu olhar pousou no grosso coque de cabelo que usava na nuca. Se o soltasse, a cabeleira lhe cairia mais abaixo da cintura. — Por exemplo, se poderia dizer que seu cabelo é simplesmente castanho, mas não deixa de ser encantador. Grosso, brilhante e mesclado com brilhos dourados. Ela tocou a cabeça, mas se deteve na metade do gesto. — Deveria ter me ocorrido antes. O cabelo é a única diferença evidente que há entre minha irmã e eu. Eu nunca cortei o meu, mas Kristine o usa mais curto para poder usar perucas. — Uma faísca de triunfo brilhou em seus olhos. — Nem sequer a mais inteligente das atrizes poderia deixar crescer o cabelo tão longo como eu o uso no tempo que transcorreu desde que você viu pela última vez minha irmã, lorde Strathmore. Convence-se por fim de que somos duas mulheres distintas? Pela mente de Lucien cruzou fugazmente a vivida imagem do suave cabelo de Cassie James à altura dos ombros. Amaldiçoou a si mesmo. Que inferno, estava lhe falhando cérebro. Ele mesmo deveria ter notado. Uma cabeleira de comprimento aparentemente diferente não constituía uma prova absoluta de que estivesse tratando com duas mulheres diferentes, mas se aproximava muito. — Você poderia usar neste momento uma peruca. Ela pôs os olhos em branco. — É um homem muito perspicaz, mas mesmo assim deve admitir que se usar uma peruca, certamente é exatamente da mesma cor que meu cabelo natural. A moça voltava a ter razão; sua juba de cabelo de quente cor castanha com nervuras douradas oferecia uma total uniformidade. Meio em brincadeira, disse: — Para ter certeza de todo, teria que lhe soltar as presilhas que lhe prendem o cabelo e deixálo cair livremente. Ela entreabriu as pálpebras como um felino ofendido. — Já basta, lorde Strathmore. Posso consentir até certo grau porque me confundiu com minha irmã, mas não penso em lhe permitir que siga atacando minha pessoa. Estou segura de que até os libertinos sabem que há regras distintas para as atrizes e para as damas. Lucien teve que começar a rir. — Derrotou-me completamente, lady Kathryn. Uma última pergunta antes de partir: além de atuar no teatro, sua irmã escreve artigos de política sob o pseudônimo de L. J. Knight? Kathryn arqueou as sobrancelhas. — É obvio que não. É uma excelente atriz, mas certamente não é escritora. O que lhe inspirou 97


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uma idéia tão absurda? — Kristine. — Deve fazer uma atuação soberba, para lhe ter convencido de que uma jovem de vinte e quatro anos possa escrever com a lucidez de L.J. Knight. — É uma jovem muito persuasiva. — Fazendo uma conjetura apoiada em algo que tinha percebido na voz de Kathryn, perguntou-lhe —: Você conhece o senhor Knight? — Pessoalmente não, mas minha tia Jane sim. Segundo ela, é um ancião inválido de língua afiada e escassa paciência com as debilidades humanas. Se dão muito bem juntos. Se Kathryn sabia isso sobre Knight, não havia dúvida de que Kristine também, o que explicaria o porquê esta tinha certeza que era seguro adotar sua identidade. Tudo fazia sentido. Lucien ficou de pé e disse: — Você foi de grande ajuda, lady Kathryn. Lamento tê-la incomodado. — Isso não é uma verdadeira desculpa humilhante, mas a aceitarei de todo modo. — Olhou sinceramente. — Não irá fazer mal a Kristine quando a encontra r, verdade? — Não. — Lucien sorriu com ironia. — Além disso, não tenho nem a mais remota idéia de onde se encontra. A menos que você me diga... — Embora soubesse, não diria lorde Strathmore. Pode ser que eu não aprove a vida que ela escolheu, mas continua sendo minha irmã. Lucien não tinha esperado outra coisa. — Muito bem. Até a próxima vez, lady Kathryn. — Espero sinceramente que não haja outra vez — repôs ela, voltando para sua anterior desavenças. — Tendo em conta o tempo que ficamos encerrados juntos, o melhor seria que saíssemos separados. Esperarei aqui por alguns minutos. Lucien vacilou como se estivesse a ponto de dizer algo mais, mas por fim se conformou com uma inclinação e uma despedida formal. Uma vez que a porta do escritório tivesse se fechado, Kit se reclinou em sua cadeira, tremendo. Lorde Strathmore teria acreditado nela? Assim parecia, mas não tinha certeza; era um homem difícil de desentranhar. Perguntou-se o que faria com a informação que ele tinha surrupiado dela. Embora talvez não fosse um inimigo, isso não significava que não representasse um perigo. Perigo... Um calafrio a percorreu ao recordar fugazmente, com incômoda nitidez, a sensação que tinha experimentado nos braços dele. Santo Deus deveria tê-lo esbofeteado antes, em lugar de agarrar-se a ele como um marisco! Não tinha se comportado absolutamente como a afetada e distinta lady Kathryn Travers, herdeira de uma porção em dobro de decoro e decência. Mas se havia sentido tão bem, tão maravilhosamente a salvo, que tinha ficado paralisada pelo espaço de alguns instantes. A parte Travers que havia nela era uma desavergonhada. Surpreendeu-se a si mesma arranhando o ponto que lhe picava na parte interior da coxa, e retirou a mão instantaneamente. Graças a Deus ele não tinha visto a tatuagem; se assim fosse, agora sim que estaria verdadeiramente metida em uma confusão.

Capitulo 18

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Lucien custou a dormir depois de voltar do salão. Quando por fim o fez, teve sonhos perturbadores. Viu a si mesmo preso em densos redemoinhos de névoa que ocultavam toda referência visual. Enquanto tentava avançar através do tato, sabendo que tinha uma missão vital a cumprir, viu de repente sua encantadora e esquiva lady Némesis bem em frente a ele, sua esbelta figura envolta só em névoa. A beleza da moça fez que lhe parasse o coração. A jovem sorriu e lhe estendeu a mão. Ele se lançou para frente com frenesi, mas antes que pudessem se tocar, a expressão dela se permutou em horror. Em seguida deu meia volta e fugiu. Sem se importar com as ameaçadoras formas que os rodeavam, Lucien se lançou atrás dela, decidido a reclamá-la para si. Ela o conduziu até um castelo construído com pedras negras como a própria morte. Lucien, pressentindo que seria desastroso entrar, gritou para alertá-la, mas ela se jogou sem pensar através do arco negro. Consternado, ele a seguiu. Foi parar em uma câmara resplandecente cheia de espelhos, cada um deles mostrando um reflexo diferente da jovem. Era uma donzela assustada, uma atriz mundana e provocadora, uma fria intelectual; todos os disfarces que já tinha visto e muitos que ele ainda não conhecia. E através do cômodo ressonavam os gemidos de angústia de uma mulher que chorava desolada. Desesperado para ajudá-la, Lucien estendeu uma mão para uma imagem de olhos tristes. Kristine? Kathryn? E descarregou o punho contra a superfície fria e impenetrável de um espelho. À suas costas ouviu uma voz apagada que lhe sussurrava: — Me ajude, Lucien. Pelo amor de Deus, me ajude. Virou-se, mas não conseguiu distinguir qual dos brilhantes reflexos era o real. Cada vez mais frenético, percorreu toda a casa até que sentiu que os pulmões lhe queimavam e que as mãos lhe sangravam por bater em um sem-fim de espelhos. Mas não pôde encontrar a realidade quente, de carne e osso, da mulher que procurava, a não ser só espelhos e imagens que se burlavam cruelmente dele. Despertou tremendo e invadido por uma sensação de fatalidade, embora não estivesse seguro de que essa fatalidade se referia a ele ou a ela. Talvez correspondesse a ambos. Obrigou-se a se recostar sobre os travesseiros e relaxar, músculo a músculo. Enquanto ia regularizando a respiração, lhe ocorreu a estranha idéia de que pelo menos não estava experimentando aquele paralisador vazio que havia sentido depois do sórdido encontro com Lola. Com sua lady Némesis, o problema não era a falta de sentimento, mas o excesso do mesmo, frustração em sua maior parte. Embora estivesse convencido em noventa por cento de que sua presa era Kristine Travers, uma volátil atriz com uma apropriada irmã gêmea, tinha muita experiência para aceitar a história de Kathryn sem confirmá-la antes. Sua tia avó Josephine, condessa viúva de Steed, talvez pudesse lhe dizer o que precisava saber. Seria muito bom inteirar-se dos mexericos; era um problema de família.

Felizmente, sua tia aceitou lhe receber em uma hora intempestivamente cedo. Pequena e de cabelo grisalho, a mulher se achava sentada junto ao fogo, envolta em xales, quando Lucien foi conduzido até a habitação onde ela se sentava pelas manhãs. — Pede o chá, rapaz — ordenou a anciã. — Depois vêem aqui e dá um beijo a sua velha tia. Depois que ele obedeceu, mostrou-lhe uma cadeira situada à sua frente. — Veio para me dizer que está a ponto de contrair matrimônio? Ele pôs-se a rir. 99


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— A resposta é a mesma de sempre: não. Prometo-te que se alguma vez mudar de opinião, você será a primeira em saber, mas de momento terá que te contentar com os brotos de outros ramos da árvore familiar. Lady Steed assentiu com um gesto sem surpreender-se. — Então, provavelmente está aqui para surrupiar alguma informação desta velha que já está caduca. —Caduca, você? Tem a cabeça e a memória mais afiadas que uma adaga florentina. Ela tentou lhe repreender, mas não pôde ocultar um sorriso. — O que é que você quer saber desta vez? — Tem amigos em Westmoreland, não é assim? — Os Milton, perto de Kendal. A viúva e eu somos amigas íntimas, unha e carne há quase sessenta anos. Sempre passo algumas semanas com eles todos os verões, a caminho para a Escócia. O atual visconde é meu afilhado. — Dirigiu-lhe um olhar de tristeza por cima da armação dourada de seu meio óculos. — Lorde Milton se casou na idade de vinte e dois anos e já tem três filhos. Eis aí um homem que conhece qual é seu dever para com sua família. Passando por cima da indireta com a habilidade que a prática dá, Lucien lhe perguntou: — Alguma vez você soube se houve ali um tal lorde Markland? — Oh, sim, um homem encantador, embora bastante inútil. Sua propriedade se encontrava somente a algumas milhas de Milton Hall. — assou o nariz. — A única coisa que conseguiu produzir foi um par de filhas gêmeas. Quando morreu, o título passou a um primo da América, de modo que suponho que se extinguiu de todo. Conforme tenho entendido, os americanos não são muito a favor de coisas tais como os títulos nobiliários. Antes que a anciã pudesse começar a fazer uma digressão com as virtudes da aristocracia hereditária, Lucien disse: — Me fale das gêmeas. Conheceu-as alguma vez? — As via quase cada vez que visitava os Milton. Eram duas moças encantadoras, Kristine e Kathryn, as duas com nomes que começavam com K. Os Travers sempre foram famosos por ter raridades desse tipo. — Moveu a cabeça em um gesto negativo. — Markland descuidou vergonhosamente de suas filhas. Anne Milton se afeiçoou com as meninas e fez tudo o que esteve em sua mão para lhes ensinar a mover-se em sociedade. — Eram gêmeas idênticas? A anciã afirmou com a cabeça. — Iguais como duas gotas de água. Jamais vi uma semelhança igual. Todas as vezes que as via, era-me impossível as distinguir. Embora tivessem temperamentos muito distintos. Lady Kristine era a mais velha das duas e era indômita, como seu pai. Nesse momento chegou a bandeja do chá e a condessa o serviu para ambos. — As coisas que Kristine fazia eram famosas em toda a comarca. Nadar nua no rio a meianoite, escalar precipícios, vestir calças para montar em uma partida de caça, discutir lógica com o vigário até que o pobre homem não soubesse se ia ou se vinha. Deveria ter sido um menino. Aquilo certamente explicava onde tinha desenvolvido suas habilidades para invadir moradas e escalar telhados. — E lady Kathryn? — Essa se parecia com sua mãe, que era filha de um vigário, e era uma da ma muito própria. Sempre estava atrás das saias de sua irmã, tentando evitar que se metesse em problemas. Era uma menina muito doce, mas fácil de passar despercebida. Kristine se encarregava de falar pelas duas. — Lady Steed pegou a pinça de prata e deixou cair um torrão de açúcar em sua taça. — As pessoas eram muito indulgentes com elas por causa da forma em que se criaram. Não havia 100


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verdadeira maldade nelas, mas Kristine mostrava uma clara tendência a meter-se em confusões. Provavelmente fugiu com o primeiro homem que lhe oferecesse matrimônio, ou se dedicou ao teatro, ou fez algo igualmente escandaloso. Lucien levantou as sobrancelhas. — Acredita de verdade que possa ter se convertido em atriz? A anciã soltou um sorriso. — Duvido que inclusive Kristine tenha perdido a decência até esse ponto, mas se dava muito bem com as representações teatrais. Ela e Kathryn sempre estavam interpretando obras com outros jovens dos arredores. Tiveram um êxito surpreendente com A Comédia dos Erros e A Décima Segunda Noite. Lucien sorriu ao imaginá-lo. — Raramente se tem a oportunidade de ver representar essas obras com gêmeos autênticos em lugar de falsos. Supondo que Kristine era Sebastian e Kathryn interpretava Viola, não é assim? — Em efeito, e seu papel de menino foi deslumbrante. Não é de estranhar que Olívia perdesse o coração por ele. — A condessa bebeu goles seu chá com expressão pensativa. — Esteja onde estiver Kristine agora, estou segura de que andará metida em alguma travessura. Essa moça necessitava de um homem forte em sua vida. — Depois de um instante de reflexão, disse —: E na cama. Lucien sorriu abertamente. — Não acredita que vai me impressionar com sua falta de vergonha, tia Josie, já estou imunizado. Sabe onde estão as gêmeas agora? — Se mudaram de Westmoreland quando o pai morreu e depois de que vendessem a propriedade. Isso se deu há uns cinco anos. Foram para Londres viver com uma tia. — Lady Steed franziu os lábios. — Markland as deixou sem um só guineu. Não há encanto suficiente que possa compensar tão surpreendente irresponsabilidade. — Alguma das duas tem o nome de Jane como segundo nome? — De fato, as duas o tem. Kathryn Jane Anne e Kristine Jane Alice, creio. Pelo visto, Markland pediu a sua irmã que fosse a madrinha de seu primeiro filho, e não viu motivo para mudar de opinião simplesmente porque sua esposa lhe desse gêmeos. — encolheu-se de ombros. — Ou talvez os pais pensassem que as meninas deviam ter iniciais idênticas, como todo o resto. Lucien recordou que «Cassie James» tinha jurado que se chamava Jane de verdade. De maneira que naquela ocasião, pelo menos, não estava mentindo. A bruxa tinha uma m ente muito arrevesada. É obvio, isso ele já sabia. Enquanto ele refletia, lady Steed disse: — Um fenômeno interessante, o dos gêmeos. Quando são pequenos desenvolvem sua própria linguagem secreta do balbucio dos bebês. — Ao ver a expressão de Lucien, abaixou o olhar. — Naturalmente, você já sabe. Em qualquer caso, estas meninas tinham apelidos secretos pelos quais se chamavam uma à outra. Me dei conta uma vez que as vi conversando juntas. — Sabe quais eram esses apelidos? — Creio que eram Kit e Kara. — A condessa se mordeu o lábio. — Não, não era esse. Kira, isso. Kit e Kira. O interesse de Lucien se avivou em seguida. — Quem era quem? — Os dois apelidos soavam bastante parecidos para poder combinar de um modo ou outro os nomes verdadeiros. — Kit é normalmente uma forma abreviada do Kathryn. — A anciã enrugou a testa. — Mas isso não pode ser... Kit era a que mais falava, assim tinha que ser Kristine. — Kit também é uma variante de Kristine — disse Lucien. 101


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A primeira vez que a viu, na partida de caça de Rafe, ela tinha se identificado como Kitty. Devia ser a resposta automática de uma moça que considerava a si mesma como Kit. De fato, sua resposta exata tinha sido «Kit... Kitty», como se estivesse trocando uma palavra que tinha lhe escapado e que poderia delatá-la e a tivesse convertido em gagueira. — Assim Kathryn é Kira. Uma vez estabelecida a questão dos nomes, Lucien passou a um tema mais importante. — Alguma das duas garotas tinha pretendentes? — Nenhum que fosse sério. Em Westmoreland, todo mundo sabia que não tinham um só guineu em seu nome, de modo que não eram bons partidos. Oh, um montão de jovens paqueravam Kristine, e ela muito esperta paquerava eles por sua vez. E em certa ocasião Anne Milton disse que havia um viúvo que achava que Kathryn seria uma boa madrasta para seus cinco filhos, mas nunca soube de nada significativo a esse respeito. Lucien lhe dedicou um sorriso carinhoso. — Se você não soube de nada, é que não houve nada. Nunca deixo de me surpreender do muito que você sabe. Ela inclinou a cabeça a um lado, igual a um pardal. — Respondi a todas suas perguntas, mas não creio que você responda às minhas se te perguntar o que tens entre mãos desta vez. — Basta dizer que estive me perguntando se estava tratando com uma só mulher ou com duas. — levantou-se da cadeira. — Obrigado por verificar que as Travers são em efeito gêmeas. Estou em dívida contigo. — Pode me pagar essa dívida lhes dizendo que me façam uma visita se as encontrar em Londres — se apressou a dizer a condessa. — Juntas ou em separado. Eu gostaria de renovar a amizade com elas. — Assim o farei — prometeu Lucien ao mesmo tempo em que se dispunha a partir. Entregar o convite de sua tia lhe proporcionaria uma desculpa para visitar Kathryn. Podia ser que ela não quisesse lhe ver de novo, mas seguia sendo seu principal contato para encontrar Kristine. Desejando esticar as pernas, dispensou sua carruagem e pôs-se a andar em direção a sua casa. Estava agindo de maneira muito estranha a respeito de Kristine... de Kit. Ficou pensando no nome, pensando que combinava muito bem com ela. Era um nome de arestas afiadas, como ela. Deus, esperava que não tivesse que aprender mais nomes dela; já estava bastante confuso. Embora por fim começasse a fazer progressos, experimentava uma profunda sensação de inquietação, e não sabia por que. Suspeitava que tal sensação não desapareceria até que apanhasse Kit de uma vez por todas.

Capitulo 19

O passo seguinte consistia em visitar a correta lady Kathryn Travers. Soube do endereço de lady Jane por lady Graham, de modo que essa mesma tarde foi vê-la. A casa das Travers estava situada entre Mayfair e Soho, e era respeitável, mas modesta. Uma criada coquete atendeu a porta e arregalou os olhos quando Lucien lhe entregou seu cartão. — Caramba, um florido lorde! — Há poucas coisas que florescem em dezembro — replicou ele com seriedade. — Entretanto, os lordes não. Lady Kathryn se encontra em casa? — Se não está em casa para você, é porque é uma verdadeira idiota — disse a criada de 102


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modo altivo enquanto lhe conduzia ao saguão. Minutos mais tarde Kathryn entrou, com expressão hostil. — Esperava não voltar a lhe ver, lorde Strathmore. — Não lhe ofereceu que se sentasse. — Temos algo mais a nos dizer, você e eu? — Bom, devo-lhe uma sincera desculpa pela maneira com que a tratei. Quer que me ponha de joelhos? Fez gesto de ajoelhar-se, mas ela o deteve com um gesto da mão. — Não seja idiota — disse em tom irritado. — Isso não serviria mais que para estragar cinqüenta libras de uma boa obra de alfaiataria. Deduzo que essa amadurecida reflexão lhe convenceu que eu lhe dizia a verdade. — Isso, e uma visita a minha tia, a viúva lady Steed. A expressão da jovem se tornou ainda mais precavida. — Não sabia que lady Steed era sua tia. — Tia avó, para ser mais preciso. Convidou-a para lhe fazer uma visita. Gostaria de ver você e a sua irmã de novo. Antes que Kathryn pudesse replicar, entrou na estadia um grande gato listrado que começou a enroscar-se ao redor dos tornozelos do visitante, deixando restos de cabelos na sua passagem. Lucien desceu o olhar a tempo para ver como o gato cravava uma unha em suas lustradas botas. — Teria sido melhor me humilhar. Quando este felino acabar comigo, esta cara obra de alfaiataria ficará para os restos de todo o modo. Kathryn perdeu parte de sua compostura quando se inclinou para frente e pegou o animal, ao mesmo tempo em que o tirava, protestando, da sala, e disse: — Sinto muito, milord. Como todos os gatos, Sebastian tem instinto para estar onde menos o querem. — Suponho que Kristine terá uma gata chamada Viola, equivoco-me? A jovem ficou rígida. — Como sabe? — Não sabia — respondeu ele com amabilidade. — Foi simplesmente uma brincadeira derivada do fato de que minha tia Josephine me contou que você e a sua irmã gostavam de representar obras de Shakespeare nas quais havia papéis de irmãos gêmeos. A atitude dela se suavizou levemente. — Contávamos com uma vantagem natural nesse sentido. Quanto aos gatos, tínhamos bichanos de uma mesma ninhada. Como ela chamou a sua gata de Viola, eu chamei o meu de Sebastian. Lucien se alegrou de que lady Kathryn tivesse se suavizado um pouco, embora o gato lhe merecesse mais crédito que o legendário encanto dele. — O motivo principal pelo qual vim vê-la concerne a sua irmã. Temo que se encontre em apuros. Ela fechou os olhos até convertê-los em dois sulcos. — Explique-se. — Dispunha de uma notável variedade de expressões desconfiadas. Escolhendo com cuidado as palavras, Lucien disse: — Quando conheci Kristine, estava metida em atividades... Fraudulentas e ilegais. Não creio que seja uma delinqüente no sentido estrito da palavra, mas temo que esteja envol vida em algo que pode ser perigoso. Um leve suspiro sacudiu Kathryn. — Provavelmente tenha razão. Mas o que quer que eu faça a respeito? — Entendo por que não quer me revelar seu paradeiro, mas, por favor, lhe faça chegar uma 103


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mensagem — ele insistiu. — Seja qual seja seu problema, creio que posso lhe ser de ajuda. Com um olhar glacial, Kathryn lhe perguntou: — É você um dos amantes de Kristine? Então Kathryn podia ser tão audaz como sua irmã. — Não, não sou — respondeu Lucien em tom calmo. — Devo admitir que eu gostaria de sêlo, mas minha primeira preocupação é sua segurança. Parece-me que está se aventurando em águas mais profundas do que ela crê. O rosto da jovem de repente pareceu representar mais idade do que tinha. — Desejaria poder lhe ajudar lorde Strathmore, mas sinceramente não tenho idéia de onde Kristine está. Quisera saber. Aquelas palavras soavam mais convincentes, e Lucien notou que a moça estava tão preocupada com sua irmã como ele próprio. — Venha dar um passeio comigo. Faz um dia mais próprio de outubro que de dezembro, e o ar fresco lhe fará bem. — Ao ver que ela hesitava, disse—: Que dano posso lhe fazer em uma carruagem aberta e com as mãos ocupadas com as rédeas? Nos olhos da garota brilhou um leve sorriso. — Um argumento muito persuasivo. Muito bem, vou pegar minha capa e meu gorro. Ambos os objetos, como era de esperar, eram escuros, sóbrios e práticos. Embora lady Kathryn não se acreditasse capaz de ser uma boa tutora, se vestia como tal. Lucien se sentia fascinado pelo muito que podia parecer-se com sua irmã e, no entanto reprimir-se até o ponto de ficar quase invisível. Como se lhe tivesse lido a mente, ela disse: — Kristine poderia usar esta mesma capa e, entretanto estar tão impressionante e atraente que todo mundo ficaria olhando. Em certa ocasião me disse que uma boa atriz devia ser capaz de ir andando pela rua e ser vista, ou de fazê-lo sem ser vista. Ela é capaz de ambas as coisas. — Kathryn sorriu ironicamente. — Quando minha irmã não quer ser vista, finge ser eu. Assim ninguém a nota. — Tenho certeza de que deve acontecer também o contrário — disse Lucien enquanto a ajudava a subir à carruagem. — Se você desejar que a vejam a única coisa que tem de fazer é caminhar pela rua fingindo ser ela. A jovem arrumou as saias com primor ao redor dos tornozelos. — Eu não gosto de atrair esse tipo de atenção vulgar. Lucien a observou pelo canto do olho enquanto ambos se dirigiam às buliçosas ruas de Londres. Ela ia sentada em silêncio, sem sentir a necessidade de encher o ar de bate-papo vazio. Embora tivesse um caráter mais reservado que sua irmã, compartilhava o mesmo perfil, maravilhoso e assustador. Ao vê-la, Lucien sentiu falta de Kit. Quando alcançaram a relativa paz do parque, ele lhe perguntou: — Alguma vez sentiu rancor contra sua irmã por deslumbrar a todo mundo? — Como pode alguém sentir rancor contra o sol por ver-lo brilhar? — respondeu ela. — Além disso, Kristine gostava de ser o centro de atenção, e eu não, de modo que não houve concorrência entre nós. — Nenhuma vez? — perguntou Lucien, cético. — Nunca. — Ela lhe dirigiu um olhar de soslaio. — Não estou segura de que uma pessoa que não tem um irmão gêmeo possa entender isso. Como somos iguais em tantos aspectos, um elogio que se faça a ela agrada tanto como se tivesse sido dirigido a mim. Eu sempre me alegrei que seu êxito. Soava sincera, entretanto Lucien teve a impressão de que ela não estava lhe dizendo toda a 104


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verdade. Com certeza que tinha havido ocasiões nas quais Kathryn tinha ansiado por reclamar a atenção. A jovem continuou dizendo: — Também se dá o contrário. Uma vez, um viúvo muito chato que estava pensando em mim para me converter em sua próxima esposa afirmou que eu era muito mais bonita que Kristine. Ainda que a idéia não tivesse sido uma tolice, de todos os modos me teria zangado. Como pôde aquele homem esperar que um elogio feito às custas de minha irmã me agradasse? — Foi uma estupidez — admitiu Lucien. — Contudo, não é impossível que esse cara sinceramente achasse você mais atraente. O brilho do sol não diminui o encanto da lua. Dirigiu-lhe um olhar rápido de surpresa e a seguir olhou as mãos. — Você possui uma língua enganadora, milord. — Sim — ele admitiu, — mas isso não quer dizer que às vezes não diga a verdade, como acabo de fazer agora. Uma súbita risada iluminou o rosto da jovem, e por um momento foi como se Kit estivesse sentada a seu lado, com todo seu volátil e sedutor encanto. Lucien apertou as mãos sobre as rédeas, confundindo os cavalos, e recordou a si mesmo que aquela não era a irmã que ele queria. Mas embora Kathryn não possuísse a radiante sensualidade de sua irmã, por debaixo daquela delicada superfície ardia uma misteriosa faísca de paixão. Era boa coisa que ela fosse do tipo de mulheres respeitáveis às que um homem pode cortejar, mas não seduzir; se não fosse assim, talvez ele tivesse se sentido tentado a aprofundar aquela relação, e já havia suficiente confusão em sua vida. Kit era outra história. Tendo escolhido se separar de uma vez por todas de todo rastro de moralidade convencional, era jogo limpo. Se ele se tornassem — quando se tornassem— amantes, seria uma relação entre iguais. Entretanto, a mulher que ia sentada a seu lado provocava-lhe um vivo interesse. Sorrindo para seus pensamentos, disse a si mesmo que era uma sorte que Kathryn tivesse um braço direito forte e que estivesse disposta a usá-lo. Não, ela o tinha esbofeteado na bochecha direita, de maneira que devia ter utilizado a mão esquerda. Perguntou-lhe: — Kira, você e sua irmã são canhotas? A jovem recuperou sua anterior seriedade e cautela. — Por que você me chama assim? — Minha tia me disse que você e Kristine se chamavam mutuamente Kit e Kira. Usei seu apelido porque me agrada. — Lady Steed se deu conta de muitas coisas — comentou ela, repressiva. — Mas esses nomes são de uso privado entre minha irmã e eu. Resulta-me estranho ouvir o nome de Kira dos lábios de um desconhecido. — Sinto muito — se desculpou Lucien. — Me limitarei a chamá-la Kathryn, se preferir. — Lady Kathryn, se não se importar. Entre nós não existe uma relação tão familiar. — Ainda. Ele lhe dirigiu um olhar direto. — Eu não sou Kristine, lorde Strathmore, e eu não gosto que me utilize como instrumento para encontrar ela. Lucien se surpreendeu ao se dar conta do muito que lhe desgostava o fato de que ela pensasse tal coisa. Puxou as rédeas para deter os cavalos a um lado do caminho e assim poder lhe dedicar toda sua atenção. — É certo que quero encontrar sua irmã, por motivos egoístas e também desinteressados. 105


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Mas você é uma mulher que desperta curiosidade por mérito próprio. Creio que poderíamos ser amigos se você permitisse, em lugar de grunhir como um gato selvagem encurralado. Ela olhou para outra parte. — Sinto se tiver sido grosseira. O fato de que meu pai fosse um homem em que se pudesse confiar muito pouco tem me feito suspeitar das intenções dos homens. — Eu não tenho intenções desonrosas no que concerne a você, e desfrutaria de sua conversa embora você não tivesse uma irmã gêmea. Poderia considerar isso como a base de uma amizade? — Talvez... Possivelmente pudesse ser — disse ela, incômoda. — Mas não sei se desejo essa amizade. — Você é uma mulher muito dura, lady Kathryn. — Eu prefiro assim, milord. — Como se precisasse mudar de tema, perguntou—: Você tem algum irmão? — Não. — Agora foi a vez de Lucien de sentir-se incômodo. Fez a carruagem arrancar de novo, talvez se concentrando muito nos cavalos. — Tive uma irmã, mas morreu muito jovem. — Sinto muito — disse ela com genuína compreensão. — Uma pessoa de seu mesmo sangue pode ser o melhor aliado contra este difícil mundo, porque não há ninguém mais que possa entender tão profundamente as forças que nos moldam para a vida. — Adotei três irmãos em Eton, e me serviram bem — comentou Lucien em tom leve. Ela respondeu com um leve sorriso. — A família que alguém escolhe deve ser mais satisfatória que a que se herda. — Normalmente é, mas quando há problemas, resultam tão dolorosos como os que se têm com pessoas de seu mesmo sangue — disse Lucien, pensando no problema que Michael tinha causado na primavera passada. — Já que você conhece Kristine melhor que ninguém, certamente terá alguma idéia de onde eu poderia procurá-la. Tenho razões para acreditar que talvez viva no Soho. —Já teve um apartamento lá, mas agora não — repôs Kathryn. — Não creio que vá atuar em uma ou duas semanas, de modo que possivelmente saiu de Londres. — Dirigiu-lhe um olhar indecifrável. — Se souber de algo, me falará? — Eu estava a ponto de lhe pedir o mesmo. É mais provável que ela se comunique com você do que comigo. Kathryn contemplou as mãos, que tinha fortemente entrelaçadas sobre o colo. — Já não estamos tão perto uma da outra como estivemos em outro tempo. Embora eu gostaria de saber dela, não tenho muitas esperanças. Lucien refletiu sobre os complexos vínculos que uniam os irmãos gêmeos e compreendeu a solidão de Kathryn. Devia ser difícil viver da caridade de uma tia inflexível, separada de sua irmã, que tinha sido sua melhor amiga. E ainda seria pior ter a sensação de que essa irmã já não se preocupava com ela. Decidindo que já tinha incomodado bastante a jovem por esse dia, mudou o rumo da conversa para a literatura ao mesmo tempo em que conduzia de volta à casa de lady Jane. Quando Kathryn estava relaxada e falando de um tema abstrato, sua seca intuição resultava muito divertida. Continuou pensativo ao longo de todo o caminho. A seu modo, lady Kathryn era tão enigmática como sua irmã. Sem nenhuma alegria, deu-se conta de que era quase igualmente atraente. Queria avivar aquela faísca de paixão até convertê-la em uma verdadeira chama; queria fazer desaparecer aquela atitude de reserva com um beijo e fazê-la rir livre de travas; queria... Maldição! Não sabia o que queria. Não, isso não era certo; queria Kit, e em sua frustração estava transferindo esse desejo à irmã gêmea de Kit. As semelhanças que havia entre ambas eram 106


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tentadoras, mas as diferenças que eram muito mais significativas. Ambas as mulheres eram pessoas individuais, cada uma com seus próprios sonhos e seus próprios medos. As confundir em sua mente seria como negar a essência de sua humanidade. Além disso, Kathryn era muito rígida para seu gosto. Lembrou isso a si mesmo... uma e outra vez. Quando chegou em casa, seu estado de ânimo, normalmente tranqüilo, estava profundamente alterado. Precisava encontrar Kristine antes que se ficasse colérico. Por desgraça, os progressos que acreditava ter feito tinham resultado ser um engano. Não se encontrava mais perto de encontrar a sua lady Némesis que antes de conhecer Kathryn.

INTERLÚDIO Esperou-o junto à porta. No instante em que entrou na sala de espera o açoitou com o chicote nos ombros. Ele se voltou rapidamente, surpreso e excitado. Esta noite ela se vestia de um branco virginal, como a jovem inocente que não era com um véu branco que flutuava sobre seus suaves e falsos cachos de cor loira. Mas o vestido de cetim só conseguia lhe roçar a parte superior das coxas, e suas longas pernas se viam embainhadas em couro e renda preta. — Esta noite está especialmente formosa, minha ama — ofegou ele. — Silêncio! — esticou-se sensualmente para que o cetim branco se esticasse sobre seus seios. — Naturalmente que sou formosa, mas não sou feita para um homem como você, escravo. Não deve me tocar. Não pode me olhar. Nem sequer tem permissão de pensar em mim. — É cruel, minha ama — choramingou ele. — Não posso evitar pensar em ti e no êxtase que me produz te servir. Ela tragou a bílis que lhe subiu à garganta ao ouvir aquelas palavras. Quando conseguiu recuperar o domínio da voz, cuspiu: — Porco insolente! Deve ser castigado por sua presunção. Vá para sua masmorra. Ele, embora obedecesse com prontidão, deteve-se um instante junto ao perverso objeto mecânico, e ela lhe golpeou com o cabo do chicote nos nódulos para lhe mostrar que não se distraísse. No centro da câmara grosseiramente escavada na rocha, aguardava um grande palco de madeira. Procurando tocar no homem o mínimo possível, colocou-lhe os grilhões nos pulsos e os tornozelos de forma que ficasse com os membros estendidos sobre o palco. Em seguida levantou o chicote, de correia mais dura, e o utilizou para despi-lo. Intermináveis horas de treinamento a tinham convertido em uma perita, e seu controle era excelente. Sabia exatamente quanta pressão era preciso para rasgar o tecido, e quanto mais para roçar a pele que havia debaixo; como causar uma simples marca, como provocar um pouco de sangue. Logo os farrapos de tecido foram deixando a pele em descoberto, coberta por uma camada de suor, e manchas de cor carmesim obscureceram o que restava do branco da camisa. Controlou o processo observando o inchaço do órgão do homem por debaixo do tecido destroçado de suas calças. Quanto mais lhe rasgava as roupas, mais ele se retorcia contra as ataduras e mais fortes eram seus gemidos suplicando alívio. Somente quando ele estava completamente nu que ela descarregou a violenta chicotada final nas nádegas que sabia que lhe provocaria o orgasmo. Ele emitiu um prolongado grunhido animal ao mesmo tempo em que movia os quadris grosseiramente e lançava o sêmen descrevendo um arco prateado. Depois, todo seu corpo ficou enfraquecido, pendurando desmaiado dos grilhões. 107


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Só o subir e descer de seu peito indicava que ainda estava vivo. Ela passou o chicote pelos dedos trêmulos e se perguntou quanto tempo ele demoraria em morrer se lhe atasse a correia de couro ao redor da garganta. Embora o malévolo impulso fosse tão intenso que quase pôde saboreá-lo. O rosto ficaria de cor púrpura e se agitaria aterrorizado quando se desse conta de que dessa vez não tinha escapatória, mas estaria inerte diante a raiva letal dela. Rapidamente, antes que pudesse se deixar levar por esse impulso, ela deu meia volta e fugiu da masmorra.

CAPITULO 20

Kit despertou com um grito aflito e os dedos contraídos por causa do forte cheiro de couro. Horrorizada, olhou-se as mãos na claridade do amanhecer, meio esperando ver sulcos marcados na carne, mas estavam vazias. Na realidade não tinha assassinado ninguém; só tinha sido outro horrível pesadelo. Agora lhe vinham com mais freqüência, cada vez mais desagradáveis e perturbadores, mas aquela era a primeira vez que sonhava com um assassinato. Tentou se recordar do rosto, mas estava muito distorcido — pela raiva? pelo medo? — para ser reconhecível. Levantou-se da cama com passo inseguro e foi até a bacia. Rompeu a capa de gelo que cobria a superfície da água da jarra e a seguir salpicou o rosto e as mãos, sentindo-se como Lady MacBeth em seu frenético desejo de lavar a culpa de si. Enquanto se secava, tentou recordar o sonho mais claramente, mas não conseguiu recuperar mais que alguns fragmentos, nada muito concreto para poder identificá-lo. Já tinha se vestido e se dispunha a escovar o cabelo quando de repente surgiu uma vivida imagem em sua cabeça: uma mulher indecentemente vestida descarregando um chicote sobre o corpo nu de um homem. Custou-lhe um momento em se dar conta de que o que estava vendo não eram pessoas reais, a não ser figuras mecânicas, esquisitamente modeladas com todo detalhe, inclusive os traços de cor escarlate pintados a mão sobre as costas do homem. Uma grotesca melodia formada por campainhas acompanhava cada rítmica subida e descida do chicote. Estava vendo uma caixa de música, uma caixa de música engenhosa e obscena que lhe produzia náuseas. Strathmore fabricava objetos mecânicos. Podia um homem que fazia pingüins saltitantes ser capaz de construir também uma horrorosa perversão como aquela? Disse a si mesma que tinha que haver mais homens com essa habilidade, mas Lucien era o único que ela conhecia, e, além disso, era um dos Demônios, e, portanto suspeito. Mais de uma vez se sentiu tentada a lhe dizer a verdade e lhe rogar que a ajudasse, já que ele seria muito mais capaz de obter seu objetivo que ela. A visão representava um duro aviso de que não se atrevia a confiar nele, por mais que quisesse. Sentiu-se aliviada ao ouvir que alguém batia na porta. Devia ser Henry Jones, que tinha enviado uma nota no dia anterior em que lhe solicitava esta reunião nas primeiras horas da manhã. — Obteve alguma informação? — você está com sorte. A maioria de seus amigos Demônios logo irá passar alguns dias na propriedade de Mace, Blackwell Abbey. Kit tomou a capa do homem. — Vai ser uma de suas reuniões só para homens? 108


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— Desta vez não. Na família dos Harford existe a tradição de celebrar um baile de máscaras pouco antes do Natal. Isso lhes dá a oportunidade de demonstrar que têm muito mais dinheiro que seus vizinhos, suponho. A maior parte do condado comparecerá como convidada. Blackwell Abbey é um lugar muito grande, de modo que haverá dezenas de convidados e inclusive um maior número de criados. — Tomou assento com um suspiro audível e aceitou uma fumegante xícara das mãos de sua anfitriã. — Obrigado, querida. Não há nada como uma xícara de chá depois de uma longa noite percorrendo os submundos de Londres. Depois de servir uma xícara para si mesma, Kit se sentou em frente a seu hóspede, com expressão pensativa. — Com tantos convidados, será fácil eu me misturar com eles. Ele respondeu gravemente: — Importa-lhe me dizer no que está pensando? — Creio que há muitas possibilidades de que Roderick Harford seja o homem que estou procurando. Se o puder ver de novo, saberei com certeza. — Por que não se limita a bater em sua porta e lhe perguntar abertamente se ele é? — perguntou Henry com sarcasmo. — Já pensei nisso, mas não creio que seja uma boa idéia — repôs Kit com o semblante sério. — Lhe alertar de minhas suspeitas seria perigoso, e não somente para mim. Jones começou a brincar com a asa da xícara. — Já transcorreram várias semanas. Parou para pensar que talvez seja... muito tarde? — Não é muito tarde! — exclamou Kit acaloradamente. — Estou tão segura disso como de que estou aqui sentada. Mas ao pensar no sonho que tinha tido, soube com gélida e aterradora certeza que estava acabando o tempo. Embora tivesse se convertido em uma perita em se infiltrar nas residências dos ricos e famosos, suas ilícitas habilidades não lhe seriam necessárias desta vez. Do esconderijo que lhe proporcionava um pequeno mirante, observou as figuras que giravam no salão de baile de Blackwell Abbey. Claramente, aquela era uma grande ocasião na vizinhança. Apesar de que essa noite fazia um frio penetrante próprio do final de outono, os casais estavam acalorados pela dança, e também por outras razões, e saíam com freqüência para o terraço de pedra que dava para o salão. Todos usavam máscaras e umas volumosas capas que imitavam às dos hábitos dos clérigos medievais. As máscaras proporcionavam uma embriagadora sensação de anonimato, e nas risadas e comentários jocosos que flutuavam no ambiente havia uma malévola e oculta excitação. A maioria dos convidados retornavam ao salão depois de vários minutos e alguns beijos, embora alguns dos mais ardorosos abandonavam o terraço para procurar intimidade nas sombras do jardim. Kit esperava que o prazer que obtivessem merecesse o risco de contrair uma pneumonia. Perto da metade da noite, quando o champanha e a dança já tinham feito efeito nos convidados, retirou a manta dos ombros e a deixou no chão do mirante. Se alguém a encontrasse, pensaria que aquele pedaço de áspera lã tinha servido para um casal que tinha estado fornicando ali. Enquanto esticava as dobras de sua capa azul noite e comprovava que a máscara estava bem presa, concentrou-se na personalidade que tinha decidido adotar nessa ocasião: segura de si mesma, experimentava, um pouco mais que uma desavergonhada. Em seguida cruzou o jardim em direção ao terraço, em meio de uma leve brisa que fez ondear a capa a seu redor. Sabia que tinha o mesmo aspecto que qualquer outra mulher do salão. Entretanto, sentia-se tão ilustre como 109


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o profeta Daniel entrando na cova dos leões. Mal tinha dado alguns passos no interior da sala, quando se deteve para colocar o leque de renda diante do rosto com gesto lânguido e estudar o ambiente. Tudo estava tal como tinha esperado: calor e suor, um clamor de música e vozes, um constante desfilar de saias de seda girando. O preto era a cor predominante das capas, mas havia suficientes de distintas formas de azul para criar um efeito de arco íris. O centro do salão estava ocupado por casais dançando, enquanto que havia outros convidados que conversavam e paqueravam em volta dele. Em uma sala contínua havia mesas com refrescos, e em alguma outra parte devia haver uma sala de cartas para os jogadores. Por sorte, não tinha atraído especialmente a atenção de ninguém. Rastreou a multidão procurando lorde Strathmore, que sem dúvida se encontraria ali. Não foi difícil de encontrá-lo, porque sua estatura e seu cabelo loiro eram muito distintos para poder ocultá-los sob uma capa e uma máscara. Estava dançando com uma mulher que usava a capa voltada para trás para deixar a mostra um vestido de chamativa cor vermelha e uma figura ainda mais chamativa. Exatamente o tipo de víbora a qual os homens não podiam resistir, pensou Kit com aspereza. A capa de Strathmore, a máscara e os demais objetos de excelente feitio eram de cor preta e de uma rigidez quebrada apenas pela camisa branca e por seu próprio cabelo loiro. Um perfeito retrato de Lúcifer dando uma saidinha. Assim que o identificou, Kit deu meia volta e pôs-se a andar na direção oposta. Tinha tido grande dificuldade para procurar um aspecto que ele nunca tivesse visto. Não podia dissimular sua altura, mas havia posto diminutas pedras nas sapatilhas de pele de pelica para alterar sua postura e seu modo de caminhar. Nesta ocasião usava cabelo loiro e suave, e seu vestido de decote baixo e cor azul gelo aderia a o corpo que tinha sido cuidadosamente preenchido para que parecesse exuberante, embora não tão voluptuosa como Sally, a garçonete. Tinha escolhido se vestir de azul porque aquele tom deixava seus olhos de um cinza aquosos. Por debaixo da máscara, uma sutil maquiagem mudava os contornos da boca e das bochechas. Também tinha desenhado rugas no rosto e depois as tinha coberto com pó profusamente como se pretendesse as dissimular. O efeito era o de uma mulher amadurecida que tentava parecer quinze anos mais jovem. Conseguiria enganar inclusive Strathmore. De todos os modos, não pensava se arriscar. Mais difícil foi localizar Roderick Harford, cujo aspecto era menos distintivo que o de Strathmore. Enquanto percorria com o olhar o perímetro do salão, o procurando, um fornido cavalheiro se aproximou e lhe perguntou: — Lady da meia-noite, gostaria de dançar comigo? Recusar poderia atrair a atenção de alguém, de modo que aceitou com um gracioso sorrisinho. A melodia era um ritmo escocês muito alegre, de modo que dançou até deixar exausto seu acompanhante. Ao terminar, o homem a convidou entre afagos a unir-se a ele na sala onde se serviam os refrescos. Kit assim o fez, mas depois de uma só taça de champanha, sorriu e esca puliu dele. Aceitou outra dança com alguém que lhe pareceu que podia ser Harford. Mas não o era. Aproximou-se de outro homem, mas também era uma pista falsa. Quatro danças mais e outras duas taças de champanha não conseguiram aproximá-la mais de sua presa. Começou a ficar nervosa, porque a multidão estava começando a reduzir-se à medida que os convidados locais estavam retornando para suas casas antes que terminasse a noite. Se não conseguisse encontrar sua presa, teria desperdiçado aquela esplêndida oportunidade. Estava a ponto de entrar e revistar a sala de jogo quando ouviu a voz de Harford. Voltou-se 110


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rapidamente e o viu despedindo-se de um grupo de amigos. Assim que ficou sozinho, aproximouse dele e lhe disse em um ronronar: — Estou procurando um valente cavalheiro andante cuja lança seja forte e resistente. É você esse homem? Depois de um instante de surpresa, ele respondeu com um olhar impudico de prazer: — Não encontrará um guerreiro que seja mais audaz que eu na cama, milady. Ela agitou provocativamente o leque de renda. — Nesse caso, dance comigo, sir Cavalheiro. — Será um prazer. Conduziu-a até a pista ao mesmo tempo em que os músicos começavam uma valsa. A julgar por sua respiração, era evidente que tinha bebido muito. Procurando não pensar na ocasião em que tentou mexer com ela quando ela se fazia passar por criada, disse-lhe em tom sedutor: — Me alegro muito de que essas doces jovenzinhas se foram para casa com suas mães. Tanta inocência resulta cansativo. — Não poderia estar mais de acordo — repôs Harford. — Meu irmão, Mace, acha que é dever da família entreter os vizinhos todos os anos, de modo que sempre passo à primeira metade da noite dançando com todas as moças da região. Mas agora que cumpri com esse dever e que essas pipocas se foram, já podemos fazer o que nos agrada. Durante o que resta da noite só haverá valsas muita longas. Tão melhor para conhecer-se, não acha? — Em efeito. — Kit lhe acariciou o ombro direito com as pontas dos dedos. — Sempre adoro conhecer um cavalheiro novo. Ele respondeu estreitando-a muito mais perto dele que os trinta centímetros que se consideravam apropriados na maioria dos salões de baile. As graças sugestivas prosseguiram ao longo de toda a dança, Kit agindo com tanto descaramento como foi possível e Harford respondendo no mesmo tom. Mas, tal como ela havia temido, o salão era uma distração muito forte para obter uma idéia clara se ele era o homem que estava procurando. Teria que arriscar-se a estar a sós com ele. A música terminou. Então Kit lhe apertou a mão em um gesto eloqüente e lhe disse: — Quererá me mostrar depois sua lança? Ele desceu o olhar apreciativamente ao decote de seu vestido. — Vamos até o jardim e lhe mostrarei agora mesmo. — Faz muito frio — replicou ela com uma careta. — Suponho que poderemos encontrar um reservado em alguma parte, embora alguns deles já estejam ocupados. Poderia ser embaraçoso. — Por que tem que ser em um reservado? Um verdadeiro cavalheiro não perde tempo, nisso consiste o cavalheirismo. - Agitou as pestanas com a esperança de que a máscara não danificasse o efeito - Não podemos subir a seu quarto e fazer como é devido? Ele vacilou. — Dado que sou um dos anfitriões, é um pouco cedo para que me retire definitivamente. Ela lhe acariciou o queixo com o leque dobrado. — Por que não nos encontramos em seu quarto dentro de uma hora? — Boa idéia – Tirou uma chave de um bolso interior – Meus aposentos estão na ala oeste, ultima porta à esquerda. Não há cartão na porta, mas não se confundirá. Por que não vai até lá e me espera? Era um surpreendente golpe de sorte. Kit pegou a chave e a guardou no corpete com um gesto teatral. — Quando subir pode tentar encontrar a chave, se quiser. — Tamborilou nos nódulos dele 111


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com o leque. — Sobretudo, não vá me esquecer e trazer outra dama, nesse caso talvez tenha que matar um dragão. Ele riu e lhe deu um beliscão no traseiro ao mesmo tempo em que se separou dela. O alívio de Kit foi enorme enquanto cruzava a pista de dança. Com sorte, talvez se inteirasse de tudo o que necessitava só estando em seu quarto. Certamente, isso seria mais simples que esperar que ele retornasse e depois ter que inventar um modo de escapar de suas ga rras. Embora tivesse jurado fazer o que fosse necessário, a idéia de deitar-se com o inimigo a fazia engasgar. Quase tinha saído do salão quando os músicos iniciaram outra valsa. Atrás de uma cortina, uma voz familiar disse: — Permite-me esta dança? E antes que pudesse protestar, encontrou-se nos braços do conde de Strathmore.

Capitulo 21

É obvio que Strathmore tinha que encontrá -la, pensou Kit com furiosa exasperação. Ambos podiam ser jogados na imensidão do Saara e ver-se atraídos um ao outro como dois pólos opostos. Mas não havia sinal algum de que ele a tivesse reconhecido, o que era a única coisa que importava. Com apenas alguns centímetros do rosto visível e as feições alteradas pela maquiagem, seu atual disfarce era um que nem sequer Strathmore poderia desmascarar. Isso não significava que devesse lhe dar a oportunidade de tentá-lo. Alterou o gesto da boca para imitar o franzido delicadamente voluptuoso de uma mulher francesa e disse com sotaque parisiense: — Prometi esta dança a outro cavalheiro, monsieur. — Quando nos encontrar, cederei meu lugar — disse Strathmore em bom francês. — Mas até então, seria uma lástima desperdiçar a música. Como ele não a soltava, Kit se viu obrigada a lhe seguir no ritmo da dança, uma malvada e escandalosa valsa, condenado pelos cidadãos de elevada moral porque estimulava os pensamentos impuros. Já que Strathmore exercia aquele efeito sobre ela todo o tempo, só Deus sabia o que poderia conseguir uma valsa. Tinha a sensação de que ele a observava com desacostumada intensidade. Teria alguma suspeita? Tentou ler sua expressão, mas sua máscara negra impedia. Os passos de ambos encaixavam com perfeição. Uma vez mais, aquilo não lhe causou surpresa alguma; desde seu primeiro encontro, os dois se viram apanhados em um tipo diferente de dança. Deslizaram em silêncio pelo salão de baile. Era essencial travar conversa, pois o silêncio a fazia se dar muita conta da proximidade dele. Sem retirar a mão esquerda do ombro de seu par de dança, abriu o leque e começou a refrescar o rosto ao mesmo tempo em que procurava pensar em algo inócuo para dizer. Não deveria ter tomado aquela terceira taça de champanha, porque agora parecia lhe falhar sua habitual capacidade de criatividade. Strathmore solucionou o problema perguntando: — Quando as jovens damas francesas aprendem a dançar, lhes ensina m também a abanar-se sem perder o passo? É um truque muito interessante. Kit soltou uma risada que em nada se parecia com a normal nela. — As mulheres francesas estão cheias de truques interessantes, monsieur. — Muito tarde se 112


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deu conta de que aquela era o tipo de paquera indecente que tinha utilizado com Roderick Harford. — Esplêndido. As mulheres com truques me parecem irresistíveis — disse Strathmore brandamente. Atraiu-a mais para si, de modo que seus corpos se tocassem levemente. Cada movimento da dança se converteu em uma carícia, um roçar dos seios dela contra o peito dele; o sussurro da respiração dele na têmpora dela; a pressão de seu joelho ao lhe tocar levemente a coxa; um leve roçar das pélvis que em Kit provocou espirais de calor que lhe percorreram todo o corpo. Embora cada um daqueles contatos fosse efêmero, o efeito global resultava poderosamente erótico. Kit experimentou o desejo de enroscar-se ao redor dele, de converter aquele leve roçar em um apaixonado abraço. Recordou com precisão quase física o jantar que compartilharam no hotel Clarendon e sentiu que suas bochechas ficavam vermelhas. Abaixou a cabeça, agradecida de que Strathmore não pudesse lhe ler a mente. O conde lhe murmurou ao ouvido: — Dança você muito bem, madame. — Assim como você, monsieur, mas se aproxima muito para o que se considera correto — repôs ela em tom de suave recriminação. Tentou separar-se um pouco, mas a firmeza com que Strathmore lhe segurava a mão e a cintura o impediu. — O que se considera correto à meia-noite em um salão de baile é muito diferente do que se considera correto ao meio-dia em uma sala de estar, madame. Olhe a seu redor. Era certo que muitos casais dançavam mais abraçados que ela e Strathmore, mas Kit estava certa de que nenhum dos outros homens tinha a mesma capacidade de fazer que os ossos de uma mulher se tornassem gelatina... — Você me lembra alguém — disse o conde pensativo. Nesse momento dispararam todos os alarmes mentais de Kit, e a arrancaram de sua atitude lânguida. — É uma boa ou má lembrança, monsieur? —Ambos. Uma mulher das mais deliciosas, mas enlouquecedoramente esquiva. Tem uma estatura muito parecida com a sua — sua bochecha roçou o cabelo de Kit— e é tão agradável de abraçar como você— a atraiu um pouco para si a modo de demonstração, — e era elegante de movimentos, como você. — Abaixou os olhos para ela e a olhou com uma perspicácia que a assustou. — Eu gostaria de saber se seus beijos também são como os dela. Antes que ele pudesse fazer algo em relação ao último comentário, Kit se afastou, dizendo em tom glacial: — Só um imbecil tentaria fazer um elogio a uma mulher comparando-a com outra. — Tem muita razão. Sempre estou acostumado a ser um idiota com as mulheres. — Elevou uma mão e beijou os dedos enluvados dela. — Me perdoe. Procurarei ser mais sensato. Mais duplos sentidos. Via-se claramente que ele suspeitava de sua identidade, mas que não tinha certeza. Kit deu graças a Deus pela máscara e a cuidadosa maquiagem. Entretanto, a intensa atração que vibrava entre ambos não podia se ocultar, e quanto mais tempo passassem juntos, mais suspeita alimentaria o conde. — Não creio que seja sensato seguir dançando com você, monsieur. — E por que temos que ser sensatos? — Seu braço direito deslizou ao redor da cintura de Kit e sua capa a envolveu protetoramente como se fosse um par de asas, ao mesmo tempo em que a arrastava de novo à valsa. Ela conteve a respiração ao perceber a suavidade de seu abraço. Fazia bem em temer o silêncio, porque sem palavras para proteger-se, carecia de toda defesa contra ele. 113


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Debatendo-se entre o desejo de ficar e o saber que não devia fazê-lo, prometeu-se a si mesma fugir assim que terminasse a peça. Mas a música continuou soando sem cessar, muito mais tem po do que dura uma valsa normal, tecendo um lento feitiço de desejo. Gradualmente foi cedendo o frenético pulsar do medo que a tinha impulsionado durante semanas, apaziguado pelo calor de sua proximidade. Deixou que os olhos se fechassem e apoiou a bochecha no ombro dele. Fracamente compreendeu que aquela dança junta constituía um ato de acasalamento tão explícito como se os dois estivessem nus entre lençóis de cetim, mas, entretanto não podia separar-se. Continuaram deslizando ao ritmo dos giros da valsa, com as capas flutuando ao redor deles, diáfanas como a neblina, preto e azul noite em um mesmo redemoinho. Por fim — embora muito cedo — a música terminou. Detiveram-se em frente a um candelabro, com o olhar cravado um no outro como se tivessem ficado presos em um mágico feitiço. Atrás da máscara de Strathmore, Kit viu que o desejo tinha tornado seus olhos de uma cor dourada como o de uma moeda nova, e se perguntou que aspecto teriam seus próprios olhos. Então soube que tinha que partir imediatamente dali. — Boa noite, monsieur — disse com a garganta seca. No momento em que se voltava para partir, ele a pegou pelo pulso. — Não se vá ainda — lhe disse com a voz rouca. — Ou nesse caso, vamos juntos. Ela escapou daquela garra. — Sinto muito, mas já tenho planos para o resto da noite. Nesse instante, uma vela próxima salpicou um pouco de cera quente sobre a bochecha de Kit. Ela levou uma mão ao rosto, mas já estavam ali os dedos dele, retirando brandamente os fragmentos de cera. — Venha comigo. Tenho certeza que esses «outros planos» poderão esperar uma hora. Falava com a tranqüila segurança de um homem que não duvidava de que em uma hora poderia fazê-la esquecer todas suas obrigações. Mas as obrigações dela eram mais importantes que o simples sexo, por mais atraente que isso parecesse. De modo que negou com a cabeça. — Sinto muito, monsieur, mas a honra me impede isso. Talvez em outra ocasião. Apenas teve tempo de notar que ele flexionava os dedos. Antes que o conde pudesse lhe arrancar a máscara, ela lhe afastou a mão com um golpe do leque que destroçou as varinhas de ébano e rasgou a delicada renda. — Não queira mudar as regras, monsieur — lhe espetou — A intimidade que compartilhamos foi possível só porque usamos máscaras. Se eu não lhe satisfizer, vá procurar a dama que acredita que me pareço. Talvez ela seja mais complacente. — Não posso evitar me perguntar se já a encontrei — disse ele com suavidade. — Embora sua aparência é distinta, seu espírito é o mesmo. Pode haver mais de uma mulher que resplandeça com semelhante fogo e que acenda tal desejo? Mas que inferno. Apesar de todos seus esforços, Strathmore estava convencido em três quartas partes de sua identidade. Mas ainda não tinha certeza absoluta; se estivesse já a teria levado do baile a um lugar mais privado. O ataque era mais seguro que a defesa. Lançou uma maldição em francês que tinha aprendido da jovem parisiense que tinha sido sua babá e depois deu a volta, fazendo ondear sua capa. — Você é tedioso, monsieur. Não volte a me incomodar. Enquanto se afastava dele, rebolando lentamente os quadris em um gesto que não se parecia em nada a sua forma natural de andar, sentia o olhar de Strathmore lhe perfurando as costas. Teve que recorrer a toda sua força de vontade para não sair correndo. Tão somente o fato de saber que se fugisse confirmaria as suspeitas dele lhe permitiu manter o passo lento e firme. 114


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Uniu-se ao maior grupo de pessoas que viu para que o conde a perdesse de vista, e em seguida escapuliu do salão. Uma vez a salvo no vestíbulo, recostou-se contra a parede, tremendo. Como tinha podido ser tão idiota de deixar que acontecesse aquilo? Deveria ter desaparecido assim que ele a abordou. E quanto tempo havia passado com ele? Harford tinha a intenção de retornar a seu quarto no término de uma hora, e já devia ter transcorrido meia. Não havia tempo a perder. Tirou com toda pressa as pedrinhas das sapatilhas, porque lhe eram muito incômodas e já não lhe eram necessárias para alterar seu modo de andar, e se lançou escada acima pouco menos que correndo. Em várias ocasiões viu outros casais em cantos ou entrando em um dormitório, mas todos estavam muito concentrados em seus próprios assuntos para prestar atenção nela. Blackwell Abbey era uma mansão em forma de U com uma área central ladeada por duas alas mais curtas. Havia dúzias de portas idênticas que davam aos corredores em penumbra. Com o fim de evitar que os convidados cometessem um embaraçoso engano, foram colocados elegantes cartões nos quartos para indicar a quem pertencia cada um. Olhou com cautela a porta assinalada com o cartão de Strathmore, embora soubesse que ele se encontrava lá embaixo. Chegou ao final do corredor e extraiu a chave, e depois passou dois frustrantes minutos tentando abrir a porta sem marcas. Talvez Harford estivesse planejando algum jogo idiota com ela. Teria se equivocado de lugar? Refletiu sobre isso e se deu conta de que tinha procedido ao contrário, e tinha ido à esta ala em lugar da ala oeste. Amaldiçoando mentalmente a si mesma, retrocedeu seus passos afastando-se instintivamente ao passar por diante da porta de Strathmore. À direita ao dobrar a esquina, depois sempre reto pelo corredor principal, depois outra vez à direita. A última porta à esquerda. Desta vez a chave girou brandamente e a porta se abriu revelando uma saleta de estar. Entrou nela com alívio e depois a fechou atrás de si para inteirar-se da chegada de Harford se este voltasse antes de ela ter ido. Uma só vela iluminava o quarto. Estudou o ambiente, perguntando-se o que devia procurar. Já em outra ocasião tinha revistado o quarto de Harford, mas então ele era um convidado em outra casa. Esta saleta e o dormitório contínuo eram lugares em que ele vivia de fato durante a maior parte do ano, e devia ter deixado neles profundas marcas de si mesmo. Começou a revistar. A estante continha uma impressionante coleção de livros obscenos, repelentes e de nenhum valor para ela. Abriu o armário e passou as mãos entre os objetos, tentando encontrar vestígios de alguma essência indefinível. Em seguida foi até a mesa e começou a revistar os papéis com frenesi enquanto rezava para que seu dono permanecesse no salão mais tempo do que tinha pensado. A mesa tinha duas gavetas cheias de contas, nenhuma delas pagas. Em outra gaveta havia uma série de explícitas cartas de amor escritas por diferentes mãos femininas. Folheou-as rapidamente, mas eram tudo lixo. Inclusive o verso vulgar que falava da «notável verga de Roderick» tinha a métrica defeituosa. Era óbvio que Harford não gostava das mulheres com inteligência. Na gaveta central encontrou um diário que continha umas breves notas. Leu-as por espaço de uns segundos e compreendeu com desgosto que se tratava de uma lista das mulheres com as quais ele havia se deitado, junto com avaliações de suas habilidades e de sua disposição em agradar os gostos às vezes peculiares de Harford. Se ela fosse na verdade a libertina que fingia ser, estava destinada a acabar naquelas páginas. Ele teria tomado nota de sua tatuagem. Folheou todas as notas correspondentes aos últimos meses, mas não encontrou nada que confirmasse suas suspeitas. Estava agachando-se para abrir a última gaveta quando uma voz furiosa exclamou: 115


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— Que diabos está fazendo? Kit teve um sobressalto e, com o coração desbocado, viu Harford de pé na soleira. Santo Deus, como não havia lhe ocorrido que ele podia ter uma segunda chave? Devia sair dessa situação com algum comentário descarado. — Dando uma olhada em sua mesa, naturalmente — respondeu em tom inocente. — Estava aborrecida em esperar, monsieur, de modo que decidi explorar um pouco. — na próxima vez, não explore a mesa de um homem — disse ele. Sua irritação se desvaneceu com essa rápida mudança de humor típico dos que beberam muito. — É francesa? Não me dei conta disso antes. Maldição tinha falado seguindo o personagem que tinha inventado para Strathmore. — No interior de um dormitório, sempre sou francesa — repôs com voz rouca. — Pode ser que os franceses sejam nossos inimigos, mas são uns professores na arte de fazer amor. — Oh, não creio que sejam inimigos. Napoleão é um tipo diabolicamente inteligente, muito superior a nossa família real. Ainda não está acabado totalmente. — Harford tirou a máscara e a seguir desatou a capa e a deixou sobre uma cadeira. — Começa a te despir. Quero ver se tem o rosto tão apetecível como as tetas. Aquele era o momento que Kit tinha esperado. Aproximou-se da plena luz das velas e levou uma mão à máscara. Embora usasse diferente cor de cabelo, sem dúvida Harford a reconheceria se fosse o homem que ela procurava. Revelou seu rosto, ao mesmo tempo em que o observava fixamente, aguardando a reação que lhe indicaria o que precisava saber. Nada! Nem uma só piscada, nem uma mudança de expressão nos olhos, tão somente o comentário depreciativo: — Um pouco entrada em anos, mas servirá para uma noite. Tenho descoberto que as mulheres mais velhas resultam ser boas companheiras de cama porque são muito agradecidas. Em seu estômago se formou um nó. Não era ele. Não era ele! Não podia explicar por que sabia, mas estava completamente segura. Embora Harford pudesse estar comprometido de algum modo, não era o malvado que ela procurava. Já sabia o que queria saber. Agora se tratava de escapar dali sem que a violassem. -Não é muito amável de sua parte mencionar minha idade — se queixou, movendo-se para a porta. — Um cavalheiro como é devido não diria uma coisa assim. — Deixe já dessa conversa sobre cavalheiros. — tirou o casaco e começou a soltar a gravata. — Vieste aqui para se deitar comigo, e estou disposto a te agradar, mas não me faça perder tempo com lábias de mulheres. — Não é absolutamente um cavalheiro. — Se girou e levou uma mão ao trinco da porta. — Creio que já não me agrada. Com uma velocidade imprópria de seu estado de embriaguez, Harford a agarrou pelos ombros e a obrigou a voltar-se para o olhar de frente. — Você não vai a parte alguma — rugiu. — Já é muito tarde para que encontre outra mulher, de modo que vai ficar aqui e receber exatamente o que pediu. Sua boca quente e com sabor de álcool se estampou sobre a de Kit. Foi horrível, igual ao incidente ocorrido no castelo de Bourne quando ele a tomou por uma criada. Reprimindo o asco que sentia, Kit emitiu um gemido gutural, como se a excitasse aquele abraço grosseiro, e se envolveu ao redor dele. Harford grunhiu quando ela roçou os quadris contra seu corpo, e começou a desabotoar os botões com gesto impaciente. Ela aguardou até que ele estivesse com a calça abaixada, em uma postura em que lhe seria difícil conservar o equilíbrio, e então o empurrou violentamente no peito. Ele se estatelou de costas contra a mesa e caiu esparramado no chão. Sem deter-se para olhar se estava ferido, Kit saiu disparada para a porta. À esquerda 116


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terminava a ala oeste, de modo que foi para a direita, em direção ao corredor principal. No momento em que dobrava a esquina ouviu um bramido de fúria seguido de umas fortes passadas, Não restava dúvida de que era uma sorte que Harford não estivesse morto, mas era uma lástima que não o tivesse deixado inconsciente. — Pagará por isso, maldita vadia! — retumbou o eco através dos corredores, por cima do ruído proveniente do salão de baile. Normalmente, semelhante estrondo atrairia gente, mas Kit supôs que outros convidados estavam muito entretidos dançando, bebendo ou fornicando. Sabia que Harford a veria assim que dobrasse a esquina, de modo que diminuiu o passo para provar a porta que estava mais perto. Fechada! Pôs-se a correr outra vez, dirigindo-se às escadas que conduziam ao andar debaixo. Se conseguisse atravessar o salão de baile e sair para o jardim, Harford jamais a encontraria. Mas mudou de planos ao ver lorde Mace e outros dois homens falando em pé na escadaria. Possivelmente estivesse segura se ela se unisse a eles, mas não apostaria nada nessa possibilidade. Desviou-se bruscamente e seguiu pelo corredor com a velocidade que tinha a dquirido correndo pelos prados de Westmoreland. Segundos depois de virar na curva que levava a esta ala, detiveram-se as passadas que a perseguiam, e ouviu Harford dizer: — Mace, viu a uma mulher descer correndo a escada há um momento? — Não — respondeu seu irmão. — Em que diabos anda metido? — Estou perseguindo uma vadia maliciosa e traiçoeira — repôs Harford cruelmente. — Vou fazer que se arrependa de ter me conhecido. — Bem, pois a persiga sem fazer tanto ruído, Roderick — grunhiu Mace. — Pode ser que haja alguns convidados tentando dormir. Ofegando sem fôlego, Kit aproveitou aquele breve intervalo para provar as portas desta ala. Uma era a de Strathmore, as duas seguintes estavam fechadas com chave. A quarta se abriu, e deixou escapar um suspiro de alívio que durou só até que lhe chegaram uns ruídos enfebrecidos de um casal nos ardores da paixão. Apressou-se em se retirar e fechar a porta atrás de si. Os passos de Harford se aproximavam rapidamente. Em poucos segundos dobraria a esquina e a veria. Frenética, esquadrinhou o corredor. Outro beco sem saída. Uma daquelas portas sem cartão provavelmente conduziria a uma escada de serviço, mas não sabia qual delas, e o tempo urgia. Sem ter obtido ainda seu objetivo, seria desastroso que Harford a alcançasse. No mínimo, terminaria violada e golpeada. O pior não se atrevia a imaginar. Só restava uma esperança. Rogou a Deus que ele se encontrasse ali e que quisesse ajudá-la apesar de tudo o que tinha lhe feito. Com uma sensação de fatal inevitabilidade, girou sobre os pés e se lançou de cabeça sobre a porta do quarto de Strathmore.

Capitulo 22

Depois de seu encontro com a dama da capa azul, Lucien retornou a seu quarto, fervendo com uma mescla de frustração física e mental. Disse a seu criado de quarto que não lhe esperasse acordado, de maneira que, depois de tirar a capa e a máscara, acendeu o fogo, serviu-se de uma taça de conhaque e se sentou a pensar. Não havia nenhuma base lógica para suspeitar que a dama de azul fosse Kristine Travers. Além da estatura, não existia nenhuma semelhança real entre ambas as mulheres. De todos os 117


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modos, não havia deixado de sentir a persistente sensação de que ela havia rido dele por detrás daquela máscara. Talvez fosse a obsessão que fazia que ele a visse em toda a parte; isso e o fato de saber que era uma mestre em disfarce. Entretanto, levava trinta e dois anos sem sentir-se atraído por uma mulher com a mesma intensidade com que Kit lhe atraía. Resultava lógico que também achasse atraente a sua irmã gêmea, mas custava acreditar que agora uma total desconhecida pudesse lhe excitar exatamente da mesma forma. Se não tivesse feito o ridículo com Kathryn Travers, teria tirado a máscara à força da dama misteriosa. Menos mal que tinha desaparecido na multidão antes que ele sucumbisse à tentação. Com um sorriso irônico, terminou o conhaque. Era difícil mostrar-se racional quando ainda vibrava no ar a música de valsa procedente do salão de baile. Cada compasso lhe recordava a sensação que tinha lhe causado ter sua acompanhante nos braços. Talvez a dama de azul fosse uma maldita prima Travers, e por isso o tinha afetado da mesma forma que Kristine e Kathryn. Pela manhã faria umas quantas perguntas para ver se podia averiguar quem era na realidade aquela dama, mas agora era o momento de ir dormir. Depois de tirar o casaco e as botas, recordou que não tinha fechado a porta com chave. Cruzou o quarto, e estava pegando a chave quando de repente a porta se abriu tão violentamente que quase o golpeou no rosto. Em seguida lady Némesis apareceu por ela com a capa azul, os cachos de cor loira cinza e as falsas rugas de sua parceira de dança. Com os olhos exagerados, ela ofegou: — Harford vem me seguindo os passos. Por favor... As explicações podiam esperar. Imediatamente fechou a porta e deu volta à chave na fechadura. — Meta-se na cama e tape-se com as mantas até a cabeça. Fique quieta e não fale. Ao mesmo tempo em que ela se lançava em direção à cama, ele tirou a gravata e a jogou em um lado, e a seguir tirou as abas da camisa para fora das calças. Quando estava desabotoando o botão da gola, um punho golpeou a porta e se ouviu a voz de Harford ladrando: — Abra! — Vá embora — respondeu Lucien em tom irritado. — Estou ocupado. — Enquanto falava, usou uma mão para revolver o cabelo e a outra para beliscar o pescoço e deixar uma marca vermelha que parecesse uma dentada amorosa. Harford bramou: — Maldito seja, Strathmore, me deixe entrar! — Está bem, está bem — disse Lucien de mau humor. — Já vou. Deu uma olhada na cama, onde Kit era uma forma longa e curva sob as mantas. Estava totalmente oculta exceto por uma parte de seda azul que aparecia por um lado da cama. Lucien colocou o revelador pedaço de tecido para dentro e cruzou devagar o quarto, sem pressa. Depois de apagar todas as velas exceto uma e compor uma expressão de intensa exasperação, abriu por fim a porta. — A casa está pegando fogo? Não me ocorre nenhuma outra coisa que seja tão importante para não poder esperar até manhã. No corredor se achava Roderick Harford, com os olhos jogando faíscas e as roupas desordenadas. — Quero à mulher que tem aí! Lucien elevou as sobrancelhas. — Não pode levar-la. É minha, e estou desejando voltar para o que estávamos fazendo. — A vadia tentou me roubar! A peguei revistando minha mesa, a descarada. 118


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— Oh? — Lucien cruzou de braços e se apoiou contra o marco da porta. — Não pode ter sido recentemente, porque eu a tenho ocupada há uma meia hora, mais ou menos. — Mas eu a vi entrar neste quarto! — Aqui não — disse Lucien com segurança. — Sua pombinha deve ter batido em outra porta. Parecem todas iguais. Com expressão agressiva, Harford tentou entrar pela força. — Quero ver quem tem na cama, e não penso ir até ter visto. Lucien lhe bloqueou a passagem colocando um braço através do vão da porta, lhe fazendo frear em seco. — Certamente, não posso consentir isso — disse em tom perigosamente suave. — Não estou lhe pedindo permissão, Strathmore!— Harford tentou de novo abrir passagem pela força. Então Lucien o agarrou pelo braço direito e o pôs às costas. Quando Harford começou a sacudir-se violentamente, Lucien lhe retorceu o pulso até um ponto em que a dor começou a ser insuportável. — Se insistir, temo que terei que lhe expulsar — disse isso com frieza, - seria deplorável, não é de boa educação matar o irmão do anfitrião. Harford, compreendendo de repente as circunstâncias nas quais se achava, deixou de lutar. Lucien lhe soltou o pulso, mas o outro ainda não tinha terminado, e disse furioso: — Você e essa rameira trabalham juntos, não é mesmo? Lucien fechou as pálpebras. — Está começando a me irritar, Roderick. Estou respeitando a intimidade dessa dama por razões que nada têm a ver com você. —Por quê? Lucien voltou os olhos para o teto. — Além do normal comportamento cavalheiresco, existe o lamentável fato de que nem todos os maridos são tolerantes com as diversões de suas esposas. Depois de outro silêncio, Harford soltou um sorriso envergonhado. — Uma mulher casada. Deveria ter imaginado. — Sim, deveria ter imaginado. Agora, faça o favor de procurar a sua traiçoeira amiguinha em outra parte. A porta do lado dá a uma escada de serviço, não? Pode ser que tenha escapou por aí. Harford franziu o cenho. — Suponho que sim. Com esta pouca luz e de longe, era difícil distinguir que porta ela abriu. — Quando já se voltava para partir, acrescentou em tom brusco —: Eu sinto muito, fui um impertinente. — Desculpa aceita. Não volte a me incomodar por esta noite. — Lucien fechou a porta e a trancou, e a seguir a escondeu debaixo da almofada de uma cadeira próxima. Desta vez, por Deus que a moça não ia escapar. Escutou o ruído dos passos de Harford ao se afastar e depois o fraco chiado da porta da escada de serviço. Com sua habitual curiosidade, Lucien tinha explorado aquela saída pouco depois de chegar. Harford vagaria durante um bom momento pelo térreo da casa antes de renderse totalmente frustrado. Então se voltou para a cama e disse: — Você já pode sair. Com uma expressão de cautela no rosto, Kit empurrou as mantas e se sentou na cama, rodeada de uma massa de roupa branca e seda azul. No ambiente flutuavam um milhão de emoções distintas: fúria, engano, desespero e desejo. Sobretudo, desejo. Mas quanto a Lucien, a fúria ocupava o maldito segundo lugar. 119


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— Então realmente era você antes — disse em tom grave e duro. — Me alegro de saber que meu instinto não se equivocava. O que tem a dizer desta vez em seu favor? Ela fez uma careta. — Que te encontrar nestas circunstâncias é em certo modo pior que fazer frente a Roderick Harford. — Com uma desdenhosa falta de respeito pela custosa seda, limpou a maior parte da maquiagem com a borda da capa. Depois de recuperar um aspecto ligeiramente sujo e muito mais jovem, acrescentou em tom irônico —: Só lhe provoquei uma vez. O humor de Kit inflamou um pouco mais a fúria de Lucien. — Talvez devesse ter arriscado com ele. Pediste-me ajuda. E desta vez, minha amiga embusteira, terminou toda a credulidade. Ela adotou uma expressão grave. — Tendo em conta o que suportaste de mim, não me surpreende. Durante o longo silêncio que se seguiu, ele viu brilhar uma série de diferentes emoções em seus olhos: arrependimento, dúvida, desejo, e por fim determinação. Tinha as mãos entrelaçadas no colo. — Sei que tenho uma dívida com você faz tempo — disse em voz doce. — Em uma ocasião quis me levar para a cama. Se isso seguir de pé... Bom, aqui me tem. De novo o surpreendeu, desta vez por sua franqueza direta e sem rodeios. Lançou um suspiro nervoso. Embora lhe desgostasse a implicação de que aquela oferta nascia da obrigação mais que do desejo, não havia forma de negá-la. Os escrúpulos de caráter cavalheiresco eram uma triste questão a ter em conta quando os comparava com a paixão que lhe abrasava as veias. — Será melhor que esteja falando sério — disse tenso, — porque desta vez não terá a possibilidade de mudar de opinião nem de suplicar clemência. — Se houver alguém que suplique clemência, não serei eu, Lucien. — Estendeu-lhe uma mão fina e forte. — Já estou farta de mentiras. É hora de um pouco de sinceridade. Lucien soube com absoluta certeza que dessa vez ela não escaparia, entretanto oferecia uma aparência quebradiça, certo medo no olhar depois do episódio com Harford. Lucien franziu o cenho. O medo não era bom para a cama. Queria que ela se mostrasse tão faminta, tão vulnerável como ele se sentia. Isso significava que ele devia controlar a si mesmo e ao mesmo tempo fazer-la sentir um ardor que se igualasse ao dele. Mas conter-se não seria fácil. No tenso silêncio que flutuava entre ambos se ouvia com clareza a melodia da música. Claro, pensou Lucien com alívio; um pouco de dança reconstruiria o encanto que os tinha unido um momento antes. Esticou o braço e tomou a mão que ela lhe oferecia. — Dance comigo, milady. Depois de um momento de desconcerto, Kit deslizou suas longas e belas pernas para fora da cama e tirou as sapatilhas. Soltou a mão de Lucien e se inclinou graciosamente, como se acabassem de ser apresentados. — Será um prazer, lorde Strathmore. — Embora não fossemos apresentados formalmente — disse ele com igual formalidade, — pelo que entendi você se chama lady Kit Travers. Ela se endireitou, com um sorriso aparecendo em seus olhos. — Sabia que seria só uma questão de tempo para que você ficasse sabendo quem eu sou. De todas as formas, Jane é um de meus outros nomes. — Pensei em ti te chamando por um centenas de nomes: lady Jane, lady Némesis, lady Caprichosa. Mas Kit é melhor, resolvido e pouco convencional, como você. — Tirou-lhe a peruca loira e depois lhe soltou o cabelo até formar uma nuvem de seda. Cada movimento, cada contato das pontas de seus dedos era uma carícia. 120


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— Mmnn. — Kit sorriu lentamente. — Que sensação tão maravilhosa. Não é de se estranhar que os gatos gostem que lhes cocem a cabeça. Ainda usava as luvas de pelica, de modo que Lucien lhe levantou a mão esquerda e começou a lhe tirar a luva. Em seguida lhe beijou a frágil pele da parte interior do pulso. Ela fechou os dedos, e seu pulso cada vez mais rápido vibrou contra os lábios dele. Quando repetiu a operação com a mão direita, lhe roçou brandamente a bochecha com os dedos. — Lúcifer, portador da luz — murmurou Kit, — luminoso filho da manhã. — Agora expulso do céu, temo. — Apoiou uma mão na parte baixa das costas, onde a coluna vertebral vibrava com força e flexibilidade. Entrelaçou os dedos de sua mão livre com os dela ao tempo que a arrastava ao ritmo da valsa. — Mas neste momento tenho diante mim uma breve visão do paraíso. Ela se ruborizou e abaixou os olhos. À luz das velas, seu cabelo brilhava com um halo de cor canela. Com mais espaço ao seu dispor que em uma abarrotada pista de dança, puderam se mover mais livremente seguindo o ritmo da música, seus corpos falando diretamente um ao outro. O tapete de desenho vermelho se via muito sensual sob os pés descalços de ambos em seu perambular pela habitação. Embora Kit dançasse bem, como correspondia a uma profissional, no princípio mostrou uma certa rigidez de movimentos, como se sua mente e seu corpo não se adaptassem à música. Mas conforme foram percorrendo o espaço livre do quarto, a música começou a exercer seu mágico influxo e a tensão começou a ceder dos músculos e o rosto de Kit. Ambos formaram um conjunto fluido e harmonioso. Lucien percebia intensamente, fisicamente, o ágil corpo feminino que se movia sob a capa azul. E o contrário também era certo, porque cada um de seus movimentos produzia uma reação igual nela, um equilíbrio dinâmico, sempre existente, entre homem e mulher. Quando chegaram ao fundo do quarto, Lucien soltou os laços da capa de Kit com uma só mão. A seda ondeou para fora ao girar e flutuou oblíqua até desmoronar-se no ângulo que formavam o chão e a parede. Os ombros nus dela resplandeceram como creme quente. Lucien sentiu a boca seca. Ainda não. Ainda... não. Kit tinha fechado os olhos, de modo que estava seguindo o passo que ele marcava somente através do contato e do movimento. Era leve como uma pluma em seus braços. Era estranhamente comovedor que ela ficasse inteiramente em suas mãos, ao menos por esse momento. Agora que tinha conseguido relaxá-la, era o momento de esticá-la de novo. Inclinou-se para frente e beijou o suave ângulo existente entre a garganta e o queixo, deslizando-se para cima, até a elegante curva de sua orelha. Ela conteve a respiração e entreabriu os lábios deixando -se levar por ele em um fluido círculo. O que faria para que abrisse os olhos? Com um extravagante vaivém, inclinou-a para trás, sobre seu braço, sustentando todo seu peso. Ao mesmo tempo introduziu uma perna entre as dela de tal modo que os dois ficaram intimamente ligados entre si. Kit abriu os olhos de repente, surpreendida, e naquelas claras profundidades cinza Lucien viu por fim a paixão que tratava de invocar. Kit se recuperou da surpresa em um instante. — Senhor — disse com ar recatado, — creio que estamos mais juntos do que é apropriado. — E enquanto dizia isto, apertou lentamente as coxas ao redor dele. Lucien sentiu como uma onda de calor lhe percorria o ventre, e disse sem fôlego: — Certamente que sim. — Voltou a levantá-la e a fez dar voltas por todo quarto. — E ainda vamos estar mais juntos. 121


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Começou a improvisar passos que eram muito eróticos e audazes para praticar em público. O flexível corpo de seu par de dança se adaptou a ele sem esforço, como se fosse uma prolongação de si mesmo. Os corpos de ambos se reuniram em carícias lentas e contínuas, e depois se separaram, só para unir-se de novo com mais ardor. Converteram-se em parte da própria música, deixando que seu ritmo vibrasse em seu sangue enquanto executavam aquela ardente dança de acasalamento. Quando a música deixou de se ouvir, eles se fundiram em um abraço, balançando-se juntos no centro do quarto. Beijaram-se com fome, ela esfregou sua pélvis contra a dele com malvada provocação. Lucien gemeu, sentindo-se endurecer em contato com o suave berço daqueles quadris. Havia passado a hora de conter-se. Lucien desatou os laços que fechavam o vestido dela pelas costas e deixou que a peça caísse de seu corpo. Com os olhos nublados de desejo, ela deixou escapar um leve estremecimento. O vestido deslizou por seus braços e quadris até ficar enrugado a seus pés, deixando-a coberta tão somente pela anágua e o corpete engenhosamente cheio que dissimulava sua estilizada figura. Lucien, com o olhar cravado no dela, desenredou os laços da parte dianteira do corpete. Este se abriu e revelou seus seios como sombras brandamente arqueadas sob o fino tecido da anágua. Tomou os seios em suas mãos, acariciando os mamilos com o polegar. Ela arregalou os olhos e passou a língua pelos lábios sentindo como foram se endurecendo os sensíveis botões. Cada movimento de seu corpo era um sinal de desejo. Entretanto, Lucien se deu conta de que o desejo não bastava. Inclusive mais que a paixão, ele queria uma intimidade emocional que inundasse todos os lugares solitários de sua alma. Ao soltar o corpete, tentou captar seu olhar, desejando intensamente que o olhasse, que compartilhasse os mistérios de seu esquivo coração. Mas em lugar disso, Kit deu um passo e deslizou os braços sob a camisa solta dele, o abraçando pela cintura, enquanto afundava o rosto no triângulo de pele que a gola da camisa deixava descoberto. Seus seios se esmagaram contra o peito dele ao mesmo tempo em que percorria com as mãos os firmes músculos das costas. Admirando a contra gosto a destreza com que ela tinha esquivado seu olhar, deslizou a anágua pela cabeça e a jogou a um lado. — Está usando muita roupa. — Você também — replicou Kit. Tirou-lhe a camisa do mesmo modo e a jogou no chão. — «Agradáveis eram suas formas» — recitou com voz afônica, — «e encantadoras». Lucien teve que rir pelo disparatado de sua imaginação. — Pelo que eu me lembro, Lúcifer tem a forma de uma serpente quando Milton disse isso. — Não há uma serpente aqui perto? — Kit aproveitou que ele estava sem camisa para beijar ardentemente seu peito nu. Deslizou as mãos ao interior do cós de suas calças. Ele deixou escapar um áspero gemido, e suas mãos se fecharam convulsivamente ao redor das nádegas dela, cujas maduras curvas se adaptaram perfeitamente a suas palmas. Meio elevando-a do chão, amoldou a carne maleável dela aos duros ângulos de seu corpo. Ela lhe mordeu no ombro, e isso fez que se desintegrasse o último resquício de controle que ficava em Lucien. Despiu a calça e o calção e levou Kit até a cama. Ambos se deixaram cair sobre o colchão com um impacto que fez ranger a armação. Lucien a deitou de costas sobre os travesseiros, querendo absorvê-la para si, dar um banquete com sua embriagadora feminilidade. Sua boca se apoderou da dela, aberta e exigente. Ambos se retorceram juntos como gatos selvagens, os quadris dela esfregando-se contra os dele. Lucien, febrilmente, enterrou o rosto na fenda entre seus seios, que cheirava a uma mescla de aromas: suor, sal e cravos. Não se cansava dela. Quando tomou um dos mamilos na boca, Kit 122


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estremeceu da cabeça aos pés, com a cabeça voltada para trás e o peito subindo e descendo, procurando ar. Só usava as meias de seda. Incapaz de resistir à deliciosa curva de seu abdômen, Lucien o percorreu com beijos, acariciando com seu hálito a sensível pele daquela área. Kit gemeu e agarrou a cabeça dele entre as mãos para lhe apertar o rosto contra seu ventre. Lucien, embriagado por seu doce calor, moveu-se para cima e se colocou entre suas pernas para lhe separar com as coxas os joelhos que já se abriam para recebê-lo. Ao fazê-lo, viu a mariposa tatuada como um convite, aparecendo bem por cima da liga que segurava a meia. Inclinou-se e pegou os lábios dela, e sentiu a vibrante força vital dela contra sua língua. Ela abafou uma exclamação e fechou os dedos espasmodicamente, agarrando punhados de tecido entre as mãos. Lucien deixou escorregar os dedos através dos suaves cachos de seu sexo e os introduziu entre as dobras úmidas e quentes. Kit lançou um gemido de delírio ao sentir aqueles dedos acariciadores, sondando e preparando. Sacudido pela urgência, Lucien se situou de forma que pressionasse o ponto mais íntimo. Kit arqueou as costas e entrelaçou os tornozelos cobertos pelas meias de seda nos tornozelos de Lucien. Então, em um único impulso, ele a penetrou. Kit lançou um grito — um grito de surpresa, não de prazer— e arranhou com as unhas as costas dele em um espasmo de dor. Ele ficou rígido de repente, os músculos dos braços e dos ombros duros como o granito, e ficou olhando com incredulidade. — Por todos os diabos! — explodiu, ao mesmo tempo em que seus olhos perdiam o brilho dourado da paixão e se voltavam de um verde furioso. — Por que não me disse isso?

Capitulo 23

Kit, trêmula, fechou os olhos. Provavelmente aquilo era outro sonho ruim e logo despertaria. Mas o peso e a textura do corpo que a pressionavam contra a cama, a aguda e íntima sensação de mal-estar, tudo isso era inevitavelmente real. Abriu os olhos. Tenso e perigoso, Lucien pairava sobre ela, com a poderosa largura de seus ombros delineada pela luz da vela. — Não... Não acreditava que tivesse que sab er — sussurrou Kit. — Não tinha idéia de que doesse tanto. Ele abaixou a cabeça e apoiou a testa na base do pescoço dela, com um estremecimento. Depois de um longo instante, suspirou e voltou a levantar a cabeça. — Teria doído muito menos se eu tivesse sabido de antemão. Nem sequer a melhor das atrizes é capaz de fingir tudo, pequena. — Seu aborrecimento havia passado deixando atrás de si uma triste ternura. Lucien se inclinou de novo e lhe roçou os lábios com os seus em uma etérea carícia. — Eu sinto muito. Deveria ter imaginado que contigo nada é simples. Agora procura relaxar, o pior já passou. Ele estava certo. Aquela dor dilaceradora tinha durado só um instante, e a incômoda sensação também ia minguando. Lucien não se moveu simplesmente se limitou a acalmá-la com delicados beijos na face e no pescoço. Sua urgência se transformou em paciência, embora o suor que fazia brilhar seu torso era testemunha de que aquele controle não era fácil. Kit sentiu que seu corpo começava a aceitar aquela presença alheia como algo natural. O forte desejo sensual, que tinha se esfumado no momento em que os dois corpos entraram em 123


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contato, começou a reviver. Com muito cuidado, Kit elevou os quadris. Não sentiu dor, tão somente um novo tipo de compressão que era ....curiosa. Voltou a mover-se com mais força. Ele deixou escapar uma exclamação abafada, e ela notou o membro duro e suave vibrando em seu interior. — Será melhor que vá com cuidado — ofegou Lucien, — porque estou a ponto de explodir. — Então exploda, Lucien — disse Kit com a voz rouca, — mas terá que me dizer o que tenho que fazer. — Só... Só te mova ritmicamente contra mim. Empurrou um pouco mais para dentro. Kit respondeu a aquele movimento, sentindo o ponto de inflexão entre os dois corpos. Uma aguda sensação de prazer formigou nela em lugares recém descobertos. — Assim? — perguntou sem fôlego. — Deus, sim — gemeu Lucien. — Exatamente assim. Ele investiu de novo, e desta vez o corpo dela reagiu instintivamente, entendendo já o que sua mente ainda não tinha dominado. Os ritmos formavam parte essencial dela tanto como a medula dos ossos. Um estranho desejo. Hábil fricção e calor líquido. Desejo. Necessidade. Lucien emitiu um som afogado e começou a entrar e sair dela, aprisionando-a com seus músculos e sua implacável força, com uma resolução que também era liberação. Aquele não era o amante atencioso de Clarendon, que a levou lentamente até o clímax, a não ser um homem exigindo o que era seu direito. Ele enchia seus braços e seus sentidos, o gosto, o tato. Já não estava sozinha... Com uma súbita sensação de pânico, Kit se deu conta de que ele estava penetrando sua alma tão profundamente como seu corpo, derrubando aquelas defesas que tão penosamente tinha construído. Tentou regressar até a segurança de ser uma mera observadora, mas foi impossível. Sentia-se totalmente vulnerável, necessitada do calor e da força de Lucien com tal desespero que sua vontade se fazia pedacinhos. Lucien introduziu uma mão entre ambos e tocou em Kit intimamente, lhe produzindo um violento prazer que a arrastou ao torvelinho. Quando ela gritou, ele enterrou o rosto no ângulo formado pela cabeça e o ombro. Aspirou bruscamente, e uma selvagem sacudida passou do corpo dele ao dela. Kit esteve a ponto de sair de si mesma, perdendo o controle, arrasada tanto pela força arrebatadora de Lucien como pela comoção que lhe produziu a satisfação física. Por fim passou a tormenta, e a deixou tremendo pela impressão. Santo Deus se tivesse sabido, teria saltado pela janela antes que deixar que ele a tocasse. Deveria ter suposto que lhe pedir ajuda alteraria de forma irrevogável o equilíbrio que havia entre eles. Mas em lugar disso, tinha-lhe confiado de boa vontade — inclusive com avidez— seu corpo, acreditando que seguiria sendo a proprietária e senhora de sua própria alma e de seu próprios segredos. Esteve louca ao acreditar que ia poder reservar para si alguma parte de si mesma quando alcançassem aquele grau de intimidade. Reconheceu assustada, que estava disposta a lhe dar qualquer coisa que ele lhe pedisse. E que Deus tivesse piedade se ele não era digno de confiança. Enquanto Kit tentava conter as lágrimas, Lucien rolou para um lado e a abraçou contra si. Suas mãos a acariciaram lentamente, tão suaves agora como exigentes antes. Disse em voz baixa: — Sempre foi você, todas as vezes, não é mesmo? Kit assentiu, com o rosto apertado contra a garganta dele. — E é Kathryn, não Kristine. — Era uma afirmação, não uma pergunta. Em um ato reflexo, tentando mantê-lo a certa distância, Kit perguntou: — Por que diz isso? — Minha cabeça aceitava que deviam ser duas mulheres distintas, mas meu instinto não 124


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achava o mesmo. — A anágua de Kit tinha aterrissado por acaso sobre a cama, de modo que Lucien a utilizou para limpar com cuidado as gotas de sangue que ela tinha entre as pernas. — Esteve magnífica interpretando o papel de atriz mundana, mas inclusive em seu momento de maior descaramento se notava um certo acanhamento por baixo. Refleti um pouco sobre isso. Ela fez uma careta. — Como disse antes, existem limites em que uma atriz é capaz de fingir. Eu sei imitar Kira muito bem, mas nem sempre consigo usufruir disso. — A prova definitiva foi sua virgindade. Kristine pode ser muitas coisas, mas duvido que seja virgem. — Fez um gesto. — Se tivesse feito caso de minha intuição em lugar de minha lóg ica, não teria te feito tanto dano. — A virgindade é uma brincadeira de mau gosto que a natureza joga à mulher — disse Kit com seriedade. Lucien sorriu abertamente e depois se esticou junto dela com a cabeça apoiada na mão. — Me disseram que você sempre estava na retaguarda de sua irmã, o que implicava que você era inferior a ela, mas não era certo, verdade? Qualquer coisa que Kira fizesse, você a fazia igualmente bem. Quando ela interpretou o papel de Sebastian, o gêmeo varão de A Décima Segunda Noite, você representou Viola, que na realidade é o papel maior e mais vital dos dois. Quando ela se banhava nua no rio ou montava a cavalo vestindo calças, você estava bem a seu lado, igualmente valente e atlética. E como eram gêmeas idênticas, apostaria que você instigou a parte de travessuras que te correspondia. Kit ficou olhando, completamente estupefata. — Como você sabe disso? Nunca ninguém mais se deu conta, nem sequer a tia Jane. Todo mundo supunha que Kira era sempre a que tomava a iniciativa. — Porque os gêmeos idênticos são ao mesmo tempo iguais e diferentes, e por isso algumas pessoas acham difícil tratar com eles — disse Lucien. — É mais fácil e mais cômodo os enquadrar. O gêmeo atrevido, o gêmeo tímido. A irmã boa, a irmã má. — Seus olhos brilhavam divertidos. — Imagino que Kira é menos indômita do que as pessoas supunham, e que você é menos respeitável, apesar da esplêndida interpretação de personagem afetado e dissimulado que fez de lady Kathryn. — Tem razão em que muitas pessoas preferiam nos considerar opostas em lugar de variações de um mesmo tema — admitiu Kit. — Também há o que Kira e eu chamávamos «essas pessoas», pessoas que só falavam com uma de nós e ignoravam à outra como se não existisse. Estávamos acostumadas a brincar a respeito. — Provavelmente também brincavam com sua semelhança e riam entre vocês da credulidade das pessoas. Kit sorriu um pouco. — Quando alguém dizia: a fita de Kristine é vermelha e a de Kathryn é azul, nós trocávamos as fitas e a maneira de nos comportar assim que essa pessoa dava a volta. Mas claro que somos distintas em muitos aspectos. Como te disse na casa de Jane, Kira possui o tipo de encanto e vitalidade capaz de pôr em pé um teatro inteiro. Ela sempre foi extrovertida e muito mais disposta a provar coisas novas que eu. Eu sou a correta e a formal. Lucien elevou as sobrancelhas em um gesto exagerado de incredulidade. — Correta? Formal? É esta a mulher que me tem feito brincar de correr pelos telhados e as casas de Londres? — Isso foi por necessidade, não por decisão própria — repôs Kit com seriedade. A atitude divertida de Lucien desapareceu. — Tudo isto tem que ver com Kira, não é mesmo? Aconteceu-lhe algo. 125


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O medo que tinha cedido um pouco durante a conversa em tom de brincadeira reapareceu agora, lhe retorcendo o estomago como uma faca. — Minha irmã não é assunto seu. Em tom calmo, implacável, Lucien disse: — Conta-me. — Porque você quer saber? Mas Kit deu a volta para o outro lado e se sentou, tapando-se com o lençol. — Por que você quer saber? — Não teria se arriscado a vir a este baile e enfrentar Roderick Harford se não estivesse desesperada. Necessita de ajuda, Kit. Por que não aceitar a minha? Ela olhou para outra parte; tinha medo e não queria explicar por que. Como se lesse a sua mente, ele lhe disse: — Por que não quer confiar em mim? — Não posso me permitir o luxo de cometer um erro — respondeu ela, tensa. — Há muitas coisas em jogo. — Eu nunca lhe faria mal, nem a sua irmã, e você sabe no fundo de seu coração. Kit sabia, mas o fato se saber não eliminava sua cautela. Tentou ganhar tempo contando parte da verdade. — Os homens nunca me pareceram muito dignos de confiança. Meu pai era capaz de encantar uma serpente, mas ai daquele que se atrevesse a confiar nele! — Eu não sou seu pai. — Lucien lhe pegou a mão, fria em comparação com seus dedos quentes. — Me esforço muito por fazer o que digo que vou fazer, e em geral me consideram muito bom na hora de resolver problemas. Por que não me deixa que eu tente resolver os seus? Contra sua vontade, Kit surpreendeu a si mesma se deixando levar pelo impulso de dizer o que teria preferido manter em segredo. — Não é em você que não confio, a não ser em mim mesma. Não é bom estar sozinha, Lucien. Durante os primeiros dezoito anos de minha vida, sempre tive Kira. Fomos mais duas metades de um todo que duas pessoas individuais. Sabíamos que precisávamos nos separar e desenvolver cada uma nossa própria vida, mas eu fracassei em tentar ser independente. Sinto-me incompleta, como um... Um ramo de hera que busca em volta um suporte a qual se agarrar. Não creio que lhe agradasse. Nem sequer agrada a mim mesma. — Subestima suas forças, Kit. Isso que te preocupa tanto pode ser que nunca ocorra. — Seu dedo polegar traçava lentos círculos na palma dela. — Não permita que seus medos ao que poderia ocorrer se interponham em seu caminho de ajudar Kira. Nesse momento se desmoronou toda sua resistência. Enterrou o rosto entre as mãos, pensando que ele tinha chegado ao miolo do problema. A segurança de Kira era muito mais importante que a probabilidade de que Kit fizesse o papel de tola se apaixonando do rico, poderoso e libertino conde de Strathmore. Além disso, tinha a desagradável sensação de que se não lhe contasse o que estava acontecendo, ele pinçaria no mais profundo de sua mente e terminaria deduzindo tudo. E ela não podia suportar que ele invadisse seus pensamentos mais do que já tinha feito. Levantou a cabeça e disse em tom cansado: — É uma longa história. — Nesse caso, nos ponhamos cômodos. — Saiu da cama e pegou uma camisa do armário. — Ponha isto. A um homem e uma mulher torna-se mais fácil falar com sensatez se estão vestidos e em posição vertical. Kit se desprendeu do lençol e obedeceu. As volumosas dobras da camisa a cobriam quase até os joelhos. Absurdamente, ainda usava as meias, de modo que Lucien as tirou e as lançou para 126


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onde descansava o resto de seus objetos. A seguir ela se sentou com as pernas cruzadas na cama. Lucien vestiu um roupão de lã de uma cor azul intensa que fazia com que seu cabelo reluzisse como ouro fundido. Depois de avivar o fogo, extraiu de sua bagagem uma garrafa plana e prateada, verteu um pouco de seu conteúdo de cor âmbar em dois copos e entregou um a Kit. — Beba isto. Ela obedeceu mansamente. O conhaque não podia desfazer o nó que tinha no estomago, mas ajudou a lhe aquietar as mãos. Lucien se sentou a seu lado sobre na cama e se recostou contra a cabeceira da mesma. — O que aconteceu a Kira? Ela olhou seu copo. — Não sei, e não tenho certeza de por onde começar. — Começa por onde quiser. Podemos passar toda a noite aqui sentados, se for necessário, e nesta época do ano as noites são muito longas. — A maior parte do que te disse na casa de Jane é verdade. — Fez um gesto. — Embora me passei um pouco falando mal de Jane. Não é a tirana que dei a entender. Sem sua cooperação, jamais teria podido fazer o que tenho feito até agora. —Ela não expulsou Kira de sua casa? — Não, embora seja verdade que não está precisamente encantada com a carreira que minha irmã escolheu. Bom, nem eu tampouco. Mas Kira estava totalmente decidida a pisar no palco, então eu o aceitei. Mantínhamos bastante contato, nos escrevendo uma à outra quando ela trabalhava em teatros de províncias. Quando estava em Londres, víamo-nos cada uma ou duas semanas, normalmente quando íamos ao mercado. — Kit hesitou, perguntando-se se alguém que não fosse gêmeo poderia entender. — Não necessariamente para falar, a não ser só para... Nos ver. Nem sequer marcávamos. Simplesmente... Sabíamos quando era provável que nossos caminhos se cruzassem. Lançou um olhar ao rosto dele, mas este aceitou o relato com naturalidade. — Kira vive no Soho? Kit assentiu com um gesto. — Possui uma pequena casa e utiliza a parte de abaixo para ela. O apartamento de acima uma amiga dela alugou, outra atriz que se chama Cléo Farnsworth. Kit ficou em silêncio, e Lucien insistiu: — Quando descobriu que algo andava mal? — O dia de nosso aniversário, vinte e um de outubro. Sempre o celebramos juntas. Sempre. Quando ela estava trabalhando em províncias, vinha a Londres. Em uma ocasião em que não foi possível escapar, eu tomei o coche do correio até Yorkshire para que pudéssemos estar juntas. Este ano tínhamos decidido nos reunir em sua casa para jantar tranqüilamente. — tragou-se o terror que a assaltou ao recordar - Na noite anterior, tive um pesadelo e despertei com uma horrível ansiedade, mas não relacionei o fato com Kira. Entretanto, no mesmo instante em que entrei em sua casa, soube que passava algo horroroso. — Havia sinais de luta? — Não, só... Um vazio. Um vazio horrível em que ressonava o eco, embora tudo estivesse exatamente como tinha que estar. — Fechou as mãos ao redor da taça de conhaque. — A única coisa diferente era que sua gata, Viola, estava esfomeada, como se nesse dia não tivessem lhe dado de comer. Depois de dar de comer à gata, subi ao andar de cima para falar com Cléo, que já conhecia de outras ocasiões. No princípio Cléo pensou que eu era Kira e reclamou por ter perdido um ensaio. Quando lhe expliquei que era Kathryn, Cléo se preocupou muito. Disse que Kira se foi de Marlowe, como de costume, depois da função da noite anterior e que ela não a tinha visto após. 127


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Mas Kira jamais perde os ensaios. Devem tê-la seqüestrado no caminho para casa. Depois de um breve instante de vacilação, Lucien disse com suavidade: — É de supor que terá tido em conta a possibilidade de que ela tenha sido assassinada por malfeitores e que seu corpo tenha sido jogado no rio. — Você acredita que está morta, não é mesmo? Bom, pois não está — disse Kit com veemência. — Pode ser que não consiga entender, mas ter um irmão gêmeo é como estar conectado a outra pessoa por meio de um cordão invisível. Em determinado nível, sempre tenho consciência da existência de Kira. Se morresse, eu saberia imediatamente. Sente-se desgraçada, às vezes terrivelmente assustada, mas está tão viva como eu. Esperava cepticismo, mas Lucien se limitou a dizer: — Se isso for assim, certamente o seqüestro é a possibilidade mais próxima. Sabe de alguém que pudesse querer seqüestrá-la, e por quê? Verdadeiramente ele acreditava nela! Quase tonta de alívio, Kit respondeu: — A última vez que jantei com Kira, aproximadamente um mês antes, mencionou por acaso um admirador que estava resolvido a convertê-la em sua amante. Ela zombou daquilo, mas nesse momento eu pensei que não teria mencionado aquele cara se não lhe tivesse parecido inquietante. — Então você pensa que esse homem decidiu que se ela não queria ir com ele voluntariamente, a tomaria pela força — disse Lucien com o cenho franzido. — É a única explicação que tem sentido. O risco para ele seria mínimo, a ninguém surpreenderia o desaparecimento de uma jovem atriz — disse Kit com mais que um pingo de ironia. — Já que todas as atrizes são consideradas umas prostitutas, todo mundo suporia que escapou com algum homem que lhe tivesse feito uma oferta irresistível. — Quando Kira mencionou esse cara, disse algo mais que pudesse te ajudar a identificá-lo? — Não, mas sempre utilizava um pequeno caderno para lembrar-se dos compromissos e outras coisas que não queria esquecer. Quando desapareceu, eu revistei seu apartamento até encontrar esse caderno. A maior parte do que continha eram coisas sem importância, mas encontrei vários comentários exasperados a respeito de um homem que não aceitava um não por resposta. — Kit contraiu as feições. — Kira o chamava lorde Demônio. Também incluiu umas quantas observações críticas sobre o clube dos Demônios. — Não me surpreende que você tenha vigiando o grupo. — Lucien franziu o cenho. — Mas por que você correu tão graves riscos? Poderia ter contratado um perito, talvez um mensageiro de Bow Street, para que procurasse Kira. Kit sorriu sem humor. — Foi exatamente isso o que eu fiz. O senhor Jones fez tudo o que estava em sua mão. Encontrou um bêbado que acreditou ter visto como obrigavam uma mulher a subir em uma carruagem não longe do teatro Marlowe na noite em que Kira desapareceu. Mas estava chovendo, e o homem não soube dar detalhes da mulher nem dos seqüestradores. O senhor Jones não pôde inteirar-se de nada mais, embora conta com informantes em toda Londres. É como se Kira tivesse desaparecido da face da terra. — Assim decidiu tomar o assunto em suas mãos, arriscando sua vida e sua liberdade. — A melhor maneira de conhecer a vida de Kira era me colocando nela, me converter eu mesma em Cassie James e conhecer às pessoas que a rodeavam — disse Kit na defensiva. — Como Cléo era a única pessoa de Marlowe que sabia que Kira tinha uma irmã gêmea, a ninguém lhe ocorreu pensar que eu não era a verdadeira Cassie James. Eu tinha visto Kira atuar muitas vezes, de modo que não foi difícil fingir ser ela. — Assim não foi difícil fingir que era a atriz cômica mais excitante que tinha aparecido em Londres em vários anos — murmurou Lucien. - Isso se deve ser uma obra mestre de 128


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autoconhecimento. — Não poderia ter feito sem a ajuda de Cléo. Ela me disse tudo o que precisava saber do resto da companhia de Marlowe e como me comportar fora do palco. Quanto à personificação em si, você esteve exatamente certo ao dizer que se Kira fingia ser eu quando queria passar despercebida, eu podia fingir ser ela quando pretendia o mesmo. — Kit sorriu ironicamente. — Posso manter a ilusão de ser Kira durante umas horas, mas resulta exaustivo ter que brilhar todo o tempo. Lucien mudou de postura, fazendo que o roupão se abrisse distraidamente no peito. — E sobre a famosa tatuagem? Kit se obrigou a desviar o olhar da fascinante visão daquele pêlo dourado que salpicava seu musculoso torso. — Fui ao mesmo homem que tinha feito a tatuagem em Kira. — esfregou o lugar concreto. — Arde um pouco. Lucien afastou de um lado da camisa que Kit usava e estudou a mariposa que dançava sobre a face interior da coxa. — Deveria ter adivinhado quando beijei o desenho e notei que estava um pouco volumoso. Alguém me disse em certa ocasião que uma tatuagem recém feita parece ter relevo, mas tinha esquecido. — Percorreu o contorno da mariposa com a ponta do dedo. — Quando te tenho ao redor de mim, minha mente não funciona muito bem. Então eram dois. O contato de Lucien fazia com que Kit se estremecesse e consumisse por dentro. Afastou-se ligeiramente e voltou a cobrir a tatuagem. Procurando não fazer caso da presença dele, prosseguiu: — Quando Kira se dedicou ao teatro, cortou o cabelo até o ombro para que fosse mais fácil usar perucas, de modo que eu pedi a Jane que cortasse o meu também. Com a parte cortada me fabricaram um aplique, que sempre uso quando quero ser Kathryn. Lucien sorriu. — Então se eu tivesse investigado aquele coque que usava, teria descoberto a verdade. Não acha estranho que naquele dia estivesse tão fria. — Kathryn está acostumada a ser fria — disse Kit em seu mais puro estilo Kathryn. E acrescentou em tom normal—: Funcionou, não é mesmo? — Em efeito, funcionou — admitiu ele. — Kira é de verdade canhota? — Não, é destra. Somos uma espelho da outra, até os redemoinhos do cabelo temos ao contrário. Tive que mentir porque você me viu canhota quando me fazia passar por Kira. Ninguém mais se deu conta da diferença. — Levar duas vidas deve te ter mantido muito ocupada. — Isso é dizer pouco. — afastou o cabelo dos olhos. Depois da impressão inicial que implicou perder a maior parte do cabelo de toda uma vida, ter menos peso foi uma liberação. — Jamais poderia ter conseguido sem a ajuda de Jane e de Cléo, e creio que também a do senhor Jones. Estive sendo constantemente Kathryn e Kristine e vice versa, e ficando na casa que vinha mais à mão. —Obteve resultados com essa dupla personalidade? Ela deixou escapar um suspiro. —Na realidade, não. Observei a todos os homens que se aproximaram de Cassie James, sobre tudo no camarim depois das representações, com a esperança de captar uma nota falsa ou uma expressão de surpresa em alguém que soubesse que eu não podia ser a verdadeira Cassie James, mas não tive sorte. — Talvez o homem que a seqüestrou não foi ultimamente ao Marlowe, e por isso não sabe 129


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que Cassie James continua atuando. — Isso é o que eu penso. — Seu tom adquiriu uma tom de cepticismo. — Se esse cara tivesse me visto e tivesse adivinhado que eu era a irmã gêmea de Kira, provavelmente teria me raptado também. Minha irmã e eu aprendemos muito cedo que a alguns homens fascina a idéia de levar para a cama duas irmãs gêmeas. Depois da morte de meu pai, um de seus credores nos ofereceu mil libras para que nos deitássemos com ele. Lucien fechou os olhos até convertê-los em duas ranhuras felinas. — Me dê o nome desse porco e o desafiarei a um duelo. Sou muito bom atirador. Kit piscou. — Fala a sério, não é verdade? Não é necessário. Kira respondeu lhe derrubando uma taça de chá nas calças. Pareceu-nos uma resposta muito adequada ao insulto. — Deveria ter imaginado que sabiam se proteger sozinhas. — No passado, mas não desta vez. — Kit fixou o olhar em sua taça e fez girar o conhaque nela. — Era pedir muito, pensar encontrar com esse cara me fazendo passar por Cassie James. Essa foi a razão pela qual comecei a me infiltrar nas casas e nas reuniões dos Demônios. — O que estava procurando exatamente? Kira deixou alguma pista reveladora em seu caderno? — Temo que não. — Kit desceu da cama, sabendo que Lucien definitivamente não poderia compreender sua explicação. O senhor Jones e Cléo não a tinham entendido; nem sequer Jane a compreendia de verdade, e isso que conhecia as gêmeas Travers desde que haviam nascido. — No princípio nem eu mesma estava segura, mas pouco a pouco fui me dando conta de que estava procurando uma... Uma espécie de marca psíquica, uma sensação de que um homem tinha estado muito perto de Kira. Sinto-me igual a um cachorro rastreador procurando um aroma determinado, exceto o que procuro eu não é algo físico. — Pode se explicar melhor? — pediu Lucien, intrigado. Ela hesitou. — É um reconhecimento da presença de Kira, suponho. Sempre fui capaz de entrar em uma casa ou em uma loja e saber se ela tinha estado ali recentemente. — Fascinante. Kira pode fazer isso mesmo com você? — Até certo ponto, mas não tão bem como eu. — Esboçou um sorriso torto. — É curioso... Quando éramos mais jovens e líamos muitas novelas góticas, Kira e eu traçávamos planos do que íamos fazer se uma de nós fosse raptada por um malvado príncipe. Agora, em retrospectiva, aquilo parece uma premonição, embora na realidade não era mais que um jogo imaginativo. Jurávamos que pensaríamos muito no homem malvado para que a outra gêmea pudesse o reconhecer como tal. Quando saíamos a montar a cavalo, uma das duas escolhia mentalmente um lugar para esconder uma mensagem e a outra tinha que adivinhá -lo. As duas terminamos sendo peritas em saber o que a outra fazia. Lucien terminou seu conhaque e deixou a taça sobre a mesinha de noit e. —Suas investigações deram algum resultado? — Não tudo o que eu queria — respondeu Kit com tristeza. — Consegui descartar em seguida à maioria dos Demônios jovens. Mas me resulta mais difícil com os mais velhos, os Discípulos. Tenho a impressão de que Kira conhecia todos e não gostava deles. — Começou a caminhar pelo quarto. — Vim a Blackwell Abbey porque acreditava que Harford poderia ser o homem que procuro. Como não pude distingui-lo bem no salão de baile, concordei em ir com ele até o seu quarto. E foi então que me dei conta de que não era ele. Tenho certeza de que ele conhece Kira, mas igualmente tenho certeza de que não a fez prisioneira. Se fosse assim, teria reagido quando tirei a máscara. 130


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— E lorde Mace? — Esse é outro dos principais suspeitos. Tinha esperado encontrar rastros de Kira aqui, mas agora juraria que jamais pôs um pé em Blackwell Abbey. E tampouco esteve na mansão de Chiswick. — O homem que a seqüestrou não teve por que levá -la necessariamente a sua própria casa. — Muito certo. — Kit esfregou a têmpora, tentando aliviar a dor que lhe sobrevinha cada vez que pensava no desaparecimento de sua irmã. — Existem muitas possibilidades. Entretanto, já não sei o que mais posso fazer. Não se pode acusar homens tão poderosos como os Discípulos sem ter provas sólidas como rochas, e eu não tenho nenhuma. O único que tenho é meu instinto. E estou aterrorizada, porque tenho a impressão de que está acabando o tempo. — O laço que tem com sua irmã é a melhor ferramenta de que dispomos — disse Lucien, pensativo. — Temos que encontrar uma forma de utilizá-la. Kit experimentou uma enorme sensação de alívio ao ver a naturalidade com que Lucien jogou sobre si o seu problema. Seria um formidável aliado. E compreendia muito bem a relação dela com Kira. Surpreendentemente bem, de fato. Entreabriu as pálpebras para lhe perguntar: — Como é que sabe tanto sobre irmãos gêmeos? Lucien desviou o olhar. Depois de uma pausa muito rápida, quase imperceptível, disse: — Sempre me pareceu um fenômeno muito curioso, por isso converso com irmãos gêmeos sempre que me topo com algum. Agora que não estava pensando em Kira, Kit se deu conta de que a corrente que fluía entre ela e Lucien era de duas direções; do mesmo modo que ele parecia capaz de perceber os sentimentos dela, ela compreendia de algum modo os seus. E ali havia algo, algo importante. — Há algo mais. Me diga o que é Lucien. Ele fechou os olhos e seu rosto se contraiu. Então, tão incapaz de suportar as perguntas de Kit como ela tinha sido incapaz de suportar as dele, disse dolorosamente: — Em uma ocasião comentei com você que tinha uma irmã que morreu. Elinor era mais que uma irmã. Era minha irmã gêmea.

Capitulo 24

Kit ficou olhando, pasmada. — Santo Deus, você teve uma irmã gêmea que morreu? Como pôde suportar? — Muito mal. — Sua habitual calma se desintegrou e lhe deixou uma expressão rígida e vulnerável. — Foi como... Se me partissem no meio. Kit conteve a respiração e depois se aproximou da cama para abraçá-lo. Sentiu os braços dele que a estreitavam com força e o rosto enterrado no peito, seu corpo inteiro tremendo. Não chorava. Talvez tivesse sido menos horrível se o tivesse feito. Passou-lhe a mão uma e outra vez pelo cabelo e pela rígida nuca. Adivinhou que raramente, se acaso, tinha falado daquela perda. Também experimentou a forte sensação de que já era hora de que falasse dela. Quando Lucien começou a afrouxar o abraço, ela lhe sussurrou: — Me fale de Elinor. Lentamente, ele se separou e desceu da cama. — Linnie era meia hora mais jovem que eu. Disseram-me que o médico pensou que não viveria o suficiente para ver o novo dia, mas ela surpreendeu a todos. Não éramos idênticos, 131


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naturalmente, mas claro muito parecidos fisicamente, exceto que ela era tão pequena que as pessoas supunham que tinha um ano ou dois menos que eu. Caminhou sem rumo fixo pelo quarto, sem fazer ruído com os pés descalços sobre o tapete grosso. — Minhas lembranças mais felizes são todos dela. Sempre ali, sempre sorrindo. Era calada e tão etérea que parecia não ser deste mundo, entretanto era inteligente e muito perspicaz. Quando ambos tínhamos quatro ou cinco anos, lembro-me de ter ouvido sua aia dizer que lady Elinor era um empréstimo que os anjos nos tinham feito e que não permaneceria muito tempo neste mundo. Eu jurei que demonstraria que a aia se equivocava que não permitiria que Linnie morresse. Tinha um sexto sentido no que concernia a ela; se estava metida em problemas, eu sempre sabia; quando estava doente, eu... Eu lhe emprestava minha força. Uma vez saltei de meu cavalinho de balanço e me pus a correr pelo corredor para apanhá-la bem a tempo de evitar que caísse por uma janela. Descuidou-se enquanto tentava atrair um passarinho para o interior da casa. — Sorriu levemente. — Ela também sabia sempre tudo o que eu fazia. Em certa ocasião caí de meu pônei e perdi o sentido, e ela conduziu meu pai diretamente para onde eu estava. Outras pessoas acreditavam que eu era o gêmeo «dominante», mas não era assim. Embora Elinor fosse calada, era ela quem dirigia. Era-me quase impossível lhe negar alguma coisa. Tinha uma veia travessa, mas quando nos metíamos em apuros, eu sempre insistia em que me dessem a culpa e me castigassem, porque era o mais velho. Ela não gostava disso, mas eu não podia suportar que a castigassem, de modo que nesse aspecto eu sempre conseguia o que eu queria. Acreditava que poderia protegê-la para sempre. — deteve-se em frente à janela e afastou as cortinas com uma mão para contemplar a noite monótona. — Mas falhei. — Que idade tinha quando a perdeu? —Onze anos. — fez-se um prolongado silêncio antes que voltasse a falar. — Meus pais eram indulgentes, mas insistiram em me enviar ao colégio aos nove anos embora eu suplicasse em receber aulas de um tutor em Ashdown, com Linnie. Aquela separação foi a experiência mais destrutiva de toda minha vida. Fomos literalmente arrancados um dos braços do outro, os dois chorando como histéricos. Foi triste para meus pais, sobretudo para minha mãe, mas eu era o próximo conde de Strathmore, e os condes de Strathmore sempre estudaram em Eton, e não havia mais o que falar. Passei as cinco primeiras semanas chorando todas as noites, e Linnie fez o mesmo em Ashdown. Escrevíamo-nos todos os dias. Eu vivia só para receber suas cartas. A idéia daquelas duas crianças separadas pela força fez Kity estremecer. Pelo menos, Kira e ela já eram crescidas quando se separaram. — Como irmão gêmeo, estava acostumado a compartilhar à intimidade. Talvez foi essa a razão pela qual fez amizades tão profundas e duradouras em Eton. Lucien franziu a frente. — Nunca tinha pensado nisso, mas pode ser que tenha razão. Certamente, tive muita sorte com meus amigos. O primeiro que conheci foi Michael, aproximadamente duas semanas depois de começar no colégio. Encontrou-me chorando em um canto da capela. A maioria dos meninos teria rido de mim, mas Michael só me perguntou o que se passava. Eu lhe disse que sentia falta da minha irmã gêmea. Ele refletiu um momento e logo disse que seu irmão mais velho era um bruto e que por que não nos tornávamos irmãos adotivos. — Lucien sorriu ligeiramente ao recordar. — Depois daquilo, Eton se converteu em um lugar mais suportável. Linnie e eu nos adaptamos a estar separados, embora nenhum dos dois gosta sse. A separação era mais dura para ela porque não tinha novas amigas nem atividades em que distrair-se. Quando eu ia para casa nas férias escolares, ela estava tão frágil que parecia quase transparente. Mas seu espírito jamais diminuiu. Era como uma chama muito brilhante para a lamparina. 132


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— Morreu de alguma enfermidade? — perguntou Kit em voz baixa. — De um acidente. Um acidente estúpido e fatal. — Seus dedos se crisparam sobre a cortina de veludo. — Foi quase no final das férias de Natal, pouco antes da data em que eu devia retornar a Eton. Vínhamos de uma visita familiar a uns primos e retornávamos a Ashdown em uma dessas grandes e pesadas carruagens de linha. Não longe do caminho havia umas ruínas romanas e Linnie quis ver, de modo que convenci meu pai de que nos levasse. Por fim concordou, eu sabia ser muito persistente. Se não tivesse sido tão... — Não terminou a frase e seu rosto adquiriu uma palidez mortal. — A carruagem se espatifou? Lucien tragou saliva. — Estava chovendo há dias e o terreno estava muito mole. Viajávamos por um atalho em forte declive que rodeava um lago quando a terra afundou sob o peso da carruagem. Caímos colina abaixo, com os cavalos relinchando e agitando violentamente as correias. O condutor e o guarda foram lançados para fora sem maiores danos, embora os dois resultassem feridos. No interior da carruagem reinava o mais puro caos, com nós quatro se chocando um contra os outros. — Deixou a cortina e voltou para centro do quarto. — A carruagem se precipitou no lago. Uma das janelas tinha ficado destroçada e por ela começou a entrar a água. Não recordo ter pensado absolutamente em meus pais; os dois estavam inconscientes por causa da queda, creio. Não tinham a menor possibilidade de salvar-se. Eu agarrei Linnie e a tirei pela janela estreita. A água estava gelada e fiquei intumescido em questão de segundos. Um dos cavalos me golpeou o tornozelo com a pata, mas não senti nada. — Consegui nadar até a borda com Linnie embora nossas roupas molhadas pesavam tanto que tive medo de que nos arrastassem ao fundo. Soprava um vento muito frio. Ela ainda respirava, mas eu sabia que morreria se não a levasse rapidamente a algum refúgio. Havíamos passado al lado uma casa de campo não fazia muito, de modo que tentei levá-la até lá. Lembro que estava furioso porque o tornozelo, que não funcionava como era devido, não me deixava correr. Até mais tarde não soube que tinha um osso quebrado. Nesse dia maltratei de tal modo o tornozelo que às vezes ainda me causa problemas. — Já estava vendo a casa de campo quando Linnie levantou a mão e me tocou o rosto. Ofereceu-me o mais doce, o mais triste dos sorrisos. Eu soube que estava dizendo adeus. E então... e então... — A voz dele se quebrou, e transcorreram longos instantes em silêncio até que ele disse em um sussurro apenas audível —: Notei o momento em que seu espírito a abandonou. De novo Kit foi até ele e o abraçou com força, com o coração afligido pela dor. — Não foi sua culpa — disse com veemência. — Se não tivesse sido por seus cuidados, Linnie talvez não tivesse vivido até os onze anos. Você fez tudo o que era humanamente possível. — Mas não foi suficiente — disse Lucien com expressão sombria. — É absurdo, não é mesmo? Um homem adulto chorando por uma menina que morreu faz mais de vinte anos. Perdi meus pais e minha infância no mesmo dia. Foi horrível, mas sobrevivi, e com o tempo foi apagando a maior parte da dor. Entretanto, ainda não superei a dar pela minha irmã. — Linnie era sua irmã gêmea, seu outro eu — disse Kit com lágrimas nos olhos. — Em certa ocasião, uma cigana disse a Kira e a mim que eram os gêmeos que tinham estado muito unidos em uma vida anterior. É um vínculo que perdura além da morte. — Você entende — disse Lucien com a voz entrecortada. — Creio que só outra irmã gêmea pode entender. Por isso nunca falei sobre isto com ninguém. Oh, Kit, Kit... Sua boca desceu sobre a dela, e a beijou com desespero. Os poderosos sentimentos que ambos tinham experimentado explodiram em uma labareda de paixão, o roupão de Lucien caiu ao chão, a camisa de Kit saiu com um puxão pela cabeça. Alguns poucos passos até a cama, e o peso 133


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de Lucien esmagou Kit contra o colchão. Ela lhe percorreu o corpo com as mãos, aprendendo o que era que lhe dava prazer. A boca dele encontrou lugares secretos, sensíveis, despertando uma sede que a teria envergonhado se não fosse porque estava já além de toda vergonha. Logo veio a união, tão natural como o fato de respirar. O leve desconforto que Kit sentiu foi eclipsado pela excitação, incrementando o prazer que era quase dor. A profundidade do consolo mútuo. Depois, aquela loucura primitiva e cegadora que a arrastou para as alturas até quase extenuá-la. Agarrou-se a Lucien com todo o corpo convulso enquanto ele a penetrava uma e outra vez. Ficaram estendidos em silêncio, um nos braços do outro, esgotados. Kit estava vazia de tudo exceto de uma leve sensação de assombro e uma profunda satisfação que enchia cada uma das células de seu corpo e inclusive se filtrava em todos os voas de sua mente. Pela primeira vez desde que Kira e ela tinham tomado caminhos diferentes, sentiu-se inteira. Era um pensamento perigoso e se apressou a suprimi-lo; a satisfação era algo mais seguro. Acariciou com ternura as costas de Lucien. Não sabia que o corpo de um homem pudesse ser tão formoso, como tampouco tinha entendido como uma mulher podia atirar sua reputação e seu futuro ao lixo por um momento de paixão. Seguia sendo uma necessidade, mas — que o céu a ajudasse — agora entendia. Lucien trocou de lugar o peso e se estendeu a seu lado na cama, dizendo com a voz rouca: — Isto poderia converter-se em um vício. Ela sorriu ligeiramente, compreendendo a necessidade de falar em tom leve de algo tão imenso. Com expressão ausente, Lucien enroscou no dedo uma mecha do cabelo dela. —Vamos ter que nos casar, sabe. Aquelas palavras lhe soaram como um jarro de água fria no rosto. — O que? — Kit teria dado um salto na cama se ele não a tivesse retido com o braço. — Está louco! — Absolutamente — repôs ele com calma. — Conhece as regras tão bem como eu. Quando um cavalheiro compromete uma dama, só seu nome poderá reparar o dano. Assim, eu te ofereço o meu. Lutando para pôr ordem no caos que reinava em sua mente naquele momento, Kit lhe perguntou: — Diria o mesmo se eu fosse Kristine? — A situação seria diferente. Sua irmã escolheu dar as costas aos convencionalismos. Você não, você leva uma vida totalmente respeitável com sua tia. — Sorriu e lhe percorreu o contorno da orelha com a ponta do dedo. — Você mesma disse que um cavalheiro não trata uma dama do mesmo modo que a uma atriz. Apesar de suas atividades irregulares, você certamente é uma dama, e eu sou oficialmente um cavalheiro. Eu quero o matrimônio. Apesar da leveza do tom, Kit soube que Lucien estava falando com toda sinceridade. Percebia que ele tinha a necessidade de proteger às pessoas, em particular às mulheres, uma necessidade nascida do fracasso por não ter podido salvar sua irmã. Kit suspeitou que aquilo não constituía uma boa base para um casamento. A luz da vela brincava com as formas dos músculos de seu corpo e convertia seu cabelo em um halo prateado. Estava impressionante, um anjo nu, indecentemente masculino, descido do céu para poder dominar as artes da sensualidade terrestre. Como seria ser sua esposa, experimentar a paixão e a intimidade sem cessar? Era uma fantasia perigosamente sedutora. Fez um esforço para recuperar o raciocínio e disse: — Não parece muito convincente como defensor da moralidade convencional, Lucien. Você não acredita nas normas da sociedade, e certamente nem sempre as segue. — Pode ser que nem sempre siga as normas — admitiu ele — mas claro que creio nelas. A 134


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condenação social é muito real, todos os dias se destroçam vidas de pessoas que infringem a lei. Não penso consentir que você arruíne a tua porque eu te tirei a virgindade de forma irresponsável. — De coração, sou tão pouco convencional como Kira; simplesmente careço de coragem e das oportunidades que ela tem — disse Kit com aspereza. — O que aconteceu esta noite foi inteiramente tanto minha responsabilidade como sua, assim não há necessidade de que se sacrifique no altar pela honra de um cavalheiro. Lucien encolheu de ombros. — Não seria um grande sacrifício. Tal como costumam comentar minhas amizades femininas, já é hora de que me case, e você é uma candidata estupenda. - Acariciou-lhe suavemente o ventre com a mão, detendo-se nos sedosos cachos que tinha entre as coxas. — Além disso, sempre existe a possibilidade de um filho. Essa é uma conseqüência que não se pode ocultar facilmente. Um filho de Lucien... Aquela idéia soava tão terrivelmente atraente era quase irresistível. — As possibilidades de que isso ocorra depois de uma só noite são remotas — disse Kit com firmeza. — Teremos tempo de sobra para nos preocupar se isso ocorrer. Lucien abriu a boca para continuar a discussão, e ela procurou Kira em sua mente, em uma tentativa de valer-se de sua força para rechaçar Lucien de novo. Kira não estava ali.

Capitulo 25

O horror a sacudiu de cima a baixo. Ficou rígida. — Kira! — O que ocorre? — exclamou Lucien. — Não encontro Kira! — gemeu ela, sentindo que se afogava. — tentei tocá-la, mas não está. Lucien, com os olhos relampejantes, cravou seu olhar no dela e lhe pegou a cabeça entre as mãos para lhe transmitir sua força. — Fecha os olhos, relaxe e respire fundo — lhe ordenou. — Um, dois, três. Respire, mas que inferno! Um, dois, três, quatro, cinco... Kit se obrigou a seguir o ritmo que ele marcava. Quando sua respiração se estabilizou, lhe disse brandamente. — Tente outra vez. Voltou a inundar-se em seu interior, procurando a essência vital que lhe era tão familiar como a sua própria, e com uma sensação de alívio tã o paralizadora como o medo que tinha experimentado antes, localizou o fino fio que a conectava a sua irmã gêmea, vibrando forte e regular. — Encontra-se bem — sussurrou Kit entrecortadamente. — Não lhe aconteceu nada. — Graças a Deus. — Lucien envolveu seu corpo trêmulo com as mantas e depois a atraiu para si para lhe dar calor. Kit abriu os olhos e viu no rosto dele o muito que ele havia se preocupado. Diferente de todas as pessoas que tinha conhecido, ele era capaz de entender o terror que acabava de inva di-la. Lucien disse serenamente: — Creio que deveríamos nos casar o mais breve possível. Isso fará que seja mais fácil 135


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procurar Kira. — Não, Lucien — respondeu ela em um tom que sua irmã teria reconhecido como inconfundível. — Será que você não vê? O que acaba de ocorrer é devido a que eu tinha os sentidos inundados pela paixão. Não posso me arriscar que isso ocorra de novo. Você mesmo disse que minha conexão com Kira será essencial para encontrá-la. Se nos convertermos em amantes, é possível que a perca. — Estou falando de casamento, não de uma aventura amorosa — afirmou ele, com expressão impenetrável. — O casamento inclusive seria pior. — Kit fechou os olhos, pois não se atrevia a lhe olhar. — Lucien, não posso me deitar outra vez contigo nem pensar no futuro enquanto a vida de Kira estiver em perigo. — Sua voz se quebrou. — E se ela morrer pode ser que eu nem sequer tenha um futuro, porque não posso imaginar vivendo em um mundo em que não ela esteja. — A gente aprende a suportar — repôs Lucien em um tom que não era bastante frio para mascarar a dor. — Mas compreendo o que você quer dizer. Muito bem, todos os planos de casamento ficam postergados até que encontremos a sua irmã. Mas lhe advirto isso: quando chegar o momento, não penso aceitar uma negativa. Ela lhe sorriu com um gesto irônico. — Depois que você tenha tido tempo para pensar, tenho certeza de que te recuperará desse ataque de cavalheirismo. Eu sou uma sabichona excêntrica, como você já sabe, nada apropriada para ser a condessa de um homem deslumbrante como você. — Em outras palavras, teme que eu seja muito frívolo para tolerar sua carreira de política e escritora. Na realidade, esse é um de seus encantos — assinalou Lucien. — Casar-se com uma mulher que tem tantas faces distintas seria como ter um harém inteiro em uma só esposa. Nunca haveria momentos de aborrecimento. E eu estou de acordo com a maioria de suas opiniões, exceto quando fica deliberadamente provocadora. Ela ficou olhando, outra vez insegura. — A que se refere? — Não creio totalmente que Kristine seja L.J. Knight, em troca essa atividade cai como uma luva a Kathryn. — Torceu um pouco o gesto. — Me equivoco? — Não — respondeu ela, submissa. — Tudo o que disse sobre ser jornalista era certo. Knight era o sobrenome de solteira de minha mãe. Começo a pensar que você nunca se equivoca. — É pela mulher que leva semanas me confundindo. Kit estudou seu rosto, e de novo experimentou essa sensação de uma corrente fluindo entre eles. Sempre tinha suspeitado que existia uma discrepância entre o rosto que Lucien oferecia ao público e seu verdadeiro eu, e agora teve a certeza disso. — Não é o cavalheiro ocioso que finge ser, não é mesmo? Deveria ter me dado conta antes que a maneira que tem de observar e analisar não é absolutamente casual. O que se propõe? Agora foi sua vez de se sentir inseguro. — Albergava a vã esperança de que talvez você não descobrisse — disse depois de uma breve pausa. — Basta dizer que a guerra com a França fez que a informação resulte algo muito valioso, assim aprendi a prestar atenção e a passar material que pudesse ser de interesse para o governo. — Se você diz — comentou Kit, cética. — Eu teria pensado que provavelmente você é uma espécie de espião magistral que se esconde atrás de uma fachada de frivolidade. Os olhos de Lucien se tornaram mais verdes. Outra pessoa talvez não o tivesse captado, mas para Kit aquilo era uma prova irrefutável de que tinha acertado na mosca. — Então era por isso que você queria se converter em um Demônio — disse com ar triunfal. 136


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— Isso explica muitas coisas. — Haja paz. — Lucien lançou um suspiro de teatral de derrota. — Vou ter que confessar, não é assim? — Parece-me que é justo. Afinal, esta noite minha vida foi examinada até o último detalhe. — Não existe um nome oficial que designe meu posto, mas participo de trabalhos de inteligência na sombra desde que saí de Oxford. Um amigo me disse em uma ocasião que sou como um espião sentado no meio de uma vasta teia de aranha, devorando informações que chegam de todas as partes da Europa. — Não tem aspecto de aranha. Não tem as pernas tão longas, de jeito nenhum. Ele sorriu. — Às vezes coloco o nariz em assuntos domésticos quando existem implicações internacionais. Neste caso, tenho motivos para acreditar que um dos Demônios está há vários anos agindo como espião dos franceses. Agora que correm rumores de que Napoleão poderia tentar tomar o poder de novo, é de suma importância deter esse homem. Entretanto, até agora não tive êxito. — Franziu o cenho profundamente e deslizou a mão sob a manta para poder acariciar o seio dela. — A maior parte de minha atenção esteve presa todo o tempo por certa mulher que tem me deixado louco. Ela começou a rir, e conteve a respiração quando ele lhe acariciou um mamilo com os dedos. A contra gosto, agarrou-lhe a mão e a tirou debaixo da manta. — Não, Lucien. A paixão é um luxo que não posso me permitir neste preciso momento. A conexão entre Kira e eu não é tão forte como quando nós duas éramos mais jovens, e não me atrevo a fazer algo que possa debilitá-la ainda mais. Lucien voltou a apoiar a mão no torso dela, mas desta vez por cima da manta. — Esse vínculo parece ser muito forte, tendo em conta que durante anos estiveram vivendo separadas e perseguindo distintos interesses. — Não é a geografia o que debilitou o vínculo, a não ser o fato de que, depois de nos separar, Kira começou a me ocultar coisas. — Kit esboçou um sorriso glacial. — Espero que tenha sido porque pensava que eu era muito inocente para saber a crua realidade da vida de uma atriz. Isso me frustra, conseguia captar fracamente suas desigualdades emocionais, mas normalmente não sabia o suficiente para interpretá-las. Lucien franziu o cenho. — Isso poderia nos ser de utilidade. Notou se lhe ocorreu alguma coisa durante esses anos que pudesse ter algo a ver com seu desaparecimento? — O mais notável foi uma temporada em que a via radiante de felicidade. Esse período terminou bruscamente, e depois ela passou muito tempo deprimida. Creio que se apaixonou e o romance terminou mal. — Deixou escapar um suspiro. — Se negava a falar disso e a admitir sequer que havia um homem, mas após isso nunca mais voltou a ser a mesma. Perdeu parte de sua faísca. — Deve ter lhe doido muito que a deixassem — disse Lucien em voz fraca. Kit não respondeu. Naquele momento desejou que Lucien fosse um pouco menos sensível. Tinha sido muito duro inteirar-se de que sua irmã gêmea estava sofrendo, e tinha sido ainda mais o fato de que não tivesse permitido ajudá-la. — Até agora demos por feito que o «lorde Demônio» de Kira é o culpado, mas talvez estejamos equivoquemos — prosseguiu Lucien. — Poderia esse romance de Kira ser um fator de toda esta história? Kit refletiu um momento sobre isso e sacudiu a cabeça negativamente. — Não acredito. Aconteceu faz dois ou três anos. Além disso, tive a sensação de que ele a 137


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deixou, não o contrário, assim é pouco provável que a raptasse por causa de uma paixão não correspondida. — Percebeu alguma ocasião em que ela estivesse assustada? — Só quando estava a ponto de estrear um novo espetáculo, e esse tipo de medo é diferente do que se sente em relação à segurança própria. — Kit fez uma careta. — Tenho descoberto o medo cênico desde que comecei a atuar em lugar de Kira. — Você gosta de atuar? O faz maravilhosamente, com a mesma capacidade para enfeitiçar o público que você diz que Kira possui. — Essa capacidade não é minha; tomei-a emprestada de Kira. — Meditou por alguns minutos. — Os aplausos são emocionantes, e me alegro de ter tido a oportunidade de viver essa experiência, ajuda-me a entender Kira melhor. Mas para atuar bem é preciso se despir o mundo interior, o que eu odeio. Sou muito mais feliz atrás dos bastidores. — Obviamente nasceste para ser escritora, assim como Kira nasceu para ser atriz. — Roçoulhe brandamente o queixo com os nódulos. — Os irmãos gêmeos são ainda mais interessantes pelas coisas que os diferenciam do que pelas coisas que os fazem parecidos. Se te ocorre alguma outra coisa que pudesse ter algo a ver, escreve uma nota e me diga isso mais tarde. Talvez eu veja algo que você não percebe por estar muito perto. Permaneceram juntos em silêncio durante um momento. Kit se perguntou com tristeza se voltariam a estar assim alguma outra vez. Por fim, se levantou e deslizou os pés ao chão. — Já é hora de que eu me vá. Não deve faltar muito para que amanheça. Lucien se sentou também na cama, com o semblante grave. — Devo dizer que não tenho nenhuma vontade de te deixar partir de minha vista. — Não é preciso, depois de tua experiência. — ficou de pé e se vestiu com suas roupas enrugadas. — Mas não se preocupe. Antes tinha razão: necessito toda a ajuda que possa conseguir, assim prometo não desaparecer de novo. — Onde fica a casa de Kira? Era uma prova, e ela a aceitou sem vacilar. — No número 7 da Marshall Street. Reparto meu tempo entre esse local e a casa de Jane. Quando atuo, sempre fico em casa de Kira. O rosto de Lucien se relaxou. — Quando partir daqui tenho que fazer uma visita rápida a Ashdown, mas estarei de volta a Londres na última hora da terça-feira. — Essa noite representarei de novo A Cigana. Por que não se reúne comigo em meu camarim particular depois da função? — Brilharam-lhe os olhos. — Já é hora de que vá jantar com você por vontade própria, sem que precise me seqüestrar. — Seqüestrar foi algo especialmente inapropriado, dadas as circunstâncias. Não foi a toa que você ficou furiosa. — Contemplou-a pensativo. — Suspeitou que pudesse ser eu quem raptou a sua irmã? — Na realidade, não. Sabia que devia suspeitar, pois a informação que tinha de você era bem sinistra, mas não podia acreditar que alguém que me resgatava uma e outra vez de Demônios bêbados fosse um malvado. — Torceu a boca levemente. — Além disso, se você e Kira tivessem se visto, teriam combinado maravilhosamente um com o outro. Não teria sido necessário recorre r a nenhum seqüestro. — Alegra-me saber que minhas excelentes qualidades se vêem no exterior. — Lucien ficou de pé e começou a se vestir. — Te verei na terça-feira de noite a não ser que os caminhos estejam especialmente intransitáveis. Se não chegar no prazo de meia hora depois de terminar a representação, será porque fiquei retido. Irei à casa de Kira na manhã seguinte. — Soltou uma 138


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ligeira risada, — Dá-te conta do pouco que nos vimos à luz do dia? É como um cortejo entre duas corujas. Ela inclinou a cabeça enquanto atava o laço da capa. — É isto um cortejo? — Tem que ser, porque logo estaremos de pé diante do altar. Lucien cruzou o quarto e tentou tocá-la, mas Kit escapuliu para um lado. — Não devo te beijar, Lucien. Como te disse antes, a paixão me distrai muito. Ele se deteve em seco. — Acreditava que a proibição se referia só a atividades mais íntimas. Kit se ruborizou e olhou a outra parte. — Com você, até um beijo é suficiente para que eu perca as estribeiras. Ele lançou um suspiro. — Adulador, mas frustrante. Vai ser muito duro te ter perto e não te tocar, gatinha. — Sou muito alta e muito séria para que me chame de gatinha. — Tolices. — Lucien sorriu abertamente. — Tem uma estatura muito adequada, e me parece muito brincalhona. Antes que ela pudesse protestar pela observação, atraiu-a para si e a abraçou. — Esta noite já pode dar-se por perdida no que se refere a manter seus canais sensoriais limpos — ele lhe disse ao ouvido. — Acredita que um beijo agora pioraria as coisas mais do que já estão? Deveria ter imaginado que ela não poderia resistir em lhe ter tão perto. —Provavelmente... — respondeu Kit, hesitando, — provavelmente não aconteça nada por causa um beijo. — Elevou a cabeça e apertou os lábios contra os dele. Sua boca a recebeu gostosa, quente e profunda. Lucien era o mundo inteiro, forte como a terra, e tão essencial como ela. Kit se agarrou a ele, tremendo, durante longos segundos uma vez terminado o beijo. Também com a respiração entrecortada, Lucien disse: — Encontraremos Kira, e depois se casará comigo. Aceita, minha querida tigresa, porque já fomos muito longe para voltar atrás. — Beijou-a de novo, desta vez com mais suavidade. — Estou desejando que chegue a próxima vez em que possa te pôr em um compromisso. Kit sorriu com certa tristeza ao se separar de seu abraço. Desejou poder acreditar que tinham um futuro juntos, mas não podia.

Ninguém os viu quando Lucien acompanhou Kit através da casa silenciosa até uma discreta saída. Ela tinha insistido que não lhe aconteceria nada, mas foi difícil vê-la partir e impossível dormir ao retornar a seu quarto. A inquietação e o desejo circulavam por suas veias. Entretanto, embora aquelas emoções estivessem longe de ser agradáveis, representavam uma considerável melhora em comparação com a sombria melancolia que o tinha invadido no passado depois de alguns momentos de intimidade. Kit enchia sua mente; a enlouquecedora, a caprichosa Kit, com sua coragem e sua lealdade, sua viva inteligência e sua maravilhosa sensualidade. Existia a tentadora possibilidade de que com ela encontrasse a intimidade emocional que tinha estado ausente de sua vida depois da morte de Elinor. Aquela proximidade não existia ainda, e podia ser que não existisse nunca. Kit era acima de tudo leal a sua irmã gêmea, e, viva ou morta, era possível que Kira se interpusesse sempre entre Kit e ele. Mas ao menos havia esperança. Valeria a pena casar-se com ela por isso, deixando à parte o fato de que casar-se fosse a opção honrosa. 139


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Ia ser muito duro manter as mãos afastadas dela enquanto procuravam Kira. Sorriu para si na escuridão. Kit não podia ter encontrado algo que lhe motivasse mais para dar-se pressa em encontrar sua irmã.

INTERLÚDIO

Pior que o medo, quase tão espantoso como a degradação, era o aborrecimento. Não deixava de ser curiosa a forma em que inclusive o horror podia transformar-se em algo banal. Às vezes pensava que ficaria louca devido ao isolamento. Supunha que devia estar agradecida que sua prisão fosse tão cômoda, mas seguia sendo uma prisão. Quanto tempo estava encerrada naquele quarto sem luz? Semanas, certamente, provavelmente meses. Era difícil fazer um cálculo do tempo. Desejava ver o sol, ou inclusive um céu carregado de chuva. Sua única distração era uma pequena estante de livros, nenhum dos quais teria consentido em ter em casa se pudesse escolher, mas escolher era precisamente o que não podia fazer. Aqueles nauseabundos exemplares tinham sido essenciais para lhe ensinar a compreender um pouco a mente perversa de seu raptor. Também os tinha estudado religiosamente para recolher idéias do que poderia lhe fazer. Gostava das novidades, e o dia em que se aborrecesse dela, seria uma mulher morta. Estava caminhando inquieta pela sala de estar quando chegou a criada de cara azeda. O guarda fortemente armado que estava do outro lado da porta ficou à vista por um espaço de um breve instante quando se abriu a porta reforçada com barras de ferro. O fato de saber que o guarda estava ali era o único motivo que lhe tinha impedido de fazer uma tentativa desesperada de escapar. Não tinha suportado tudo aquilo para atirar bobamente sua vida ao lixo. Se espera sse, com o tempo lhe apresentaria uma oportunidade melhor. A criada disse: — Estará aqui dentro de uma hora. Quer que desta vez ponha as peles. Ela assentiu com cansaço. A seu raptor gostava de modo especial daquele traje. O pôs com ajuda da criada. Primeiro um ajustado objeto de cetim vermelho que imitava um complicado espartilho francês. Em seguida as inevitáveis lingeries pretas e as meias de renda. Por último, uma capa de pele de marta que ondeava espetacularmente quando ela caminhava majestosamente com seu chicote. Se escapasse... Não; quando escapasse daquele lugar, seria feliz vestindo musselina branca e lisa durante o resto de sua vida. Estava ajustando a peruca de cor loira prateada quando a criada cuspiu de improviso: — Acredita que estás a salvo porque ele gosta do que lhe faz, mas já verá. Dentro de duas semanas acabará igual às outras. Ela girou sobre os calcanhares e olhou fixamente à criada. — Que outras? E o que lhes ocorreu? A criada respondeu com um desagradável sorriso: — Acaso acreditas que és a primeira que ele trouxe aqui? Quanto ao que vai ocorrer... Já verá rameira suja. — A criada deu umas batidinhas na porta e o guarda abriu. Agarrou com as mãos firmes o cabo do chicote. Tinha sabido todo o tempo que seu cativeiro não podia acabar bem, mas o tempo ia se esgotando mais depressa do que tinha acreditado. 140


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Duas semanas. Em silêncio, jurou para si que quando chegasse o momento, não iria mansamente como um cordeiro ao matadouro.

Capitulo 26

A Cigana foi bem ainda que novos pesadelos perturbassem o sono de Kit na noite anterior. Enquanto dançava representando seu papel, se perguntou se Lucien teria chegado a tempo para estar entre o público. Suspeitou que estava presente porque pressentia que alguém a estava observando com maior intensidade que o normal. Esperou que apreciasse ver sua tatuagem. A função a deixou exausta e ensopada de suor, assim passou longe do camarim. Sua sala era uma sala diminuta, mas toda dela desde que se converteu na principal atração da companhia. Tirou a peruca negra, lavou a maquiagem do rosto e trocou o traje de cigana por um vestido de Kira, que era muito mais deslumbrante que seu próprio guarda-roupa. Embora não se atrevesse a repetir momentos de intimidade com Lucien, claro que queria lhe tentar um pouco. Estava descobrindo que a afetada Kathryn tinha uma veia desavergonhada. Sorriu enquanto escovava o cabelo. Os três dias que tinham transcorrido desde a última vez que se haviam se visto pareciam uma eternidade. Talvez não pudessem se tocar, ou pelo menos só um pouco, mas seria maravilhoso o simples fato de estar com ele. Em sua presença era possível acreditar que tudo ia sair bem. Suas reflexões se viram interrompidas por uma batida à porta que a fez saltar da penteadeira. Santo Deus estava se comportando como uma menina! Mas para Lucien não importaria. A saudação de boas vindas ficou congelada em seus lábios ao abrir a porta de um puxão. Não era Lucien. Em lugar dele, na soleira em penumbra aguardava um homem alto e de cabelo escuro. Sua primeira reação foi uma sensação de familiaridade, mas quando se fixou um pouco mais viu que se tratava de um completo desconhecido. Não era o primeiro admirador de Cassie James que descobria como se chegava a seu camarim particular, e tampouco seria o último. Kit tragou sua desilusão e lhe ofereceu um sorriso amistoso, tal como Kira teria feito. — Boa noite. Gostou da representação? — Se gostei? — Torceu a boca. — Mal me dei conta. A única que vi todo o tempo foi você. — Sem esperar que lhe desse permissão, deixou-a a um lado e entrou no camarim. Obviamente, aquele homem conhecia Kira muito bem. Agora, com uma luz melhor, Kit observou que suas feições eram agradáveis, mas que era magro até o ponto de parecer abatido, e que aparecia uma sinistra cicatriz que se estendia da têmpora até a raiz do cabelo, que usava muito comprido. Estava muito mal vestido, a roupa lhe sentava mal e ficava flácida, e paradoxalmente sua postura era a de um homem importante. Kit tratou de fazer coincidir seu aspecto com alguma das breves descrições que Cléo tinha lhe proporcionado, mas não conseguiu. Naturalmente, Cléo não podia conhecer todos os homens que Kira conhecia. Depois de decidir que o melhor era uma natural amistosidade, disse: — Há passado muito tempo. — Há passado uma eternidade. — O homem voltou as palmas das mãos para cima. — Você ganhou, querida. Rendo-me: pé, cavalo e canhão. A coisa era pior do que tinha temido, porque estava claro que aquele homem conhecia Kira muito bem. Ao ver que ela hesitava, procurando a melhor maneira de responder, ele disse com 141


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triste humor: — Sei que pareço qualquer refugo que seu gato tenha deixado na porta, mas estou seguro de que não esqueceste o que disse a última vez que nos vimos. Talvez necessite algo que lhe recorde isso. E antes que ela pudesse adivinhar suas intenções, deu um passo para frente e a envolveu em um asfixiante abraço. Havia uma fome primitiva em sua forma de beijá-la, e uma possessividade que era um tanto aterradora. Kit o empurrou para escapar dele, dizendo em tom leve: — Não tenha tanta pressa. Como disse, há passado muito tempo. Me diga onde esteve e o que tem feito. — Se recolheu para o outro extremo da sala, perguntando-se quanto tempo teria passado desde que havia terminado a função e se haveria ainda alguma possibilidade de que Lucien chegasse. — Gostaria de uma taça de xerez? Ele a olhou fixamente com uma emoção febril em seus olhos castanhos. — Não te importa que tenha arriscado minha vida para vir aqui? Age como se isto fosse um maldito salão. Como Kathryn, teria tentado o acalmar, mas esta noite era Kira, de modo que replicou: — E você está agindo como se eu fosse sua propriedade. Bem, pois não é assim, e se não se comporta como uma pessoa civilizada eu terei que te pedir que se vá. Fez-se um tenso silêncio entre ambos que se estendeu por um espaço de vários segundos, ao fim dos quais ele disse brandamente: — Então quer que eu seja civilizado. — Pegou a cadeira que estava em frente a penteadeira. Ela acreditou que ele ia lhe pedir cortesmente que se sentasse, mas em lugar disso ele levantou a cadeira por cima da cabeça e a jogou com violência contra a parede. Uma chuva de lascas de madeira voou em todas direções, ricocheteando e fazendo o espelho em pedacinhos. — Eu sinto muito, Kira, mas não estou com humor para ser civilizado— disse em um tom que era tão mais ameaçador por quanto que ele tentava reprimi-lo. — Não teria conseguido sobreviver estes dois últimos anos se não tivesse me tornado selvagem, e a selvageria não é algo que alguém possa tirar na metade como se fosse uma camisa velha. Kit colou as costas à parede, com o coração pulsando com força enquanto pensava na possibilidade de gritar pedindo socorro. Não, ninguém a ouviria por cima do barulho que havia no camarim. Então conteve a respiração. Ele tinha suportado a selvageria durante dois anos... De repente as peças encaixaram em seu lugar. Aquele devia ser o homem por quem Kira se apaixonou, e por isso ele tinha parecido familiar a ela embora nunca o tivesse visto. Provavelmente não tinha deixado a sua irmã voluntariamente, mas sim por ter ido para a prisão. Sua fúria de agora fazia fácil acreditar que era um delinqüente, ou talvez um louco. Qualquer dessas duas possibilidades explicaria a depressão de Kira e sua negativa em falar da ruptura. — Lamento o que tiveste que passar — disse, tentando parecer conciliadora. — Me fale sobre isso. — Não vim aqui para falar de minha má sorte — rugiu ele. — Vim aqui por você. Kit titubeou. Se sua irmã estava apaixonada por aquele homem, ela não podia o expulsar dali. Devia confessar quem era e esperar que ele aceitasse aquela confidência. Talvez inclusive soubesse algo que lhe servisse de ajuda para procurar Kira. Passou muito tempo pensando. — Está procurando uma forma amável de me dizer que os sentimentos mudaram em dois anos, não é mesmo? — disse ele, com a angústia gritante no rosto. — Bom, pois os meus não mudaram, e não mudarão jamais. Era indecente deixar que aquele desconhecido despisse sua alma diante da mulher 142


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equivocada. Kit levantou uma mão para lhe interromper. — Por favor, não diga nada mais. Não sou quem você acredita. Antes que pudesse seguir falando, o semblante dele se transformou. — Não, não é — disse com amargura. — Eu acreditava que fosse carinhosa e sincera embora fosse uma atriz, mas é tão vadia como o resto das de sua índole. Muito bem, pois te tratarei como uma delas. Temo que não tenho comigo o preço que vale uma noite, mas com certeza que ainda resta um pouco de crédito depois de todos os presentes que te dei. Encurralou-a contra a parede e a beijou de novo, desta vez com furor. Embora ela lutasse, o corpo magro do homem escondia uma inusitada força. Seus quadris esmagaram os dela, e ele lhe plantou uma mão no busto. Kit lhe mordeu a língua. O homem afastou o rosto com uma sacudida e rugiu: — Maldita bruxa! Kit tentou escapar, mas ele a apanhou e a segurou contra a parede. Ambos se olharam fixamente um ao outro. Nos olhos em chamas dele se via a batalha que estava travando entre a fúria e a razão. Nesse momento a porta se abriu com um forte chiado. Tanto Kit como seu atacante levantaram o olhar e se encontraram com Lucien, sujo pela viagem. Compreendendo instantaneamente a situação, este penetrou com grandes passadas na habitação, com olhos relampagueantes. — Solte-a agora mesmo! — De modo que é por isso que estava bancando a dona Modéstia! — explodiu o homem de cabelo escuro. — Te ensinei muito bem. Deveria ter imaginado que uma vez que descobrisse as delícias da fornicação, não seria capaz de manter as pernas fechadas. Quantos amantes você teve nestes dois anos? Ou perdeste a conta? Antes que ela pudesse responder, o homem a soltou e se jog ou através da pequena sala para equilibrar-se como um gato selvagem sobre Lucien. Kit lançou um grito, mas Lucien já tinha reagido. Em um movimento fluido esquivou do golpe virando-se para um lado e ao mesmo tempo estrelou o punho contra a mandíbula de seu atacante. O homem emitiu um ruído parecido a um grunhido e desabou como um saco. Lucien passou por cima dele e abraçou Kit. — Ele te machucou? — Na realidade, não. — Ela afundou o rosto em seu ombro, desejando que ele pudesse tocar todas as partes de seu corpo de uma vez. Cheirava a barro, a cavalo e a segurança. Lucien a beijou na testa e lhe acariciou as costas e os ombros, massageando seus músculos para eliminar deles o medo. — Quem é? Kit soltou uma risada trêmula. — Não chegamos a nos apresentar formalmente, mas creio que deve ser o homem pelo qual Kira se apaixonou há vários anos. Jamais teria dado a conhecer seu apelido se a coisa não fosse a sério. Lucien observou ao homem de cabelo escuro, cujo momentâneo estupor começava a desaparecer. — Precisa aprender boas maneiras. — Estava muito alterado. — Kit sentiu um calafrio. — Mas estou muito contente de que tenha chegado no momento preciso. O homem foi se levantando com esforço até ficar sentado. Em sua frente se via um hematoma que se ia inchando rapidamente. — Vá em frente — disse com voz cansada. — Chame o guarda, ou a um juiz, ou a quem 143


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diabos utilizem como polícia em Londres. Não me importa mais nada. Lucien o olhou com as pálpebras entreabertas. — Pelo seu sotaque, tem que ser americano ou canadense. — Americano. — O desconhecido dirigiu um olhar satírico a Kit. — Naturalmente, é muito honesta para falar com seu amante atual sobre os anteriores. — Se não deixar de fazer comentários insultantes à dama, romper-lhe-ei a mandíbula — disse Lucien com calma. Soltou Kit e estendeu o braço para levantar o outro. — Tem algo de beber, Kit? Parece-me que a este cavalheiro viria bem tomar algo. Ela foi até o pequeno armário onde se guardava o xerez. Não a surpreendeu que Lucien percebesse o sutil sotaque não britânico. Pensando que talvez ele também queria tomar algo depois da longa viajem que tinha feito, encheu duas taças e deu uma a ele e a outra ao desconhecido, que tinha se sentado no divã com a cabeça encurvada. — Agarre-se bem — disse Kit—: Eu não sou Kira, a não ser sua irmã gêmea, Kit. Parece óbvio que jamais lhe mencionou minha existência. Ele elevou a cabeça de repente e ficou olhando com incredulidade. A seguir levantou sua mão livre e passou os dedos pelo rosto. — Oh, Deus — sussurrou. — É certo, você não é Kira. — Seu rosto adquiriu uma cor cinzenta. — Eu sinto, sinto muito. Se eu tivesse sabido, não me teria comportado deste modo. — Eu não gostaria de pensar que você considera isso como uma maneira aceitável de tratar a minha irmã — repôs Kit em tom cortante. — Certamente, se eu fosse Kira, teria me comportado de um modo totalmente distinto. O homem não podia lhe sustentar o olhar. — Durante dois intermináveis anos o fato de pensar em Kira me manteve vivo. Esperava que você... Que ela se jogasse em meus braços. Ao ver que você me tratava como a um conhecido casual, eu... Fiquei louco. Espero que possa me perdoar. Kit estudou seu pálido rosto. Pobre diabo. — Perdoado e esquecido. Mas quem é você? — Jason Travers. — Torceu ligeiramente o gesto. — A seu serviço, embora seja com atraso. — Um parente? — perguntou Lucien. Os olhos de Kit se arregalaram. — Parece-me que este deve ser o segundo primo da América que te mencionei, que agora é o quinto conde de Markland. Lucien emitiu um leve assobio. — Interessante. O fato de que seja um aristocrata poderia ser de utilidade se as autoridades descobrirem sua presença. — Logo disse, dirigindo-se ao americano—: Acaba de sair dos cascas de ovo? Kit exclamou: — Esses horríveis navios prisão que estão amarrados no Tamisa? Certamente que não! Jason sorriu sem um pingo de humor. — Temo que sim, são o Hades da flutuação. Ontem tive a oportunidade de saltar pela amurada, de modo que assim o fiz. Diabos estive a ponto de congelar, me arrastando por baixo dos lixos que flutuavam na água, e por pouco não chego a alcançar a margem. — Dirigiu a Lucien um olhar de cautela. — Como lhe ocorreu? E quem é você? — Lucien Fairchild, o futuro marido da jovem dama a quem você estava agredindo. — Lucien lhe estendeu a mão. — Tem o aspecto de um homem que esteve alimentando-se com rações de comida própria do cárcere. E como nos cascas de ovo há alguns prisioneiros de guerra americanos, pareceu-me uma explicação provável. 144


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Jason estreitou a mão que ele lhe estendia e depois tomou um gole de xerez. Estava tremendo e parecia a ponto de desabar. Lucien disse a Kit: — Creio que deveríamos levá-lo para minha casa. É evidente que necessita de comida, roupa e descanso. Ela assentiu com um gesto. Seu recém estreado primo levantou o olhar, confuso. — Não irão me enviar de volta aos cascas de ovo... As últimas notícias que tive diziam que nossos dois países estavam em guerra. — Se Deus quiser, já não estarão muito tempo mais. Para começar, foi uma guerra absurda. E francamente, eu não enviaria aos cascas de ovo nem um cão raivoso. — Lucien ajudou o americano a ficar em pé. — Pode caminhar? Bem. Ter que carregar com você chamaria muito a atenção. — Rodeou a cintura de Kit com um braço, e os três saíram ao exterior, onde a carruagem de Lucien aguardava em frente à porta do teatro. Meia hora depois se encontravam na cozinha de Strathmore House. Kit observou que Lucien conhecia surpreendentemente bem aquela área para ser um aristocrata; as incursões a meia-noite à despensa não deviam ser coisa pouco comum nele. Inclusive encontrou uma panela com sopa. Kit a esquentou enquanto ele rebuscava e tirava um pouco de pão, queijo e bolo de bife e rins. Apesar de seu evidente apetite, Jason Travers não pôde comer grande coisa. Depois de afastar a para um lado sua terrina de sopa, observou Kit fixamente. Ela se deu conta de seu olhar e levantou o olhar para ele, com expressão interrogante. — Sinto muito — se desculpou ele. — Já sei que você não é Kira. Se não fosse porque esperava vê-la, me teria dado conta no momento em que pus os olhos em você. Entretanto, a semelhança é assombrosa. — Você não é o primeiro em se confundir — destacou ela. — Nem sequer nosso próprio pai era capaz de nos distinguir. — Então seria porque não prestava atenção. — Suas mãos ficaram rígidas ao redor da jarra de cerveja. — Onde está Kira? Suponho que deve estar metida em algum problema. Kit lhe explicou concisamente o desaparecimento de sua irmã e a troca de personalidade que ela mesma tinha efetuado. O rosto de Jason foi se obscurecendo enquanto ela falava. Quando terminou, ele disse com uma violência contida com muita dificuldade: — Mas que droga, estou a semanas tendo a sensação de que algo andava mal, mas supus que era uma dessas estranhas fantasias que se tem na prisão. — esfregou a cicatriz da têmpora, que lhe vibrava visivelmente. — Suponho que é por isso que me arrisquei a tentar escapar. Sabia que tinha que encontrá-la. Reconhecendo uma angústia que quase se igualava à sua, Kit disse para o tranqüilizar: — Esteja onde estiver, goza de boa saúde. Se não fosse assim, eu saberia. E estamos fazendo tudo o que podemos para resgatá-la. — Me digam o que posso fazer — exclamou Jason com expressão pétrea. — Não se preocupe — respondeu Lucien, servindo mais cerveja para todos. — Se for necessário, será chamado ao serviço militar. Primeiro temos que encontrar Kira. Mas agora precisamos falar com você. — Sim, sinto curiosidade por saber como conheceu minha irmã. Jason fechou os olhos por um instante para ordenar todos seus pensamentos. — Faz quatro anos, o advogado de sua família me notificou que eu era o novo conde. Por causa da falta de previsão do conde anterior, não existia nenhuma herança econômica, de modo que mal prestei atenção à carta. Meu avô era o filho mais novo que tinha emigrado para América e mantido só um rápido contato com sua família. Como americano, eu não podia conservar o título, 145


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de modo que todo o tema tinha meramente um interesse intelectual. Não obstante, quando os negócios me fizeram vir a Inglaterra, descobri que sentia certa curiosidade para ver o lugar de que provinha a família. Quando terminei meus assuntos em Liverpool, viajei até Kendal. O atual dono me mostrou a propriedade e me convidou para jantar. Olhei na igreja paroquial, com todos seus monumentos comemorativos os Travers falecidos, e percorri as colinas, e em t ermos gerais desfrutei de uma viagem interessante. — Fez uma careta. — Mas compreendo por que meu avô partiu, era o lugar mais úmido e cinza que já vi. Kit sorriu. — Westmoreland é úmido inclusive para quem está acostumado a Inglaterra, mas as pessoas terminam se acostumando. A paisagem é muito formosa. — Formoso de uma forma, mas bem sombria — admitiu ele. — Estava a ponto de partir quando o proprietário da estalagem me disse que uma das filhas do falecido conde acabava de chegar à estalagem. Disse que lady Kristine estava de visita porque sua irmã e ela estavam pagando pouco a pouco as dívidas de seu pai, e que provavelmente tinha ido fazer o último pagamento e agradecer aos credores por sua paciência. Lucien elevou uma sobrancelha em direção a Kit, inquisitivo. — Não eram dívidas de jogo de meu pai — explicou ela. — Seus desagradáveis amigões de jogo podem fritar no inferno, pelo que diz respeito a nós. Mas nos sentíamos obrigadas a pagar os comerciantes. Teríamos vestido farrapos e comido papa de aveia se os lojistas de Kendall não tivessem ampliado o crédito à família. Os olhos de Lucien brilharam com uma ternura que os tornou de uma cor dourada. — São pessoas muito honradas. Kit desenhou um oito na cerveja derramada. — Kira fez mais que eu; as atrizes de êxito ganham mais que os escritores. — Maior mérito para você. — pegou-lhe a mão por debaixo da mesa e entrelaçou seus dedos com os dela. — O dono da estalagem me falou muito bem das duas — prosseguiu Jason. — Como tinha curiosidade por minha prima inglesa, pedi que apresentasse formalmente a lady Kristine. Ela era... Não o que eu esperava. — Em seus lábios surgiu um sorriso provocado pela lembrança. Quando o silêncio começou a alargar-se, Lucien disse: — Podemos supor que as estrelas interromperam seu curso e que os coros de anjos começaram a cantar? Jason se obrigou a retornar ao momento presente. — Essa é uma descrição bastante acertada. Segui Kira até York, onde estava atuando. Ao longo das semanas seguintes... — Lhe espessou a voz, e teve que interromper-se. — Kira desejava o casamento, mas você não se decidia a se casar com uma atriz? — perguntou Kit com um tom cortante. — Não! — Ele a fulminou com o olhar. — Eu propus, de fato até me pus de joelhos e lhe supliquei, mas ela se negou a casar-se comigo a menos que eu viesse viver na Inglaterra. Não sei se queria ser condessa, ou se gostava muito de sua carreira para abandoná-la, mas não pude aceitar deixar meu lar e meu país. — Não era uma decisão fácil — admitiu Lucien. — Tivemos uma tremenda discussão. Eu lhe disse que se mudasse de opinião, já sabia onde me encontrar em Boston. Ela respondeu que se eu mudasse, ela me receberia com os braços abertos, mas que em caso contrário não me atrevesse a me aproximar de sua porta de novo. — Não me surpreende que ficasse tão furioso ao apresentar -se e ver que eu não estava com os braços abertos — comentou Kit. 146


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Ele passou distraidamente a mão pelo cabelo. — Não tive um instante de paz desde que sai de York. Quando deixei de amaldiçoar Kira, comecei a sofrer terrivelmente. Assim comecei a pensar seriamente em me mudar para à antiga propriedade de campo embora, como todo bom americano, desprezo o governo britânico. Tem as entranhas podres. Kit dirigiu um olhar a Lucien, que havia passado grande parte de sua vida defendendo aquele governo. Mas ele se limitou a dizer: — Aqui há muitas pessoas que estariam de acordo com você, mas um governo não é uma nação. Jason esboçou um sorriso torto. — Certo, e quando penso nisso, dou-me conta de que eu gosto dos ingleses como pessoas. Já que na América não resta nenhuma família próxima e que meu negócio, que consiste em transporte pelo mar, pode dirigir-se tanto da Inglaterra como de Boston, decidi voltar com Kira, chapéu na mão, e lhe oferecer me instalar aqui. Então estalou a guerra. Eu me ofereci como voluntário a prestar serviço, e uns meses mais tarde me vi prisioneiro em um dos cascas de ovo, vivendo na sujeira e rezando para não morrer de febre no cárcere. — Os cascas de ovo são os cárceres mais infames da Inglaterra — disse Kit gravemente. Tinha escrito vários artigos furiosos a respeito de quão desumanos eram. — Tem sorte de ter sobrevivido. — Me acredite que sei bem disso — respondeu Jason com um estremecimento involuntário. Lucien comentou — Era você um capitão corsário? O americano o olhou fixamente. — Você deve ser um homem condenadamente incômodo. Como adivinhou? — Só uma pessoa capturada no mar poderia acabar em uma prisão britânica em vez do Canadá — explicou Lucien. — Você mencionou que seu negócio é o transporte pelo mar, e tem aspecto de ser um desses que preferem dar ordens antes que as obedecer. Portanto, parecia provável que se tratasse de um corsário. Mesmo assim, surpreende-me que um oficial tenha sido enviado a um dos cascas de ovo. — O capitão da fragata que capturou o Bonnie Lady sentia uma especial antipat ia pessoal para mim e se valeu de sua influência para assegurar-se de que me enviassem à prisão mais podre que havia. — Você disse que escapou pela amurada e nadou até a margem — disse Kit. — Como conseguiu dinheiro e roupas? — Entrei para roubar uma loja de roupas usadas perto do cais, e me vesti com o melhor que pude encontrar — respondeu o americano, incômodo. — Por acaso encontrei também um pouco de dinheiro escondido sob uma pilha de camisas. — Se você se lembrar do nome e do endereço da loja, enviarei dinheiro para pagar o que você levou — disse Lucien. Jason lhe dirigiu um olhar fugaz. — Agradeceria muito. Juro que o devolverei. Lucien fez um gesto de desaprovação. — Depois do tratado de paz. O que ocorreu depois? — Dispunha-me a tomar um transporte até York com a esperança de que Kira ainda estivesse fazendo sua excursão pelo norte, mas vi um pôster que anunciava a obra A Cigana, interpretada por Cassie James, de modo que fui ao teatro. — Lançou um suspiro, com expressão envergonhada. — Acreditei que havia mudado minha sorte, mas em lugar disso... 147


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Depois de outro silêncio, disse: — Pareço um ingrato. Acreditem, sou muito afortunado de que não tenham me enviado de volta a aquele buraco. Lucien sorriu ligeiramente. — Já que virtualmente somos parentes por matrimônio, seria muito descortês da minha parte deixar que morresse de fome nessa barcaça esquecida de Deus no Tamisa. — ficou de pé. — Parece morto de cansaço. Durma um pouco. Seguiremos falando pela manhã. Kit tomou a mão magra do americano na sua. — Nos a encontraremos, Jason, ou morreremos tentando. — Esperemos não ter que chegar a isso — disse Lucien em voz baixa. Kit recolheu os pratos depois do jantar enquanto Lucien levava Jason a um quarto de hóspedes. Quando retornou, estreitou-a em seus braços como se aquele gesto fosse tão natural como respirar. Ela se reclinou sobre ele, descarregando a tensão e a fadiga como pétalas de uma rosa molhada. — Tem rancor dele por sua intimidade com Kira? — perguntou Lucien. — Meu novo primo tem razão: sabe muito. — Titubeou um momento, tentando encontrar as palavras adequadas. — Jason me agrada... Parece um cara honrado, e é óbvio que ama profundamente Kira. Se tiver interpretado corretamente os sentimentos de minha irmã, o ama com a mesma intensidade. Deus sabe que o que desejo de verdade é que Kira seja feliz. — Deixou escapar um suspiro de tristeza. — Mas ao mesmo tempo, em efeito, sinto rancor por ele se interpor entre nós. Quando Kira o conheceu, começou a me por de lado. Estava em seu direito, entretanto... — Kit escondeu o rosto contra o ombro dele e disse com voz lamuriosa —: Nem sequer lhe disse que somos gêmeas! Isso é o mais importante de minha vida, e ela não considerou o bastante transcendental para dizer algo. Lucien lhe acariciou a cabeça com ternura. Estava se convertendo em um perito em acalmála, pensou Kit com um toque de histeria. — Talvez essa omissão não se devesse a que a relação não parecia importante para Kira, mas sim que era muito importante — sugeriu ele. — Suspeito que uma das razões pelas quais os gêmeos idênticos gostam de confundir às pessoas é que assim as mantêm a distância e protegem a singularidade do vínculo que os une. Você é um aspecto tão especial da vida de Kira, que provavelmente não se atreveu a compartilhá-lo até estar segura sobre Jason. Como tinham nacionalidades distintas, talvez ela teve um certo receio sobre a relação desde o começo, e por isso não lhe disse nada. O nó que Kit tinha na garganta se afrouxou. — Não sei se isso é verdade, mas é uma explicação muito bonita. Me agrada. — Levantou o rosto para o olhar. — Onde aprendeste a ser tão amável? Embora fosse uma pergunta retórica, ele respondeu: — Aprendi com Linnie. Não só tinha uma alma doce, mas também me ensinou um pouco como funciona a mente feminina. — E disse em tom mais desenvolto —: E também sei que se ela tivesse crescido, se apaixonado e se casasse, eu teria sentido rancor contra seu marido. Não por causa de perverso ciúmes físicos de minha irmã, mas porque teria medo de perder essa especial união que havia entre nós. E de fato a tinha perdido para sempre quando ele mesmo não era mais que um menino. Aquela idéia fez com que Kit se sentisse envergonhada por se queixar. Abraçou-o com mais força, desejando ter o poder de modificar o passado para que Elinor tivesse sobrevivido. — Teria superado esse ciúmes e lhe teria desejado felicidade de todo coração. — Você fará o mesmo. — Roçou-lhe o cabelo com os lábios. — É muito tarde. Por que não 148


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passa o resto da noite comigo? — Ao ver que ela hesitava, acrescentou—: Só para dormir, Kit, juro-lhe isso. Não quero fazer nada que possa pôr em perigo sua conexão com Kira. Mas foi um dia muito comprido e exaustivo, e eu descansaria muito melhor se estivesse a meu lado. — Será melhor que não. O que pensariam os criados? — Todos foram escolhidos por sua capacidade em serem discretos — disse Lucien em tom leve. — E é melhor que vão se acostumando a te ver, porque vais ser sua senhora dentro de pouco. — Notou que estava tensa, porque lhe apoiou as mãos nos ombros e a olhou fixamente no rosto. — Não me escapou que quando eu menciono a palavra matrimônio, você reage como um coelho encurralado por um furão. Tanto te desagrada a perspectiva de te converter em minha esposa? Seria mais fácil tratar com Lucien se ele fosse menos perspicaz. Escolhendo outra vez as palavras com cuidado, Kit respondeu: — Não me desagrada, mas é uma possibilidade que me parece irreal. Não posso ver além do desaparecimento de Kira até que tudo volte a ser normal. — E isso é tudo o que tem a dizer, não é mesmo? — disse ele laconicamente. — Muito bem, não quero te agoniar. Mas não vou mudar de opinião, e posso ser assombrosamente perseverante. — Sei, a minhas custas. — Kit apoiou a testa contra a bochecha dele. — Você é assombroso em muitos aspectos. — Fica comigo — disse Lucien brandamente. — Por favor. Era tão difícil negar-se a aquele rogo como esquecer Kira. E a verdade nua era que queria estar com ele tanto como ele queria estar com ela. — Está bem — sussurrou. — Ficarei.

Capitulo 27

Por respeito às circunstâncias, Lucien tirou duas de suas camisolas para dormir, que raramente usava. E envolvia Kit do queixo até além dos dedos dos pés. Estava maravilhosa, acomodada nos braços dele, quando dormiu rapidamente. Embora estivesse cansado depois de um dia tão comprido viajando por caminhos enlameados, permaneceu acordado um momento, saboreando a doçura de ter Kit a seu lado. Sua atitude contra o casamento seria geral, ou concretamente dirigida para ele? Talvez um pouco de ambas as coisas. Teria que a convencer de que não tinha a mínima intenção de lhe cortar as asas e convertê-la em um passarinho doméstico. Poderia seguir sendo uma pensadora radical sob seu teto tanto como era em baixo do de sua tia. Por fim o sono o venceu, mas só para despertar com um sobressalto quando Kit proferiu um grito abafado e agitou de repente o punho esquerdo, que quase o golpeou no olho. Segurou os pulsos para que deixasse de dar murros ao ar. — Kit, acorda! Está tendo um pesadelo. Ela abriu os olhos, mas continuou lutando. — Kit, sou Lucien e você está a salvo — ele lhe disse com voz firme. — Está a salvo. Ela deixou de debater-se. — Lucien?— sussurrou insegura. — Estou aqui, Kit. — Soltou-lhe os pulsos e acendeu a vela que havia sobre a mesinha de noite. — Me conte o pesadelo. 149


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— Foi horroroso. Eu... Eu estava usando um traje muito estranho, indecente, e estava açoitando um homem. Ele estava preso com correntes e se retorcia cada vez que eu o golpeava, uma e outra vez. — Deixou escapar um suspiro trêmulo. — Embora estivesse furiosa comigo mesma, eu desfrutava de cada chicotada. O mais estranho de tudo é que tinha a sensação... de que era ele quem desfrutava. — cobriu o rosto com as mãos geladas. — Os sonhos revelam nossa personalidade profunda? Se for assim, a minha é repugnante. — Às vezes os sonhos mostram a nós mesmos — disse Lucien devagar. — Mas também podem nos dizer outras coisas. — Amontoou vários travesseiros contra a cabeceira para recostarse neles, e depois embalou Kit contra seu peito. — Me conte que outros detalhes você se recorda, antes que os esqueça. — Um espaço fechado, asfixiante. Um calor pegajoso. A decoração é carregada e vulgar. — desabotoou-se com mãos nervosas o botão que fechava a gola da camisola. — Uso umas botas pretas ajustadas de salto absurdamente alto e um objeto peculiar, como... Como uma pele de serpente acetinada e preta. E uma peruca de cabelo comprido. De cor vermelha, creio. — E ele como é? Kit esfregou a têmpora e moveu a cabeça em um gesto negativo, frustrada. — Está se desvanecendo. Sinto muito. Necessito de água. — se levantou e desceu da cama, mas imediatamente desabou sobre o tapete. — Kit! — Lucien saltou disparado e a tomou nos braços, depositou-a sobre a cama e a tapou com as mantas. Kit estava pálida e tremendo dos pés a cabeça, mas conseguiu esboçar um débil sorriso. — Estou bem, de verdade. Isto já me aconteceu antes. Passará em alguns minutos. Lucien se deteve um instante a caminho à bacia. — Com que freqüência acontece? — De forma leve, me acontece toda a vida. — Suspirou com cansaço. — Ultimamente está sendo muito pior. Agora não só me deixa esgotada, mas também mal consigo andar como você viu. Os pesadelos são novos, também. Suponho que ambas as coisas são o resultado da preocupação por Kira. —Talvez. — Encheu um copo de água e o levou até a cama. — Em todos os pesadelos aparece alguém que é açoitado? Kit parou para pensar. — Creio... Creio que sim. Lucien a sustentou enquanto ela bebia, e depois a recostou suavemente contra os travesseiros. Aproximou-se para avivar o fogo e enquanto isso lhe disse: — É possível que, em vez de sonhar, esteja percebendo os pensamentos e experiências de Kira? — Não acredito — respondeu Kit dúbia. — Perceber suas emoções é coisa muito distinta de poder ler a sua mente. — Pense outra vez. O chicote que estava usando, tinha-o na mão direita ou na esquerda? Kit se olhou as mãos e empalideceu de repente. — Na direita. Era a mão de Kira, não a minha. — Levantou o olhar para Lucien, com expressão de perplexidade. — Mas as imagens eram irreais, de pesadelo. Kira jamais torturaria deliberadamente a ninguém. Lucien disse com seriedade: — Você disse que experimentou a sensação de que ele estava gostando. Talvez ele quisesse que ela o açoitasse. — Não é possível que alguém possa desfrutar com uma dor assim! 150


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— Não necessariamente. — Lucien se sentou no lado da cama e lhe pegou uma mão entre as suas. — As raízes do desejo são complexas e misteriosas, Kit. Para algumas pessoas, o prazer e a dor estão tão estreitamente relacionados entre si que acham excitante certo tipo de dor. — Vendo que ela não lhe acreditava, disse —: Sei que não parece muito verossímil, mas aqui mesmo, em Londres, há bordéis especializados em açoites. Conheço uma mulher que é proprietária de um deles, e ganha a vida com ele. Kit se mordeu o lábio, sentindo uma curiosidade jornalística que podia mais que seus sentimentos pessoais. — E te explicou alguma vez por que os homens vão até lá? — Dolly diz que muitos de seus clientes são pessoas muito poderosas, homens influentes que têm importantes responsabilidades. Excita-lhes encontrar-se em uma situação em que se vêem necessitados e cujo único propósito é o sexo. De modo similar, há mulheres que gostam de empunhar um chicote porque é uma situação em que podem dominar um homem totalmente e que este ainda por cima lhes agradeça. — Suponho que tem sua lógica, por estranha que seja. —Não espere muita lógica, não se trata de uma questão racional — disse Lucien secamente. — Existem tanto homens como mulheres com esses gostos tão especiais, e os tem aqueles que se alternam na tarefa de manejar o chicote. E a coisa não se limita aos açoites; Dolly tem clientes que falam extasiados de como eram surrados nas nádegas por babás ou professoras de escola quando eram meninos, e após procuraram sempre essa mescla de dor e prazer. Outros... — interrompeuse. — Não importa. Tenho certeza de que já faz uma idéia. A mão de Kit apertou a sua. — Você acredita que Kira foi seqüestrada e obrigada a trabalhar em um desses bordéis? — Não é muito provável, esses lugares não precisam raptar suas empregadas. Há mulheres da boa sociedade que vão em certas ocasiões ao local de Dolly e trabalham de graça. — moveu-se incômodo, pensando que não tivesse que explicar aquelas coisas a Kit. — Eu creio que sua idéia original é a correta. Kira foi seqüestrada por um homem que estava obcecado por ela. Não obstante, em lugar da violação ao uso, tem... Gostos menos comuns. Uma vez ela estivesse cativa, poderia lhe explicar o que lhe causava prazer e deixaria claro que a ela lhe interessava o agradar. — Oh, meu deus! — Kit se apertou o dorso da mão contra a boca, com expressão de asco. — É repugnante. — Poderia ter ocorrido coisas piores — disse Lucien com gravidade – Isso explicaria por que você tem a sensação de que se encontra fisicamente bem embora est eja sofrendo emocionalmente. Kit franziu o cenho. — Se um homem assim se excitar sexualmente quando se vê desamparado, do que serve têla cativa? Ele continua tendo o controle embora seja ela quem empunha o chicote. Lucien encolheu os ombros. — Talvez é incapaz de se permitir ficar completamente desamparado, de modo que cria uma fantasia de submissão sem deixar de reter o poder em última instância. Com o aspecto de não estar segura de se queria conhecer a resposta, Kit perguntou: — Você tem feito alguma vez essas coisas, Lucien? Ele sorriu e sacudiu a cabeça negativamente. — Dolly se ofereceu para me demonstrar o delicioso prazer que supõe ser dominado por uma artista como ela, mas eu declinei sua oferta. O único prazer que encontrei na dor é quando esta cessa. — Vendo que Kit parecia confusa, adicionou —: Muitas coisas que se consideram perversas são simplesmente extensões da conduta que se aceita como normal. A maioria dos casais de amantes brinca de formas que dê prazer a ambos, com brincadeiras, ou lutando em 151


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brincadeira, ou fingindo sedução, por exemplo. Algumas pessoas simplesmente vão mais longe. Ela fez uma careta. — Muito mais longe. Explicado assim, posso entender um pouco melhor. Você acredita que Dolly te diria os nomes de seus clientes? — Duvido que me desse isso sem mais, mas talvez confirmasse nomes que eu lhe sugerisse. De todos os modos, recorda que não há garantias de que nosso homem seja um cliente de seu estabelecimento. — É uma maneira de começar. Pergunte a ela sobre Mace, Chiswick, Nunfield, Westley e Harford. Embora não creio que Harford seja o seqüestrador, pode ser que esteja comprometido de forma indireta. — Já parecia sentir-se mais forte, e trocou de postura para sentar-se na cama. — O que te tem feito pensar que meus pesadelos poderiam vir de Kira? — Linnie e eu tínhamos às vezes os mesmos sonhos, embora não nos demos conta disso até que tivemos nove anos e começamos a comparar notas depois de uma noite difícil. Além disso, estava a questão de nos prestar força. Recorda que te contei o que fiz com ela? — Sim, mas não tinha certeza do que queria dizer. O olhar de Lucien ficou perdido. — É difícil de explicar. Quando éramos pequenos e ela estava doente, eu me sentava em sua cama, pegava a sua mão e lhe dizia que tomasse parte de minha energia. Era uma espécie de jogo, mas parecia funcionar. Ela superava mais rapidamente a convalescença, enquanto que eu me cansava mais facilmente. Aquele vínculo perdurou inclusive quando eu fui para o colégio. Às vezes despertava cansado e mais tarde me inteirava de que Linnie tinha estado doente. — Interrompeu aquelas lembranças antes que se tornassem dolorosas. — É isso o que acontece entre Kira e você? — Pode ser, sem que nenhuma das duas se dê conta. Quando eu me encontro em uma situação difícil, conscientemente trato de entrar em contato com Kira. Procuro apoio emocional, mas talvez também tenha tomado energia física sem ter a intenção. — E agora essa corrente inverte seu curso porque é sua irmã que está em perigo, e está drenando sua força para que a ajude a suportar sua situação. — de repente sorriu abertamente. — Imagina quão estranha soaria esta conversa a alguém que não tivesse um irmão gêmeo? — Me soa perfeitamente lógica. — Kit ficou em silêncio, com uma expressão de concentração no rosto. Parecia frágil e magra dentro das volumosas dobras da camisa de dormir de Lucien. Com a gola desabotoada, o objeto se abria muito até embaixo, mais inclusive que os vestidos de noite mais atrevidos. Lucien tinha o olhar fixo na fenda em sombras que se revelava, convidativa. Experimentava uma nítida percepção física do corpo que havia debaixo daquele tecido branco. Como tinham sido amantes, conhecia a encantadora linha de sua cintura, a forma de seus seios suaves e livres, o doce calor da parte interna de suas coxas. Notou a boca seca. Ainda que sempre havia se dado bem esperar para obter o que desejava, essa capacidade parecia ter lhe abandonado. A paixão era uma febre, e Kit o único remédio. Mais que nenhuma outra coisa no mundo, desejava fazer amor, não só para satisfazer o desejo, mas também para aprofundar na intimidade que tanto ansiava. Não lhe ajudava saber que tinha poder para a seduzir e a convencer a abandonar aquela decisão de evitar a intimidade física até que encontrassem Kira. Seria tão fácil; um leve beijo, uma carícia ao longo da elegante curva das costas, uma mão no joelho. Uma carícia levaria a outra. Logo a paixão dela seria igual à sua, e lhe aceitaria com inocente ardor. E depois, desprezaria a si mesmo por aquele egoísmo tão míope. Murmuran do mentalmente toda a maldição que conseguiu recordar, obrigou-se a levantar o olhar e perguntar em tom sereno: 152


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— No que está pensando? Tem um brilho de concentração nos olhos. — O Marlowe vai estrear Rua do Escândalo na próxima sexta-feira — respondeu Kit. — É uma obra muito popular em províncias, e será a primeira vez que se representa em Londres. Meu papel é pequeno, por isso o nome de Cassie James não aparece nos pôsteres. Acredita que poderia levar os principais suspeitos ao teatro como teus convidados? Quando eu aparecer pela primeira vez em cena, poderia vigiar se por acaso algum parece mais surpreso do que deveria estar. — É uma boa idéia, exceto... — Lucien franziu o cenho. — Se o seqüestrador te ver, saberá que tem que ser a irmã gêmea de Kira. Como você mesma disse, a alguns homens estimula a idéia de levar para a cama gêmeas idênticas. Isso poderia te pôr em perigo. — Se me seqüestrar, ao menos encontrarei Kira. — Não brinque com isso, Kit — cortou Lucien. — Se te acontecer algo... Fosse o que fosse que viu no semblante de Lucien, fez Kit abaixar o olhar. Por um espaço de alguns instantes flutuou no ar uma onda de intensas emoções. Por acordo tácito, ambos se abraçarem. Lucien disse: — Amanhã tentarei organizar uma saída para teatro. De agora em diante não quero que vá a nenhuma parte sozinha. Seu mensageiro de Bow Street pode agir como escolta quando eu não estiver com você? Kit assentiu com um gesto. — Creio que sim. Mostrou-se tão protetor comigo como um cão pastor com uma ovelha desencaminhada. — Um homem sensato. — Lucien a contemplou pensativamente. — estive pensando. Acreditas que poderia te comunicar conscientemente com Kira? Se for possível, talvez pudesse inteirar-se de algo a respeito de seu raptor e de onde está encerrada. — Quer dizer que a próxima vez que tenha um pesadelo devo tentar fazer perguntas Kira? — Franziu o cenho. — Não creio que possa controlar os sonhos dessa maneira. E embora pudesse, duvido que os resultados servissem para algo. Meus pesadelos não são mais que imagens difusas e uma certa sensação de suas emoções. Lucien estudou seu rosto, perguntando-se se Kit estaria de humor para atrever-se. — Em vez de aguardar que tenha outro pesadelo e esperar que aconteça o melhor, poderíamos provar com hipnose. Ela elevou as sobrancelhas de repente. — Acreditava que isso fosse charlatanismo. — Eu não estou convencido de que exista a hipnose animal da qual fala o doutor Mesmer — admitiu ele, — mas suas técnicas podem induzir um estado parecido ao sono em pessoas sensíveis. Se você pudesse estabelecer contato com sua irmã desse modo, eu poderia lhe formular perguntas através de você. — Você sabe hipnotizar uma pessoa? — Ao ver que ele assentia, Kit começou a rir. — Lucien, onde aprendeu essas coisas? — Neste caso, com um médico que estudou com Mesmer e depois continuou desenvolvendo métodos próprios. Me pareceu interessante, de modo que lhe pedi que me ensinasse. Não sei se o hipnotismo te ajudará a entrar em contato com Kira, mas estou razoavelmente seguro de que não te fará mal tentar. — Muito bem. — Kit se esfregou as palmas das mãos nervosamente contra as coxas. — O que tenho que fazer? Lucien franziu o cenho. — Deve estar esgotada. Talvez devêssemos esperar a té amanhã, depois que tenha dormido um pouco. 153


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— A fadiga rebaixa as barreiras mentais. Creio que há mais possibilidades quando Kira e eu estejamos cansadas. — Kit fez uma careta de tristeza. — Sei que eu estou, e se ela suportou uma sessão com seu raptor, estará também. Vale a pena tentar. — Está bem. Procure relaxar. Enquanto ela se recostava entre os travesseiros de modo que a parte superior do corpo estivesse um pouco elevada, ele pegou uma vela do candelabro que havia sobre a mesinha de cabeceira e a situou a certa distância de Kit, onde ela pudesse vê-la sem ter que se esforçar. — Pronta? Ela afirmou com a cabeça e esticou a manta sobre seus quadris, mas em seus olhos se lia a ansiedade. — Na realidade, isto consiste em pouca coisa. Pode ser que não note absolutamente nada — disse Lucien em tom deliberadamente natural. — O único tem que fazer é relaxar e olhar à chama. Firme, brilhante, varrendo todo seu cansaço e todas suas preocupações, deixando só paz e tranqüilidade. Está cansada, muito cansada, e agora pode relaxar. Sente-se muito leve e muito tranqüila, como uma pluma flutuando na brisa. — Lucien continuou falando de modo similar, modulando a voz de forma que soasse suave e fluída, como mel quente. Tal como ele tinha suspeitado, Kit era um bom transmissor. Músculo a músculo, a tensão foi abandonando-a, e lhe deixou uma expressão aprazível no rosto e o olhar fixo na chama. Quando acreditou que já estava preparada, disse-lhe: — Seu braço esquerdo é muito leve, tão leve que quer flutuar no ar. Deix ou-o flutuar livremente. Lentamente, o braço se elevou até ficar trinta centímetros por cima da manta. — Bem, muito bem, Kit. Agora sente que a mão te pesa muito. Deixa que caia para baixo. — O braço inerte desceu até a colcha. Enquanto se preparava para dar o seguinte passo, Lucien descobriu que experimentava o estranho desejo de lhe perguntar se o amava, mas suprimiu essa idéia. Não era o momento nem o lugar, e não estava seguro de querer ouvir uma resposta sincera. — Tenta tocar Kira — disse em voz baixa. — Está cansada e sozinha, e se sentirá melhor se souber que você está com ela. Sente sua presença? Os olhos cinza de Kit se iluminaram de repente. — Sim. Kira, Kira, amor...

INTERLÚDIO Quando ele partiu, ela estava morta de esgotamento, mas encontrou forças suficientes para despojar-se com gesto cansado daquele odioso disfarce. Depois esfregou todo o corpo com uma toalha áspera, porque, embora ele nunca a tivesse utilizado sexualmente, sempre se sentia suja depois de uma sessão. Esta noite tinha sido pior que o habitual, porque ele tinha insinuado o destino que a esperava e era muito difícil não sucumbir ao terror. Vestiu a camisola mais longa e opaca que encontrou no guarda-roupa e se deitou para dormir. Tinha jurado não compadecer -se de si mesma, mas lhe custava muito afastar o sentimento de desespero. Como sempre, pensou em sua irmã a modo de couraça protetora. A idéia de saber que nunca estava sozinha de t odo atuava como um verdadeiro bálsamo. Sua mente estava deslizando-se lentamente para o sono quando de repente sentiu uma presença quente que lhe perguntava: «Kira» 154


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-Kit! A impressão foi tão forte que a fez despertar de repente ao mesmo tempo em que tentava alcançar sua irmã, mas a sensação de contato desapareceu. Alarme, perda, solidão. Depois de um período de desesperado luto mental, deu-se conta de que devia relaxar para poder estabelecer de novo o contato. Com a firme determinação que a tinha ajudado até então a conservar a prudência, obrigou-se a acalmar-se. Então abriu a mente para sua irmã gêmea.

CAPITULO 28

O rosto de Kit se contorceu. — Desapareceu! —Relaxe, se acalme — lhe disse Lucien para tranqüilizá-la. — É provável que Kira se sobressaltou. Volte a tentar e lhe dê tempo para que te encontre. Transcorreram vários minutos de tensão até que Kit deixou escapar um suave suspiro de alívio. Tinha se conectado de novo com Kira. Lucien lhe perguntou: — Kira está em Londres ou no campo? Kit enrugou a testa. — No campo. — Sabe onde? — Ao ver que Kit parecia confusa, sugeriu. - Visualiza um mapa da GrãBretanha com uma cruz que assinale Londres. Tem alguma idéia de onde está, perto de Londres? — No fim de um minuto de silêncio, voltou a sugerir —: Ao norte? Oeste? Sul? leste? — Não sabe — disse Kit com preocupação. Uma longa pausa, e depois —: Mas... Não está longe da cidade. Talvez há umas duas horas. Se isso era certo, as possibilidades se reduziam grandemente. — Como é sua prisão? — Escura. Sempre escura, só há lamparinas. Silêncio. Guardas. — A camisa subia e descia a cada inspiração rápida. — Não é incômoda, mas é horrível não poder ver o sol. — Sabe quem é seu raptor? Kit lançou uma exclamação abafada e o terror se desenhou em seu rosto. — Não! Não! — Está bem, Kit, está a salvo — se apressou a dizer Lucien. — Diga a Kira que vamos encontrá-la e que ela também estará a salvo. Em lugar de tranqüilizá-la, aquelas palavras lhe provocaram mais angústia. — Não resta muito tempo! O sol... O sol está morrendo, e não verei o ano novo. — As lágrimas começaram a lhe escorregar pelas bochechas. Sussurrou com desolação —: Não chore Kira, por favor, não chore, não posso suportar. Sua dor fazia que lhe encolhesse o coração. Lucien deixou a um lado a vela e lhe pegou a mão. — Estamos te procurando, Kira — disse com voz firme. — Quando lhe encontrarmos, lhe traremos para casa o mais rapidamente que pudermos. O rosto de Kit se contraiu de angústia. — Quero ir para casa agora. 155


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—Quanto mais puder nos dizer de sua situação, antes poderemos te encontrar, Kira. Pode nos dizer algo sobre o seu raptor que possa nos ajudar a identificá-lo? — Um... Um comprido demônio dos fogos do inferno. — Kit torceu a cabeça, agitada. — Quero partir daqui! Já era hora de pôr fim a aquilo, antes que um dos três se desmoronasse. Lucien respirou fundo e conseguiu dizer em tom calmo: — Diga a Kira que a quer, Kit, e que não deve se desesperar. A expressão de Kit se suavizou. — Amo-te, Kira. Sempre. — Vou contar de um a dez, e quando chegar ao dez despertará e recordará o acontecido. Um dois... — Ao chegar ao dez, ordenou-lhe—: Acorda Kit. Ela piscou e seus olhos se enfocaram. — Funcionou — disse com voz apenas audível. Esfregou a testa com a base da mão. — Mas, Santo Deus, nunca em minha vida me senti mais cansada. Inclusive foi mais exaustivo que os pesadelos. Lucien se recostou e a rodeou com os braços, querendo transmitir um pouco de calor a seu corpo tremente. — Você o fez maravilhosamente. Recorda-se? — Sim. Foi muito estranho. — Kit se interrompeu e fez várias inspirações agitadas. — Ela sabia que eu queria informação, mas não parecia possível comunicar palavras, por muito que tentássemos. Eram em sua maior parte emoções, junto com algumas imagens. É frustrante. — Suponho que comprido demônio significa que seu raptor é alto e provavelmente magro. Isso encaixa com sua impressão? — Sim, e também encaixa com a vaga lembrança que eu tenho do homem dos meus pesadelos. O havia esquecido até agora. — esfregou a testa. — Eu disse algo a respeito dos fogos do inferno? — Sim. Imagino que é assim como sua mente traduziu a idéia de um Demônio. Isso é o que nós temos suposto, mas seria bom confirmar. Também ficamos sabendo que Kira se encontra fora de Londres, embora não longe, e que está confinada em um lugar fechado e isolado. — Franziu o cenho. — Poderia tratar-se de qualquer coisa, de uma casa de campo com as janelas bloqueadas com pranchas de madeira até uma verdadeira masmorra. Tiveste alguma outra impressão que não tinha expressado em voz alta? — Tão somente que está assustada e que logo vai ocorrer algo horrível. — Kit sentiu um calafrio. — O tempo está acabando. — Mas por fim estamos fazendo progressos. A partir de manhã, farei que vigiem a todos seus suspeitos. Talvez o seqüestrador nos conduza diretamente até sua irmã. Também tentarei averiguar quem possui propriedades a umas ou duas horas de Londres, já que pode ser que Kira se encontre encerrada em uma delas. — Enquanto pensava, acariciava brandamente o braço de Kit com os dedos. — Revisarei os relatórios dos Demônios que reuni como parte de meu trabalho ao procurar o espião. Não creio que encontre nada de interesse para o caso, mas nunca se sabe. — Isso seria bom — concordou Kit. — Eu tive que reduzir minha busca o mais possível devido à falta de recursos, mas não descarto a possibilidade de que minha pr esa seja alguém a quem considerei pouco provável. — estremeceu-se de novo. — Embora estivéssemos convencidos de que um deles é o culpado, como vamos fazer para encontrar Kira? — Usaremos sua varinha mágica. Pelo que diz, se nos aproximarmos o bastante do lugar onde Kira se encontra, você será capaz de encontrá -la. Kit mordeu o lábio. 156


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— Isso se a distância não for muito grande, mas creio que teria que estar a uns trezentos metros dela. — Poderíamos revistar uma mansão de noite, pela frente e por trás, penteando toda a área. — Estreitou-a mais contra si, pensando quão pequena e frágil ela se sentia. Doía-lhe saber que não podia a proteger do que ela mais temia. Disse gravemente —: Isto está exigindo muito de você, pequena. — Farei o que tiver que fazer — repôs ela, com profundas olheiras. — Mas quando a encontrarmos, como vamos tirá-la de lá? Creio que está fortemente vigiada. — Entraremos pela força e a levaremos. Seu primo Jason quererá vir, e tenho a impressão de que é um homem extraordinariamente capaz. Chamarei também meus amigos mais perigosos. Com homens como eles, poderíamos tirar Kira inclusive da Torre de Londres. — Começou a lhe massagear as costas para induzi-la ao sono. — Trata de te relaxar, Kit. Se for humanamente possível, a resgataremos sã e salva. — É um consolo. — Kit fechou os olhos e voltou o rosto contra o vão que formavam o pescoço e o ombro de Lucien. Este logo notou a respiração suave e regular dela assobiando contra sua garganta. Contemplou o teto salpicado de sombras com o semblante sério. Apesar de sua exibição de segurança em si mesmo, sentia-se profundamente preocupado. Havia muitas possibilidades e, se a mensagem de Kira fosse exata, muito pouco tempo. O monstro que a tinha raptado era muito capaz de cansar-se de seu brinquedo e matá-la para procurar outra mulher a quem atormentar. Era muito o que dependia do fino laço de união existente entre Kit e sua irmã. Para Kit supunha uma tremenda carga; se não conseguissem encontrar Kira a tempo, Kit jamais se perdoaria. Se veria condenada à solidão e a culpa, a essa sensação de estar incompleta que tanto tinha obcecado a ele durante a maior parte de sua vida. Não desejaria isso a ninguém, e muito menos a Kit. E, olhando de forma egoísta, temia que se sua irmã morresse Kit não quisesse voltar a lhe ver pelo fato de ter fracassado em sua tentativa de resgatar Kira. E somente em pensar nisso fazia que sues músculos se contraíssem. Quando esteve seguro de que Kit havia adormecido, desenganchou-a de seus braços com cuidado, desceu da cama e foi até sua mesa para escrever uma breve nota: Michael necessito de sua ajuda. Pode vir a Londres imediatamente? Lucien. Na parte de fora escreveu: «Lorde Michael Kenyon, Bryn Manor, Penreith, Caermarthenshire, Gales». A seguir verteu umas gotas de cera no lacre e apertou sobre ela seu anel com o selo de Strathmore. A primeira coisa que faria na manhã seguinte seria enviar a nota por um mensageiro especial. Se fosse preciso recorrer a uma operação de estilo militar, Michael não tinha preço. Mas antes tinha que descobrir onde estava Kira. Enquanto se deslizava na cama junto a Kit, rogou ao céu poder estar à altura da confiança que a jovem tinha depositado nele.

Lucien se deteve na soleira da porta. — Bom dia, Dolly. Seu lacaio me disse que subisse diretamente. A chamativa loira, que se encontrava inclinada sobre um livro de contas com o cenho franzido, levantou o olhar e um sorriso iluminou seu rosto. — Strathmore, que prazer tão inesperado. Vieste acrescentar algo picante a sua insossa vida? Ele sorriu abertamente e fechou a porta atrás de si. — Venha, venha, se recorda do nosso pacto: Eu não te chamo de asquerosa pervertida e você não me diz que sou um puritano sem imaginação capaz de aborrecer a qualquer mulher razoável 157


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até fazê-la dormir. Dolly se reclinou em sua cadeira, rindo. — Sempre gostei da forma que ri de meu negócio. A maioria dos homens opina que sou a criatura mais malvada que existiu desde Eva, ou pelo contrário tomam o meu trabalho tão a sério que esquecem que se supõe que se estão divertindo. — Dispõe de uns minutos? Ela fez um gesto com a mão. —Estou esperando um cavalheiro que chegará de um momento para outro, mas pode esperar. A frustração o fará mais equilibrado. — Pegou um enorme leque de plumas de avestruz da mesa, ficou de pé e deu uma volta em circulo, com uma mão apoiada no quadril. — É um traje novo. O que acha? Deixarei loucos os moços com isto? Lucien inspecionou solenemente o espetacular vestido de veludo vermelho. Devia ter colocado um espartilho exagerado, porque sua figura um tanto abundante se via sabiamente ressaltada para que oferecesse a máxima quantidade de curvas audazes, algumas das quais ficavam à vista graças a um decote que faria avermelhar à estátua de um santo. — Não é um pouco conservador? — disse Lucien. — Faz umas semanas vi uma duquesa vestida de modo similar, mas seu traje era mais atrevido. — Monstro! — Dolly lhe deu uma batidinha com o leque, que lhe roçou o dorso da mão, e Lucien viu que as densas plumas escondiam umas estreitas correntes de couro que poderiam machucar se fossem agitadas com força. O belo e o doloroso mesclados entre si, em uma perfeita metáfora das especiais habilidades de Dolly. — Devo admitir que nem sempre resulta fácil ser mais vulgar que algumas de suas damas da sociedade, mas se houver alguma mulher capaz de fazê-lo, essa sou eu. — sentou-se e cruzou as pernas de forma que a abertura da saia deixasse ver suas pernas torneadas e cobertas de renda preta até a metade da coxa. — Sente-se. Suponho que esta não será uma visita social. — Temo que não. — Lucien se sentou e adotou uma expressão séria ao mesmo tempo em que extraía uma folha de papel e a entregava a Dolly. — Algum destes homens é teu cliente? — Já sabe que não falo dessas coisas, Strathmore — disse ela em tom de desaprovação. — Meus clientes esperam que eu seja discreta. — Entendo e respeito isso, mas tenho a esperança de que comigo faça essas regras um pouco mais flexíveis. É extremamente provável que um destes homens tenha seqüestrado uma jovem atriz de boa família e a esteja obrigando a participar do tipo de atividades que seus clientes gostam. Dolly franziu o cenho. — Isso não é bom. Os jogos só são bons se a pessoa participar livremente e respeita os limites do outro. O melhor é quando se faz com autêntico respeito. — Deu uma olhada à lista. — Não creio que seja o primeiro, Harford. Conheço-o, mas nunca esteve aqui. Às vezes visita um bordel comum que uma amiga minha dirige. Pelo que sei é um tipo normal e prosaico como você. Lucien pareceu doído. — Preferiria que não fizesse comparações entre Harford e eu. Ela sorriu e voltou a examinar a lista. — Os outros vieram todos, mas não são clientes habituais. Vêm mais para pôr um pouco de variedade em suas vidas. Mace é estritamente um cara dominante, bastante bom administrando disciplina. Chiswick faz de tudo, algumas vezes de amo, outras de escravo. Westley é totalmente passivo, gosta que lhe atem e fica louco quando lhe fazem cócegas nos pés. Nunfield. — Deu umas batidinhas com uma longa unha sobre o papel. — Este vai muito longe. Depois da última vez que veio, disse-lhe que não voltasse mais. 158


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— Se baseando em seu conhecimento destes homens, há algum que você escolheria como o mais provável para estar por trás de um caso de seqüestro? Dolly hesitou. — Talvez Nunfield, mas é difícil de dizer. Todos são desse tipo de homens que estão muito acostumados a conseguir o quer. Isso poderia incluir seqüestrar e açoitar uma moça que não lhes tenha mostrado o devido respeito. — Na realidade, tenho razões para acreditar que a jovem está sendo obrigada a representar o papel de ama. Dolly franziu os lábios. — É estranho. Não esperaria de um homem a quem agrada ser dominado que provasse algo agressivo como um seqüestro. De todos os modos, nunca se sabe. — Devolveu a lista a Lucien. — Espero ter sido de ajuda. — Foi sim. — Lucien ficou em pé. — Obrigado, Dolly. Foi muito valiosa sua colaboração. — Me informe se encontrar à garota — disse ela com gesto sério. — Um indivíduo que seqüestra uma moça e a força a fazer algo contra sua natureza é capaz de qualquer coisa. Lucien disse com suavidade: — É isso que eu temo.

Lucien se encontrava trabalhando em seu escritório quando Jason Travers apareceu depois de um prolongado descanso. Banhado, barbeado e vestido com roupas que ele havia lhe proporcionado, tinha um aspecto bastante apresentável, embora as objetos se pendurassem flácidas sobre sua enfraquecida ossatura. Lucien lhe fez um gesto para que entrasse. — Boa tarde. Como está? O americano entrou e começou a caminhar nervoso pela sala. — Um pouco mais cordato que ontem à noite, embora ainda não descartei a possibilidade de que eu tenha pegado a febre e tudo isto seja uma alucinação. — Atenderam-lhe bem meus criados? — Muito bem. — O humor brilhou em seus olhos escuros. — todos me chamam de lorde Markland. Custa-me recordar que esse sou eu. Lucien se reclinou na cadeira de carvalho. — Pareceu-me uma precaução razoável. Embora as autoridades estejam lhe procurando, não relacionarão um conde com um prisioneiro de guerra fugido. — Em efeito, eu mesmo tenho problemas para estabelecer essa relação. — O olhar do americano percorreu as prateleiras de livros encadernados em couro, o elegante mobiliário reluzente pela cera, o silencioso luxo do tapete que pisavam seus pés. — Tudo o que vejo é um festim para os sentidos. Depois do entorno cinza do navio prisão, isto resulta ma is revitalizador. Tomei o café da manhã, um ovo passado pela água e torradas. Pura ambrosia. — Tocou as pétalas de um buquê de flores frescas que perfumavam suavemente a habitação, acariciando a sedosa superfície com reverência. — Soube por seus serventes que você também é um lorde. Lucien inclinou a cabeça formalmente. — O nono conde de Strathmore, o último de uma longa linhagem de homens que sabiam de que lado ficar em uma luta pelo poder e como abandonar um jogo de cartas quando estavam ganhando. Não é uma característica muito heróica, mas concedeu uma grande longevidade à família. Jason escrutinou seu rosto. — Talvez ser um lorde não significa que um homem seja totalmente inútil. 159


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Lucien sorriu. — A franqueza dos americanos resulta o mais refrescante. O outro se ruborizou. — Sinto muito, não quis dizer da forma que soou. Esqueci como comportar-se na sociedade normal. — Pegou um antigo relógio de areia que havia na estante dos livros e acariciou a madeira de nogueira polida. Depois o virou e observou como caía a areia branca. — Dois anos de minha vida desperdiçados, e sem ter obtido nada em troca. — Com o tempo, irão desaparecendo as lembranças que agora lhe parecem insuportáveis — disse Lucien em voz calma. — Pelo menos, é isso que me disse um amigo que passou vários anos desventurados combatendo contra os franceses na Península. Pode ficar aqui todo o tempo que desejar. Como vê, há espaço de sobra. Ou, se preferir, posso lhe ajudar a ir ao Continente, de onde poderá tomar um navio para a América ou aguardar em lugar seguro até que termine a guerra. Há excelentes possibilidades de que se firme um tratado antes do fim de ano. — Amém a isso. Mas não quero partir da Inglaterra sem saber de Kira. — Voltou a deixar o relógio de areia na estante e continuou —: Em tal caso, eu gostaria de desfrutar de sua excelente hospitalidade, mas tem que levar em conta os gastos que eu ocasione. — Passou os dedos pela fina lã de sua jaqueta azul. — Transportei em meus navios muitas peças de tecido para reconhecer a qualidade superior quando a vejo. Lucien disse em tom afável: — Levarei em conta até do último guineu, e acrescentarei uma modesta quantidade em conceito de interesses. — Obrigado por me seguir o humor. — Sua expressão se tornou séria. — Agora me conte tudo sobre o desaparecimento de Kira. Lucien lhe relatou tudo o que sabia ou supunha. Terminou com uma descrição do pesadelo que Kit teve e da informação fragmentada que obtiveram através de uma sessão de hipnotismo, repetindo as palavras textuais o mais exatamente que pôde. O semblante do americano ficou rígido, só seus olhos revelavam emoção. No final do relato disse com letal precisão: — Quando encontrarmos o homem que raptou Kira, vou cortá-lo em pedaços pequenos com uma faca sem afiar. — Talvez tenha que fazer fila para desfrutar desse privilégio — repôs Lucien secamente. — Essa parte que disse de que ela não chegaria a ver o ano novo... Acredita que o dizia em sentido literal? Deus, apenas faltam duas semanas para janeiro! — Dentro de alguns dias deveríamos ter informação suficiente para agir. — Embora suas palavras fossem tranqüilizadoras, o olhar de Lucien voltou a pousar-se no relógio de areia da estante. Não podia se separar de sua mente o macabro pensamento de que as horas de vida de Kira iam se esgotando de maneira tão inexorável como a areia do relógio. E se ela morresse, ele talvez perdesse Kit para sempre.

CAPITULO 29

Lorde Chiswick espionou por cima do corrimão do camarote. — Sempre que venho ao teatro, sinto um desejo irresistível de me pôr a atirar fruta podre nas 160


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pequenas criaturas que enchem a platéia de poltronas. — Os atores não lhe agradeceriam por isso — assinalou Lucien. — É quase seguro que eles acabariam atirando a fruta a eles. Lorde Mace tomou uma pitada de rapé. — Só se o merecem claro está. Nunfield disse: — Talvez deveríamos chamar um verdureiro e comprar todos os estoque, no caso de nos fazer falta. — Esta noite não creio que seja necessário preparar fruta podre — intercedeu Ives de bom humor. — Pelo que sei a obra é bastante divertida. — Assim eu espero — resmungou Nunfield. — Se não, pode ser que abuse de sua hospitalidade e parta na metade da representação, Strathmore. Há um novo clube de jogo em Pall Mall que se supõe que é bastante especial, e quero lhe fazer uma visita esta noite. — Se a obra é aborrecida, irei com você — disse Lucien com naturalidade. Era uma sorte que todos seus suspeitos exceto Harford estivessem livres para aceitar seu convite para o teatro. A fim de evitar que parecesse muito óbvio, havia convidado também lorde Ives, que sempre estava disposto a visitar Marlowe para poder admirar sua Cléo. Uma boa parte da sociedade da moda tinha saído da cidade para passar as férias em suas propriedades de campo, assim vários dos melhores camarotes estavam vazios. Entretanto, a platéia e a galeria estavam abarrotadas de londrinos desejosos de ver a primeira representação de Rua do Escândalo. Para poder apresentar-se como concerto, o programa se iniciava com uma interpretação de um concerto grosso por parte da pequena orquestra, o qual foi majoritariamente ignorado pelo público. As conversas se apagaram quando terminou a música e deu começo o primeiro ato. A trama consistia nos vis intentos de um comerciante corrupto por desacreditar a um honrado funcionário do governo, sir Digby Upright. (A mera idéia de que existisse um funcionário do governo que fosse honrado produziu uma explosão de risadas.) O diálogo era inteligente e atual, com alguma que outra lembrança dos problemas reais do país, dos esbanjamentos do Príncipe Regente até as negociações de paz que aconteciam em Viena e em Gante. O público inteiro se divertia, até os enfastiados corruptos que ocupavam o camarote de Lucien. A cena culminante do primeiro ato foi um baile que sir Digby deu para anunciar o compromisso de sua filha. Sem que ele soubesse, seu inimigo tinha tramado para lhe desacreditar diante de seus convidados, entre os quais se achavam muitos membros importantes do governo. A cena começou quando sir Digby interrompeu o baile para apresentar a sua ruborizada filha, interpretada por uma muito recatada Cléo Farnsworth, e ao charmoso e jovem noivo desta. Mal havia terminado de anunciar o compromisso quando saltaram ao cenário dois personagens cômicos levando um enorme tapete enrolado. Diante dos olhares de todos os convidados, os dois homens desenrolaram o tapete em meio da pista de dança e, sinuosa como uma serpente, dela surgiu Kit, usando uma chamativa peruca loira e um vestido de cetim de cor carmesim quase tão atrevido como o que Dolly havia exibido. Não só mostrava um decote muito baixo na frente, mas também o decote das costas quase chegava até a cintura, deixando ver uma ampla extensão de cremosa pele. Lucien havia se situado em um extremo do camarote para poder observar seus companheiros sem que se notasse. Ao Kit aparecer em cena, Ives e Westley simplesmente riram junto com o resto do público. Chiswick se inclinou para frente e se apoiou sobre o corrimão com os braços cruzados e o olhar fixo. Com trabalhada naturalidade, Nunfield se reclinou e tamborilou com os dedos sobre um joelho, com seu penetrante olhar cravado no palco, enquanto que Mace não mostrou reação alguma, exceto talvez um leve gesto de apertar os lábios. 161


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Lucien amaldiçoou as sombras que não lhe deixavam ver as matizes de suas expressões. Embora não tivesse esperado que o culpado ficasse em pé de um salto e gritasse: «Sou eu!», sim acalentava a esperança de captar algum indício, algum sinal de assombro ou de desconforto ao ver «Cassie James». A falta total de reação não demonstrava nada; todos os Discípulos eram peritos jogadores profissionais, acostumados a controlar seu semblante. Para horror de sir Digby, Kit o beijou dando a entender que se conheciam de muito tempo, insultou sua esposa e a sua filha, paquerou com o estupefato noivo e disse alegremente a todos os convidados que «Digby» a tinha ajudado muito porque tinha ganhado muito dinheiro aceitando subornos. Quando sir Digby proferiu um protesto, ela o fez se calar com um lânguido movimento da mão, uma esplêndida criatura feminina recreando-se em seu poder sobre o macho da espécie. Kit se virou para o público e deteve o olhar por um muito breve instante no camarote de Lucien. Continuando, com um retumbar de tambores, lançou-se a uma vertiginosa dança de ondulante can-can e pernas deslumbrantes. Lucien tentou observar seus companheiros, mas seu olhar se viu atraído de maneira irresistível para Kit. Sua vitalidade e sua presença no palco faziam que todos os olhares da sala ficassem grudadas nela. Havia uma nova sensualidade em seus movimentos. Na A Cigana, tinha fingido habilmente a paixão; agora a paixão formava parte dela. Cada curva que sua mão traçava, cada graciosa inclinação do pescoço, cada olhar sedutor era uma promessa de delícias terrestres. Lucien sentiu que seu corpo se esticava de desejo. Os dois dias que tinham transcorrido desde que a havia visto pela última vez lhe pareciam uma eternidade. Explodiu uma ovação espontânea quando as saias de Kit se levantaram o bastante para deixar à vista a tatuagem em forma de mariposa. Lucien se encontrou debatendo-se entre o desejo de destroçar todo homem do público que tentasse alguma fantasia sensual a respeito de Kit e o primitivo orgulho masculino de saber que ele era o único que tinha beijado aquela incitante mariposa, o único que conhecia os segredos de seu corpo e a esplendorosa limpeza de seu espírito. Ele também estava a caminho de ficar louco, e era provável que não recuperasse a prudência até que Kit se casasse com ele. Ao finalizar a dança Kit se deixou cair em uma graciosa postura de subordinação aos pés do mortificado sir Digby. A esposa e a filha deste abandonaram o palco furiosas, a filha arrastando consigo seu resistente noivo. Seguiram-lhes os escandalizados convidados, deixando sir Digby a sós com sua fraudulenta amante. Kit ficou de pé com um salto, lançou a sir Digby um beijo pelo ar e partiu também, deixando o pobre funcionário só entre as ruínas de sua vida. O ato terminou com uma estrondosa ovação. Lorde Chiswick disse com um incomum desdobramento de entusiasmo: — Que atriz tão deliciosa. — Certamente — apoiou Westley. — Alguém sabe como se chama? — Cassie James. — Nunfield inalou um pouco de rapé e depois passou a caixinha a Mace, que pegou uma pitada. — Em certa ocasião, eu ofereci a essa jovem uma carta branca, mas ela me rechaçou, por desgraça. Talvez tente de novo em termos mais generosos. — Seu olhar se deslizou até Lucien. — Naturalmente, pode ser que já tenha um protetor. O gesto de irônica diversão que havia em seus olhos demonstrava que se inteirou de como Lucien tinha tirado Kit do camarim, mas em sua expressão não havia rastro de ciúmes. Sua tolerância era real ou fingida? Impossível de discernir. Mace disse, arrastando as palavras: — Eu já estou farto de atrizes. São avaras e obcecadas consigo mesmas. Prefiro esposas aborrecidas, são muito menos caras e muito agradecidas pela atenção de quem as desposa. — ficou de pé. — Creio que vou esticar um pouco as pernas antes que comece o próximo ato. 162


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Os outros homens também decidiram ir tomar algo de beber ou a visitar pessoas dos outros camarotes, e deixaram Lucien sozinho para refletir sobre o que tinha observado. Estava a ponto de descer também ao andar de baixo quando um sexto sentido o fez levantar a vista no momento em que Kit entrava em seu camarote. Vestia uma grande capa escura com o capuz subido que lhe cobria o cabelo e levava um ar casto e modesto, como uma monja medieval. Por um espaço de alguns instantes simplesmente se olharam um ao outro. E então se abraçaram. O corpo de Kit estava quente e flexível depois do exercício, seu beijo tão faminto como o dele. Permaneceram assim durante intermináveis minutos até que ela girou a cabeça com um sorriso. — Na realidade, vim para saber se tinha averiguado algo. Lucien recordou onde se encontrava e disse: — Não deveríamos tentar falar aqui. Em qualquer momento um dos outros poderia retornar. — Eu sei. Fiz algumas indagações antes da representação, e o camarote que está no final desta fila deveria estar vazio. Podemos falar ali. — Deu uma olhada no corredor e em seguida pegou a mão de Lucien e o conduziu rapidamente até o camarote vazio. Kit tinha escolhido bem, porque o lugar tinha uma peculiar forma afundada, e o interior estava tão escuro que era duvidoso que alguém pudesse os ver. Não obstante, por discrição, Lucien a atraiu para os seus braços no fundo do camarote; se alguém os observava, suporia que eram amantes roubando um beijo ilícito. Falando em voz baixa ao ouvido, contou a Kit o que Dolly lhe havia dito e suas próprias observações de seus companheiros de teatro. Quando terminou, ela não disse nada. Sua decepção era evidente. — Sinto muito, Kit — disse Lucien. — Talvez algo tenha me passado por alto, mas é que quando você começou a dançar não pude a fastar a vista. Assim como todo o mundo. Esteve soberba. — Dancei para você — disse ela com um fio de voz apenas audível. — Tinha essa esperança. — Lucien introduziu as mãos debaixo da capa de Kit. A jovem ainda usava o traje de grande decote nas costas, de modo que começou a lhe acariciar os nus e aveludados ombros. O fato de tocá -la por debaixo da capa lhe causou a deliciosa sensação de estar fazendo algo proibido. Ela se estremeceu ligeiramente e seus olhos cinza se obscureceram. Lentamente, como se lhe custasse esforço recordar o tema de conversa, perguntou-lhe: — Se tivesse que escolher por pura intuição, qual dos quatro seria para ti o seqüestrador? — Mace. — Embora sua resposta fosse imediata, levou-lhe um pouco mais de tempo a analisar as razões. — É o que menos reação mostrou, até o ponto de ser um tanto chamativo, dado que todos os outros homens do teatro estavam embriagados por sua atuação. E não duvido que seja capaz de ser frio e cruel. — Sua amiga Dolly disse que era dos que gostam de manejar o chicote — lhe recordou Kit. — Por que ia querer forçar uma mulher para que lhe maltratasse? — Não sei. — Lucien abaixou um pouco o capuz para trás. Usava uma massa de mechas loiras retorcidas à altura da nuca que mal caíam em enredados cachos. Mal visível sob a chamativa peruca, a orelha de Kit se via pequena e delicada, esquisitamente formada como uma flor. Lucien percorreu seu contorno com a língua. Um gosto de suor e sal, um aroma perfumado de especiarias e essência de mulher. Recordando a si mesmo que devia manter a mente concentrada, acrescentou: — Mas Dolly disse também que era impossível predizer o que poderia fazer um homem assim. Kit deixou escapar um profundo suspiro, abrindo e fechando as mãos nas costas de Lucien. 163


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— E... e sobre Nunfield? Ele admitiu que quer converter Kira em sua amante. Lucien desceu as mãos por debaixo da capa, percorrendo a pele lisa e acetinada e o vestido fortemente fechado, até chegar às firmes nádegas. Apertou-as ligeiramente, amoldando as tentadoras curvas com as palmas. — Não tem aspecto de ser um candidato persistente tão obcecado para recorrer ao seqüestro. Naturalmente, Nunfield poderia ser um magnífico ator que está divertindo-se em segredo ao saber que tem Kira reservada para si em outra parte. — E Chiswick? — Comportou-se como se nunca tivesse visto Cassie James. E talvez assim seja. Parece-me que não está acostumado a vir muito ao teatro. — Ainda que Lucien soubesse que devia soltar Kit, suas mãos resistiam a deixá-la. Meio divertido e meio exasperado consigo mesmo, disse —: Tornase difícil ser racional te tendo em meus braços. — Sei exatamente o que quer dizer. — Timidamente, Kit se inclinou para frente e lhe percorreu a forma da mandíbula com a ponta da língua. Ele sentiu um quente estremecimento em todo o corpo e conteve a respiração, com a esperança de que ela continuasse. Ela lhe agradou em silêncio. Seus suaves lábios encontraram o vão que havia debaixo da orelha. Leves tremores de prazer lhe percorreram de cima a baixo, uma tormenta que foi crescendo até explodir em um relâmpago quando Kit lhe mordiscou o lóbulo suavemente, de forma experimental. Ele virou a cabeça e ambos se beijaram com ânsia, abandonando-se um à boca do outro. Ela era a reservada Kathryn e a atrevida Cassie e a lúcida Kit, todas em uma. Lucien a abraçou com mais força e a atraiu para si, modelando o ventre feminino à carne dura dele. Em algum lugar ao longe, longe de seu febril abraço, o público ia retornando a seus assentos em meio de um rumor de tosses e passos. Sabendo que aquilo tinha que acabar, Lucien disse sem fôlego: — Suponho que terá que descer para o seguinte ato. Depois de uma pausa de insegurança, Kit respondeu: — Não... Não tenho que sair de novo até o final do terceiro ato. — Sua respiração se converteu em um ofego que tentou a sensível pele do pescoço de Lucien. Compreendeu seu medo de pôr em perigo o vínculo que a unia a Kira e aceitou sua necessidade de evitar aquela emocional tormenta de paixã o. Mas sua mão, sua malvada e egoísta mão, deslizou-se por seu quadril e se introduziu entre os corpos de ambos, acariciando por cima do cetim carmesim a misteriosa fenda que havia entre as coxas dela. Kit emitiu um gemido afogado e cravou os dedos na cintura de Lucien como se fossem garras. — Não... Não deveríamos fazer isto. — Sei — admitiu ele, sondando mais profundamente. Inclusive através das várias camadas de tecido, notou um delicioso calor. — Mas é... muito difícil parar. Kit inclinou a pélvis em direção a mão de Lucien e deixou escapar um grave gemido, o som mais tentador que se poderia imaginar. Lucien se apoderou de sua boca para tragar aquele som revelador, delirante. Uma aguda frase pronunciada no palco provocou uma explosão de risadas ao redor. Lucien mal se deu conta, porque, assombrosamente, a mão de Kit começou a lhe rodear a cintura e descer por seu abdômen em uma vacilante, exploradora carícia. Ele aproximou os quadris e se ape rtou contra a mão, a qual, já não tão insegura, fechou-se ao redor dele. Lucien ficou paralisado, com uma rigidez tal em todo o corpo que teve a sensação de que se ele se movesse, romper-se-ia em pedaços. 164


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Entretanto, era impossível não mover-se. Agarrou um punhado de tecido da saia e do cancan e levantou ambos os objetos. Debaixo do enorme monte de tecido, as meias de renda estavam unidas ao espartilho por meio de primorosos lacinhos. Ignorando os laços, Lucien deslizou os dedos por entre as coxas de Kit procurando os suaves cachos que ocultavam a carne quente, docemente feminina, profusamente umedecida. Kit escondeu o rosto no ombro dele para não começar a chorar quando Lucien a tocou. — Não devemos... — disse fracamente, sem saber se queria ou não que ele fosse mais forte que ela. — E... e se alguém olhar dentro do camarote? — Está muito escuro... para que nos vejam — respondeu Lucien com a voz rouca e a fala confusa, como se lhe custasse esforço formar uma simples frase. Kit se sentiu tonta, com muita dificuldade de recordar por que não deviam continuar. Notava o intenso calor contra a palma da mão, a potência masculina inconfundível inclusive através das várias camadas de tecido que os separavam. Apertou um pouco a mão ao recordar como se sentiu ao o ter dentro de si, e aquele pensamento a fez derreter-se de desejo. De forma inconsciente, começou a acariciar com a mão seu membro erguido, para cima e para baixo. Lucien gemeu e levou uma mão aos botões das calças, e, em sua impaciência, desabotoou-os quase os arrancando. Em seguida retrocedeu ligeiramente, puxando Kit com uma mão enquanto estendia para trás a outra. Encontrou uma cadeira e se sentou, colocou Kit montada sobre seus joelhos e a guiou para que esta se sentasse de forma que ficou empalada nele. Ao deslizar-se em seu interior, Kit permaneceu um momento imóvel pela surpresa. Existia uma intimidade indecente na forma em que os corpos de ambos estavam unidos sob as respeitáveis dobras das saias e da grande capa. Indecente, e insuportavelmente erótica. Lucien fez um leve movimento para cima, e Kit se sentiu abrasada por uma sensação de urgência. Inclinou-se para frente, esmagando o torso contra o peito dele e a bochecha contra a sua. Lucien a abraçou tão estreitamente que mal tinha espaço para respirar. Ambos começaram a balançar-se juntos com movimentos pequenos e selvagens. As pernas da cadeira chiavam contra o chão, mas o ruído ficou sufocado por mais risadas do público. O sangue pulsava em Kit nas têmporas como um tambor da selva, aumentando seu ritmo até quase enlouquecê-la. O peso e a pressão concentrados em um só lugar íntimo, inominável, que ardia com um calor abrasador até que todo seu corpo se viu sacudido por uma repentina onda de violentos espasmos. Cravou os dentes no ombro de Lucien, notando a aspereza da lã nos lábios. — Santo Deus, Kit... — Os dedos de Lucien se aferraram com força a seus quadris, ancorando o corpo de um ao do outro quando ele arremeteu para cima com um som primitivo e ininteligível que lhe saiu do fundo do peito. Uma potente vibração em seu interior e depois alguns tensos instantes nos que nenhum dos dois respirou. Lentamente, a tensão dos músculos se foi afrouxando e o ar voltou a penetrar nos pulmões. — Deus... — ofegou Lucien. — Eu sinto muito Kit, não tinha a intenção de que isso acontecesse. Apoiou a testa contra a dela ao mesmo tempo em que se esforçava para respirar. — Ainda sente a união com sua irmã? — Foi tanto minha culpa como sua — sussurrou ela com sucinta sinceridade. Mas, Santo céu, como podia ter esquecido de Kira assim? Que tipo de mulher egoísta podia ter se permitido um comportamento passional que pudesse supor uma ameaça para sua irmã? Procurou Kira em sua mente, temerosa de que o indefinível vínculo emocional que existia entre elas não tivesse sobrevivido a uma paixão tão abrasadora. Desta vez sabia que não devia deixar-se dominar pelo pânico se não fosse possível encontrá-la imediatamente. Enfocou a mente com paciência, bloqueando a lânguida satisfação de seu corpo. Por fim identificou a débil pulsação 165


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que indicava o espírito de sua irmã gêmea e, com uma onda de alívio, disse: — Não aconteceu nada. Ainda sinto Kira. — Nesse caso — disse Lucien, rindo sem fôlego. — Não lamento que nos tenhamos abandonado. Kit levantou a cabeça e disse em tom duro: — Isto não tem graça. A paixão destrói gravemente minha racionalidade. Não deveria ter permitido que ocorresse. — É normal ter a sensação de que alguém perde a racionalidade depois de fazer amor — repôs Lucien. — O efeito está costuma passar. Não seja muito dura com você mesma. Até agora, a paixão não parece ter afetado o laço que une a sua irmã, e nos dois desfrutamos imensamente. Aquela era uma das razões pelas quais Kit se sentia tão culpada. Precisando explodir contra alguém, exclamou: — E você não quer renunciar a esse prazer. Minha complacência diante de seus requerimentos amorosos é o preço que tenho que pagar para que me ajude a encontrar Kira? Lucien fechou as mãos com força sobre os braços dela, e Kit notou como se estremecia de cólera. Ainda estavam unidos, e ela se sentia profundamente vulnerável, rodeada e invadida pela força dele. Mas quando Lucien falou, sua voz foi suave, mortalmente suave: — Alguma vez tenho feito ou dito algo que sugira que minha ajuda é condicional? — Não. — Kit abaixou o olhar. — Mas não posso evitar a sensação de que me encontro a sua mercê. Fez-se outro explosivo silêncio. Depois, misteriosamente, Lucien lhe perguntou: — Está tentando me provocar para que eu mantenha uma distância segura? Ela ficou rígida, perguntando-se como podia saber o que pensava inclusive melhor que ela mesma. — Talvez... Provavelmente seja isso. Sinto-me aflita, Lucien, aterrorizada por Kira, esgotada pelo esforço de viver sua vida, e agora por você. Sou como uma folha no meio de uma tormenta. Não é uma sensação agradável. — Suponho que não — disse Lucien em voz baixa. Afrouxou um tanto as mãos e voltou a atraí-la para si. — Mas isto já não durará muito. Logo recuperará sua própria vida. Naquela pausa, a voz de sir Digby Upright se estendeu por todo o teatro enquanto recitava um monólogo a respeito do que ia fazer para recuperar sua posição e castigar seus inimigos. Kit ainda tinha alguns minutos mais para flutuar em uma agradável sensação de alegria. Não tinham se separado em nenhum momento, e enquanto permanecia em seus braços sentiu que Lucien começava a endurecer-se dentro dela. Se voltassem a fazer amor, desta vez seria mais devagar e mais suave que antes; havia mais tempo para saborear como ia crescendo o desejo, o incrível esplendor da culminação... O último que precisava era ser mais dependente de um homem que transformava sua mente e seu corpo em manteiga. Reunindo toda sua força de vontade, separou-se dele e ficou em pé. Notou um estremecimento de protesto nos músculos de Lucien, seguido quase instantaneamente da aceitação. Ele lhe entregou em silêncio um lenço para que se secasse e a seguir se levantou começou a recompor seu aspecto. Procurando parecer mais mundana do que era, Kit disse: — Se por acaso já não tivesse suficientes rações para me comportar como é devido, existe, além disso, o risco de ficar grávida. Essa é uma possível complicação tão desastrosa que nem sequer me atrevo a pensar nela. — Não tão desastrosa. — Lucien alisou as rugas do casaco. — Ainda que já tivesse concebido, quando tiver certeza já estaremos casados. 166


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Ela pegou com as mãos o lado da capa ao tempo que dizia involuntariamente: — Eu gostaria que deixasse de falar disso.

CAPITULO 30

Assim que as palavras saíram de sua boca, Kit ficou paralisada, desejando não as ter pronunciado. Era muito esperar que ele deixasse passar aquela observação. Lucien cravou nela seu observador olhar, com o semblante indecifrável em meio da penumbra. — O que te incomoda é a idéia de ter um filho, ou a de te casar? Sabendo que a única maneira de lhe distrair era lhe oferecendo uma verdade parcial, Kit respondeu: — Desagrada-me a idéia de ser arrastada ao altar para satisfazer sua idéia de honra. Pareceme uma base ruim para um casamento. Ele voltou a cabeça ligeiramente, e um raio de luz iluminou seus olhos com um brilho verde e felino. — Então é esse o problema. Deveria ter imaginado. - Pegou-lhe a mão, não para atraí-la para si, a não ser simplesmente para entrelaçar os dedos de ambos. — Fui menos que sincero. Embora eu tenha falado de casamento como a opção correta, honorável e moral, eu não teria lhe oferecido isso se não desejasse me casar com você. — Levantou as mãos unidas dos dois e lhe beijou as pontas dos dedos. — Já há muito entre nós, e tenho a esperança de que com o tempo haja mais. Kit tentou soltar a mão. — Mas eu não creio que queira me casar. Os dedos de Lucien se fecharam sobre os seus e lhe impediram a retirada. — Não estou pedindo que me entregue todo seu coração, bastará um pedacinho. Juro que não interferirei em seu trabalho nem tentarei me interpor entre você e sua irmã. — Não faça promessas das que logo possa se arrepender — disse ela dolorosamente. — Quanto menos se diga agora, mais fácil será separar-se mais tarde. — Eu não tenho nenhuma intenção de me separar de você, querida — repôs Lucien com calma. — A menos que você me deteste tanto que não possa suportar estar n o mesmo ambiente que eu, e esse não parece ser o caso. — Pode ser que me deseje agora — disse Kit com a voz quebradiça, — mas ainda não conhece Kira. Quando a conhecer, perderá todo o interesse por mim. Lucien lhe apertou a mão com força. Com tanta clareza como se o houvesse dito com palavras, Kit notou a surpresa dele e um claro fervor de cólera. Uma súbita ovação encheu o teatro. Logo finalizaria o segundo ato. Quando sossegaram os aplausos, Lucien disse com mordaz humor: — Em certa ocasião conheci um homem que dizia que as mulheres são como os tapetes: terá que as golpear de vez em quando para se conservar em bom estado. Eu não pensava igual a ele, mas pode ser que tivesse um pouco de razão. De onde tirou a peregrina idéia de que eu vou me apaixonar perdidamente por Kira assim que a veja? — Ocorre com todo mundo! — exclamou Kit. — Ela é tudo o que você gosta de mim, e muito mais. — Mesmo que tivesse razão, seus afetos estão comprometidos. Ao menos é isso que pensa Jason Travers — afirmou Lucien amargamente. — Assim eu terei que me conformar me casando 167


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com você. Embora soubesse que havia dito aquilo em tom irônico, era algo muito doloroso para que fosse divertido. — O casamento é um estado no qual não quero entrar me conformando que estou ocupando um segundo lugar depois de Kira. Prefiro ser uma solteirona. De fato, sempre planejei isso. — Fechou em um punho a mão que estava livre. — Quando chegar o momento dispenso brigar com Kira. Jason é um homem charmoso, mas você o supera. Se a quiser, poderá ganhar - deu meia volta e se encaminhou para abrir a porta. — Agora devo ir. Tenho que trocar de roupa para o terceiro ato. Rápido como uma pantera, Lucien cruzou o camarote e lhe bloqueou a saída. — É muito mais fácil ter um gêmeo do outro sexo. Há menos concorrência — lhe disse, com tanta compaixão na voz que Kit sentiu desejo de chorar. — Não tem muito boa opinião do amor, não é? Não é um concurso que se tem que ganhar; é um vínculo que se estabelece entre dois corações. O fato de que Kira e você sejam virtualmente idênticas fisicamente não lhes faz intercambiáveis para quem as ama. E embora me agrade que me ache mais atraente que Travers, é duvidoso que sua irmã compartilhe dessa opinião. Kit respondeu com tom cansado: — Você acredita que estou dizendo tolices, mas não conheceu Kira. Não sabe o impacto que vai causar em você. — Não preciso conhecê-la, já sei o impacto que você causou em mim. — A tomou pela cintura e a beijou apaixonadamente, lhe imprimindo sua raiva e sua decisão com uma intensidade que a deixou tremendo. Depois elevou a cabeça e lhe disse —: Serei mais compreensivo pelo fato de que o desaparecimento de sua irmã te transtornou um pouco, mas não acredite que esta conversa terminou. Quando Kira estiver a salvo, continuaremos, e quando eu tiver terminado, acreditará em mim. Eu juro. Foi uma sorte que ele a soltasse, porque Kit se sentia incapaz de responder. Cobriu a cabeça com o capuz da capa e fugiu. Mal restava tempo. O aplauso que se ouviu no teatro indicava que o ato estava chegando a seu fim e que em breves instantes os corredores estariam cheios de pessoas. Uma estreita escada a levou até o corredor de serviço do andar de baixo. Enquanto se dirigia ao espaço entre os bastidores, deveria ir pensando em sua próxima cena, mas não podia; tinha a mente muito ocupada por aquele homem que não queria partir embora o empurrassem.

Ciente de que não estava preparado para encarar seus convidados do teatro, Lucien ficou no camarote vazio no começo do segundo intervalo. Custava acreditar que minutos antes Kit e ele tinham estado se abraçando com cega intensidade... No meio de um teatro! Definitivamente, estava ficando louco. Por que não podia ter se envolvido com uma mulher mais simples? Porque as mulheres simples não lhe interessavam; não lhe representavam nenhum desafio; não o deixavam tão louco de desejo para poder escapar de sua mente inquieta, super ativa. E é obvio a intimidade com mulheres menos interessantes sempre tinha demonstrado ser mais dolorosa do que valia a pena. Kit podia lhe deixar perturbado, mas ao menos não se sentia deprimido. Seria mais fácil se pudesse descartar de um só golpe os receios de Kit, mas não podia. Seu coração não acreditava poder desejar outra mulher mais do que a desejava. Entretanto, seu cérebro muito racional assinalou que nunca tinha visto lady Kristine Travers. Poderia ser verdadeiramente outra Kit, só que mais que ela..., mais refrescante, mais estimulante, mais desejável? 168


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Tolices! Mas enquanto Kit acreditasse que ele indevidamente ia preferir sua irmã, não lhe entregaria seu coração. Era uma razão mais para encontrar Kira o mais rapidamente possível. Apoiou-se sobre o corrimão e contemplou a platéia das poltronas sem ver o público. A discussão com Kit lhe tinha feito enfrentar cara a cara com um motivo próprio que tinha estado oculto. No passado sempre tinha tido muito cuidado de não gerar nenhum filho. Seu quase celibato dos últimos anos tinha facilitado. Entretanto, com Kit não tinha sido cuidadoso. A explicação simples era que lhe excitava até um ponto em que era impossível conter-se. Mas conhecia bastante bem a si mesmo para reconhecer que queria deixá-la grávida para que ela tivesse que casar-se com ele. Em lugar de proteger à mulher que amava, estava tentando coagi-la, prender de forma tão segura que lhe fosse impossível fugir. Ainda pior, seu comportamento egoísta poderia pôr em perigo o crucial vínculo existente entre Kit e sua irmã. Não era uma idéia da qual se sentisse orgulhoso. Mas se tinha outra oportunidade de fazer amor, suspeitava que se comportaria exatamente do mesmo modo. Sua mente saltou a um incidente ocorrido em seus anos universitários. Um aristocrata um pouco valentão de Christ Church College tinha feito um desafio a outro estudante, um jovem calmo chamado Whitman que tinha tido a temeridade de se desentender com o valentão. Embora Whitman carecesse de experiência em bater-se em duelo, a honra exigia que aceitasse a provocação mesmo que no desenlace prova velmente fosse terminar ferido ou morto. Entre outros estudantes se espalhou a notícia do duelo que ia acontecer. Todo mundo reprovou um enfrentamento tão desigual, mas por causa do código de honra de todo cavalheiro, ninguém quis intervir, exceto Lucien. Uma pequena investigação tinha revelado que o valentão tinha preferências sexuais que teriam suposto sua desgraça em sociedade para sempre. Lucien utilizou essa informação sem piedade para o chantagear e lhe obrigar que retirasse o desafio e se desculpasse com Whitman. Por acaso Rafe soube do papel desempenhado por Lucien em evitar o duelo. Olhando-o com seus olhos cinza frios e pensativos, disse-lhe: — Na realidade, você precisa de moral, não é assim? Aquela observação não foi pronunciada em tom de condenação, pois Rafe se alegrou de que o duelo não acontecesse, mas a modo de valorização imparcial. De todas as maneiras, Lucien se sentiu ferido. Foi render tributo ao poder da amizade pelo qual sua relação não se viu afetada. E, naturalmente, Rafe estava no certo. Embora Lucien não se considerasse uma pessoa sem honra, jamais tinha vacilado em deixar a honra de lado por algo que ele considerasse um bom motivo. Aquele fato fez dele um excelente professor de espiões, mas foi uma prova clara de que o fato de que os nobres antepassados de alguém se remontassem até a Conquista Normanda e mais além não convertia um homem em um verdadeiro cavalheiro. Com um sorriso irônico, saiu para o corredor e se dirigiu para seu camarote. Kit possuía o temperamento de um reformador; pois bem, lhe proporcionaria abundantes oportunidades de praticar suas habilidades. Entrou no camarote justamente quando o público estava se acomodando para desfrutar do último ato. Somente Ives, Chiswick e Westley estavam presentes. Chiswick arqueou uma sobrancelha com expressão divertida. — Tem aspecto de ter encontrado uma diversão melhor que o segundo ato da obra. Não só era certo aquilo, mas também admiti-lo melhoraria sua reputação de libertino. — Encontrei-me com um amigo que queria falar de política — respondeu brandamente. — Uma conversa muito absorvente. — A julgar pelas rugas de sua gravata, deve ter entrado na discussão com verdadeiro entusiasmo — comentou Westley com ironia. 169


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— Em efeito. A política sempre é um tema forte. — Lucien ocupou seu assento. — É Mace e Nunfield perderam o interesse pela representação e se foram? Ives respondeu: — Sim, pediram-me que apresentasse suas desculpas por partirem. Nunfield disse estar pressentindo que estava com um ataque de sorte e que tinha que sentar-se diante de uma mesa de jogo antes que passasse. Lucien se perguntou se a saída dos dois homens seria significativa. Talvez não, já que os cavalheiros em questão eram buscadores de prazer que se aborreciam com facilidade. Encolheu-se mentalmente de ombros e concentrou a atenção na inteligente vingança de sir Digby Upright contra seu inimigo. No momento culminante da obra, Kit apareceu com um recatado vestido e confessou entre lágrimas que o malvado a tinha obrigado a apresentar-se no baile e caluniar sir Digby, com a ameaça de enviá-la com sua querida e anciã avó ao cárcere do devedor. Seu testemunho selou o destino do malvado. A sociedade aplaudiu sua implacável destruição por parte de sir Digby; sua gentil esposa o recebeu com os braços abertos; e o primeiro-ministro lhe nomeou para um posto de maior poder, prestígio e riqueza que o anterior. Um triunfo da justiça e uma produção de grande êxito para o teatro. Rua do Escândalo provavelmente tomaria parte do repertório do Marlowe durante vários anos. Embora seu papel tivesse sido pequeno, Kit recebeu uma aclamação especial do público. Tinha estado tão convincente chorando na última cena, que Lucien se sentiu culpado. Não gostava de estar zangado com ela, não gostava de contribuir e aumentar a terrível tensão que já estava suportando. Pela manhã a chamaria e abordaria parte da informação que tinha descoberto sobre a propriedade de alguns imóveis. Sem dúvida, se ele se esforçasse, poderia manter as mãos longe dela o bastante para que tivessem uma conversa racional. Em lugar de ficar a ver a breve farsa que ia ser representada depois da obra principal, Lucien e seus companheiros decidiram ir ao Wader's, um clube em que havia uma boa sala de jogo e inclusive a melhor comida. Enquanto a carruagem estralava pela Picadilly, Lucien fez girar a conversa para Cassie James. Chiswick fez uma série de comentários admirativos que soaram exatamente como os de um homem que acabava de vê-la pela primeira vez. Westley também tinha ficado impressionado, embora sua atitude fosse mais natural. Inclusive um ouvinte tão acostumado às mentiras como Lucien não captou nenhum indício de que algum dos dois homens pudesse ser um seqüestrador. Lucien procurou concentrar-se em seu sutil interrogatório, mas se surpreendeu sentindo-se cada vez mais preocupado com Kit. Embora tivesse feito tudo o que fosse necessário para que ela chegasse em casa sã e salva, não podia evitar a sensação de que deveria tê-la acompanhado. Aquilo era duplamente certo porque sua conversa com os restantes Demônios estava demonstrando ser infrutífera. Sua inquietação continuou aumentando enquanto percorriam a lotada Rua Picadilly. Quase tinham chegado ao clube Watier's quando a voz de Westley interrompeu sua abstração. — Strathmore, continua conosco? A atenção de Lucien voltou de repente para o presente, e se deu conta de que alguém lhe tinha feito uma pergunta. Também se deu conta de que lhe importava nada de que pergunta se tratava. Tinha que ir ver Kit imediatamente. Deu umas batidinhas no teto da carruagem para detê-la. Quando a marcha reduziu, disse: — Acabo de me dar conta de que esqueci outro compromisso. Terei que deixar Watier's para outra ocasião. Sinto muito. 170


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E antes que os outros pudessem fazer algum comentário, saltou do veículo e cruzou a rua para pegar outro coche de aluguel que estava descarregando uns passageiros. — Ao teatro Marlowe, por favor — disse rapidamente ao tempo que subia ao interior. — E lhe darei cinco libras se conseguir chegar em menos de dez minutos. — Assim será amigo — exclamou o condutor com entusiasmo. A carruagem se lançou para frente com tal sacudida que Lucien teve que agarrar-se em uma gasta correia para não ser jogado ao chão. Enquanto se segurava, perguntou-se por que diabos estaria tão preocupado.

Kit se deteve no camarim para examinar os rostos e observar as reações, no caso de algo estranho acontecer. Mas não aconteceu nada significativo, assim depois de uns breves instantes se dirigiu a seu camarim particular. Estava morta de cansaço, e não só por causa do esforço realizado sobre o palco. A paixão era exaustiva, e ainda mais discutir com Lucien. Quando terminou de se vestir com suas roupas normais, chegou Henry Jones. — Boa noite, senhorita — disse com uma respeitosa inclinação de cabeça. — Pronta para ir para casa? -Sim. Henry consultou seu relógio de bolso. — A carruagem de lorde Strathmore deverá chegar dentro de uns quinze ou vinte minutos. Ela vestiu a capa. — Não quero esperar tanto tempo. Vamos a pé. Não é longe, e o ar fresco me fará bem. — Passou ao lado do mensageiro e se encaminhou para a saída do teatro. — Sua senhoria insistiu especialmente em que devia ir em seu coche. Vai enviar dois homens armados com ele — disse Henry enquanto a seguia pelo corredor. — Você poderia correr perigo. — Se fosse amanhã de noite, estaria de acordo, mas certamente até o malfeitor mais eficiente teria problemas em organizar um seqüestro sob o nariz de lorde Strathmore. — Ao ver que Henry dava amostras de protestar de novo, acrescentou —: Se recordar sou eu quem contratou você, e quero passear. O mensageiro franziu o cenho. — Sua senhoria não é do tipo de pessoas que eu gosto de contrariar. É um homem muito enérgico. Kit adotou sua expressão mais feia, a que ela e Kira tinham aperfeiçoado de meninas quando queriam assustar aos duendes que havia debaixo da cama. — E eu sou uma mulher muito enérgica, senhor Jones. Vai vir comigo ou não? Ele riu levemente, aceitando tacitamente a derrota. — Direi ao porteiro que fomos para que comunique ao cocheiro de Strathmore. O ar fresco de Strand dissipou parte de sua fadiga, mas não conseguiu aliviar sua depressão. Tinha sido uma tonta ao dizer a Lucien que se apaixonaria pela Kira quando se conhecessem. Claro que havia se sentido ofendido; nenhum homem que tivesse honra ou sensibilidade poderia ter aceitado a afirmação que ela tinha feito. Mas ele não sabia. Ele não sabia. Kit jamais tinha sentido rancor pela capacidade que sua irmã tinha de embevecer sem esforço algum a todo homem que tivesse entre dois e noventa e cinco anos. Mesmo porque nunca tinha havido um homem que Kit tivesse querido Exceto Philip Burke, que estava de visita na casa de alguns amigos em Westmoreland no verão em que as gêmeas tinham dezesseis anos. Tratava-se de um charmoso e inteligente estudante universitário de vinte anos. Aquela foi a primeira vez em sua vida que Kit desejou desesperadamente que um homem a considerasse especial. Mas, apesar 171


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de seus melhores esforços, foi Kira que captou a atenção dele. O jovem se uniu à ansiosa corte de admiradores que a rodeavam e mal se deu conta da existência de Kit. Aquilo a feriu um pouco — mais que um pouco, — mas ela não culpou sua irmã. Kira não tinha tentado deliberadamente monopolizar a atenção dele; limitou-se simplesmente a ser tão encantadora como sempre. Com Lucien ia ser muito mais difícil. Havia muitas possibilidades de que Kira escolhesse Jason pelo que já tinha havido entre eles. Nesse caso, Lucien sem dúvida se sentiria obrigado a manter a oferta feita a Kit. Entretanto, ela nunca poderia se casar com ele, sabendo que era a sua irmã a quem queria na realidade. E em face de quão inteligente Lucien era, não conseguiria enganá-la a respeito de qual das duas gêmeas preferia. Por uma das poucas vezes em sua vida, Kit desejou não ser uma gêmea. Mas essa idéia se desvaneceu tão rapidamente como lhe tinha ocorrido, porque era impossível imaginar a vida sem sua irmã. Quando eram muito pequenas, decidiram não casar-se a menos que conseguissem encontrar um par de irmãos gêmeos adequados. Quando ficaram mais velhas, falaram de quão horrível seria para a sobrevivente das duas se a outra morresse. Solenemente decidiram que quando fossem velhas e débeis se agarrariam pelas mãos e se jogariam por um precipício juntas para morrer ao mesmo tempo. Oh, Kira, Kira... Estremeceu-se e envolveu a capa ao redor do pescoço, sentindo de repente um estranho frio. Se sua irmã morresse, Kit sabia que existia a possibilidade real de que ela saltasse por esse precipício sozinha.

CAPITULO 31

Dado ao sóbrio de seus pensamentos, Kit se sentiu agradecida de que H enry não estivesse muito de humor para conversar. Saíram da Strand e entraram em uma rua lateral mais silenciosa. Na metade do caminho ouviram a suas costas o ruído de cascos de cavalos e o chiado de rodas. Um coche de aluguel passou rugindo a seu lado e depois se deteve. Sem prestar muita atenção, Kit observou que os cavalos eram anormalmente de boa qualidade para aquele tipo de carruagem. Então a portinhola se abriu e apearam três homens mascarados que arremeteram contra Kit e seu companheiro. Henry gritou: — Corra senhorita! A empurrou em direção a Strand e a seguir tirou uma pistola debaixo do casaco e se interpôs com ar decidido entre ela e os recém chegados. Dois rufiões se equilibraram contra ele, e um lhe arrancou a pistola da mão com um golpe antes que pudesse disparar. O terceiro e maior dos três escapuliu e se pôs a correr atrás de Kit. Ela saiu disparada como um raio. Mas antes que tivesse dado dez passos, seu perseguidor a agarrou pelo braço e o retorceu, o que a fez frear. Tentou gritar pedindo socorro, mas o homem sossegou todo intento lhe pondo uma mão na boca. O cruel retorcimento do braço a fez inclinar a cabeça para trás. Os olhos que brilhavam atrás da máscara eram inexpressivos como pedras, os olhos de um homem capaz de matar um ser humano com tanta facilidade como se fosse uma aranha. Teria ajudado a seqüestrar Kira? Kit, furiosa, afundou os dentes nos dedos de couro que lhe tapavam a boca. — Maldita bruxa! — O homem lhe desferiu um forte golpe em um lado da cabeça com a mão 172


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aberta que fez com que lhe nublasse a vista. — Volta a tentar e te farei mal de verdade. Por cima do ombro de seu atacante viu que Henry estava lutando com um dos homens enquanto o outro permanecia perto deles empunhando uma pistola, sem poder disparar por medo de ferir seu comparsa. Então o perdeu de vista, pois seu raptor começou a arrastá-la para a carruagem. Lutou sem cessar até chegar à portinhola, dando chutes e murros, mas não era rival para ele. Outro veículo dobrou para entrar na rua e se dirigiu para eles. Fazendo um esforço supremo, Kit deu a seu assaltante um golpe na garganta com o canto da mão. O homem emitiu um som confuso e afrouxou a garra, o que Kit aproveitou para desembaraçar-se dele, embora a capa ficasse nas mãos do outro. Rezando para que o condutor ou os passageiros da segunda carruagem a ajudassem em vez de dar a volta e fugir, lançou-se para o coche pedindo auxílio a gritos. A suas costas ouviu os fortes passos de seu perseguidor. A carruagem se deteve. Inclusive antes que deixasse de mover-se, a portinhola se abriu de repente e por ela apareceu Lucien, que saltou ao chão com a mesma expressão de ferocidade que o anjo caído de quem tomava o apelido, e gritou: — Ponha se atrás de mim, Kit! Ao tempo que ela obedecia, o outro homem sorriu grosseiramente. — Olhe o cavalheiro galante — se burlou. — Eu como todos os dias mocinhos como você no café da manhã. Mas antes que pudesse dizer mais, Lucien ergueu sua bengala como se fosse uma barra de luta. O pesado cabo de ouro se espatifou contra o crânio do rufião fazendo um desagradável ruído carnoso, e este desabou como um vulto de papel. Economizando os movimentos como se fosse um bailarino, Lucien se virou e foi em ajuda do mensageiro de Bow Street. Henry estava estendido no chão, e o homem da pistola estava apontando para ele. Nesse instante, Lucien descarregou a bengala sobre o canhão da pistola, que foi parar em uma boca-de-lobo. Antes inclusive de que caísse ricocheteando sobre os paralelepípedos, o terceiro homem saltou sobre Lucien em uma espécie de mergulho que deu com os dois atirados ao chão. O atacante aterrissou em cima de Lucien, mas em vez de lutar, apressou-se a se levantar e gritou: — Hora de ir, amigos! Agarrou o braço de seu comparsa caído e o içou até a carruagem. Lucien se levantou e se lançou atrás deles, mas o tornozelo lhe falhou sob seu peso. Ao o ver tropeçar, os três atacantes se precipitaram para o interior do veículo. O condutor fez estalar o chicote por cima dos cavalos e todos eles desapareceram na noite, em direção contrária a da Strand. Lucien ficou em pé com uma imprecação. Depois se voltou e se aproximou coxeando de Kit. — Você está bem? — Creio que sim — respondeu ela, tremendo. Deu um passo na direção dele, e logo outro mais rápido. Um momento depois estava em seus braços e ele a estreitava com tal força que quase lhe impedia de respirar. Agora que o perigo já havia passado, os joelhos de Kit começaram a tremer. Escondeu o rosto contra o ombro dele e sentiu como o retumbar de seu coração ia se acalmando lentamente até tornar-se normal. — Estavam tentando te seqüestrar? Quando havia dominado o desejo de começar a chorar histericamente, Kit respondeu: — Creio que sim. Não era um roubo qualquer. 173


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Ele lhe afastou o cabelo emaranhado da frente. — Reconheceu algum desses homens? —Tenho certeza de que não eram Demônios. Deu-me a impressão de ser mercenários. — Tentou recordar aqueles momentos de caos. — Quando o grandão estava me arrastando para o carro, lembro que me perguntei se teria feito o mesmo com Kira. Ao menos esse participou de seu seqüestro e eu percebi vagamente. — Mace e Nunfield se foram do teatro durante o segundo ato. Talvez, um deles pôde organizar uma emboscada nesse breve espaço de tempo, se soubesse onde tinha que ir. — Lucien a estreitou com mais força. — Mas também é possível que este ataque não tenha tido nada que ver com sua representação desta noite diante dos suspeitos. Simplesmente não há suficientes prova reais. Ela levantou a cabeça para poder lhe ver o rosto. — Como soube que iriam nos atacar? Ele titubeou antes de dizer: — Não sabia. Só... Senti que tinha que te encontrar. Lucien havia dito que possuía um sexto sentido no que se referia à segurança de sua irmã. Ao que parecia, essa capacidade se estendia também a outras mulheres em apuros. Além disso, tinha sabido exatamente aonde ir. Kit sacudiu a cabeça com assombro. — Não parece estranho que lhe conheçam como Lúcifer, seu instinto é extraordinário. É uma sorte que esteja do meu lado. — Sempre, Kit — repôs ele em voz fraca. — Nunca duvide disso. Seu amante, seu protetor. Com um desejo tão forte que era já dor, quis fundir -se nele, refugiar-se para sempre em sua força e em sua amabilidade. Sentiu que a percorria uma espécie de calafrio, como se os invisíveis muros que separavam uma pessoa da outra estivessem a ponto de dissolver-se. Se isso ocorresse, meteria-se tão profundamente dentro de Lucien que nunca seria totalmente livre de novo. Dolorosamente se recordou que quanto mais se agarrasse a ele agora, maior seria a aflição de separar-se. Devia manter-se a uma distância segura, não só para encontrar Kira, mas também para proteger sua própria segurança. Deu um passo para trás e perguntou: — Machucaste muito seu tornozelo? Ao falar, cometeu o engano de o olhar. Lucien ficou completamente imóvel, e a luz da lua revelava que o quente resplendor dourado de seus olhos tinha desaparecido substituído por um tom verde liso e pálido. Ele tinha reconhecido sua sutil separação como na verdade era, e agora Kit se dava conta, com um sentimento de culpa, do muito que o tinha ferido. Sem necessidade de pronunciar uma só palavra mais, algo significativo aconteceu entre ambos; um endurecimento, uma cautela que reconstruiu os muros que o separavam. Lucien estava vulnerável, mas o havia desdenhado, e o orgulho não lhe permitiria que o fizesse outra vez. Em tom frio e sem inflexões, Lucien disse: — Só o torci. Amanhã estará bem. Kit recuperou sua capa, que seu atacante tinha deixado no chão, e se envolveu o corpo trêmulo com ela. Depois recolheu o chapéu e a bengala de Lucien e os entregou em silêncio. Dessa vez evitou lhe olhar nos olhos. A alguns metros dali, Henry Jones se levantou do chão e estava sacudindo a poeira. Em sua mandíbula estava se formando um hematoma e tinha o lábio partido e ensangüentado, mas não parecia estar gravemente ferido. — Uma chegada muito oportuna, milord — disse em tom amistoso, alheio a corrente que 174


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vibrava entre Lucien e Kit. — Quase valeu a pena que me tenham destroçado o casaco, para poder lhe ver em ação. Lucien virou a cabeça para ele e, em um tom que poderia ter chamuscado uma pedra de granito, perguntou-lhe: — Posso lhe perguntar por que não esperou que minha carruagem os levasse para casa? Adivinhando que Lucien estava devotando a Henry a ira que sentia por ela, Kit se apressou a dizer: — Foi minha culpa, Lucien. Não acreditei que fosse correr algum perigo, de modo que insisti em vir dando um passeio. Sem lhe fazer caso, Lucien contemplou o mensageiro com as pálpebras entreabertas. O semblante de Henry ficou sério. — Não tenho desculpa, milord. A senhorita não compreendia o risco que corria, mas eu deveria tê-lo feito. — Sim, você deveria ter compreendido. Se voltar a ser tão descuidado com lady Kathryn, terá mais que temer de mim do que de todo um bando de rufiões. — O tom de Lucien seguia sendo cáustico, mas sua expressão relaxou ao ver que o mensageiro reconhecia sinceramente seu erro. Fez um gesto em direção à carruagem— -. Quer que o chofer o leve para casa depois de nos deixar em Strathmore House? Depois da sova que lhe deram, imagino que queira ir de carruagem. — Obrigado pela oferta, milord, mas caminhar me evitará o intumescimento. — Henry fez uma careta de dor ao inclinar-se para recolher seu chapéu esmagado. — Quando você já esteve em tantas situações desagradáveis como eu, aprenderá o que é melhor para os ossos de um velho. E depois de dar boa noite a Kit, foi andando. Assim que esteve bem longe para não lhes ouvir, Kit disse: — Se acredita que não vou estar segura no apartamento de Kira, me leve a casa de tia Jane. Esse miserável não pode saber onde ela mora. — Não diga tolices — replicou Lucien, cortante. — Ficará comigo até que termine tudo isto. Não deveria ter te perdido de minha vista — Manteve a portinhola aberta para ela ao tempo que dizia ao fascinado chofer — Hanover Square, por favor. Quando a ajudou a subir à carruagem, ela abriu a boca para protestar de novo, mas Lucien a interrompeu: — Não se incomode em mencionar o potencial dano que pode sofrer sua reputação. Já disse que sou indiferente a essas considerações. — Subiu atrás dela e fechou a portinhola de um golpe. — Se você está preocupada com o decoro, lady Jane pode vir e ficar em Strathmore House. Se o que for dizer é que a gata shakesperiana de sua irmã necessita que cuidem dela, pode trazê-la também. — acomodou-se no assento em frente e se segurou quando o veículo começou a andar com uma sacudida. — E durante o resto da viagem até Hanover Square, pode ir me dizendo o monstro e déspota que sou. Kit poderia ter feito exatamente isso, exceto porque a última frase a desarmou. Agradecida de que ele tivesse adotado um tom de naturalidade para substituir à intimidade que tinha desaparecido, disse: — Para ser sincera, acabo de ficar sem argumentos. Aguardarei até manhã para fazer algum comentário sobre seu despotismo. — Amanhã terá coisas melhores a fazer. Identifiquei sete imóveis que são suspeitos e estão dentro de um raio de duas horas de Londres. — Deixou escapar um suspiro de exasperação. — É algo por onde começar, mas informação não é fácil de conseguir. Poderia haver outros lugares que não conheço. — Tenho certeza de que descobriu mais do que qualquer um. — mordeu-se o lábio, 175


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experimentando de novo a sensação de que o tempo transcorria muito depressa. — Amanhã de noite tenho que representar de novo A Rua do Escândalo, mas se formos procurar Kira, posso deixar que a substituta faça meu papel. — Isso não será necessário. As duas propriedades mais próximas a Londres poderemos visitar durante o dia. Ambas são pequenas, de modo que não terá problemas de entrar nelas para notar se Kira se encontra dentro. — Graças a Deus — disse Kit fervorosamente. — Será bom fazer algo. Minutos mais tarde chegaram a Strathmore House, e Lucien a acompanhou ao interior depois de pagar generosamente o chofer. Não houve nada a dizer quanto a que Kit compartilhasse a cama com ele; com impecável formalidade, Lucien a entregou aos cuidados de uma criada sem nem sequer um beijo de boa noite. Enquanto se acomodava com um gesto de cansaço no quarto de hóspedes, Kit disse a si mesma que era muito mais sensato dormir sozinha. Assim não teria que pensar se deveria fazer amor ou não, nem tampouco se sentiria culpada em sucumbir, o que seria muito provável que fizesse se Lucien tentasse seriamente persuadi-la. Que pena que a sensatez fosse uma coisa tão fria e solitária. Por causa da fadiga, Kit dormiu profundamente e despertou só depois de escutar insistentes batidas em sua porta. Olhou ao redor aturdida, sem reconhecer de momento o luxo que a rodeava. Quando recordou onde estava, a porta já se abriu e sua tia já estava entrando no quarto, seguida por dois gatos listrados e uma criada que levava uma bandeja de chá. Os gatos saltaram na cama e se acomodaram nos dois lados de Kit, onde pudessem olhar um ao outro com desconfiança por cima dos joelhos da jovem. Pelo visto, Viola e Sebastian tinham esquecido que eram companheiros de uma mesma ninhada. Ignorando o jogo dos felinos, Jane disse vigorosamente: — Bom dia, Kathryn. Tem um aspecto mais espantoso. Toma um pouco de chá e uns bolinhos de passas. Despediu a criada e serviu duas xícaras de chá em que acrescentou colheradas de açúcar. Kit reprimiu um gemido; sua tia sempre tinha sido uma dessas lamentáveis criaturas conhecidas como «Madrugadoras». — O que está fazendo aqui, Jane? — perguntou-lhe ao mesmo tempo em que aceitava a xícara de chá e bebia agradecida um gole que lhe escaldou a boca. — Esse seu conde veio para me ver na primeira hora da manhã e nos trouxe, Sebastian e a mim, até aqui em atenção ao decoro e a decência. — Tomou assento em uma cadeira. — Embora suspeite que tentar preservar sua reputação é como fechar a porta do estábulo depois que o cavalo já tenha escapado e desaparecido atrás do horizonte mais próximo. — Ao ver que Kit se ruborizava, Jane adicionou —: Não precisa fazer nenhum comentário a respeito. — Não tenho a intenção de fazer. — Embora Kit tivesse contado a Jane tudo sobre sua busca por Kira, não tinha se mostrado tão comunicativa referente a sua relação com Lucien. — E não é meu conde. Jane sorriu abertamente. — Pois ele parece acreditar que é. Como eu não sou sua guardiã legal, não se incomodou em me pedir sua mão, mas me informou sobre seus futuros esponsais. — Isso ainda está por se decidir — disse Kit com dureza. Sua tia franziu o cenho. — Ele a está ameaçando, Kathryn? Os homens podem ser verdadeiras bestas. Kit olhou fixamente sua xícara fumegante. — Lorde Strathmore não é nenhuma besta. Simplesmente acredita que me comprometeu e que devemos nos casar. Entretanto, eu duvido que aconteça algo assim. 176


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— Se você diz querida — comentou Jane em tom cético. — Ele parece ser um tipo muito resolvido. Mas me agrada. Há maridos muito piores. Temerosa de arriscar suas frágeis esperanças as expressando em voz alta, Kit disse meigamente: — Não sei se quero um marido, e não creio que o conde na realidade queira uma esposa. Quando encontrarmos Kira, suponho que Strathmore e eu iremos cada um por um caminho. — Conhecendo os perigos de mostrar favoritismos, Kit deixou de um lado sua xícara para poder acariciar os dois gatos de uma vez. — Como tirou viola da casa de Kira? — Talvez tenha despertado Cléo Farnsworth e lhe pedido que o deixasse entrar no apartamento. — Os olhos de Jane faiscaram. — Por outra parte, pode ser que tenha forçado a fechadura. Eu não confiaria muito nesse cavalheiro. — Eu tampouco. Esse tipo de coisas são as que se fazem tão útil para uma investigação. — Kit partiu um pão-doce pela metade e o afastou automaticamente para fora do alcance dos gatos. — Não me importa que o conde seja um arrombador de moradas profissional. O que importa é que está me ajudando a procurar Kira. Jane ficou séria. O desaparecimento de Kira lhe causava tanta tristeza como a Kit. — Conseguiu algo novo? Kit lhe resumiu o que tinha acontecido desde a última vez que tinha visto sua tia, concluindo com o plano de visitar duas das propriedades dos Demônios nesse dia. Jane disse com ar dúbio: — De verdade acredita que poderá detectar a presença de Kira se estiver perto dela? — Espero que sim. — Seus dedos apertaram com força o pão-doce, que se fez em pedaços sobre a colcha da cama e imediatamente foi atacado pelos gatos. — Se não puder, não sei o que vamos fazer depois.

Kit pensou que chamaria menos atenção cavalgar pelo campo vestida de homem, assim depois de tomar o café da manhã vestiu uma roupa que Jane lhe tinha trazido de casa. Sua tia, sabiamente, tinha incluído seu traje de ladra, de modo que, vestida com calças e botas, ela, Lucien e Jason Travers se dirigiram a cavalo para o sul, ao condado de Surrey. Seu primeiro destino era um pequeno imóvel que pertencia a lorde Chiswick e que este tinha alugado a um endinheirado comerciante da cidade. Acompanhada de sua escolta, Kit rodeou a propriedade seguindo uma série de atalhos e caminhos que se aproximavam o máximo possível ao perímetro da casa. Depois deixaram os cavalos atados no interior de um pequeno bosque e percorreram o imóvel caminhando por uma rua pública. Todo o tempo se esforçou por sentir a presença de Kira. Ao chegar ao centro do imóvel, deteve-se e fechou os olhos. Em seguida foi se virando em um lento círculo, como um sabujo farejando o ar, enquanto os homens observavam em silêncio. Mas o espaço psíquico estava tão vazio como os campos nus no inverno, e não havia nem rastro do distintivo calor e o resplendor de Kira. Abriu os olhos e disse com triste acento: — Nada. Com a mesma expressão de preocupação, Jason respondeu: — Era muito esperar que estivesse no primeiro local onde olhássemos. — E este não é o imóvel mais provável. — Lucien pôs uma mão brandamente sobre o ombro de Kit. — Vamos ao seguinte. É a propriedade de Nunfield, e nela vivem alguns parentes seus mais velhos. Creio que tem mais possibilidades. 177


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Kit não respondeu. Não só se sentia desiludida pela falta de resultados naquele lugar, mas também mais no fundo estava aterrorizada. E se estivesse equivocada? E se não fosse capaz de perceber a presença de Kira embora a tivesse perto? E se a capacidade que sempre havia possuído desaparecesse agora sob a pressão do desespero? Se aquele era o caso, sua irmã não tinha salvação.

INTERLÚDIO

Não esperava que ele viesse para outra sessão tão cedo, e mal a tinham advertido de sua chegada. Dispôs de escasso tempo para colocar a peruca preta, as botas e um vestido de veludo que lhe chegava até a metade da coxa. Mas vestir-se era simples, comparado com a tarefa de adotar a atitude. Nunca lhe fora fácil converter-se na dominante harpia que ele ansiava; requeria uma forte concentração e todos seus dotes de atriz, além de uma aguda sensibilidade a seus desejos. Não dispor de tempo suficiente para preparar -se fazia com que a interpretação de seu personagem fosse fraca, o que deixava aparecer o medo que a corroia por dentro. Por essa razão o amarrou e fixou as algemas no gancho que ficava suspenso no teto da masmorra. Dizendo uma quantidade de insultos, açoitou-o fazendo uso de toda sua habilidade e precisão. Foi uma sessão típica, ela depreciativa e ele humilhando-se, mas foi necessário mais tempo do que o habitual para o levar até a culminação, e em seus olhos havia um brilho sinistro que a alarmou. Talvez ela já não era uma novidade que o excitasse. E quando se cansasse dela... Seus medos se viram confirmados quando o liberou das correntes. Antes sempre ficava em outro quarto e ele partia quando estava preparado, mas desta vez a agarrou pelos pulsos e a atraiu para seu lado. — Com o tempo, o escravo se converte em amo, e a ama se converte em escrava — disse em tom glacial. — Isso ocorrerá logo, minha dama do chicote. Assim como um animal selvagem, ele devia ser colocado em seu lugar. Lançou o joelho para cima e o golpeou no peito, escapando de sua garra. — Mas um animal é sempre um animal — respondeu ela mofando. — Do mesmo modo que um cão se encolhe diante de seu dono, se necessita do que eu te dou, assim aceitará qualquer humilhação. Ele a agarrou pelos ombros e a lançou violentamente contra a parede, e a segurou ali com seu corpo coberto de suor. Ela sentiu que o pânico a invadia, porque nunca a tinha atacado fisicamente. — Logo saberá o que significa de verdade o medo, e eu saborearei até a ultima gota. — Ofegava imaginando o prazer que o esperava. — A última e mais gloriosa representação de sua vida acontecerá quando se fecharem as cortinas. Mas não se preocupe o ato final não interpretará sozinha. E, tão bruscamente como tinha começado, a sessão terminou. Ele recolheu a túnica que tinha deixado no chão e a jogou sobre os ombros marcados de vergões. A seguir se foi, e fez girar a chave na fechadura atrás dele. Ela caiu de joelhos, tremendo. Quanto tempo restava? Procurou não fazer muitas suposições a respeito das malvadas insinuações que ele tinha feito, mas era impossível não pensar nelas, embora a única questão real era durante quanto tempo e quão horrivelmente sofreria antes que a levasse a piedosa morte. O que teria querido dizer com que não ia estar soz inha? Sentiu um aperto no estômago quando uma idéia lhe cruzou a mente. Não, aquilo era impossível. Kit era muito 178


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esperta, e sabia o perigo que enfrentava. Mas seria um rival à altura do mal em estado puro? Oh, Kit, Kit, pensou com desespero. Em nome de Deus, tome cuidado. Ao sair da masmorra, ele se dirigiu à taciturna criada que atendia a sua cativa. — Faça outro desses trajes de dominadora, com as fendas e as correntes de couro — lhe ordenou. — Sim, milord — respondeu ela sem mostrar curiosidade. — De que tamanho devo fazê-lo? — Do mesmo tamanho que o que usa a mulher agora. — deteve-se um instante, recreando-se na deliciosa fantasia que logo pensava tornar realidade. — O traje tem que ser exatamente o mesmo.

CAPITULO 32

Era tarde, quase meia-noite. Depois de acompanhar Kit de casa ao teatro e enviá-la a dormir, Lucien voltou sua atenção ao trabalho que tinha deixado de lado para dedicar -se a procurar Kira. Quando soou uma leve batida na porta do escritório, respondeu com gesto ausente, pois tinha a cabeça cheia de números que tinha estado analisando. Assim que reconhecer o homem que entrou alto e sujo pela viagem, voltou de repente para momento presente, saltou de seu assento e se dirigiu para ele com a mão estendida. — Santo Deus, é você, Michael, ou estou alucinando? Lorde Michael Kenyon sorriu e estreitou a mão de Lucien entre as suas. — Não é nenhuma alucinação. Chamei, mas todos seus serventes se retiraram, de modo que usei a chave que me deu no ano passado. — Quer algo de comer? — Não, obrigado. Jantei abundantemente em Berkshire. Mas não me negaria a beber um gole. Lucien lhe fez um gesto com a mão para que se sentasse. — Não acreditava que era possível chegar a Londres pelo menos até dentro de outro par de dias. O que tem feito, veio voando no lombo de um falcão que passava por aí? Michael se ajeitou com gesto cansado sobre o sofá estofado em couro. Suas botas e suas calças salpicadas de barro constituíam um mudo testemunho da comprida viajem que tinha realizado desde Gales. — Sua mensagem me inquietou muito, de modo que decidi me dar toda a pressa que requeria o caso. O que é que ocorre? Pensando em quão afortunado era em ter amigos dispostos a acudir imediatamente, sem fazer perguntas, Lucien abriu um aparador e extraiu dele uma garrafa de uísque escocês, o favorito de Michael. — Um seqüestro, e o tempo está se acabando. — depois de servir uma generosa medida de licor para cada um, sentou-se e lhe contou sucintamente a história de Kira e Kit. Michael escutou sem fazer comentário algum, com seu delgado corpo cansado, mas com o olhar alerta em seus olhos verdes. No final da explicação disse: — Suponho que terá pensado na possibilidade de encurralar cada um de seus suspeitos e lhes tirar a verdade a socos. 179


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Muito próprio de Michael sugerir a solução pragmática. — Me acredite, já pensei nisso — admitiu Lucien, — mas temos muitos suspeitos, e, além disso, existe a clara possibilidade de que o verdadeiro malfeitor não se encontre entre eles. Temo que não sirva de nada tratar brutalmente a vários homens ricos e poderosos sem ter mais provas. Michael sorriu. — Uma coisa que sempre gostei em você é que não perde tempo fazendo caso dos princípios durante uma crise. — Característica que nos dois compartilhamos — afirmou Lucien. — Geralmente não se considera isso como uma virtude. — Em ocasiões, os princípios são um luxo que às vezes não se pode permitir. — Michael contemplou seu anfitrião com ar zombador. — Embora você não diga, tenho a impressão de que está motivado tanto pelo desejo de ajudar lady Kathryn como pela nobreza em geral. — Adivinhaste corretamente. Tenho toda a intenção de me casar com ela quando encontrarmos sua irmã. Michael arqueou suas escuras sobrancelhas. — Para ser um futuro noivo, parece bem triste e abatido. — Há... complicações. — Lucien olhou fixamente seu copo. Desde a tentativa de seqüestro, Kit e ele tinham estado evitando um ao outro com tanto receio como se fossem dois gatos. Sabia que ela estava suportando uma terrível tensão nervosa, e aceitou seu desejo de evitar todo contato físico enquanto durasse a busca a sua irmã. De todos os modos, tinha a sensação de que Kit lhe escapava pouco a pouco, e não tinha idéia de como parar aquilo. Em um primeiro momento esteve seguro de ganhar seu coração, mas estava começando a temer que quando... recuperasse Kira, perderia Kit para sempre, porque já não o necessitaria. — Michael, por que os homens e as mulheres se empenham em confundir-se entre si? E por que de todas as formas seguimos tentando nos aproximar uns dos outros? Michael se inclinou para frente e apoiou os cotovelos nos joelhos, acariciando o copo de uísque entre as mãos. — Eu sou a última pessoa a quem deveria pedir conselho no que se refere às mulheres, Luce — respondeu irônico. — Minha experiência nesse terreno é da mais deprimente. Mas se por acaso te serve de algo, eu creio que as mulheres têm algo que nós necessitamos, e não me refiro ao que é óbvio. Lucien levantou o olhar. — Então a que te refere? Seu amigo hesitou antes de responder. — Homens e mulheres somos complementares. Com freqüência isso quer dizer que somos opostos, com todo o conflito que isso implica, mas também significa que complementamos um ao outro. Uma mulher boa tem uma calidez, um caráter acolhedor que se torna um bendito bálsamo contra todas as coisas desagradáveis que alguém encontra na vida. — Sorriu. — Pensa na mulher de Nicholas. — Quisera que houvesse dez mil mais como Clare. — Brindo por isso. — Michael levantou seu copo em um brinde e a seguir apurou o resto do conteúdo. — Mas me parece que houve um montão de pedras nessa viajem à felicidade conjugal. Nicholas e Clare conquistaram o que agora têm. Lucien recordou por um instante uma conversa que tinha tido com Clare, esta gravemente preocupada, antes de seu casamento. — Tinha esquecido. Obrigado por me dizer as melhores palavras de ânimo que ouvi em 180


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muitos dias. — A sensatez se dá de graça, mas vale muito dinheiro. Lucien riu, sentindo o coração mais leve. Com Michael a seu lado, estava seguro de que conseguiriam encontrar Kira. E então, por Deus que convenceria Kit de que ela o necessitava tanto como ele a ela.

O trabalho de proteção da Jane consistiu só em passar as noites em Strathmore House. Durante o dia retornava para sua própria casa e se ocupava em seus assuntos habituais. Por essa razão, Kit tomava o café da manhã em seu quarto para não correr o risco de se encontrar a sós com Lucien. Estavam conseguindo se levar aceitavelmente bem durante as expedições secretas aos imóveis dos Demônios, e não queria pôr isso em perigo. Também tinha medo do que pudesse dizer, ou fazer, se ficasse muito tempo com ele. Mesmo assim, sentia terrivelmente a falta de sua companhia. Depois de tomar o café da manhã, vestiu-se e tentou trabalhar em um artigo a respeito das propostas da Lei do Milho, mas foi impossível concentrar-se na política de proteção ao comércio. Depois do seqüestro de Kira não tinha escrito um só artigo decente. Nervosa, saiu do quarto e foi à galeria de retratos que havia no terceiro andar, a qual tinha intenção de explorar. Seria interessante ver se os parentes de Lucien eram tão bonitos como ele. Duvidava que isso fosse possível. Quando entrou na galeria, viu uma figura alta e de cabelo castanho no extremo mais afastado da mesma. Contente de ter a companhia de seu primo, disse: — Bom dia, Jason. O homem se voltou, e então Kit se deu conta de que se tratava de um desconhecido, mais alto que Jason e não tão magro. Também tinha o cabelo um pouco mais claro, com um toque ruivo visível à luz do sol. Ele se aproximou com um sorriso e lhe disse: — Sinto muito, não fomos apresentados. Sou Michael Kenyon, um amigo de Lucien. Você deve ser lady Kathryn Travers. — Na verdade, sou. — Kit deu um passo adiante e lhe ofereceu a mão. — É um prazer lhe conhecer. Na realidade é lorde Michael, não é assim? Lucien o mencionou em alguma ocasião. — Para os amigos de Lucien, basta simplesmente Michael. — inclinou-se sobre a mão dela. Quando se endireitou de novo, Kit observou que seus olhos eram de uma notável cor verde, não como o variável verde-dourado de Lucien, a não ser um tom claramente esmeralda. — Nesse caso você deve me chamar Kit. — Estudou seu rosto. Ainda que não soubesse que Michael já tinha sido soldado, teria adivinhado por sua espécie de força contida, acerada. — Lucien disse que ia chamar seu amigo mais perigoso. Devo imaginar que se trata de você? — Suponho que sim, mas se Luce quer alguém que seja perigoso, não tem mais que olhar-se em um espelho. Eu não sou mais que um soldado aposentado que só se dedica a pastar, igual a um cavalo velho. Kit sorriu. Gostava daquele seco senso de humor. — Mas você está disposto a sair desse retiro por minha irmã. Você tem minha mais profunda gratidão. — Espero poder ser de alguma ajuda. — Dedicou-lhe um largo olhar apreciativo, masculino. — Existe na verdade outra igual a você? — Sim, só que melhor. Logo verá, espero. — Como pensar em sua irmã a punha nervosa, prosseguiu—: Vim dar uma olhada nessas pinturas. Conhece bem à família de Lucien? 181


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— Sim, e o que não sei posso inventar. — Assinalou com um gesto da cabeça o retrato de um cavalheiro loiro vestido com uniforme esse - Cavalheiro é Gareth, o terceiro conde, creio. Apoiou aos partidários do rei durante a guerra civil, mas teve a precaução de fazer com que seu irmão se convertesse em um Puritano. Quando os partidários do rei foram exilados, o irmão se fez encarregou das propriedades da família e jurou lealdade a Cromwell. Depois da Restauração, Gareth retornou, reclamou suas terras e se assegurou de que seu irmão fosse amplamente compensado por cuidar dos interesses dos Fairchild. Kit examinou o rosto frio e irônico. — Lucien disse em certa ocasião que provinha de uma longa geração de pragmatistas. — Assim é como os Fairchild sobreviveram a tantas vicissitudes da história da Grã-Bretanha. — Michael indicou outro retrato, o de um polido cavalheiro vestido com as carregadas roupas típicas de cem anos. A seu lado se via de pé uma elegante dama com um amplo vestido de seda verde. — Esse é o quinto conde, Charles, e sua esposa, Maria. Era bastante dissoluto e um jogador contumaz. Seu filho herdou à idade de seis anos, quando ele morreu em circunstâncias suspeitas. Kit lhe dirigiu um olhar de receio. — Isso é verdade, ou está inventando? Ele soltou um sorriso. — É a história que Lucien me contou. Afirma que correu o rumor de que Maria tinha decidido preservar o patrimônio de seu filho a custa da vida de seu marido. Talvez a história seja certa, ou talvez se deva só ao caprichoso senso de humor de Lucien. Não leva muito a sério seus elevados antepassados. — Isso é melhor que tomar-los muito a sério. O tom de leveza de Michael desapareceu. — Isso é um defeito dos Kenyon, temo. Kenyon... Kit deveria ter reconhecido antes esse sobrenome. — Seu pai é o duque de Ashburton? — Sim — respondeu ele em um tom que fazia impossível formular mais perguntas. Assinalou com a cabeça o retrato que ocupava o último lugar na parede. — Viu alguma vez esta pintura? Representa Lucien e a sua família quando tinha nove ou dez anos. Ao olhar a pintura se via as claras que aquela tinha sido uma verdadeira família, não uma união dinástica. A prova radicava na maneira íntima em que a mão da condessa se curvava sobre o braço de seu marido; na ternura que se lia nos olhos do conde ao olhar a sua esposa e a seus filhos; na risada que compartilhavam Lucien e a menina etérea e de cabelo loiro prateado que lhe estendia sobre os ombros. Kit sentiu um nó na garganta ao vê-la. Era muito o que Lucien tinha perdido, tão jovem. Entretanto, o que poderia lhe ter destruído o fez mais forte. Perguntou com voz fraca: — Você conhecia bem a sua família? — Bastante. — Michael contemplou o quadro com expressão distante. — Eu não gostava de passar as férias com minha própria família, assim que meus amigos estavam acostumados a me levar consigo como se fosse um cachorrinho extraviado. Ashburton era meu lugar favorito para visitar, porque os pais de Lucien eram felizes juntos, e isso não é comum entre a nobreza. O olhar de Kit pousou na pequena menina de cabelo loiro e radiante sorriso que transcendia a passagem dos anos. — E lady Elinor? — Era encantadora — disse ele simplesmente. — Inteligente, doce e rápida. Ela e Lucien tinham uma união, uma relação extraordinária. Segundo minha experiência, nem todos os gêmeos de diferente sexo são tão unidos, mas creio que o que os mantinha juntos era a delicada saúde de 182


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Elinor. Lucien era muito protetor com ela. Sua morte o deixou destroçado. Houve uma nota em sua voz que fez Kit voltar a cabeça para ele. — E também a você? Depois de um longo silêncio, Michael respondeu: — Eu senti falta de todos, mas de modo especial de Elinor. Embora seu aspecto fosse o de um anjo de caramelo, era toda uma senhorita. Em minha primeira visita a Ashdown, decidiu que nos cortejássemos e me informou que nos casaríamos quando alcançássemos a maior idade. Eu aceitei sua proposta de boa vontade. — Ao cabo de outro comprido silêncio, continuou — : Se tivesse vivido... — Desviou bruscamente o olhar do retrato. — Não foi mais que uma fantasia infantil, é obvio. Não significou nada. Era evidente que tinha significado muito, inclusive depois de tantos anos. Aquela história fez reviver Elinor aos olhos de Kit. Devia ser uma menina tão inteligente como seu irmão, porque inclusive de pequena tinha sido capaz de identificar um moço que ao crescer se converteria em um homem admirável. — Obrigado por me contar tantas coisas, Michael. Quero conhecer tudo o que p uder do passado de Lucien. Ele lhe dirigiu um olhar penetrante. — Esta informação tem um preço. Procure não lhe fazer dano, Kit. Luce merece o melhor. Ela conteve o fôlego ao ouvir aquela inesperada observação. — Me acredite, o último que eu desejo é fazer mal a Lucien. Visse o que visse Michael em seu rosto, satisfez-lhe. Outra vez em tom leve, disse: — Aqui temos um retrato do sétimo conde. Aos olhos da sociedade caiu em desgraça ao meter-se em atividades comerciais, mas se redimiu ganhando montanhas de dinheiro nesse processo. Os parentes excêntricos estavam muito mais cômodos que a felicidade perdida.

Essa noite, com sua escolta incrementada até um número de três pessoa s, Kit foi a Blackwell Abbey, propriedade de Mace. Tinham deixado aquele lugar para o final porque ela já tinha estado ali antes e não tinha encontrado nem rastro de Kira, mas o imóvel era tão grande que havia áreas que não poderia ter captado da casa. E assim com aos outros imóveis, Lucien tinha obtido um mapa detalhado, desta vez esboçado por um patrício do lugar que tinha trabalhado ali em certa ocasião. No mapa figurava cada casa de campo, cada prado, cada atalho, assim como o muro de pedra que circunda va toda a propriedade. Antes de iniciar a busca, todos eles tinham estudado o mapa a fim de poder avançar sem serem vistos na escuridão. Mesmo assim, o registro teria sido impossível sem Michael. Não só possuía a visão noturna de um gato, mas além disso parecia levar o mapa gravado na cabeça. Igual a um explorador do exército em terreno hostil, conduziu-os ao longo de uma tortuosa rota cuidadosamente calculada para levar Kit até uma distância de uns umas centenas de metros de cada parte do imóvel. Lucien caminhava ao lado de Kit, cuidando para que não tropeçasse por causa de ter a atenção voltada para o interior de si mesma em lugar de sobre os acidentes do terreno. Atrás deles, movendo-se com o sigilo de um caçador da selva, vinha Jason Travers. Vestidos com roupas escuras, todos eles eram sombras em uma noite sem lua. Blackwell Abbey alterava Kit de uma maneira que não conseguia definir. Quando formaram um amplo círculo ao redor da mansão, deteve-se e contemplou fixamente sua silhueta escura e sinistra. Os homens se detiveram também. 183


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— Captaste algo? — perguntou-lhe Lucien em um tom de voz tão baixo que ninguém teria podido ouvi-lo a três metros de distância. Kit recordava nitidamente que dentro daquelas paredes de tijolo ela e Lucien se converteram em amantes, e teve a incômoda certeza de que ele estava pensando o mesmo. Mas não era isso que a tinha feito deter-se. — Há algo neste lugar. Kira não está aqui neste momento, e não creio que tenha estado nunca. Entretanto, sinto que há... que há uma espécie de conexão com ela. — Talvez alguém de Blackwell Abbey tenha estado com ela? — Talvez. — Kit se mordeu o lábio, desejando poder gritar de frustração. — É como ter os olhos enfaixados e que lhe empurram em meio de uma multidão para identificar a alguém pelo aroma. Lucien lhe tocou o cotovelo brandamente com os dedos. — Não se preocupe, Kit. Você pode faz er. Só precisamos de nos aproximar o suficiente de Kira. Voltava a lhe ler a mente. Kit deixou escapar o fôlego e ficou alerta de novo, procurando a inefável essência de sua irmã. Todos reataram o lento percurso do imóvel. Não tinham tido problemas ao revistar as propriedades anteriores, mas desta vez a sorte os abandonou. Ao passar por detrás de uma fila de casas de arrendatários, vários cães começaram a ladrar furiosamente. Em vez de supor que lhes tinha chamado a atenção um cervo ou um coelho, saíram das casas alguns quantos homens usando casacos para se proteger do ar frio e úmido. Uma voz áspera rugiu: — Provavelmente não será nada. — Não nos corresponde dizer — replicou outro. — Poderiam ser ladrões. Soltem os cães. O coração de Kit saltou de puro pânico. Michael vaiou: — Ali há um rio. Vocês três entrem nele, eu me encarregarei de despistá-los. Lucien agarrou Kit pelo braço e a guiou com toda pressa por uma colina cheia de matagais em direção ao rio. A suas costas se incrementaram os latidos dos cães quando seus donos os soltaram das correntes. Ao chegar à margem do arroio, Kit tropeçou em uma pedra solta, mas Lucien evitou que caísse. Juntos se meteram na água, Jason no seu outro lado. Procurando mover-se sem fazer ruído na rápida corrente, subiram o riacho e torceram onde este formava uma aguda curva. Ali encontraram um remanso coberto por uma espécie de teto formado por ramos nus. Lucien os conduziu até a parte mais nas sombras e se deteve. A água gelada chegava até a metade da coxa de Kit. A uns cem metros de distância, no lugar por onde haviam entrado no rio, os latidos se elevaram até converter-se em gritos histéricos. — Por aqui! — gritou um dos perseguidores. Os frenéticos latidos dos cães começaram a diminuir. Um tanto tonta, Kit se deu conta de que Michael os estava levando na direção contrária deixando uma pista na margem, corrente abaixo. Começou a tremer de tal modo que os dente rangiam. Sem dizer uma palavra, Lucien a atraiu para os seus braços para rebater a frieza da água com o calor de seu corpo. — Não se preocupe, Michael conseguirá escapar — disse com um fio de voz mais leve que um sussurro. E se não o conseguisse, seria culpa dela. Abraçou-se à cintura de Lucien. Desde a noite da agressão na rua, ele tinha mantido oculta a parte mais profunda de si atrás de um muro de timidez, mas em um nível menos sério, em nenhum momento ele tinha lhe negado seu apoio. Se não fosse por ele, Kit estaria agora delirando. Lucien a abraçou com força e lhe acariciou 184


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lentamente as costas. Inclusive ali, no meio do frio, do medo e do perigo, sentia o desejo correr languidamente por suas veias, como incitante aviso da paixão que tinham compartilhado. Perguntou-se se voltariam a viver momentos de intimidade. Era difícil imaginar semelhante felicidade. Quando o latido dos cães já não era mais que um eco longínquo, saíram para terra firme pela outra margem do riacho e continuaram sua expedição. Ao chegar à parede exterior, Lucien disse: — Se formos na direção oeste uns duzentos metros e atravessamos o imóvel outra vez, poderemos cobrir o terreno que resta. Poderá fazer, Kit? — Poderei — respondeu ela com determinação embora sentisse os pés ensopados e intumescidos por causa do frio. — A invencível Kit — disse ele com um sorriso na voz. — Se alguma vez me seqüestrarem, espero que você venha me procurar. Seu voto de confiança deu um pouco de ânimo a ela. Com o Jason abrindo o caminho, começaram a última penosa caminhada através do imóvel. Parecia não acabar nunca, e Kit tinha tanto frio que não estava segura de quão eficaz seria sua capacidade de percepção, mas por fim chegaram ao muro exterior que rodeava a propriedade. Lucien deu um salto e se agarrou a borda do tapume para poder içar-se até o alto dele, e depois estendeu uma mão para Kit para ajudá-la. Jason saltou assim como Lucien tinha feito. Os dois mantinham o exercício regular a cavalo e Jason havia devolvido grande parte da força física que tinha perdido no cárcere. Depois de descer pelo outro lado do muro, dirigiram-se para onde se encontravam os cavalos. Michael os estava esperando ali. Kit lhe perguntou: — Encontra-te bem? — Esplendidamente — assegurou ele. — É o melhor esporte que pratiquei desde que deixei o exército. Ela sentiu um calafrio subir seu corpo esgotado ao lombo de seu cavalo. Ser perseguido na escuridão por uma matilha de cães babentos era a idéia que ele tinha de fazer esporte, que aproveitasse. Foi um grupo silencioso o que retornou a cavalo a Londr es. A missão tinha ido bem e todos tinham saído ilesos. Só havia um problema. Kit ainda não tinha encontrado nem o m enor rastro de sua irmã.

CAPITULO 33

Eram quase três da madrugada quando chegaram de volta a Strathmore House, Kit cambaleando por causa do frio e do cansaço. Estava pensando em ir diretamente para a cama quando Lucien disse: — É hora de realizar um conselho de guerra. — Tinha o semblante grave e seu habitual encanto havia se esfumaçado para deixar ao descoberto uma capa de dureza. Seu olhar passou de Michael a Jason, e depois a ela. — Podemos fazê-lo agora, ou todo mundo está muito cansado? — Agora — disse Jason com a voz áspera. — Não há tempo a perder. — Michael mostrou seu acordo com uma inclinação de cabeça. Sabendo que todos deviam estar tão esgotados como ela, Kit levantou os ombros. 185


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— Se todos podem continuar, eu também posso. — Boa garota. — Lucien lhe dedicou um sorriso que dispersou parte do frio que lhe impregnava os ossos. — Que todo mundo vá colocar roupa seca. Vamos no reunir na cozinha. Quinze minutos mais tarde estavam todos sentados em cadeiras de estilo Windsor ao redor de uma mesa. A cozinha era um ambiente agradável, com cheirosos ramalhetes de ervas secas pendurados nas vigas e o resplendor do alegre fogo refletindo-se nas frigideiras de cobre. Lucien, bendito fosse, tinha disposto o necessário para que tivessem comida e bebida prontas para quando retornassem. Kit bebeu a primeira xícara de chá em dois goles. Pão, queijo, umas fatias de presunto e uma terrina de um guisado de lentilhas a fizeram sentir-se quase humana. Uma vez aplacada a fome, Lucien retirou sua cadeira da mesa e se aproximou da lareira. Jogou uma pazada de carvão ao fogo e em seguida se voltou para os outros enquanto as chamas se elevavam a suas costas. O mesmo aspecto devia ter Lúcifer quando se dirigia a seus seguidores. — Chegamos a um beco sem saída — disse sinceramente. — Alguém tem alguma sugestão a respeito do que poderíamos fazer a seguir? Depois de um longo silêncio, Michael disse: — Só o que você e eu falamos: escolher o suspeito mais provável e lhe forçar a falar. Horrorizada, Kit disse: — Refere-se a torturar? Lucien a olhou. — Se isso for necessário para encontrar sua irmã. Kit compreendeu que falava a sério. Abaixou a cabeça e apertou os dedos contra o centro da cabeça. Apoiando-se exclusivamente em sua palavra, aqueles homens — três homens fortes e extremamente competentes — estavam dispostos a fazer mal a alguém que poderia ser inocente. A idéia era aterradora. — É uma idéia desagradável, Kit, mas pode ser que seja nossa única esperança — disse Lucien em voz baixa. — Há algum homem que você escolheria como principal suspeito? Nunfield, possivelmente? Ou Mace? Kit sempre se considerou uma pessoa civilizada, mas pelo visto não era, porque se surpreendeu levando em conta a sugestão de Lucien. Afinal, era a vida de Kira que estava em jogo. Por sua mente desfilaram as fisionomias de todos os suspeitos. Depois de avaliar cada uma delas atentamente, levantou os olhos e disse. — Sinceramente, não posso escolher um que seja o mais provável de todos. Sinto muito. Se pudesse, faria. — Estamos procurando uma agulha em um palheiro — disse Michael, exasperado. — O que sabemos com segurança é que lady Kristine foi seqüestrada no meio da rua depois de uma função de teatro. Disso temos uma testemunha. Todo o resto é especulação derivada da intuição de Kit. — Dúvida dela? — perguntou Lucien em tom neutro. — Não. Em sua melhor versão, a intuição pode superar à lógica. A questão é: como poderemos aproveitar a capacidade de Kit para encontrar sua irmã? Era a mesma pergunta que Lucien tinha formulado antes, mas desta vez recebeu uma resposta inesperada. Jason Travers disse tentativamente: — Existe um método de adivinhação que talvez valesse a pena tentar aqui. Consiste em empregar um pêndulo e um mapa para encontrar um objeto perdido. Kit pode localizar Kira desse modo. — Vendo que outros o olhavam fixamente, disse —: Já sei que parece uma bobagem, mas não é tão diferente de um vidente procurando água com um pedaço de pau. — Eu vi hipnotizadores que tiveram êxito — disse Lucien devagar. — Embora racionalmente não tenha sentido, costuma funcionar. Kit? 186


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Ela encolheu os ombros. — Suponho que não fará nenhum problema tentar. O que devo utilizar como pêndulo? — Não sei se isso importará. — Jason refletiu durante alguns instantes. — Talvez uma jóia de Kira, se a tiver. — Tenho sua caixa de jóias. — Kit ficou em pé. — Irei ver se encontro algo que sirva. — Vou trazer os mapas do sul da Inglaterra mais detalhados que t iver. — Lucien acendeu duas velas e entregou uma a Kit. A seguir abriu a porta para que passasse enquanto Jason começava a limpar a mesa. Subiram as escadas com Kit à frente. Quando chegaram ao primeiro patamar, ela se voltou para Lucien. — Eu disse alguma vez quão agradecida estou pelo que está fazendo? Você acreditou em mim quando todos outros teriam me enviado a um manicômio, e utilizou suas habilidades especiais para procurar Kira com um esmero que ninguém teria podido igualar. — Poderá me agradecer quando a tivermos encontrado — repôs ele com um sorriso cansado. Suas palavras fizeram com que Kit mudasse a expressão. Por uma vez, Lucien a interpretou mal. — Deixa que eu repita que isto não é uma coisa por outra, sua liberdade em troca de que eu ajude a encontrar sua irmã. Conta com minha ajuda independente do que disser depois. — Seu semblante se tornou triste. — Embora eu possa ser implacável, existem limites. Encontrar Kira é uma questão diferente de minha determinação em te persuadir de que temos que nos casar. — Já sei. Não é este o momento de preocupar-se com o futuro. Espere que a crise tenha passado para decidir o que quer. Tudo o que est iver ao meu alcance, te darei sem condições. — Embora aquilo significasse dizer adeus, porque não era sua liberdade o que preocupava Kit, e sim a dele. Quando Lucien conhecesse Kira, não estaria tão disposto a casar-se com a simples e tranqüila Kit. Tomando suas palavras em sentido literal, Lucien disse em tom calmo: — A farei cumprir isso ao pé da letra. — Pela primeira vez em vários dias, Lucien a beijou, tomando seu queixo na mão. Foi um beijo leve, rápido, mas que de todos os modos a comoveu até o mais profundo. A frieza que tinha flutuado entre eles nos últimos dias se desvaneceu, deixando paz em seu lugar. Depois ele deu meia volta e se dirigiu para seu escritório enquanto Kit continuava até seu dormitório, sentindo os joelhos um pouco mais frouxos que antes. Kira gostava das jóias, e o cofre forrado de veludo em que guardava sua coleção de jóias era uma confusão de contas e quinquilharias. Kit hesitou diante do porta jóias aberto, sem saber o que escolher. Embora a intenção de adivinhação fosse absurda, deveria fazer todo o possível. Não queria um bracelete nem um colar complicado, nem tampouco nenhum dos broches, porque não balançariam com facilidade. Seu olhar pousou em um par de brincos de safiras. Serviria um deles suspenso em um fio. Ao colocar a mão no porta jóias para pegar um brinco, deteve-se no meio do caminho. Tinha notado uma estranha sensação de calor contra a palma. Não, não era calor, nem tampouco um ardor exatamente, mas... Era algo. Sentindo-se como uma idiota, introduziu a mão entre o monte de jóias até descobrir um pingente em forma de coração no fundo da caixa. Era um objeto encantador, com um delicado desenho gravado na superfície dourada e uma fina corrente, que seria perfeito para servir de pêndulo. Além disso, Kit sentiu que tinha escolhido o objeto adequado. Decididamente, a fadiga e a ansiedade a estavam deixando um pouco estranha. Fechou o porta jóias e retornou à cozinha. Jason estava caminhando nervosamente para cima e para baixo da cozinha. Em forte 187


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contraste, Michael estava sentado em sua cadeira de estilo Windsor, com as pernas cruzadas à altura do tornozelo e a tranqüilidade de um homem que aprendeu a ser paciente no campo de batalha. Sem dúvida, a isso contribuía que ele era o que menos tinha em jogo; mal conhecia Kit, e nada absolutamente de Kira. Entretanto, isso fazia ainda mais admirável o fato de que estivesse disposto a participar de uma missão que poderia ser perigosa. Kit se perguntou como seria possuir uma coragem assim. Ela estava muito cansada de estar assustada todo o tempo. Lucien tinha retornado antes que ela e estava abrindo um enorme livro sobre a mesa. Ao aproximar-se um pouco mais, viu que se tratava de um conjunto de mapas Soberbamente traçados e coloridos dos condados britânicos. Estava admirando a qualidade da impressão quando ele arrancou tranqüilamente a página que mostrava o condado de Surrey. Lucien levantou a vista ao ver que ela fez uma ameaça de protesto. — Não sei como funciona um pêndulo, mas poderia ter problemas com um mapa que esteja encadernado junto com outros mapas. — Isso parece lógico — admitiu Kit. Abriu a mão para mostrar o pingente. — Isso servirá, Jason? O rosto dele se contraiu quando viu o que Kit tinha na mão. — Eu dei isso de presente a Kira. Será ...que o usou alguma vez? Embora Kit desejasse poder dizer que sim, teve que mover a cabeça em um gesto negativo. — Não, mas não esqueça que nos últimos anos eu a vi muito pouco. Ele pegou o pingente e o abriu com a unha do dedo polegar. Dentro havia uma mecha de cabelo escuro exatamente igual ao dele. — Pelo menos o conservou. Isso tem que significar algo. Kit se compadeceu do jovem. Não só temia pela vida de Kira, como não podia ter certeza de seu amor. —Se minha irmã quisesse te esquecer, teria se desfeito disto. — Kit voltou a pegar o pingente e o girou para a luz para poder ver quais iniciais estavam gravadas no interior. K. T. + J. T. Debaixo delas havia a figura de um oito convexo, o símbolo matemático que representava o infinito. Kira e Jason, para sempre. Piscou para afastar a emoção que estava sentindo e disse — Evidentemente, escolhi o pêndulo adequado. Com expressão ferida, Jason disse: — Esperemos que assim seja. Kit fechou a caixinha. — Como funciona isto? Acabo de me dar conta de que não tenho a menor idéia. — Pegue uma cadeira e relaxe. Isto levará um pouco de tempo. Kit, obediente, acomodou-se em uma das cadeiras de estilo Windsor. Jason continuou: — Apóia o cotovelo na mesa e deixa que o pêndulo balance livremente de sua mão direita. Lucien interveio: — Tem algum problema o fato de que Kit seja canhota? — Nesse caso, utiliza a mão esquerda. Deixa o pingente solto até que fique completamente imóvel. Enquanto Kit aguardava que o pêndulo deixasse de oscilar, Jason explicou: — Em geral, utiliza-se um pêndulo para fazer perguntas que podem responder-se com um sim ou um não. Entretanto, os movimentos variam segundo as pessoas. Para averiguar como funciona o pêndulo contigo, lhe faça alguma pergunta cuja resposta já saiba de antemão. Com um gesto de ter entendido, Lucien disse: — Está em Londres? O pingente vibrou ligeiramente. Então, para assombro de Kit, começou a balançar-se no 188


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sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, embora ela estivesse preparada para jurar que não estava fazendo nada. Jason disse: — Essa direção significa que sim. Intrigado, Lucien perguntou: — Alguma vez esteve na Índia, Kit? O pêndulo deixou de mover-se gradualmente até ficar imóvel, e a seguir começou a girar no sentido dos ponteiros do relógio. — Isso significa que não — disse o americano. Michael disse em voz alta: — Permitirá o Congresso de Viena que Napoleão conserve o trono da França? O pingente tremeu nervosamente e se deteve. — Normalmente, o pêndulo não serve de muito para predizer o futuro — observou Jason. — Parece funcionar melhor para encontrar objetos perdidos ou para ajudar que uma pessoa descubra o que quer realmente fazer em uma situação que lhe resulte confusa. Lucien começou a formular a Kit uma série de perguntas de resposta simples. Ficou claro que a direção contrária a dos ponteiros do relógio era sempre sim e ao contrário era não. Impressionada apesar de suas dúvidas, Kit perguntou: — Onde aprendeu isto? — De minha mãe, que era uma irlandesa de olhos selvagens. — Jason sorriu com carinho. — Segundo ela, as mulheres O’Hanlon levam várias gerações sendo adivinhas e legando seus conhecimentos de mães para filhas. Meu pai morreu quando eu era jovem, e minha mãe nunca voltou a casar-se, então me ensinou as tradições da família com a estrita ordem de transmiti-las a minha filha. — Seu sorriso se desvaneceu. — Se é que alguma vez a tenha. Era óbvio que ele e sua mãe tinham eram muito unidos. Talvez o fato de ter sido criado por uma «irlandesa de olhos selvagens» fosse a razão pela qual Jason podia apaixonar-se por esse tipo de mulher forte e pouco convencional que se atreveria a ser atriz. Quanto mais Kit conhecia seu primo, melhor compreendia por que sua irmã o tinha amado também. Obrigou sua mente cansada a voltar para o assunto que tinha entre as mãos e perguntou: — Agora que vimos como funciona comigo, o que tenho que fazer? — Pensa intensamente em encontrar Kira — respondeu ele. — Quando tiver esse objetivo firmemente ancorado na mente, mantém o pêndulo estável na mão esquerda enquanto move a outra mão pelo mapa lentamente. Se funcionar, notará uma forte reação no pêndulo quando sua mão passar sobre o ponto em que Kira se encontra. — Aguarda um momento enquanto arrumo os mapas — disse Lucien. — Começamos por Londres? Outros estiveram de acordo, assim Lucien arrancou o mapa da cidade. Kit, enquanto esperava, recordou o que Jason havia dito a respeito de que um pêndulo poderia ajudar uma pessoa a descobrir o que sentia verdadeiramente em uma situação confusa. Mentalmente perguntou: «Estou apaixonada por Lucien?» O pêndulo saltou em sua mão e começou a girar velozmente no sentido contrário ao d os ponteiros do relógio. Sim, sim, sim. Kit ficou olhando consternada para o pingente. Tinha sido uma tolice perguntar aquilo. Naturalmente que o amava; como não ia amar? Mas sua mente covarde queria negar a verdade porque preferia não reconhecer como seria doloroso lhe perder. De fato, experimentou certo alívio ao aceitar que estava apaixonada por ele; negar não a tinha feito sentir-se melhor. Antes que pudesse se deter, sua mente deu forma a outra pergunta: «Seguirá acreditando 189


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que me ama quando tudo isto terminar?». O pingente se deteve totalmente até ficar imóvel da corrente de ouro. Bom, Jason havia dito que não servia para predizer o futuro. Nem tampouco ela queria saber o que ia acontecer depois; e só de pensar nisso já doía bastante. Jason lhe disse: — Preparada? Lucien colocou o mapa de Londres diante dela. Kit fechou os olhos e pensou em sua irmã gêmea, seu outro eu, melhor que o seu. «Kira, onde está? “Diga-me onde você está, querida". Repetiu essas frases como uma letargia até que sua consciência ficou saturada da essência de sua irmã. Então começou a mover muito devagar a mão direita sobre o mapa da cidade. A tensão que flutuava no ambiente era asfixiante. Coisa surpreendente, não importava ter um público que a estava observando, porque aqueles três homens lhe inspiravam uma sensação de proteção co ntra o desconhecido que ela estava tentando penetrar. A adivinhação resultou ser um processo lento e penoso. Tal como estava previsto, Londres não provocou reação alguma, embora Kit sentisse um leve formigamento na palma da mão. Talvez se devesse ao fato de que Kira havia passado muito tempo na cidade. A seguir foi a vez de Surrey, depois Kent. Lucien ia estendendo os mapas dos condados no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio ao redor de Londres. Em seguida Essex. Kit não olhava atentamente os mapas, mas em lugar disso, fazia todo o possível para manter a mente vazia para que fosse um instrumento daquele misterioso poder que movia o pêndulo. De repente o pingente começou a agitar-se, criando um frenesi de emoção. Com voz trêmula de esperança, Jason perguntou: — Kira está em Romford, ou perto desse lugar? O pêndulo começou a girar no sentido horário. Não. Kit deixou escapar o ar que havia contido. — Kira estava acostumada a visitar alguns amigos em Romford. É provável que esse seja o motivo da reação. — Mesmo assim, isso demonstra que a técnica dá resultado. Nem sequer estava olhando o mapa, de modo que não podia saber que estava tocando Romford. — Lucien estudou seu rosto e franziu o cenho. — Precisa descansar? Imaginando que devia ter um tom cinzento pelo esgotamento, Kit fechou os olhos e se recostou na cadeira com as mãos soltas sobre o colo. Lucien lhe apoiou uma mão no ombro, e ela sentiu fluir em seu interior um pouco da força e da segurança dele. Quando já se sentia um pouco mais forte, voltou a levantar o pêndulo e continuou. Depois de Essex, Hertford. Depois Middlesex. Nada. Sentiu um nó na garganta. Aquilo não funcionava; havia passado por todos os condados que rodeavam Londres, sem obter resultado algum. Lucien estendeu outro mapa sobre a mesa. Uma rápida olhada lhe permitiu ver que se tratava de Berkshire, que estava justamente a oeste de Middlesex. Lucien estava começando com uma segunda rodada de condados ao redor de Londres. Tenazmente, passou a mão por cima de Windsor e depois para o norte, em Maidenhead. «Kira, onde está?». De novo para o sul, em direção a Bracknell. Nesse momento o pêndulo saltou como um peixe no anzol e começou a girar velozmente no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Ao mesmo tempo, Kit sentiu uma sensação aguda, quase dolorosa, na palma da mão direita, que a fez avivar-se de repente, sentindo a emoção correr por suas veias. Experimentou com força a presença de sua irmã, não no pulsar mal consciente que percebia constantemente, a não ser o intenso contato que havia sentido quando Lucien a hipnotizou. Com voz afogada, Jason disse: 190


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— Kira está perto de Basildon? O pêndulo freou ligeiramente, mas continuou girando no mesmo sentido. Kit sentiu Lucien à suas costas, perguntando: — Está perto de Hycombe? O pêndulo começou a mover-se mais depressa. Kit só se dava conta pela metade, porque se sentia deslizar-se ao interior da mente e das emoções de sua irmã tão profundamente que não estava totalmente segura de onde terminava uma personalidade e começava a outra. — Está em cima de um pequeno povoado, West Hycombe — disse Lucien com voz longínqua. — Está perto daí? Kit sentia retumbar a cabeça e apenas era consciente de que o pingente voltava a agitar-se velozmente. Agitar-se, agitar-se, a ponta do chicote mordendo a carne suarenta. Um som animal, gutural, de dor misturada com prazer. Uns olhos enlouquecidos cheios de ânsia e velada ameaça... Muito, muito longe, Lucien perguntou: — Kira está em um lugar chamado Castle Raine, ou perto dele? A realidade explodiu em mil pedaços em meio de um torvelinho de terror. Irmã... Outro... Inimigo... Perigo... Perigo... Perigo! Quando se precipitou no torvelinho, começou a gritar.

CAPITULO 34

Assim que Lucien pronunciou as palavras «Castle Raine», Kit soltou um grito de terror que lhe congelou o sangue. Michael saltou de sua cadeira e cruzou a cozinha com grande rapidez. — Mas que inferno, o que é que está ocorrendo? Jason também disse algo, mas Lucien não fez caso a nenhum dos dois. Situou-se em frente a Kit e viu que ela permanecia alheia ao que a rodeava, com os olhos sem enxergar, as mãos contraídas e sua torturada voz convertida em um longo lamento de angústia. Parecia uma mulher transtornada... Ou uma mulher presa na loucura. Pegou-lhe as mãos e lhe disse em tom urgente: — Acorda, Kit, você conseguiu. Tudo terminou. Ela se debateu freneticamente, tentando soltar as mãos. — Odeio isso, o odeio, odeio a ele, odeio-lhe, ODEIO-LHE! Com o rosto pálido, Jason disse: — O que acreditas que aconteceu? — Creio que se viu presa no terror de Kira — respondeu Lucien com gravidade. Depois, elevando o tom de voz, disse — Volta Kit. Pelo amor de Deus, volte já! Cessaram os gritos, mas seus olhos continuavam nublados e ofegava como um cervo açoitado até a beira de um colapso. Lucien a envolveu em seus braços. Kit tremia, e estava tão gelada como quando se esconderam no riacho para despistar os cães. Quanto mais poderia suportar antes de cair? Disse-lhe com voz suave: — Tudo vai ficar bem, Kit, está a salvo comigo. — Por favor... Por favor, me abrace, Lucien. — Começou a chorar, mas sua voz era a sua. Dando graças a Deus por ver que Kit tinha voltado a ser ela mesma, tomou-a em braços, voltou-se e se sentou na cadeira, e começou a embalá-la contra seu corpo. — Adivinhar com um pêndulo é sempre tão emocionante? 191


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Com o rosto branco, o americano respondeu: — Jamais tinha visto nada parecido. — Supostamente, nunca esteve com uma mulher que estivesse procurando uma irmã gêmea desaparecida. — Acariciou os ombros de Kit, que não deixavam de tremer. A jovem parecia dolorosamente frágil. Odiava ter que insistir, mas lhe perguntou — Então você se conectou com as emoções de Kira? Kit tragou saliva. — Sim, justamente no final de uma das sessões de flagelação. Era horroroso, como ter um pesadelo estando acordada. Vi e ouvi tudo, e senti o que Kira estava sentindo, mas sem poder fazer nada. Sentia-me paralisada, como uma mosca presa em uma teia de aranha com a aranha se aproximando. — Kira se encontra bem? Kit franziu o sobrecenho um instante, e a seguir relaxou. — Sim. Ele desapareceu. Ela sabia que eu estava ali, e creio que isso a ajudou. — Acredita que está confinada em um lugar chamado Castle Raine? Kit estremeceu e voltou a esconder o rosto. — Creio que sim. Lucien estendeu um braço e manteve o outro ao redor de Kit. — Michael, me dê o mapa. Seu amigo o pôs em silêncio na sua mão. Depois de estudar a área, disse: — Castle Raine é uma fortaleza medieval em ruínas, e provavelmente não seja nenhuma coincidência que se encontre na metade de caminho entre os imóveis de Mace e Nunfield. — Provavelmente. — Michael lançou um olhar a Kit. — A masmorra de um castelo casaria bem com sua impressão de uma prisão subterrânea e sem luz. Ela fez uma careta. — Tem razão. Nem sequer móveis cômodos conseguiriam dissimular um ambiente assim. Lucien seguia observando o mapa com o cenho franzido. Havia um rio que discorria perto dali, coisa nada surpreendente tratando-se de um castelo medieval. O que chamou sua atenção foi uma curiosa sensação de familiaridade. Uma imagem surgiu em sua mente; de pé no alto de uma colina em meio de velhos muros de pedra, olhando para um rio iluminado pela lua e que descrevia uma curva. Muros de pedra e a lua... — Maldição, parece que eu estive lá! — exclamou. — Castle Raine deve ser o lugar onde os Demônios celebram seus rituais. — Você assistiu a uma dessas infames orgias? — lhe perguntou Michael, arqueando as sobrancelhas. Kit elevou a cabeça e fechou seus olhos cinza, aguardando a resposta de Lucien. Este recordou com desassossego a vadia de rosto duro e a horrível desolação que o invadiu depois que permitiu que ela ganhasse seu salário daquela noite. Estreitou com mais força os ombros de Kit. — Estritamente por negócios, não por prazer. Ela voltou a relaxar. Menos mal que estivesse tão cansada, porque do contrário poderia ter adivinhado que aquela resposta não continha toda a verdade. Aquela noite era uma que Lucien preferia esquecer. Jason disse: — Sabe se esse castelo tem masmorras? — Eu não vi nenhuma, mas é provável. O terreno sobre o qual está situado é muito amplo. Ali poderia ocultar-se algo, ou qualquer pessoa. Fez-se um silêncio na sala que só foi rompido quando Michael disse em tom de grave 192


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ameaça: — Suponho que esta noite iremos a Castle Raine procurar lady Kristine. — Com certeza — respondeu Lucien. — Mas antes dormiremos. Pela manhã, Kit e eu iremos ver lorde Ives, que é um Demônio em que poderemos confiar. Ele poderá nos dizer algo mais sobre o castelo. — Nunca se pode ter muita informação sobre o objetivo de uma incursão. — Michael passou a mão por seu cabelo de cor castanha. — Mas quanto antes nós formos a Berkshire, melhor. Uma forte tormenta está se formando, de água e neve ou de granizo, eu temo. — Então necessitaremos de um lugar onde nos esconder que esteja perto do castelo. U ma casa particular seria melhor que um albergue. — Lucien tamborilou com os dedos sobre o mapa. — Rafe possui uma pequena mansão perto de Basildon. O arrendatário morreu recentemente, e a casa ainda está vazia. Estou certo de que nos deixará usá-la. Poderemos chegar até lá a cavalo pela tarde. Depois da incursão, poderemos passar a noite e assim não teremos que percorrer todo o caminho de volta até Londres. Apesar da fadiga, Kit estava curiosa, e disse a Michael: — É capaz de predizer uma tormenta com tal precisão que Lucien aceita sua palavra sem pestanejar? — Antes me chamavam de o adivinho do tempo. Mesmo quando criança, sempre era capaz de dizer quando se aproximava uma tormenta e quão intensa ia ser. — Michael flexionou um braço. — Desde que recebi o golpe de uma bola no ombro, minhas predições são ainda melhores. — ficou em pé e acrescentou — Durma bem. Jason dissimulou um bocejo. — Como amanhã é o inicio do inverno, ainda contamos com algumas horas mais de escuridão. Lucien ficou de pé com Kit nos braços. — Boa noite. Enquanto se encaminhava para as escadas, ela protestou: — Posso andar. — Tenho minhas dúvidas — repôs ele, lacônico. — Lembre-se que ficou muito esgotada nas outras vezes que entrou em contato com a mente de Kira? — Oh. — Fechou os olhos e deixou que a cabeça caísse sobre o ombro dele. Lucien se sentiu impressionado de novo por quão frágil Kit parecia. Pobre menina, corajosa e exausta. Devia sustentar-se em pé na base da força de vontade. Levou-a até o seu quarto e a depositou no lado da cama, e depois tirou as vestimentas mais exteriores. Ela colaborou em atitude passiva, com a cabeça encurvada. Quando ficou só com a anágua, Lucien afastou para trás os cobertores da cama, mas antes que pudesse agasalhá-la Kit se agarrou a ele lhe rodeando o pescoço com os braços. — Fique, Lucien — lhe disse, com os olhos de um verde mate. — Por favor. Ele titubeou, sentindo a tentação. Mas... — Eu adoraria ficar, mas não posso jurar que vá me comportar com a necessária correção — disse, esforçando-se por manter um tom leve. — Embora compreenda perfeitamente a razão pela qual você tem que evitar a confusão que te produz a paixão, quando estou perto de você , toda sensatez desaparece imediatamente. O cansaço te protegerá esta noite, mas não te garanto nada a respeito de manhã pela manhã. Kit esboçou um meio sorriso. — Estou preparada para aceitar as conseqüências. Agora que sei onde Kira está, já não tenho a sensação de que seja tão importante evitar toda intimidade. — Pôs uma mão no peito dele e 193


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adicionou com um fio de voz — E esta noite não quero ficar sozinha. Lucien lhe deu um beijo na testa. — Enquanto eu continuar vivo, Kit, você não ficará. Ela contraiu o rosto, embora não dissesse nada. Lucien se perguntou se alguma vez acreditaria nele, ou se seu pai, indigno de toda confiança, teria destruído para sempre sua capacidade de tomar a sério a palavra de um homem. Bom, podia ter toda a paciência que fo sse necessária. Despiu-se, apagou as velas e se deitou ao lado dela sob o cobertor de plumas. Kit se acomodou contra ele com um suave suspiro. Os lençóis estavam frios e ela também, mas em seguida aumentou o calor ali onde os corpos de ambos se tocavam. Lucien sorriu quando uma esbelta perna se insinuou entre seus joelhos, seguida de um pé congelado que se desliza va sob seu tornozelo. Não podia imaginar por que havia pessoas que preferiam dormir a sós. Embora a fadiga tivesse influenciado enormemente para adormecer o desejo, continuava sendo prazeroso acariciar Kit desde o ombro até o quadril. Suas curvas lisas e flexíveis foram se aquecendo. Quando sua mão se deteve um momento em seu seio, acariciou-lhe perigosamente o mamilo com um dedo. Este se endureceu e formou um casulo pequeno e firme sob o fino tecido da anágua. Inclinou-se para frente alguns centímetros para que seus lábios conseguissem tocar os dela. A boca de ambos se encontrou, a de Kit suave e acolhedora, língua contra língua provocando um delicado prazer. Depois de um beijo longo e pausado, Lucien afastou o rosto. — Isto é uma loucura — disse com a voz rouca. — Nós dois precisamos dormir. Kit murmurou algo para mostrar sua concordância, mas sua mão se deslizou ao longo da cintura de Lucien até a parte baixa das costas e ali começou a movê-la em lânguidos círculos, brandamente eróticos. Ele sentiu vibrar claramente o desejo. Desceu a cabeça e a beijou nos seios, saboreando a textura rugosa do mamilo através da anágua. A julgar pela forma em que a respiração de Kit mudou, ela não era mais imune ao desejo do que ele. Suas carícias se fizeram mais longas, e sua palma começou a escorregar coxa abaixo, até tocar o joelho. No caminho de volta o dedo polegar tropeçou com a borda da anágua e a deslizou para cima. Não fez intencionalmente, mas não pôde resistir aproximar a cabeça ao aroma que desprendia aquela escuridão e beijar a curva lisa e branda daquele ventre. Os dedos de Kit desceram por seu pescoço e começaram a brincar na nuca. Delicioso, simplesmente delicioso. Passaram aos ritmos do acasalamento como sonhando, cada passo não tão inocente ia seguido de outro menos inocente ainda; a fricção da pele nua contra o pêlo denso e cacheado, delicadas dentadas com o passar do arco de uma garganta; a flexão da branda feminilidade para amoldar-se à masculinidade angular, sutis fragrâncias corporais intensificadas pela escuridão e convertidas em drogas embriagadoras. Quando a mão de Kit procurou e encontrou a firme carne viril, ele respondeu explorando intimamente suas profundidades secretas. Ela separou as coxas, o convidando. Nem sequer quando ele se içou sobre ela e ambos se uniram, houve uma verdadeira sensação de urgência. Paixão, sim, e sangue pulsando com um calor que terminou em uma viva chama. Mas não desespero, porque sua união era profundamente lícita, um intercâmbio de mútuo amor que paradoxalmente fortaleceu aos dois ao mesmo tempo. Por fim adormeceram um nos braços do outro, em um sono profundo e sem sonhos.

Kit abriu os olhos à claridade do amanhecer. O começo do inverno fazia com que o sol saísse relativamente tarde, mas inclusive assim ela não pôde dormir mais de quatro horas. Entretanto, sentia-se assombrosamente descansada, do qual tinha que conceder todo o mérito a Lucien. A intimidade de uma cama compartilhada pareceu tão natural e correta que custava imaginar que 194


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talvez não voltasse a ocorrer tal circunstância. Mas nunca lamentaria ter lhe amado, por muito que lhe doesse no futuro. Tampouco esqueceria que ele tinha desejado a ela. Contemplou seu rosto adormecido, emoldurado pelo cabelo loiro revolto. Lucien possuía naquele momento uma beleza que paralisava o coração, e se via mais relaxado do que jamais o havia visto em estado de vigília. Um pensamento rebelde se agitou no mais recôndito de sua mente. Lucien era o homem mais inteligente que tinha conhecido, e absolutamente propenso a fazer falsas ilus ões. Talvez pudesse acreditar que ele a amava seriamente; talvez realmente a preferisse a sua irmã. Deixou escapar um lento suspiro. Ninguém mais o havia feito. Não só Kira era mais vital, mais encantadora, mas também era mais forte. Tinha florescido levan do uma vida independente, diferente dela, que mal tinha sido capaz de funcionar normalmente quando deixou de ser a metade de um todo. Lucien se admiraria da força de Kira tão intensamente como ficaria enfeitiçado por sua vivacidade. Não deixava de ser irônico. Se Kira morresse, ela poderia ficar tão traumatizada emocionalmente que já não seria de utilidade para ninguém, mas, ao mesmo tempo, resgatá -la poderia supor abandonar para sempre suas esperanças de conseguir o amor. Mas naquele efêmero e intenso momento, Lucien era dela. Kit esticou o pescoço e lhe roçou os lábios no mais leve dos beijos. Ele abriu apenas as pálpebras, revelando um dourado brilho de satisfação em seus olhos. — Avisei que se ficasse, não seria capaz de me comportar como deveria — disse com uma faísca maliciosa no olhar. — Embora acreditasse poder dominar a tentação um pouco mais de tempo. — Tolices — replicou ela com um sorriso. — Só se comporta decentemente quando te convém. — E me convém agora. — Envolveu-a em seus braços e a atraiu sobre si. Ela proferiu um leve gemido de surpresa e depois relaxou, com as pernas estendidas por cima das dele e os seios esmagados contra seu corpo, e disse a contra gosto: — Na realidade devemos nos levantar logo. Será um dia muito comprido. — O que quer dizer que deve começar como Deus manda. — E a silenciou com um beijo enquanto deslizava as mãos no interior de sua anágua procurando suas nádegas e afundando os dedos nelas. Ao mesmo tempo em que se beijavam, Kit notou que ele se endurecia sob seu ventre. Esticou-se com a flexibilidade de um gato, desfrutando do contato dos músculos de seu corpo e da forma em que ambos os corpos encaixavam um no outro. O beijo se fez mais profundo, e um fogo líquido começou a circular por suas veias. Estava a ponto de r olar para um lado para poder fazer amor como era devido, quando Lucien lhe prendeu os quadris e se introduziu no interior dela com um só movimento. Kit aspirou profundamente. — Oh, Deus. Agora compreendo por que me puseste em cima de ti. Ele sorriu e empurrou para cima. — Os conhecimentos são algo maravilhoso. — Com efeito — disse Kit sem fôlego. — L. J. Knight tem escrito vários artigos provocadores sobre esse tema. — Tão provocador como o que estamos fazendo? — Isto não é provocação — replicou ela com uma risada entrecortada. — É luxúria descarada. — Mmnn, luxúria, meu pecado mortal favorito. — Lucien voltou a empurrar para cima. 195


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Kit estremeceu ao sentir como a invadia uma onda de calor. Com cuidado, endireitou-se de forma que ficasse sentada escarranchada sobre ele. A seguir tirou lentamente a anágua com um movimento de deliberada sedução e a jogou por cima do ombro. Lucien reagiu levantando a cabeça e capturando seu seio esquerdo com a boca. Ela gemeu e se balançou para frente e para trás para o atrair mais para dentro, até que ele voltou a cair sobre os travesseiros, ofegando em busca de ar. Kit se inclinou para frente e aprisionou os pulsos dele contra a cama. Olhar-lhe o rosto de certa altura criava a prazerosa ilusão de que era tão forte como ele. Desejando lhe ver necessitado e ofegante, moveu lentamente a pélvis contra ele. Lucien deixou escapar uma exclamação abafada, com expressão totalmente aberta, revelando até a último matiz de desejo. Havia uma profunda intimidade no fato de fazer amor à luz do dia e com o olhar de um cravado no do outro. Kit descobriu todo um leque de deliciosas possibilidades que eram oferecidos a ambos para mover-se juntos. Cada movimento de um dos dois se refletia instantaneamente no rosto do outro, como se não fossem dois corpos mas um. Abaixou a cabeça e lhe beijou com ardor. Estavam duplamente unidos, cada um no interior do outro. Com dolorosa intensidade, Kit ansiou fundir -se emocionalmente do mesmo modo que estavam fundidos fisicamente, completar seu ser murcho com o poderoso espírito dele. Mas logo que tomou forma aquela idéia sentiu uma pontada de medo que a devolveu ao terreno seguro do humor. Interrompeu o beijo e disse: — Agora entendo uma piada que ouvi uma vez no teatro, a respeito de uma mulher montando em um homem. Nesse momento captou uma sombra — desilusão?— nos olhos de Lucien e sentiu uma sutil retirada emocional. Tristemente, reconheceu que, em sua necessidade de proteger a si mesma, tinha falhado de novo com ele. Lucien, mascarando rapidamente sua reação, respondeu ao humor com mais humor, dizendo com ironia: — Também deveria ocorrer uma interpretação totalmente nova dessa antiga rima do maternal que falava de montar um pau com cabeça de cavalo até Banbury Cross. — Lucien! — exclamou Kit, rindo embora se ruborizasse profundamente. — Isso é indecente. Não é mais que um cavalinho infantil de madeira. — Isso é o que dizem às meninas, mas os meninos não se deixam enganar — repôs ele. — Já que é escritora, talvez queira pensar melhor as frases que empregaste sem te dar conta, como chamar uma adolescente «polida» ou falar de comprar «ovos» em uma «avícola». A língua está cheia de duplos significados. Kit não via o duplo significado até que ele começou a rir. Todo um mundo novo de obscenidades se abriu diante ela. Vermelha de vergonha, fechou a boca de Lucien com um beijo. Por sorte, ele teve piedade de sua modéstia ferida e não brincou mais. Kit não tinha imaginado que a paixão pudesse ser tão divertida. Domin ou a arte de avivar Lucien balançando os quadris, e de o ter abrasando-se a beira do clímax com a imobilidade. Descobriu que podia comportar-se como uma mulher lasciva e que ele achava delicioso aquele abandono. E esteve a ponto de afogar-se de rir quando ele exclamou: — Não cheira a queimado? Creio que chamuscamos os lençóis. Mas aquele ânimo desenvolto durou pouco. Nas próximas vinte e quatro horas t udo ia mudar. Se Deus quisesse, sua irmã seria livre, mas o preço que ela ia pagar poderia ser que talvez nunca voltasse a viver aquela intimidade com Lucien. E, além disso, existia um perigo real; sentia pender sobre a cabeça de Kira como se fosse uma densa névoa londrina. Sentindo um súbito frenesi, utilizou suas habilidades recém aprendidas para levar a ambos à culminação. Na violência da satisfação não havia lugar para o medo nem para o arrependimento. 196


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Quando ficou estendida e ofegante nos braços dele, deu trabalho ocultar a melancolia que lhe retumbava no sangue como um tambor. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.

Lucien contemplou fixamente o teto, sentindo os batimentos do coração dela tão forte como os do seu próprio. Ela estava deitada em cima dele, suave como o caramelo, e acabavam de fazer amor com apaixonada intensidade. Sendo assim, por que tinha a sensação de que lhe havia dito adeus em silêncio? Quanto mais se aproximavam de Kira, mais Kit se afastava emocionalmente; tinha visto com clareza quando fizeram amor e desapareceram as defesas normais. O resultado lógico daquilo seria que quando encontrassem Kira ele perderia Kit de vez. Em um primeiro momento tinha acreditado que a intimidade física os aproximasse mais um do outro, mas já não era assim. Embora não duvida sse que pudesse convencê-la a se casar - a gratidão era uma força importante e ele era um mestre da manipulação sutil, — já não tinha certeza de que o casamento lhe proporcionasse o que estava procurando. Já não tinha certeza de nada. Sentiu verdadeiro alívio quando Kit falou. — Tenho a horrível sensação de que resgatar Kira vai ser mais difícil do que se pensa — disse em tom sombrio. — Recorda que Kira disse que havia guardas? Ali há perigo, Lucien. Contente de retornar a assuntos mais corriqueiros, Lucien respondeu: — Quantos guardas pode haver? Não estamos falando de sitiar uma cidade. O seqüestrador não é mais que um homem rico e pervertido. É muito possível que haja um só guarda, dois se muito. Se ele mesmo se encontrar ali, isso fará um número de três. — encolheu-se de ombros. — Embora houvesse meia dúzia, o que é difícil de imaginar, ainda nós prevaleceríamos, porque contamos com Michael. — Assombra-me que ele esteja disposto a se arriscar quando ele não tem nada a ganhar. Jason e eu amamos Kira, e você está fazendo isto por mim — lhe deu um beijo rápido, — e por isso me sinto profundamente agradecida, mas Michael está agindo por amizade a ti e pela bondade de seu coração. Esses são motivos, mas bem abstratos. — Suspeito que se alegra de poder empregar sua capacidade de guerreiro para uma boa causa. Teria sido um esplêndido cavalheiro medieval. — Matar dragões e resgatar mocinhas? — Exatamente. — Lucien lhe rodeou a cintura com um braço, em seu afã de abraçá-la um pouco mais. Mas o tempo tinha terminado. Kit se obrigou a levantar-se. — Se andarmos depressa, poderemos pegar lorde Ives no apartamento de Cléo. —Vivem juntos? — Quase. — Kit sorriu ligeiramente. — Ele quer instalá-la em uma casa maior e mais luxuosa, mas ela se empenha em se negar. Diz que prefere ser dona de si mesma que simplesmente a amante de um lorde. É irônico; toma absolutamente a sério cada palavra que diz, mas pode ser que a coisa termine ele lhe oferecendo casamento com o fim de retê-la. — Não seria a primeira vez que um lorde escolhe a sua dama no teatro — assinalou Lucien. — Ouvi como fala dela. Poderiam se dar muito bem juntos. — Perdendo interesse pelo tema, tomou o pulso de Kit e lhe depositou um beijo na palma da mão. — Dentro de vinte e quatro horas estaremos celebrando a liberdade de Kira. E depois poderemos pensar em uma data para o casamento. Pessoalmente, estou inclinado a obter uma licença especial e nos casar imediatamente. Estaria de acordo com isso? Queria que Kit reagisse como se desejasse aquilo tanto como ele, ou se não tanto, que pelo 197


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menos o desejasse. Mas em vez disso, Kit lhe respondeu com um doce sorriso que não conseguia ocultar a tristeza que havia em seus olhos. — Como te prometi ontem à noite, aceitarei o que você quiser. Se aquilo era uma vitória, parecia curiosamente a cinza.

INTERLÚDIO Depois que ele partiu, ela ficou tão esgotada que mal pode mover-se. Caiu em um sono profundo, sem nenhum tipo de sonhos, e despertou com um sobressalto. Quanto tempo tinha transcorrido? Dado o pouco que parecia, não devia desperdiçar nenhum minuto. Depois de obter sua satisfação, ele havia lhe descrito com toda exatidão e com cruel regozijo como ia ser seu final. Na próxima vez que viesse, seria para levar sua vida. E, entretanto, que outra coisa podia fazer, a não ser caminhar freneticamente por sua elegante prisão? Já tinha procurado alguma arma, mas seu raptor tinha tomado cuidado de não mobiliar o quarto com nada que pudesse ser perigoso. Pesados móveis estavam atarraxados ao chão; a baixela era de latão mole e facilmente deformável; e os pratos e a taça eram de estanho, que não podia romper-se em partes com arestas afiadas. Podia servir-se da corrente de um dos chicotes mais duros para tentar estrangular seu adversário, mas duvidava que tivesse força suficiente para vencer um homem adulto. E embora o conseguisse, não poderia passar do guarda que vigiava a porta. É obvio que tentaria, porque não pensava em ir mansamente para sua morte, mas não acalentava nenhuma esperança a respeito de suas possibilidades de êxito. Seu olhar se fixou no desagradável brinquedo que representava uma flagelação. Com uma súbita cólera, levantou-o acima de sua cabeça e o jogou contra o chão. Depois esmagou as figurinhas com as botas. Oxalá pudesse fazer o mesmo com seu raptor. Então lhe ocorreu uma idéia, e se ajoelhou para examinar as peças. Tinham ficado a descoberto várias engrenagens metálicas. Pegou a maior delas e provou o lado de dentes afiados. Era de aço endurecido. Se usar com cuidado, podia servir para raspar a madeira. Percorreu, pensativa, os três cômodos. Ah, a mesinha junto à cama. Se tivesse tempo suficiente, poderia cortar uma de suas pernas, e uma vez solta, deveria ter bastante força para arrancá-la da perna que a prendia ao chão. Se não, bom, cortaria alguns centímetros por cima do chão. Sentou-se junto à mesinha com as pernas cruzadas e começou a trabalhar. Quando terminasse, teria uma estaca bastante contundente para destroçar o crânio de um homem. Isso não seria suficiente para libertá-la, mas se tinha que morrer, certamente arrastaria consigo seu raptor.

CAPITULO 35

Cléo não teve pressa em abrir a porta. Quando o fez, estava rindo e seu cabelo loiro se estendia solto pelos ombros. Ao ver Lucien com Kit, apressou-se a se tapar um pouco mais com o roupão de veludo verde que usava. — Cassie, querida, hoje madrugaste — disse em voz alta para que se ouvisse no fundo do apartamento. Seu eloqüente olhar indicava que tinha companhia. — Acredito que agora não é o 198


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melhor momento para tomar uma xícara de chá. Quer que desça um pouco mais tarde para conversar? Kit disse: — Viemos falar com lorde Ives. Ele está aqui? Achamos que ele sabe onde se encontra presa a minha irmã, e talvez poderia nos ajudar. Cléo arregalou os olhos. — Graças a Deus. — Levantando a voz, exclamou — John, você tem visita. Do dormitório emergiu um lorde Ives meio se vestindo, com uma expressão de leve surpresa. Quando viu quem o estava esperando, sorriu e saudou Kit com uma inclinação de cortesia. — Strathmore, senhorita James, que agradável surpresa. Espero que você esteja bem. — Eu não sou Cassie James, sou sua irmã gêmea. Ela foi seqüestrada, e estou a várias semanas fingindo sua personalidade — explicou Kit sem rodeios. — Espero que você possa nos ajudar a encontrá-la. Incrédulo, o jovem repôs: — São duas, e capazes de atuar assim no palco? — Estudou o rosto de Kit por um espaço de longos instantes antes de assentir com a cabeça. — Compreendo. Venham se sentar. Parece-me que isto pode ser uma longa história. De fato, a descrição que Kit lhe fez do desaparecimento de Kira e de sua mudança de personalidade foi breve porque omitiu os detalhes mais interessantes, tais como a espreita aos Demônios e o fato de que sua irmã tinha sido localizada com ajuda de um pêndulo. Nem sequer mencionou seu papel de garçonete, quando deu uma pancada em Ives com seu busto postiço. Como ele não a tinha reconhecido, era melhor não mencionar o assunto por respeito a sua dignidade. Uma vez resumida a situação sem grandes laços, Lucien se encarregou da conversa. — Achamos que Cassie está prisioneira em Castle Raine, em Berkshire. Acerto em supor que esse é o lugar onde se reúnem os Demônios? — Em efeito, é. — Ives mordeu o lábio com desgosto. — você acredita que foi um dos Discípulos que a sequestrou? Nenhum deles precisaria fazer algo assim. Podem permitir-se todas as mulheres que desejem. Lucien disse laconicamente: — Há homens que preferem mulheres menos dispostas. E há outros que não aceitam um não por resposta. O semblante de Ives se tornou grave. Kit supôs que estava recordando comentários que confirmavam o que Lucien havia dito. O jovem levantou o olhar e disse com simplicidade: — O que posso fazer para ajudar? — Precisamos saber tanto como for possível a respeito de Castle Raine — disse Lucien. — Por exemplo, há masmorras debaixo do castelo? — Creio que sim, embora nunca as tenha visto — respondeu Ives. — Os Discípulos têm um santuário privado para seus rituais secretos. Aos Demônios de menor categoria, como eu, nunca é permitido vê-lo, mas creio que a entrada deve ser em algum lugar por trás da capela. — Sabe algo de suas cerimônias? — Na realidade, não. Entretanto, outro Demônio Júnior se deteve junto ao castelo uma noite porque gostava de contemplar as ruínas à luz da lua, e no momento de partir ouviu uma mulher gritar. — Ives passou os dedos pelo cabelo com nervosismo. — Acreditou que devia ser produto de sua imaginação. Tinha bebido, e aquele lugar é capaz de produzir estranhas fantasias. Mas talvez tivesse razão. 199


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— Quando aconteceu isso? — No verão passado. Por volta dos fins de junho, creio. Antes que Kira fosse capturada, pensou Lucien com alívio. Mas aquilo expunha a temível possibilidade de que no passado tivesse havido outras vítimas. Já que nenhuma delas tinha dado nenhum passo para acusar os Demônios, o mais provável era que não tivessem sobrevivido à experiência. — Como se chega ao castelo? Ives proporcionou uma descrição precisa de caminhos e desvios, e a seguir Lucien lhe formulou outra série de perguntas distintas. Entretanto, além dos detalhes do lugar, não se inteirou de nada que não tivesse observado por si mesmo. No final perguntou: — Sabe se há guardas ali? — Creio que há um vigilante quando está vazio — respondeu Ives. — Além disso, pode ser que você não se desse conta disso na vez que esteve ali, mas nos banquetes dos Demônios sempre há vários serventes varões disfarçados de guardiões de um harém turco. São chamados de eunucos, embora eu tenha certeza de que não são. De fato parecem boxeadores retirados do ringue. Devem ser bons guardas, mas creio que só estão durante os serviços. — Espero que tenha razão. — Lucien ficou de pé. — Obrigado por sua ajuda. Suponho que não preciso dizer que não tem que mencionar a ninguém esta conversa. — Não farei. — Ives se levantou também. — Imagino que pensa em ir a Castle Raine tentar encontrar à verdadeira Cassie James. Necessita de outro voluntário? — Obrigado, mas não. Já recrutei vários amigos. Ives dirigiu um olhar a Kit. — Há alguma possibilidade de que você e sua irmã atuem juntas? — perguntou-lhe. — Seria uma noite épica. Ela negou com a cabeça. — No momento em que ela ficar livre, eu me retirarei do palco para sempre. Despediram-se todos, e em seguida deixaram o apartamento e subiram à carruagem. Uma vez dentro, Lucien murmurou: — Eu gostaria que não viesse a Castle Raine conosco. — Tenho que estar ali para encontrar Kira — assinalou Kit. — Se as ruínas forem muito grandes, sem mim talvez nunca encontrem ela. — Eu sei. Mas isso não significa que isso tenha que me agradar. Embora com expressão preocupada, Kit disse em tom desenvolto: — Por que se preocupa tanto? Recorda, contamos com Michael, o anjo guerreiro, caudilho dos seguidores dos virtuosos, do nosso lado. Lucien respondeu com um sorriso torcido: — Certo, e não há motivos para esperar que tenhamos problemas. O único que temos que fazer é entrar e tirar sua irmã dali, mas nunca se sabe. E não me agrada a idéia de te expor a um possível perigo. Kit replicou: — Eu não sou quem esteve a ponto de cair de um telhado por uma estupidez. Lucien sorriu e lhe pegou na mão. — Aceito a reprimenda. Esta noite te necessitarei para que me salve de mim mesmo. Mas apesar da piada, não desapareceu sua preocupação. Durante o caminho de volta a Strathmore House, sua mente não cessou de dar voltas a dois versos de Shakespeare: «Com apenas estalar os dedos, algo malvado acontece».

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O homem que estava vários dias vigiando a casa da Rua Marshall lançou uma maldição quando a atriz subiu à carruagem em companhia de Strathmore e partiu. Seu chefe havia ficado furioso ao saber que o seqüestro tinha fracassado, e tinha insistido que antes desse dia teria que raptar a jovem. Mas, maldita seja, não foi possível. A bruxa estava a dias sem sair de casa. Por fim mostrou o rosto, mas só um maldito imbecil tentaria arrancar ela daquele lânguido conde que tinha resultado ser muito mais duro de roer do que parecia. O homem se encolheu de ombros e se retirou de novo para esconder-se na casa que tinha alugado no outro lado da rua, em frente à casa onde vivia sua presa. Desta vez o estavam pagando, de modo que faria bem em sentar-se e vigiar até que chegasse a hora de informar a quem o tinha contratado. Lançou um bocejo. Se fosse por ele, seqüestraria uma putinha que tivesse mais carne sobre os ossos.

As imponentes grades de ferro de Castle Raine estavam fechadas com chave, sem nenhum vigilante à vista. Se havia algum, provavelmente se encontraria lá dentro, onde estaria quente e seco. Michael tinha razão ao predizer a tormenta; enquanto Kit aguardava junto à grade, tremia por causa da chuva gelada. Se a temperatura descesse muito mais, o mundo se converteria em um pântano de gelo. Com a ajuda de Deus, até então todos já estariam a salvo e Kira seria livre. Com um débil som metálico, Lucien se achava inclinado sobre a fechadura da porta do tamanho de uma pessoa que estava montada na grade de ferro. Kit não via bem o que ele estava fazendo, mas parecia ter algo a ver com uma argola que continha um amplo sortido de chaves e gazuas de metal. Não se surpreendeu quando a porta se abriu com um chiado apagado que se perdeu imediatamente entre o uivo do vento e da chuva. A suas costas, Jason Travers disse com uma faísca de humor: — Se quero ser um conde como Deus manda, vou ter que aprender a fazer isso? — A verdadeira beleza que há em ser um nobre inglês — replicou Lucien enquanto assistia os outros a passar pela porta e depois a fechava — está em que alguém pode ser totalmente excêntrico. — Não se trata de sua excentricidade, Luce, mas sim de sua desafortunada tendência a cometer delitos — disse Michael em tom afável. Os outros riram. Com os nervos tensos, Kit sentiu vontade de esmagar a todos por sua frivolidade. Conteve-se porque suspeitava que aquela leveza no tom fosse a maneira que os homens tinham de enfrentar às tensões. Era mais fácil ser mulher porque se podia demonstrar o medo. Lucien devia adivinhar seu estado de ânimo, porque manteve uma mão apoiada todo o tempo na cintura dela, enquanto avançavam sem fazer ruído ao lado da entrada dos edifícios principais. A parte objetiva de escritora de sua mente ia tomando notas, porque aquela incursão lhe dava certa idéia do que devia ser a guerra. Os quatro iam vestidos de escuro, Kit com seu traje habitual para escalar telhados. Até os cavalos, atados em um bosque próximo, eram invisíveis, porque Michael tinha pintado de preto as marcas brancas que poderiam ter chamado a atenção à noite. A ela jamais teria ocorrido tal coisa; era um pequeno e reconfortante aviso da muita experiência que Michael tinha em executar missões secretas. Com sua expressão dura como pederneira, aqueles olhos aos quais não escapava nada e uma gasta carabina pendurada no ombro, constituía uma formidável imagem. Armados com pistola, Lucien e Jason pareciam 201


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igualmente perigosos. Embora Kit rezasse para que não fosse necessário recorrer à violência, estariam preparados se fosse o caso. Lucien lhe tinha perguntado se queria uma pistola, mas ela a tinha recusado com um calafrio. Aquela era uma das coisas que a distinguiam de sua irmã; Kira era uma excelente atiradora, enquanto que ela sempre se negou a tocar em uma arma, e agora era muito tarde para aprender. A capela surgia como um contorno apenas visível, um vulto um pouco mais escuro contra um céu de tormenta. No meio do caminho dela, Kit lançou uma exclamação afogada e apertou os dedos contra as têmporas. — O que ocorre? — perguntou Lucien em voz baixa. — Kira esta aqui. —Kit tremeu a voz diante da confirmação de que sua intuição tinha sido correta. — Realmente está aqui! Jason fez um ruído que demonstrava o muito que estava lhe custando adotar uma atitude de naturalidade. Michael, frio, perguntou: — Pode dizer em que direção? Kit se concentrou fazendo um esforço que fez que lhe pulsassem as têmporas. — Em linha reta, nas imediações da capela. Em baixo dela, creio. Com o coração lhe retumbando no peito, pôs-se a correr para o edifício sem notar o que a rodeava nem a chuva que lhe açoitava o rosto. Alcançou a capela e se lançou sobre o trinco da porta quando Lucien exclamou: — Não abra a porta! Vê-se luz em baixo. Kit desceu o olhar e viu que Lucien tinha razão. Tão impaciente como Kit, Jason disse: — É provável que não seja mais que o vigilante. Poderemos nos encarregar de um só homem. — Sem dúvida — respondeu Lucien. — De todos os modos, procuremos outra entrada. Creio que dobrando a esquina à direita há uma porta lateral que dá à sala de banquetes. Avançaram seguindo a parede do edifício até que encontraram a porta. Lucien começou a trabalhar na fechadura com tanto sigilo que nem sequer Kit, que se encontrava a alguns metros de distância, conseguiu ouvir algo. Houve um leve estalo. Lucien abriu a porta devagar e desapareceu no interior. Depois de escutar durante alguns momentos, fez gestos aos outros para que o seguissem. O salão de banquetes era uma grande habitação em que apenas se distinguiam as formas das mesas e das cadeiras à mortiça luz que penetrava pelo extremo mais afastado, à esquerda. Sem pronunciar palavra, Lucien se dirigiu para a luz, movendo-se colado à parede para não se chocar com os móveis. Ao chegar à entrada do salão pressionou Kit no ombro a modo de ordem silenciosa para lhe indicar que ficasse ali. Deixou Jason com ela, enquanto ele e Michael se internaram no corredor que conduzia à capela. A espera parecia interminável. Kit fechou as mãos em dois punhos e se obrigou a permanecer quieta. Nesse momento, quase de forma inaudível entre o repico da chuva nas janelas, chegou até ela um grito amortecido, seguido de um golpe surdo. Alguns minutos depois retornaram os homens, Michael levando uma vela acesa que usou para acender duas lamparinas que Jason trazia. O vidro das lamparinas estava abafado, de modo que só deixava sair uns estreitos fachos de luz, mas representavam uma importante melhora em comparação com a total escuridão. — Tudo limpo — disse Lucien. — Só havia um guarda. — Não o terão... — disse Kit nervosa. — Está só inconsciente — a tranqüilizou Michael. — Nunca mato ninguém sem um motivo. 202


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Kit se perguntou se aquele aprumo seria humor seco, e decidiu que não era. Michael tinha vivido em um mundo muito diferente do dela. Os homens começaram a revistar os pequenos cômodos e corredores que se estendiam atrás da capela, e ela abaixou a cabeça e sondou o interior de si mesma para localizar sua irmã. Conteve uma exclamação ao conseguir: a energia de Kira era abrasadora. Não só se encontrava perto, como também, estava aterrorizada. Embora Kit tentasse lhe enviar uma mensagem tranqüilizadora, não pôde: Kira estava muito angustiada para sentir a presença de sua irmã. Kit levantou a cabeça de novo, pois percebia um profundo retumbar na periferia de sua audição. Incapaz de identificá-lo correu até Lucien: — O que é esse ruído grave e profundo? Ele inclinou a cabeça e escutou. Por sua expressão, Kit compreendeu que não o tinha notado até que ela o disse. — Máquinas — respondeu com o cenho franzido. — Algo como uma caldeira de vapor, creio. Uma muito grande. Se havia máquinas funcionando, devia haver mais gente ali. Kit estava certa; aquilo ia ser mais difícil do que tinham imaginado. — Por aqui — disse Jason em voz baixa em uma esquina. Quando os outros três o alcançaram, Jason abriu a porta que tinha descoberto. Havia alguns degraus que desciam até um corredor iluminado, e um rumor de cânticos enchia o vão da escada. Lucien fechou a porta devagar. — Mas que inferno, os Discípulos estão celebrando um de seus rituais. — Hoje é o solstício de inverno — disse Jason, tenso. — Talvez estejam estão celebrando o rito pagão da mudança de estação. Lucien refletiu um instante. — Muito provável. Foi ao redor do dia de San Juan quando o amigo de Ives ouviu alguém gritar aqui. — Os druidas não praticavam sacrifícios humanos? — perguntou Michael. Kit lançou uma exclamação de horror e se aproximou da porta aberta, disposta a lançar-se escada abaixo, mas Lucien a interceptou. — Espera — disse bruscamente ao mesmo tempo em que a agarrava pelo braço. — Não se afaste de mim. Kit o olhou sem o ver, e Lucien imaginou que devia estar unida mentalmente a sua irmã. Ele lhe deu uma leve sacudida. — Kit, se queremos resgatar Kira, deves permanecer junto de nós tanto mental como fisicamente. Ela tragou saliva e assentiu com um gesto, ao tempo que lhe esclarecia olhar. — Entendo. Michael abriu de novo a porta e tomou a iniciativa de guiar o grupo para o nível inferior. Os outros o seguiram, em primeiro lugar Jason, depois Kit, e Lucien fechando a comitiva. Os degraus desgastados e as ásperas paredes eram de pedra típica das construções medievais. À medida que desciam, os cânticos iam se tornando mais audíveis. Havia uma voz profunda que entoava uma frase, seguida da resposta do coro. A língua era ininteligível, mas podia ser uma forma adulterada do latim. O longínquo retumbar também se intensificou, vibrando através da rocha. A cada passo aumentava a sensação de ameaça, até que Lucien começou a sentir-se muito assustado. Suspeitava que aquela inquietação se devesse menos a uma premonição de desastre que à preocupação por Kit. Embora não desconhecesse o perigo mortal, no passado só tinha arriscado sua própria vida; 203


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agora estava muito mais preocupado pela segurança de Kit do que jamais tinha estado pela sua. E não lhe ajudava precisamente o fato de que Kit parecesse estar aponto de ter um ataque de nervos. O vínculo que havia entre eles talvez não fosse tão estreito como ele quisesse, mas era o bastante forte para que ele se sentisse afetado pelas emoções de Kit. O profundo medo dela despertava torturantes lembranças do pânico e o desespero que ele tinha experimentado quando tentou salvar Elinor. Apertou os lábios. Tinha falhado com sua irmã, mas não falharia de novo. O corredor que havia na base da escada discorria em ambos os sentidos, enquanto que os degraus giravam e continuavam para baixo. À direita se via mais superfície de pedra, mas o cântico e a luz procediam da esquerda, onde o corredor parecia ter sido escavado diretamente no coração de rocha. Lucien tocou inquisitivamente Kit no ombro. Ela fez uma careta e assinalou a parede nua. Parecida que Kira se encontrava diante deles, mas não estava claro qual seria o melhor modo de chegar até ela. Michael, sem fazer ruído, foi investigar a luz que se via e desapareceu depois de uma curva. Momentos depois reapareceu com um sorriso no rosto e fez um gesto que ordenava precaução e silêncio ao mesmo tempo. O resto do grupo foi atrás dele. O que encontraram resultou assombroso. O corredor conduzia a uma sombria galeria construída de madeira que discorria ao longo dos quatro lados de uma enorme estadia. Pelo visto, era uma cova natural que tinha sido levemente escavada para lhe dar uma forma mais ou menos cúbica. A umidade fazia brilhar as paredes, sem dúvida por causa da chuva que saturava o chão da colina. Muito abaixo deles, no centro da câmara, encontravam-se os Discípulos, embelezados com túnicas de cor escarlate e com tocas vagamente eclesiásticos na cabeça. Lucien se surpreendeu ao ver que havia somente treze. O eco fantasmagorico do cântico soava como se fosse de um grupo muito mais numeroso. Em cada canto da estadia havia um homem postado de aspecto fornido usando roupagens negras e um turbante, que sustentava uma longa espada em posição vertical. Ives tinha razão: os guardas pareciam pugilistas aposentados. O mais surpreendente de tudo eram as estátuas, que formavam um duplo círculo ao redor da sala. Ali haveria facilmente trinta figuras, todas elas maiores que o tamanho natural, talvez de uns dois metros e meio de altura. Cada efígie representava um guerreiro portando uma arma, e não havia dois iguais. Um gladiador romano com uma espada curta e um escudo redondo em frente de um feroz africano com uma temível faca; um viking barbudo com um machado de guerra grunhindo a um turco ameaçador que empunhava uma cimitarra, enquanto um soldado de infantaria com um rifle olhava com cara de poucos amigos a um cavalheiro medieval que sustentava em sua mão uma clava. Feitas de metal e grafites para que parecessem reais, as estátuas eram inquietantemente vivas. Lucien teve uma visão de pesadelo em que as efígies tinham vida e usavam suas armas para destruir todo aquele que tentasse transpassar os anéis para tocar nos Discípulos. No centro da câmara, de pé entre duas fogueiras, encontrava-se o líder, o único que estava com o rosto virado na direção dos intrusos. Era Mace, com os braços estendidos acima da cabeça. Sobre ele estava pendurado um enorme lustre, e a suas costas se via um grande altar plano e construído de pedra. Lucien sentiu que o estômago lhe dava um tombo; o altar parecia estar desenhado para oferecer sacrifícios humanos. Kit deve ter adivinhado também, porque teve um calafrio. Por sorte, não havia rastro da presença de Kira. Se ela estava destinada a ser a vítima propícia de algum ritual bárbaro, tal coisa ainda não tinha acontecido. Kit deu um passo para trás e apontou para baixo e para trás, para o caminho por onde 204


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tinham vindo. Kira devia encontrar-se no mesmo nível que a cerimônia. Depois de um último olhar à grotesca cena, Lucien seguiu os outros para a escada. Os degraus terminavam no nível seguinte. Desta vez havia um corredor que se estendia para frente, além da direita e esquerda. Kit avançou com segurança para o corredor do meio. Havia velas ardendo em nichos das paredes, que iluminavam máscaras demoníacas que tinham sido esculpidas em relevo na mole rocha e pareciam lhes sorrir impudicas com seus rostos brilhantes pela umidade que exalava da pedra. Enquanto seguia Kit, Lucien começou a pensa r que talvez conseguissem levar Kira sem alertar os Discípulos. Isso seria o mais seguro, embora ele lamentasse não ter a oportunidade de desatar sua violência sobre o porco arrogante responsável pelo seqüestro. Consolou-se pensando que talvez se atrasasse o momento de fazer justiça, mas que chegaria no fim; ele se encarregaria de que assim fosse. Kit caminhava a poucos metros na frente dele, sem olhar para a direita nem para a esquerda. Os outros dois iam atrás, vigiando atentamente os arredores. Além de Kit, Lucien viu uma faixa de pedras mais escuras que cruzava o chão do corredor. A dita faixa escondia vários buracos de uns quantos centímetros de largura. A faixa escura subia pelas paredes e continuava através do teto. Enquanto se perguntava para que podia servir aquilo, Kit pôs o pé sobre uma das escuras pedras. A pedra se moveu com um estalo metálico, e nesse momento se desencadeou o inferno.

CAPITULO 36

Sinos pesados começaram a repicar, reverberando ao longo de todo o corredor com um ruído ensurdecedor. Kit ficou congelada girando a cabeça de um lado para o outro para ver o que acontecia. Lucien ouviu uma espécie de grito e olhou para cima. Um pesado rastelo de ferro começava a descer de uma fresta escondida entre as pedras escuras... e Kit se encontrava exatamente debaixo. Gritou seu nome e se lançou sobre ela para empurrá-la para longe das afiadas pontas do inexorável rastelo. Ela se precipitou ao chão e Lucien caiu em cima. Com um estrondo que ecoou por todo o corredor, fazendo saltar lascas de rocha do teto, o rastelo se espatifou contra o chão de pedra. Algo roçou o tornozelo direito de Lucien, e este voltou o olhar e se deu conta de que não tinha saltado rápido o bastante para se tirar da trajetória do rastelo. Por sorte, sua perna tinha ficado entre duas das temíveis pontas de ferro da grade. Alguns poucos centímetros mais para um lado ou para o outro, e o tornozelo teria ficado empalado e cravado ao chão. Mas naquela posição, o pé estava preso no estreito espaço existente entre o chão e a última barra do restelo. Ainda seguiam soando os sinos, e na caverna se ouviu uma voz furiosa bramando: — Entraram intrusos. Peguem-nos! Mas que inferno! Lucien retorceu o pé para libertá-lo e ficou de pé com pressa. Fez um esforço para subir novamente o rastelo, Michael e Jason estariam presos entre ele e os Discípulos enfurecidos. Michael já tinha visto o perigo. Fez um esforço para levantar a grade de ferro, mas em seguida sacudiu a cabeça em um gesto negativo. — Jamais poderemos mover esta coisa. Luce, você e Kit sigam adiante. — tirou do ombro a 205


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carabina calmamente e a engatilhou. — Travers e eu poderemos nos encarregar destes. Kit tinha se levantado do chão e olhava fixamente aos outros, com uma expressão de desconcerto. Lucien a pegou pelo braço. — Não podemos fazer nada. Não se preocupe, estão armados. Nossa tarefa é encontrar Kira. Kit tragou saliva e assentiu com um gesto, e em seguida se voltou para continuar avançando pelo corredor. — Já está muito perto. O corredor virava à esquerda. Depois de outros cinqüenta metros, dividiu-se em quatro estreitos e serpenteantes túneis que se perdiam de vista como os braços de uma medusa. Kit se deteve e contemplou o novo obstáculo. Lucien lhe perguntou: — Tem idéia de qual destes corredores devemos tomar? Antes que ela pudesse responder, ouviram a suas costas um rápido tiroteio e um alarido de dor. Kit se agarrou ao braço de Lucien, com uma expressão de angústia no rosto. — Oh, Deus, pareceu-me que era Jason. Temos que retornar para socorrê-los. — Eu não estou seguro de que tenha sido ele. — Franziu o cenho. — E não tenho a menor intenção de te colocar em um túnel onde voam as balas. — Então você vai sozinho — insistiu ela. —Eu fico aqui. Embora não possa passar mais à frente do rastelo, poderá disparar através dele. Mais disparos, e outro grito. Lucien fez uma careta de desgosto. — Muito bem, irei olhar. Fique aqui. Que não te ocorra se mover a menos que alguém te ataque de um desses túneis estreitos. Se isso acontecer, vêem me buscar. Logo que ela assentiu com a cabeça, Lucien saiu disparado pelo túnel o e dobrou a curva, com a cabeça agachada. A escaramuça tinha gerado nuvens de fumaça azeda que feriam os olhos, mas ao piscar para clarear a visão viu que Michael e Jason se encontravam ilesos. Os dois estavam agachados contra a parede, com as armas prontas, enquanto outras figuras mais distantes atiravam. Estava imóvel, quando viu um homem de turbante negro, e um rastro de sangue que indicava que pelo menos um dos que escapava estava ferido. Lucien decidiu que seus amigos tinham a situação controlada, assim deu meia volta e retornou até onde Kit se encontrava. Quando dobrou a esquina, cuspiu uma maldição tão forte que pouco faltou para que arrancasse novas lascas do teto. Kit tinha desaparecido.

Quando Lucien partiu, Kit se apoiou contra a parede, contente de ter uma oportunidade para recuperar o fôlego. Mas ao relaxar ouviu de novo o escandaloso repicar de sinos, que desatou nela um pânico mais real que o mundo exterior. «Oh, Deus, esses sinos devem querer dizer que ele vem me pegar mim! Disse que seria esta noite. “Devo estar preparada”. Kit apertou as têmporas com as mãos, sabendo que estava dentro da mente de Kira, experimentando o medo dela. Ofegante, lutou para escapar do terror que sua irmã sentia, porque não podia permitir o luxo de vir abaixo naquele momento. Pensou em Lucien, e conseguiu separar-se de sua irmã. Já um pouco mais limpa, enviou mentalmente uma mensagem: «Onde você está? Estamos muito perto. Mostre-me como chegar até você, querida!». Mas foi impossível fazer chegar a mensagem. A angústia de sua irmã constituía uma barreira tão impenetrável como uma casa em chamas, e ameaçava tragar Kit de novo. Uma vez mais teve que lutar para manter sua lucidez mental, mas antes que pudesse libertar-se, o medo a golpeou de 206


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novo. Desta vez vinha de outra fonte: de um modo impossível, sentia como o seqüestrador se aproximava de sua irmã. Então todo raciocínio desapareceu. Cegamente, sem pensar, Kit se separou da parede e se lançou ao interior do túnel mais afastado, o da esquerda. Em sua cabeça levava um difuso mapa mental que indicava sua irmã como uma luz branca e imóvel e o seqüestra dor como uma massa gotejante de escuridão que se aproximava pela esquerda. Seu túnel terminou em um corredor maior e mais iluminado. Penetrou nele e virou à esquerda, e de repente se encontrou cara a cara com lorde Mace. Alto e vestido de cor escarlate, com umas correntes de estilo bárbaro que lhe cruzavam o peito e que prendiam armas ao ombro, era uma visão impressionante. Ficou parado em seco ao vê-la, com o assombro pintado no rosto. Kit, com a respiração agitada por causa da corrida, disse furiosa: — Não permitirei que volte a tocá-la, monstro. Os olhos dele se iluminaram. — Ora, ora, por todos os diabos, mas se não é a outra, Cassie Segunda. Certamente, o céu me sorri. — Começou a aproximar-se lentamente dela. — Pelo visto, depois de tudo, vou poder levar minha fantasia à prática. Foi nesse momento quando a mente de Kit se livrou do ofuscado instinto que a tinha arrastado até ali. Santo Deus tinha sido uma loucura separar-se de Lucien; agora tinha que se ver com um violento lunático sem uma arma nas mãos. Não tinha a menor possibilidade de lhe derrotar. Mas poderia o entreter. Quanto mais tempo o atrasasse, mais possibilidades teria Lucien de encontrá-la ou a Kira. Sabedora de que Mace não esperaria que o atacasse, arremeteu contra ele. O súbito ataque o fez perder o equilíbrio, e ela caiu por cima dele. Antes que pudesse escapar, ele a agarrou pelos ombros e a fez rolar sobre si, tentando segurá-la sob seu peso. — É uma criaturinha muito rápida — comentou com estranha e gélida calma. — Igualzinha a sua irmã gêmea. Cuspiu-lhe no rosto. Seguiu uma briga selvagem a base de chutes, socos, arranhões e joelhadas. Kit lhe fez mal e desfrutou malvadamente de que não se tratasse do tipo de dor que lhe causava prazer. Mas seus melhores esforços não podiam fazer outra coisa que atrasar o inevitável. Quando Mace lhe deu um soco no maxilar, ficou tão aturdida que não pôde opor resistência a ele para que lhe atasse os pulsos à costas com um lenço. Mace ficou em pé de um salto e disse em tom de conversa: — Inclusive tinha preparado uns aposentos particulares para você, pensando em te seqüestrar. Desgraçadamente, os homens que contratei não se encontravam à altura da tarefa. Deveria tê-lo feito eu mesmo, como fiz com sua irmã. Mas não importa, você já está aqui. Meio escondido entre as dobras da túnica levava a bainha de uma adaga de um lado e uma pistola embainhada no outro. Embora Kit acreditasse que Mace levava as armas com fins cerimoniosos, estas eram mortalmente reais. Ele extraiu a pistola de sua capa e apoiou o cano frio contra a nuca de Kit. — Vamos Cassie Segunda. Depois que eu tenha te colocado o traje que preparei, será o momento da cerimônia começar. Então voltarás a ver sua irmãzinha. Espero que ela saiba apreciar a galanteria que demonstraste ao dar sua vida para encontrá-la. É do mais comovedor. Perguntome eu se meu irmão Roderick seria capaz de se sacrificar por mim. Embora eu duvide, apesar de que sempre tenha lhe agradado se passar por cafetão para mim. Com os dentes rangendo, Kit lhe espetou: 207


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— Deveria se render e escapar enquanto puder, Mace. Meus companheiros não serão capturados tão facilmente como eu, e se eu sofrer algum dano procurarão justiça. Ele se deteve e abriu com chave uma porta situada no lado esquerdo do corredor. — Se não estiverem já mortos, estarão logo. São inferiores em número e em armas, e não conhecem nenhuma das armadilhas que espalhei por meu pequeno reino subterrâneo. Tomou uma vela de um dos nichos e a seguir agitou a pistola para indicar a Kit que entrasse no quarto. Quando Mace acendeu uma lamparina, Kit viu que estava mobiliado como um dormitório. Ele abriu um aparador e tirou uma coleção de objetos de cor preta, que Kit reconheceu como o tipo de roupa decadente que tinha visto em seus sonhos. Mace extraiu uma adaga curva e reluzente da bainha que levava no outro ombro e lhe cortou as amarras. — Coloque isto — lhe ordenou. — Não — respondeu ela categoricamente. Ele brandiu a adaga de forma que a navalha lançou um ameaçador brilho. — Desfrutaria bastante tirando a sua roupa com esta faca e te vestindo pela força. Só idéia de que ele a tocasse intimamente a fez sentir náuseas. Recorreu a seus dotes de atriz e disse com calma: — Isso faria perder muito tempo. Seus pervertidos comparsas não se cansarão de esperar? Ele franziu o cenho. — Tem razão. Não devo descuidar de meus convidados. Mesmo assim, devo insistir no uso do traje. Quando subir ao altar, tem que ter exatamente o mesmo aspecto que sua irmã. Mace deu um passo na direção dela, e Kit teve que reprimir o instinto de pôr-se a correr. Dominou-se e disse: — Se sair do quarto, colocarei o traje voluntariamente. — Um pacto razoável. Depois poderei lutar contigo tudo o que quiser. Só se certifique de que o traje fique bem ajustado. — passou a língua pelos lábios. — O efeito é do mais incitante. Uma vez que ele tivesse saído do quarto e fechado a porta, Kit caiu em uma cadeira, tremendo. Como sempre quando se sentia profundamente angustiada, procurou em sua mente alguém a quem pedir ajuda. Mas desta vez não recorreu a Kira, que se encontrava quase a ponto de vir abaixo também, a não ser Lucien. Pensar em sua força e em sua segurança lhe proporcionou certa calma. Ficou em pé e percorreu o quarto com a esperança de encontrar uma arma potencial, mas não havia nada. E tampouco podia se trancar ou bloquear a porta por dentro. De modo que apertou os dentes e começou a se vestir o mais devagar que pôde.

Quando Lucien descobriu que Kit tinha desaparecido, reservou suas maldições mais chocosas para si mesmo. Deveria ter sido mais sensato e não tê-la deixado quando corria o perigo de cair naquele estado como de transe, com a mente totalmente focada em sua irmã. Tinha que ter entrado em um dos quatro corredores, mas em qual? Cruzando mentalmente os dedos, escolheu o segundo pela esquerda. Tratava-se de um túnel de traçado sinuoso que avançava através da rocha, com vastos nichos cheios de ossos de animais que recordavam as catacumbas. Onde diabos estava Kit? Dobrou uma curva e colidiu com alguém que vinha da outra direção. Não era Kit, desgraçadamente, a não ser um robusto guarda armado com uma pistola que devia dirigir -se a investigar a origem dos disparos. O impacto fez que ambos perdessem o equilíbrio. Quando o 208


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guarda se recuperou o bastante para levantar sua arma, já era muito tarde. Lucien lhe arrancou a pistola da mão com um chute e em seguida lhe lançou um soco na mandíbula com a direita e outro mais forte ainda com a esquerda. O guarda desabou no chão, inconsciente. Depois de lhe confiscar a pistola e as munições, Lucien o amarrou com sua própria gravata puída. Em seguida ficou em pé e olhou a seu redor. Encontrava-se no interior de uma pequena câmara em que desembocava outro túnel, da esquerda. No centro havia uma mesa, duas cadeiras e uma lamparina. Sobre a mesa se viam algumas cartas espalhadas que indicavam um jogo de solitário quase terminado. Nem rastro de Kit, mas Lucien viu na parede em frente uma pesada porta reforçada com barras de ferro. Revistou o guarda e encontrou uma grande chave de bronze, que encaixava perfeitamente na fechadura. Enquanto fazia girar a chave, rezava para que Kira estivesse ali dentro; se assim fosse, os dois poderiam fugir rapidamente assim que recuperassem Kit, que não podia estar muito longe. A porta se abriu e Lucien passou ao outro lado, pistola em mão. Encontrou-se em um quarto bem mobiliado que poderia ser uma sala normal a não ser pela falta de janelas. Uma porta conduzia a um dormitório, enquanto a outra se abria a uma masmorra de paredes de pedra. Coincidia exatamente com a descrição de Kit. Ao avançar lentamente, captou um movimento fugaz pela extremidade do olho, e ao dar a volta se encontrou com lady Kristine Travers. Por um instante, a impressão o imobilizou. O fato de que Kit e Kira fossem gêmeas idênticas era a miolo daquela missão, mas não deixava de ser desconcertante o fato de ver uma mulher que era exatamente igual a Kit, mas que ao mesmo tempo era uma desconhecida. E enquanto ele a contemplava, ela tentou lhe esmagar o crânio. Em um movimento de puro reflexo, Lucien se jogou a um lado, de modo que a pancada só lhe roçou o braço direito e o fez soltar a pistola. Rápida como um gato, ela voltou a tentar com um olhar selvagem em seus olhos cinza. Lucien retrocedeu, dizendo com urgência: — Kira, abaixa isso. Sou um amigo de Kit. Ela ficou parada em seco, oscilando entre acreditar nele e o agredir. — Sou Lucien Fairchild. — Falou em tom tranqüilizador, como se estivesse dirigindo-se a uma menina assustada. — Kit também está aqui, perto de nós. Perdeu-se procurando você. Temos que encontrá-la. Com voz trêmula, Kira disse: — Kit está aqui? Lucien afirmou com a cabeça. — Perdi-a neste labirinto de túneis que há aqui embaixo, mas não pode estar muito longe. — Deu um passo para a jovem e lhe tirou a estaca da mão, sem ela opor resistência. Por um momento Kira esfregou as têmporas exatamente da mesma forma que Kit. — Eu... Lamento lhe ter golpeado — disse com a voz rota. — Acreditei que era lorde Mace. — Mace é o homem que te seqüestrou? Kira assentiu com um gesto. — Me viu atuar e ficou obcecado. Quando eu me neguei a me converter em sua amante, raptou-me depois de uma representação. Após esteve me forçando a... a... Lucien a interrompeu antes que se desabasse outra vez. Embora parecesse encontrar-se bem fisicamente, os meses de cativeiro lhe tinham ca usado uma profunda fragilidade emocional. — Não tem que me explicar nada — lhe disse brandamente. — Kit averiguou a situação em termos gerais graças aos sonhos que teve com você. Isso obteve um débil sorriso. 209


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— Bendita seja. Lucien estudou o rosto de Kira. A semelhança entre as duas gêmeas era verdadeiramente assombrosa. A mesma figura esbelta e o mesmo cabelo castanho e suave, os mesmos olhos cinza e puros, o surpreendente perfil que lhe tinha permitido identificar Kit uma e outra vez. Mas também havia diferenças. Kira tinha o rosto e os lábios ligeiramente mais cheios, e o fato de que não fosse canhota, a não ser destra tinha contribuído uma sutil diferencia a suas feições. E, é obvio, seu espírito era único e exclusivo dela. Além disso, nunca tinha visto Kit vestida com uma anágua curta de cetim preto, presa com correntes de couro que revelavam espetaculares porções de cremosa pele. Nem botas altas até o joelho e meias de renda. Entretanto, sabia que Kit ficaria igualmente atraente como sua irmã. Ao ver a direção de seu olhar, Kira lhe disse com certa ironia: — Jurei que saísse viva daqui, seria feliz vestindo musselina branca durante o resto de minha vida. Lucien sorriu. Era evidente que começava a recuperar o domínio de si mesma. — Tem uma capa? Faz um tempo horrível, e quando sairmos daqui nos espera uma viagem de várias milhas a cavalo. Kira correu à outra habitação e retornou com uma capa de pele da marta própria de uma princesa. Enquanto a jogava sobre os ombros, observou Lucien tão atentamente como ele a tinha contemplado. — É você a razão de que Kit tenha estado tão feliz ultimamente? Surpreso, Lucien disse: — Eu gostaria de acreditar que sim. Pode perceber suas emoções do mesmo modo que ela percebe as suas? — Não tão bem como ela, mas estou acostumada a captar a tônica geral. Ultimamente esteve terrivelmente angustiada por mim, mas também viveu momentos de intensa felicidade. Interessante, muito interessante. Deixou aquele tema para melhor ocasião e perguntou a jovem: — Há alguma outra coisa que queira levar? Quanto antes sairmos daqui e encontrarmos Kit, melhor. Desgraçadamente, esta noite os Discípulos estão celebrando um ritual e têm descoberto nossa pequena operação de resgate. Kira ficou pálida de repente, e Lucien viu que o medo seguia estando muito perto da superfície. — A última vez que Mace esteve aqui, disse que eu ia ser a principal atração de uma violação coletiva por parte dos Discípulos — disse com a voz entrecortada. — Depois haveria uma cerimônia privada para ele e seus comparsas mais íntimos. Durante todo o tempo em que permaneci cativa, ele esteve preparando tudo para esta noite. Embora adora sse representar o papel de escravo sexual, a finalidade era que eu morresse em suas mãos. Lucien cravou seu olhar no dela. — Agüenta um pouco mais, Kira — lhe disse com veemência. — Não pode se desmoronar precisamente agora. Ela fechou os olhos. Parecia tremendamente frágil. Abriu-os de novo e disse: — Agüentarei. — Esboçou um sorriso inclinado e tocou o cabelo com o dorso da mão em um gesto que era exclusivamente seu. — Não quero nada daqui. Exceto... Atravessou o quarto e abriu um pequeno armário. Dentro havia chicotes de diferentes pesos e materiais. Pegou o mais pesado de todos, explicando: — Se por acaso necessitar de uma arma para sair daqui. Lucien recuperou sua pistola e em seguida acompanhou Kira para fora. Na sala que ocupava 210


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o guarda, disse-lhe: — Vim por essa direção, mas não estou certo de que poderemos partir pelo mesmo lugar, porque há um rastelo que bloqueia o corredor principal. Além disso, Kit tem que estar deste lado do rastelo. Sabe aonde conduz esse outro corredor? Kira se encolheu de ombros. — Não tenho a menor idéia, mas poderíamos averiguar. Entraram no túnel, que era um pouco mais largo. Lucien rogou a Deus que encontrassem Kit logo, porque sua preocupação por ela estava aumentando a cada momento.

CAPITULO 37

Menos mal que o inimigo se retirava, porque a fumaça estava asfixiando Michael de tal modo que chegou um momento em que foi incapaz de disparar. Quando pôde falar de novo, disse: — As distâncias curtas são nefastas para brigar, prefiro muito mais um campo aberto. — Eu me inclino mais em disparar um canhão de um navio. - Jason voltou a carregar sua pistola. — Muito ar fresco e o inimigo nunca se aproxima muito. Vamos sair deste corredor antes que se refaçam? — Excelente idéia. — Depois de outro acesso de tosse, Michael baqueou — Voltemos até a galeria. Havia uma porta à direita que talvez nos leve para o outro lado do castelo. Com toda pressa, retornaram por seus próprios passos até o corredor transversal. Estavam a ponto de se dirigirem para as escadas quando ouviram vozes iradas que vinham daquela direção. Os guardas estavam planejando outro assalto. Como a outra saída era o santuário, repleto de Discípulos, atravessaram a intercessão e se esconderam no corredor que era continuação daquele pelo qual tinham vindo. Uma vez a salvo no outro lado e fora da vista, detiveram-se para pensar qual ia ser o seguinte passo. Jason disse: — Passamos pelas escadas de todas formas? Eu creio que poderemos nos desfazer dessa turma. — Provavelmente — admitiu Michael, — mas viemos aqui para efetuar um resgate, não para iniciar uma guerra. Primeiro vejamos aonde leva este túnel. Circula o ar por ele, de modo que não é um beco sem saída. Com sorte, encontraremos outro caminho que suba ou nos conduza até onde estão Lucien e as damas. Pode ser que este lugar seja um condenado labirinto, mas não pode cobrir uma superfície tão grande. Jason assentiu com um gesto, e os dois continuaram avançando com a tocha que havia sobrevivido ao ataque. Tal como Michael tinha esperado, o túnel girava e começava a dobrar -se sobre si mesmo. O mole terreno da rocha daquela parte estava escorado com estacas de madeira. Como proprietário de uma mina, reconheceu a técnica. A pedra devia ser especialmente de má qualidade naquela área, porque tinham colocado algumas tabuas no chão para poder andar. Michael franziu o cenho. Havia algo estranho nessa escora. Quando estava examinando-o, viu um brilho de luz e algo que começou a se aproximar dele à altura da cabeça. Agachou-se imediatamente, gritando: — Ao chão! O americano fez o mesmo, bem a tempo para não ser decapitado por uma lâmina que cruzou o corredor de ponta a ponta, paralela ao chão. Parecia a foice de um gigante, com uma navalha 211


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bastante afiada para cortar um intruso pela metade. — Deus! — exclamou Jason sem fôlego. — Este lugar está cheio de brincadeira das mais perigosas. O que fizemos para pôr esta em funcionamento? Michael observou como a lâmina retrocedia seguindo a mesma trajetória e desaparecia em uma fenda da parede. Devia ter sido acionada por uma gigantesca mola oculta atrás da viga de madeira. — Estas tábuas não estão aqui para tapar buracos, a não ser para esconder o mecanismo de acionamento. Parece-me que esta tábua de cor mais clara se moveu quando eu pisei em cima dela. Empurrou-a com a mão, e de novo a lâmina passou por cima de suas cabeças com um uivo estremecedor. Uma vez que o artefato se voltou recatadamente até seu esconderijo, Michael disse: — O mecanismo tem que ser bastante óbvio para que quem quer que tenha idealizado estas armadilhas possa evitar cair nelas. Se formos com cuidado, os poderíamos localizar. — Quem me dera que eu compartilhasse essa fé tão comovedora. — Jason ficou de pé com toda cautela e passou por cima da tábua que acionava o mecanismo. — Forçar um bloqueio não se parece em nada com isto. — Uma das coisas que eu gosto em Lucien é que estando perto dele a vida nunca fica aborrecida. — Michael se levantou e levantou a lamparina, que tinha conseguido conservar. — Vamos ver o que nos aguarda aí em frente? Travers exclamou, em uma paródia de teatro: — «Adiante, Macduff, e maldito o que primeiro que grite: detenha-se;».

Kit tentou ganhar todo o tempo que fosse possível, mas Mace forçou a situação abrindo a porta antes que ela tivesse terminado de se vestir. A expressão de avidez que viu nele fez com que se colocasse depressa as botas em cima das meias de renda. Não se atreveu a lhe incitar muito. Embora no passado Mace tivesse gostado que o açoitassem, esta noite parecia desejoso de praticar simplesmente a violação. Quando Kit ficou de pé, lhe ordenou: — Dê a volta. Ela obedeceu devagar, temerosa de que um movimento brusco pudesse alterar o traje, que era a vestimenta mais indecente que podia imaginar. Era aberto pela parte da frente até o umbigo, com correntes de couro entrelaçadas sobre a pele nua com o fim de sustentar o tecido, de uma forma que deixava os seios e o estômago meio descoberto. Aberturas similares revelavam provocativamente generosas porções das costas. Kit se sentia mais nua do que se verdadeiramente não estivesse usando nada. Mace contemplou a destacada mariposa que se via através da renda preta da meia. — Maravilhosa! Até a tatuagem é a mesma. Mas as fitas estão muito frouxas. Eu mesmo as apertarei. Ela tentou retroceder, mas Mace tirou rapidamente a faca de sua capa e apoiou a ponta contra sua garganta. — Não se mova — avisou. Por alguma razão, a faca, com sua capacidade para cortar e mutilar, era mais aterradora que a pistola. Kit permaneceu rígida enquanto ele voltava a guardá-la e a seguir pegava as fitas que atavam a anágua sobre seus seios. Esticou-as de tal maneira que os mamilos ficaram marcados com clareza sob o cetim preto. Mal podia respirar, e as fitas de couro certamente lhe deixariam uma rede de leves marcas avermelhadas na pele, se é que conseguiria viver o suficiente. — Está claro que não são de todo idênticas. 212


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Mace fez um nó no final, mas em vez de se afastar, começou a passar as mãos sobre as curvas do corpo de Kit, cobertas de cetim. O calor das palmas dele sobre seus seios a fez encolher-se ligeiramente. — Antes que tenha terminado, descobrirei as diferenças — disse com a voz rouca. — Como sua irmã é a gêmea malvada, suponho que você é a boa. — Beliscou-lhe os mamilos com brutalidade. — De certo modo, assim será ainda mais excitante. Kit mordeu o lábio para não deixar escapar um choramingo. Não pensava em lhe dar a satisfação de demonstrar seu asco, porque pressentia que ele desfrutaria vendo o medo em uma mulher. Mace deu um passo para trás com visível pesar. — Mais tarde. Agora devemos ir procurar a Cassie Primeira. Disse isto e lhe atou os pulsos à costas com uma larga fita de cor escarlate exatamente do mesmo tom que o sangue fresco. Em seguida lhe fez um gesto com a pistola para que começasse a andar na frente dele. Aquele lugar era como uma toca cheia de corredores. Depois de várias mudanças de direção, desembocaram em uma sala destinada aos guardas que continha uma enorme porta. Havia um homem aparentemente encolhido no chão, amarrado pelos pés e mãos. O rosto de Mace se obscureceu. — Maldito imbecil! Com Kit segura a seu lado, abriu a porta com um empurrão e lhe fez um gesto para que entrasse primeiro. Kit soube instantaneamente que aquela tinha sido a prisão de Kira; até o ar estava saturado de sua essência. Mas agora não estava ali; Lucien devia tê-la encontrado. Kit teria dançado de puro alívio se não temesse que fazer algo assim pudesse desatar a violência de Mace. Ele soltou uma maldição obscena e rugiu: — Vou levar você ao santuário. Meus sócios poderão brincar com você enquanto eu recupero sua irmã. Vamos, se mova. — Afundou-lhe o cano da pistola entre as costelas. Kit não teve oportunidade de escapar durante aquele percurso que parecia um pesadelo. Quando estavam se aproximando da caverna grande, percebeu o murmúrio de vozes excitadas, que cessaram assim que ela pôs um pé no santuário. Todos os olhares pousaram em Kit. Ela sentiu desejo de se encolher sobre si mesma e cobrir o rosto com as mãos, mas como isso era impossível, pensou em uma obra que tinha visto sobre Ana Bolena, que subiu ao patíbulo com inquebrável dignidade. Guardou-se no interior de si mesma tanto como pôde, como se estivesse no palco. Aquilo não era real, só se tratava de uma representação. Com a cabeça alta, pôs-se a andar para o altar. As duas grandes fogueiras esquentavam o ar, o que era de agradecer, dada sua exígua vestimenta. Não lhe ocorria nenhuma outra vantagem que aquela situação tivesse. O percurso passava entre os círculos que formavam as estátuas de guerreiros. Vistas de perto, pareciam inclusive maiores que de acima. Passou entre um pele-vermelha armado com uma lança e um cruzado vestido de cota de malha, sem levantar o olhar. Mas não pôde ignorar a multidão de homens embelezados com túnicas escarlates que a olhavam com olhos famintos e proferiam comentários obscenos. Pior ainda: alguns deles lhe passaram as mãos com ultrajante intimidade em seu caminho através do grupo. Ela não se deteve em nenhum momento e manteve os olhos à frente até chegar ao altar. Todos seus principais suspeitos se encontravam na primeira fila do grupo. Os homens que estavam atrás eram outros Demônios, mas nenhum que tivesse parecido importante ao longo de suas indagações, e seguia sem parecer-lhe agora; eram simples seguidores. Aqui o mal provinha dos líderes, tinham-no escrito no rosto. 213


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Lorde Nunfield e Roderick Harford a contemplaram com aberta luxúria. Chiswick, mais frio, comentou: — Então conseguiu trazer Cassie James. Excelente, Mace. É capaz de estimular até o paladar mais entediado. Sir James Westley disse jovialmente: — Da minha parte, eu as prefiro um pouco mais cheias de carnes, mas também terá que dizer que nunca sacrificamos uma mulher de tão distinguidos êxitos. Será esplêndida. Com prodigiosa voz Mace disse: — É melhor do que vocês acreditam cavalheiros: esta não é Cassie James, mas sua irmã gêmea idêntica. Tenho certeza de que todos terão sonhado alguma vez desfrutar duas gêmeas, igualmente encantadoras, igualmente necessitadas. — Seus olhos opacos relampejaram ameaçadores. — A verdadeira Cassie se perdeu nos corredores, de modo que tenho que ir procurá-la. Aquilo provocou outro murmúrio de comentários. Kit, com atitude de total indiferença, observou que todos os homens leva vam as adagas e pistolas cerimoniosas, e se perguntou se estariam dispostos a usá-las. Mace fez um gesto a seu irmão para que se aproximasse. — Te encarregue desta enquanto eu vou procurar à outra — disse em voz baixa. Harford franziu o sobrecenho. — Eu a vi antes. — Estalou os dedos - É a ladra que tentou me roubar no baile! — De verdade? — Mace olhou Kit com respeito. — De modo que se atreveu a ir a Blackwell Abbey em busca de sua irmã? É uma vadia muito corajosa. — voltou-se para seu irmão e lhe disse — Ela veio com Strathmore, e ao que parece libertou à irmã. Conseguiu eliminar os outros dois homens? Harford franziu o cenho outra vez. — Temo que não, os guardas se acovardaram diante do tiroteio, e enquanto se refaziam, os comparsas de Strathmore fugiram. Agora os estamos perseguindo, mas poderia levar um tempo até os encurralar. Mace enrugou a testa. — Vigie aí fora enquanto procuro Strathmore e a gêmea. Como não conhecem os túneis, não me levará muito tempo em encontrar eles. Então darei conta dele e trarei aqui à garota para que possamos começar nossa cerimônia. Kit deu graças a Deus em silêncio de que Mace fosse outro que tinha subestimado Lucien. Mas, por desgraça, era certo que o conhecimento do terreno que Mace tinha lhe proporcionava uma enorme vantagem. Abriu a mente o suficiente para procurar a sua irmã. Assim que a localizou, o coração se encolheu de medo. Lucien e Kira estavam perto, perigosamente perto.

Os giros e curvas dos corredores eram muito confusos. Enquanto procuravam um lugar por onde passar, a angústia de Lucien ia aumentando. Nesse momento, Kira se deteve em seco, com o rosto cinzento. — Santo Deus, ele pegou Kit! Aquelas palavras confirmavam os piores medos de Lucien. — Tem certeza? — Completamente. — Kira apontou em frente e à direita. — Está por ali. — O rosto se enrugou e os olhos se encheram de lágrimas. — Está morta de medo. 214


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Kira mostrava agora a mesma expressão imprecisa que tinha visto tão freqüentemente no rosto de Kit. Sabendo que tinha que prendê-la antes que escapasse dele, perguntou-lhe: — Ela sofreu dano físico? — Creio que não. — Kira exalou o ar e seu semblante relaxou um pouco. — É culpa minha que Kit esteja em perigo. Se eu não tivesse me dedicado ao teatro, isto não teria acontecido. Kit tinha razão ao se opor... Ela sempre tem razão. Lucien a segurou pelo cotovelo e disse com firmeza: — Mais tarde poderá se sentir culpada, agora temos que encontrar Kit e arrancá-la das mãos de Mace. Fazendo um supremo esforço, Kira se concentrou e recomeçou a caminhar. Mas saber aproximadamente em que direção se encontrava Kit era muito diferente de encontrar o caminho. Os corredores serpenteavam de modo enlouquecedor, conduzindo a corredores sem saída, altares dedicados a entidades com aspecto de gárgulas, e mais ossos. Nenhum dos dois falou, pois Kira necessitava de toda sua concentração para seguir a pista de sua irmã. Por fim dobraram uma curva e viram em frente um par de tapeçarias que serviam de cortina. No outro lado deles havia muita luz e um rumor de vozes. Lucien se deteve. — Creio que encontramos o santuário de Mace e de seus cúmplices. Espere aqui enquanto eu vou dar uma olhada mais de perto. Kira mordeu o lábio. — Kit está nessa direção. — Sim, mas não necessariamente no santuário — replicou Lucien ao tempo que empurrava Kira outra vez para a curva. — Se não estiver aí, será mais seguro tentar rodear essa câmara. Espera aqui e não se mova. Desgostava-lhe deixá-la, mas se lhe vissem e lhe capturassem, pelo menos ela teria alguma possibilidade de escapar pelos túneis. Recordando que Kit havia dito que sua irmã era uma boa atiradora, pegou a pistola que havia tirado do guarda. — Não acontecerá nada nos poucos minutos que levarei para dar uma olhada, mas quer ficar com isto, se por acaso ocorrer algo? Ela assentiu e guardou o chicote sob o braço, aceitando a pistola com visível alívio. Abriu a arma com mão perita para comprovar que estava carregada e disse: — É um prazer ter uma arma depois de passar meses me sentindo desamparada. Sentindo-se razoavelmente seguro de que Kira estaria a salvo Lucien dobrou a curva e se aproximou sem fazer ruído do lugar onde estavam penduradas as tapeçarias. Separou-as alguns centímetros e espionou através da abertura. Tal como tinha suposto, tratava-se do santuário, abarrotado por estátuas de guerreiros, fogueiras e Discípulos vestidos com túnicas de cor escarlate. Seu olhar se fixou imediatamente em Mace que estava saindo do centro do círculo com atitude arrogante. Se Mace estava ali, Kit também tinha que estar. Percorreu o círculo com o olhar e a localizou de pé em frente ao altar com a faca de Roderick Harford apontada para o peito. Embora estivesse vestida exatamente igual a Kira, conseguia parecer tão digna como a rainha Mar ia Antonieta rodeada de camponeses. Aquela cena fez com que lhe fervesse o sangue nas veias. Sentiu o impulso de lançar-se naquela sala e despedaçar a todos os homens que havia ali. Mas se recordou que os impulsos irracionais não salvariam Kit, de modo que procurou reprimir sua fúria e pensou nas possibilidades que tinha. Ali em baixo havia pelo menos uma dúzia de homens, todos armados com facas e pistolas. Embora talvez nem todos formassem parte do espectro total de maldades que Mace era capaz de cometer, nenhum deles podia ser considerado um aliado. Necessitou só de alguns segundos para 215


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chegar à sombria conclusão de que não havia nada que ele pudesse fazer e que não pusesse Kit em perigo. Sua intuição lhe disse que quanto mais tempo estivesse em mãos de Mace e de Harford, maior risco corria. Portanto, Lucien devia agir imediatamente. Era uma lástima que Michael e Jason não estivessem ali, mas não se atrevia a esperar até os encontrar. Existia uma possibilidade, pequena, mas melhor que não ter nenhuma: libertar Kit em um enfrentamento de cara limpa. Pistola em mão afastou a tapeçaria para um lado e deu um passo para a luz. Elevando o tom de voz para que alcançasse toda a câmara, exclamou: — Solte-a, Harford. Todo mundo se voltou e ficou olhando boquiaberto. O olhar de Kit se cruzou com o seu, aliviada. Lucien desejou com todas suas forças que a fé que Kit tinha nele não fosse imerecida. Mace se recuperou rapidamente da surpresa e replicou em tom jovial: — Ah, Lúcifer. Veio se unir a nós. Temia que, a causa do mau tempo, não conseguisse chegar a tempo para representar seu papel. — Enquanto falava, retrocedia lentamente para o altar. — Deixa de fingir — disse Lucien secamente. — Isto não é um jogo, a não ser uma loucura criminal. Se não a deixar em liberdade, você ou seu irmão morrerão. — Começou a avançar para o círculo de estátuas. Com um brilho maligno nos olhos. Mace gritou: — Chegou a hora de selar o círculo! — E se agachou para acionar uma longa alavanca que surgia do chão junto ao altar. Nesse momento as estátuas tomaram vida.

CAPITULO 38

Quando Mace acionou a alavanca, a estadia se encheu de um retumbar de engrenagens e jatos de vapor. Instantaneamente, os guerreiros mecânicos se transformaram em uma raça de antigos gigantes, brandindo suas armas com temível força. O gladiador deu uma cutilada com sua espada curta, o viking cortou o ar com seu machado de guerra, e o cavalheiro, que estava a um passo de distância, atacou com sua espada diretamente contra Lucien. Se o mecanismo não tivesse necessitado de uns segundos para entrar em movimento, Lucien teria morrido no ato, mas conseguiu sentir o perigo e teve o tempo para agachar a cabeça. Mace lançou uma estrondosa gargalhada, como se o que poderia ter sido uma fatalidade fosse divertido. — De entre todos, precisamente você deveria admirar meus guerreiros acionados por vapor, Lúcifer — lhe disse. — Nunca houve nada igual na história do mundo! Lucien começou a pensar enquanto retrocedia. Agora encontrava a explicação lógica do retumbar e do estranho calor reinante: perto dali devia ter gigantescas caldeiras de vapor, com turbinas que se estendiam sob o chão para permitir os movimentos das estátuas. Cada uma das armas se movia rapidamente para frente e para trás descrevendo um mesmo arco. Era possível se esquivar somente de uma lâmina afiada, mas as estátuas tinham sido colocadas de tal modo que cobriam todo o espaço sobrepondo umas a outras, fosse por acima ou por abaixo. O conjunto bloqueava totalmente a passagem para o interior do círculo. Se tentasse rodear a trajetória da espada, meteria-se dentro do raio de ação do machado por um lado, ou da cimitarra pelo outro. Era muito engenhoso, e Lucien amaldiçoou seu inimigo por tê-lo inventado. 216


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— Muito inteligente, Mace — exclamou. — Mas ainda posso disparar entre as estátuas. Soltea! — Quer sangue, Lúcifer? Se não cooperar, verá derramar-se o da garota. — Mace fez um gesto ostentoso com a mão em direção o Harford. Com expressão de malvado prazer, este deslizou lentamente a ponta da faca por debaixo do pescoço de Kit. Umas gotas de sangue cor carmesim surgiram ao longo do corte. Ela emitiu um leve som de desespero, que suprimiu instantaneamente. Lucien se sentiu empalidecer. O brilho dos olhos de Mace confirmava a história de Kira: o homem estava preparado para a explosiva descarga de violência sexual que tinha planejado para aquela noite. Seu irmão devia compartilhar dessa mesma loucura, porque no ar flutuava essa incerta e volátil aura de perigo que às vezes precede a uma tormenta. Qualquer provocação serviria de desculpa para cercear o pescoço de Kit. — Estamos em um ponto morto, não acha? — O tom de voz de Mace era inquietantemente agradável. — Se quiser que sua amante sobreviva, jogue a pistola. Lucien, meio tonto, compreendeu que não tinha alternativa. Podia atirar em Mace ou em Harford, mas não em ambos. Deixar um deles vivo poderia significar a sentença de morte para Kit, pois os dois eram capazes de matá-la sem lamentar um instante. Embora tivesse escassa fé na palavra de Mace, talvez a presença de tantas testemunhas o obrigasse a controlar seus piores excessos. Pelo que Kira havia dito, nem todos eram assassinos. Finalmente, com expressão pétrea, deixou cair a arma ao chão. Enquanto o fazia, captou um movimento fugaz na galeria que tinha em frente. Elevou os olhos sem variar a posição da cabeça e viu Michael e Jason entrando pr ocedentes de um túnel lateral. Michael captou a situação de uma só olhada, levantou sua carabina e a apontou para Harford. A seguir olhou para Lucien, à espera de um sinal. Quando Michael disparasse, Harford seria homem morto. Não obstante, Lucien teria que recolher sua pistola e encarregar-se ele mesmo de Mace, porque Jason se encontrava muito longe para acertar o tiro. Seria arriscado, mas menos que deixar Kit nas mãos de dois loucos. Uma vez que começasse o tiroteio, poderia acontecer qualquer coisa. Graças a Deus, Kit possuía inteligência e coragem para reagir rapidamente. Concentrando-se com furiosa intensidade, Lucien tentou enviar mentalmente uma advertência a Kit para que estivesse alerta. Olhou-a fixamente, pálida como a cal, mas ele acreditou ver uma faísca de entendimento em seus olhos. Rezando para que Michael não errasse o tiro, Lucien levantou o olhar e fez um imperceptível movimento com a cabeça. A carabina rugiu em uma explosão que reverberou em toda a caverna com força ensurdecedora. Simultaneamente, Lucien se lançou para recolher sua pistola. Roderick Harford soltou um grito e virou violentamente por causa do impacto da bala de Michael, e um instante depois desabou, ao mesmo tempo em que Kit se retorcia para afastar-se dele antes que a faca lhe cortasse a garganta. Sem se levantar, Lucien apertou o gatilho e disparou em Mace, mas o segundo que demorou em alcançar a arma deu tempo ao outro para procurar refúgio. Mace se escondeu de um salto atrás do altar de pedra, que lhe protegeria dos disparos de seus dois atacantes. Antes que Lucien pudesse recarregar a pistola, ouviu Kit gritar. — Kit! Em sua preocupação por Kit, esqueceu-se de sua irmã. Nesse momento, atraída pelo ruído dos disparos, Kira irrompeu na estadia. Lucien olhou para cima e viu que a jovem se encontrava somente a alguns metros de distância, com o olhar cravado em sua irmã gêmea. 217


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Kit se voltou e contemplou fixamente sua irmã, com a alma no olhar. — Kira! Graças a seu próprio conhecimento do vínculo existente entre irmãos gêmeos, L ucien compreendeu que depois de terem estado separadas pela força, agora sentiam uma necessidade tão forte de estar juntas que era quase evidente. O resto do mundo se apagou para elas. Inclusive assim, não estava preparado quando as duas gêmeas puseram-se a correr uma para a outra. Kira soltou o chicote e a capa de peles e se lançou no meio do temível círculo formado pelos guerreiros mecânicos. Conseguiu se agachar para esquivar-se da passagem da espada, mas Lucien lançou uma exclamação ao ver que se metia totalmente no arco descrito pelo machado de guerra. Kira se jogou no chão e se deslizou sob a lâmina. Por um instante, Lucien acreditou que a arma ia parti-la em duas, mas ela era bastante esbelta para passar por debaixo sem sofrer o menor arranhão. Até ali, tudo bem, mas não poderia esquivar de jeito nenhum da terrível cimitarra. Lucien recolheu o chicote que ela tinha deixado cair e o descarregou sobre o guerreiro turco com todas suas forças. A corrente de couro se enroscou ao redor do braço da figura. O mecanismo acionado por vapor esteve a ponto de levantar Lucien do chão, mas ele agüentou o puxão com grave determinação. Com um chiado metálico, o braço girou em sua dobradiça de ferro e se freou o bastante para permitir a Kira evitá-lo a toda pressa. Enquanto Kira tentava sair ilesa da horrenda corrida de baquetas, Kit escapou de Nunfield, que tinha tentado agarrá-la, ao mesmo tempo em que lutava para desprender-se das amarras. Por fim conseguiu libertar os pulsos bem a tempo de pôr-se a correr para os braços de sua irmã. Ambas se engancharam em um forte abraço e permaneceram assim, estreitamente juntas, rodeadas pelo caos. Nunfield levantou a pistola e a apontou para as duas mulheres, com o rosto distorcido pela fúria. Lucien começou a recarregar sua arma freneticamente, rezando para que Nunfield errasse o primeiro disparo. Nesse momento seu olhar se viu atraído por um movimento no alto. Levantou a vista e viu que Jason Travers estava agarrando a corda que se estendia da galeria para o grande lustre por meio de uma polia, e que servia para abaixar o lustre para limpá-lo e pôr velas novas, mas Jason havia lhe encontrado um novo uso. Colocou-se de um salto sobre o corrimão e em seguida se deslizou até o chão da câmara como se fosse uma águia vingadora. Seu peso fez que o lustre saísse disparado para cima e se espatifasse contra o teto, provocando uma chuva de velas acesas que caíram sobre os Discípulos que se encontravam debaixo. O próprio lustre desabou quando Jason soltou a corda e esteve a ponto de golpear Mace que se refugiou mais para dentro do altar. A maioria das velas se apag ou ao se chocar contra o chão, com o que a caverna ficou iluminada tão somente pelas fogueiras. Quando Jason tocou o chão, tirou velozmente sua pistola e disparou em Nunfield a queima roupa. Ainda antes que o outro caísse ao chão, Jason agarrou a alavanca que controlava as estátuas e atirou nela com força. As efígies se detiveram com um ruído metálico, inofensivas de novo. Fez-se um silêncio sepulcral em que Jason exclamou com voz rouca: — Kira? Ela levantou o olhar e lançou uma exclamação de surpresa, com o rosto pálido como a cal. Lentamente, sem poder acreditar, separou-se de Kit e se aproximou de Jason sussurrando seu nome. Elevou uma mão dúbia para lhe tocar, como se lhe custasse acreditar que era real. Ele a atraiu para si e a rodeou com os braços, com o desespero e o desejo desenhados no rosto. Kira afundou o rosto contra ele, com os ombros agitados. Lucien se lançou ao interior do círculo, mas sua principal preocupação era Mace que seguia 218


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livre, armado e mais perigoso que nunca. Empunhando a pistola, Lucien começou a rodear o altar, e em seguida se topou cara a cara com sua presa. — Eu gostava de você, Strathmore — disse Mace com fatal calma e com a arma apontando para Lucien no coração. — Era quase tão inteligente como eu. É uma lástima que seja um maldito puritano de classe média. Mais experiente que seu oponente, Lucien não esbanjou tempo em conversar. Apertou o gatilho e ao mesmo tempo se jogou para um lado. A pistola chispou e falhou. A de Mace não falhou, mas a manobra evasiva salvou Lucien. A bala do outro passou raspando por sua orelha direita, ensurdecedora, mas inofensiva. Mace lançou uma maldição e levou a mão à faca. Lucien recuperou o equilíbrio com dificuldade, só para se dar conta de que tinha voltado a torcer o maldito tornozelo em seu afã de se esquivar do disparo efetuado por Mace. Caiu sobre um joelho, movimento que o outro aproveitou para equilibrar-se sobre ele com a lâmina da faca relampejante sob o brilho fantasmagórico das fogueiras. Pela extremidade do olho, Lucien viu que Kira se separava dos braços de Jason e levantava a pistola que lhe tinha dado — onde diabos a tinha escondido, com aquela escassa vestimenta? — e a apontava para Mace com um brilho selvagem nos olhos. Mas suas mãos eram firmes quando engatilhou a arma, e sua pontaria certeira. A bala alcançou Mace em pleno peito. Ele, perplexo, lançou uma exclamação abafada e depois desabou lentamente sobre o chão, com o olhar fixo em Kira. Com um último fio de voz disse: — Você foi a melhor, minha ama. É uma pena... — E então fechou os olhos e morreu. Toda aquela sangrenta briga, que foi concluída com três homens mortos, não tinha durado nem sequer dois minutos. Kira ficou olhando Mace por um espaço de intermináveis segundos. A seguir seu rosto adotou a expressão de fúria e de triunfo de uma mulher que tinha agarrado o poder em suas mãos depois de um comprido inferno de impotência. Pouco a pouco, seu semblante mudou até adquirir uma expressão de horror. Adivinhando seus sentimentos, Lucien se aproximou coxeando até ela e lhe rodeou os ombros com um braço em um gesto fraternal. — Obrigado, Kira — disse com suavidade. — Você é tudo o que Kit disse de você. Embora a tivesse conhecido há apenas meia hora, sentia como se fosse uma velha amiga. Estava olhando ao redor em busca de Kit quando reapareceu o perigo. A maior parte dos Discípulos que tinham sobrevivido estavam contemplando a carnificina, aturdidos e incrédulos. Todos exceto lorde Chiswick. Na pausa que ocorreu depois da morte de Mace, Chiswick havia se apressado em se esconder atrás do altar e a tirar sua própria pistola. Sem tirar o olho da galeria onde ainda se encontrava Michael, apontou a arma para Lucien. — Está ficando louco, Strathmore — espetou. — Acredita que vamos ficar todos tranqüilos, esperando que nos mate? Lucien disse em voz baixa: — Te afaste de mim, Kira. — Enquanto ela se afastava da linha de fogo, ele tirou sua pistola agora imprestável e elevou as mãos para que Chiswick pudesse ver que as deixava vazias. Na galeria, Michael se situou rapidamente em uma posição em que o altar não bloqueasse a direção de seus disparos. Mas algo que Lucien captou no tom de voz de Chiswick lhe fez pensar que a batalha talvez tivesse terminado. Disse-lhe: — Não lhe parece que este massacre não tem nenhum sentido? Sustentando a pistola com mão trêmula, Chiswick respondeu em tom impassível embora pouco convincente: 219


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— Deus, estávamos celebrando uma pacífica orgia quando você e seus amigos irromperam e começaram a disparar em tudo o que estava à vista. Michael se colocou de modo que Chiswick ficasse em sua linha de tiro, mas Lucien elevou a mão para lhe indicar que aguardasse, e disse a Chiswick: — Está afirmando que não sabe que Mace tinha seqüestrado Cassie James há dois meses e que estava prisioneira aqui? Nem que estava fazendo todo o possível para seqüestrar também sua irmã? Isso são fatos reais, e ele mesmo alardeou diante de sua cativa de ter seqüestrado, maltratado e finalmente assassinado a outras mulheres antes dela. A mandíbula de Chiswick ficou caída. Do outro lado do cômodo, sir James Westley exclamou: — Está muito equivocado! Para as garotas que Mace contratou para os rituais dos solstícios ele lhes disse que deviam lutar e gritar e fingir que eram cativas. Fazia parte da diversão. O rapto das Sabinas, e tudo mais. — Tremeu-lhe a boca. — Acreditei que você era parte do espetáculo, até que começou a matar as pessoas. Lucien olhou com dureza ao barão. — Teria sido capaz de distinguir a diferença entre uma cativa real e uma falsa? — Quer dizer que não eram...? — O semblante de Westley adquiriu um tom esverdeado. — Acreditava que Mace tinha contratado Cassie James para que nos entretivesse durante esta noite. É a primeira atriz que se vende por um preço correto. Kira tinha voltado a refugiar-se nos braços de Kit, mas ao ouvir a afirmação de Westley levantou a cabeça. — Não só me falou de seus anteriores assassinatos, mas também me disse que minha irmã e eu íamos ser as próximas vítimas — disse em tom azedo. — Depois da violação coletiva, ele e seus comparsas mais íntimos pensavam em celebrar uma pequena orgia privada somente para eles e que terminaria com nossa morte. Seu testemunho deixou os Discípulos estupefatos. O olhar de Chiswick passou de Harford a Mace e depois a Nunfield, com uma expressão de surpresa que não podia ser de nenhum modo fingida. — Não sabia — disse com horror. — Juro por Deus que não sabia. Com expressão implacável, Kira seguiu dizendo: — Talvez não de forma consciente, mas com sua crueldade e sua vaidade, todos vocês toleraram a conduta de Mace. O rosto de Chiswick se tornou cinza. Lucien interveio para dizer: — Pense um pouco, e talvez seja mais fácil de acreditar. Depois de uma penosa pausa, Chiswick assentiu com a cabeça. — Sempre soube que havia algo estranho nesses três, mas acreditava que não eram mais que excentricidades de família entre dois irmãos e seu primo. — endireitou-se, e deixou cair a pistola no chão. — Embora às vezes tenha me perguntado... Então vieram à mente de Lucien fragmentos dispersos de suas próprias investigações que agora encaixaram em seu lugar, lhe dando quase uma certeza total. — Alguma vez lhe ocorreu que um deles pudesse ser um espião dos franceses? Chiswick pareceu surpreender-se. — É estranho que diga isso. Em certa ocasião chegou a meus ouvidos algo que me fez pensar em ir às autoridades. Nunfield tinha acesso a informação. Mace gostava de confundir às autoridades, e Roderick sempre estava necessitado de dinheiro. Mas eram meus amigos e me sentia receoso em lhes acusar. Então terminou a guerra e não parecia que valesse a pena seguir com o assunto. Nunca... Nunca me ocorreu que pudessem ser assassinos. 220


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Aquilo tinha sentido. Lucien pensou em interrogar Chiswick mais tarde em busca de provas daquela espionagem, mas sua intuição confirmou as suspeitas do outro: o Fantasma não era somente um homem a não ser três, e agora todos jaziam mortos. — Parece-me que seus vícios eram múltiplos — comentou secamente. — ainda que eu não tenha planejado que acontecesse deste modo, o que ocorreu esta noite foi justiça, não assassinato. Chiswick abaixou o olhar para sua pistola e a guardou no coldre. — Não estava carregada, sabe? Só era parte do disfarce. O qual explicava por que não tinha disparado em Lucien. Também era uma prova mais de que Chiswick não formava parte do círculo íntimo de Mace, amante da violência. Michael tinha descido da galeria, alerta, mas já não em atitude belicosa. Perguntou: — Tudo foi resolvido com satisfação? Lucien apoiou uma mão no antebraço de seu amigo. — Assim é. Obrigado, Michael. Deus sabe o que teria acontecido se não tivesse contado com sua boa pontaria. Seu amigo sorriu. — Não tem nada de especial. Sempre estou procurando uma oportunidade para expiar meus pecados. — afastou-se alguns passos para observar mais de perto as estátuas de guerreiros. Agora que havia passado o perigo, Lucien se sentiu esgotado física e emocionalmente. Doíalhe o ombro onde Kira o tinha golpeado, doía-lhe diabolicamente o tornozelo, e a prolongada ansiedade daquela noite cobrou um preço muito alto. Voltou-se instintivamente para Kit, com a necessidade de abraçá-la. Kit estava com a irmã, seus rostos idênticos, semelhantes a espelhos uma da outra. Embora as duas gêmeas já não se abraçassem com tanto desespero como antes, era evidente que estavam unidas por uma intimidade emocional que excluía o resto do mundo. Lucien, hesitante, perguntou: — Você está bem, Kit? Mace lhe causou algum dano? Olhou-lhe com seus olhos cinza opacos e indecifráveis. — Estou bem, obrigado. Não teve tempo de fazer nada. Pior que a formalidade daquelas palavras era o fato de saber que ela tinha cortado deliberadamente o vínculo que tinha começado a crescer entre os dois. Lucien não se deu conta de quão forte era, até agora que tinha desaparecido para deixar em seu lugar um gélido vazio. Era o pior de seus medos transformado em realidade. Kit tinha se convertido no centro de sua vida, mas, entretanto já não lhe necessitava, agora que tinha recuperado sua irmã gêmea. Perguntou-se onde Jason se encaixaria em tudo aquilo. Talvez Jason não necessitasse de Kira tanto como ele de Kit; em tal caso, talvez fosse perfeitamente feliz sem saber o que estava perdendo. Mas ele queria mais, e estava tristemente seguro de que jamais o teria. Se a pressionasse, talvez Kit aceitasse se casar com ele, por gratidão se não por outra razão; mas em todos os aspectos importantes a tinha perdido, porque nunca tinha sido sua de verdade. Amaldiçoando a dor antes que esta pudesse lhe afundar, Lucien voltou a olhar a Chiswick. — Agora vamos. Quer se ocupar de todo este desastre? Você tomou parte dele, de modo que são você e os outros que mais tem a perder se for montado um escândalo público com isto. Chiswick pareceu surpreso, e logo pensativo. — Se fosse publicado que Nunfield, Mace e Harford faleceram em um acidente de carruagem por causa do mau tempo, seria triste, mas não escandaloso. — Lançou um olhar a seus companheiros. — Estão de acordo? Houve entre os presentes murmúrios de alívio. A julgar pelos rostos dos outros Discípulos, o acontecido daquela noite tinha convencido a aquele particular grupo de libertinos que no futuro 221


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devia ater-se a vícios mais convencionais. — Falando em carruagens — disse Chiswick, — a minha conta com rodas especiais para poder viajar através da neve e do gelo. Se quiser, posso emprestar-la para as damas. — Olhou Kit e Kira. — Creio que já suportaram bastante por uma noite. Lucien aceitou a oferta, e um quarto de hora mais tarde já se encontravam no caminho de volta. Nem sequer quando ajudou Kit a subir à carruagem esta o olhou nos olhos. Não podia terse mostrado mais reservada se acabassem de ser apresentados. Michael conduziu enquanto Lucien e Jason cavalgavam atrás. A neve e a chuva gelada tinham cessado, e a temperatura tinha descido, convertendo o mundo em uma fantasmagórica e brilhante superfície de gelo. Lucien agradeceu o vento glacial, porque se equiparava ao frio que sentia no coração. Pensou de novo naquela noite em Eton em que decidiu converter-se em Lúcifer: frio, irônico, indiferente, tão por cima da dor da perda como as nuvens que agora percorriam o céu. Na época tinha funcionado para ele, e também lhe funcionaria agora, porque tinha muitos anos de prática. Uma vez a dor ficou firmemente em um lugar seguro, descobriu uma fatigada sensação de paz. Embora Kit se fosse, levando consigo os sonhos dele, nesta noite descobriu certa absolvição pelo fracasso que sofreu anos atrás na tentativa de salvar a vida de sua irmã.

CAPITULO 39

No princípio, Kit e Kira não falaram, mas se contentaram simplesmente em entrelaçar as mãos de ambas enquanto a carruagem estralava pelas estradas cobertas de gelo. Em vez de percorrer de novo o labirinto de túneis para ir procurar suas roupas, Kit preferiu ficar com o escandaloso traje e cobrir-se com uma capa que Chiswick lhe proporcionou. A usual atitude de altiva indiferença deste tinha desaparecido por isso Kit adivinhou que estava tentando emendarse por não ter reconhecido a depravação de seus companheiros Demônios. Suprimiu sem olhares a lembrança do momento em que Lucien abraçou Kira e disse que era tal como ela a havia descrito. Depois de tudo, tinha esperado algo assim. Se ela se permitisse experimentar a dor, se desintegraria, e para isso preferia estar sozinha. Agora queria desfrutar da libertação de sua irmã; já haveria tempo de sobra para angustiar-se. O silêncio se quebrou quando Kira disse com voz trêmula: — Acabo de matar um homem. Ainda vejo o sangue, e seu rosto... — Em boa hora — repôs Kit em tom áspero. — Fora os outros pecados que Mace tivesse cometido, estava tentando atacar Lucien com uma faca. É muito bom isso de perdoar aos inimigos, mas não até que eles tenham sido devidamente enforcados. O leve sorriso de sua irmã se desvaneceu rapidamente. — Não chegou a me violar, nem tampouco me beijou. Suponho que estava reservando-se para o grande ato final. Mas ser obrigada a participar de seus aborrecidos jogos foi quase igualmente desagradável. Senti-me impotente, suja. — Mas sobreviveste e conservaste a prudência — disse Kit em voz fraca. — Poucas mulheres teriam sido tão fortes. — Nunca poderia ter conseguido sem você. Por muito horroroso que fosse tudo, sabia que de certo modo você sempre estava comigo. Quando a situação se fez insuportável, alimentei-me de sua força. Também sabia que se conseguisse seguir viva pelo tempo suficiente, você me 222


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encontraria. — Kira lhe apertou a mão com força. — E foi o que fez. — Contei com ajuda. — Kit olhou sua irmã, vendo o familiar perfil de seu rosto recortado contra a janela. Embora no princípio não acreditasse na vingança, neste caso a aplaudia. Com certeza que o ato de vingativa justiça que Kira tinha realizado tinha restaurado parte do que Mace havia lhe arrebatado. — E foi muito impressionante — disse Kira, em um tom que a fazia parecer mais ela mesma. — Me conte tudo o que ocorreu. Kit fez a sua irmã o relato completo, exceto no referente a sua relação com Lucien; aquele tema era muito doloroso para falar dele. Kira amaldiçoou ao se inteirar do encarceramento e evasão de Jason, mas não interrompeu. Ao chegar ao final exclamou: — Minha tímida e afetada irmã interpretou A Cigana? — E também cortei o cabelo e fiz a tatuagem com essa maldita mariposa, para que ninguém notasse a diferença — disse Kit com certa irritação. Kira riu. — E como foram as críticas? — Os críticos disseram que eu estava em boa forma. — Kit se encolheu de ombros. — Não fiz mais que fingir ser você. O público viu o que esperava de Cassie James. — Talvez devesse ocupar meu lugar para sempre — sugeriu Kira. — Eu não vou seguir atuando, mas seria uma pena retirar Cassie justo quando começa a colher fama. Surpreendida, Kit respondeu: — Vai abandonar o teatro? — Eu já estou farta. Às vezes é maravilhoso, não há nada como saber que tem um público na palma da mão. Mas o mundo do teatro é muito estreito e presunçoso, e toma a si muito a sério. Freqüentemente tenho me sentido um pouco impaciente. — Nunca deu amostras disso. Os dedos de Kira se moveram inquietos dentro dos de sua irmã. — Não queria admitir que era um equívoco me converter em atriz. E não foi um equívoco de todo, mas agora já posso ir sem lamentar. — Seu tom de voz adquiriu uma nota mais quente — É bom que eu me sinta farta, porque seguir atuando não seria justo para Jason. As pessoas do teatro deveria se casar somente com pessoas do teatro. — Vai se casar com ele? — Não há nada no mundo que eu deseje mais. Quando o conheci, maldita seja sua pele americana, soube que já não iria querer nenhum outro homem. Suponho que ele sente o mesmo, do contrário jamais teria vindo até mim. — E seguiu com uma nota de ansiedade — Jason te agrada, não é mesmo? Seria terrível que você não gostasse dele. — Eu gosto muito. Formarão um casal maravilhoso. — Ele possui a capacidade de mostrar intimidade emocional, e isso é pouco comum em um homem. Creio que deve ser porque sua mãe o tenha educado; leva às mulheres muito a sério. — Riu um pouco. — Provavelmente não mencionou, mas também está indo muito bem com seu negócio de transporte. Imagina? Um Travers que sabe ganhar dinheiro em vez de gastá-lo! Papai teria considerado isso uma heresia. — Obviamente, duas gerações na América melhoraram a raça — admitiu Kit. — Mas por que você o recusou há três anos atrás? Diz que não quis partir da Inglaterra, mas creio que, lhe amando tanto... — Não poderia suportar estar tão longe de você, naturalmente. — Kira apertou de novo a mão. — Já era bastante triste estarmos separadas vivendo as duas na Inglaterra, como então pôr 223


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todo um oceano no meio. Por muito que amasse Jason, simplesmente não podia ir com ele. Kit se sentiu tão comovida que em um primeiro momento não pôde responder. — Eu teria me sentido igual — disse em voz baixa, — mas não sabia que passava por isso. — Vacilou insegura se devia lhe formular a pergunta que a obcecava desde que conheceu Jason. Mas, indevidamente, Kira se deu conta. — O que você está guardando? — Por que não lhe falou sobre mim? — perguntou Kit, tentando reprimir a dor. — Jason sabia que eu existia, mas não que éramos gêmeas, e muito menos o que isso significa. Está envergonhada de mim? — Kit, não! Como pode pensar uma coisa assim? — Então, por que se calou? Depois de um longo silêncio, Kira disse com voz entrecortada: — Odeio ter que admitir isto, soa horrivelmente mesquinho. Mas... Tinha medo de que ele preferisse você ao invés de mim. Kit deu um grito. — Ficou louca? Jamais um homem preferiu a mim em vez de você! — Não é coisa de brincadeira — disse Kira impulsivamente. — Odeio sua falsa modéstia. Já é bastante ruim que pense e fale melhor que eu, para que agora também seja mais humilde. Kit lançou uma exclamação abafada em reação ao injusto daquele comentário. — Se sou humilde, é porque tenho abundantes razões para ser — disse com a voz trêmula ao pensar em Lucien. — Passei toda a vida me arrastando a sua sombra. A gêmea calada. A gêmea aborrecida. A gêmea que não é Kristine, mas que se parece exatamente a ela exceto em que por alguma razão não é tão bonita. Não me importou tudo isso, mas não tem nenhum direito a me acusar de hipócrita! Kira mordeu o lábio. — Oh, Kit, sinto muito. Tenho os nervos destroçados, mas não deveria ser com você precisamente. Abraçaram-se de novo, as duas muito perto de começar a chorar. Kit pensou em sua infância, quando ambas se metiam na mesma cama e dormiam juntas como se fossem gatinhas. Era impossível imaginar a vida sem sua irmã gêmea. Por fim Kit rompeu o abraço. — Você já se deu conta de que quando estivemos separadas e nos juntamos outra vez, sempre temos alguma discussão? Kira se reclinou no assento e voltou a pegar a mão de sua irmã. — Tem razão, sempre acontece o mesmo. Por que será? — Porque gostamos muito uma da outra. — Depois de um aprazível silêncio, Kit acrescentou — Sigo sem poder acreditar que pensasse que eu podia ser sua rival para conseguir Jason. Em primeiro lugar, eu nunca, nunca te faria uma coisa assim, e em segundo lugar, esse homem adora sua maneira de andar. — Sabia que você não tentaria deliberadamente ficar com ele para você, mas os homens sempre se sentem intrigados com você — disse Kira com triste sotaque. — Eu sou uma pessoa frívola. Você é mais sensata, mais forte, e tem esse ar de mulher misteriosa que deixa os homens loucos. Na realidade não duvidei de Jason nem de ti, mas como ambos são muito importantes para mim, não pude evitar me preocupar um pouco. — Estamos falando da mesma pessoa? — disse Kit, incrédula. — Eu, uma misteriosa encantadora de homens? Está mal da cabeça, irmãzinha! Em Kendal, você sempre foi a que estava rodeada por várias filas de admiradores. 224


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Kira se encolheu de ombros. — Eram moços, não homens, e era mais fácil falar com uma tagarela como eu. Oh, eu agradava a alguns sinceramente, mas a metade deles estava ali como uma forma de se aproximar de você. Sua inteligência intimidava a todos, sabe. Eu sempre soube que teria o êxito que merece quando fosse mais velha e pudesse conhecer homens maduros e seguros de si mesmos. — E o que me diz de Philip Burke? — perguntou Kit, sentindo uma leve pontada de dor inclusive naquela altura. — Eu queria desesperadamente que me notasse, mas ele nem se inteirava de que eu existia. — Ele? Oh, ele era dessas pessoas que são incapazes de tratar com gêmeos idênticos — disse Kira como não tomando a coisa a sério. — Como precisava fazer algo enquanto estava de visita em Kendal, decidiu ir atrás de mim. E assim fez o que significou que você ficou invisível para ele. Sinto que isso te ferisse, mas sinceramente, ele não valia a pena. Esse tipo de gente nunca vale a pena. — E pensar que gostei muito dele todo um verão e não me dava conta de algo tão óbvio! Superestima minha inteligência. — Não, não faço. — Kira deixou escapar um suspiro. — Não sou tão forte como você, Kit. Sabia que Jane tinha razão ao insistir em que devíamos nos separar e ter vidas independentes depois da morte de papai. Eu fiz o que pude, mas não consegui me arrumar tão bem como você. Profissionalmente, você se transformou em uma escritora influente, lida e respeitada pelos homens mais proeminentes do país. E o que é ainda mais importante; sempre foi tão tranqüila, tão segura de si mesma tão cômoda com sua forma de ser. Justamente o contrário do que me acontece. — Mas você teve muito mais êxito! — replicou Kit. — Ganhou dez vezes mais dinheiro que eu. Foi você quem pagou a maior parte das dívidas de papai, e contou sempre com centenas de amigos e admiradores. Kira se encolheu de ombros. — Não fui ruim em trabalhar como atriz, mas como pessoa fui uma fraude... Um ser incompleto. Desejava desesperadamente encontrar alguém que me amasse e me cuidasse. Por isso me dava tanto medo me apaixonar por um americano. Era impensável partir da Inglaterra, mas perder Jason era quase igualmente horrível. De novo Kit experimentou a sensação de que estavam falando de duas pessoas distintas. — De verdade você pensava que eu estava triunfando em minha vida independente? Amo Jane, e foi muito cômodo viver com ela, mas teria aceitado sua oferta de um lar ainda que fosse o próprio Calígula. Quando sai de Westmoreland, não pude suportar a idéia de viver sozinha nem entre pessoas desconhecidas. Respeitava muito sua coragem ao se introduzir em um mundo totalmente novo. Passei quatro anos escondida em minha casa, escrevendo ensaios, o que é mais ou menos isolada do mundo. — Eu necessitava da distração de estar constantemente ocupada — disse Kira simplesmente. — Sabia que ia passar muito mal sem você, mas que a atividade e a novidade me serviriam de ajuda. A mútua compreensão surpreendeu as duas simultaneamente. Ficaram olhando-se uma à outra na escuridão. — Jane não deixava de sublinhar o quanto você estava indo bem, sozinha — disse Kit. — Quando escrevia para você, dizia algo de meus êxitos? — Sim! — exclamou Kira. — Suponho que só tentava me animar, mas dizendo a cada uma de nós que à outra ia muito bem, fez que as duas nos sentíssemos fracassadas. — Embora suas intenções fossem boas, os resultados não foram — disse Kit meio rindo, meio exasperada. — Durante quatro anos me censurei por meu caráter débil. 225


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— O mesmo eu fiz até que conheci Jason. Foi então que compreendi que não está em minha natureza ser tão independente como Jane. Claro que sou capaz de sobreviver sozinha, agora sei, mas sou muito mais feliz estando com alguém a quem amo. As palavras de sua irmã desencadearam uma série de revelações interiores em Kit. Resistiu a Lucien com todas suas forças. Parte disso se devia realmente ao medo de que ele preferisse Kira e a deixasse destroçada, mas também acreditou que não deveria necessitar tanto dele. Sua experiência lhe tinha ensinado que não era seguro confiar tanto nos homens, e essa idéia tinha sido reforçada por Jane, que vivia em tão esplêndida independência. Mas Lucien não era um Travers, e ela não devia duvidar dele por culpa dos erros de seu pai. Nem tampouco devia ver demasiado na forma em que tinha abraçado Kira depois de que esta disparou em Mace. Tinha estado preparada para supor o pior, mas pelo visto ela e sua irmã estiveram se julgando mal uma à outra durante anos. Se pode se equivocar com sua própria irmã gêmea, certamente podia equivocar-se com Lucien. Além disso, já era hora de que aceitasse que era mais próprio dela que de Kira ser emocionalmente reservada. Disse com expressão pensativa: — Não falamos desta forma em quatro anos, Kira. Obrigado por me dar uma nova perspectiva da vida e do amor. — Falando de amor, vai casar com Lucien Fairchild? É um cara magnífico. — Sim é. Quanto a me casar com ele... — Kit vacilou, pois não queria falar de algo que ainda estava sem resolver. — Isso ainda nós temos que ver. Ele acredita que devemos nos casar, mas isso é porque ele se sente culpado de todas as vezes que estivemos em uma situação comprometedora. Como isso é minha culpa, não dele, parece-me mais uma tolice que ele deva casar-se comigo para salvar minha reputação. — Isso é só uma desculpa; a verdade é que ele é outra vítima de seu fatal encanto. — depois de uma breve pausa, Kira aspirou profundamente, em um gesto que indicava surpresa. — Kit, está grávida? — Como? — exclamou Kit - Isso é impossível! — É? — perguntou Kira com interesse. Kit se sentiu avermelhar tão violentamente que a temperatura do interior da carruagem deve ter subido uns quantos graus. — Bom na realidade não é impossível. Mas sim bastante improvável. Kira soltou um sorriso malvado. — De todos os modos, eu creio que sim. Me prepararei para ser tia. Talvez sua irmã tivesse razão; era esse tipo de coisas que uma gêmea adivinhava da outra. Kit pensou na possibilidade de ter um filho de Lucien, e sentiu um aquecimento que nasceu no coração e se estendeu por todo o corpo. Aquela era uma perspectiva maravilhosa... Embora complicasse muito sua situação. Durante o resto da viagem conversaram entre si trocando impressões, terminando uma as frases da outra, compensando quatro anos de leve distanciamento com abundante conversa. Logo Kira olhou pela janela e viu a mansão que se recortava contra o céu da noite. — Por certo, para onde vamos? Tinha esquecido de perguntar. — A uma pequena propriedade de um amigo de Lucien. Neste momento se encontra vazia, de modo que nos apoderamos dela temporariamente. Para maior comodidade, vieram alguns dos criados de Lucien. — Trouxe um pouco de roupa decente? Assim que entrarmos na casa, quero que me ajude a tirar este horrível traje para poder queimá-lo. — Trouxe alguns vestidos seus — lhe assegurou Kit. — Vestidos sérios e conservadores, 226


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porque sabia que era isso o que você queria usar. Kira abaixou os olhos. — Na realidade, Jason adoraria me ver vestida assim, mas eu não posso suportar usar algo que Mace me obrigou a usar. A propósito, você se importaria de trocar sua capa pela minha? Você pode levar a de pele de marta; não quero tê-la perto. Com certa dificuldade no estreito espaço, trocaram as capas. Enquanto se envolvia na suntuosa pele, Kit assinalou: — Tendo em conta que Mace não era precisamente uma das minhas pessoas favoritas, eu tampouco quero a capa. Talvez devêssemos dar de presente a Cléo. Ela foi de grande ajuda, e gostaria muito. — Boa idéia. — Com um toque de desafio no tom de voz, Kira continuou — Quando eu tiver mudado de roupa, vou procurar Jason e tirá-lo a rastros de seu quarto por toda a noite. Temos muito que pôr em dia. Kit se deu conta de que sua irmã esperava uma recriminação. Em outro tempo a dissimulada lady Kathryn teria ficado escandalizada diante de semelhante comportamento imoral, mas agora não. Não desde que tinha aprendido algo a respeito da paixão e do laço de união que esta representava entre um homem e uma mulher. — Em efeito. Depois do terrível cativeiro que os dois sofreram, suponho que agora estarão mais unidos que nunca. — Não tinha pensado nisso, mas tem razão. — Depois de uma leve hesitação, Kira disse — Não precisa sentir ciúmes de Jason. A conexão que existe entre você e eu tem mudado e evoluído com os anos, mas sempre durará. Sempre. Muito próprio de Kira, saber e entender. Com o coração transbordante de amor, Kit disse: — E diz que eu sou inteligente. No que concerne às coisas mais importantes da vida, você sempre esteve na minha frente. — Só uns dez minutos, ou assim. — A carruagem se deteve finalmente em frente da casa. Já começando a deixar atrás a experiência vivida, Kira continuou em tom otimista — Agora me ajude a tirar este asqueroso disfarce!

CAPITULO 40

Lucien não se surpreendeu ao ver Kit e Kira entrar na mansão e subir juntas as escadas. Supôs que durante alguns dias precisaria de uma alavanca para separá-las. Bastante compreensível, dada as circunstâncias. Manteve-se afastado, pois não confiava em si mesmo quando estava perto de Kit. Uma coisa era aceitar intelectualmente que a relação existente entre ambos tinha terminado, e outra que deixasse de desejá-la. Mas tinha certeza de que com o tempo passaria. Depois de beber metade da taça de conhaque, levantou-se e perambulou nervoso por seu dormitório. Os outros dois homens estavam relaxando com um bom jantar e uma taça para celebrar o êxito da operação, mas ele não tinha querido lhes acompanhar. Não tinha apetite, nem tampouco muita vontade de celebrar nada. Michael tinha franzido o cenho quando ele se desculpou, mas foi bastante discreto para fazer comentários. A amizade consistia tanto em saber quando falar como em saber quando não falar. Abriu as portas duplas e saiu na pequena sacada. O vento era violentamente frio, mas a 227


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tormenta já havia passado e a lua se elevava no alto do céu. Sua fria luz se refletia através do gelo que lançava brilhos até nos ramos menores das árvores. Gelo por toda parte, sob re tudo em seu coração. Apoiou-se na grade e contemplou a noite cristalina, e foi consumindo seu conhaque a pequenos goles. Talvez quando o terminasse poderia dormir.

Kit ajudou sua irmã a tirar o traje de dominadora e colocar um vestido azul liso. Com o cabelo escovado e caindo simplesmente sobre os ombros, Kira estava muito formosa, com aquele especial resplendor exclusivo dela. Parecia exatamente uma mulher que vai se reunir com seu amante. Kit supôs que na próxima vez que visse sua irmã e Jason, ambos estariam em paz pela primeira vez em vários anos. Pelo menos, Kira. Ela também desejava trocar de roupa, mas assim que sua irmã se foi do dormitório se sentiu invadida de uma aguda ansiedade. Acontecia algo de errado em relação a Lucien. Até que olhou para seu interior e encontrou silêncio não compreendeu que havia se acostumado a sentir-lo no mais recôndito de sua mente, assim como ocorria com sua irmã. O vazio atual era diferente do que a tinha feito temer que sua irmã pudesse estar morta; era como se Lucien tivesse fechado uma porta que havia se aberto pouco a pouco para ela. Preocupada de repente, pegou a capa e cruzou o salão para dirigir-se ao quarto de Lucien. Talvez estivesse zangado porque ela havia se perdido e tinha sido capturada. Naquele momento era menos dona de sua vontade que um sonâmbulo, mas sua conduta tinha complicado tremendamente os acontecimentos. Se ela e Lucien tivessem permanecido juntos, Kira talvez tivesse sido resgatada sem derramamento de sangue, embora Mace e os outros dois não representassem nenhuma grave perda para a sociedade. Diminuiu a marcha ao aproximar-se do dormitório de Lucien. E se de verdade não a desejava? E se... ? Antes de perder a coragem, deu uns firmes golpes à porta. Não houve resposta. Então ela girou em silêncio o trinco e entrou no quarto. A lamparina estava acesa e a cama desarrumada, mas Lucien não estava nela. Uma rajada de ar frio penetrou pela porta dupla. Kit olhou para fora e descobriu Lucien de pé na sacada, de costas para ela. Devia ter ouvido os golpes na porta, porque disse sem se voltar: — Não precisava se incomodar e vir ver como estou Michael. Não tenho nenhum mal que uma boa noite de sono não possa curar. Kit, um tanto insegura, disse: — Não se está bem, Lucien? Os largos ombros dele ficaram rígidos. Depois de uma longa pausa, voltou-se e se apoiou com um gesto de naturalidade contra a grade da sacada. Ele estava elegante e tranqüilo, sem rastro da personalidade do guerreiro. — Só estou cansado, Kit. Foi uma noite cheia de acontecimentos. Kit se aproximou dele, atando um pouco mais a capa para se proteger do frio cortante. Ao fazer isso, se deu conta de que estava vestida exatamente igual a sua irmã antes. Precisava saber se ele poderia as distinguir, e lhe ofereceu um sorriso dos de Kira e um brilho igual. — Tem certeza de que sou Kit? Adivinhando que o estava pondo a prova, Lucien respondeu ironicamente: — É obvio, embora continue interpretando o papel de Cassie James. — Seu olhar se fixou na capa. — Supondo que Kira e você tenham trocado as capas porque ela não queria usar nada que viesse de Mace. 228


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Era um alívio que ele pudesse distinguir uma da outra sem se equivocar. Com a mesma clareza, Lucien continuava sabendo como funcionava a mente de Kit. Mas sua expressão era tão distante e inexpressiva como o anjo caído que lhe emprestava o apelido. A comunicação sem palavras que tinha crescido entre ambos se desvaneceu de forma tão radical como se nunca tivesse existido. Por um instante Kit teve a penosa certeza de que Kira realmente o havia deslumbrado a tal ponto que esperava que Kit desaparecesse em silêncio de sua vida. Naturalmente, se lhe dissesse que estava grávida, casaria com ela sem dúvida alguma. Mas não era esse o casamento que desejava. Apertou os lábios. Nunca tinha renunciado à esperança de encontrar Kira, e não pensava em renunciar a Lucien até estar absolutamente segura de que ele não a desejava. Com a capa de pele da marta ondeando contra suas pernas, reuniu-se a ele na sacada. A casa tinha a forma de L, com um jardim formal que se estendia no ângulo que formavam os dois braços do L. Como não se atrevia a lhe olhar diretamente, cravou a vista na fonte congelada, que a luz da lua tinha transformado em uma resplandecente escultura de gelo. — Eu lhe disse que quando passasse a crise, lhe daria gostosamente qualquer coisa que desejasse e que estivesse em meu poder. Você já decidiu o que quer? A quietude era tão profunda que Kit conseguia ouvir o ranger dos ramos cobertos de gelo ao se chocarem entre si balançados pelo vento. Por fim, Lucien respondeu: — O que quero é algo que não se pode dar. Não está em dívida comigo, Kit. Alegro-me de ter podido ajudar a encontrar Kira. Nesse mesmo processo encontrei os espiões que procurava e assim a balança está equilibrada. Vá e seja feliz. Era uma descarada despedida. Kit conteve a respiração, sentindo como o ar glacial lhe abrasava os pulmões. — Mudou de idéia quanto a nos casar? — Desde que Linnie morreu, estive procurando em vão a outra metade de mim mesmo — respondeu ele em tom tão sombrio como aquela noite invernal. — Cada vez que a buscava em uma mulher, encontrava somente a solidão. Guardava a esperança de que com você existisse a possibilidade de ter a intimidade emocional que tanto ansiei. Você é uma irmã gêmea, sabe dar, sabe se fazer vulnerável, sabe amar sem reservas. Eu queria tudo isso. Fechou as mãos sobre a grade e levantou o rosto para o céu. A claridade da lua iluminou e acentuou sua beleza até um extremo impossível. Brilhante luzeiro da alvorada, o mais formoso dos anjos de Deus, além de que era compreensível para o homem... Ou para a mulher. — Mas fui um idiota ao pensar que seria possível conseguir esse tipo de intimidade com outra pessoa — continuou. — Elinor e eu nascemos na mesma hora, do mesmo sangue. Juntos nós aprendemos a brincar, a falar, a rir... a compartilhar todos nossos pensamentos e emoções. E inclusive com Linnie, tudo isso teria desaparecido quando crescêssemos. Talvez ser gêmeo seja tanto uma desgraça como uma bênção, porque faz que alguém deseje ter algo que nunca poderá ter de novo. Depois de uma longa pausa disse com um fio de voz mal audível: — Suponho que queria na realidade era recuperar aqueles dias dourados de minha infância, antes que descobrisse que o mundo é um lugar doloroso. Você não pode me devolver esse t empo. Ninguém pode como eu tampouco poderia substituir Kira em seu coração se ela tivesse morrido. Ela é a primeira para você, sempre será. E compreendi que não poderia me contentar com as migalhas, e é melhor não tentar. – Olhou para Kit com seus olhos de um tom verde pálido tocado pelo brilho da lua – Foi um prazer conhecê-la, lady Kathryn. Aprendi muitas coisas úteis a respeito de mim mesmo. Ela teve um calafrio provocado mais pelo frio distanciamento de Lucien que pelo gélido 229


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vento que soprava. Ele se deu conta e lhe disse: — Deveria voltar para dentro. Depois de ter sobrevivido a tantas coisas, é uma tolice arriscar-se a pegar uma pneumonia. Antes que Kit pudesse replicar, surgiu uma luz em um dormitório situado na ala da casa perpendicular à zona em que eles se encontravam, e apareceu a silhueta de Kira aproximando-se da janela para fechar as cortinas. Antes que pudesse fazê-lo, Jason surgiu atrás dela e lhe rodeou a cintura com os braços. Kira se recostou contra ele e deixou cair a cabeça em seu ombro com total confiança. Lucien também viu a cena, e suas mãos agarraram com força a grade. Quando Kira se virou nos braços de Jason e ambos se beijaram com uma intensidade que cintilou através da noite, Lucien se voltou bruscamente e insistiu com Kit para que ela retornasse ao interior do quarto. Ela aceitou de boa vontade; aquele espetáculo de ternura era muito íntimo para ser contemplado por uma pessoa alheia, inclusive uma irmã gêmea. — Lamento que tenha tido que ver isso, Kit. Deve doer sentir-se excluída. — Olhou-a com um verde mais intenso nos olhos. — Veio para me ver porque se sentia abandonada e queria companhia enquanto Kira se reunia com seu amado? — Santo Deus, não! — Kit respirou fundo, sabendo que para romper a barreira da distância que Lucien opunha devia ser tão profunda como ele tinha sido ao construí-la. — Tem razão em dizer que ser um irmão gêmeo põe em alto nível a intimidade, mas eu creio que está equivocado em dizer que só os laços de sangue e uma infância compartilhada podem criar a verdad eira intimidade. Ser gêmeo é maravilhoso, e Kira e eu estamos tão unidas como podem estar duas irmãs. É óbvio que Elinor e você compartilhavam um amor igual de especial. Mas os gêmeos são irmãos, com todas as vantagens e limitações que isso implica. Espero, e tenho certeza de que assim será que a paixão possa criar um tipo de vínculo que talvez seja mais profundo. Eu desejo a intimidade tanto como você, Lucien. Supus que não me casaria nunca porque não acreditava poder encontrar esse tipo de laço emocional com um homem e não queria me conformar com menos. — Lhe quebrou a voz. — Eu... Eu nunca imaginei um homem como você. Nestas últimas semanas tenho descoberto que existe um tipo de intimidade que uma mulher só pode encontrar com um homem. Nos olhos de Lucien brilhou a angústia. Desejava-a. Kit estava segura disso, porque se delatava em cada centímetro de seu corpo. Mas sua intuição lhe dizia que ele já tinha abandonado toda esperança e tinha aceitado a negra paz da derrota. Estender a mão para agarrar o que ela lhe oferecera supunha abrir-se de novo à perda. Ao deixar que seu próprio medo e sua confusão se interpusessem entre ambos, Kit tinha convertido o amor em um risco que ele já não se atrevia a correr. Como os medos se converteram em uma barreira impossível de superar, tinha chegado o momento de invocar o assombroso poder da paixão. Levou uma mão à garganta, desabotoou a capa de pele da marta e a deixou escorregar pelos ombros em uma cascata de brilhante e escura pele. Debaixo usava ainda o traje de Mace, todo de cetim, couro e renda. Lucien ficou tenso ao sentir como se incendiava a atração sexual que sempre tinha havido entre ambos. — Não faça isto, Kit — disse, se contendo. — O sexo cria uma fantasia de intimidade que se desvanece tão depressa como o gelo ao sol. Faz anos que tenho descoberto que transar sem a possibilidade de algo mais profundo é um caminho seguro à desolação. — Você deveria saber melhor que eu, mas tenho certeza que a satisfação física é parte do que ambos queremos. O semblante de Lucien se endureceu. 230


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— Se o que quer é um companheiro de cama vá procurá-lo em outra parte. Não necessita de mim. — Você está equivocado — replicou ela com voz trêmula. — Durante toda minha vida, Kira sempre foi a pessoa essencial. Bom, também amei a minha mãe e Jane, e a outras pessoas, mas podia sobreviver, e de fato sobrevivi, depois de perdê-las. Tão somente a morte de Kira teria me deixado tão diminuída que já não poderia voltar a ser a pessoa que fui sempre. — Cravou seus olhos nos dele. — Agora há duas pessoas essenciais em minha vida. Necessito de você tanto como necessito de Kira, mas de um modo diferente. Você jamais ocupará um segundo lugar em meu coração, Lucien. Há espaço suficiente para dois. Ele sacudiu a cabeça em um gesto negativo, com a desolação aparecendo em seus olhos. — Ainda que nós dois quiséssemos o mesmo, não basta desejar para que ocorra. — Tem razão, não basta desejar. Devemos fazer que ocorra. — voltou-se para o interior de si e buscou a atração sensual que tinha aprendido quando fingia ser Cassie James. Então se aproximou de Lucien. As altas botas faziam de cada passo um exercício de provocação. O cetim negro reluzia sobre as curvas de seu corpo e seus seios se balançavam dentro da rede de fitas de couro. — Não poderíamos tentar ao menos uma vez mais? — Não sei se poderei suportar outro fracasso. — Lucien a olhou fixamente. Seu peito subia e descia como se tivesse corrido. Em seus olhos se lia um intenso desejo; entretanto, quando ela lhe estendeu a mão, ele não fez intento algum de aceitá-la. Kit se desesperou por um instante. E então se deu conta do que faltava. Abriu o coração e voltou a olhar em seu interior. Desta vez lhe ofereceu seu amor em silêncio. Mais tarde não poderiam recordar qual deles foi o primeiro em mover-se, mas se uniram entre si com selvagem abandono. A boca de Lucien se inclinou sobre a dela em um mudo grito de ânsia, solidão e esperança. Kit reconheceu seus torturados sentimentos, porque encontraram eco no mais profundo dela mesma. Quando ela lhe devolveu o beijo, foi um rogo e uma promessa ao mesmo tempo. O desespero existente entre ambos foi cedendo para dar mais lugar à primitiva chama da paixão. — Meu Deus, Kit — disse ele com a voz rouca enquanto desatava com dedos ágeis os laços deixava livres os seus seios, que caíram em suas mãos. — É mais do que um mortal pode resistir. — Então não... resista. O tecido se rasgou, os botões saltaram, as vestimentas caíram ao chão enquanto ambos procuravam instintivamente seus corpos nus com o mesmo ardor com que procuravam suas mentes. A cama rangeu a modo de protesto pela força de sua chegada. Depois veio a carne contra a carne, aromas profundos e fogo líquido, músculos em tensão e respirações agitadas. A paixão foi o instrumento, e a intimidade o objetivo. Nas ocasiões anteriores em que fizeram amor, Kit tinha se afastado, temendo perder-se em Lucien de forma irrevogável, mas desta vez não se retirou. Em lugar disso, abaixou todas as barreiras e não escondeu nada de si mesma. Nessa rendição encontrou a plena realização. Se Kira era seu outro eu, Lucien era sua alma. Lucien tinha temido aquela febril união quase tanto como a tinha ansiado, pois lhe aterrorizava que fosse somente uma união dos corpos que deixasse insatisfeito seu ser mais profundo. Mas desta vez tinha Kit por inteiro, seu amor iluminava os cantos escuros de sua mente, sua ternura era como um bálsamo para seu dolorido coração. Ela conhecia seus pontos fortes e seus pontos fracos, seus medos e suas esperanças, tanto como ele também conhecia os dela. E o amor que os unia era tão inconfundível como o próprio sol. A culminação física foi fulgurante, fogoso símbolo da fusão dos espíritos de ambos. Depois 231


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se deitaram de rostos colados e abraçados, a testa dela apoiada na bochecha dele, sua respiração ofegante contra seu cabelo. Ele mal se atrevia a mover-se, no caso daquilo ser um sonho de que pudesse despertar. Mas Kit era mais real que qualquer sonho quando inclinou a cabeça para trás e disse perigosamente: — Sabia que seus olhos se tornam de um dourado transparente quando estás feliz? Ele deu um lento sorriso, sabedor de que só Kit diria algo assim. — Me parecem de uma cor castanha, bem comum. — Em ti nada é comum — replicou Kit com convicção. Lucien deslizou a mão pela curva de suas costas nua, encantado com sua força e sua flexibilidade. — Embora você suspeitasse de que eu fosse um libertino, durante anos guardei um celibato quase absoluto, porque as satisfações do sexo eram breves, comparadas com a solidão que experimentava depois. Mas fazer amor com você é tão calmante como embriagador. — Inclinou a cabeça e lhe deu um rápido beijo. — Neste instante me sinto tão contente que me custa acreditar que alguma vez vamos precisar dizer algo em voz alta. Talvez simplesmente possamos ler mutuamente o pensamento. — Pode ser que não tenhamos que falar forçosamente, mas queremos fazer-lo. Eu adoro falar com você. — Acariciou-lhe a bochecha com o dorso da mão. — Adoro te olhar. Adoro fazer amor com você. — Piscou pensativa. — Mencionei que simplesmente te adoro, de corpo e alma? — Não, mas depois da forma em que fizemos amor, não precisa dizer. — Pegou-lhe a mão e a beijou. — O sentimento é totalmente mútuo, como sabe. — Sim — respondeu ela com plena felicidade. — Sei. Lucien lhe roçou a testa em um rápido beijo. — Você e eu encaixamos perfeitamente um no outro, minha querida tigresa. Nos dois preferimos nos esconder atrás dos bastidores a estar sobre o palco. Ela começou a rir. — Isso é certo. Kira e Jason são mais sociáveis. Lucien enroscou uma mecha do cabelo dela no dedo indicador. — O imóvel que beira Ashdown logo será posto a venda. Tinha a intenção de comprá-la e cultivar a terra e mais tarde dar em arrendamento a casa, mas talvez Jason se interesse por esse lugar. É uma boa propriedade e se encontra perto de Bristol, por isso serviria como base para seu negócio de transporte. — E assim Kira e eu poderíamos ser vizinhas durante o resto de nossas vidas — disse Kit em voz baixa. — Que idéia tão maravilhosa e generosa. — Estou sendo totalmente egoísta. Quanto mais feliz você estiver, mais feliz eu serei. O fugaz sorriso de Kit se apagou de repente. — Ainda me assombra que você me ame. E... creio que tenho um pouco de medo de te decepcionar quando me ver todos os dias. Uma boa parte do que viu corresponde a minha interpretação da personalidade de Kira mais que a minha verdadeira forma de ser. — Tolices — repôs ele com calma. — Não é só o mundo o que tende a definir os gêmeos idênticos como opostos, eles mesmos o fazem também. Você jamais poderia ter personificado Kira com tanta perfeição se não tivesse as mesmas qualidades dentro de você. Nestas semanas não estiveste representando um papel, tem descoberto sua própria natureza. Kit piscou atônita. — De verdade acredita nisso? — Não acredito, sei. — Desta vez ele lhe beijou a ponta do nariz. — Me alegro de que se 232


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retire como Cassie James, mas espero que siga dançando para mim. É uma cigana deliciosamente malvada. — Poderá desfrutar de uma apresentação privada cada vez que desejar. — Ainda me agrada a idéia de obter uma licença especial. Poderemos estar casados antes do Natal. — Um plano excelente, o melhor presente imaginável. — Kit se esticou languidamente e depois se acomodou mais perto dele. — E também é muito prático. Kira afirma que estou grávida. — colocou uma mão sobre o ventre. — É possível que esteja a caminho outra pessoa essencial. Aquilo tirou Lucien de sua lassidão. — De verdade? Se for certo, é uma notícia maravilhosa. — Apoiou a cabeça em uma mão e estudou o rosto de Kit. — Por que não me disse antes? — Queria que se casasse comigo porque me amasse, não porque tivesse que o fazer. Ele sorriu com tristeza. — É mais honrada que eu, Kit. Durante uma boa parte do que poderia chamar-se ridiculamente «nosso cortejo», tive o desejo completamente egoísta de te deixar grávida para que não tivesse mais remédio que aceitar minha oferta. — Pôs sua mão sobre a dela, sobre seu ventre. — Não sou um cara muito digno de admiração, como vê. — Eu sim sou — replicou ela, usando seu tom mais afetado ao estilo lady Kathryn. — Tenho toda a intenção de dedicar o resto de minha vida a te elevar tanto física como espiritualmente. — Falando de elevar fisicamente... Kit pôs-se a rir quando Lucien a fez rolar até situá-la em cima dele, e descobriu que o físico claramente estava elevado. Depois de acoplar-se a ele com um provocador movimento de quadris, perguntou em tom enrouquecido pelo amor: — Você acredita que teremos gêmeos?

Fim

NOTA DA AUTORA 233


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A sociedade denominada Os Irmãos do St. Francis de Wycombe foi fundada em 1752 por sir Francis Dashwood, um homem cujas grandes riquezas e enorme talento igualavam sua paixão pelo corrupto e seu gosto pelo escandaloso. O público em geral chamava o grupo Clube do Fogo do Inferno, e suas preocupações eram o sexo e o satanismo. Não tenho notícia de que alguns de seus membros fossem tão temíveis como os piores Demônios de Um Baile com o Diabo, mas como grupo eram brutais, egoístas e fatalmente imaturos. Entre os membros do dito clube se encontravam alguns dos homens mais influentes da GrãBretanha, ente eles lorde Sandwich, o Primeiro Lorde do Almirantado, e lorde Bute, um primeiroministro. É possível que Benjamim Franklin não fosse membro, mas sim que assistiu a algumas de suas orgias e pressionou os membros para tentar captar seu apoio às colônias americanas no princípio da década de 1770. Franklin e sir Francis Dashwood escreveram juntos um livro de orações que obteve grande êxito nos Estados Unidos e se converteu na base de muitos livros de orações modernos. O primeiro lugar de reunião do Clube do Fogo do Inferno foi uma abadia abandonada em uma ilha do Tamisa. A capela e o terreno circundante estavam cheios de obras de arte do mais obsceno. Por desgraça, anos mais tarde o lugar passou a ser de conhecimento público. Os visitantes percorriam o Jardim da Luxúria e se sentavam nas margens do rio a lanchar enquanto observavam como os monges chegavam até ali em sua balsa. Aquilo danificou bastante a inspiração do lugar. (Não, não inventei isso.) Dashwood criou um novo lugar de reunião escavando um en orme labirinto de cavernas (com um desenho sexual) no interior de uma colina de rocha que havia dentro de seu próprio imóvel, West Wycombe Park. Aquilo proporcionou a Dashwood a oportunidade de empregar sua fértil imaginação em formas de pornografia mais atuais. As festas dedicadas ao óxido nitroso efetivamente estiveram em moda em alguns círculos sociais durante este período. Devo agradecer a minha amiga Linda Moore Lambert por me haver proporcionado uma cópia de «Uma dissertação sobre as propriedades quím icas e o efeito revigorizante do gás óxido nitroso», escrito por um estudante de medicina da Filadélfia em 1808. Levou a cabo seus experimentos consigo mesmo, e ao que parece se divertiu bastante o fazendo. (Colocar-se para conseguir boas notas! Nem sequer em Berkeley faziam essas coisas.) Em um tom mais prosaico, o Tratado do Gante se assinou na Véspera de Natal de 1815 e pôs fim à guerra de 1812, de modo que Jason Travers não teve que manter-se escondido por muito tempo. Eu gostaria de terminar com um agradecimento muito especial para Ellen e Elizabeth De Money. Seus fascinantes e eloqüentes idea is a respeito dos laços entre irmãos gêmeos se converteram no núcleo psicológico de Um Baile com o Diabo.

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