Loretta chase the fallen women 01 a cortesã

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Loretta Chase A Cortesã

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The Fallen Women 01 James Cordier é inteiramente um aristocrata e um homem muito perigoso. É um mestre do disfarce, ladrão brilhante, amante insuperável — tudo pelo bem do rei e da pátria, — e, bem sabe Deus, que está farto de tudo isso. Sua última missão consiste em apoderar-se de um maço de cartas incriminatórias que estão em poder de uma célebre mulher. Depois disso poderá retornar a Londres e conhecer alguma herdeira de caráter doce, não uma mulher aventureira e em desgraça. Francesca Bonnard conseguiu superar um coração partido, o desdém e o escândalo. É independente, feliz e, sem dúvida alguma, uma mulher em desgraça; e aprendeu que os "cavalheiros" dão mais problemas do que são merecedores. E agora é consciente de que o seu novo e muito atraente vizinho não lhe trará mais do que problemas. Mas, por pior que seja James, há outros muito piores que também procuram as cartas de Francesca. E de repente tudo se torna complicado; sobretudo a quase incendiária química que surge entre as duas almas mais enfastiadas e pecaminosas da Europa. E, descobrem que pode valer a pena arriscar tudo para conseguir o verdadeiro amor.

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Prólogo Quero um herói... LORDE BYRON Dom Juan, Canto I Roma Julho, 1820 Subiu os degraus que conduziam ao seu dormitório, tirando a roupa pelo caminho. Marta Fazi era ágil, certamente. Com esses olhos escuros cravados nos de James, foi subindo os degraus de costas sem um tropeção. O tom azeitonado de sua pele ressaltou o branco de seus dentes quando, entre gargalhadas, tirou a máscara, o véu e a capa que ocultava o que supostamente devia ser um vestido: um pedaço muito fino, pouco mais que uma regata elaborada, com algumas fitas e laços fáceis de desatar. Manteve as esmeraldas: o pesado colar com o enorme pingente que se balançava entre os seios, os brincos combinando e o bracelete. James se deteve para tirar a jaqueta e levou certo tempo. A jogou sobre um ombro enquanto subia atrás dela, mantendo o tempo todo pose de mera curiosidade que usou como anzol. Acostumada a conseguir o que queria, Marta era incapaz de resistir a um desafio, e James não precisava se esforçar em sua interpretação para desafiá-la. Se pudesse escolher, não a tocaria nem mesmo com um pau muito longo. Mas como não existia essa opção, limitou-se a deixar patente sua reticência. Detalhe que, tal como esperava, feriu a vaidade da mulher. Era atraente, precisava admitir. Dizia-se que lorde Byron escreveu-lhe um poema, embora não para publicá-lo. Era o tipo de mulher que o poeta admirava: morena e apaixonada. O que Byron chamaria "um magnífico animal". Não gostava tanto desse tipo de mulher. Estava com trinta e um anos, e Marta não era sua primeira aventureira apaixonada, estrangeira, qualificada e sexualmente desinibida. Entretanto, se sobrevivesse a esse encontro, sim seria a última. Se não sobrevivesse, coisa igualmente provável, também seria a última. "Aconteça o que

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acontecer, saio ganhando", pensou James. Se não levasse a bom termo a missão, teria uma morte lenta e dolorosa. Não o honrariam como a um herói. Ninguém saberia que morreu tentando salvar o mundo. Certamente ninguém chegaria a encontrar seu cadáver... ou o que restasse dele. "Pelo maldito rei e a maldita pátria — disse a si mesmo quando a porta fechou atrás dele. — Uma última vez." Tirou o colete e o deixou, junto com a jaqueta, sobre uma cadeira próxima à porta enquanto continuava avançando e ela retrocedia sem pausa para a cama. Era evidente que conhecia o caminho de costas e na penumbra, embora o dormitório não estivesse totalmente na escuridão. Os criados deviam ter passado antes por ali, porque havia velas acesas. E deviam saber que ela esperava companhia, porque só acenderam duas. De toda forma, essa luz bastou para refletir a brancura dos dentes dela quando separou os lábios. E bastou para que as esmeraldas reluzissem e para arrancar brilhos irisados aos pequenos diamantes que as rodeavam. Até sem luz, James teria adivinhado sua posição, pois o perfume da mulher alagava o quarto com um toque muito adocicado, como o das rosas murchas. Marta acariciou os voluptuosos seios com as mãos e as deslizou até os quadris. Seu corpo era magnífico, e ela sabia. — Está vendo, não te escondo nada — disse Marta. — Me entrego completamente a você. Sua dicção indicou que passou a maior parte de sua vida no sul da Itália e que recebeu muito pouca, mas pouquíssima, educação. Também detectou um sotaque, de sua terra natal, Chipre, sem dúvida alguma. Como a sua, a herança de Marta Fazi era mestiça; entretanto, em seu caso falava um italiano, a língua de sua mãe, perfeito. Dado que herdou o cabelo negro e encaracolado de sua mãe, e o perfil aquilino de seu avô materno, Marta não suspeitava que fosse o filho de um aristocrata inglês, além de um agente do governo de Sua Majestade. Ao final das contas, James Cordier era um impostor muito maior que a incitante pantera que estava diante de si. A questão era assegurar-se de que ela não percebesse. — Não de tudo — observou enquanto desabotoava as calças. — Estas pedras são bonitas, mas sua beleza não necessita de enfeites e sabe muito bem. Sem mencionar que as pesadas joias seriam um incômodo durante um bom balanço.

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"Verá como fica caolha quando essas pedras brutas atingirem um olho" poderia ter dito, empregando a linguagem pouco refinada que aprendeu durante sua infeliz juventude. Ouviu ela rir. — Ah, uma adulação por fim. Acreditei que jamais o ouviria de seus lábios. Tirou as calças. — A imagem que tenho diante de mim me estimula a língua — lhe assegurou. — Bem — baixou o olhar. — E já vejo que seu homenzinho também se sente estimulado. É obvio que estava. Embora estivesse farto das mulheres como ela, não deixava de ser um homem e ela era uma mulher muito excitante. As mais letais costumavam ser. A viu tirar os brincos, que deixou sobre a mesinha de noite. A seguir o bracelete e o deixou cair ao lado dos brincos. Ele tirou a camisa pela cabeça. Percebeu que Marta estava tentando tirar o colar. — Me deixe tirá-lo — lhe disse. Era um fecho antigo, certamente o original, e requeria muito tato e um bom olho. O conjunto não foi desenhado para um jantar ordinário, mas sim para jantares de Estado. Foi criado para uma rainha há mais de dois séculos. Seus proprietários atuais, expulsos por Napoleão, tiveram que esconder seus tesouros e fugir para um lugar seguro. Os tesouros estavam a caminho de seu novo lar, protegidos por uma pessoa de confiança, quando Marta e dois cupinchas disfarçados de monges, as roubaram. A antiguidade e a história das esmeraldas não tinham a menor importância para ela. Marta Fazi cresceu nas ruas. Sabia ler, embora com muita dificuldade, e era amoral e implacável. Tinha fraqueza pelos homens bonitos e adorava as esmeraldas. Isso era a única coisa que sabia dela e a única coisa que precisava saber para realizar o trabalho que lhe encomendaram. Conseguir as joias, sair da casa, devolvê-las aos seus verdadeiros donos e deixar para que os diplomatas se encarregassem dos detalhes. Uma vez que as joias ficaram amontoadas sobre a mesinha de noite, James entrou em ação. Ou melhor, se lançou ao combate. Ao fim e ao cabo, embora pertencesse a um exército que ninguém reconhecia, era um soldado. Ninguém pendurava medalhas ao peito de homens como ele, nem tampouco os mencionavam na correspondência oficial.

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E se o capturassem ninguém iria resgatá-lo. "O melhor, querido Jemmy, é que, faça o que fizer, nunca deixe que o apanhem", disse-se. Continuando, começou a dar a essa mulher o que queria, e de mão cheia. Sentisse o que sentisse por seu trabalho, ao menos seguia sendo capaz de desfrutar de uma mulher atraente e apaixonada como qualquer outro homem. Quando por fim pareceu ficar saciada, ao menos de momento, sussurrou: — Morro de fome. E você? — Ah, sim — murmurou Marta. — Vinho, algo de comer... assim recuperaremos as forças. A campainha do serviço está ao seu lado. — Melhor que sigam dormindo — disse. — Prefiro me encarregar de minha comida. Ela soltou uma gargalhada sonolenta. — Com certeza. Soube que era um caçador assim que o vi. "Que bem me impregnaste", pensou James. Levantou da cama. Tinha as calças à mão, já que se assegurou de que assim fosse. Vestiu antes de agarrar a camisa. De costas para ela, passou pela cabeça antes de pegar as joias da mesinha de noite, aproveitando o movimento do tecido para ocultar o que estava fazendo. O resto foi absurdamente simples. O dossel da cama impediria Marta de ver a porta e a cadeira onde deixou o colete e a jaqueta. Recolheu os objetos e saiu do dormitório. Qualquer outro teria esperado que ela dormisse para partir. Ele, em troca, era da opinião de Macbeth: "Se tudo acaba quando se faz, será melhor fazer rápido!". O melhor seria se retirar rapidamente. Marta não demoraria a perceber que as joias desapareceram, e fatalmente levaria em conta a traição. O último homem que a incomodou perdeu suas partes íntimas. Perdeu-as muito devagar, pedacinho a pedacinho. Talvez dispusesse de uns minutos para escapar. Talvez só de uns segundos. Desceu a escadaria a toda pressa. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete... — Detenham-no! — ouviu-a gritar. — Agarrem! Quebrem suas pernas! James acabava de deixar atrás o patamar quando viu que um tipo muito corpulento subia a escada. Estendeu um braço para o lado e o esticou com todas suas forças. O criado o viu muito tarde. O musculoso braço acertou diretamente no pomo-de-adão. Caiu de costas e rodou degraus abaixo até aterrissar de cabeça.

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No alto da escadaria, Marta Fazi chamava a gritos aos seus homens em grego, lhes dizendo que não o matassem que tinha planos para ele. Uma faca passou roçando por sua cabeça. Em um claro grito, Marta descreveu o que lhe faria, e as partes que cortaria primeiro. James pulou sobre o corpo inerte do criado e atravessou correndo o vestíbulo em direção à porta. Ouviu que alguém abria uma porta de repente e outro dos sequazes de Marta saiu em sua perseguição. Voltou a estender o braço com toda sua força, mas nessa ocasião acertou no rufião um golpe no peito. Os joelhos do tipo dobraram e caiu de costas. Ouviu-o lançar um grito de dor. Certamente havia quebrado um joelho. Claro que seus gritos eram nada em comparação com os de Marta. James seguiu correndo. Saiu pela porta apenas um instante depois. Em um abrir e fechar de olhos, se fundiu com a noite.

Capítulo 01

Alguma vez viu uma gôndola? Por temer que não o tenha feito, descreverei isso em detalhes: é uma embarcação larga muito comum aqui, com a proa esculpida, ligeira, porém compacta; conduzida por dois remadores chamados “gondoleiros”, desliza-se sobre a água com um aspecto tétrico igual um caixão transportado em uma canoa, e não se pode ver nem ouvir o que acontece em seu interior. LORDE BYRON Beppo Veneza Terça-feira, 19 de setembro de 1820 Pênis. Em toda parte.

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Francesca Bonnard observava o teto pensativamente. Alguns séculos antes a família Neroni se deixou levar pela febre ornamental. As paredes e tetos do palácio que alugou estavam cobertos por um impressionante desdobramento de frutas, flores e cortinados esculpidos em gesso. Mas o mais fascinante eram os bebês com asinhas que os italianos chamavam putti. Engatinhavam pelos tetos, sob as cortinas de gesso subindo por suas dobras, procurando Deus sabe o que. Grudavam-se às molduras dos afrescos e aos medalhões dourados que adornavam as molduras das portas. Sua presença eclipsava as quatro mulheres de busto nu recostadas nos cantos e aos quatro homens musculosos que aguentavam o peso das paredes. Todos eram meninos e todos estavam nus. Daí que ao olhar para o teto a vista predominante era os pênis. Pênis diminutos cujo número subia a quarenta a última vez que contou, embora agora parecesse haver mais. Reproduziam-se de forma espontânea? Ou estariam fazendo das suas as damas voluptuosas e os viris adultos quando não havia ninguém no palácio? Ao longo dos três anos que estava em Veneza, Francesca entrou em um bom número de residências ostentosas. Entretanto, a sua era campeã quanto ao excesso ornamental; sem mencionar a incrível profusão de órgãos reprodutores masculinos imaturos. — Não deveria me importar — disse — mas chamam muito a atenção. As primeiras visitas que recebi depois de me instalar passaram todo o tempo contemplando boquiabertas as paredes e os tetos. Depois de meditar longamente sobre o assunto, cheguei à conclusão de que ocorreu a Dante escrever seu Inferno depois de fazer uma visita ao palácio Neroni. — Que olhem o quanto queiram — observou sua amiga Giulietta, que, queixo na mão, contemplava o ambiente sentada em uma poltrona. — Enquanto as visitas estão distraídas olhando os putti, você pode observá-las com prazer sem temor de que a tachem de grosseira. Francesca e Giulietta se complementavam a perfeição quanto à aparência. A primeira era alta e de aspecto exótico; a segunda, baixa e de aparência doce. Giulietta tinha o rosto em forma de coração e inocentes olhos castanhos que lhe davam o aspecto de uma jovenzinha. Entretanto, tinha vinte e seis anos, um menos que Francesca, embora em experiência se pudesse dizer que a superava em séculos. Francesca Bonnard sabia muito bem que ninguém a pontuaria de doce. Herdou os traços faciais de sua mãe, que se destacavam os olhos com sua incomum cor verde e forma amendoada. Seu abundante cabelo castanho era herança de sua avó paterna, uma dama

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francesa. O resto procedia de Sir Michael Saunders, o descarado de seu pai, e de seus antepassados. Os Saunders eram altos e ela assim era; ao menos comparada com a maioria das mulheres. Esses centímetros a mais a render o apelido de "Giganta" e "a Amazona" nas ofensivas caricaturas que inundaram os jornais durante seu processo de divórcio. Passou-se cinco anos desde seu divórcio, que pôs fim a seu matrimônio com John Bonnard — que acabava de obter o título de barão fazia pouco tempo, de modo que nesses momentos era conhecido como lorde Elphick — que igualmente pôs fim a todas as tolices que naquele tempo acreditava sobre os homens e sobre o amor. A essa altura da vida se conduzia com a cabeça bem alta, com porte orgulhoso e vestida a todo o momento para ressaltar todas e cada uma das curvas de sua voluptuosa figura. Os homens a traíram e abandonaram no passado. Já não o faziam. Nesse momento se prostravam de joelhos suplicando sua atenção. De fato, aquele dia aguardava a visita de vários cavalheiros, impulsionados por esse rápido propósito. Daí que não estivesse conversando com sua amiga em seu gabinete particular, uma estadia menor e menos opressiva, contígua a seu quarto de vestir. O gabinete, virtualmente livre de putti, era muito mais cômodo, mas estava reservado aos íntimos e ainda não decidiu quem subiria a dito status dentre os cavalheiros que estavam por chegar. Não sentia vontade de tomar esse tipo de decisão. Abandonou o sofá onde esteve recostada (uma postura que teria horrorizado sua governanta) e se aproximou da janela. O canal que corria abaixo não era o Grande Canal, só uma das vias secundárias ou rii, como os chamavam os venezianos, que conectavam como um labirinto as diferentes zonas da cidade. Embora sua residência não estivesse muito longe do Grande Canal, a vizinhança era uma das mais tranquilas de Veneza. A tranquilidade era interrompida essa tarde pelo repicar da chuva no balcão e, de vez em quando, pelas rajadas de vento que açoitavam os vidros. Olhou para o exterior e piscou. — Pelo amor de Deus, acredito que aí em frente há sinais de vida. — Na Ca' Munetti? De verdade? Giulietta ficou em pé para reunir-se a ela na janela. Entre a chuva viram que uma gôndola se detinha no embarcadouro da casa na borda oposta do estreito canal.

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Francesca sabia que o termo "Ca'" era o diminutivo de "casa". No passado só o Palácio Ducal ostentava o título de palácio, de modo que as demais residências eram casas. Na atualidade, não obstante, qualquer casa era um palácio, fosse grande ou pequena. A construção que tinha em frente poderia denominar-se dessa maneira sem problemas. A fachada voltada para o canal era similar à sua, já que contava com um embarcadouro pelo qual acessava ao vestíbulo da planta baixa e ligado ao portão da rua posterior. Os balcões do salão, situado no primeiro piso, estavam orientados para o canal. No segundo andar se encontravam as dependências privadas; e ainda por cima, no terceiro piso, os aposentos dos criados. Ca' Munetti estava a um ano desocupada. — Um único gondoleiro — disse. — E dois passageiros, ao que parece. É a única coisa que distingo com este dilúvio. — Não vejo nem rastro de bagagem — assinalou Giulietta. — É possível que enviassem com antecipação. — Mas a casa está às escuras. — Isso significa que ainda não contrataram criados. A família Munetti levou os criados quando se mudou. Embora não tivessem tantos problemas econômicos como o resto da nobreza veneziana, a vida em Veneza ficou muito cara e aborrecida em razão dos austríacos que governavam a cidade. Assim como os donos do palácio Neroni, preferiram alugar sua casa aos estrangeiros. — É estranho que venha a Veneza nesta época do ano — disse Giulietta. — Talvez a tenhamos colocado na moda — aventurou Francesca. — Ou, o mais provável e seguramente são estrangeiros, não sabem o que os espera. Todos os que podiam se permitir abandonavam a cidade durante o úmido verão e se mudavam para suas vilas no mês de julho. Ninguém costumava retornar de sua casa de veraneio, das férias de verão, antes de 11 de novembro, o dia de São Martín, celebração que marcava o início oficial do inverno. Francesca abandonou a vila que o conde de Magna tinha em Mira antes do tempo, devido a uma briga com lorde Quentin, um convidado inglês. Aqui, em sua própria casa, podia fazer o que quisesse sem que ninguém especulasse sobre sua pessoa como se não houvesse outro entretenimento melhor. De toda forma, nunca lhe agradou a vida campestre. Preferia a cidade. Em ocasiões inclusive sentia falta de Londres, embora não tanto como no princípio. Claro que jamais admitiria que tivesse saudades a algo relacionado com a Inglaterra.

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Nesse momento entrou um criado e se dispôs a preparar a mesa para o chá. — Arnaldo, sabe algo sobre a CA' Munetti? — perguntou-lhe. — A bagagem foi enviada com antecedência e chegou ontem à última hora da tarde — respondeu o criado. — Pouco mais. O gondoleiro contratado, Zeggio, é primo da prima de nosso cozinheiro. Segundo ele, o novo inquilino está aparentado com os Albani e quer estudar com os monges armênios, como seu amigo lorde Byron. Giulietta a olhou com as sobrancelhas arqueadas e ambas se puseram a rir. — Byron estudou com os monges armênios — recalcou Giulietta, — mas não tinha nem um cabelo de monge. — Só têm dois criados... — disse Francesca, enquanto via que a porta da casa se abria. — É possível que o novo inquilino seja veneziano — acrescentou Giulietta. — São muito pobres para poder se permitir uma criadagem numerosa. Só os estrangeiros e as putas podem permitir-se ter um bom serviço. Arnaldo saiu e elas passaram do italiano ao inglês. — Meu novo vizinho poderia ser um estrangeiro miserável — disse ela — ou um ermitão. — Nenhuma das duas possibilidades o faz apto para nós. — Certamente que não — concordou Francesca enquanto explodia em gargalhadas. Sua risada era tão famosa como seu incomum físico; talvez inclusive mais. Depois que o divórcio a expulsou dos círculos respeitáveis da sociedade, aprendeu a manipular os homens. E aprendeu rápido. Fanchon Noirot, sua mentora francesa, afirmava que possuía o dom. A lição mais valiosa que aprendeu com ela foi como falar com os homens. Ou, para ser mais exato, como escutá-los. Entretanto, quando Francesca Bonnard ria, os homens a escutavam e se esqueciam de todo o resto. — Quando ri — havia dito Byron — os homens contêm o fôlego. — Se contivessem outra coisa, seus bolsos agradeceriam — foi sua réplica. E Byron pôs-se a rir, porque, embora triste, era verdade. Francesca Bonnard era uma cortesã, e tão cara que poucos homens podiam permitir-se mantê-la. Lorde Byron não era um deles. Enquanto isso, na outra margem do canal... De todas as cidades do mundo, essa mulher precisava vir parar em Veneza... Terrivelmente incômoda.

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E úmida, para piorar as coisas. A gôndola em que James viajava partiu do porto sob uma garoa e atravessou o Grande Canal sob uma chuva torrencial tão intensa que o obrigou a fechar as portas batentes do felze, a cabine da embarcação. A única coisa que vislumbrava pela fresta eram as imagens imprecisas das casas e dos pilares de pedra dos embarcadouros. Não se ouvia absolutamente nada, salvo o repicar da chuva no teto da cabine e na cobertura da gôndola. Nesse momento quase podia imaginar que estava no Submundo em que seus antepassados romanos acreditavam; que a gôndola sulcava as águas do rio Estigio, entre as almas dos mortos. A imaginação ficou cara a cara com a crua realidade, ou melhor, caiu na água, quando ouviu que o tamborilar dos remos contra a água reverberava a seu redor e a voz do gondoleiro anunciava: — Ponte de Rialto. O gondoleiro se chamava Zeggio. A primeira vista parecia muito jovem para ser um guia, muito bonito para realizar trabalhos pesados e muito inocente para que alguém levasse a sério. Essa aparência explicava por que seus associados o consideravam o melhor guia da cidade. Em realidade, Zeggio estava com trinta e dois anos, há muito que deixou para trás sua inocência e essa não era a primeira vez que contava com seus serviços. Era um agente local altamente recomendado. Entretanto, aspirava a converterse na versão veneziana de James Cordier. Pobre desgraçado. Abandonaram o Grande Canal e se enfiaram em outro menor, e depois tiveram que internar-se em outro mais estreito ainda, antes de deter-se na Ca' Munetti. — Ah, Veneza...! — exclamou James enquanto contemplava a vista (o pouco que via) a seu redor. Os edifícios e as gôndolas só eram escuras manchas disformes sob a chuva. — Maravilhosa, sem dúvida, salvo pela umidade. Seu criado, Sedgewick, resmungou algo ao ouvi-lo. Era um tipo baixo e de aspecto tão comum que ninguém quase nunca costumava reparar nele. Crasso engano, e o último para muitos. — O que disse, Sedgewick? — perguntou-lhe. — Que gostaria de estar na Inglaterra — murmurou seu antigo criado. — E quem não? — respondeu James. Na Inglaterra faria mais frio e os dias seriam muito menos ensolarados que em Veneza, mas apesar de tudo estariam na Inglaterra, não em outro ditoso país cheio

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de estrangeiros. Embora não podia se considerar um estrangeiro em Veneza precisamente. Sua mãe estava aparentada com a metade das famílias importantes da Itália e sua linhagem era tão distinta como a de seu pai, lorde Westwood. Veneza, entretanto, não era a Itália. Era... Veneza. A gôndola se deteve no embarcadouro do palácio e James ergueu a vista para a casa situada em frente à sua, onde ela vivia. Ela era, nem mais nem menos, Francesca Bonnard, filha do infame e falecido sir Michael Saunders, o estelionatário; ex-esposa de lorde Elphick, reconhecido por todos como a comparação da moral; e na atualidade, a puta mais cara de Veneza. Para alguns, ganhar esse último título carecia do brilho que despertava uns... trezentos anos antes. Veneza perdeu a posição proeminente que ocupava no mundo, sobretudo nas últimas décadas. A Bonnard, como era conhecida na cidade, entretanto, ostentava a fama de ser a mais cara das damas de sua índole de toda a Península e possivelmente de toda a Itália. Alguns inclusive afirmavam que do continente inteiro. A pergunta, portanto, era o que perdeu a rainha das cortesãs em Veneza. A decantada famosa cidade era pobre, grande parte das famílias da nobreza a abandonou e a afluência de visitantes ficou reduzida a um patético gotejar. Por que não partiu para Paris, cidade onde alcançou sua fama três ou quatro anos antes e onde poderia escolher sua seguinte vítima dentre uma multidão de enriquecidos cavalheiros? Ou a Viena? Ou, ao menos, a Roma ou a Florença? Acabaria descobrindo a resposta cedo ou tarde, caso fosse necessário. E melhor que fosse cedo, porque tinha planos e essa mulher os interrompeu. Depois de recuperar as esmeraldas das mãos de Marta Fazi e entregar a seu legítimo dono, este assinou um importante tratado com a Inglaterra em reconhecimento pelo favor prestado. Para James foi atribuída uma suculenta recompensa. Supostamente, essa seria sua última missão. Supostamente, devia estar a caminho de casa para desfrutar de uma aposentadoria merecidíssima. Mas não. Estava mandando ao inferno a ex-esposa de lorde Elphick quando a porta do palácio se abriu e a gôndola se deteve no embarcadouro. Desembarcou diretamente nas lajes de pedra e mármore do andar térreo. As paredes estavam forradas de madeira escura. A sala era muito fria e o cheiro de

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umidade impregnava tudo. Seguiram Zeggio escada acima em direção à planta principal e se detiveram ao chegar a um amplo átrio, ou pórtico, como chamavam os venezianos, que se estendia de um lado a outro da casa. Saltava à vista que seu fim era impressionar o visitante. Uma fileira de lustres pendurava do centro do teto e ao longo de uma das paredes imensos candelabros se alinhavam sobre seus respectivos consoles, confeccionados com o famoso e impressionante cristal de Murano. Quando as velas estivessem acesas, sua luz ressaltaria de forma magnífica os tons dourados, o baixorelevo das paredes, as esculturas e os quadros. — E tudo isto, em cima da água... — disse Sedgewick, meneando a cabeça enquanto jogava uma olhada a seu redor. — Digo: que tipo de gente vai e constrói uma cidade em um grupo de ilhas no meio de uma zona pantanosa? — Italianos — respondeu James. — Há um motivo pelo qual antigamente dominaram o mundo e outro pelo que Veneza dominou os mares. Ao menos deveria reconhecer sua genialidade na hora de construir. — Reconheço que procuravam um modo fácil de contrair a malária — contrapôs. — E o tifo. — Mas nesta época do ano não há doenças — assegurou Zeggio. — A malária chega no verão e o tifo na primavera. Estamos na época mais saudável do ano. — Bom, sempre fica a febre dos pulmões — assinalou Sedgewick. — As infecções severas de garganta. As congestões pulmonares... — Esse é meu Sedgewick — atravessou James. — Sempre olhando o lado positivo da vida. Zeggio os conduziu através do grande saguão para um dos cômodos voltados para o canal. — Logo verão — insistiu. — Veneza é mais agradável que qualquer outra cidade de terra firme durante o outono e o inverno. Por isso todo mundo volta no dia de San Martín. Todos, salvo ela. Antes de retornar à cidade estava em Mira, na vila de veraneio do conde de Magny, um amigo de sua etapa parisiense e possivelmente um antigo amante... que ainda o era. Havia rumores contraditórios a respeito. O problema era que no fim de agosto e depois de manter uma série de conversas com o superior de James, lorde Quentin, a "dama" deixou Magny aos cuidados de belezas nativas da população e retornou à Veneza com toda sua bagagem. Como Quentin foi incapaz de persuadi-la a lhe entregar certas cartas que estavam em seu poder e um bom número de agentes foram incapazes de consegui-

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las utilizando outros métodos menos diretos, Sua Excelência insistiu que James voltasse ao trabalho antes que seus baús estivessem sequer no porão do navio que o levaria a Inglaterra... distante de uma vez por todas das conspirações, dos assassinos e das putas desumanas. Quando foi a última vez que falou com uma pessoa respeitável e normal, que tivesse segredos normais e comuns? Quando foi a última vez que esteve entre um grupo de homens e mulheres que não tivessem nada que ver com os aspectos mais sórdidos da existência humana? Quando foi a última vez que olhou aos olhos a uma mulher inocente que não fosse sua irmã? Não lembrava. Seu olhar percorreu o cômodo onde se encontrava. Embora as sedas, os veludos e o tom dourado abundavam em toda parte, o salão era muito mais modesto que o pórtico. E mais acolhedor em um dia tão atipicamente frio, já que acenderam o fogo antes que eles chegassem. Entretanto, em conjunto tinha um ar apagado. — Passado de moda e opaco — sentenciou Sedgewick depois de olhar tudo com olho crítico. — Veneza é como uma formosa cortigiana, como uma cortesã... — Zeggio fez uma pausa e franziu o cenho como se estivesse procurando as palavras adequadas, — na hora da dificuldade. — Em tempos difíceis — o corrigiu James. — Em tempos difíceis — repetiu o gondoleiro, depois do que repetiu umas quantas vezes mais, mas em voz baixa. — Entendo. É o mesmo, mas não é igual. James se aproximou de uma janela para olhar do outro lado do estreito canal. Uma silhueta feminina passou diante de uma janela iluminada no palácio vizinho e retornou pouco depois para se deter atrás do vidro. Embora a chuva obscurecesse tudo e por costume se mantivesse sempre afastado da luz, sem mencionar que o traçado da janela o mantinha virtualmente oculto, se escondeu nas sombras. — A senhora está em casa hoje — informou Zeggio, que se aproximou da janela. — Sua amiga também estará com ela. Sim, justamente como pensava. Essa é a gôndola da senhorita Sabbadin. Tomam juntas o chá quase todos os dias. São assim. — Elevou uma mão e uniu os dedos indicadores e médio. — Como irmãs. As amigas de madame a seguiram a Veneza, porque quando ela parte, qualquer lugar é aborrecido. Mas aqui nunca nos aborrecemos. Embora estejamos em meados de setembro, temos ópera, balé, peças de teatro. E pouco depois de Natal, o carnaval. James manteve a vista cravada no exterior.

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— Sedgewick, se o carnaval começar antes de partirmos — disse, — faça o favor de atirar em mim. — Sim, senhor — respondeu o criado. — Nesse caso suponho que quer pôr mãos à obra imediatamente. James assentiu com a cabeça. — Zeggio, averigua aonde irá esta noite. Quero me vestir adequadamente. — A Fênix, sem dúvida — respondeu. — Ah, sim. O esplêndido teatro de Veneza — disse James. — O melhor lugar para brilhar. — É que esta noite representam La Gazza Ladra — explicou Zeggio, — a obra de Rossini. — A Gralha Ladra — traduziu James para que Sedgewick entendesse, já que entre os numerosos talentos deste não se encontrava o dom para línguas. — Sempre, sempre vai a essa ópera — disse Zeggio. — Mas perguntarei para estar seguro. Depois providenciarei alguém para levá-lo ao seu camarote e os apresente, de acordo? — Não quero ter contato com ela até conhecê-la melhor — advertiu. — Primeiro quero estudar o terreno; alguns dias bastarão. — O chefe quer vigiar seus movimentos para conhecê-la melhor — explicou Sedgewick. — Mas as mulheres nunca foram um problema para ele. Estou seguro de que a enrolaremos muito em breve. — É melhor — assinalou James justo quando uma gôndola enorme conduzida por dois remadores se aproximava do palácio Neroni. — Quem é? Zeggio observou um instante. — Ah, esse! Chegou poucos dias depois que ela voltou. É o príncipe herdeiro de Gilenia. Muito bonito com seus cachos loiros. Um pouco bobo, mas dizem que madame sente predileção por ele. Gilenia era apenas um pontinho invisível no mapa da Europa, mas parte do trabalho de James era conhecer todos esses pontinhos invisíveis. — O príncipe Lurenze — disse. — Um moço de vinte e um anos não mais, certo? — Com todo o respeito, senhor, você tinha seis anos menos quando foi recrutado — recordou Sedgewick. — Certo — confirmou Zeggio. — O senhor Cordier é uma lenda. Eu quase acreditava que era um mito até que o vi pessoalmente. — Entre o problemático filho de um aristocrata inglês e o herdeiro de uma das monarquias mais antigas da Europa há uma considerável diferença — apontou ele.

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— Os membros das casas reais estão muito mais protegidos. E os membros da casa real de Gilenia estão protegidos entre algodões. Surpreende-me que seus pais tenham permitido voar longe do ninho. — Enviaram-no com um numeroso séquito — disse Zeggio. — Todos os diplomatas tentam ganhar seus favores. Essa é uma das dificuldades que tem com as damas: nunca está sozinho. — Isso deve lhe assegurar experiências muito interessantes nas dependências íntimas das damas — observou. — Se por acaso tem alguma, coisa que me parece pouco provável. — Acredita que o moço é virgem? — perguntou Sedgewick. — Não apostaria nisso — respondeu. — Mas suas experiências nesses assuntos serão muito limitadas. — Fez um gesto sem importância. — Não nos causará problemas. E se Magny seguir em sua vila como o resto das pessoas sensatas, tampouco prevejo dificuldades de sua parte. — E a dama? — perguntou Zeggio. — Ah! O chefe nunca tem problemas com as damas — respondeu Sedgewick. — Nenhum. Enquanto isso, em Londres... John Bonnard, o barão Elphick, estava sentado atrás de sua mesa de escritório. Embora já tivesse completado quarenta anos, seu cabelo loiro escuro seguia sendo abundante, olhos esverdeados claro, e virtualmente tinha todos os dentes. Em definitivo, apesar da sua baixa estatura e sua compleição magra, era considerado como um dos homens mais atraentes da Inglaterra. Se as pessoas tivessem oportunidade de ver o homem que existia atrás da fachada, talvez mudassem de opinião. Nesse momento guardava bastante semelhança com seu eu interior, já que observava carrancudo a carta diante de si. O papel estava enrugado, como se o tivesse amassado em uma bola várias vezes antes de voltar a alisá-lo. A maioria das cartas procedentes de sua ex-esposa tinha o mesmo destino. Embora por estranho que parecesse, nenhuma acabava no fogo. Frente a ele estava uma mulher morena baixa, que observou a carta um instante antes de olhá-lo à face. A expressão da Johanna Ide era a de alguém que observou a mesma cena em incontáveis ocasiões. Entretanto, não chegou a revirar seus formosos olhos. A amante de Elphick, posto que ocupava há mais de vinte anos (juntamente com o de cúmplice em todas suas conspirações), era muito consciente de que nesse caso em particular os planos

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não saíram tal como ambos esperavam que saísse. Elphick recebera outra carta de sua esposa. E, como era habitual, o pôs de mau humor. — Essa cadela — espetou. — Sei, querido, mas dentro de pouco tempo não te causará nenhum problema mais. — Certamente que não — concordou ele. — Tudo está preparado. Esta manhã me chegou uma mensagem. Marta Fazi já saiu da prisão. Foi difícil, tanto tempo e dinheiro, porém, está feito, assim já deve estar a caminho de Veneza, se já não chegou. Nesse momento Johanna franziu o cenho. Sabia que Marta Fazi era uma das muitas mulheres que Elphick utilizou ao longo dos anos. Cada uma delas acreditava ser a única que Sua Senhoria amava realmente. Ela, que estava a par da verdade, encorajava tais relações. Era parte do negócio que ambos tinham entre mãos e dito negócio não era outro que o de angariar poder. Se não fosse assim, teriam cometido a tolice de se casarem muitos anos antes. Mas, como eram ambiciosos, almas gêmeas em todos os aspectos, contraíram matrimônio com outras pessoas. Na atualidade ela era viúva e ele estava divorciado. Entretanto, titubeavam na hora de casar-se já que preferiam quando obtivessem o objetivo final: que Elphick ocupasse o cargo de primeiro-ministro e que sua ex-esposa estivesse fora de combate. Definitivamente, só se casariam quando estivesse completamente segura de que ninguém mais conhecia o homem que se escondia por trás dessa fachada, porque não tinha a menor intenção de sofrer as consequências estando ao seu lado, em caso de que viesse à luz. — Sei o que está pensando — disse lorde Elphick. — Prefere que tivesse contratado outra pessoa para recuperar as cartas. — Fazi é virtualmente analfabeta — assinalou Johanna. — Reconhecerá minha letra — afirmou, — enviei a ela muitas cartas de amor para que a conheça. Dirão a ela os nomes que deve procurar. Isso é a única coisa que precisa saber. — Recorda que está um pouco desequilibrada. — Me é indiferente o que faça a Francesca desde que recupere as cartas — replicou ele. — Sou da mesma opinião, querido, asseguro isso. Entretanto, gostaria de me assegurar de que Marta tem as cartas antes que sua ex-esposa sofra um acidente

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fatal. — Marta não costuma matar outras mulheres — assegurou Elphick, cujo olhar voltou para a carta. — O mais provável é que desfigure o precioso rosto de Francesca. Isso fará que todos os amantes ricos dessa azeda saiam espavoridos. Os amantes ricos eram o verdadeiro problema. Cinco anos atrás Francesca Bonnard roubou desse mesmo escritório um maço de cartas que, ao cair em mãos de alguém que soubesse como decifrar a correspondência que mantinham os agentes secretos dos diferentes países, seriam letais. Por sorte, na época em que as roubou, Francesca era a mulher mais odiada e desprezada de toda Grã-Bretanha. Se tivesse tentado trazer à luz as décadas que levava seu marido negociando com os franceses, ninguém teria acreditado nela. Todos teriam pensado que as cartas eram falsificações, uma tentativa desprezível de sua parte de arrastar pela lama em que ela terminou um marido que já havia abusado amplamente. Inclusive este poderia ter apresentado acusações de difamação e revolta contra ela. Entretanto, Francesca não cometeu esse engano. Limitou-se a partir ao continente, onde se converteu em uma puta enquanto John Bonnard continuava escalando posições em sua escalada até acabar obtendo um título de barão. Claro que ao longo do caminho fizera um ou outro inimigo, e essas pessoas estavam procurando o modo de desacreditá-lo. Um de seus inimigos mais perigosos, lorde Quentin, estava na Itália. E isso não pressagiava nada bom. Para piorar a situação, sua ex-esposa também escalou posições no mundo em lugar de afundar-se na miséria e de morrer empobrecida, doente e louca como Johanna e Elphick esperavam que acabasse. Francesca se acotovelava com homens influentes. E se converteu em um problema. Em um problema muito perigoso. Enquanto isso, em Veneza... — Será que não entende!? — perguntou histérica Marta Fazi ao cavalheiro que levou a mensagem à casinha de campo que ocupava. — Perdi meus melhores homens por culpa desse porco romano, quem quer que seja. Três estão aleijados, não me servem para nada! Outros seis os soldados levaram e ainda seguem na prisão. — A resgatamos — recordou o mensageiro. — Nos custou uma fortuna em malditos subornos. — Não merecia menos — replicou ela com o queixo erguido. — Lorde Elphick

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sabe. Mas o que vou fazer se não conto com meus melhores homens? — Utilize outros — respondeu o mensageiro. Marta franziu o cenho enquanto cravava o olhar no outro lado da sala. Passou junto ao cavalheiro em direção a uma estante e deu a volta à estatueta de uma Virgem, que pôs de cara à parede. — Por que me olha assim? — perguntou. — Sabe o muito que sofri. Esse canalha... oxalá arda no inferno. — Esqueça desse canalha — aconselhou o mensageiro. Marta se voltou e o olhou jogando faíscas pelos olhos. — Que o esqueça!? Sabe o que me fez? — Sei que te fez perder os estribos, que foi às nuvens e que por isso acabou na prisão e nos custou... — Minhas esmeraldas! — gritou. — Minhas preciosas esmeraldas! As levou! — O que temos nas mãos é mais importante que... — Houve rainhas que usaram minhas esmeraldas! — seguiu vociferando. — Eram minhas! — levou um punho ao peito. — Sabe o que tive que fazer para consegui-las? Para conseguir essas pedras tão preciosas? — Seus olhos escuros se encheram de lágrimas. Uma mulher capaz de mutilar por diversão e de matar com um sorriso nos lábios chorava por um punhado de pedras verdes... — Gostava como se fossem minhas filhas. Meus bebês. Onde vou encontrar joias parecidas? Quando der com esse porco desprezível que me roubou... — Depois terá tempo de buscá-lo. Agora... — Quem era? Quem é esse homem? — Não sabemos. Não temos tempo para investigar. Esquece-o. Esqueça das esmeraldas. Nunca as recuperará. Voltaram para as arcas reais de onde saíram. — Não! — agarrou a estatueta da Virgem e jogou do outro lado da sala, golpeando o encosto de uma cadeira e se espatifando em pedacinhos. — Como esqueça!? Marta Fazi nunca esquece! Não me deixou nem um anel. Nem um anel! Nada! Levou tudo! Tudo! — Ela tem joias — recordou o mensageiro. — Suas joias são famosas. O arrebatamento cessou de repente. — A senhora Bonnard tem safiras, pérolas, rubis e diamantes — disse o mensageiro quebrando o intenso silêncio. — E esmeraldas. — Esmeraldas? — repetiu Marta, sorrindo como uma menina a quem acabaram de oferecer uma guloseima. — Esmeraldas de grande qualidade que pertenceram à imperatriz Josefina —

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respondeu ele. — Consiga as cartas e a ninguém importará que leve também umas quantas ninharias. Assim que as entregue a Sua Senhoria, ele te dará as joias da coroa. Veneza Essa noite na ópera Embora a temporada social não tivesse começado oficialmente, os camarotes e a área das poltronas de A Fênix estavam ocupados quase em sua totalidade. O motivo, concluiu James, devia-se em parte pela representação da popular obra de Rossini, A Gazza Ladra, e em parte pelo fato de que Francesca Bonnard e suas amigas ocupavam uma das quatro filas de camarotes do teatro, efetivamente a fileira mais cara. O número de pessoas atentas ao cenário igualava ao daquelas que olhavam para cima. Claro que, sendo Veneza como era, outros tantos não faziam nem um nem outro. Como muito bem sabia James, os teatros italianos eram muito diferentes dos ingleses. Na Itália os teatros eram simples centros sociais. As escadas e as salas para se refrescar eram imensas porque precisavam acolher a um grande número de pessoas. Os salões espaços foram usados relativamente pouco tempo para jogar cartas e apostar. Entretanto, desde que as apostas foram proibidas, os participantes se limitaram a jogar gamão. Durante a temporada social as classes ilustres assistiam ao teatro quatro ou cinco dias à semana e, dado que era uma espécie de lar fora do lar, os camarotes eram imensos e mobiliados ao estilo de qualquer salão, pela simples razão de que eram usados para o mesmo fim. De algum deles sequer se via o cenário... Muitos sequer assistiam à representação da obra enquanto os intérpretes estavam em cena. Em troca, jogavam às cartas, flertavam e se entregavam ao jogo da sedução. Os criados iam de um lado para outro. A ópera ou a peça de teatro só era uma distração de fundo que dava cor e música à noitada, nada mais. Entretanto, em momentos muito específicos — no início de alguma ária muito conhecida, por exemplo — a audiência guardava silêncio e escutava com emoção. James entrou no camarote onde se rendia homenagem a Francesca Bonnard não precisamente durante um dos mencionados silêncios. Os atores que estavam no cenário gritavam e chiavam uns aos outros, mas ninguém lhes prestava a menor atenção.

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Como tampouco prestaram nele. Vestiu-se com peruca e uniforme como um dos muitos criados que entravam e saíam, levando comida, vinho ou algum xale. Representar o papel de criado era fácil, já que aqueles a quem servia nem reparavam em sua presença. Poderia apunhalar no pescoço ao príncipe herdeiro da Gilenia diante de uma dúzia de testemunhas e nenhum deles seria capaz de identificá-lo depois como o assassino. Ninguém recordaria nem a peruca nem o uniforme que usava. E sabia por que já eliminou dois insetos imundos nessas mesmas circunstâncias. Lurenze, entretanto, era um simples obstáculo no caminho. Dada a reputação da dama, era de esperar que houvesse um homem, ou vários, que o impedissem de chegar até ela, mas preferia que fosse um jovem e não muito inteligente. O conde de Magny, um francês que contava com a vantagem da idade e das experiências — uma delas era não ter perdido a cabeça, literalmente falando, durante a época do Terror nem depois — teria sido um obstáculo muito mais difícil de saltar. Sua atenção passou do moço loiro à rameira que estava sentada ao seu lado. Ambos ocupavam a parte frontal do camarote, e Lurenze conseguiu sentar-se no lugar de honra, à direita de Francesca Bonnard, olhando-a com devoção. Ela, em troca, tinha a vista cravada no cenário e fingia não perceber as mostras de adoração. Do lugar que James ocupava, só conseguia ver a parte posterior de sua pessoa: a elegante curva de seu pescoço e seus ombros. O cabelo, que preso em um artístico penteado, era de um escuro tom castanho com reflexos avermelhados onde incidia a luz. As mechas que roçavam o pescoço lhe davam uma aparência sutilmente despenteada, mas não como se acabasse de levantar da cama, mas sim como se acabasse de ter se divertido com um amante. Sutil. E efetivo. Até ele, um homem curtido, foi vítima do efeito: o comichão no ventre, a distração do restante e a dificuldade para pensar com clareza. Claro que seria melhor ser boa na hora de excitar aos homens, tendo em conta o que cobrava... Seu olhar desceu. Um colar de safiras e diamantes enfeitava esse pescoço longo e aveludado. De suas orelhas penduravam os brincos combinando. Lurenze se inclinou para ela para dizer algo ao ouvido e nesse momento o xale deslizou por seus ombros. E James ficou boquiaberto. O vestido deixava virtualmente todas as costas descobertas! Para poder vestir semelhante modelo, devia ter encomendado um espartilho especial.

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Na omoplata direita, que ficava totalmente à vista, distinguiu uma estranha marca de nascimento. Por fim, conseguiu dominar a cara de assombro, colocar a língua na boca e devolver ambos os olhos a suas órbitas. Bom, devia reconhecer que a muito pícara era mesmo uma descarada, disso não restava dúvida. Claro que já dizia muito dela que alguém a tivesse presenteado essas safiras como pagamento por seus serviços. Não estava certo de ter visto nada tão valioso; coisa rara, já que viu — e roubou — montões de joias. Ultrapassavam inclusive as esmeraldas que levou de Marta Fazi meses atrás. Com uma garrafa na mão, aproximou-se do casal para encher suas taças. Lurenze estava tão perto dela que seus loiros cachos ameaçavam enroscar-se nos brincos dela a qualquer momento, afastou-se um pouco e franziu o cenho. Ato contínuo agarrou seu monóculo e estudou com atenção a marca que Francesca tinha nas costas. — É uma serpente! — exclamou. "Ah, sim?" pensou James, enquanto se aproximava surpreso. O príncipe tinha razão. Não era uma marca de nascimento, mas uma tatuagem. — Você! Como se atreve a olhar à dama dessa forma tão obscena? — perguntou Lurenze dirigindo-se a ele. — Insolente! Afasta o olhar dela e tome cuidado em não derramar... — OH! — exclamou James com um fio de voz ao mesmo tempo em que a garrafa de vinho em sua mão caía e o conteúdo derramava sobre a parte dianteira das calças de Sua Alteza. Lurenze contemplou, mortificado, a mancha escura que se estendia por sua virilha. — Perdono, perdono — se desculpou James com uma falsa expressão contrita. — Sono mortifícato, eccellenza. — Agarrou o guardanapo que levava no braço e começou a esfregar sem muita delicadeza a zona úmida. Francesca Bonnard continuou a observar que acontecia no palco, mas James percebeu que seus ombros se agitavam em um dado momento. Também percebeu o risinho que escapava à outra dama que ocupava o camarote, sentada à sua esquerda. Em lugar de olhar, James seguiu esfregando vigorosamente a mancha. — Pare! — exclamou o príncipe afastando sua mão, rubro como um tomate. — Já chega! Fora! Ottar! Onde está meu criado? Ottar! Nesse momento várias cabeças zangadas se voltaram em uníssono para vaiar pedindo silêncio.

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A ária de Neta estava a ponto de começar. — Perdonatemi, perdonatemi1 — sussurrou James — mi displace,2 mi displace — enquanto prosseguia com a enxurrada de desculpas, foi afastando-se caminhando para trás com atitude envergonhada e temerosa própria de um servente. A Bonnard se voltou nesse momento e o olhou à face. Deveria estar preparado. Deveria ter atuado de forma instintiva, mas por algum motivo não foi assim. Demorou demais em reagir. Seus olhares se encontraram e a incomum beleza desse rosto o deixou desnorteado. Isis, lorde Byron a denominou, em honra à deusa egípcia. Por fim entendia a razão: esses olhos amendoados de uma estranha cor verde..., a boca grande..., a exótica forma de seu nariz, maçãs do rosto e queixo... Nesse momento sentiu a força de seu impacto, a força de seu incrível rosto, como se fosse um murro. Uma onda quente o percorreu de cima abaixo várias vezes a uma velocidade que o deixou desconcertado. Mal foi um abrir e fechar de olhos realmente; afinal de contas, era experiente nessas situações. Entretanto, quando afastou o olhar foi consciente, muito consciente, de que reagiu com lentidão, e isso o enfurecia. Era consciente, muito consciente, de que ela o desnorteou, e isso também o enfurecia. Um olhar. Um simples olhar. Que continuava sobre ele. A Bonnard o olhou de cima abaixo, subindo e descendo. E depois desviou a vista de novo para o palco. Entretanto, justamente antes que se voltasse totalmente, James vislumbrou o pícaro sorriso que apareceu em seus lábios.

Capítulo 02

E os extensos canais de um lado para outro percorrem, e sob o Rialto passam, de noite e de dia, não importa o ritmo, depressa ou devagar, e junto aos teatros se amontoam, como uma multidão escura, esperando com sua sombria libré negra... 1 2

Perdoe-me, em italiano Me retirarei, em italiano

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Mas seu fim não é nada sombrio, pois às vezes são fonte de diversão, como os cortejos fúnebres quando o enterro acaba. LORDE BYRON Beppo As duas mulheres riam como colegiais enquanto a gôndola em que viajavam contornava a escura multidão amontoada na porta traseira de La Fênix. — Viu a cara do Lurenze quando voltou e encontrou ao conde russo em seu lugar? — perguntou Giulietta. — Parecia um menino com esses cachos loiros. E ficou de pé como um menino, com a boca aberta. Imitou a expressão estupefata do príncipe. — Pobrezinho. Ficou muito desiludido. — Um menino... você mesma disse — disse Francesca. — É como um filhotinho... e não sei se terei a paciência necessária para adestrá-lo. — Os jovens têm muita energia — assinalou Giulietta. — Mas geralmente muito desajeitados. — E têm muita pressa — acrescentou Francesca. — Embora, claro, seja muito bonito. — E é um príncipe. E tem uma imensa fortuna. E um caráter generoso. — Seria um triunfo, admito — confessou Francesca. — E apesar disso, não tem certeza. É pelo conde de Magny? — O conde não exerce o menor poder sobre mim — respondeu. — Não continua zangada com ele, verdade? — Já estou farta de que os homens me digam o que devo fazer... e o conde teve a audácia de me aconselhar sobre meus amantes. Até mesmo me colocar culpa ou partir. — O que fez Bellaci? O que tem a reclamar sobre ele? Cada vez que penso nas joias que te deu de presente, me pergunto como pode deixá-lo. — Ano e meio mantida por um só homem é mais que suficiente — argumentou Francesca. Quanto mais prolongasse a relação, maior o risco de criar laços afetivos. Jamais voltaria a fazer algo semelhante. — Não sente falta de seu bonito marquês? — perguntou Giulietta. — Quando um homem se vai, sempre me alegro de que se foi — respondeu. Isso incluía os dois únicos homens que amou na vida: seu pai e seu marido. —

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Embora admita que Lurenze carece de seu savoir faire 3. Se um criado tivesse derramado vinho sobre Bellaci, por exemplo, teria se limitado a fazer uma piada. Lurenze ficou estupefato. — Estava envergonhado porque aconteceu diante de você — afirmou Giulietta. — Me deu pena, mas também me divertiu. Certeira pontaria teve o criado com o vinho! Qualquer um diria que fez de propósito. — Tive a mesma impressão — comentou Francesca. — Sabe a quem servia? — Quem se importa? — repôs Giulietta. — Reparou em seus ombros? Buon Deu — começou a abanar-se apesar da noite fresca após um dia chuvoso. — E em suas pernas? — Sim — respondeu Francesca. — Reparei. Reparou que o criado tinha um corpo incrível. Reparou em seus largos ombros e em suas longas e fortes pernas, ressaltadas pelas meias e as calças de sua libré. Reparou em sua forma de mover-se, elegante e ágil como um gato, e lembrou ter pensado que não tinha um nada de desajeitado. Teria reparado em mais detalhes se tivesse tido a oportunidade. Uma oportunidade que, entretanto, nunca aconteceu. — Oxalá tivesse visto seu rosto — disse. — Mas não é de bom gosto iluminar muito o camarote. — Não, não, nunca muita luz — concordou Giulietta. — A luz deve ser a apropriada para criar um ambiente íntimo de palavras sedutoras e brincadeiras picantes. É uma lástima que não retornasse para poder estudá-lo a fundo. A título pessoal, teria me encantado estudá-lo com as mãos... talvez com a boca. — E caso fosse feio, poderia tampar sua cara com uma toalha — sugeriu Francesca. — Feio ou não, foi muito descortês de sua parte não voltar. Comparado com os outros, sua presença foi uma grata distração. — Por que os aristocratas nunca têm essa estampa? — quis saber Giulietta. — Porque os aristocratas não exercitam seus músculos realizando um trabalho físico — respondeu. — Eu o teria deixado exercitar seus músculos comigo — disse Giulietta. — Para evitar que fiquem flácidos, já me entende. À mente de Francesca veio a imagem de umas pernas masculinas enroscadas com as suas. Sentiu uma baforada de calor em todo o corpo. — É a generosidade personificada — disse para sua amiga enquanto se abanava. — Tem um coração tão generoso que deveria ter se tornado monja. 3

Literalmente significa "saber fazer", e usa-se para definir uma pessoa que sabe se comportar em qualquer situação, ou pode significar conhecimento processual.

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— Me teria tornado monja — disse Giulietta — mas o hábito me favorece muito pouco. E tanta oração é ruim para os joelhos. Não, não, essa vida não era para mim. Eu nasci para ser uma vagabunda. — Igual a mim — admitiu Francesca. Agitou uma mão e afastou de sua mente todas as imagens lascivas sobre criados excessivamente viris. — Olha desta forma: se eu não fosse uma vagabunda, agora mesmo não estaria aqui, rindo com minha melhor amiga. Após a meia-noite, quando acabavam as apresentações nos teatros e começavam as festas, os faróis de centenas de gôndolas iluminavam os canais e a luz das velas piscavam nas janelas dos palácios. Em Veneza, sem o ruído das rodas das carruagens nem dos cascos dos cavalos sobre os paralelepípedos, as pessoas se moviam em um silêncio interrompido somente por suas vozes. Ao se propagar sobre a água, as conversas se distorciam e flutuavam a seu redor, como se estivesse em um enorme salão. Entretanto, era muitíssimo melhor que qualquer salão, pensou Francesca. Ninguém precisava interpretar um papel e manter uma conversa formal. Podia-se flutuar na água sem mais e, nas noites limpas como essa, deixar aberto o felze e contemplar as estrelas. Podia-se, como estava fazendo ela nesse momento, escutar vozes que cantavam e, ao longe, os comovedores acordes de um violino. Inclusive em seus momentos mais buliçosos, Veneza seguia sendo muito mais tranquila que outras cidades. De repente surgiu uma figura das sombras que saltou para a gôndola e caiu aos pés de Uliva, o gondoleiro que remava na proa. Aconteceu tão rápido que Francesca não teve tempo nem de gritar. Uliva reagiu mais depressa. Entretanto, quando Dumini, o gondoleiro de popa, deixou também de remar a fim de enfrentar o intruso, escutaram-no sussurrar: — Tenham piedade, peço isso. Tenham piedade! A figura ficou de joelhos. Era um homem vestido com uma capa e um chapéu de aba larga. Na tênue luz do farol da gôndola, Francesca não podia distinguir seus traços, só um longo e fino bigode e um cavanhaque pontudo. Lembrava-a um retrato de um aristocrata do século XVII que vira em uma ocasião. Em Londres? Em Florência? No palácio Manfrini? Já não estava na moda os europeus usarem barba ou bigode, e muito menos com um estilo tão curioso. — Peço humildemente, senhores dos remos, que não me traíam — disse o homem em italiano com um marcado acento estrangeiro. — Por favor, sou

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inofensivo — afastou a capa e mostrou as mãos. — Nem pistolas. Nem estilete. Nada. Nesse momento o desconhecido percebeu que havia duas mulheres observando-o. — É uma maneira muito nova de chamar nossa atenção — disse Francesca com voz tranquila, apesar de que seu coração palpitava. Veneza era uma das cidades mais seguras do mundo. Mas nenhum lugar era totalmente seguro para as mulheres, bem sabia. Seu nervosismo aumentou ao lembrar seu encontro com lorde Quentin em Mira e o que aconteceu depois. — Ah, você é inglesa! Graças a Deus! — disse o desconhecido, mudando de língua. Seu inglês tinha um acento tão atroz como seu espantoso italiano. — Meu italiano... nada bom. Meu inglês melhor. Mil perdões, señoritas 4. Signorine5. Damas, quero dizer. Tenho um pequeno problema, isso é tudo — olhou para o Uliv e disse: — Talvez pudessem mover os remos mais rápido, não, senhor barqueiro? — Imitou o gesto de remar. — Para que o bote vá longe... Sim? antes que haja problemas. O enorme Uliva o olhou sem pestanejar. Do outro lado da cabine, Dumini sem dúvida esperava o sinal de seu companheiro. Uliva podia atirar o desconhecido pela amurada ou deixá-lo sem sentido com o remo. Entretanto, e apesar de ser impossível saber a posição social do homem por seu ridículo acento, comportava-se com gestos típicos de um aristocrata. Isso não queria dizer que fosse de confiança, mas punha em dúvida aos gondoleiros. O desconhecido se dirigiu a Francesca. — Sei que é estranha minha repentina aparição. Mas aqui está a causa: visito uma dama de peitos muito bonitos — assinalou com uma mão. — Vive nessa casa. Mas, por desgraça, o homem da dama... Como se diz? — O marido — respondeu Giulietta. — Esse mesmo — concordou o desconhecido. — O marido voltou para casa cedo porque teve uma desarmonia... como se diz quando gritam um ao outro? Porque teve uma luta com sua amante. — Refere-se a uma discussão? — particularizou Giulietta, que olhou Francesca com expressão risonha. 4 5

Em espanhol no original Em italiano no original

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— Discussão, isso — disse o homem. — E então comigo... — bateu no peito. — Em seguida briga comigo! O que fiz eu? Quase não deu tempo para subir minhas pantalonis. Como se diz? Minhas calças, que estavam nos tornozelos — apontou seus pés. — O marido gritou comigo — explicou indignado. — Me perseguiu com uma grande faca. Giulietta começou a rir. E Francesca não pôde conter um sorriso. Encontraram homens assim antes. Algumas das aventuras românticas de lorde Byron eram igualmente engraçadas. Fez um sinal ao gondoleiro para que retomasse a marcha. Uliva deu de ombros. Ao fim e ao cabo, estavam em Veneza. A gôndola reiniciou seu percurso pelo canal sem incidentes. O desconhecido tocou a aba do chapéu antes de lhe lançar um beijo com a mão. — É muito amável em me prestar ajuda. Muito generosa. A situação desta noite é inaudita. Essa mulher está casada, não é virgem. Aqui todas as casadas têm amantes, verdade? — Uma esposa virtuosa só tem um amante — explicou Giulietta. — Mas em ocasiões o marido se volta louco, como se tivesse vinte. Este ao que parece estava de mau humor porque brigou com sua amante. Embora admita que seja inaudito que um marido veneziano se incomode pelos amores de sua esposa. — É normal que uma mulher casada tenha um par de amantes — atravessou Francesca. — Embora uma esposa com vinte amantes seja um pouco extravagante. Porque as pessoas falariam. Você deve ser novo em Veneza. — Ah, sim — enxugou a testa, inclinando o curioso chapéu. — Deus Santo! Que mal educado! Meu nome é dom Carlos Federico Manuel de Guarda Aparício. Mas vocês... — levou uma mão ao coração. — Não, não me digam seus nomes. Morri e são anjos celestiais... embora deva confessar — acrescentou com o cenho franzido — que não esperava ir para o céu. Minha mãe sempre me disse que iria ao outro lugar. — Sem dúvida alguma, nos verá ali ao seu devido tempo — respondeu Francesca. — Mas no momento seguimos em Veneza. Sou Francesca Bonnard e esta é minha grande amiga Giulietta Sabbadin, e não precisa se preocupar que nossos maridos vá persegui-lo com grandes facas, já que somos cortegiane6. 6

Cortesãs no italiano original

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— Ah, é claro! — disse o desconhecido. — Sou muito tolo. Devia ter visto imediatamente. A beleza, a elegância, os vestidos caros na última moda — jogou alguns beijos com as mãos. — De qualquer maneira, penso que já está a salvo. Onde quer descer? — Pouco importa — respondeu o homem. Levantou-se já que ainda estava de joelhos, e se sentou com a mesma facilidade com a que os remos afundavam na água. Nesse momento Francesca percebeu, com um sobressalto, que era maior do que pensava. Suas longas pernas dobraram para se acomodar no reduzido espaço e mesmo assim bloqueavam a parte dianteira do felze. O ombro que se apoiava contra a porta aberta era muito largo... e conhecido. Tentou recordar onde o viu antes. O problema era que havia muitos homens bonitos na Itália... sem mencionar os incontáveis retratos e estátuas de magníficos exemplares masculinos. Era muito possível que esse corpo, essa curiosa barba e o bigode lhe recordassem algum retrato que tivesse visto no palácio de alguém. De qualquer modo, não tinha do que se preocupar, disse a si mesma. Não era mais que um homem sentado em uma gôndola; não era mais que um homem aos seus pés. Onde mais gostava de tê-los, por certo. Entretanto, seu coração acelerou e ficou consciente do nó que se formou no estômago. "De inofensivo, nada — pensou. — Este não." O viu se inclinar para trás e baixar o chapéu até os olhos antes de dizer: — Agrada-me ir aonde vocês forem, minhas belas damas. Eu sou um cortesão como vocês. Vocês atraem aos homens e eu atraio às mulheres. Era verdade, pensou James, enquanto observava às damas por debaixo da aba do chapéu. Já se prostituiu anteriormente por seu país e voltava a fazê-lo uma vez mais. Se pegasse a gonorreia e caísse as partes..., então azar. Seus superiores não teriam pena dele absolutamente. Os homens acabavam mutilados na guerra, não? E, ele era um soldado, não? Ainda por cima melhor pago que a maioria. Essa seria sua resposta. Em qualquer caso, um homem não prosperava nesse negócio se carecia de capacidade de improviso. Saltava à vista que Bonnard era muitíssimo mais precavida e desconfiada que sua amiga. Esticou-se como a corda de um arco quando o viu apoiar-se na porta da cabine, mas pareceu relaxar quando o ouviu dizer que se prostituía como elas.

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Ele também estava à espreita. — Mas é um homem — disse Giulietta, uma mulher de olhos castanhos e ternos. — Sim, graças a Deus — assentiu James. — Mas esta noite, se fosse um pouco mais lento, acredito que não seria tão homem como antes. — Uma cortesã é uma mulher — assinalou Giulietta. — Que palavra, então? — perguntou ele. — Meu inglês é melhor que meu italiano, mas não é perfeito. Giulietta olhou sua amiga. — O homem que se prostitue — acrescentou ele — e que cobra muito. Como se chama em inglês? — Marido — disse Bonnard. E se pôs a rir. James ficou sem fôlego. Ouviu falar de sua risada, mas descartou como outra lenda mais que os homens criavam para justificar sua idiotice diante de uma mulher. Sabia — sabia muito bem — que estava pondo em prática suas artes, más mesmo assim o convite rouco de sua risada o pegou. Era a risada de uma amante, que fazia pensar em brincadeiras privadas entre os lençóis, em segredos compartilhados. Era uma risada tão íntima que era quase insuportável. Como o canto das sereias que chamavam aquele personagem. Ao Ulisses. "Prendam-me ao mastro", pensou. Recordou o olhar que lhe deu no teatro, o sorriso antes de afastar a vista. Era o mesmo sorriso que Helena de Troia deve ter lançado a Paris, o mesmo com que Cleópatra enrolou Marco Antonio. A condenada era muito boa! Isso a convertia em um desafio, e não era isso precisamente o que queria? Acaso não tentou escapar dessa missão no princípio porque, além de outros inconvenientes, acreditou ser uma perda de tempo? Não disse a seus superiores que qualquer novato poderia tirar de uma mulher um maço de cartas? — Marido? — perguntou, fingindo desconcerto. — Mas não, não me caso, só faço isto — fez com a mão um gesto que todo mundo reconhecia como representação do ato carnal. — Para fazer feliz à mulher velha, que às vezes é feia, mas muito, muito formosa em sua carteira. — Francesca está brincando — garantiu Giulietta. — Se refere aos maridos ingleses. Os ingleses estão loucos. Ela é inglesa, mas só está um pouquinho louca — olhou sua amiga. — Há uma palavra em inglês para isso?

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Não me ocorre nenhuma. Há centenas de palavras para as mulheres da vida como nós, mas o que se diz para referir-se a um cortesão? — Aristocrata arruinado — respondeu Bonnard. James conteve um sorriso. Sagacidade é obvio. As melhores putas o tinham. A famosa rameira Harriette Wilson fisicamente não era nada do outro mundo, salvo por seu estupendo busto. Seus melhores recursos eram sua vivacidade e seu senso de humor. No momento, iam bem. Se Bonnard relaxou o bastante para usar sua afiada língua, estava indo por bom caminho. — É verdade — disse com seriedade. — Tenho muitos irmãos e irmãs e sou um dos jovens — isso ao menos era certo. — Não há bastante dinheiro para todos. E por isso tenho aberto meu caminho no mundo. — Se quer abrir caminho em Veneza — advertiu Giulietta — deixe que lhe dê um bom conselho: mantenha-se afastado de Elena da Mosta. Tem gonorreia. Pegou de lorde Byron. Por isso Francesca não o aceitou, embora fosse encantador e muito doce com ela. — Era encantador e doce com qualquer mulher que chamasse sua atenção... que eram virtualmente todas as jovenzinhas que cruzavam em seu caminho — acrescentou Bonnard. — Não consigo compreender como é possível que saiba quem o contagiou com a gonorreia dentre toda a multidão de mulheres com as quais se deitava. — Mas queria a Francesca muitíssimo — insistiu Giulietta. — Lhe escreve poemas. — Escreve poemas a qualquer uma — replicou Bonnard. — Assim é como se comunica com o mundo. Assim é como vive o mundo. Tem lido seus últimos poemas? — perguntou ao James, inclinando-se para frente com uma expressão animada em seu belíssimo rosto. — Não lhe parecem incríveis totalmente diferentes dos outros? A abrupta pergunta, a súbita sinceridade, pegou-o despreparado. "Pois sim, a verdade é que o são", esteve a ponto de dizer. Viu ela fazer um gesto de impaciência. — Claro que não, como vai lê-los? — repreendeu-se Francesca. — Só publicaram em inglês — voltou a se acomodar no assento. James amaldiçoou em silêncio. Esteve a ponto de jogar por terra seu disfarce. Leu os últimos poemas e ficou fascinado. Eram direto, coloquial e muito diferente de tudo o que ele considerava o romantismo obsoleto das peregrinações

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de Childe Harold. Entretanto, não tinha ninguém com quem discutir sobre esse tema. Em Londres teria sido diferente. Em Londres poderia encontrar facilmente um grupo de cavalheiros, uma reunião em um clube, no salão de algum aristocrata, onde as pessoas falassem de poesia, música, teatro e livros. Não se podia encontrar esse tipo de gente — nem tampouco haveria tempo para discussões literárias se as encontrasse — enquanto saltava de cidade em cidade, de país em país, salvando o mundo. — Me lê os poemas embora não os compreendo totalmente — disse Giulietta. — Falo inglês bastante bem e pratico com ela todas as horas. Mas me dói à cabeça se leio. A forma de escrever dos ingleses... Onde está a lógica? Sou incapaz de vê-la. Escrevem como loucos. James assentiu com a cabeça. — Mais fácil ler grego. Bonnard não prestava atenção. Estava apoiada no vão da janela, contemplando o céu noturno. Giulietta seguiu conversando amigavelmente. James escutava só pela metade. O restante de sua mente estava presa na outra mulher. Bonnard se pôs em guarda e se distanciou dele. Sentia como se o tivesse empurrado com a mão. Se tivesse a força necessária para jogá-lo pela amurada, certamente teria feito. Não estava claro o que ocorreu, o que a levou a retrair-se, mas sentia sua desconfiança vibrando no ar. Seria muitíssimo mais difícil do que imaginou em um princípio. Essa mulher não era outra Marta Fazi. Essa mulher era complicada. Tinha cérebro e algo mais, embora ainda não soubesse o que era. Entretanto, não tinha a menor dúvida de que Francesca Bonnard seria um desafio considerável. E levava muito tempo sem desfrutar de um verdadeiro desafio. Seu coração acelerou. Talvez passasse bem, depois de tudo. Francesca se livrou de seu novo amigo no Café Florian. Após os teatros esvaziarem, os espectadores costumavam passar duas ou três horas nas cafeterias. O Café Florian, na Praça de São Marcos, era o mais popular entre os venezianos e os estrangeiros simpatizavam com a escolha. Os soldados austríacos e seus aliados preferiam o Quadri, que ficava em frente. Como outros estabelecimentos venezianos de caráter social, o café Florian oferecia uma variada clientela procedente de diversas classes sociais e com diferentes graus de respeitabilidade.

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Entre os presentes daquela noite se encontrava a condessa Marina Querini Benzoni. Os anos talvez a tivessem estragado um pouco — estava em torno de sessenta — mas nem seu espírito indomável nem seu bom olho na hora de detectar homens jovens e bonitos se viram minimamente afetados. Três anos antes tentou conquistar lorde Byron. Essa noite se lançou a dom Carlos. Assim que a condessa teve ao "atraente" espanhol entre suas garras, Francesca disse a Giulietta que era hora de irem. Assim que atravessaram a porta, sua amiga explodiu em gargalhadas. — É muito má! — exclamou. — Disse que queria fazer feliz às mulheres velhas — disse ela enquanto cruzavam a praça. — Tem sorte. Acaba de cair do céu o que estava procurando. — Não a teria encontrado se não abrisse caminho entre a multidão que rodeava sua mesa — observou Giulietta. — O que ocorre? Não te agrada? Eu o acho divertido. Gosto dos homens que me fazem rir. — Você gosta de todos em geral — replicou. — E você, em geral, não gosta de nenhum — contra-atacou sua amiga. — Sabe que prefiro os cães — disse Francesca. — Mas um cão não pode me dar a vida que escolhi e a qual me acostumei. — Pois me pareceu que dom Carlos era doce — insistiu Giulietta. Francesca inclinou a cabeça. — Muita pomada no cabelo. Quando tirou o chapéu, pensei que tinha o cabelo pintado na cabeça. O que usará? Gordura? Seu valete deve lubrificar seus cabelos às colheradas. Isso a deixou surpresa. Quando o viu tirar o chapéu na cafeteria, percebeu que usava o cabelo negro grudado ao crânio, com um brilho gordurento à luz das velas. Claro que a imagem não repugnou à condessa Benzoni. Certamente nem sequer se fixou em sua cabeça. A parte inferior de seu corpo era muitíssimo mais interessante. — Senhora. Francesca se voltou. — Maldição! — murmurou. O loiro príncipe de Gilenia se aproximava delas com um sorriso. — Por fim a encontro — disse o recém chegado. — Estive procurando-a por toda parte. Tinha a esperança de voltar a vê-la no Café Florian. Se ver substituído pelo conde russo não apaziguou seu ardor muito tempo, ou isso parecia.

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A felicidade que brilhava em seus olhos era visível inclusive na tênue luz que banhava as proximidades do Campanário da Praça de São Marcos. Houve um tempo em que John Bonnard a olhava da mesma maneira, e essa ideia fez que seu coração desse um tombo. A mariposa que ia à luz. A velha história. A mesma história de sempre. Sentiu a entristecedora e irracional necessidade de chorar. John Bonnard era um homem traiçoeiro. O que estava diante de si era inocente. Detestava a ideia de decepcioná-lo. Era como chutar um cachorrinho. Entretanto, não estava segura de desejá-lo. Além disso, a compaixão não era o melhor modo de começar uma relação. De toda forma, sabia que ao se deixar conquistar sem mais, o príncipe logo perderia o interesse. — A cafeteria estava lotada e fazia muito calor — disse. — E, estou cansada. O formoso rosto do príncipe se crispou imediatamente pela preocupação. — É obvio — disse. — O tempo é muito estranho nesta cidade. Um dia faz muito calor e o ambiente é como uma sopa. Ao seguinte chove, faz frio e sopra o vento. E lá aonde quer que madame vá, reuni-se uma multidão para admirá-la. Agora bem, rogo-lhe que me conceda a honra de acompanhá-la até sua casa. — Obrigado, Alteza, mas esta noite não — recusou com doçura. — Em outra ocasião. — Preocupo-me com você — disse ele. — Correm tempos perigosos. Por todos os lados há revoltas e insurreições. Muito recentemente assassinaram ao duque de Berri. — É muito amável por se preocupar — disse ela. — E me adula que me compare ao herdeiro do trono da França — deu-lhe um tapinha no braço. O rosto do príncipe se iluminou diante da carícia. E lhe picou a consciência. — Mas asseguro que estou nas melhores mãos — prosseguiu Francesca. — Meus gondoleiros podem enfrentar qualquer possível salteador ou revolucionário. Boa noite, Alteza. Fez uma profunda reverência, oferecendo uma vista espetacular de seus seios. Giulietta a imitou. E depois, enquanto o príncipe piscava obviamente deslumbrado pelo espetáculo, ela pegou o braço da amiga e se afastou. Rapidamente deixaram o Campanário para trás, a Praça de São Marcos, o Palácio Ducal e o Palácio da Moeda. A zona estava muito concorrida a essa hora da noite. Saudou com a cabeça alguns conhecidos que encontrou no embarcadouro. O incomum silêncio de Giulietta enquanto caminhavam para a gôndola era desconcertante.

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Sua amiga não voltou a falar até que estavam acomodadas na gôndola e deixaram para trás os palácios do Grande Canal. — Pobrezinho — disse. — O que quer que faça? Que me deite com ele por pena? — Eu faria. — Pois não posso — assegurou. — Necessito um amante, um acordo formal, não uma aventurazinha de uma noite. — Sei. Não é bom para nossa reputação nos deitarmos com todos os moços, ou homens bonitos que cruzam em nosso caminho. Se formos muito fáceis ou de muitas trocas, perdemos nossa posição. Seremos vulgares, meras putas, meras vagabundas. Desviou o olhar para as gôndolas que passavam ao lado, observando os passageiros enquanto os faróis iluminavam a escuridão. — Os homens são investimentos — disse Francesca. — Deve se escolher com muito cuidado e pensando sempre no futuro. — Acredita que Lurenze perderá o interesse se dormir contigo? — perguntou Giulietta. — Porque eu não. Francesca deu de ombros. — Não estou segura do que quero neste momento. Não é o único candidato que tenho. — Parecia apreciar sua companhia... — apontou Giulietta olhando a amiga — antes que visse o criado em La Fenece — acrescentou. — Penso que despertou sua imaginação. — Claro que sim — reconheceu Francesca. — Como fantasia era bom. Mas como amante... é impossível. A menos que seja um ladrão de joias — sorriu. — Um ladrão de joias magnífico. Giulietta retribuiu o sorriso. As joias eram um método fantástico para alcançar a segurança econômica. Muito melhor que as remessas bancárias, porque era um investimento que se podia mostrar ao mundo. Sabia que era fato, e Giulietta compreendia à perfeição, que lorde Elphick virava um demônio cada vez que o comunicava por carta sua última aquisição. Era uma vingança maravilhosa. Ao pensar nele, se pôs a rir, Giulietta, que sabia o que estava pensando, se uniu a suas risadas. Umas quantas horas depois James estava tirando o cavanhaque e o bigode em frente ao espelho sob o olhar fascinado de Zeggio.

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— Sempre acreditei que quanto mais simples é o disfarce, mais eficaz — disse. — As pessoas costumam a classificar os desconhecidos por categorias: criados, estrangeiros e demais. E que não se esqueça que só recordam o incomum: uma cicatriz, um bigode raro, um chapéu extravagante... O café Floreiam estava bem iluminado e por ser um lugar fechado precisei tirar o chapéu. Mas a Bonnard pareceu tão asqueroso meu cabelo que não se fixou em minhas feições. A próxima vez que nos encontrarmos não me reconhecerá. Zeggio assentiu com a cabeça. — Recordará a pomada e o cabelo grudado à cabeça. Não sabe que é encaracolado. E o quanto se frisava. Suas mechas eram cachos negros. Mas nesse preciso momento ninguém imaginaria. — O que pensa que deveria fazer com meu cabelo, Sedgewick? — perguntou. — Passamos diretamente ao sabão ou quer escová-lo primeiro? — Me agradaria mais que tivesse optado por uma peruca, senhor. — Pode cair em uma luta — disse James. — Não sabia se os gondoleiros me jogariam primeiro pela amurada e fariam as perguntas depois. Acredito que contratou aos maiores gondoleiros de toda Veneza. Esse tal Uliva tem as mãos como dois presuntos. A água não teria estragado este penteado. — Certamente madame pressente problemas, signore — aventurou Zeggio. — A casa está muito bem protegida. Dois porteiros. Um na fachada do canal e outro na da rua. Tentamos entrar, mas é impossível. Mesmo que pudéssemos entrar, não saberíamos o que procurar nem onde. Como vai fazer? — Não farei — respondeu. Zeggio arregalou os olhos. — Não? James começou a rir ao ver a expressão de seus olhos escuros. — Pensou ser muito esperta ao me deixar nas mãos da condessa de Benzoni. Poderia ter escapado e seguido Bonnard, mas para que? Quando quer se livrar de um homem, o faz sem mais. Já se fartara de minha presença. Não conseguiria nada a perseguindo. Mas sim me inteirei de muitas coisas prestando atenção ao que as pessoas diziam dela quando se foi. — O príncipe Lurenze saiu atrás dela — disse Sedgewick ao Zeggio. — O que

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conseguiu com isso? James não a seguiu, mas Sedgewick e Zeggio sim. Misturavam-se sem problemas entre os gondoleiros e os tantos criados que pululavam pela Praça de São Marcos. — Aproveitei-me da oportunidade que me ofereceu — continuou. — A condessa de Benzoni é encantadora, loquaz e uma mina de informação. Descobri mais coisas com ela em meia hora do que teria descoberto com Bonnard em uma semana. Isto, somado ao que vi, indica o caminho a seguir. Olhou o rosto entusiasmado de Zeggio através do espelho. "Em outra época senti esse mesmo entusiasmo pela aventura, esse entusiasmo pela caça — pensou. — Aonde foi? E quando se foi?" — Todo mundo a persegue — disse James. — Sabe como lidar com isso. Assim será ela quem me perseguirá — esboçou um sorriso cruel. — Até que a cace.

Capítulo 03

Declaro-me amante da solidão, entendida, claro está, não como a de um ermitão, mas sim como a de um sultão com um harém por refúgio. LORDE BYRON Dom Juan, Canto I Duas noites depois. Em noites como aquela Francesca apreciava enormemente sua liberdade. Primeiro foi ao teatro, depois ao café Floreiam e nesse momento, como Giulietta fora a um encontro, ela voltaria para casa, onde poderia sentar um momento e ler. Não teria que manter conversa com ninguém nem reprimir os bocejos. Não teria que ser brilhante, nem divertida, nem arrebatadora. Nem sequer agradável. Seria uma noite de autossatisfação. Estava sentada na gôndola, com o queixo apoiado em uma mão, contemplando a já conhecida fileira de palácios próximos a sua casa sendo deixados para trás. Em ocasiões era maravilhoso não ter que falar com ninguém, não ter sequer que

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pensar, a não ser desfrutar do momento e dos arredores: as preciosas casas, que há séculos estavam em pé; a tranquilidade do canal, que se desfrutava há séculos; a paz dessa estranha cidade. Nenhuma das cidades em que esteve desde que abandonou a Inglaterra a relaxava como Veneza. Entendia muito bem por que lorde Byron se sentiu, de certo modo, renascer nela. Nesse momento de sua vida não carecia de nada. Desfrutava de uma sólida situação econômica. Era livre, de um modo que jamais teria podido sonhar em sua antiga vida. Tinha uma amiga em quem podia confiar. Não necessitava nada; salvo, talvez, um amante que lhe desse várias horas de prazer e que a seguir a deixasse tranquila ao partir. Ou talvez fosse melhor um cão, concluiu com um sorriso. Em lugar dos prazeres carnais, um cão lhe ofereceria seu amor e sua devoção de forma incondicional. O problema era que os cães não podiam comprar diamantes. Nem rubis, esmeraldas, safiras, pérolas, ametistas, nem nenhum outro membro dessa família. Teria que contentar-se com um amante. A ideia lhe arrancou uma pequena gargalhada. Ergueu o olhar até a CA' Munetti quando a gôndola se aproximou de sua casa. Arnaldo lhe disse que o novo inquilino estava contratando mais criados e que chegaram várias embarcações com provisões. Do inquilino em pessoa, Arnaldo não averiguou nada. Zeggio, o gondoleiro, afirmava que seu senhor desejava ter privacidade; que veio para estudar com os monges e concentrar-se em seu trabalho, qualquer que fosse; que talvez algum dia iria ao teatro, ou visitaria alguma igreja ou palácio para ver as obras de arte, mas que não desejava frequentar as conversazioni (os salões aristocráticos de Veneza ou o que restava deles), as festas nem os restaurantes dos hotéis. Chegou à conclusão de que seu novo vizinho era um solitário, embora não por isso um ermitão. Segundo suas fontes, era da mesma idade de lorde Byron, mas "talvez mais bonito". A silhueta que de vez em quando vislumbrava atrás das janelas da CA' Munetti indicava que era um homem muito alto. O resto devia deixar à imaginação. E enquanto imaginava, esqueceu-se por completo da realidade. Ouviu o ligeiro chapinhar de remos, mas não deu importância. A noite era escura e os gondoleiros tampouco avistaram o perigo até que foi muito tarde.

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E, tudo aconteceu muito rápido. Um barulho e a gôndola balançou com brutalidade. Desviou a vista para a parte dianteira da embarcação a tempo de ver que um homem saltava pela amurada e se equilibrava sobre Uliva, que o jogou na água de um empurrão. Tudo aconteceu em um abrir e fechar de olhos. Francesca tentou gritar, mas só foi capaz de soltar uma espécie de gemido. Tinha um nó na garganta e o coração pulsava tão rápido que mal podia respirar ou encontrar o ar necessário para encher os pulmões e pedir ajuda aos gritos. Foi consciente de mais movimentos, mais balanços. Um golpe, um chapinhar. Levantou-se de um salto e saiu do felze, mas o atacante a empurrou ao interior e se lançou sobre ela. Defendeu-se com mãos e pernas, mas o desconhecido era muito grande, um bruto tão corpulento como um tonel. O fedor que desprendia seu corpo esteve a ponto de asfixiá-la. Notou que a agarrava pelo pescoço. Tentou escapar de suas mãos arranhandoo, mas era como tentar mover um elefante. Tentou atirar uma joelhada na virilha como lhe ensinaram, mas pesava muito e não pôde mover as pernas. Ouviu-o murmurar uma obscenidade ao mesmo tempo em que suas mãos apertavam ainda mais seu pescoço. James havia chegado meia hora antes e pôs um robe sobre a camisa e as calças. Estava de pé em frente à janela com uma taça de vinho na mão, ao lado de Zeggio, quando viu o que acontecia. Zeggio esteve vigiando a pequena embarcação parada a escassa distância do Palácio Munetti desde a meia-noite, conforme o informou. — Não gosto disso — dissera o agente. — Mas não quero armar um escândalo porque chamaríamos a atenção. O que opina, signore? — Também não gosto — respondeu James. Mal acabou de pronunciar a resposta quando a gôndola da Bonnard apareceu pelo canal. Faltavam poucos metros para chegar ao embarcadouro do palácio Neroni quando a pequena embarcação saiu dentre as sombras. Conseguiu ver duas figuras no bote. Aproximaram-se da gôndola com rapidez. Atacaram de improviso, surpreendendo aos gondoleiros. O homem que usava os remos se agarrou à amurada da gôndola e se ajudou com as pernas para manter o equilíbrio do bote enquanto seu companheiro saltava à gôndola e ia direto pelo gondoleiro de proa. Depois de jogar Uliva na água e sem se deter voltou-se, saltou sobre a cabine e

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atacou ao segundo gondoleiro, que também acabou na água. E então foi por ela. Tudo em menos de um minuto. Entretanto, menos de um minuto foi o que demorou ele em tirar o robe e as sapatilhas. Abriu a janela, saiu ao balcão e saltou. O atacante de Francesca grunhiu e relaxou um pouco as mãos enquanto começava a esfregar a pélvis contra a dela. Face às capas de roupa que os separavam — o casaco, o vestido, as anáguas, a regata e seus pestilentos farrapos — a ereção era evidente, assim como o fato de que Francesca não tinha a menor oportunidade de evitar que lhe fizesse o que pensava fazer. Estava muito assustada para vomitar, muito ocupada tentando respirar e não perder a consciência. Esse bruto gigantesco estava estendido sobre ela e seu pestilento fôlego queimava em seu rosto. Sua mente registrou os ruídos que vinham do exterior, mas não chegou a entender o que acontecia. Estava tentando arranhar com uma mão os grossos dedos que se fechavam em torno de seu pescoço enquanto com a outra procurava algo, algo que pudesse utilizar como arma. James caiu muito perto do barco. Logo emergiu, agarrou-se à borda e se impulsionou para cima com todas suas forças. A pequena embarcação virou e o remador caiu à água soltando uma maldição e um grito. Enquanto isso, James nadou até a gôndola, subiu e correu para o felze. O bruto que ali estava e atacava Francesca ergueu a cabeça, surpreso. Sem perder tempo, James rodeou-o pelo pescoço com um braço e apertou com força, aprisionando-o contra seu corpo. O rufião era enorme e se debateu com vigor, mas não durante muito tempo. Uns movimentos mais e ficou inerte. Arrastou-o até o exterior, jogou-o no canal e aguardou um pouco enquanto a escura forma se perdia nas profundezas. Quando voltou para o interior da cabine, viu Francesca caída entre o chão e o assento com as saias levantadas até as ligas e as meias abaixadas. Estava ofegando e agarrava a garganta com uma mão. Estendeu um braço para ajudá-la, mas ela retrocedeu ao ver sua mão e se voltou para ficar de lado e lhe atirar a garrafa que conseguiu agarrar. James se agachou e a garrafa caiu na água sem fazer o menor dano. O alívio o alagou, acompanhado por uma sensação tão fresca como a água que jorrava por seu corpo. A abrasadora fúria que o consumia até então desapareceu. Colocou as mãos nos quadris e explodiu em gargalhadas. Não pôde evitar. Tudo era tão absurdo. Sobretudo ele, em mangas de camisas e ensopado.

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— Ma amo solo te, dolcezza mia — disse. "Apenas te amo, docinho." — Vai al diavolo! — soltou ela ofegando. Quer dizer, "Vai para o inferno!", em italiano, mas com um curioso acento inglês. — Essa — replicou ele, em inglês — é uma resposta grosseira e ingrata depois de ter destroçado minhas melhores calças para salvá-la. Ou está justificada sua ingratidão? — afastou o cabelo molhado do rosto. — Acaso interpretei mal a situação e interrompi um apaixonado encontro? Ele gosta de áspero? Ela se levantou enquanto arrumava as saias sobre suas longas e torneadas pernas. Sob a mortiça luz do farol, tinha a face branca, os olhos arregalados e profundas olheiras. — Áspero? — repetiu como se não entendesse. — Áspero!? — meneou a cabeça como se acabasse de despertar de um pesadelo. — Você é inglês? Esse homem era real. Tudo era real. Estava gelada, tremente e sentia o amargor da bílis na garganta. Vomitaria. Com os olhos cravados na aparição à sua frente, inspirou fundo e tentou clarear as ideias. Esse homem não podia ser real. Os homens reais não tinham o físico das estátuas gregas e romanas. Os homens reais não tinham o físico dos deuses e os semideuses. Entretanto, respirava com rapidez. Observou como esse largo peito subia e descia sob o tecido encharcado da camisa. O linho molhado colava à pele e não deixava nada à imaginação. Via perfeitamente o contorno dos músculos de seus poderosos ombros, braços e torso. As calças molhadas se prendiam a uma cintura e quadris estreitos, e a longas e musculosas pernas. Pernas longuíssimas. Viu alguma vez um homem, um homem de carne e osso, tão alto como esse? Ou seria somente a impressão que lhe causava ao estar de pé a seu lado enquanto que ela jazia no assento da cabine? A primeira impressão foi a de um rosto bonito, de traços marcados e expressão tão gélida que bem poderia ter sido uma estátua. O ameaçador semblante não encaixava com os adoráveis cachos escuros que caíam, encharcados, sobre a fronte. Sentiu um calafrio, e depois muito calor. Um novo calafrio. Calor. Enquanto isso, tudo girava enquanto tentava compreender o que aconteceu. Enquanto tentava compreender um mundo que acabava de ficar de pernas para o ar e enquanto tentava compreender a presença desse homem, que trocava de idioma

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como se não fosse trabalhoso para ele. Em um momento parecia indiscutivelmente italiano e no seguinte era um perfeito inglês. Baixou o olhar para a mão que estendeu e que ela rechaçou. Era uma mão grande e forte que pouco antes deixou um bruto corpulento tão murcho como um pedaço de trapo. Jogou o corpo do enorme rufião pela amurada com a mesma facilidade que teria feito se fosse um rato. "Quem é? O que é?", perguntou-se. Obrigou-se a erguer o olhar, a olhar uma vez mais o rosto que pouco antes tinha essa expressão tão áspera e cruel. Seguia sem mostrar simpatia alguma, embora tivesse rido e em seus lábios ficasse ainda a sombra de um sorriso. Oxalá retornasse ao canal. Não era humano. Era um tritão, parte de um pesadelo do qual ansiava despertar com desespero. Oxalá voltasse para seu meio natural, oxalá se desaparecesse como a aparição que por força era. Entretanto, salvou sua vida. Independente de quem fosse ou do que era, salvou sua vida. Nenhum homem foi resgatá-la nos vinte e sete anos que estava no mundo. "Quem é? — ansiava gritar. — O que é!?" Não obstante, o que saiu de seus lábios foi a pergunta mais ridícula que podia ter formulado: — Você é inglês? James já decidira que estratégia usar para apresentar-se, embora aquele não fosse o cenário que escolheria. — Até a medula — respondeu. Bonnard olhou ao redor, confusa. — Não entendo — disse. — Quem eram? Por quê? Falava com voz rouca e James sabia que se houvesse mais luz, veria as marcas que os grossos dedos do atacante deixaram no pescoço. James notou que a ira a reanimava; essa fúria enlouquecedora que sentiu pouco antes. Enlouquecedora, certamente. Tinha seu ponto. Ao fim e ao cabo, era meio italiano... Entretanto, nem os pontos e nenhum outro tipo de emoção tinha vez em seu trabalho. Os impulsivos fracassavam em suas missões. Os impulsivos eram a perdição de seus companheiros, que acabavam mortos e torturados. Os impulsivos perdiam dedos e extremidades. Acabavam apodrecendo em algum buraco infestado de ratos, enterrados vivos ou presos a uma estaca em meio

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ao deserto. Os impulsivos podiam acabar de mil diferentes maneiras, nenhuma boa, e esse final sempre era lento e doloroso. "Se tranquilize — disse a si mesmo. — Pensa." Saltava à vista que não passou pela cabeça dela que estivesse em perigo. Mas a ele, claro. Seus superiores não deram o menor indício de que fosse assim. Ela não entendia. Ele tampouco. De toda forma, essa não era a primeira vez que lhe contavam a metade da história. Sempre pintavam as missões como algo fácil. ("Consegue as cartas") e sempre se convertiam em uma maré de merda. Examinou a vizinhança. — Não há rastro dos supostos assassinos, violadores, ladrões ou o que quer que fossem — disse. — Nem do bote. Com um pouco de sorte, possivelmente tenham se afogado. Não disse que a sorte não era da boa. Não disse que deveria ser mais precavida. Deveria ter empregado outro método para imobilizar o agressor que tirou de cima dela. Deveria ter se assegurado de que seguia com vida para prendê-lo e interrogá-lo. O interrogatório teria sido divertido. Entretanto, o muito porco estava gemendo enquanto a estrangulava. Enquanto a sufocava lentamente e se esfregava contra ela, sem se importar com os parasitas e as enfermidades que levasse. James se jogou sobre ele como um touro bravo. E esse indivíduo concretamente desapareceu — ou, mas provável, morreu — e o outro estava também no fundo do canal ou escapou. Muito torpe de sua parte. Um mau exemplo para Zeggio, sair impulsivamente para salvar uma linda donzela dos dragões como se fosse um maldito cavalheiro andante. Mas o que está feito, está feito. Esticou-se ao ver que duas cabeças emergiam da água, não demorou em reconhecer Uliva. — Ah, aqui estão seus gondoleiros — disse. — Imaginei que não demorariam muito em reaparecer. O episódio mal durou uns minutos, do princípio ao fim. A noite anterior esteve estudando com atenção os gondoleiros e chegou à conclusão que não seria fácil tirá-los do caminho. Possivelmente os atacantes não soubessem desse detalhe.

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Entretanto, soubessem ou não, não podia esperar que os gondoleiros a resgatassem. Ele mesmo esteve a ponto de chegar muito tarde. Sabia de primeira mão que se podia matar uma pessoa rapidamente. Observou os dois fornidos remadores subir à gôndola. — Levem a dama ao palácio, rápido — ordenou em italiano. — Se assegurem de que tome uma taça de brandy. Aproximou-se da amurada da gôndola. Afastou-se pouco de seus respectivos palácios, mas não muito, e tampouco estavam precisamente no Grande Canal, mas em um canal mais estreito. Além disso, já estava encharcado. Com umas quantas braçadas estaria em casa. E a água fria lhe cairia bem. Precisava afastar-se desse lugar. Não estava contente com a reação que demonstrou essa noite. Já havia planejado tudo de antemão: o lugar do encontro e como dirigi-lo. Preparou-se para lançar-se à água. — Aonde vai? — ela gritou. — Onde está sua gôndola? Não irá nadar, verdade? Espere! Sequer sei quem é. Virou-se para olhá-la. Estava lívida e parecia assustada. Recordou o orgulhoso porte com o que se afastou dele no Floreiam. Recordou suas gargalhadas, os pecaminosos prazeres que prometia, e seu sorriso. O sorriso do diabo. Sentiu uma pontada, como se sentisse saudade de algo, embora fosse impossível porque não existia nada que ter saudade. De toda forma, deu meia volta para encará-la e com expressão resignada disse: — Sou seu vizinho de frente. Uma hora mais tarde O vizinho de Francesca era mais alto do que pensou em princípio, quando apoiou sua estimativa na silhueta que viu pela janela. Jamais teria imaginado o fantástico corpo que tinha. Nesse momento tal dito corpo e seus músculos não estavam tão claramente à vista como estiveram pouco antes. A lembrança, entretanto, estava gravada a fogo em sua mente; e os calafrios e os calores voltaram a assaltá-la quando o viu entrar, já seco e com roupa limpa, no gabinete que normalmente reservava para as amizades mais íntimas. Usava uma curiosa mistura de objetos vindos do guarda-roupa de algum de seus criados mais corpulentos. As mangas da camisa e da jaqueta ficavam curtas. O colete era muito largo. As meias, também.

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Os sapatos não ficavam de todo mal, mas saltava à vista que tampouco eram de seu tamanho. Entretanto, usava a mistura com a mesma segurança em si mesmo que demonstrou na gôndola, meio nu e jorrando água. Ela poderia ter colocado um de seus negligés sedutores. Assim estaria mais cômoda. Ao fim e ao cabo, era uma rameira e não precisava interpretar o papel de dama recatada. Entretanto, depois de esfregar-se vigorosamente para se livrar do fedor, do contato e da lembrança do animal que a atacou, ordenou a Thérèse, sua donzela, que escolhesse um vestido adequado para tomar o chá com alguns convidados. Essa noite, ou melhor, essa manhã, tomar um chá teria sido ridículo. Arnaldo havia levado uma taça de brandy. Seu salvador tomou um agradecido gole do seu enquanto observava o acolhedor gabinete adjacente ao quarto. Francesca estava reclinada no sofá, apoiada nas almofadas. — O vizinho de frente — tremente tomou um gole de brandy. — Não é das apresentações mais esclarecedoras que tive o gosto de escutar. Mas foi a única coisa que obteve até o momento. Seu suposto vizinho a enfiou em seu próprio palácio sem lhe dar a mínima opção de fazer perguntas, já que não parou de lançar ordens aos seus criados como se fosse o amo e senhor da mansão dela. Fosse como fosse, estava claro que pertencia à aristocracia. — Se comenta que é aparentado com os Albani — insistiu mesmo com o desalentador silêncio. — Uma família muito distinta, conforme dizem. Alguém através de pai, acredito. Mas você disse que é inglês. Com o copo na mão, ele se aproximou de um enorme retrato de Francesca pendurado na parede adjacente ao pórtico. Era um dos que o márchese encomendou durante sua relação. Esse, o maior e mais recente, era o único que lhe enviou após o fim do romance. — Meu pai é lorde Westwood — disse seu convidado sem afastar o olhar do retrato. — Minha mãe, sua segunda esposa, é Verônica Albani. Vêm a Veneza de vez em quando. Conhece-os? — Não costumo frequentar as reuniões da aristocracia — respondeu ela enquanto tentava identificar lorde Westwood. Em outra época sabia de cor o Debrett's Peer age, o livro onde se registravam nomes, sobrenomes e títulos dos membros da aristocracia. Em outra época estava a par das complicadas relações familiares que conectavam os membros da nobreza britânica. Afinal, fora a anfitriã das reuniões políticas que organizava John Bonnard.

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Nesse momento recordava perfeitamente os nomes daqueles que lhe deram as costas após o divórcio, que foi todo mundo. Entretanto, lorde Westwood lhe escapava por completo. Ignorava o título que ocupava na hierarquia aristocrática: duque, marquês, conde, visconde ou barão. — Não qualificaria meus pais de aristocratas — ele comentou pouco disposto a ajudar, enquanto desviava o olhar do retrato e voltava a olhá-la para observá-la com olho crítico. — O retrato é excelente. O silencioso escrutínio a fez sentir-se tão incômoda como se fosse uma jovenzinha. Ridículo, certamente. "É uma rameira famosa. Uma cortesã. Uma mulher do mundo. Aja como tal", disse-se. — Parece que ninguém conhece seu nome — disse Francesca. — E isso é muito misterioso. Que nome aparece em seu passaporte e por que ninguém está à par de um detalhe tão simples? James deu de ombros. — Não é nenhum mistério. Só estou aqui um par de dias e estou seguro de que os curiosos não se esforçaram muito para descobrir a resposta. Tal como disse, é um detalhe simples e muito fácil de averiguar. Só é necessário perguntar ao governador austríaco, o conde de Goetz, ou sua esposa. Ou ao senhor Hoppner, o cônsul inglês — fez uma pausa. — Sou James Cordier. Por fim Francesca achou mentalmente a conexão. O sobrenome do conde de Westwood era Cordier. — E eu Francesca Bonnard — respondeu. — Até aí cheguei — ele assinalou. — Ao que parece você é famosa. — Quer dizer infame. James cruzou a sala até onde ela se encontrava em passos longos. — De verdade é? — perguntou. Seus olhos se abriram totalmente como se estivesse sinceramente surpreso e foi todo um choque descobrir que não eram castanhos nem negros como supôs, mas azuis. Azuis escuros. James Cordier se sentou na cadeira próxima a ela e se inclinou à frente para observá-la com atenção como se fosse outro retrato cuja qualidade tivesse que confirmar. — O que há de fato para merecê-lo? Francesca teve que fazer um esforço para não se mexer inquieta.

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Estava acostumada à análise masculina. Mas não estava acostumada que a estudassem como se fosse uma complicada frase em armênio. Sentia-se tensa e incômoda. E era consciente do rubor que se estendia por suas faces. Do rubor, pelo amor de Deus! Ela, ruborizando-se! Desconcertou-a, disse a si mesma, simples e sinceramente. Esse tipo não se parecia em nada aos homens aos quais estava acostumada. Havia rumores de que era um erudito. Um solitário. Se isso fosse certo, o que existia de surpreendente que também fosse um excêntrico? — É possível que você não frequente muito os círculos sociais — aventurou. — Refere-se aos círculos ingleses? — ele particularizou. — Não, passo pouco tempo na Inglaterra. — Estou divorciada — disse. — Sou a ex-esposa de lorde Elphick. Foi um escândalo em toda regra. — E acredita que lhe guarda rancor? Acredita que pôde contratar a alguém para matá-la? Ao recordar a visita de Quentin e seu repentino interesse pelas antigas cartas de Elphick, considerou a ideia, embora não demorasse em descartá-la. Sua morte poderia colocar Elphick em um problema do qual lhe seria muito difícil sair. Já não era a cadela desprezível de sua mulher. No continente era uma sofisticada divorciada com amigos muito influentes. Sua morte provocaria um escândalo e seria investigada meticulosamente. Além disso, Elphick não fazia a menor ideia do que aconteceria com as cartas em caso dela morrer antes do tempo. Não. Assassiná-la era muito arriscado para ele. — Pelo amor de Deus, não! — respondeu. — Sou mais útil a ele com vida, porque comparado com sua pecaminosa ex-mulher parece muito mais nobre e virtuoso. Pode representar o papel de homem valente e tolerante. Não, minha morte acabaria com sua distração. — E com a sua, suponho — apontou Cordier. Surpreendida, soltou uma gargalhada. Já não acreditava que fosse capaz de voltar a rir tão facilmente e tão logo após ter se livrado de uma violação e de uma morte tremendamente desagradável; claro que era uma sobrevivente nata, não? Percebeu a tensão que invadiu seu convidado e que pareceu carregar inclusive o ar do gabinete. Entretanto, a tensão se desvaneceu tal como apareceu. — Suponhamos que fossem ladrões — disse ele. — Nesse caso, utilizaram um método muito curioso. Teria sido muito mais fácil deixá-la inconsciente para rouba as joias e procurar sua carteira entre as saias.

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Entretanto, pretendiam fazê-la sofrer o máximo possível em pouco tempo. Vi tudo de meu balcão, e era evidente que estava planejado. Uma vez que os crimes violentos não são habituais em Veneza, devemos concluir que foi deliberado. Um ataque específico contra sua pessoa. O motivo, entretanto... — deu de ombros de uma forma muito pouco inglesa, e o gesto ressaltou a largura dos mesmos. — Fala como um advogado — replicou ela com tensão. — E parece saber muito sobre crimes. — Você fala como uma pessoa que não gosta dos advogados — observou ele. — E parece saber muito sobre eles. — Estou divorciada — recordou. — Meu pai era sir Michael Saunders, o homem que faz uns anos esteve a ponto de destruir sem a ajuda de ninguém a economia britânica. Sim, senhor Cordier, tenho muita experiência com os advogados. E não posso dizer que simpatize com eles. Embora tampouco os odeie. Para as mulheres que estão em minha situação são uma desafortunada necessidade. — Ah, sim — disse James Cordier. — Sua situação. Divorciada. — Divorziata e puttana — assinalou Francesca tensa. Ele ficou em pé de um salto como se um diabinho o cravasse no traseiro com um tridente em vermelho vivo. — Por Deus! — exclamou James. — Peço desculpas. Interrompi seu trabalho? Esse comentário obteve finalmente que esses olhos verdes o olhassem exagerados com uma expressão vulnerável e sem graça. James sabia que eram só os efeitos secundários de ter estado a um passo da morte, mas vê-la assim o enfurecia. Antes parecia tão segura, tão arrogante... Entretanto, a expressão insegura desapareceu e a viu explodir em gargalhadas. Ria de boa vontade. Seu coração deu um tombo e a seguir começou a pulsar disparado e arrítmico. Não pôde evitar. Como tampouco pôde evitar sorrir. Era boa, muito boa, e por fim começava a compreender — de forma instintiva e não só com a cabeça — por que a muito condenada era tão cara e por que os homens que podiam se permitir a pagavam sem a menor hesitação. Era uma beleza rara de rara exuberância. Na cama devia ser muito divertida. Com razão Bellaci, famoso por sua inconstância, a manteve durante tanto tempo. — Como interrompeu meu trabalho? — repetiu Francesca quando as gargalhadas se converteram em um rizinho. O brilho pícaro voltara aos seus olhos.

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— Preciso contar a Giulietta. Vai ficar encantada. Não, senhor Cordier, não está interrompendo meu trabalho porque não me permiti sair. Não trabalho nas ruas. Além disso, você percebeu que Veneza não tem muitas ruas, digamos assim. Sou do outro tipo de rameira. Das caras e avaras. E planejei passar esta noite na cama... com um livro. — Admito que me pareça muito estranho, ao menos para meu lado italiano — confessou ele. — Nunca teria imaginado que uma mulher de seu nível passasse a noite sozinha. Mas claro, ainda estou tentando assimilar o que possa passar pela cabeça de um homem para divorciar-se de você. Seu marido estava apaixonado por alguém de seu mesmo sexo? Preferia as ovelhas, possivelmente? — Agitou a mão no ar como se quisesse resolver o tema. — Mas isto não é de minha incumbência. Minha presença a impede de agarrar esse livro, e talvez, depois de tudo, um livro seja preferível a um amante. — Às vezes — ela reconheceu esboçando um sorriso. Era apenas um vislumbre de sorriso malicioso que acendia o sangue dos homens e alegrava seus órgãos reprodutores. O risinho era uma promessa depravada do que estava por vir. Talvez fosse um convite. Ou talvez só uma brincadeira. Fosse o que fosse, funcionou. A temperatura de James começou a subir e seu cérebro cedeu as pressões de seu membro. "Devagar, moço. Sabe que as coisas não funcionam assim" disse-se. Certamente que sabia, e muito melhor que a maioria dos homens. Não podia ceder à tentação. Não podia deixá-la ganhar. Já decidira a estratégia a usar: fazer-se de duro. — Divorciou-se de mim por adultério — confessou. — Que escândalo — zombou James. — O normal seria que tivesse alegado algo sério, como que você pôs arsênico no café, engomava seus calções ou que ganhava no jogo de golfe. Viu-a menear a cabeça. — Temo que não — disse. — O arsênico me ocorreu depois, quando já era muito tarde. — Nunca é muito tarde para o arsênico — a contradisse. — O único problema é sua lentidão para fazê-lo adoecer. E que queira assegurar-se de que sofre uma morte lenta e dolorosa. Para um trabalho rápido, recomendo ácido cianídrico. — Parece estar muito bem informado sobre o tema.

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James lembrou que o viu assassinar um homem. Ou ao menos deixá-lo a beira da morte. Reconhecia, não sem certa vergonha, que a ira nublou sua razão a tal ponto que não prestou atenção ao que estava fazendo. Não fazia nem ideia se o porco seguia respirando quando o jogou no canal. Um homem inconsciente afundava com a mesma rapidez que um cadáver. Era normal que ela sentisse curiosidade por um homem capaz de deixar outro inconsciente só com as mãos. Porque saltava à vista que essa mulher não era tão cruel para não sentir curiosidade. Conheceu muitas outras mulheres que nem se alterariam por esse detalhe. Marta Fazi era o último exemplo. — E sobre muitos outros — apontou James. — Me relacionei com muito más companhias em minha juventude — coisa que era absolutamente certa. Preferia ater-se à verdade na medida do possível, já que isso facilitava seu trabalho. — Minha família me mandou ao exército, onde meus impulsos criminais e violentos seriam de valiosa ajuda — outra verdade. — Violência, sim — disse ela. — Mas veneno? Sempre ouvi que é uma arma feminina. — Em minha árvore genealógica há alguns envenenadores — confessou. — Pelas veias de minha mãe corre sangue dos Borgia e também dos Médici. — Fez gesto de pôr o copo na mesinha ao lado dela e captou um ligeiro aroma. Jasmim? Deixou o copo devagar e se endireitou enquanto resistia a tentação de se inclinar um pouco mais para comprovar se o aroma procedia de seu cabelo ou de sua pele. — Em seu caso, sua natureza feminina a faz herdeira de uma longa tradição: a curiosidade. Adoraria satisfazer sua... curiosidade, mas devo informar do incidente ao governador austríaco. Deveria tê-lo feito imediatamente. São muito rigorosos a respeito ao cumprimento de suas leis, como você bem sabe. Farei com que receba meu ensaio sobre os métodos mais utilizados pelos assassinos no século XVI. Minhas irmãs afirmam que é uma magnífica leitura antes de dormir. — Por que não traz você? — ela sugeriu. — Poderia ler para mim... "Na cama", teria acrescentado, embora isso ficasse no ar. Não era necessário que dissesse. O sorriso se atrasou em seus lábios e esses olhos verdes o percorreram de cima abaixo. James ansiava afundar-se nas profundezas desse olhar, embora estivesse seguro que acabaria se afogando. "Prendam-me ao mastro", pensou.

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— Devo andare — disse. "devo ir" — Buona notte, signora. — Buon giorno — replicou ela. — Está a ponto de amanhecer. — Arrivederci. E partiu antes que pudesse tentá-lo a discutir se era de noite ou de dia, ou a convencê-lo de que visse o amanhecer a seu lado. Estava suando.

Capítulo 04

É triste, não tenho mais remédio que admitir, e a culpa a tem esse sol indecente, incapaz de deixar tranquila a nossa necessitada argila e que segue abrasando, fervendo e derretendo. Por muito que a gente coma e reze, a carne é fraca e a alma, portanto, está perdida. O que os homens chamam cortesia, e os deuses, adultério, é muito mais comum nos climas calorosos. LORDE BYRON Dom Juan, Canto I Ao dia seguinte, pela tarde. O ensaio do senhor Cordier chegou ao palácio Neroni enquanto Francesca seguia na cama, embora não dormisse. Passou a maior parte da noite — ou o que restava desta — acordada, ardendo em desejos de matá-lo... coisa que a ajudou a não pensar nos homens que tentaram matá-la. Escreveu uma breve carta ao conde de Magny, na qual explicou sucintamente o que aconteceu e assegurou que não sofrera nenhum mal. Mandou que Arnaldo a enviasse sem perda de tempo, agarrou o ensaio. Nesse momento, ainda de robe e reclinada no divã de seu gabinete privado, lia um parágrafo. De fato, o segundo marido de Lucrecia Borgia foi estrangulado porque se converteu, embora de forma involuntária, em um inconveniente político para seu irmão, César Borgia. O assassinato se produziu na residência do casal. Lucrecia tentou por todos os meios salvar seu jovem marido, que contava apenas vinte e um anos, mas seus esforços foram em vão. Seguiu consumida na dor pela perda por muitíssimo tempo. Seu pai, farto de escutar seus choramingos, a mandou para fora

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de Roma. — Então foi esse meu problema — murmurou Francesca. — Que não tenho nenhum irmão. — Signora, a signorina Sab... — Uf! Saia do caminho! — disse Giulietta enquanto empurrava Arnaldo para afastá-lo. Atravessou o gabinete com presteza e uma vez que chegou ao lado de sua amiga se ajoelhou na banqueta e agarrou sua mão. — É a fofoca de toda a cidade — disse. — Alguém tentou te matar. Não pode ser verdade. Francesca jogou o folheto ao chão. — Até aí é certo. Qualquer outra coisa que tenha ouvido temo que não será tanto. E passou a descrever nos mínimos detalhes o que aconteceu desde que o ataque começou até que o senhor Cordier partiu. No meio da história Giulietta ficou lívida, mas a parte em que descreveu suas tentativas de seduzir seu vizinho conseguiu reanimá-la. — Preciso matá-lo — concluiu. — E terá que ser com veneno, porque é muito forte para estrangulá-lo. — Forte, bonito e pouco disposto a te fazer o amor — resumiu Giulietta depois de uma gargalhada. — Quem vai te culpar por querer matá-lo? O descreveu de tal forma que daria água na boca em qualquer mulher: cabelo negro azeviche abundante e encaracolado; olhos de um azul incrível; físico atlético; aura poderosamente masculina. A ela mesma lhe fez água na boca, e isso que sabia que não lhe traria nada de bom. Agitou a mão no ar para tirar importância ao assunto. — Superarei. Foi uma loucura passageira, perfeitamente compreensível dada as circunstâncias. — É bonito. Salva sua vida. Está emocionada e assustada. É normal ansiar a companhia de um homem forte e grande na cama para sentir-se segura. — E para me ajudar a esquecer — acrescentou Francesca. — Que melhor forma de esquecer as coisas desagradáveis que uma boa queda? Se tivesse concordado, talvez tivesse dormido em condições. — Entendo — disse Giulietta. — Todo mundo conhece essa reação. Depois de estar exposta ao perigo, ou depois de um enterro, fazer amor demonstra que seguimos vivos. Para mim o mistério é por que te rechaçou. Acredita que gosta de homens? — Não — respondeu, jogando uma olhada a mesinha que, como sempre, tinha

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ao alcance da mão. Nesse momento, na bandeja de prata que repousava sobre ela havia duas taças e a garrafa de vinho, pois Francesca sabia que sua amiga chegaria antes do habitual. Em Veneza os rumores se estendiam a uma velocidade espantosa. Recordou a imagem da mão do senhor Cordier, com os dedos longos, enquanto deixava a taça nessa mesma mesa. Naquele instante, e ao relembrar a rapidez e a frieza com que despachou ao seu atacante, sentira um calafrio. Não sabia se pelo medo ou pela excitação. E depois notou que se inclinava para ela e o calafrio se converteu em uma pontada de emoção, apesar de que ele não demorou em se endireitar e partir. — Embora tampouco importe muito — prosseguiu Francesca — porque não terá uma segunda oportunidade. O filho mais jovem de um conde, querida? Jamais. Não poderia me garantir o estilo de vida que decidi me acostumar, e não penso rebaixar meus requisitos. Um desses requisitos era que lorde Elphick devia retorcer-se de dor ao ouvir o nome de seu último amante, em vez de rir satisfeito pelo que ele interpretou como o princípio de sua queda em desgraça. Uma queda em desgraça que seu ex-marido esperava com ânsia. Estava decidida que quando exalasse seu último fôlego — e esperava que fosse após uma dolorosa agonia — seguisse esperando. — Se lancei essas indiretas ao senhor Cordier foi porque tinha os nervos à flor da pele. — titubeou, e em seguida acrescentou. — Também estava agradecida, como é normal. Sabe que foi a primeira vez em toda minha vida que um homem me resgatou? Nenhum só dos homens que conheci durante minha apresentação em sociedade nem durante meu matrimônio moveram um único dedo por mim quando meu marido começou a comportar-se de um modo tão abominável. Meu pai já havia fugido e me deixou para que fosse pasto dos lobos. Imagine meu assombro ao ver que um completo desconhecido arriscava sua vida por mim! Giulietta franziu o cenho enquanto abandonava a banqueta para aproximar-se a mesinha. Agarrou o frasco do vinho e encheu as duas taças. Deu uma a Francesca e ergueu a outra para brindar. — Está viva. E em agradecimento por isso brindo a seu vizinho. — Também estou agradecida — disse erguendo a taça. Depois do brinde, tomaram um gole de vinho. — Mas vamos esquecer esse homem tão irritante que primeiro te salva e a seguir declina bobamente aproveitar-se de você — sugeriu Giulietta. — Esquecê-lo, claro que sim... — Francesca soltou uma gargalhada zombadora. — Para você é fácil dizer. Ainda não o viu. Não o viu com a roupa molhada...

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— Cedo ou tarde verei — garantiu Giulietta. — E assim entenderei por que te fez quebrar as regras. De momento, só nos importa que te salvou a vida. Mas o mais importante de todo este assunto é averiguar quem te quer morta. Essa noite em La Fenece A Gralha Ladra. Outra vez. Lurenze. Outra vez. Mas não no lugar de honra, observou James enquanto seguia o governador austríaco, o conde de Goetz, para o interior do camarote da senhora Bonnard. No lugar de honra, à direita da referida, sentava-se um oficial russo de cabelo castanho claro. A sua esquerda estava a amiga, Giulietta, uma mulher muito baixa. Ambas com as cabeças juntas conversavam em voz baixa atrás de seus respectivos leques. O oficial, que devia estar familiarizado com os costumes femininos, não fazia a menor tentativa por cercar conversa com a senhora Bonnard e se limitava a conversar com o cônsul russo, que se sentava a seu lado. Lurenze, que claramente não tentou nunca desentranhar o mistério da mulher, ocupava um lugar no meio do camarote e a seguia com o olhar do mesmo modo que faria um cão que observasse a mesa à espera que caísse alguma migalha. E como acontecia com o cão, não havia nada que o distraísse. Goetz, obrigado pelo protocolo a fazer as apresentações, teve que recorrer a várias tentativas até ganhar atenção de Sua Alteza, e quando obteve o príncipe foi incapaz de dissimular a impaciência que lhe produzia a interrupção. Durante as apresentações, Lurenze o olhou e soltou um débil suspiro que não teve dificuldade alguma para interpretar: mais um rival. Entretanto, se Sua Alteza se sentiu desalentado, tal desalento não foi suficiente para fazer desistir. Esqueceu-se de sua pessoa logo que as cortesias de rigor chegaram a seu fim e seguiu olhando com adoração à senhora Bonnard. James sabia que as duas mulheres estavam cientes de sua chegada. Embora sequer tivessem virado a cabeça, percebeu as sutis mudanças em suas respectivas posturas, que delataram o afã com que escutavam o que acontecia a suas costas. Lurenze, ignorando as tentativas de seu assistente em explicar qual era a posição do senhor Cordier na aristocracia inglesa, decidiu dirigir-se ao objeto de seu amor. — Madame, isto está muito concorrido. Gostaria de sair e tomar um pouco de ar fresco? — Obrigado, senhor — respondeu ela, olhando com dissimulação para James, embora fingiu sequer vê-lo. — Mas aqui respiro estupendamente. — Isso é porque está sentada na beirada do camarote — aduziu o príncipe. — E

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me tem muito preocupado. Senhor conde, deveria explicar à dama os perigos de expor-se desse modo. Depois do que aconteceu ontem à noite, não é sensato aparecer onde todo mundo possa vê-la. — Quero que me vejam bem — contradisse ela enquanto olhava ao oficial russo com um sorriso preguiçoso. — Que vejam que não estou assustada. Que vejam que não penso me esconder nem fugir. — Estou de acordo — atravessou James. Obrigou-se a reprimir um ponto de irritação (De verdade sorria dessa forma a todos os homens?) e atravessou o camarote para aproximar-se dela com Goetz atrás. — Seria um crime que a senhora Bonnard se escondesse. As duas cabeças femininas se voltaram ao mesmo tempo com grande elegância. — Senhor Cordier — disse a Bonnard com voz gélida. — Deixou seus estudos para nos fazer uma visita? Que adulador. — Disse que devia vir — particularizou o conde de Goetz. — Se não fosse por... — Deixemos de lado os temas desagradáveis — o interrompeu James. — Por favor, se for tão amável em me apresentar às damas... — Sim, por favor, senhor — insistiu Francesca. — Giulietta morre por conhecer meu intrépido vizinho. — Não é necessário que morra — replicou ele, enquanto fazia uma reverência a Giulietta e agarrava sua mão. — Diz isso agora — disse a Bonnard, dirigindo-se a sua amiga. — Mas você sabe muito bem o que me custou chamar sua atenção. Ante à conversa, o conde de Goetz preparou-se para fazer as apresentações formais. — Este é o homem? — perguntou o oficial russo, que era o conde de Vimstikov. — Senhor Cordier, permita-me apertar sua mão? Estou extremamente agradecido. De fato, acredito que falo em nome de todos os presentes, e inclusive de todos os venezianos, ao lhe agradecer de todo coração. Visto que era cão velho, James não teve nenhum tipo de problema na hora de dissimular a surpresa. Essa não era a primeira vez que o agradeciam, e em muitas ocasiões fizeram mediante dinheiro ou presentes valiosos. Entretanto, um agradecimento dessa índole tão pública era toda uma novidade. Sim, comunicou a tentativa de assassinato não só ao Goetz mas também ao cônsul britânico, o senhor Hoppner. Embora estivesse acostumado a trabalhar na

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sombra, esse não era o tipo de incidente, dada a identidade da vítima e a presença de seus dois gondoleiros, que se pudesse manter em segredo em Veneza. Além disso, se ele acabasse de descobrir que era uma tentativa de assalto comum, algo que não tinha nada a ver com sua missão, os homens do governador eram muito mais qualificados que ele para resolvê-lo. Como todo mundo parecia pensar que se tratava de um delito comum, embora inexplicável, o fato de que o agradecessem era razoável e lógico. Esperava que tivessem razão em sua análise do incidente, simplificaria muito as coisas, mas ele duvidava. O ataque não tinha nada de comum segundo ele. E o pior era que o pegou despreparado. Não havia suspeitado em nenhum momento que a vida de sua vizinha estivesse em perigo. Foi fruto da casualidade que estivesse no lugar adequado no momento preciso. Se não fosse assim... Afastou a ideia justamente quando Lurenze recuperou por fim as boas maneiras e se somou ao agradecimento geral por ter salvado à rameira. — Entretanto, estes heroísmos não deveriam ser necessários — acrescentou Sua Alteza. — Viajar sozinha durante a noite sempre foi perigoso para uma mulher. O conde de Goetz se lançou à defesa das medidas de segurança que imperavam em Veneza. — Isto foi uma espantosa aberração, Alteza. Asseguro-lhe que estamos investigando. — E com essas palavras se aproximou do príncipe para explicar exatamente os procedimentos que estavam levando a cabo. O cônsul russo se somou à conversa. Movido aparentemente pelo interesse nacional, o conde Vimstikov lhe cedeu cortesmente o lugar de honra e se aproximou do príncipe, cuja irritação pelo fato de que o impedisse de seguir observando a sua amada foi mais que evidente. James estava a ponto de ocupar a cadeira vazia quando a senhora Bonnard, ficando em pé, disse: — Aí não. Será melhor que se sente em meu lugar para que esteja entre as duas. Giulietta quer sentir seus músculos. A aludida sorriu com doçura. — Sempre discutimos sobre o tema de que só os homens que realizam trabalhos físicos têm músculos. Preciso comprovar por mim mesma. — De acordo, se for por razões... científicas... — aceitou James. As três cadeiras estavam tão próximas ao corrimão que era muito difícil manobrar. Foi consciente do roçar da seda quando passou junto a Francesca. Voltou

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a captar seu perfume, um aroma tão sutil que incitava a qualquer homem em descobrir sua procedência. Levava-o na pele? No cabelo? Teve que fazer um grande esforço para não inclinar a cabeça para seu pescoço. Assim se concentrou em suas pérolas, do tamanho de ovos de codorna, e se perguntou quantos homens no mundo, e sobretudo em Veneza, que pudessem custeá-las. Não dispôs de muito tempo para calcular as fortunas dos homens que os rodeavam, porque o público vaiou pedindo silêncio justamente quando acabava de sentar-se. No cenário, o malvado prefeito estava a ponto de violar a pobre Ninetta. Essa era uma das partes boas da obra. O senhor Cordier era o único homem no camarote de Francesca que prestava atenção à ópera. Os demais se limitavam a manter a boca fechada porque, de outro modo, os italianos os matariam. A atividade normal não seria retomada até que chegasse o momento certo: quando a audiência desse a sentença a respeito da representação mediante seus aplausos, sua alegria, assobios, gritos zombadores ou lançamentos de frutas e hortaliças. Não obstante, a atenção do vizinho de Francesca continuou cravada no cenário muito depois de que outros começassem a se distrair. Isso concedeu à dama tempo sem muito que fazer salvo ser muito consciente da corpulência, do aroma e da virilidade que exsudava o homem a escassos centímetros. Um homem que era, sem dúvida alguma, o mais viril de todos os presentes. E estava muito seguro de que a ninguém escapava esse fato. "Os homens são como os lobos e os cães — dissera sua mentora, madame Noirot. — Alguns são líderes e outros, seguidores. Perceberá quando um apareça em cena e os outros lhes cedam lugar. Do contrário, lutarão por conservar suas posições. O homem que deverá te interessar é o mais poderoso de todos, aquele pelo que os outros renunciam a sua posição." Nesse momento era muito consciente de que o homem mais poderoso de todos os que estavam em La Fenece se sentava a seu lado. E de que não prestava a menor atenção nela. Não estava acostumada a isso. Entretanto, esse foi só o primeiro dos vexames a que a submeteu. Igualmente irritante era a atenção absoluta que prestava à ópera, coisa que sempre gostava de fazer, mas que não podia, porque se deixar levar pela música era considerado pouco elegante. Aparentemente, lhe importava pouco a elegância ou a falta dela.

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Claro que ele tinha tudo a seu favor: era um aristocrata e como tal fazia o que gostava; um erudito, pessoas que todos consideravam excêntricos, e, a mais importante: o macho alfa que não respondia perante ninguém. O filho mais jovem de um conde não cumpria seus requisitos, recordou-se, embora sua presença eclipsasse aos demais pares. James Cordier não cumpria seus requisitos apesar de seus largos ombros, sua evidente virilidade e esses cachos negros tão sedosos que tentavam seus dedos a brincar com eles. Não cumpria seus requisitos apesar de ter salvo sua vida. Teve a oportunidade de desfrutar de seu agradecimento e a desperdiçou. E ela jamais concedia uma segunda oportunidade a homem nenhum. Ficou em pé. Os cavalheiros a imitaram prontamente, embora ele de modo um tanto distraído, preso ainda aos acontecimentos no cenário. Resistiu ao impulso infantil de bater nele com o leque — ou com uma cadeira, e se aproximou de Lurenze. Os homens se afastaram para deixá-la passar e o rosto do príncipe se iluminou ao vê-la. Francesca ofereceu seu sorriso mais deslumbrante. James chegou à conclusão de que Giulietta era uma mulher muito graciosa. Em circunstâncias normais — se tivesse sido, por exemplo, qualquer dos outros cavalheiros que estavam no camarote — teria preferido sua natureza singela aos mistérios e ao volúvel caráter de sua amiga. Entretanto, ainda não podia se permitir levar uma vida normal. Quando pudesse, estaria na Inglaterra. E quando escolhesse uma mulher alegre e singela, se encantaria por uma moça inocente que o alegrasse em lugar de acrescentar mais problemas a sua vida. Escolheria uma moça que o recordasse que a vida, em sua maior parte, não consiste em enganos, traições, avareza e assassinatos. Uma moça que demonstrasse que nem todo mundo passa a vida imerso em uma maré de merda, justamente no que estava se convertendo sua última missão a passos largos. Como era lógico, tentava por todo os meios de não chafurdar em dito mar. De modo que não podia transferir seus cuidados a Giulietta sem mais, só para acabar numa noite alegre entre os lençóis. Estava obrigado em brincar de gato e rato com sua irritante amiga, que nesse momento reavivava as esperanças de Lurenze, além de certa parte de sua anatomia... — Você resistiu, mas a deseja — sussurrou Giulietta atrás do leque. — Que homem não a deseja? — replicou James, encolhendo os ombros. — Me

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surpreende que sejam amigas. — Quase nunca gostamos dos mesmos homens — explicou a cortesã. — A mim, por exemplo, Lurenze me interessa muitíssimo mais que a ela. — Acredito que sua beleza se considera clássica, sim — apostilou James. "Todo mundo sabe que tem um cérebro do tamanho do de um esquilo, mas isso não lhe tira que seja o tipo mais bonito da cidade", acrescentou para seus botões. — É um moço muito doce e puro — seguiu Giulietta. — É toda uma novidade. — Isso não durará muito — sentenciou ele. — Sei — ela admitiu com pesar. — Suponho que lhe parece pouco ético surrupiar um possível protetor a sua amiga — aventurou James. — Embora tenha uma considerável reserva para escolher. Qualquer um diria que com tantos homens revoando ao seu redor seria difícil que percebesse que lhe falta um... ou dez. — Lhe daria igual, mas ele não tem olhos para ninguém mais — assinalou Giulietta — levou uma vida íntegra, sabe? Por isso o atraem as mulheres de aparência perigosa, as mulheres exóticas. Ai! Minha desgraça é a de ter cara infantil. — Não acredito que isso seja uma desgraça — interpôs James. — Alguns homens se sentem atraídos por uma cara inocente. "Eu, por exemplo" reconheceu para si mesmo. — Mas ele não — lamentou Giulietta. — O muito tolo! Nem imagina como seria bom entre nós. O muito que poderia lhe ensinar. Mas quebrará seu coração. Claro que alguém faria cedo ou tarde; ao menos Francesca não será cruel. Mas isso não impede que siga sonhando um pouco com o que poderia ser. — Espero que seus sonhos não a tenham levado a tentar tirá-la do meio do caminho... matando-a. Os enormes olhos de Giulietta o olharam com incredulidade. — Refere-se à Francesca? Acredita que enviaria esses animais para matar minha amiga... por um homem? O desprezo que uma mulher era capaz de imprimir a uma palavra de cinco letras era surpreendente. Pôs-se a rir. — Me pôs em meu lugar, sim senhora! Os homens são em tal ponto desprezíveis que não vale a pena matar por nós. — Não me interprete mal — pediu ela. — Não sou uma alma cândida. Sou italiana dos pés à cabeça. Se descobrir quem tentou matá-la, matarei. Para mim é

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igual que seja um homem ou uma mulher. E farei com um sorriso em minha carinha de menina boa. Asseguro que nem os austríacos me condenariam. — Parece que a senhora Bonnard não sabe quem pode ser — comentou James. — Insiste que não foi seu ex-marido. Giulietta meneou a cabeça. — Tampouco acredito que fosse ele. Estão jogando uma partida, e matá-la seria como admitir que perdeu. — Uma partida? Giulietta afastou o olhar e começou a abanar-se. — Isso é particular, entre eles dois. — Mas você sabe. — Se quer saber, pergunte a ela. Francesca se permitiu jogar uma olhada à parte frontal do camarote, onde o senhor Cordier e Giulietta mantinham um tête-à-tête. Suas morenas cabeças estavam muito juntas enquanto conversavam em voz baixa. Sentiu uma desagradável pontada muito parecida com certa emoção que fazia anos que já não sentia e a qual acreditou ser imune. Só eram ressentimentos, disse a si mesma, não ciúmes. Giulietta tinha sua bênção para ficar com o senhor Cordier. Virou-se para continuar conversando com o príncipe. — É possível que, depois de tudo, seja um pouco tola — disse. — Impossível — a contradisse ele, solícito. Acomodou-se na cadeira para oferecer ao príncipe uma melhor vista de seus seios. — Não desejo parecer covarde — se justificou Francesca. — Sempre acreditei que devia enfrentar os problemas que cruzassem meu caminho. Entretanto, é a primeira vez que me vejo nesta situação. Assim é possível que não esteja pensando de forma racional. Talvez haja problemas, embora pequenos, estou segura disso, já que os austríacos são famosos por sua eficácia. — Sim, são famosos — concordou Lurenze com reticências. — Sempre tão rígidos quando desfilam. Um sem-fim de regras. Tudo deve ser sério. Eles se contem ao falar. Nunca riem. Parecem-se muito ao meu pai. — Estou segura de que encontrarão logo esses vilões — afirmou Francesca. — Veneza é muito pequena. Ninguém é capaz de guardar um único segredo. Ninguém pode esconder-se muito tempo e a cidade está muito bem patrulhada.

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Entretanto, ainda não encontraram os vilões... nem seus cadáveres — acrescentou enquanto recordava com todo detalhe a imagem de seu atacante quando o senhor Cordier o estrangulou com o braço. — Possivelmente não seja sensato arriscar-me muito até que os encontrem. Não deveria viajar sem uma escolta masculina... no momento. — Madame, não poderia estar mais de acordo neste assunto, e em muitos outros. Se me permitir... — deixou a frase no ar e seu sorriso arrefeceu enquanto erguia o olhar. Nesse momento ficou consciente de uma intensa presença masculina a suas costas, mas se negou a virar a cabeça para olhar. Não obstante, a sensação provocou um formigamento por todo seu corpo. — Se for tão amável, senhora Bonnard, gostaria que me concedesse um minuto de seu tempo — aquela voz rouca tinha o inconfundível acento das classes privilegiadas inglesas. Francesca voltou a cabeça um pouquinho, oferecendo só o perfil, e replicou: — Só um minuto, senhor Cordier? Pergunto-me para que será. — Andiamo — ouviu que lhe dizia ao ouvido, inclinado para ela. A voz, com esse acento tão italiano, tão íntimo, provocou-lhe um absurdo calafrio que reprimiu imediatamente, recordando que não havia nada romântico, nem sequer íntimo, no fato de que um homem dissesse a uma mulher "Vamos". Virou a cabeça para olhá-lo, coisa difícil quando esses escuros olhos azuis a estavam observando com uma expressão que nada tinha de contrita nem de consternada, e teve que adotar a indigna postura de jogar a cabeça para trás para poder olhá-lo à face. — Serei parco em palavras — assegurou enquanto se endireitava tranquilamente. Viu que ele sorria um pouquinho como se acabasse de soltar uma brincadeira particular. Quando Francesca afastou o olhar, percebeu que a inquietação de Lurenze se transformou diretamente em intransigência. Ao fim e ao cabo, era um príncipe e, por muito jovem que fosse, saberia como pôr um arrivista em seu lugar. — A ópera não acabou, senhor Cordier — observou ela, negando-se a estimular o tom confidencial que ele empregou. Não compartilhavam segredos e nunca o fariam. — Não estou preparada para partir. — Madame não está preparada para partir — repetiu Lurenze. Cordier não lhe deu atenção. — Use a cabeça, senhora — aconselhou. — Quando a ópera acabar, todo mundo partirá ao mesmo tempo e entre a multidão qualquer rufião poderia atacá-la

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e fugir aproveitando a confusão. Poderá ver a obra em outra ocasião se estiver tão ansiosa de conhecer o desenlace. Se não, posso contar-lhe... Em lugar de dizer que conhecia o final já que assistira a ópera mais vezes do que recordava, guardou silêncio. — Não sou nenhuma covarde e não penso fugir — afirmou. — Me nego a deixar que um bando de rufiões controle minha vida. — Madame não deseja partir neste momento — insistiu Lurenze. — Quando desejar, a acompanharei aonde ela pense ser conveniente. O conde de Goetz ordenará que soldados nos protejam. O senhor Cordier olhou ao moço por fim. O príncipe ruborizou sob sua análise, mas não mostrou sinal algum de ceder a tal analise. — É todo um detalhe que se ofereça a acompanhá-la, Alteza — disse — Mas, embora fosse apropriado que se rebaixasse à posição de cão de guarda, sei que não quer pôr à dama em perigo de forma involuntária. Lurenze ficou tenso como se lhe tivesse dado um bofetão. — Pô-la em perigo? O que quer dizer? — É possível que o ataque tenha sido obra de algum insurgente, de algum revolucionário — respondeu. — Como Sua Alteza sabe, esses indivíduos procuram vítimas importantes e famosas. Você é um príncipe, herdeiro do trono da Gilenia, enquanto eu sou um dom ninguém. — Estou de acordo em que o senhor Cordier é um dom ninguém — atravessou ela, — entretanto... — Estupendo — a interrompeu ele, — me alegro de que estejamos todos de acordo. Francesca abriu a boca para protestar no mesmo instante em que uma mão enorme e forte a agarrava pelo braço e lhe dava um ligeiro, mas firme apertão. Cravou a vista nessa mão antes de olhar seu dono no rosto. Em um mundo justo, seu olhar o teria convertido em uma casca de ovo que explodiria em chamas e acabaria reduzido a cinzas. O senhor Cordier sequer a olhou. Estava despedindo-se de Lurenze com um gesto de cabeça e dizendo algo em russo a Vimstikov. Tudo isso sem que sua mão a soltasse em nenhum momento. Furiosa, comprovou que a pressão que exercia bastava para obrigá-la a se pôr em pé e conduzi-la até a porta. — Cordier — disse entre dentes — se não me soltar agora mesmo, dar-lhe ei

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um pontapé onde mais dói e com tanta força que demorará muito em se esquecer. — Sempre se mostra assim obtusa? — murmurou. — Não percebe o que estou fazendo? Estou ajudando sua amiga!

Capítulo 05

O sol se põe e se eleva a amarelada lua: a lua é o Diabo a procura de diversão; aqueles que a chamaram casta, em meu parecer, precipitaram-se ao chamá-la assim. Não há um só dia, nem o mais longo, em vinte e um de junho, que veja tantas intrigas nem tão perversas como as que acontecem durante três horas seguidas nas que a lua sorri... E tudo sem perder sua aparente modéstia. LORDE BYRON Dom Juan, Canto I A deplorável verdade era que James Cordier não pensava com clareza. Embora em princípio estivesse escutando Giulietta, ansioso por saber tudo o que pudesse de sua amiga, não parava de distrair-se porque atrás estava a dita amiga com Lurenze. Não escutava apenas o que diziam, mas tampouco era necessário para compreender sobre o que era a conversa. Sabia que Bonnard se inclinava para o príncipe para oferecer uma boa visão de seus seios. Captou perfeitamente a mudança em sua voz, esse tom íntimo e sedutor. Exatamente nesse momento se desculpou com Giulietta, ficou em pé e se pôs a andar para o casal. A cabeça castanha, enfeitada com reluzentes pérolas, estava muito perto da cabeça loira, como se estivessem compartilhando segredos. Bonnard estava pondo em prática suas artes de sereia com o jovem príncipe, e sua vítima tremia pela emoção, como um cachorrinho que acariciassem a barriga. James estava a um passo de levantá-la com um puxão de sua cadeira e arrastála do camarote. Por sorte, mentir era tão natural para ele que não lhe custava nenhum esforço. Em outra época de sua vida teve uma consciência, mas isso fazia tanto tempo que nem lembrava com clareza. A mentira funcionou, e isso era unicamente o que importava. Embora percebesse claramente quão furiosa estava não o ameaçou nem discutiram enquanto saíam do camarote. De fato, parecia tão tranquila que quando se encontrou com vários conhecidos

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no andar de baixo, trocou umas palavras com eles e se despediu sem a menor dificuldade. Assim como muitas mulheres de sua classe, era uma atriz excelente. Sim, por dentro estaria desejando cravar uma adaga no negro coração dele, mas fingiu partir do teatro em sua companhia como se nada ocorresse. Quando saíram ao exterior, o agradou ver que sua gôndola estava preparada, embora não o surpreendesse, claro. Seus gondoleiros, tal e como confirmou Zeggio, eram de confiar. Seus antepassados serviram durante gerações às grandes famílias de Veneza, protegendo-as de traições tanto políticas como pessoais. Daí o porquê Uliva sequer olhou para sua senhora em busca de confirmação quando lhe ordenou entre dentes que não tomasse o caminho habitual. Em um abrir e fechar de olhos abriu caminho pelo Rio delle Veste, e deixaram atrás a multidão de embarcações junto à porta traseira de La Fenece. A senhora Bonnard se acomodou em seu assento como havia feito — recordou James — a noite em que interpretou o papel de dom Carlos: com um cotovelo apoiado no peitoril da janela, o rosto apoiado no punho e a vista cravada na cena que passava diante de seus olhos. Estava relegando-o de seus pensamentos, como também fez naquela ocasião. Oxalá ele pudesse fazer o mesmo. Fechou a porta da cabine sem pensar. O espaço se reduziu drasticamente, e apesar da janela estar aberta, era muito pequena, muito íntima. Embora a gôndola deslizasse pela água com suavidade, de vez em quando seus quadris se roçavam, assim como seus ombros. A saia de seu vestido de seda roçava suas calças. A suave brisa que entrava pela janela soprava em sua direção, arrastando consigo o delicado perfume de Francesca. Necessitava uma distração. Uma briga seria melhor. Mas se negava a ser ele quem rompesse o silêncio. Cravou o olhar nos braceletes de pérolas e diamantes que enfeitavam seus pulsos acima das luvas e tentou se distrair calculando seu valor. Ao final, quando deixaram para trás as embarcações de todos aqueles que estavam no teatro, ouviu-a dizer com uma nota enfastiada na voz: — Então, estava ajudando Giulietta. Que galante! — Acreditei que só necessitaria um sinal — ele interpôs. — Me surpreendeu que quisesse reter o principezinho, sobretudo porque não o deseja de verdade. — É uma insensatez fazer os homens acreditarem que os deseja — ela assinalou. — Desse modo se mostram arrogantes. O olhar desdenhoso que lhe lançou foi tão fácil de interpretar como o sinal de

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um botequim. Disse a si mesmo que devia deixar passar. Não pôde. — Refere-se a mim. Sou presunçoso, ou a essa conclusão chegou. — Parece ter a equívoca impressão de que anseio por sua companhia — disse. — Asseguro que pode ficar muito tranquilo a respeito. Ontem à noite tinha a mente confusa pelo susto e a razão nublada pela gratidão. Nada que ver com esta noite. Desperdiçou a única oportunidade de estar comigo. — Não a tirei do teatro por esse motivo. — Nem pela Giulietta tampouco — afirmou ela. — Essa foi a desculpa mais tola que jamais ouvi... tão tola como a que deu ao Lurenze. Não existia motivos para se sentir envergonhado, disse-se. Vivia de desculpas tolas. Entretanto, por mais fácil que fosse mentir a outros, era incapaz de mentir a si mesmo. Não podia fingir que desconhecia o verdadeiro motivo pelo qual a tirou do teatro. O fato de que ela também soubesse lhe provocou um rubor que subiu do pescoço. Sentia-se como um imbecil. Não, muito pior. Ele, todo um profissional, havia voltado a ser o impetuoso moço de sua juventude. Enquanto isso, ela continuou como de costume, com a face de seda apoiada na mão enquanto desviava o olhar da paisagem e o cravava nele. — Você estava jogando com Lurenze com a esperança de que eu fizesse exatamente o que fiz — afirmou James. Para sua surpresa, ela sorriu. — Funcionou, não? Os homens são muito fáceis. São tão competitivos... Obrigou-se a devolver o sorriso. — Certo. Brigamos entre nós por qualquer coisa, embora não a queiramos. — Se está tentando me baixar a fumaça precisa se esforçar mais — ela aconselhou. — Recorde que sou uma divorciada, Cordier. Fui insultada e difamada pelos melhores peritos. Assaltou-o uma sensação muito estranha. Não podia ser sua consciência, dado que a deixou na França dez anos antes. Era... irritação. — Será melhor que lembre, senhora Bonnard, que não sou um principezinho de vinte e um anos, mas um homem de trinta e um que viu algo do mundo. Não é a primeira mulher que tentou me conquistar. — Nem sequer tentei ainda — replicou ela. — Quando fizer, se caso chegar a fazer, saberá. — Pois ontem à noite pôs muito empenho.

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Suas elegantes sobrancelhas se arquearam. — Insinua que me esforcei? — Reconheço uma indireta quando me lançam uma. — Só me mostrei um pouco interessada — particularizou. — Ligeiramente interessada. Estava quase a beira do desinteresse. Se tivesse chegado a me esforçar, um pouquinho apenas, você teria sido incapaz de resistir. Lembrou sua risada de sereia. Sentiu certo alarme, mas o afastou. — Tem a si mesma em grande estima. Entretanto, a fortuna em pérolas que ostenta não demonstra que seja irresistível, mas sim que alguns homens são mais fracos que outros. Certo homem foi certamente débil. Afastou o olhar de seu altivo rosto para observar os brincos compridos de pérolas e depois desceu até os dois colares. O primeiro e mais curto era formado por uma fileira de pérolas em forma de lágrima cujo tamanho ia aumentando até chegar ao maior, que pendurava no centro. Justo acima de seu decote. A julgar pela rapidez com que seus seios subiam e desciam, não era tão indiferente como assegurava. O vestido tinha um decote muito baixo e confeccionado em seda azul que recordava a origem marinha das pérolas. Os braceletes de pérolas e diamantes em torno dos finos pulsos brilhavam sobre as suaves luvas. As joias por si mesmas já eram uma imagem cruelmente excitante para um homem que era, no fundo, um ladrão. Tirava-lhe de gonzo não poder roubá-las sem mais e logo esquecer-se dela. — Não me crê capaz de pô-lo de joelhos — ela disse com voz distante e desdenhosa. — Quer que apostemos? Voltou a olhar a seu rosto. A tensão que vibrava no felze se multiplicou por dez. — Não aposto com mulheres — respondeu. — Não é justo. — Essa é a desculpa a que se apegam os homens quando o que ocorre em realidade é que não suportam a humilhação de perder para uma mulher. — Nunca perco — ele assegurou. — O fará — sentenciou ela. — Vejamos... o que apostamos? — fechou os olhos um instante enquanto pensava. Quando voltou a abri-los, brilhavam. — Já sei. Há um conjunto de peridotos 7 no Faranzi que me chamou a atenção. — Peridotos? Vejo que não valoriza muito suas habilidades... — Estou valorizando seus ganhos — ela particularizou. — Esses peridotos lhe 7

O peridoto é uma variação gemológica de forsterita, mineral do grupo das olivinas. É geralmente verde-esmeralda ou verde-claro, chegando a amarelo-esverdeado, verde amarronzado ou marrom.

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serão extremamente caros. Terá que pedir um empréstimo para pagá-los. Um empréstimo que não será excessivo para um dos filhos mais jovens de lorde Westwood. — Entendo. Não só quer fazer uma aposta custosa, mas também cruel e humilhante. Viu-a assentir com a cabeça. — E bem? — E se você perder? — Não perderei — foi sua resposta. — Mas se o fato de imaginar tranquiliza seu ego masculino, por favor, me diga o que quer. "As cartas — pensou. — São as culpadas por ter que me enredar contigo. Só quero as ditosas cartas, maldita seja!". Entretanto, embora essa fosse a única verdade, embora as cartas tivessem sido o que aspirava conseguir, não podia reclamá-las como prêmio. — O jogo de peridotos. Isso a surpreendeu. Afastou a face da mão e inclinou a cabeça para observá-lo com atenção. — Será um presente para minha prometida. Ela piscou. — Está comprometido? Era uma mentira muito fácil. Muito fácil. Estava muito zangado para usá-la. — Ainda não — respondeu. — Mas tudo caminhará. Será um bonito gesto para minha futura esposa. Será um símbolo de que posso defender meus princípios e minha honra apesar de enfrentar uma tentação quase irresistível. Francesca entrecerrou seus exóticos olhos. — De "quase", nada. — Veremos — replicou James. — Diga o dia e o lugar. Ela olhou pela janela. — Agora — disse ela. — Temos tempo de sobra antes de chegar a minha casa. Além disso, isto não deve nos levar muito tempo. Sua confiança, sua maldita insolência! Era incrível. Era irritante. Deveria ter mordido a língua levando em conta o quanto furioso estava. Deveria ter dado um tempo para tranquilizar-se e refletir. Mas estava muito furioso... com ela e consigo mesmo. — Veremos o que sabe fazer — a desafiou. Francesca não recordava a última vez que esteve tão furiosa. A noite passada se pôs em ridículo e nesse momento ele pensava que ela fosse

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sua para fazer o que quisesse... quando ele quisesse e como ele quisesse. A seus olhos era somente uma puta. "E é — sua voz da razão lhe recordou. — Escolheu ser." Certo. Mas mesmo assim, as pérolas que ele via como um sinal de debilidade dos homens era em realidade um símbolo de respeito, um símbolo de seu poder. Desde que abandonou a Inglaterra, essa frígida ilha de provincianos, puritanos e hipócritas, nenhum homem foi desrespeitoso com ela. Salvo ele. Um inglês é obvio. Meio inglês, para ser exata, mas essa metade bastava. Necessitava que lhe dessem uma boa lição. Fechou as venezianas da janela ao seu lado com muita parcimônia. Aproximouse dele, deixando que seus seios roçassem seu torso, e fez o mesmo com a outra janela. Quando voltou ao seu lugar, percebeu que Cordier respirava um pouco mais rápido que antes. Pôs as mãos sobre o colo. — Assim está melhor — disse. — Ninguém poderá nos ver. — Não terão nada que ver — replicou ele. — Logo veremos. Olhou as mãos durante um bom momento e o deixou esperando. Como estava sentada a sua direita, começou com a luva da mão esquerda. Desceu até o pulso, onde ficou enrugada sobre os braceletes. Deu um pequeno puxão no polegar, no indicador e seguiu com os demais dedos. Fez muito devagar, como se estivesse pensando em outra coisa. Depois tirou a luva, passando-a com cuidado por baixo dos braceletes. Por último, a soltou sobre seu colo. Não o olhou. Não precisava. Sabia que estava fixado em suas mãos. Sabia que acelerou sua respiração e que tentava controlá-la. Assim fez com a outra luva, devagar, tranquilamente, como faria se estivesse sozinha em seu quarto de vestir. Despindo-se. Soltou a segunda luva sobre o colo. Colocou os braceletes e deixou que seus dedos pousassem sobre as pérolas e os diamantes que adornavam seus pulsos nus. Levantou uma mão. Ele se esticou. Não o tocou. Em troca, levou o dedo indicador à orelha direita. Seguiu a curva do lóbulo e a parte posterior, detendo-se nesse lugar meio oculto onde adorava que a beijassem.

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Sentiu-o remexer no assento. Não se importou. Fingiu que estava sozinha, desfrutando de suas joias, dela mesma. Deslizou o dedo pelos brincos, acariciando a pérola redonda do broche, e depois desceu pela que pendurava com forma de lágrima. A forma mais sensual em uma pedra preciosa. Baixou a mão até o colar mais curto e desfrutou do tato das grandes pérolas. Acariciou uma e outra vez, e depois desceu pouco a pouco até a enorme pérola que pendurava justo no centro. E seguiu baixando para brincar com o outro colar. E ainda baixou mais. Até o sutiã. Deslizou a mão sobre a seda, que sussurrou sob sua palma, e cobriu um seio. Ouviu-o gemer. Não olhou. Observou sua própria mão como teria feito se estivesse sozinha... enquanto se tocava. Seguiu a linha do decote com o polegar de um lado ao outro, muito devagar, acariciando a parte superior dos seios. Depois abaixou um pouco o sutiã, descobrindo um centímetro de pele. Ouviu-o soltar o ar com força. — Diavolo! — resmungou James enquanto a agarrava pela cintura até seu colo. Agarrou-a pela nuca e aproximou seu rosto ao seu. Foi tudo muito depressa, mais do que ela esperava. Não estava preparada. Ainda não terminara. — Não termi... Seus lábios a silenciaram. Eram quentes, obstinados e muito furiosos. Colocou as mãos no peito e o empurrou. "Ainda não terminei", pensou. — Ainda não... Mas esqueceu o restante porque seus lábios eram quentes, firmes e... E suas mãos afrouxaram, a razão nublou e tudo se converteu em um torvelinho confuso e apaixonado. Começou a nadar em muitas sensações. O aroma. Um aroma masculino. Uma mistura de loção de barbear, amido e roupa limpa. O úmido ar veneziano impregnava sua jaqueta. E tudo se misturava com o aroma de sua pele. O tato. O roçar desse corpo grande, quente e musculoso que ocultava atrás da fachada civilizada. Sentia a tensão em suas fortes coxas. Era consciente do calor que sentia sob ela, de sua ereção. Uma inesperada sensação a assaltou de repente, com força, e notou que a

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paixão rastejava por suas vísceras como uma serpente. Deslizou as mãos por seu peito para agarrar-se aos ombros e seguiu subindo até os cachos negros, enterrando os dedos neles. Agarrou-se a ele enquanto a abraçava com força e devolveu o beijo com a mesma obstinação e a mesma fúria. Obstinação e fúria, paixão e desejo. A língua dele insistiu em entrar em sua boca e ela cedeu. Seu sabor era perigoso, pecaminoso... justamente o que gostava. Tinha sabor de pecado. A todos os pecados que sempre advertiram que evitasse. A todos os pecados que cometeu. A todas as regras aprendidas que quebrou. Ouviu um som ao longe, uma espécie de zumbido, mas também ouvia em sua cabeça. Não foi capaz de distinguir um do outro. Nem quis. Só importava as mãos dele, esses dedos longos que se moviam por seu pescoço, deslizando pelas pérolas e por sua pele até chegar a esse lugar que o convidou em silêncio um momento antes. Sentiu que lhe baixava o sutiã e acariciava os seios. Nesse instante ele pôs fim ao beijo para baixar a cabeça e ela arqueou as costas para lhe dar espaço. Beijou seu seio com ardor e paixão que acabava de descobrir antes de fazer o mesmo com o outro. Depois levantou a cabeça e esses escuros olhos azuis a olharam, reluzentes à luz do farol. — É uma menina muito aborrecida — disse com voz rouca. A tirou de cima e a pôs de novo no assento. Sem muitos olhares. O urgente desejo se transformou em raiva. Francesca esteve a ponto de agarrálo pelo pescoço para asfixiá-lo. Entretanto, o bom senso ganhou a partida ao recordar que era muito grande para ela e que desse modo estaria em ridículo ainda maior do que sentia nesse momento. Voltou a ouvir o longínquo zumbido. Seu coração pulsava disparado pela luxúria e a ira, mas não era isso o que ouvia. Era o repicar da chuva no teto da cabine. James abriu um pouco as venezianas para lançar um olhar ao exterior. — Chegamos — disse ele com voz grave. — Perdeu, cara. Já haviam chegado a casa? Abriu as venezianas com brutalidade. Sua casa. Piscou sem acreditar. Olhou-o, mas ele seguia olhando fixo ao exterior.

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— Maledizione! — exclamou James. Francesca se inclinou ao seu lado para olhar. Havia uma gôndola enorme e ostentosa com os faróis acesos junto ao embarcadouro de sua casa, cuja porta estava aberta e o andar térreo iluminado. Na entrada estava o príncipe Lurenze. Ao seu lado, o conde de Goetz. Cordier se voltou para ela e começou a subir o sutiã. Francesca afastou suas mãos com um tapa e se cobriu com rapidez ela mesma. Arrumou as saias e relaxou a expressão. Quando a gôndola se deteve, estava preparada. Deixou que Cordier a ajudasse a desembarcar, mas fingiu ter olhos só para Lurenze. Presenteou o príncipe com seu sorriso mais radiante e íntimo e se dirigiu a ele como se fosse o único que importasse, como se os outros não existissem. — Que agradável surpresa! — exclamou. — Ou não deveria me surpreender? Tínhamos combinado uma conversa e esqueci por tudo o que aconteceu estes dias? — Não, senhora, nada disso — respondeu Goetz. — Estamos aqui porque queríamos informá-la sem perda de tempo. Sua Alteza se limitou a assentir com a cabeça. Sem dúvida estava tentando recuperar o equilíbrio, pois o perdeu perante o deslumbrante sorriso de Francesca. — Logo após sua partida com o senhor Cordier, recebi uma mensagem — explicou o governador, — capturaram um homem que fugia para o interior em uma gôndola roubada. Temos razões para acreditar que pode ser um de seus atacantes. Prendemo-lo. Senhor Cordier, devo pedir que me acompanhe para identificá-lo e assim evitar a penosa tarefa à dama. — Não acontece nada — disse Lurenze. — Não deve temer nada, senhora. Ficarei para protegê-la... como um cão de guarda — olhou Cordier com expressão desafiante. Embora sua expressão não conseguisse ocultar sua insegurança. E tinha motivos para não estar seguro, certamente: Francesca rechaçou todas suas tentativas de protegê-la no passado. Aproximou-se dele. — É muito amável, Alteza. Obrigada. Será um prazer desfrutar de sua companhia. Os olhos cinza do príncipe se iluminaram. Seus lábios esboçaram um sorriso e sua expressão se converteu na viva imagem da felicidade. Como não corresponder a esse sorriso, a essa doçura? Francesca olhou ao governador, fingindo que lhe custava e precisava de ajuda

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divina afastar o olhar de Lurenze. — Até logo, ilustríssimo — disse. O conde lhe fez uma reverência. Afastou o olhar do governador e se agarrou ao braço de Lurenze. — Addio, senhor Cordier — despediu-se dele por cima do ombro como se não fosse importante e subiu os degraus ao lado de Lurenze. Sem olhar para trás. Mais tarde, no Palácio Ducal James desejava com toda sua alma que os austríacos tivessem apanhado ao homem correto porque precisava fazer mal a alguém com urgência. Faltou o soar de um penique para que perdesse o bom senso e se deitasse com a Bonnard ali mesmo, na gôndola. Nem que fosse um jovenzinho imberbe com sua primeira rameira... Foi a enorme pérola, que o golpeou na cabeça quando estava a ponto de deixar-se levar pela suavidade e o doce perfume de seus seios. Se não o tivesse golpeado, não teria recuperado o bom senso, não teria recordado onde estava, nem o que ela era nem o que ele estava a ponto de fazer. Ficou vermelho como um tomate ao se lembrar. "Imbecille! — recriminou-se. — Idiota!" Miúda maneira de se fazer firme, sim... Bonnard teria se deitado com ele, ganharia a aposta e o teria despachado de pronto. Tinha peixes muito mais gordos em sua rede. Peridotos, nada menos. Bagatelas, para ela, embora houvesse se encantado caprichosamente dessas pedras, seguro que seu preço levaria ao filho mais novo de qualquer aristocrata ao poço dos prestamistas, do qual no melhor dos casos nunca poderia sair. Mesmo assim, conseguiu salvar-se. Ganhara e ela estava furiosa. Se não tivesse aparecido Goetz com o príncipe encantado, possivelmente a teria provocado até o ponto de que ampliasse a aposta. "Darei outra oportunidade", poderia ter dito. Ela o teria convidado a entrar em sua casa e, se era preparado e cuidadoso, teria confessado algum segredo. Mas não. Em troca, teria que passar horas atolado em águas burocráticas, tentando arrancar informação de um rufião enquanto ocultava ao governador austríaco suas verdadeiras intenções. Pensava nisso quando entrou com o conde de Goetz no Palácio Ducal. A caminho do lugar, discutiram a respeito de como tratar o suspeito, e conseguiu enrolar o governador até o ponto de que o homem se acreditava o criador do plano. Nesse momento, depois de atravessar os estreitos e escuros corredores que

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partiam da sala do conselho, encontravam-se na sala de interrogatório. Não era uma estadia agradável. Até o mais insensível perceberia sua negra história, como se estivesse maldita pelas almas de todos os que sofreram entre suas paredes. O medo era uma tática antiga, porém, muito eficaz, e os austríacos sabiam. Para inspirar terror ao prisioneiro, o prenderam em um dos pozzi, os "poços". As diminutas, escuras e úmidas celas estiveram, tempos atrás, lotadas de gente que enfrentou à República de Veneza. Nesse momento, era um lugar muito solitário. Enquanto Goetz e ele esperavam que tirassem o homem das profundezas de sua prisão, o governador mostrou a James essa parte do Palácio Ducal. O prisioneiro apareceu ao final, rodeado de guardas. Uma precaução desnecessária dado os pesados grilhões que levava nos tornozelos. Tal como combinou com Goetz, permaneceu oculto nas sombras. O prisioneiro se concentrou no governador e não prestou a menor atenção em James, pois o considerava um mero subordinado. O interrogatório foi em italiano. Embora não chegasse muito longe. Em primeiro lugar, porque o dialeto meridional do suspeito era incompreensível para o governador e inclusive para o próprio James. E, em segundo lugar, porque o indivíduo, que dizia chamar-se Piero Salerno, afirmava não saber nada a respeito de nenhuma dama. Segundo ele, caiu de um barco de pesca. Não tentava roubar a gôndola. Só subiu porque estava cansado de nadar. Essa era sua história. Não fazia sentido algum, mas se apegava a ela como a um prego ardendo. Goetz suspirou e se voltou para James. — Senhor, conhece este homem? O prisioneiro deu um pulo, já que aparentemente se esqueceu de sua presença. Nesse momento esticou o pescoço e observou as sombras onde se encontrava o acompanhante do governador, com olhos entrecerrados. Embora tivessem deixado várias zonas da sala às escuras — a pedido de James — o lugar onde se encontrava o prisioneiro estava bem iluminado. E o teria reconhecido até com muito menos luz. Vira seu rosto de relance, mas seu trabalho consistia em fixar-se nos detalhes e recordá-los. — É ele — respondeu. Saiu das sombras. Piero se encolheu e retrocedeu um passo apressadamente. Um dos guardas o

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devolveu a seu lugar com um golpe de fuzil. — Que pena! — exclamou. — Esperava que fosse o outro. Este se limitou a remar. — É cúmplice — assinalou Goetz. — A pena é a mesma. — E se cooperar? — perguntou James. — Talvez se falasse com ele a sós, seria mais comunicativo. — Não! — gritou e os olhos se arregalaram como pratos. A noite anterior não fugiu muito longe. A julgar por sua reação, presenciou o que fez a seu grande amigo. James lhe lançou um sorriso. Goetz fez sinal aos guardas e os três saíram da sala, deixando James a sós com o prisioneiro. Cordier se dirigiu ao homem em um italiano simples, o mais baixo que sabia. — Não foi uma boa noite para mim, Piero. Tive que sair do teatro antes que acabasse a ópera... tive que deixar Rossini! Uma mulher me põe a cabeça como um tambor grande me contando seus problemas com os homens e outra me retorce as bolas. Não queria vir, que conste. Tenho coisas melhores a fazer. Os mentirosos falsos como você estão me fazendo perder um tempo que nunca poderei recuperar. Não estou de bom humor e quero fazer mal a alguém. Não é o primeiro de minha lista, mas me servirá, asqueroso pilantra. Deu um passo para ele. Piero tentou retroceder, mas tropeçou com os grilhões e caiu ao chão. James o agarrou pelo braço e o levantou de um puxão, com força suficiente para lhe arrancar um grito. — Posso puxar mais forte — disse. — Posso desconjuntá-lo. Quer que demonstre isso? Piero começou a gritar. — Socorro! Socorro! Quer me matar! Tentou correr para a porta, mas voltou a tropeçar. Quando Cordier se agachou para voltar a levantá-lo, o homem recuou pelo chão. — Não importa a ninguém se grita, escória — disse. — Ninguém se importa se o mato. O governo economizaria o custo do julgamento e da execução. Mas vou te dar um conselho: depois do mau humor a que me levaram essas mulheres, não armaria tanto escarcéu se estivesse em seu lugar. Voltou a pô-lo de pé de um puxão. Nessa ocasião o sustentou pelo braço e apertou com força. Piero choramingou. — A única maneira de melhorar meu humor — prosseguiu, — é me dizer quem

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é ou era seu amigo e por que atacaram à dama. Vou contar até três para te dar tempo que melhore meu humor. Um. Dois. — Fizemos — disse o homem. — Atacamos à puta. James apertou com mais força. Os olhos de Piero se encheram de lágrimas. — Quem atirou à água é Bruno. Eu me escondi a esperá-lo, mas não apareceu. Acredito que o matou. E por isso roubei a gôndola para voltar. — Isso dá no mesmo — assegurou. — Por que veio à cidade? — Para roubar. É o que fazemos Bruno e eu. Tivemos problemas em Verona e fugimos para Mira. A puta estava ali durante as férias do verão. Todo mundo falava das joias que tem. Mas depois se foi da vila e voltou para Veneza. E nós viemos a Veneza, porque é mais fácil segui-la aqui que em um povoado onde todo mundo observa a todo mundo. Viemos a Veneza e esperamos o momento oportuno. Uma vez que abriu a boca, foi impossível pará-lo. Embora pouco do que disse importava. Ir a Veneza só para roubar? Não fazia o menor sentido. Era muito mais fácil delinquir em qualquer outra parte da Itália... Nos Estados Pontifícios, por exemplo, onde a corrupção estava à ordem do dia. Ou mais ao sul, no reino das Duas Sicílias. Mas em Veneza, onde governavam os austríacos... Não fazia sentido. Apesar de tudo, Piero não se contradisse em nenhum momento. Só se tratava de um roubo, nada mais, insistiu. Bruno decidiu divertir-se um pouco violando a vítima. Não tentava estrangulá-la, só lhe apertou o pescoço para que não gritasse, assegurou. — É uma puta. Gostam disso, como todo mundo sabe e... James o empurrou com tanta força que o prisioneiro tropeçou e caiu no chão. Dessa vez o deixou onde estava. Porque se voltasse a tocar a esse porco, o mataria.

Capítulo 06

E até os mais sábios, que fazem o que podem, têm momentos, horas e dias tão distraídos que poderia golpeá-los com os leques de suas

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damas; em ocasiões as damas os golpeiam com excessiva força, os leques se convertem em cimitarras em suas formosas mãos, e ninguém compreende o como nem o porquê. LORDE BYRON Dom Juan, Canto I James não resolveu tão rápido os assuntos burocráticos como resolveu o tema de Piero. O governador o reteve no Palácio Ducal até passado o amanhecer, pondo todos os pontos sobre os is. Teria voltado para casa de Bonnard apesar da indecência da hora, mas era muito consciente de que o fedor do pestilento corpo de Piero e dos demais cheiros da cela que se apegaram a esse porco se impregnaram em sua roupa. De modo que foi a Ca' Munetti. Seus criados estavam acordados nessa hora, assim não precisou esperar muito para um banho. Depois, informou brevemente Zeggio e Sedgewick do que averiguou através de Piero. E a seguir se meteu na cama, dizendo-se que uma vez que tivesse espaço na cabeça, encontraria a maneira de saltar o obstáculo. Dormiu muito pouco tempo por culpa de um sonho. Começou de maneira esplêndida, com uma Bonnard nua que se equilibrava sobre ele, jogava os braços ao pescoço e grudava esse voluptuoso corpo contra ele. Depois aparecia Lurenze e ela se separava dele com um empurrão para equilibrar-se sobre o príncipe. Despertou com um sobressalto, consciente de que não se encontrava sozinho. Sentou-se na cama. Sedgewick e Zeggio estavam no vão da porta, olhando-o com expressões preocupadas. — O que...? — perguntou. — O que ocorre? — Estava gritando, senhor — respondeu Sedgewick com ar contrito. — Coisa que não costuma fazer, como dizia ao senhor Zeggio. Mas era em italiano e não entendi o que dizia. — Eu disse. Só gritava: "Volta aqui, sua maldita!" — disse Zeggio. — Disse que não é para se alarmar. Que só é um sonho, nada mais. — Mas como esteve nas fundações ontem à noite... — Pozzi — corrigiu Zeggio. — As celas estão na terra, como poços, nada que ver com as fundações. — Acreditei que isso o tivesse transtornado um pouco, senhor. Pelo tempo que passou em Paris naquele inferno... onde esses asquerosos gringos o torturaram. Por

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isso disse que precisávamos despertá-lo. Mas despertou sozinho. Passou-se quase um ano recuperando-se das técnicas de interrogatório franceses. Aquilo fazia muito tempo, dez anos. A dor foi fácil de esquecer, mas os demais detalhes estavam gravados a fogo em sua memória. Não foi o único a quem traíram, mas sim foi um dos poucos afortunados. Dois de seus camaradas foram torturados até morrer. As cicatrizes que tinha, ao menos as que se viam, apagaram-se. As unhas tornaram a crescer. E retornou ao trabalho, decidido a igualar o placar. Mas naquele tempo era muitíssimo mais jovem. A essa altura da vida demoraria anos em recuperar-se... se caso conseguisse, coisa que não estava muito seguro. Nesse momento também compreendia que o rastro da traição não só era complicado, mas também infinito. "Já sou muito velho para isto", pensou. — Me dê algo que vestir — disse para Sedgewick. — E pegue a navalha de barbear. Barbeou-se e se vestiu com rapidez, como de costume. Não era seu estilo passar horas polindo-se. Estava dando boa conta do café da manhã quando Zeggio, que foi preparar a gôndola, apareceu com um pequeno pacote nas mãos. — Uma donzela trouxe — disse. — É da signora Bonnard. Observou o pacote, elegantemente embrulhado. Deixou a um lado a xícara de café, agarrou o pacote e o desembrulhou. Reconheceu a forma da caixa. Abriu com gesto sério. Não era necessário levantar o olhar para saber que Sedgewick e Zeggio se aproximaram. Olharam primeiro o conteúdo da caixa e logo seu rosto. Não atirou a elegante caixa ao outro lado da sala. Os peridotos não eram pérolas, diamantes nem esmeraldas, certo. Mas os de qualidade não eram baratos. Sabia muito bem que a realeza usava peridotos, e esse conjunto, com as pedras engastadas com brilhantes, era digno de uma rainha. Acomodou-se e seguiu olhando-o enquanto fervia de fúria, apesar de não ter nenhum motivo lógico, ao menos para estar zangado. Era uma brincadeira, só isso. A aposta não tinha a menor importância para ela. O preço dos peridotos era irrisório. Essa era a mensagem que lhe enviava. Para ela só foi uma diversão passageira, um jogo para passar o tempo até chegar a seu destino, onde a aguardava uma presa muitíssimo mais importante. Quando recuperou a voz, disse:

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— Uma aposta sem importância, nada mais. A senhora Bonnard paga pontualmente, certamente. Com certeza enviou a donzela para que esperasse na porta da loja até que abrisse. — São pedras magníficas, senhor — disse Sedgewick. — Sim, são — concordou James. — É uma boa perdedora. Devo agradecê-la. Em pessoa. Zeggio preparou a gôndola? Embora tenha falado com voz calma e baixa, algo fez que Zeggio saísse a toda pressa. E que Sedgewick franzisse o cenho. — Senhor... Cordier o interrompeu, levantando uma mão. — Me encarrego disto. — Sim, senhor — disse Sedgewick. — Ao menos averiguei algo — murmurou. — Sim, senhor. Só foi um roubo, não tem nada que ver com... — Por fim entendo por que Elphick se divorciou dela — afirmou. — O que não entendo é por que não a estrangulou. Palazzo Neroni, pouco tempo depois Francesca estava nua. Ou ao menos assim a descreveria qualquer pessoa respeitável, que protestaria pelo que deixava à vista. Nem levava um vestido matinal decente nem um roupão apropriado. Em lugar da recatada camisola de algodão que as mulheres decentes usavam para dormir, ela levava uma deliciosa camisola de seda amarelo claro. O decote se ajustava com um par de fitas de seda rosa e o sutiã igual, mas sob os seios. Sobre a camisola levava um robe de seda de um amarelo ainda mais claro, que mais parecia bege. Em contraste com a simplicidade da camisola, o robe estava adornado com quilômetros de babados, renda e bordados brilhantes, enfeitado com pérolas diminutas. Quando entrou no Puttinferno, lamentou não ter mandado que servissem o café da manhã na intimidade do gabinete anexo ao seu quarto de vestir. Bom, já era muito tarde. Seguro que seu aspecto escandalizava os meninos de gesso e pintura. Ignorou-os, a eles e seus dedos gordinhos apontando a grande prostituta que havia entrado na sala, e olhou Lurenze, que se pôs em pé com um sorriso ao escutar seus passos.

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Assim que a viu, abriu os olhos como pratos e ficou boquiaberto e levou uma mão ao coração enquanto murmurava algo em seu idioma. — Bom dia — saudou Francesca com um sorriso muito íntimo. Por sorte, Arnaldo estava ali para afastar a cadeira, já que Sua Alteza estava temporariamente non compos mentis 8. Após um momento ensimesmado e vários comentários mais em seu idioma, o príncipe conseguiu lembrar seu inglês. — Parece... parece... espuma de sabão — disse. — Nunca vi nada tão formoso. Em meu país, as mulheres não se vestem para... para... para insinuar tanto seus encantos. — Em meu país tampouco — ela admitiu. — Me alegro de que não estejamos em seu país nem no meu — disse o príncipe. Nesse momento percebeu um som distante, procedente da entrada. Arnaldo serviu café e partiu. Deu uns goles. Mordiscou uma bolacha e a pôs de lado porque suas mãos tremiam. O coração pulsava disparado, mas continuou oferecendo sorrisos sonolentos ao príncipe enquanto deixava cair sutis indiretas que escapavam a sua loira cabecinha. Arnaldo retornou. — O senhor Cordier chegou, senhora — anunciou o mordomo. — Deseja que diga que volte em outro momento? — nem sequer olhou ao príncipe enquanto falava. — Não, que suba — respondeu. Não acrescentou: "Estava esperando-o". Arnaldo foi cumprir com suas ordens. — Apostamos... — interrompeu-se e esboçou um enorme sorriso. Foi incapaz de reprimir. Perdeu a aposta, mas Cordier se inteiraria de que enfrentava uma mestra do jogo. — Queria dizer que o senhor Cordier certamente vem para nos informar do acontecido ontem à noite com o homem que capturaram. — Perguntava-me quando receberíamos notícias — disse Lurenze. — Demorou muito. Estava pensando em enviar um criado para buscá-lo para que nos desse explicações. — Os assuntos legais sempre demoram uma absurda eternidade — observou 8

Não é de boa mente, memória ou compreensão; não competente para ir a julgamento.

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ela. — Regras e normas. Papéis que assinar... — Certo, certo — concordou Lurenze. — Às vezes as assinaturas dos papéis me deixam louco. Tantas regras. E todo o protocolo... Falar com este e com aquele... Escutar as queixas dê um, os desejos de outro que quer que faça algo. Mas quando governar Gilenia, a situação piorará. Devo aprender de você, madame, porque você é muito paciente e agradável. — Sua companhia traz a luz minhas melhores qualidades — declarou Francesca. O príncipe ruborizou de prazer. Era tão fácil agradá-lo! Estendeu um braço por cima da mesinha e cobriu uma mão com a sua. — Você é muito bom — disse. — Não sei como chegou a ser, mas peço, por favor, que não mude nunca. — Bom? — repetiu ele com uma gargalhada. — Mas eu não vim a Veneza para ser bom. — Veio para ser mau — ela particularizou. — O entendo perfeitamente. Mas se pode ser mau e ao mesmo tempo... — acrescentou enquanto lhe acariciava a mão, — manter a bondade de coração. Arnaldo retornou. — O senhor Cordier — anunciou. Colado em seus calcanhares, como uma sombra perigosa, chegou o problemático filho de lorde Westwood, com o pacote que lhe enviou nas mãos. Um brilho perigoso apareceu nesses olhos azuis quando passaram do ruborizado e feliz rosto de Lurenze à mão dela, que descansava sobre a do príncipe. "É uma profissional" James lembrou a si mesmo enquanto soltava as saudações de rigor e ela respondia da mesma forma e o anuviado Lurenze se desfazia em principescas mostras de cordialidade. "Você é um profissional, Jemmy. Se comporte como tal." E assim foi como surgiu a pergunta mais lógica, dadas as circunstâncias: Qual seria a maneira mais profissional de matar Lurenze? Viu que Bonnard afastava a mão do príncipe muito devagar. — Acabamos de nos sentar para tomar o café da manhã, senhor Cordier. Gostaria de nos acompanhar? Devia ser meio-dia pelo menos, certamente mais tarde. Não se incomodou em olhar o relógio ao sair de casa, mas a posição do sol indicava que era meio-dia. Disse-se que não devia pensar no que estiveram fazendo desde que os deixou... que não devia pensar em como teriam passado a noite... que não devia imaginá-los

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abraçados entre lençóis enrugados, vadiando na cama enquanto o sol entrava pelas janelas. Era difícil, sobretudo pelo etéreo traje da senhora. Arnaldo aproximou uma cadeira à mesinha tão íntima... preparada para dois. Colocou outro serviço. James se sentou. Madame Bonnard presenteou Lurenze com um sorriso sedutor. O príncipe devolveu encantado consigo mesmo. E por que não estaria? Ele se encarregou de preparar o terreno a noite anterior, esquentando-a. Sua Alteza só teve que concluir o trabalho. Percebeu que estava agarrando o pacote com muita força. Deixou-o sobre a mesa. Lurenze o olhou. — Vejo que trouxe um presente para a senhora. — Não exatamente — replicou. — O que ocorre, senhor Cordier? — perguntou ela. — Não é o que queria, o presente perfeito para sua prometida? — Está comprometido? — quis saber Lurenze. — Felicidades! — Não estou comprometido — respondeu. — Ainda não — assinalou madame Bonnard. — Mas quer estar preparado. Lurenze assentiu com a cabeça. — Em meu caso está tudo preparado. Logo estarei comprometido. Ainda não se escolheu à moça. Uma de minhas primas, talvez. Ou alguma procedente de uma grande família da Itália, da Rússia, da Hungria ou de outro lugar parecido. A metade do mundo quer estabelecer uma aliança com meu país, mas são os russos os que mais me incomodam. Oxalá me deixassem tranquilo, mas não pode ser. Por desgraça, um homem de minha posição não pode casar-se por amor. O príncipe olhou Francesca de um modo comovedor. Ela devolveu o olhar. "Desculpem-me, mas preciso ir vomitar", pensou James. Ficou em pé. — Bom, me despeço então. Aqueles exóticos e sedutores olhos verdes se abriram arregalados. Bem, bem, ela não havia previsto sua retirada. Acreditava-se capaz de atormentá-lo quanto lhe desse vontade. "Sinto muito, cara. Fui torturado pelos melhores peritos", pensou. — Mas não tocou o café da manhã — protestou ela. — E o que aconteceu com o homem que capturaram? — perguntou Lurenze. — Esperava que tivesse vindo para nos informar sobre esse assunto, para tranquilizar a

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senhora. Maldição! Esqueceu-se de Piero. Esqueceu tudo aquilo que se supunha devesse recordar. Sumiu tudo de sua cabeça ao ver o bonito rosto de Lurenze radiante de felicidade... Ao ver esses inocentes olhos cinza, que mal viram o mundo e muito menos presenciado suas traições e horrores... Ao ver sua felicidade por ter à mulher que desejava... Ao ver essa satisfação tão completa, própria de alguém que não conhecia a dúvida, os desenganos, as traições... Ao ver que ela lhe acariciava a mão, alimentando seus sonhos... "Nada de desculpas, Jemmy. Está se deixando guiar por seus baixos instintos", recriminou-se. — Não queria tirar o sabor do café da manhã com um tema tão desagradável — disse Cordier. — Justamente o contrário — ela interpôs. — Seguro que meu apetite melhora se houve algum progresso nesse assunto. Francesca fez um gesto para que voltasse a se sentar. James permaneceu de pé. Não ficaria nem um minuto além do necessário. Precisava sair dali e recuperar o bom senso. — O homem que está preso é o que usava os remos — disse. — Confessou. Queriam suas joias. Mas o outro, ao que parece, pensou que seria divertido violá-la. Seu cupincha afirma que não tentava estrangulá-la, só evitar que gritasse. Viu que levava a mão à garganta; de forma inconsciente, não lhe cabia a menor duvida. Foi uma reação instintiva, assim como ficou lívida. Sua reação também foi instintiva. Amparou-a assim que a viu cambalear. Agarrou-a nos braços e a levou ao sofá. Lurenze, surpreso, demorou um momento em reagir. Entretanto, antes que chamasse os criados aos gritos, James disse: — Alteza, seria amável em umedecer um guardanapo? O príncipe se apressou a cumprir suas ordens e correu para o sofá, onde ele se sentou após deitá-la. Agarrou o guardanapo umedecido e passou por sua fronte, as têmporas e as faces. A viu piscar várias vezes antes de olhá-lo fixamente. Os pontinhos dourados de sua íris eram visíveis à luz do meio-dia. — Mãe de Deus! — exclamou. — Desmaiei? — Senhora, talvez tenha sido muita emoção para você logo após levantar-se da cama — disse Lurenze. — Sou um néscio. Por que não me ocorreu dizer ao senhor

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Cordier que esperasse até que tivesse comido algo? Só pegou uma bolacha, e só lhe deu duas mordidinhas. — Talvez tenha razão — concordou ela. — Que vergonha! Nunca desmaiei. — Me dispiace — se desculpou James. — Sinto muito. "Imbecille! — repreendeu-se para si mesmo. — Idiota!" Não tinha consciência, certo. O problema era que deixou suas emoções se impor à razão além da conta. Foi cruel, de forma deliberada. Esteve presente no momento do ataque. Viu o que ela teve que suportar, o susto tão grande que levou. Nesse momento, à luz do dia, via as marcas que ainda estava no pescoço. O problema era que também via Lurenze, virtualmente flutuando em uma nuvem pós-coito. — Mas isso é uma boa notícia, não? — perguntou o príncipe. — Encontraram um dos homens. Está na prisão. Encontrará o outro logo, a menos que esteja morto e o mar o tenha levado. Deveria ser um consolo, senhora. Ninguém permitirá que lhe façam mal. Farei guarda a noite e o senhor Cordier está aqui para ocupar meu lugar. James piscou e olhou ao príncipe. — Ocupar seu lugar? — Você está aqui. Tem algo mais importante que fazer? — perguntou Sua Alteza. — Não deixaria a senhora sozinha, se puder evitar, mas minha vida não me pertence para vivê-la como desejo. Devo receber em audiência esses aborrecidos russos. Não me importa deixá-los horas esperando, mas devo vê-los antes do jantar, outro compromisso também impossível de cancelar. Os bávaros organizaram um grande jantar em minha honra e devo fazer ato de presença. Devo trocar de roupa e me barbear. — esfregou o queixo. — A senhora é muito paciente. Não se queixa. Mas a barba não é agradável às damas, e sei muito bem. Sua Alteza foi pouco depois, não sem antes recordar a James várias vezes que se assegurasse de que a senhora comia como era devido. Até então, a mencionada se recuperou por completo. Levantou do sofá e acompanhou Lurenze até a porta, onde deu-lhe um beijo na face. O príncipe ruborizou de prazer enquanto agarrava sua mão e a beijava, não como um moço, mas sim como um membro da realeza e um homem do mundo. E por fim partiu. Madame Bonnard não retornou a mesinha onde estava o café da manhã, passou ao lado e se deteve junto à janela.

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A luz do sol fazia que as pedrinhas do robe brilhassem. E que o tecido de sua... escassa roupa para a cama fosse quase transparente. Apesar de o robe reluzir à luz do sol e de que o tecido se agitava ao menor movimento, Cordier distinguia perfeitamente a curva de seus seios. Fechou os punhos sem perceber ao lembrar de quando estiveram em suas mãos: sua suavidade e firmeza, como as enchiam. Recordava perfeitamente o doce aroma de sua pele. Se fosse um cão, estaria babando. Como estavam as coisas, seu cérebro estava fechando o escritório do bom senso e já tinha o cartão preparado de FECHADO. Tentou afastar o olhar, mas seus olhos a percorreram por vontade própria. Distinguia o contorno de seus quadris e de suas longas pernas. — Que probabilidades tem que encontrem o outro? — a ouviu perguntar. — Ao outro? Obrigou-se a erguer o olhar para seu perfil. E percebeu que estava olhando pela janela. — Ao outro criminoso — ela particularizou. — Bonnard, ponha algo em cima — ordenou. — Não — disse ela. — Está fazendo a propósito — a recriminou. — Sim — ela confirmou. — Para me castigar — acrescentou. — Sim. — Sabia que viria. — Sim. — Por isso me mandou os peridotos. — Sim. — E se deitou com ele para se vingar. Isso fez que voltasse a cabeça para olhá-lo. — Pois não — disse. — Nunca me deitei com ninguém por vingança. Sou uma mulher de negócios. — Ele não sabe! Está apaixonado por você até as sobrancelhas! — Ah, sim. O primeiro amor. Não há nada igual. O que diz Byron? "Mas mais doce que tudo isto, mais doce que qualquer outra coisa, é o primeiro e apaixonado amor. Não tem comparação, como a lembrança da queda de Adão. A árvore do conhecimento ficou sem frutos... todos sabem..." — Citou.

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— "E a vida carece de outra coisa que recordar" — acrescentou ele. — "Que seja merecedora deste pecado divino, tão repetido nas lendas como o imperdoável fogo que Prometeu roubou aos deuses para nos entregar" Estava recitando os versos de Dom Juan, quando percebeu a mudança que sofria sua expressão. Viu-a ruborizar por momentos. — Assim foi para você seu primeiro amor? — perguntou James. — Doce? E pelo fato de ter sofrido um desengano está decidida a fazer o mesmo favor ao primeiro inocente que se cruze em seu caminho, está decidida a condená-lo? — Uma reação muito comovente — disse ela. — Você também deve ter amolecido o cérebro, se me tomar como tola. O príncipe te importa um cominho. O que te incomoda é que tentou jogar comigo e o tiro saiu pela culatra. Conheço certos jogos com os quais nem sequer sonhou, Cordier. E sempre jogo para ganhar. Lancei uma isca e você pegou. Foi atrás como um cão em busca de um pau. Afastou-se da janela com um brusco movimento que agitou os tecidos e se aproximou da mesa. Tomou a caixa das joias e a jogou. James a agarrou no ar sem pensar. — Mas já me cansei deste jogo — disse. — Vá para casa, vira-lata, e leve seus joguinhos. James baixou o olhar até a caixa que tinha na mão. Ergueu a vista e a posou naquele rosto de expressão altiva. Francesca conteve o fôlego. Passou da raia. A jogaria pela janela. Era o bastante forte para fazê-lo. E, na verdade, não poderia culpá-lo. Preparou-se para algo, embora não sabia o que. Ou o estrangulamento ou um passeio através da janela para o canal, ou talvez outra chicotada dessa afiada língua. James não fazia nem ideia do muito que lhe machucaram seus comentários a respeito de seu primeiro amor. Ou talvez sim. Viu soltar muito devagar o estojo de peridotos. Pensou fugazmente em aproximar-se à campainha do serviço para pedir ajuda. Cordier deu um passo para ela. Ficou paralisada. — Você — ouviu-o dizer. — Você! — exclamou antes de deter-se e levar uma mão à cabeça. Viu que lhe tremiam os ombros. James soltou uma estrondosa gargalhada, tão repentina como um disparo. Ela deu um pulo. E ele seguiu rindo enquanto se afastava.

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Seguiu petrificada, sem dar crédito ao que via. — Diavolo! — exclamou Cordier ao mesmo tempo que meneava a cabeça. — Vou — afastou-se em direção à porta, meneando a cabeça. — Addio — se despediu. E se foi, levando as joias consigo e deixando-a boquiaberta. Permaneceu tal qual estava um momento, abrindo e fechando os punhos. — Porco arrogante e presunçoso! — exclamou. Caminhou para a porta e saiu a porta. Já se tinha fartado. Era a última vez que lhe dava as costas, a última vez que a deixava com dois palmos do nariz. Sabia como deter um homem em seco, e ele... Deteve-a em seco. Na porta havia dois homens. Assim que ouviram suas furiosas pegadas, ambos a olharam. Um era Cordier. O outro era vários centímetros mais baixo, e umas três décadas mais velho. — Senhora — ouviu que alguém dizia à sua direita. Percebeu a presença de Arnaldo. Devia ter passado a seu lado quando este se dispunha a anunciar o recémchegado. Ouviu-o pigarrear. — O conde de Magny — anunciou. — Ma foi, Francesca — disse o mesmo. — O que faz correndo pelos corredores meio nua? Está louca, menina? Ponha algo em cima. — Monsieur... — Vamos, vamos — insistiu o conde enquanto agitava uma mão. — Entreterei seu amigo.

Capítulo 07

Embora estivesse com ciúmes, não demonstrava, porque o ciúmes prefere estar escondido. LORDE BYRON Dom Juan, Canto I Monsieur Magny não era o velho caduco que James imaginou. O conde podia superar o metro e oitenta de estatura sem problemas e a bengala com punho de ouro que levava era um mero acessório decorativo.

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Seu rosto, de traços patrícios, estava sulcado por profundas rugas, sobretudo na parte do cenho e ao redor dos olhos. Tinha o nariz longo e cabelo castanho encaracolado, riscado de cinza. O brilho em seus olhos castanhos bem podia indicar bom humor, astúcia ou crueldade; não estava muito certo. O que era muito claro era que monsieur investia uma grande quantidade de tempo e dinheiro em sua pessoa. Seu traje era muito elegante. Usava a camisa branca perfeitamente engomada e uma enorme profusão de adornos no colete: correntes, relógios de bolso e medalhas condecorativas. — Não é obrigado a entreter ao cavalheiro, monsieur — replicou Bonnard. — O senhor Cordier já estava indo. — Cordier? — repetiu o conde. — Me soa familiar esse sobrenome. "A quem não?" pensou James. Ambos os lados de sua família eram linhagens antigas e com um grande número de membros. Seus pais eram muito conhecidos nas cortes europeias. Lorde e lady Westwood passavam muito tempo viajando pelo estrangeiro. Nem as guerras conseguiram que ficassem em casa. — O sobrenome é francês, mas você não é — comentou o conde. — Meu ramo da família não é — indicou James. — Há vários séculos. Meu pai é o décimo terceiro conde de Westwood. O conde de Magny assentiu com a cabeça. — Uma família normanda. — Uma família muito extensa — acrescentou a senhora Bonnard. — O senhor Cordier é um dos filhos do segundo matrimônio do conde. "Um de tantos filhos mais jovens que sequer vale a pena conhecer", indicava seu tom. O conde a olhou com uma expressão que não soube interpretar. — E já saía — concluiu ela. — Ainda não — a contradisse James, enquanto dava leves golpes na jaqueta, como se estivesse procurando algo. — Acredito que deixei o caderno de anotações em seu dormitório. Um brilho assassino apareceu de repente nos exóticos olhos verdes de Francesca. — Impossível — protestou. — Não pisou... — Não é necessário chamar um criado — a interrompeu. — Eu mesmo irei buscar. — Não sabe o caminho — o lembrou ela. — Não seja tola — replicou. — Ontem à noite não estava tão bêbado, minha

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cara. Estou seguro de que poderei encontrar o caminho... de volta. — aproximou-se dela. — Mas como de toda forma irá se vestir... — ofereceu o braço com um sorriso. Ela devolveu o sorriso e nesse momento lembrou uma serpente erguida para o bote, uma cobra. Se tivesse presas, teria mostrado. Entretanto, aceitou o braço. — Cordier — disse entre dentes, — farei com que se arrependa muito, muitíssimo, disto. — Estupendo! — exclamou ele sem incomodar-se em baixar a voz. — Parece divertido. James descobriu que seu dormitório era na realidade uma suíte no extremo oposto do salão, do outro lado da porta de entrada, e orientada à parte posterior do palácio. O gabinete onde tentou seduzi-lo no primeiro dia comunicava com uma saleta que por sua vez dava acesso a outra série de cômodos. A cama estava em um nicho ladeada por dois arcos decorados com cortinas, através dos quais se acessava a duas outras salas, uma delas um quarto de vestir. Assim como o gabinete, ambas eram decoradas de forma muito singela para os costumes de Veneza. A gama cromática era suave: rosas e verdes claros, dourados e branco. Não havia nem um só anjinho à vista. Em seu lugar, as paredes estavam decoradas com paisagens, e o teto com pequenos afrescos circulares onde se representavam cenas de seres mitológicos emoldurados por arabescos dourados. Embora não houvesse retratos, sequer dela, encontrou muitos outros sinais de sua presença. Uma pilha de livros descansava sobre uma mesa perto da cama. Seus artigos de toalete estavam desordenados em uma pequena mesa delicada situado no quarto de vestir. Ali também descansavam as pérolas, essas magníficas pérolas! Deixadas descuidadamente entre pentes, potes e frascos. Como as camas de seu próprio palazzo, a de madame Bonnard não possuía dossel e cortinas. Não havia nada que ocultasse os lençóis revoltos. E essa não era a única evidência do que aconteceu essa noite. Sua roupa estava espalhada pelo cômodo. Ao lado da cama havia um chinelo de seda verde. O outro estava debaixo da cadeira do escritório. Recordou sua forma de tirar as luvas, tentando-o, e isso foi um engano, porque não demorou em imaginá-la tirando todo o resto sob o ardente olhar de Lurenze. E, além disso, Magny se apresentou de repente. A inesperada familiaridade e a rapidez com que assumiu mostraram o tipo de relação que existia entre eles. Sua cabeça começou a doer. — Quantos amantes têm exatamente? — perguntou assim que fechou a porta. — Quantos sabem que há outros além deles? Magny sabe da existência de Lurenze? Lurenze sabe de Magny? Há algum nome mais que deva conhecer?

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Incomodaria muito fazer um comentário inoportuno sem querer. — Não, mas faria de propósito — contradisse ela. — Estava procurando briga com um homem velho o suficiente para ser seu pai... — Não penso em perguntar o que quer de um homem tão mais velho que poderia ser o teu. — Vamos, não seja tímido e pergunta, Cordier — provocou ela enquanto começava a desatar os laços do robe. — Tem um biombo — a lembrou, apontando para um precioso, decorado com uma bucólica cena de pastoras e ovelhas. Supôs que atrás dele haveria uma cômoda e uma pia. — Por que não finge um pouco de pudor e se desnuda lá atrás? Espera, vou sugerir uma nova ideia: e se você se despir no quarto de vestir? — Que curioso... — respondeu ela. — A maioria dos homens daria qualquer coisa por estar presente enquanto fico nua. — Esse é precisamente o problema — observou ele. — Que muitos a viram. — E, entretanto, insiste — assinalou. — Que curioso... James se aproximou da janela mais próxima e cravou o olhar no exterior. — Temos que falar. — Obrigatoriamente? — Temos que falar — repetiu com a vista cravada na fonte do pátio, — de forma racional e razoável. Mas é inquietante. Recorda que perguntei por que se divorciou de Elphick? — não esperou pela resposta. — Acho incrível que um homem renunciasse a você somente por suas infidelidades. Até os cavalheiros ingleses fazem vista grossa aos pecadinhos de suas esposas para guardar as aparências da porta para fora. Entretanto, essas indiscrições são amplamente conhecidas no beau mode; claro que é um círculo muito restrito, sei muito bem. Por que um homem pediria o divórcio quando isso seria uma forma de apregoar aos quatro ventos sua condição de corno? — Deveria fazer essa mesma pergunta a Sua Majestade o rei Jorge IV — respondeu ela. — Ele sim que arejou alegremente os trapos sujos da rainha Carolina faz umas semanas. — Os reis são de outra espécie — replicou. — Às adúlteras cortavam a cabeça no passado. O mesmo castigo que sofriam os traidores. — Assim é como os homens veem, não? Como uma traição. As mulheres são meros recipientes, um objeto mais de sua propriedade. Quando fazemos os votos de amar, respeitar e obedecer, devemos seguir a eles com cega obediência. Eu não entendia assim, e Elphick não sabia com que tipo de mulher se casou.

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Está dando um matiz misterioso e complicado à questão, Cordier. A razão pela qual se divorciou de mim é bem singela. E você viu com seus próprios olhos. Sou uma mulher impossível. James deu meia volta para olhá-la. Tirou o robe e o observava com gesto desafiante, vestida tão só com uma... camisola? Uma camisola rosa e amarela tão vaporosa que mal parecia ter tecido. Era a camisola mais provocante que viu na vida, e isso que viu muitíssima lingerie feminina. O coração começou a pulsar duas vezes mais rápido, bombeando o sangue diretamente à virilha. Sua mente nublou. "Não, Jemmy. Não estrague outra vez", disse a si mesmo. Mas ali estava ela, toda curvas pecaminosas e pele suave sob o diáfano tecido. Podia ver claramente os mamilos sob a vaporosa seda. "Moço, foi torturado pelos melhores peritos. Finge que o estão torturando de novo", ordenou-se. Se lhe dessem escolha, preferiria que lhe arrancassem as unhas. Apertou os dentes. — Temos que falar — disse, — mas insiste em me provocar. Com grande êxito, admito. O problema é que para você só é um jogo. Unicamente pretende me ver suplicar e me arrastar a seus pés. — Isso não é a única coisa — contradisse ela. — Mas admito que apreciaria esse grande momento. — Não nego que também poderia desfrutar do momento — admitiu. — Mas depois me despacharia sem mais, coisa que não é de meu agrado. Olhe o abandono que demonstra com essas pérolas. Com essas magníficas pérolas — assinalou com a cabeça as pérolas deixadas com descuido sobre a penteadeira. — Ordenei a minha donzela que não entrasse aqui até que a mandasse chamar — explicou. — Sim, me chame de antiquada se quiser, mas me desagrada que os criados entrem em meu dormitório quando lhes der a vontade, sem pensar em quem pode estar aqui. — Antiquada... — repetiu. — Antiquada!? — pôs-se a rir. — Pelo amor de Deus, Bonnard, que cínica é! Pela primeira vez em minha vida, estou considerando a ideia de matar a todos meus irmãos mais velhos para poder aspirar a ser seu amante. — Segundo seu ensaio — observou, — não seria a primeira vez que alguém decide tomar esse caminho.

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O fazia rir. Enfurecia-o. Voltava-o louco. Era meio italiano. Como resistiria? Aproximou-se dela e lhe rodeou a cintura com um braço enquanto agarrava sua nuca com a mão livre. — É má — lhe disse. — Sim — reconheceu ela. — A única coisa que conseguirá de mim serão um par de beijos — advertiu. — Não sou uma de suas bagatelas. Não vai me tratar como trata suas joias. Não vai usar-me para demonstrar o que for que queira demonstrar e me despachar depois. — Isso é o que você acredita — soltou ela ao mesmo tempo que inclinava a cabeça e esboçava esse enorme e lento sorriso tão dela. — A primeira coisa que vou fazer é apagar esse sorriso da cara — sentenciou James. Conseguiria que se esquecesse do pequeno príncipe, conseguiria que se esquecesse até de sua existência. Sabia mais de mulheres do que o protegido Lurenze jamais saberia, mesmo que passasse toda a vida estudando o tema com dedicação absoluta. Beijou-a, mas não nos lábios que ainda esboçavam esse pícaro sorriso. Beijou-a na têmpora e maçã do rosto. Depois, quando recordou o que fez na noite anterior, deixou um caminho de beijos justamente no caminho que seu dedo esboçara, no lóbulo da orelha e abaixo. Depositou um delicado beijo exatamente no lugar onde ela se deteve. Sentiu-a estremecer. E em resposta ele também estremeceu. Devagar, tão devagar como se fosse a moça inocente com quem levava anos sonhando, foi descendo por seu pescoço. Deslizou a camisola por seu ombro com os lábios e a beijou. Seus lábios deixaram uma chuva de beijos ali onde na noite anterior estiveram as pérolas. Seguiu o caminho que ela esboçou acima da curva de seus seios. Sabia que o coração lhe pulsava descontrolado, assim como acontecia a ele. Percebia que ela estava tentando conter suas reações, mas não podia reprimir os estremecimentos. Tampouco a velocidade em que seu peito subia e descia à medida que acelerava sua respiração. Nem o calor que intensificava o perfume de sua pele com sua embriagadora mistura de jasmim e mulher. Queria perder-se em seu perfume, nela. Queria esquecer todo o resto, deixarse levar pelo canto da sereia. "Me prendam ao mastro", pensou uma vez mais.

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Ergueu a cabeça. Viu que ela abria os olhos muito devagar. Seu olhar, desfocado, cravou em seus olhos enquanto erguia uma mão para acariciá-lo na face. — É uma besta — disse com a voz rouca. — Nesse caso, me dome, encanto — a provocou. — A desafio a fazê-lo. Sua mão desceu por cima de um seio e se deteve ao chegar à maravilhosa curva da cintura. Dali seguiu descendo para desfrutar do delicado contorno de seu quadril. "Não veio para isso" lembrou-o a voz. A voz que o ajudou a sobreviver durante todos esses anos. Sabia muito bem que não veio para isso. Sabia que só era um meio para conseguir um fim. Entretanto, as delicadas carícias dessas mãos o cativaram. Ela o cativou com esse olhar doce... e com o fantasma que vislumbrou nas profundezas desses olhos verdes. A sombra de outra mulher, muito menos cínica, muito menos segura de si mesma. Viu uma alma perdida, uma inocente que poderia acreditar em qualquer coisa e que era capaz de confiar cegamente. Disse a si mesmo que só era produto de sua imaginação, que o cérebro amoleceu porque o sangue se acumulou mais abaixo. Entretanto, sentiu uma pontada nesse coração que não podia permitir ter. De modo que a beijou para desterrar esse sentimento. Para desterrar a inquietante vulnerabilidade que refletiam aqueles olhos. Foi um beijo longo e apaixonado, mas ela seguiu segurando seu rosto com delicadeza, como se quisesse seguir assim durante toda a eternidade; como se a rendição que lhe comunicava com seus lábios não fosse isso, senão um convite que o arrastava para um lugar do qual não teria retorno. Sabia muito bem que o "para toda a vida" não existia e que sempre há um caminho de volta, e mesmo assim sucumbiu. Se deixou levar. A voz que avisava do perigo, a voz que o guiava, desapareceu. Seus sentidos se saturaram com seu sabor e seu aroma. A seda deslizou sob suas mãos à medida que a acariciava para memorizar as voluptuosas curvas desse corpo. Ela se moveu sob suas carícias, instigando-o a seguir explorando, a encher seu mundo com ela, a esquentar todo o resto. Seu guia interior lhe teria dito que tudo era fruto das refinadas artes da rameira, mas perdera seu guia. Existia unicamente a mulher incitante e apaixonada entre seus braços.

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O aroma de jasmim e mulher. O calor de seu corpo sob a seda. A plenitude desses seios que se esmagavam contra o seu. A suavidade desse ventre contra o que pressionava seu inchado membro. Agarrou a camisola com ambas as mãos e a subiu, centímetro a centímetro, enquanto seguiam beijando-se. Enquanto o jogo da sedução continuava até arrastálos ao desejo. Ergueu a camisola até os quadris e uma vez ali introduziu a mão sob a seda para seguir explorando essa pele aveludada. A parte superior das coxas, a delicada curva de seu traseiro. Introduziu a mão entre suas coxas e ela pôs fim ao beijo com uma espécie de soluço e um estremecimento. Estava úmida e preparada, e poderia tomá-la nesse instante, como seus instintos animais pediam. Entretanto, a necessidade de ganhar era muito mais forte que qualquer outra coisa. "Sou melhor que todos os outros. Sou o único que obterá sua rendição", jurou em silêncio. Deslizou os dedos sobre os suaves cachos e explorou seu interior. Acariciou-a lentamente com os dedos enquanto escutava seus suspiros. Quando notou que se movia contra sua mão pedindo mais, deu pouco a pouco. Queria chegar até o final, sim. Queria fazê-la sua por completo. Mas acima de tudo queria sua rendição, de modo que tomou seu tempo agradando-a. Quando ela apoiou a cabeça em seu peito, acreditou por um instante que os batimentos de seu coração o deixariam surdo. Entretanto, notou que lhe acelerava a respiração e compreendeu que Francesca também devia ter o coração disparado. Nesse momento ela estremeceu, e soltou um pequeno grito. E, por fim seu corpo desabou tremente sobre ele. Afastou a mão de seu núcleo para abraçá-la com força, para estreitá-la. Ergueu-a e a levou até a cama com os lençóis revoltos. Entretanto, voltou a deixá-la no chão. Porque na distância ouviram vozes e o repicar de saltos sobre os ladrilhos. Ficou consciente dos sons de um modo instintivo e reagiu sem pensar, já que o treinamento e a experiência foram em seu resgate. Aprendeu a detectar as pisadas de um intruso mesmo que este estivesse em um local distante com as portas fechadas e caminhasse sobre um tapete. Possuía os sentidos de um gato, conforme diziam alguns de seus colegas. Entretanto, caso isso fosse certo, nesse momento devia parecer um gato cego, surdo e coxo.

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Afastou-a dele, consciente da emoção que relampejava em seus olhos. Ira? Humilhação? Mal durou um instante, porque desapareceu assim que Francesca percebeu os ruídos. Seu olhar voou para a porta. As vozes procedentes do corredor eram ouvidas perfeitamente. — É obvio, monsieur conde — dizia uma criada, — recordarei à senhora que a está esperando. — Eu mesmo farei — replicou monsieur. Francesca não estava preparada. Estava perdida, em pedaços. Não compreendia nada. Sabia o que era o prazer. Estudara as formas de dar prazer e de recebê-lo. Também aprendeu a levar a voz que comanda, a não entregar as rédeas nunca. Entretanto, rendeu-se completamente depois de uma luta tão breve e ridícula. Acariciou-a, a beijou e sua fortaleza, essa que tanto lhe custou conseguir, esfumouse. Olhou ao redor com o coração galopando e tentou pensar. Percebeu que ele se agachava para recolher algo do chão. Obrigou-se a se concentrar. O robe. Sim. Precisava... cobrir-se. Vestiu assim que ele a jogou e o observou afastar-se para a janela, onde se deteve com as mãos entrelaçadas às costas. A porta se abriu nesse preciso instante. A donzela foi a primeira a entrar, seguida de perto pelo conde. Francesca precisou fazer um esforço para encontrar as palavras e o tom adequados. — Ah, Thèrése, está aqui! — sua voz soava estranha, não parecia a sua. Muito aguda. Inspirou e seguiu. — No que estava pensando para não te mandar chamar? Como se pudesse me vestir sozinha... A culpa é desses cavalheiros, que me distraem com suas idas e vindas. O conde de Magny franziu o cenho. — Bom, nesse caso, partirei — disse Cordier. — Espero que tenha encontrado seu caderno de notas — assinalou o conde. Cordier deu uns leves golpes no bolso superior da jaqueta. — Sim, finalmente — seu olhar pousou nela. — Um lugar dos mais estranhos, verdade, cara? Cara. Pequena brincadeira. Não tinha o menor afeto por ela, só era mais uma conquista. E para sua mais absoluta vergonha, uma conquista fácil. Era uma besta.

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Despediu-se formalmente de Magny e informalmente dela, já que pegou sua mão e plantou um úmido beijo nos nódulos dos dedos do meio e anular. Deu vontade de se pôr a chorar. Teve vontade de matá-lo, de jogar uma adaga nas suas costas enquanto saía pela porta. Ouviu seus passos enquanto se afastava. O conde lançou um de seus olhares antes de aproximar-se da janela. Entrelaçou as mãos às costas, imitando a postura adotada por Cordier. Tentou apagar de sua mente tudo o que Cordier fez enquanto passava ao lado do conde, a caminho do quarto de vestir. Thèrése a seguiu e deixou a porta aberta. Trabalhava para ela desde que chegou a Paris. Posto que era francesa e muito prática, a altiva donzela não tinha nenhum problema com a moralidade de sua senhora, ou antes com a ausência desta. Para Thèrése só importava a horda de admiradores, a fortuna e as joias de sua senhora. Nenhuma outra dama do continente, salvo algumas pertencentes à realeza, se igualava a Francesca Bonnard nesse aspecto. Além disso, uma das bisavós de madame pertenceu à aristocracia francesa. Todos esses fatores faziam que Thèrése fosse extremamente cuidadosa com seu emprego. Nenhum suborno a tentava, ninguém era capaz de lhe arrancar uma só palavra que delatasse os segredos de sua senhora. Nenhum dos admiradores de madame recebia tratamento preferencial, sem importar a posição que ostentassem. Madame impunha as normas. Daí que Thèrése não fechasse a porta quando um homem estivesse presente, e que não desaparecesse até que não ordenasse. E o mais conveniente para Francesca e seus convidados era que a donzela só se rebaixou a aprender o inglês justo para realizar seu trabalho e fazer-se entender. E o italiano lhe inspirava o mesmo desprezo. O conde de Magny não lhe prestou a menor atenção, como fez Thèrése com ele. De toda forma, o conde não usou sua língua natal. — Não deveria ter partido de Mira. Você disse que esta é uma época pouco saudável para vir a Veneza. — Não deveria ter vindo — replicou ela, observando Thèrése enquanto a donzela enchia de água a bacia. Oxalá pudesse apagar a lembrança das carícias de Cordier com uma esponja. Oxalá pudesse limpar com água e sabão a debilidade que esse homem deixou exposta. — Para isso te enviei a carta. Para que ficasse tranquilo. Sabia que a história chegaria aos seus ouvidos, e que é obvio a teriam exagerado de forma espantosa. Estava convencida de que te diriam que me mataram. Sei como funcionam os mexericos, sobretudo no campo.

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— Falando de mexericos... — disse Magny. — Deus! Sabia que isto viria à luz — murmurou ela. — Ouvi rumores sobre Lurenze e você — prosseguiu ele. — Mas ao chegar me encontro com um inglês. Sabe quem é seu pai? — Não conheço lorde Westwood em pessoa — respondeu. — Elphick não se movia nesses círculos tão importantes, embora não me cabe a menor duvida de que meu ex-marido tentou por todos os meios abrir caminho até eles. — Westwood é um grande herói, sobretudo para a aristocracia francesa. O número de cabeças que sua esposa e ele salvaram de ir para a guilhotina, assumindo enormes riscos pessoais, é incontável. A imagem voltou a assaltá-la tal como em várias ocasiões: Cordier entrando como touro no felze e estrangulando com um braço ao rufião; o corpulento animal debatendo-se em vão... antes de ficar inerte. — Bem vejo que carregam no sangue correr riscos — declarou. — Aparentemente, Cordier se atirou de um de seus balcões ao canal para me salvar. De toda forma, deveria ver a diferença entre a valentia, ou a imprudência, e o heroísmo. É a ovelha negra da família. Ele mesmo me disse. Percebeu um sentido suspiro e ergueu a cabeça para olhar para a porta. Magny não estava ali. Sem dúvida seguia na janela, com a vista cravada no exterior... e jogando faíscas pelos olhos. — Não vou perguntar que há entre vocês — interpôs o conde. — O que pensa que há? — perguntou sem lhe dar importância. — Só é um jogo. Jamais teria imaginado o jogo tão doce e perigoso que lhe expos Cordier. Jamais teria imaginado que o simples roçar de seus lábios sobre a pele poderia afetá-la tanto e chegar até uma parte de seu ser que enterrou fazia anos. Era como se tivesse estendido o braço para agarrar sua alma e virá-la do avesso. Recordou com detalhe tudo o que fez na noite anterior quando tentou seduzilo. Seus lábios beijaram todos os lugares que seus dedos percorreram. Fez como se o tivesse convidado a fazer em silêncio. O problema era que foi além do que ela previu. Acariciou-a e a beijou tal como lhe ordenou que fizesse. E ele a reduziu a um patético estado tremente. A ela, que era uma perita na arte amorosa. Esses lábios a conquistaram às primeiras mudanças. Suas carícias a despiram imediatamente, deixaram-na cega e nua pelo desejo. Agradou-a, e gostou que fizesse, mas não era o mesmo. Porque esmigalhou algo em

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seu interior e a deixou a beira do pranto. Não conseguia entender o que era e tampouco estava segura de querer entender. Por que demônios não foi mais rápido? por que não a jogou à cama e se limitou a aproveitar-se dela... enquanto ela fazia o mesmo, enquanto desfrutava desse corpo tão grande e tão forte? "É uma besta!" exclamou para si. — Prefiro não saber — assegurou Magny. — Acredito que é melhor não saber. Entretanto, se de verdade tiver um ápice de bom senso, o mandará tomar ar fresco, menina. Sobrevivi a meus problemas e cheguei à idade que tenho agora porque sei julgar os homens melhor que a maioria. Advirto, ma chérie, que este te trará problemas. O homem que a conduziria a problemas agarrou o estojo com os peridotos da mesa do pórtico onde o jogou justamente antes de descobrir a presença de Magny. Nessa ocasião James não se deteve, mas sim seguiu pelo corredor e desceu a escada até o andar térreo. Estudou o lugar até o mínimo detalhe. Embora não fosse a primeira vez que pisava no palazzo, era a primeira que fazia à luz do dia. Esperava fervorosamente que seus anos de treinamento lhe permitissem superar a tempestade que Francesca Bonnard desatou em seu interior e que, uma vez sereno, fosse capaz de lembrar até os mínimos detalhes dos cômodos que atravessou. Esperava fervorosamente que parte de sua mente tivesse prestado atenção enquanto o resto fervia de fúria, ciúmes, luxúria, frustração e várias emoções mais que preferia não examinar a fundo. Se os outros métodos falhassem, teria que vasculhar a casa. E, nesse caso, era melhor ter uma imagem mental dos possíveis esconderijos. Vasculhar, entretanto, era precisamente a última opção que queria recorrer. Quando se via obrigado a agir como ladrão, preferia saber de antemão onde encontraria o que estava procurando. Na casa de Francesca Bonnard era diferente. Embora sua residência tivesse uma distribuição singela, assim como muitos outros palazzi venezianos, era muito grande e havia muitos esconderijos possíveis. Para cúmulo, embora o normal fosse deduzir o lugar onde uma pessoa escondia suas posses mais apreciadas uma vez que chegava a compreender o funcionamento de sua mente, no caso de Francesca era impossível desembaraçar as engrenagens de sua mente enquanto ela tentava fazer o mesmo com a sua.

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Percorreu com rapidez o caminho até chegar à gôndola que o esperava. Sedgewick e Zeggio, que estavam falando em voz baixa, ergueram a cabeça ao mesmo tempo. Com expressões receosas. "Acreditam que perdi a razão... e não estão muito errados", deduziu. Disse a Zeggio que o levasse a ilha de São Lázaro. Precisava clarear as ideias e estava seguro de que o faria quando estivesse rodeado de água, a vários quilômetros de Veneza... e, dela. Na pequena ilha, um antigo refúgio para leprosos, erguia-se o monastério armênio onde Byron estudou. E um monastério, nesse instante, parecia o paraíso.

Capítulo 08

Ai, Prazer! É prazeroso certamente, embora seja motivo de perdição, sem dúvida. Todas as primaveras faço o propósito de me reformar antes que termine o ano, mas, de algum modo,meu juramento vestal sai voando, e mesmo assim, confio que não me desvie do caminho. Sinto muitíssimo, envergonho-me terrivelmente, e espero me redimir o próximo inverno. LORDE BYRON Donjuán, Canto I — Não deveria ter vindo — voltou a dizer Francesca quando saiu de sua penteadeira. O conde se afastou da janela e sentou-se em seu quarto de vestir. Tinha nas mãos o cabo dourado de sua bengala, que descansava entre suas pernas, e olhava o chão com os olhos entrecerrados. — Ouvi rumores — disse. — Me fazem pensar que perdeu o juízo. — É livre para pensar o que quiser — aproximou-se da mesinha que costumava usar para guardar pequenas joias, lenços, luvas, cremes e loções. Sentou-se na cadeira e remexeu no montão para tirar papel de carta e uma pluma. — Não penso deixar que um homem me controle. Se quisesse, tornaria a me casar. — Thèrése, recolhe essas pérolas e as guarde como se deve — disse o conde.

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— Pelo amor de Deus, Francesca! Deixa que a moça se encarregue de suas joias. O que passou com você para se tornar tão descuidada? "Olhe o abandono que demonstra com essas pérolas. Com essas magníficas pérolas — dissera Cordier. — Não sou uma de suas bagatelas. Não vai me tratar como trata suas joias. Não vai me usar para demonstrar o que for que queira demonstrar e me despachar depois." Os homens usavam as mulheres, mas quando os papéis se invertiam... Ah, isso era uma outra canção! Era um crime capital. — Leve-as — ordenou à sua donzela, embora Thèrése não tivesse feito caso ao conde, sabia que estaria desejando cumprir a ordem. Afastou um pote de talco. — Ah, aqui está a pluma — pegou-a, separou o tinteiro de outra série de frascos e potes, limpou um pouco a escrivaninha. Encontrou algumas folhas sob um lenço. Magny se segurou muito para não perguntar a quem escrevia. Sabia que se limitaria a dizer que não era de sua conta. — Entendi que capturaram um dos homens — disse o conde após um silêncio ensurdecedor. — Ladrões de estradas — respondeu ela, estremeceu sem querer. Soltou uma gargalhada para ocultar sua reação. — Ou seria melhor dizer ladrões de canais em Veneza? — Não é engraçado — replicou o conde. Francesca deu de ombros. — Ouviram falar de minhas joias. E isso era o que queriam... além de divertir-se atormentando uma mulher indefesa. — Isso é o que pensa o governador? É o que você acredita? Deteve a pluma no ar. Virou-se para olhá-lo. — O homem já esta na prisão — disse. — Seguro que vão executá-lo. Por que mentiria? O que ganharia com isso? — Não sei. Mas não deixo de pensar que tem algo há ver com o assuntozinho deste verão. — Lorde Quentin — apontou Francesca com voz séria, concentrou-se novamente em sua carta. Não sabia como lorde Quentin se inteirou que roubou de seu ex-marido cartas que escondia em uma gaveta fechada com chave. Não sabia como conseguiu fazer com o que lhe mostrou, similar ao que ela tinha. Entretanto, dava a impressão de que o descobrimento era muito recente. "Este assunto nos desconcertou por algum tempo — lhe disse. — Mas não

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começamos a montar as peças do quebra-cabeça até recentemente." As peças desse quebra-cabeça indicavam que Elphick era o que ela já suspeitava há cinco anos: um homem que trabalhava para os inimigos de seu país. Mas há cinco anos ninguém teria lhe dado crédito. Com as terríveis acusações que formulou durante o divórcio destruiu sua credibilidade... Bom, a pouca credibilidade que restou após seu pai ter enganado metade da alta sociedade. Seus próprios advogados, a quem mostrou uma das cartas, disseram que seriam mais prejudiciais que qualquer outra coisa durante a acusação criminal que John Bonnard moveu contra seu amante, lorde Robert Meadows, como durante o processo de divórcio. Os advogados de John não teriam o menor problema em convencer a todos que as cartas eram uma falsificação de uma mulher amoral e vingativa. Tal como descobriu, não tiveram o menor problema em fazer com que todo mundo pensasse o pior dela. Seu pai lhes facilitou a tarefa. Claro que ela não se encontrava livre de pecado. Pagou ao seu infiel marido com a mesma moeda que lhe dava. Mas a ninguém importava as infidelidades de um homem, embora fossem contumazes. Pelo contrário, quando John terminou de envenenar as mentes de todos, sua única falta — uma aventura a qual se lançou em um momento de fúria, com o coração destroçado e movido pelo anseio de vingança — se converteu em uma montanha intransponível. Tal pau tal lasca, acreditou a Inglaterra inteira. Inclusive seu amante, envergonhado pela ação criminal e enojado pelas histórias, a abandonou. Lorde Quentin insistiu que ela lhe entregasse as cartas. Recordava a conversa palavra por palavra. — Certamente ouviu os rumores — dissera ele. — Elphick aspira a converter-se no próximo primeiro-ministro. — Alguns diriam que a Inglaterra terá o líder que merece — observou ela. — Se for um traidor — disse lorde Quentin, — não chegou a hora de que pague sua culpa? — Refere-se a que o enforquem e o esquartejem? — particularizou. — Seria esse um castigo suficiente? Por que não o deixa em minhas mãos? Naquele momento não acrescentou: "Por que vou confiar em você?". Quentin podia ser um dos peões de Elphick. Tudo o que lhe disse, palavra por palavra, podia ser uma mentira urdida por seu ex-marido, que era um mentiroso consumado.

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Quentin retornou várias vezes, até que Francesca ordenou aos criados que não o deixassem passar. Semanas mais tarde alguém invadiu e revistou sua vila. Foi um trabalho meticuloso. Não havia sinais evidentes. Mas Magny percebeu, e assim que lhe assinalou os detalhes a se fixar, ela também percebeu. O conde também a avisou de que certamente revistariam suas contas bancárias e o conteúdo das caixas de segurança que tinha nos bancos. Os agentes do governo podiam fazer o que quisessem, e Elphick teceu uma rede de aliados no governo. Magny lhe deu muitos conselhos. Muitos. Tantos que acabou convertendose em um resmungão intrometido. E como decidiu muitos anos antes que nenhum homem voltaria a controlá-la, as discussões foram frequentes. Até que partiu de Mira. A voz de Magny pôs fim a seu breve passeio pelo recente passado. — Nunca me deixa te ajudar — protestou o conde. — Refere-se a tomar decisões por mim? — corrigiu-o ela sem levantar a vista. — Não, muito obrigado. — Francesca, isto é absurdo. Por que não volta comigo para Paris? — Meus inimigos podem me encontrar ali com a mesma facilidade que aqui — respondeu, — se isso for o que o preocupa. Eu não estou preocupada. Não se atreverão a me matar até que encontrem o que procuram, pela simples razão de que não sabem o que preparei no caso de morrer antes do tempo. Não podem arriscar-se a que essas cartas sejam publicadas. — Francesca... — Preciso escrever várias cartas — disse. Domingo à noite Quando Marta Fazi soube que prenderam Piero e que Bruno desapareceu, destruiu umas virgens mais, chorou desconsolada por suas esmeraldas perdidas e jurou vingar-se de todos dos quais estava com raiva. Depois, tal como costumava a acontecer, tranquilizou-se de repente. O plano A, usar uns valentões para que aterrorizassem à inglesa até que lhes desse as cartas, fracassou; de modo que passou ao plano B. A seguir, saiu em busca de alguns rufiões que substituiriam os dois que perdeu. Era difícil em Veneza, mas não impossível. Como descobriu, em toda parte havia homens de caráter fraco que as mulheres de caráter forte podiam dobrar. Certamente Veneza não era a cidade mais acolhedora para os criminosos. Mas

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isso não queria dizer que não houvesse nenhum. Tal como acontecia nas cidades onde a lei era mais permissiva, Veneza contava com uma considerável população de pobres que residiam em seus bairros pobres. Neles florescia o crime, e enquanto os crimes se limitassem a roubar e a matar entre eles, a ninguém importava muito. A dificuldade não estava em encontrar rufiões, mas em encontrar rufiões a quem pudesse entender. Os venezianos não entravam nessa categoria. A julgar pelo pouco que entendia de sua língua, bem poderiam estar falando em chinês. Por sorte para ela, a Veneza vinha gente de todas as partes. Havia comunidades albanesas, armênias, gregas, turcas e judias. A cidade também reunia um bom número de despejados de outras partes da Itália, incluídas as regiões nas quais ela viveu. Entre os malfeitores que cumpriam seus requisitos encontrou alguns dispostos, por um preço, a aventurar-se além dos limites de seus bairros e a se arriscar em chamar a atenção dos soldados austríacos. O preço, como era de esperar quando se tratava de pobres e desesperados, era muito baixo. Não demorou muito em encontrar o que precisava. Terça-feira seguinte, às três da manhã Café Floreiam, praça de São Marcos Nessa hora os salões da cafeteria estavam bastante vazios. Os clientes começavam a partir, fosse as suas casas ou em busca de outros entretenimentos. Entretanto, Francesca e Giulietta ficaram na mesa que compartilhavam com Lurenze e, coisa insólita, com ninguém mais. O príncipe conseguira livrar-se dos distintos diplomáticos e de quase todo seu séquito, salvo de uns quantos guardacostas que tentavam passar despercebidos, dentro da cafeteria e outros fora, na entrada. O restante da clientela estava virtualmente reunida em torno da condessa Benzoni, no outro extremo do salão. Dom Carlos não se encontrava nesse séquito. Francesca se perguntou se teria decidido que Veneza carecia de suficientes mulheres que cumprissem com seus requisitos: "Mulher velha, que às vezes é feia, mas muito, muito bonita em sua carteira". No melhor caso partiu a outra parte. Ela também decidira partir para outra parte e estava tentando encontrar a melhor forma de evitar que o príncipe a seguisse quando o ambiente da sala mudou. Ergueu o olhar e viu Cordier entrando pela porta. Vestia um casaco preto desabotoado. Usava uma camisa branca com babados, faixa negra e um colete bordado, de onde pendurava a corrente dourada de um relógio. O nó de sua imaculada gravata era simples. Suas longas e musculosas pernas ficavam ressaltadas por umas meias de cor

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clara. Os sapatos negros, o chapéu também negro que levava sob o braço e as luvas brancas completavam a imagem do autêntico cavalheiro inglês. Entretanto, seu cabelo e sua forma de se mover, como uma pantera, diziam justamente o contrário. Recordou a advertência de Magny: "Advirto-a, MA chérie, que este te trará problemas". O problema em questão não a olhou e foi direto para a condessa. Para sua exasperação, os homens do grupo lhe abriram caminho, incluído o amante da condessa, o cavalier Giuseppe Rangone. Concentrou-se em Lurenze, que estava descrevendo a miniatura de uma princesa bávara que lhe mostrou há pouco, uma das inumeráveis jovenzinhas que devia considerar como futura rainha da Gilenia. Na realidade, tentou concentrar-se em Lurenze. Porque não parava de olhar Cordier. Embora sua vestimenta não chamasse a atenção, era impossível passar por alto. Primeiro porque a cafeteria estava quase deserta. E, segundo porque ficava acima quase uma cabeça a todos os que o rodeavam... salvo quando se inclinava para saudar alguma das damas com uma reverência ou para sussurrar algo engraçado ou que as fizesse corar, uma façanha louvável, dado o grupinho. Um homem gordinho apareceu de repente, impedindo-a de ver o outro extremo do salão. O indivíduo se deteve junto a sua mesa. Levava uma bandeja coberta. — O que leva? — perguntou Lurenze. — Bagatelas para as damas? — De certa forma... — respondeu Giulietta, que olhou com picardia a Francesca, antes de fazer um gesto ao vendedor para que descobrisse a bandeja. Lurenze se inclinou para ver o conteúdo e se afastou de pronto, como se estivesse cheia de ratos, ao mesmo tempo em que agitava uma mão. — Não, não! Está louco? Tampe isso! Fora, fora! Lurenze podia ser muito autoritário quando se propunha. O vendedor se apressou a cobrir a bandeja com o pano e começou a retroceder. — Não, por favor, espera — disse Giulietta, que fez um gesto para que se aproximasse antes de lançar ao príncipe um olhar tenro e inocente. — Isto é muito importante, ilustríssimo. São capinhas. — Sei o que são — contrapôs Lurenze. — Não sou um menino. Mas peço... rogo que não fale disto em um lugar tão público. É uma falta de respeito que um homem mostre essa mercadoria às damas diante de tanta gente. — Sempre é uma falta de respeito que um homem mostre sua mercadoria a uma dama diante de tanta gente — apostilou Giulietta.

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O comentário de sua amiga arrancou de Francesca uma gargalhada. Depois de um momento de reflexão, Lurenze entendeu a brincadeira. — Que maldosa você é — disse, embora não sabia se ruborizava ou tornava a rir. — Alguém deveria lavar sua boca com sabão. — Mas ilustríssimo, a capinha é muito útil — insistiu Giulietta. — Suponho que não gostaria de ter um herdeiro deformado, nem um idiota que suba ao trono da Gilenia, nem ficar sem descendência... Essas são algumas consequências da sífilis. Além disso, também poderia ficar louco ou acabar com umas feias pústulas no rosto, sem nos esquecer das verrugas nos órgãos masculinos. A pálida pele do príncipe ruborizou imediatamente. — Signorina Sabbadin, asseguro que não me relaciono com pessoas que padecem dessas enfermidades. — E lorde Byron? O príncipe arregalou os olhos como pratos. — Lorde Byron... Lorde Byron!? O que está dizendo? É um homem! Um homem não se relaciona com outros homens. É antinatural! — É um grande poeta — disse Giulietta. — Mas inclusive ele, um homem culto e inteligente, recebeu um presente indesejado de uma dama de linhagem. — Eu poderia nomear várias damas inglesas que receberam presentes semelhantes de alguns lordes — atravessou Francesca. "Com um pouco de sorte, alguma dama me fará o favor de fazer esse presentinho ao Elphick", pensou. Lurenze passeou o olhar de uma dama à outra. Depois voltou a olhar o vendedor de capinhas, que esperava com paciência. — Muito bem — disse. — Faço por minha posteridade. — Mostra a Sua Excelência todos seus produtos — ordenou Giulietta ao vendedor. — Os bons. Os que estão debaixo. O homem obedeceu e levantou a primeira bandeja para deixar à vista os artigos escondidos debaixo, protegidos por pacotes de papel de seda. Lurenze os olhou um momento antes de estender a mão para agarrar um. — Esse não — indicou Giulietta e lhe afastou a mão. — Este — agarrou um dos pacotes maiores e tirou uma das capinhas. A fita que se prendia ao pênis era vermelha. A cor do rosto do príncipe, que por fim começara a serenar, igualou ao da cinta imediatamente. — É o maior que tem? — perguntou Giulietta ao vendedor. — Um príncipe é mais imponente que um homem normal, já sabe. — Signorina, asseguro que este se acomodará ao maior tamanho — respondeu

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o vendedor. — São da melhor qualidade, feitos com intestino de ovelha. Giulietta deu um puxãozinho à capinha com a maior seriedade. Depois colocou uma de suas pequenas mãos no interior, como se fosse uma luva, e a ergueu embainhada na tripa de uma ovelha. — Acredita que será o suficientemente grande e resistente, Sua Excelência? — perguntou ao príncipe. Lurenze a observou durante um momento com os olhos entrecerrados. — Não estou seguro. Ponha-a na cabeça... — e ato seguido pôs-se a rir com tanta vontade que Francesca não pôde menos que rir também. E Giulietta os acompanhou. Todos os presente se voltaram para olhá-los. Inclusive, por fim, Cordier. James não queria olhar. Apesar de que, se não o fizesse, seria o único. Ali estavam os três, rindo enquanto um vendedor tentava lhes vender seu artigo. Madame Bonnard estava coalhada de rubis essa noite. Além das pedras que levava nas orelhas, no pescoço e nos pulsos, usava um magnífico xale de cachemira da mesma cor que os rubis. Permitiu que escorregasse pelos ombros, deixando descoberto o muito baixo decote do vestido verde jade, confeccionado com um tecido fino; seda, certamente, ou algum tipo de crepe. A malha estava bordada com fios metálicos que brilhavam cada vez que se movia. O corte era alto e a saia, vincada; exatamente igual às túnicas que levavam as egípcias nas pinturas das tumbas. As laterais se amoldavam de maneira obscena a seus quadris e a suas longas pernas, cuja magnífica visão lhe dava água na boca. Nesse momento recordou as meias verdes que viu jogadas com descuido em seu dormitório e se impacientou. Teve que lançar mão de todo seu autocontrole para não se aproximar dela, levantá-la da cadeira e afastá-la a rastro dos outros. Os outros, enquanto isso, se limitaram a contemplar o trio reunido no outro extremo do salão antes de retomar suas diversas conversas. A condessa de Benzoni se dirigiu a James. — Ninguém espera que Sua Alteza se separe dessas duas. São muito graciosas. Teve o prazer de desfrutar de uma das conversazioni da signora Bonnard, signor Cordier? Em lugar de dizer que madame Bonnard não o convidou a nenhuma de suas reuniões, respondeu: — Só estou a uma semana em Veneza.

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— Houve um tempo em que se podia escolher entre dúzias de conversazioni, todos os dias da semana — assegurou a condessa. — Quando lorde Byron chegou, só restavam dois: da condessa Albrizzi e a minha. Mas logo apareceu a signora Bonnard e se converteu em sua preferida. Tem la joie de vivre9. E, além disso, é muito instruída. — Ninguém é mais formosa nem mais inteligente que você, minha alma — declarou Rangone, o devoto cavalier servente da condessa. — Isso é o que diz, mas quando ela ri, volta a cabeça como todos os outros — replicou ao seu amado. Pouco depois, a senhora Bonnard riu de novo. James voltou a cabeça e a viu partir com seus dois acompanhantes. Após uns minutos e depois de lhe desejarem uma eternidade de despedidas, conseguiu sair atrás dela. Descobriu que o trio se deteve perto, a escassos metros do café Floreiam. Madame Bonnard tinha a vista cravada na preciosa Torre Dell'Orologio, que se elevava em um canto da praça. Sobre a torre se viam umas nuvens como penugens que sulcavam o céu. A lua, minguante embora ainda conservasse a prateada tonalidade de sua circunferência, brilhava com força e o céu estava coalhado de estrelas. A praça, além disso, estava bem iluminada. Entretanto, não pôde decifrar sua expressão. Giulietta cobriu a face com uma mão, e quando Cordier se aproximou do trio a ouviu rir. Como de costume, as pessoas passeavam em toda parte. Inclusive no ocaso de seu esplendor, Veneza nunca dormia. Nenhum dos três pareceu perceber sua chegada. Lurenze estava dizendo algo e gesticulava profusamente. E nesse momento madame Bonnard virou a cabeça e percebeu a tensão que a invadia ao vê-lo. A espera fez que ele também ficasse tenso. Aproximou-se do grupo. — O circulo da condessa estava ansioso para saber o que era tão engraçado — disse James. — Vocês riam muito. — Capinhas — disse Giulietta antes de explodir em gargalhadas. — A signorina Sabbadin gosta de me pôr vermelho — argumentou Lurenze. — Digo que em meu país somos muito tímidos para falar destas coisas. Dizer em presença de uma mulher é impensável. — Mas não estamos em seu país, Sua Supremacia — disse Giulietta. — Coisa que agradeço enormemente — acrescentou o príncipe com um 9

La joie de vivre é um romance de Émile Zola publicado em 1884

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sorriso. — Mas você... É incrível o que você faz e diz. É uma menina muito travessa. O bom humor de Giulietta desapareceu de pronto e seu doce rosto adotou uma expressão séria e distante. — Não sou uma menina — disse, e se afastou em longos e grandes passos, feito uma fúria e toda indignada, rebolando os quadris e com o queixo no alto. Lurenze olhou Francesca e a seguir James. — O que disse demais? — Não sei — respondeu ele. — Os italianos são muito apaixonados. Espero que não se atire no canal. Os inocentes olhos do príncipe se arregalaram. — Ai, não! Isso é impensável! Madame Bonnard abriu a boca para falar, mas Sua Alteza já saíra atrás de Giulietta. — É italiana — terminou dizendo Francesca enquanto os observava afastar-se. — Mas seu caráter, é semelhante ao meu, não a levará a atirar-se no canal, e isso você sabe tão bem como eu. — Que lenta é — soltou Cordier. — Sabe que se afastou assim para que a siga. Só lhe dei uma mão. Vai se zangar por isso? Queria o príncipe só para você? — Pois sim-respondeu ela. — Mas logo o vi e me perguntei: para que quero um príncipe jovem e muito bonito, possuidor de enorme quantidade de dinheiro que anseia gastar com mulheres quando posso passar o tempo com um filho mais jovem mal educado e sem dinheiro que se aborrece comigo por uns peridotos de nada, me cria problemas com meus amigos e não sabe o que quer de verdade? — Sentiu minha falta, cara? — perguntou-lhe. — Passaram-se mais de três dias inteiros. — Tanto? — disse ela. — Me pareceram três minutos. Pensei que por fim tinha me livrado de você..., e, aqui está de novo. — Se continuar assim, não a levarei ao alto do Campanile — disse ele enquanto apontava com a cabeça para a torre de tijolo a frente. — Acaba de destroçar meu coração — zombou ela. — Não sei se terei forças para recolher os pedaços e continuar minha vida. — Alguma vez esteve no alto do Campanile à noite? — perguntou James. — Duvido muito que alguém tenha pisado lá desde que Galileu lá esteve para descobrir que o mundo é redondo — respondeu. — Hoje em dia o fecham à noite. E há um guarda — entretanto, seus olhos se desviaram para o campanário e refletiram um brilho de curiosidade.

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— É uma noite perfeita, mas amanhecerá dentro de algumas horas — lembrou Cordier. — Será melhor nos apressarmos — e a agarrou sua mão. Quando ela tentou se soltar, agarrou com força e se pôs a andar para o campanário. Bonnard deixou de lutar. — Me nego a brigar no meio da Praça de São Marcos. — Estupendo, porque perderia — afirmou ele. Sua mão enluvada encaixava à perfeição na sua. Recordou como tirou as luvas. E experimentou uma pontada de desejo. — Se conseguirmos chegar ao alto — disse ela — a primeira coisa que farei será te empurrar. Mas não se preocupe, porque não vamos conseguir. É certo que o guarda é austríaco, e já sabe como apreciam as regras. — Deixa de falar — ordenou ele. — Vai precisar de fôlego para subir os degraus. Francesca estava sem fôlego mesmo antes de começar a subida. E se devia ao fato de ir de mãos dadas com Cordier. Uma mão grande, cálida e forte. A última vez que passeou agarrada a mão de um homem foi no começo de seu matrimônio, quando John Bonnard era carinhoso e terno, quando ela acreditava que jamais poderia deixar de amá-lo. Sentiu a ardência das lágrimas e piscou com rapidez, agradecida pela escuridão da noite e pela sombra da torre. A beira do choro, pelo amor de Deus! Por que choraria depois de todo esse tempo? Entretanto, quando Cordier soltou sua mão para falar com o guarda, sentiu-se perdida e a ardência intensificou. "Deixa de choramingar", repreendeu-se. Escutou o murmúrio rouco de Cordier e a resposta do guarda. O intercâmbio não durou muito. Cordier retornou a seu lado, agarrou a mão dela e sorriu muito seguro de si. — É veneziano — disse. — Então, logo que percebeu que estou com uma mulher formosa, concordou sem mais. Supôs que o fato de que falasse italiano como um nativo influenciou muito mais na hora de persuadir o guarda que a veia romântica deste. Além de que um par de moedas operava milagres, mesmo entre os supostamente rígidos e incorruptíveis austríacos. — Há outro guarda no alto — advertiu Francesca. — Esse certamente será austríaco.

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— Seu trabalho é estar alerta a possíveis revoltas, incêndios, invasões e coisas parecidas — recordou Cordier. — Talvez nos reviste em busca de armas. Importaria que te revistasse? — Se for jovem e bonito... — Bom, logo o saberemos. Quer que apostemos uma corrida até o alto? — Que típico de um homem sugerir isso — protestou Francesca. — Você usa calças e eu preciso correr com as saias, as anáguas e o espartilho. Quando o guarda abriu a porta, Cordier se inclinou para ela para sussurrar ao ouvido: — Sempre podemos tirar a roupa. Uma poderosa e energizante sensação percorreu suas costas. Parou em seco. Cordier se pôs a rir e a puxou para levá-la ao interior. E, como tola que era, deixou-se arrastar porque fazia uma noite preciosa e o campanário era um lugar proibido, e porque a última vez que subiu foi em plena luz do dia e estava rodeada de turistas. ... E, porque ele a pegou pela mão e queria ir aonde ele a levasse. "É só luxúria" disse-se, e quanto antes se livrasse desse demônio, melhor. Faltava pouco mais de uma hora para o amanhecer, e a lua e as estrelas, embora preciosas no céu, não iluminavam o interior da torre, embora James distinguisse perfeitamente as janelas arqueadas. Deveria ter pedido ao guarda uma lanterna ou uma tocha, mas não necessitava mais luz nem a queria. Nunca lhe foi difícil abrir caminho na escuridão, e nessa torre só havia um caminho: para cima pela suave rampa em forma de caracol. Sempre esteve mais cômodo na escuridão. E essa noite levava Francesca pela mão e escutava o suave farfalhar de suas saias enquanto caminhava a seu lado. Em certos momentos sentia seu roçar nas pernas. E cheirava o sutil e incitante perfume de jasmim dela. — Usa-o na roupa? — perguntou. — Me refiro ao perfume. Parece-me que é jasmim, mas tem algo mais que não consigo identificar. — Thèrése põe sachês em meu armário, entre os vestidos, a lingerie, as luvas e os lenços — respondeu. — Veja, não basta vestir elegantemente. Uma grande prostituta deve ter um aroma inconfundível. — É uma grande prostituta? — questionou ele, negando-se a pensar nas imagens de seu dormitório com a roupa espalhada pelo chão e esses potes tão femininos com suas tampas e etiquetas douradas. Mas, sobretudo, negou-se a pensar em sua lingerie, e tampouco quis recordar

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o indecente amarrotado da cama que viu. — Nesse caso, esconde os demais amantes maravilhosamente bem, porque até o momento só contei dois... Bom, três se me incluo. — Não se inclua — replicou ela. — Porque é uma aberração. — Muito bem. Mas na Itália as damas casadas mais respeitáveis podem ter dois amantes e inclusive um par de aberrações. — Não sou italiana — apontou. — Sou inglesa e divorciada. — Seja onde for, faça o que for — aconselhou. — Sinto dizer que é um desastre como puta tanto na Itália como em qualquer outro país do continente. — Não seja tolo — o repreendeu. — Sou uma puta magnífica. Tenho joias que o demonstram. — Uma magnífica mulher de negócios, certamente que sim — reconheceu. — Aprendi com a melhor — disse ela. — Em Paris. De Fanchon Noirot. Ouviu-o assobiar baixinho. — Ouvi falar dela. Deve ter uns sessenta anos. — Sessenta e cinco... E desfruta de uma luxuosa aposentadoria com um amante devoto. Uma das poucas rameiras que não acabou mal. Cordier se deteve de repente. — Por Deus, Bonnard! — exclamou ele. — Agora vejo que tem tudo bem pensado. — Poderá ler tudo em minhas memórias — ela assegurou. — Tenho pensado em escrevê-las quando completar os quarenta, antes que todos os implicados estejam mortos ou muito velhos para envergonhar-se..., ou para dar umas boas risadas, depende do caso. — Me incluirá nelas? — Certamente não — respondeu. — Penso te esquecer amanhã mesmo. — Nesse caso, será melhor que aproveite ao máximo o momento — advertiu ele. Apertou sua mão com força e retomou a marcha pela rampa.

Capítulo 09

Assim que a noite com seu escuro manto cobre o céu (e quanto mais escuro, melhor), a hora mais aborrecida pelos maridos, que não pelos amantes, começa, e o pudor escapa de seus grilhões. A alegria revoa travessa em qualquer parte,

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rindo com todos os galãs que a cortejam. LORDE BYRON Beppo Parecia um gato, pensava Francesca. Embora caminhassem protegidos por uma impenetrável escuridão, Cordier não duvidou em nenhum momento nem tropeçou. "Não tem nem um cabelo de tolo...", disse-se. Sua mente percebeu-se de algo, mas a imagem foi tão fraca como a luz de um vaga-lume e não conseguiu retê-la. Entretanto, deixou-a inquieta e compreendeu antes de chegar ao campanário, muito tarde, que estava completamente a sós com um homem que não conhecia absolutamente. Recordou que um homem tentou matá-la dias antes... e, que outro homem, possuidor de um título legítimo e de importantes amizades no governo britânico, ordenou que revistassem sua casa semanas atrás. Lembrou, tarde demais, o muito que a surpreendeu a força do homem que a acompanhava. Um homem capaz de levantá-la nos braços e lançá-la no vazio por uma das janelas. Seu coração acelerou. Disse a si mesma que não devia ser ridícula. Não devia permitir que as afetações e as preocupações de Magny a influenciassem. — Por quê? — perguntou. — Por que colocou na cabeça subir ao Campanile em plena noite? — Senti um forte desejo de ver Veneza à luz das estrelas com uma bela mulher ao lado — respondeu ele. — Havia mulheres muito bonitas no circulo da condessa Benzoni — recordou. — Giulietta é bela. Podia ter sido mais rápido e correr atrás dela quando saiu. Cordier suspirou. — Sei. O problema é que você é a única que me interessa e, por algum motivo desatinado, é a única com a que quero subir ao campanário da torre. Estranho, verdade? — Nem muito menos — respondeu. — Cismou comigo. É nosso pão de cada dia. Cordier se pôs a rir... e tropeçou, por isso cambaleou para frente. Ela gritou e tentou escapar da mão que a segurava para não acabar no chão também, mas ele recuperou o equilíbrio com rapidez e indicou que fizesse silêncio. — Me esqueci que aqui havia uma escada — admitiu. O ruído que fizeram alertou ao vigilante. A pequena figura, rodeada pela escuridão, surgiu com uma lanterna no lugar onde esteve oculta e exigiu saber

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quem entrou na torre. Cordier o convenceu com a mesma facilidade com que convenceu o guarda da porta. Disse algo, o homem respondeu, e desse modo trocaram comentários como se fossem velhos amigos. Mostrou a entrada que seu companheiro lhe deu e deixou cair uma moeda na mão de seu mais recente amigo. O vigilante os guiou por um novo lance de escadas enquanto conversava afavelmente, abriu a porta da galeria superior e retornou para continuar dormindo. — Não cismei com você — disse Cordier enquanto a conduzia até o balcão de pedra. "Talvez você não, mas eu sim", ela reconheceu para si mesma. — Deixa de falar — ordenou Francesca. Não queria falar. Não queria pensar. Queria deixar a mente em branco e limitar-se a desfrutar do momento e da vista de um lugar mágico. O céu começava a clarear, mas as estrelas ainda eram visíveis. Aos pés da torre, a cidade era um lugar mágico salpicado de luzinhas tremulantes. Caminhou pelo balcão, hipnotizada pelo panorama que se estendia a seus pés e sobre sua cabeça. A lacuna também brilhava ao refletir a débil luz das estrelas e das embarcações, e talvez também a do sol, embora ainda não tivesse aparecido no horizonte. — Assim veem os deuses o mundo — disse Francesca com voz baixa. — A seus olhos somos como formiguinhas diminutas. As pessoas que caminhavam pelo lugar eram diminutas, movendo-se entre as luzes e as sombras. Procurou o labirinto dos canais, mas daquela altura ficava oculto pelas cúpulas, as torres e os palácios. Sabia que as montanhas nevadas também estavam ali a frente, mas a escuridão as ocultava. Supôs que apareceriam pouco a pouco, à medida que o sol subisse do horizonte, desde que o dia fosse tão aberto como foi à noite. Entretanto, não foram as cúpulas nevadas que se elevavam em terra firme o que a cativou, mas sim a lacuna, as ilhas disseminadas em sua brilhante superfície e os barcos que sulcavam suas águas, trabalhadores antes mesmo que raiasse a alvorada. Inspirou o cheiro do mar. — Assim deve ser o céu — disse. E nesse momento notou uma opressão na garganta, os olhos encheram-se de lágrimas e, para seu abalo, pôs-se a chorar. James não era dos homens que se assustavam pelas lágrimas de uma mulher. Tinha tantas irmãs, tias, sobrinhas e primas que esquecia seu número. Claro que eram irmãs, tias, sobrinhas e primas. Afastou-se da parede em que estava apoiado para aproximar-se dela.

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— Per carità — disse. — Pelo amor de Deus! A que vem isto? Ela apoiou a cabeça em seu peito e seguiu chorando, não de forma silenciosa, mas com enormes soluços entrecortados que delatavam um grande sofrimento. O coração de James disparou. — Vamos, Bonnard, não leve tão a sério — disse com fingida leveza. — Sei que o amor que sente por mim é quase insuportável, mas... Francesca tragou saliva e a seguir rompeu a chorar novamente. — Suplico que não se atire pelo balcão — prosseguiu ele, estreitando-a com mais força entre seus braços. — Não mereço. Ela ergueu a cabeça para olhá-lo. As lágrimas brilhavam em suas pestanas. Uma delas deslizou por um lado de seu nariz. — De verdade, não mereço — reiterou. — Cretino — replicou ela com a voz rouca. — Oxalá fosse o bastante forte para te atirar pela murada. Qualquer um diria que a palavra "cretino" era um apelido carinhoso, a julgar pelo alívio que James sentiu, tão doce e fresco como a brisa vinda da água. — Necessito um lenço — a ouviu dizer com a mesma voz rouca pelo choro. — Ou prefere que assoe o nariz em sua gravata? — Não — respondeu ele. — Faria qualquer coisa por você, minha cara, mas a gravata é sagrada para um homem. Soltou-a para procurar seu lenço. Quando por fim encontrou, no bolso do fraque, ela já havia pego o seu. Um minúsculo pedacinho de linho rodeado por metros e metros de renda. Observou-a enxugar os olhos inutilmente com essa ridícula pecinha e logo assoar o nariz com delicadeza. Voltou a guardar o lenço. — De maneira que assoaria o nariz com minha gravata... De verdade acredita que me encaprichei por você? Enfim, me permita explicar uma coisa, OH, Deusa da Beleza, Pérfida Rameira, Rainha do Nilo...! E qualquer título mais que acredita apropriado para seu pers... — É um homem — o interrompeu. — O que sabe você? Nada de nada — ergueu uma mão enluvada, um gesto desdenhoso digno de uma rainha, e se afastou. — Uma saída. As mulheres passam a vida protagonizando saídas dramáticas — seguiu-a, cantando os versos do Fígaro. — Donne, donne, eterni dei, chi v'arriva a indovinar? "Mulheres, mulheres... Ai, deuses eternos! Quem as entende?"

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Sem perder tempo, ela respondeu, embora não com a voz de soprano que correspondia ao papel da Rosina, a não ser em um grave contralto: — Ah, solo tú, amor, solo tú eres capaz de consolarme. "Ah, só você, amor, só você é capaz de me consolar." Em James deu um tombo o coração. E outro mais enquanto a seguia. — Se dá conta disso? — inquiriu James. — Aí está o problema. Temos muitas coisas em comum. Conhece Rossini. Conhece Byron. Ou ao menos, conhece as mesmas partes de suas obras que eu. — Meio mundo conhece essas partes da obra de Byron — replicou ela. — Meio mundo sabe de cor O barbeiro de Sevilha. Continua procurando justificativas, Cordier. Tentando explicar por que não pode se manter afastado de mim. Te acontece o mesmo que ao Lurenze. Virei um capricho para você. A diferença é que ele é o bastante homem para admitir. Não estava encaprichado dela. Conhecia muito bem esse sentimento. Em sua frívola juventude se encaprichou de um sem-fim de mulheres inadequadas. — É luxúria, tola! — exclamou ele. — O que Lurenze sente é o desejo normal de um homem jovem e saudável por uma mulher bela. Em seu caso é mais intenso do que o normal porque o encarceraram na sala de aula do palácio durante muito tempo. O que vê nele é só o efeito de ter passado anos desejando um bom meneio. — Um meneio? — repetiu ela entre gargalhadas, com essa risada tão pérfida que arrepiava os pelos... entre outras coisas. — Refere a uma boa queda, não? É ridículo, Cordier, sabia? Traz-me para o campanário do Campanile em uma noite estrelada. Era romântico. Tão romântico que me pus a chorar. Possivelmente me ponha a soltar tolices agora mesmo... porque tenho o coração destroçado. Pela lástima. Você é um rolha sem remédio — seguiu avançando enquanto observava a vista. James apertou os punhos com tanta força que cravou as unhas nas palmas. Baixou a vista e estendeu os dedos muito devagar. O que lhe acontecia? Não tinha razão alguma para estar tão alterado, disse-se. Nenhuma. Ela estava certa. A ideia era que a situação fosse romântica. A ideia era enrolá-la, ganhar sua confiança. Sabia perfeitamente o que estava fazendo. Estava fazendo seu trabalho. Entretanto, as coisas não foram como deveriam. Pela enésima vez. Tropeçou! e ele jamais tropeçava. Estava perdendo faculdades. Estava se tornando torpe e lento... e não era de

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estranhar. Estava cansado e enojado, e fazia meses que deveria ter voltado para casa. Estava exausto. Esgotado. Mas não encaprichado. — Sei o que quer — prosseguiu ela. — Quer dizer a última palavra. Vai preparado, querido. Não cheguei até tão longe nem consegui tudo o que consegui permitindo que os homens digam a última palavra. Isso possivelmente incluísse Elphick, pensou James. Seriam as cartas sua forma de garantir que era ela quem tinha a última palavra referente a seu ex-marido? Seria essa a razão de sua teimosa relutância a admitir que as tivesse em seu poder? Não queria perguntar, embora parecesse o mais acertado. Não queria pensar em Elphick e nas aborrecidas cartas. Aproximou-se dela, que se deteve diante de um dos arcos. Contemplava a Praça de São Marcos. Olhou por cima de seu ombro para ver o que ela via. Não só a praça quadrada, mas também a cidade que a rodeava. As cúpulas douradas brilhavam tenuamente à luz da alvorada. E mais à frente, as ilhas da lacuna disseminadas sobre a reluzente superfície da água. Sentiu uma estranha opressão no coração. Não foi a Veneza por própria vontade. Para ele era uma cidade em declínio, um lugar melancólico. Entretanto, olhando por cima de seu ombro nesse momento e vendo-a através de seus olhos, os olhos de uma mulher que encontrou refúgio nessa cidade, percebeu seu encanto. — Não sou um rolha — protestou. Colocou as mãos na balaustrada, em ambos os lados das suas, prendendo-a entre seus braços. Aspirou seu perfume misturado com o cheiro de Veneza, com o das pedras antigas que os rodeavam e com o cheiro metálico dos grandes sinos acima deles. Inclinou a cabeça e posou os lábios justo nesse lugar tão especial atrás do lóbulo da orelha. Notou-a estremecer antes que se agachasse para passar por baixo de um de seus braços e afastar-se entre gargalhadas. O incitante som reverberou no campanário. — É uma pícara incorrigível — acusou-a. — Igual a você. Aproximou-se dela e voltou a abraçá-la. — Estou farto de joguinhos. E não deveria estar. Tinha um trabalho a fazer, e esses joguinhos faziam parte dele. Entretanto, com ela entre seus braços, com o farfalhar da seda, o aroma de

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jasmim e o suave roçar de suas curvas e sua pele, negava-se a pensar no trabalho. O simples roçar de seus lábios bastou para que a paixão, que jamais conseguiu extinguir, corresse por suas veias e lhe derretesse a razão. O bom senso e a voz que o guiava o abandonaram, deixando-o à deriva em intenso desejo. — Eu não — replicou ela, afastando-se. Afastou-se dançando e cantarolando uma melodia. James a seguiu e o cantarolar deu lugar a uma canção cuja letra conhecia muito bem. Como ela dissera, quem não a conhecia? Era uma ária do barbeiro de Sevilha, "Una voce poco fa", escrita para uma soprano, mas que soava muito mais sedutora com seu tom de voz grave. — Dócil? — perguntou. — Respeitosa? Obediente? Você? — Dolce, amorosa — cantou ela. — Doce e amorosa? Acredito que não. — Ma se mi toccano dov'è il mijo lhe deva, sarò uma vipera, sarò. "Mas se me contrariam, posso me converter em uma víbora." — Isso se parece mais à realidade — apontou. — Sim senhor, uma víbora — recordou a serpente tatuada que levava na omoplata direita. — Isso explicaria a... — mordeu a língua a tempo. Viu a tatuagem uma única vez, em La Fenece, quando se disfarçou de criado. O robe de dormir, ou camisola ou de qualquer maneira que se chamasse esse objeto escandaloso com que o recebeu em seu palazzo, escondia-o. "Torpe, torpe", disse a si mesmo. Mas ela não pareceu reparar no engano. Talvez não o tivesse escutado. Seguia cantarolando a certa distância dele, movendo-se de arco em arco. — Cara — a chamou. Ela ergueu uma mão. — Não me chame assim. Nada de apelidos carinhosos. Nem sequer de brincadeira. — Bonnard. — Isso tampouco. — Francesca — disse, e ruborizou... como se fosse um menino que acabasse de cometer uma travessura vergonhosa. Quando foi a última vez que ruborizou? Entretanto, seu nome parecia encaixar em seus lábios tão bem como encaixavam suas mãos e seus corpos. — Má pécora... Ouviu que ria baixinho, mas parou ao inclinar-se sobre o corrimão para contemplar a paisagem.

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Aproximou-se dela novamente e voltou a prendê-la entre seus braços do mesmo modo que antes. — Comecemos de novo — disse. Ela negou com a cabeça. Beijou-a no pescoço. Sentiu seu estremecimento justamente antes que tentasse escapar novamente, mas então lhe deu uma dentada no pescoço e ela se deteve. Deu-lhe uma delicada dentada na orelha e ela voltou a estremecer. Deslizou a língua por seu pescoço até chegar ao ombro. Beijou, e quando notou seu estremecimento, deu outra dentada. — OH! — exclamou com um fio de voz. — É uma besta. — Sua besta — disse enquanto baixava o sutiã para beijar a pele que ia descobrindo até deixar uma chuva de beijos na parte superior do braço. Saboreou o fresco ar noturno em sua pele. Aspirou o aroma de jasmim misturado com o da salgada brisa e com essas sutis percepções que ainda não pôde identificar. Talvez só fosse seu próprio aroma. A mistura lhe subiu à cabeça, saturou seu mundo e se converteu em um mar onde estava disposto a se afogar. Tudo o que a rodeava seduzia um homem até levá-lo a destruição. Deveria ser imune a seus encantos, mas não era. Nesse momento não queria ser. Desejava-a, simples e sinceramente. Deslizou as mãos sobre o sutiã do vestido. Ansiava sentir sua pele na palma das mãos. Ansiava voltar a sentir a suave curva de seus seios. Apesar da ofuscação que o invadia, parte do bom senso seguia presente, ao menos para lembrar onde se encontravam: em um canto do campanário, protegidos por uma das colunas. Entretanto, era um lugar público e o horizonte já clareava. Ergueu o xale e o colocou em torno dos ombros como uma cortina enquanto soltava as alças do sutiã para despir seus seios, tão quentes, suaves e delicados. Tomou cada um com uma mão e ela se revolveu, esfregando o traseiro contra sua virilha. Voltou a morder seu pescoço com suavidade para que permanecesse quieta e começou a erguer as saias e as anáguas. — É uma menina má — sussurrou ao seu ouvido. — Uma menina muito má. — Sim — reconheceu. — Certamente. Era uma menina muito má e adorava ser, é a verdade. Oxalá pudesse... mas não. Era uma tolice ficar sentimental e desejar que o passado fosse diferente. Desejar um novo começo, partindo do zero. Não podia se

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deixar levar por esses desejos nesse momento tão mágico e passional. Abriu os olhos. A seus pés se estendia Veneza como um joalheiro derrubado cujas joias se disseminaram por toda parte. As luzes tão delicadas como as de vagalumes; o brilho das cúpulas douradas; os barcos movendo-se sobre a reluzente superfície da água... se deixou embriagar pelo cheiro do mar e pelo cheiro do homem que estava atrás. Ouviu o farfalhar da seda quando ergueu suas saias. Uma menina boa o deteria, mas ela não era uma menina boa e não queria ser. Era má, muito má, e tremia de desejo e de impaciência enquanto essas mãos acariciavam suas coxas, o traseiro nu e, por fim, o meio das pernas. Já não podia fingir que estava brincando de gato e rato. Já não podia fingir que estava jogando algo. A verdade era muito óbvia. Não podia ocultar a evidência do desejo a essas mãos que a exploravam. Porque estava preparada muito antes que a tocasse. Afastou-se dele balançando-se, sim, mas foi uma tentativa para dissimular o desespero... o amor. Porque ela não era um homem. E, diferente dele, sabia muito bem qual era o problema que a afligia. Mas não queria pensar nisso. Não nesse momento. Era uma deusa que contemplava o mundo das alturas e que nesse momento possuía tudo o que queria: suas carícias, seus beijos, o roçar brincalhão de seus dentes, tão pícaro e tão sutil. E suas mãos; essas mãos longas que a acariciavam com tanta destreza. Assim que seus dedos roçaram o lugar mais sensível, os joelhos afrouxaram. Se não fosse pela balaustrada em que se apoiava, teria caído ao chão do campanário. O desejo era tão intenso que era doloroso. Uma dor palpitante nas vísceras. Remexeu-se para esfregar-se contra essa mão, mas não era suficiente. "Por favor. Continua, por favor" rogou em silêncio. Não pensava suplicar em voz alta, mas ele entendeu. Ouviu o farfalhar da roupa dele quando começou a despir-se. Imediatamente o notou colado a ela e ofegou. Era grande, ardente e sentiu uma pontada de temor. Um temor absurdo, como se fosse uma menina. Notou que colocava uma mão em suas costas para incliná-la para frente com delicadeza de modo que seu corpo adotasse o ângulo correto. Seus dedos deslizaram sobre essa zona tão úmida e preparada. Tocou-a, separou-a e a penetrou. O súbito movimento arrancou um ofego que acabou convertido em um suspiro. O prazer a invadiu e se converteu em uma maré de emoções, como a impactante abertura de La Gazza Ladra. "Sim, sim, sim!", exclamou em sua cabeça.

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Parecia levar toda a vida esperando esse momento. Sentiu o roçar de seus lábios no pescoço enquanto começava a mover-se em seu interior. Quando voltou a cabeça, ele entendeu e a beijou. Foi um beijo longo, apaixonado e transbordante de uma estranha ternura que a afetou enormemente. Entretanto, a ânsia por chegar ao clímax era muito mais intensa, e Francesca começou a mover-se, acoplando-se ao ritmo que ele impôs enquanto as sensações se apoderavam dela. Sensações enlouquecedoras e desconhecidas. O coração parecia estar a ponto de explodir no peito, tão pictórico estava e tão rápido pulsava. Tentou encontrar o caminho de volta, retomar o controle, esse controle que prezava tanto, mas não pôde fazer nada. Já era muito tarde para pensar no controle. Desejava esse homem desde que o conheceu, e a única coisa que ansiava nesse momento era fazê-lo seu. A única coisa que podia fazer era possuí-lo nesse instante e aferrar-se à ideia de que era dela, só dela. Entregou-se à loucura, a delirante felicidade e seguiu movendo-se enquanto ele a penetrava com um ritmo agitado que acabou provocando uma intensa explosão. O mundo pareceu agitar-se sob seus pés e demorou um instante em compreender que a vibração e o ensurdecedor som eram o repicar dos sinos. Ouviuo rir ao mesmo tempo em que suas enormes mãos lhe tampavam os ouvidos. Francesca explodiu em gargalhadas sem poder evitar. Quando abriu os olhos e olhou para o horizonte, descobriu o brilho avermelhado do sol nascente. Sentiu seu quente fôlego na orelha. — Me diga, minha víbora — disse ele com voz rouca. — Parece o bastante romântico? Para James era muito romântico. Muito romântico e ridículo. O repicar dos sinos quando chegaram ao clímax, a saída do sol no horizonte... Entretanto, enquanto flutuava no dourado mar de satisfação, só atinou a rir e a ajudá-la a arrumar a roupa. Baixou as anáguas e colocou as saias em seu lugar. E seguiu rindo quando na metade do processo lhe ordenou que subisse as calças. Ao olhar para baixo comprovou que começava a se excitar de novo. Pensou na Inglaterra, subiu os calções e as calças, colocou as abas da camisa e se concentrou em fechar a braguilha. — Por Deus, é uma arpía irresistível. — Não sabia que fosse capaz de realizar milagres — disse Francesca. — Tendo em conta sua idade, é surpreendente que tenha se recuperado tão rápido. — Minha idade!? E Magny, o que...

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— O que tem ele? — perguntou por sua vez, enquanto ajustava o sutiã. — Poderia ser meu avô. — Não é para tanto — disse ela, e franziu o cenho enquanto olhava o decote. — Estão iguais? Visto meu espartilho preferido, mas para que fique bem preciso pôr as tetas exatamente igual O... — Estão esplêndidas. Você é esplêndida. Mas não estou apaixonado. Aproximou-se dele com um sorriso nos lábios. Ergueu uma mão para lhe dar uns leves golpes em uma face. — Caro mio, se ficar mais tranquilo pensando assim, não serei tão cruel para te desiludir. E menos agora. Foi maravilhoso, incrivelmente romântico e deliciosamente escandaloso. Uma combinação perfeita... e uma experiência que demorarei para esquecer. Grazie tante, amore mio. Mas já é hora de nos despedirmos. Deu a volta e se afastou com rapidez. Muito obrigado? Adeus? Demorou para reagir, por culpa do estado pós-coito em que se encontrava sua mente. Estupefato, a observou se afastar um momento antes de segui-la. — Você é incrível, Bonnard. — Não me chame assim — o advertiu enquanto começava a descer a escada. — Francesca... — Não me siga. Já amanheceu e não quer que toda Veneza te veja me seguir como um cachorrinho com a língua de fora. "Um cachorrinho com a língua de fora?", perguntou-se. Deteve-se em seco. — Mas eu não... — Foi muito divertido, mas já terminamos — o interrompeu, sem voltar sequer a cabeça; ergueu uma mão e repetiu esse exasperante gesto de despedida. — Addio.

Capítulo 10

Ai, amor! Quão perfeita é sua arte mística, que fortalece aos fracos, e que pisoteia aos fortes. Quão iludidos são os mais sábios mortais, que se deixaram enganar por seus encantos...

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LORDE BYRON Dom Juan, Canto I Se não contasse com uma boa mão de cartas para ganhar a partida, o melhor era blefar. Francesca partiu fazendo uma reverência desdenhosa e um sorriso mais desdenhoso ainda, que desapareceu assim que começou a descer a rampa. Temia que a seguisse. Temia que não o fizesse. Obrigou-se a acelerar o passo porque estava muito tentada a ficar, descobrir se a seguiria ou não. Se fizesse, estaria muito tentada a deixar que a alcançasse. Jogos, jogos muito absurdos. Qualquer um a tomaria por uma jovenzinha recém saída da sala de aula à espera que seu apaixonado a perseguisse. Embora não fosse uma jovenzinha recém saída da sala de aula quando seu casamento começou a fazer água — ou o sonho que tinha do casamento ao menos — esperou que John Bonnard a perseguisse e a afastasse dos braços do homem com quem procurou consolo. Esperou que ficasse enciumado, para machucá-lo da mesma maneira que ele machucou a ela. Mas John não sentiu ciúmes nem dor alguma. Ficou enojado. "Puta asquerosa! Tem a mesma moral que seu pai. Com razão foi tão esplêndido com o dote. Temia não se livrar de você a tempo, antes que o mundo descobrisse o que é de verdade." Arderam-lhe os olhos e as faces. Mas por dentro ficou gelada como um cadáver, justamente antes que a vergonha a assaltasse e o coração disparasse como aconteceu naquele dia, aquele terrível dia em que viu como todo o amor de seu marido se transformava em ódio. A luz se filtrava pelas janelas do Campanile, mas não era capaz de ver além de sua raiva e sua miséria. Tropeçou. Apoiou os braços na parede para recuperar o equilíbrio. — Idiota — murmurou Francesca, — por que não quebra o pescoço de passagem? Assim dará ao Elphick um motivo para celebrar. Isso era o que acontecia quando dava rédea solta aos sentimentos, disse a si mesma. As emoções assumiam o controle. Começava-se a chorar pelo passado. O marido que quis com loucura a chamou rameira, puta e coisas muito piores. Muito bem. Converteu-se em uma puta. Em uma puta magnífica. Nada de choramingações nesse momento. Fazia uma saída magistral. Não o

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machucaria com inseguranças nem com esperas. Não o machucaria com velhas tristezas nem sofrimentos. Desceu a rampa a toda pressa, o mais rápido que permitiram suas saias, as anáguas e o espartilho. Quando saiu do campanário à praça, diminuiu o passo o suficiente para conservar sua dignidade. A primeira hora da manhã a praça era um lugar muito buliçoso. Passou junto ao Palácio Ducal a caminho do embarcadouro, onde esperava sua gôndola. Uliva, que estava acordado, despertou Dumini. Sempre que seus gondoleiros precisavam esperá-la muito tempo, dormiam por turnos, de modo que um deles sempre estivesse alerta. — Me levem a casa da signorina Sabbadin — ordenou. James a observou do alto do campanário. Apesar do que lhe disse, apesar de que estivesse zangado, deveria tê-la seguido embora fosse só para assegurar-se de que chegava bem a casa. Não valia nada recordar que havia pouquíssimas possibilidades que alguém a atacasse a essa hora do dia. O lugar era um formigueiro de vendedores e gente que precisava ganhar o pão e não podiam ficar na cama até o meio-dia. Junto às diligentes formiguinhas estavam os que retornavam a casa cambaleantes depois de uma noite e uma madrugada de dissipação. "Improvável" não era o mesmo que "impossível". Se alguém a atacasse, o que diria a seus superiores? "Sinto muito, mas feriu meus sentimentos. E em seguida me tirou do sério. Não me atrevi a segui-la porque havia a possibilidade de que a estrangulasse... e de que em seguida jogasse seu voluptuoso e inerte corpo pela janela mais próxima." — Que idiota é — murmurou. — É tolo de arremate! Pôs tudo a perder. Supunha-se que devia obter que o perseguisse. Entretanto, cedeu a um impulso... Não, era pior que isso: cedeu à insistência dessa cabecinha que tinha entre as pernas. Sim, fazia com Francesca o que desejava fazer e o que ela desejava que fizesse. Embora era evidente que não desejava nada mais, de modo que já não lhe servia de nada. "Ciao, cretino. Vou enlouquecer um conde francês. E um príncipe da Gilenia. E talvez alguns russos e uns bávaros, e um melhor lance a um gondoleiro." — E eu o que sou? — resmungou. — Uma peça? Desceu os degraus e a rampa feito uma fúria, saiu do Campanile e tomou o

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mesmo caminho que ela. Durante todo o trajeto não deixou de amaldiçoar baixinho em italiano, em inglês e, de vez em quando, em francês, alemão, russo e grego para variar um pouco. Quando chegou a sua gôndola, Zeggio informou que viram a signora e que esta ordenou a seus gondoleiros que a levassem a casa de sua amiga. "Perfeito" pensou. Giulietta e ela poderiam comparar notas. Entre risadas. — Senhor? Levantou a vista. Sedgewick e Zeggio voltaram a se olhar com essa expressão tão rara. — Aonde, signore? — perguntou Zeggio. Subiu à gôndola. — A São Lázaro — respondeu. — Ao monastério. E, desta vez vou ingressar nele. Era muito cedo para que os seres humanos estivessem em pé, mas Francesca estava muito desesperada para pensar nisso. Assaltaram-na as dúvidas quando chegou à casa de Giulietta e viu a enorme e conhecida gôndola amarrada no embarcadouro. Entretanto, antes que pudesse ordenar a Uliva que a levasse de volta, um cavalheiro subiu a bordo da gôndola e a embarcação entrou em movimento. A gôndola passou junto a ela em um instante. Obrigou-se a saudar com despreocupação. O homem dentro ruborizou profusamente, mas tirou o chapéu com principesco aprumo. O sol matutino arrancava brilhos dourados ao cabelo loiro de Lurenze. Pouco depois Francesca entrava no quarto de Giulietta. Sua amiga estava sentada numa mesinha junto à lareira, mexendo seu café com uma colherinha. Ao vê-la entrar, sua expressão pensativa desapareceu. — Bom, vejo que se divertiu — disse ao entrar. — Sua Alteza saía justo quando eu chegava. Giulietta deu de ombros. — Obriguei-o a comprar uma capinha. Precisava lhe mostrar como se usava. — Giulietta ordenou que lhe servissem café e insistiu que sentasse e tomasse o café da manhã. Assim que se sentou, Francesca explodiu em lágrimas. Giulietta saltou de sua cadeira para abraçá-la. — Ai, Deus! O que acontece? Não queria estar com Cordier? Francesca tirou o lenço umedecido e o olhou. Era uma peça de renda que só servia como adorno. Por que não aceitou o do Cordier quando o ofereceu? Poderia

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tê-lo pego e guardado como uma lembrança. A ideia arrancou uma nova onda de soluços. Giulietta pôs um guardanapo em sua mão. — O que? — perguntou. — O que aconteceu? Nunca chora. Está grávida? — N-n-não. — enxugou as lágrimas e soou o nariz com o guardanapo de linho. — Não pode estar chorando pelo príncipe — disse Giulietta. — Por favor, me diga que não é por isso. Acreditei que queria ir com o outro. Parecia que... — Por isso se fez de ofendida e saiu desse modo? O que teria acontecido se em vez do príncipe te tivesse seguido Cordier? — Por que faria? Não foi ele quem feriu meus muito delicados sentimentos. Foi Lurenze quem me chamou "menina" e quem estava obrigado a me seguir. Além disso, quando deixei que me alcançasse, desculpou-se. Ao princípio o escutei com desdém e aborrecimento, mas pouco a pouco deixei que me abrandasse, e logo comecei a lhe dizer coisinhas doces. E logo... Bom, você já sabe como se faz. — Ao que parece, não tão bem como outros — disse Francesca. — Cordier estava seguro de que queria que Lurenze te seguisse e por isso decidiu te ajudar. Bom, Cordier e você se ajudaram mutuamente. Giulietta voltou a sentar-se. — Mas sabia que eu queria Lurenze — disse sua amiga. — E sei que você não o quer. Você quer ao Cordier. — Mas é um dom ninguém! — O que tem de mal tomar um dom ninguém por amante de vez em quando? — perguntou Giulietta. — Sobretudo este. Não é o garçom da cafeteria nem o bonito pescador nem o florista. É o filho de um aristocrata inglês. Sua mãe faz parte de uma antiga família italiana de grande renome. Todo mundo os conhece. — Mas na Inglaterra é somente um filho mais novo — protestou. — Os filhos mais novos carecem de fortuna... de propriedades. Cordier não pode comprar as joias que tirarão Elphick do sério. O café chegou nesse momento. Após os criados se retirarem, Giulietta a obrigou a comer meia bolacha e a tomar um pouco de café. — Entendo a vingança — observou Giulietta. — Em seu lugar, teria matado esse marido tão bruto. Ou melhor, faria que alguém o levasse a um lugar onde morreria lenta e dolorosamente. Mas sua forma de se vingar é muito mais imaginativa e muitíssimo mais

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prazerosa para você. Neste momento, entretanto, não te dá prazer. É uma tolice machucar a si mesma para conseguir fazer mal a um homem que está muito longe em uma ilha fria e insignificante. Se quiser Cordier, se deite com ele... e ao inferno com lorde Elphick! Bebeu um bom gole de café. — Já me deitei com ele — disse. Giulietta esboçou um sorriso deslumbrante. — Vá, vá. Esteve bem? — Fizemos no Campanile de São Marcos — acrescentou. — No campanário — disse Giulietta em voz baixa. — Ah! Em circunstâncias normais teria descrito a experiência com detalhes. Mas nessa ocasião não sabia o que dizer. Não encontrava as palavras adequadas para descrever o que aconteceu. A magia. A avalanche de emoções que a fizeram sentir como só conseguia a música. Mas de uma forma muitíssimo mais intensa. — Foi muito romântico — disse ao final. — Ah, claro. — E absurdo. Mas romântico — falou dos sinos e do amanhecer. — Sim. A faz rir — disse Giulietta. — Também me faz chorar. Faz... — titubeou. Mas sempre contou tudo a Giulietta. — Quando estou com ele, me lembra da mulher que fui no passado. Recordo tudo. — levou a mão ao peito, sobre o coração. — Os sentimentos... São muito fortes. Não sei o que fazer. Choro. Zango-me. Sinto um nó no estômago, me rompe o coração. Quero apoiar a cabeça em seu peito e... e quero que ele me abrace e me embale e me diga que me entende... e quero confiar nele — tragou saliva. — Não é uma loucura? Conheci-o faz cinco dias. — Mas te salvou a vida — lembrou sua amiga. — Assim o conheceu... quando arriscou a vida para salvar a tua. Te ocorre outra coisa capaz de inspirar mais sentimentos que isso? Que melhor maneira para um homem ganhar a confiança de uma mulher? Que melhor maneira de alguém, homem ou mulher, demonstrar coisas que as palavras são incapazes de demonstrar? — Magny não confia nele — disse. — Magny é muito preparado — repôs Giulietta. — Mas não sabe tudo. — Não, certo — reconheceu. — Mas não deixo de pensar que vê as coisas com muito mais clareza que eu. O criado voltou a entrar para dizer que um dos serventes da signora Bonnard

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acabava de chegar. Disse que lamentava interromper, mas que o assunto era de suma urgência. James Cordier se tranquilizou o bastante para compreender que precisava banhar-se, trocar de roupa e tomar o café da manhã, assim precisava voltar para a Ca' Munetti. Também precisava dormir, mas isso podia fazer na gôndola a caminho a São Lázaro. Estava terminando de tomar o café da manhã quando Sedgewick entrou com o cenho franzido. — Senhor — disse, — aconteceu um imprevisto. — Freiras? — perguntou Francesca sem dar crédito. — Está seguro? — insistiu enquanto jogava uma olhada pelo Puttinferno. Nessa ocasião não precisou que Magny indicasse os sinais. Os intrusos também tentaram ser cuidadosos, mas não eram tão bons como os que revistaram a Vila de Mira. Seus criados perceberam que havia várias coisas fora do lugar. E não demoraram em relacionar com a súbita indisposição que assaltou a todos eles na noite anterior, umas horas depois de jantar com três freiras. — Chegaram pouco depois que você foi ao teatro — disse Arnaldo. — Disseram que vinham de Chipre. Que estavam perdidas. Que levavam horas vagando. Que tinham pouco dinheiro. Que estavam famintas — deu de ombros. — O que podia fazer? Eram freiras. Como poderia jogá-las? E por isso compartilhamos nosso jantar. Pouco depois, todos os que compartilharam o jantar, todos os criados que residiam no palazzo, sofreram uma indisposição. — Ao princípio se apressaram a nos ajudar — acrescentou Arnaldo. — Até aí me recordo. E pensei: "por que as freiras não estão doentes?". Mas, minha cabeça começou a girar e tive que me deitar um momento. Dormi. Despertei faz um momento e já se foram. Não demorei muito em descobrir que aconteceu o mesmo a todos os criados. Não havia ninguém que pudesse vigiar a casa. E logo percebemos que alguém a revistou. Quem se não essas freiras? Acreditam que não falta nada de valor, mas não estamos seguros. Por isso enviei vários criados a procurá-la. Quer que mande alguém informar ao governador do que aconteceu? — Não! — A última coisa que precisava era que o governador austríaco colocasse o nariz nesse assunto. — Avisa ao conde de Magny. Arnaldo tentou livrar-se de James.

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— A signora não recebe visitas hoje. James não estava com humor muito paciente nem tampouco estava para pensar com clareza. Arnaldo não era um mordomo que tentava fazer seu trabalho, mas sim um obstáculo em seu caminho. O que queria fazer era tirar dito obstáculo do caminho e atirá-lo a um lado. Disse que não devia comportar-se como um idiota. Lembrou que há muito aprendeu que sempre havia um momento e um lugar para a violência. Sabia perfeitamente que não era nem o momento nem o lugar. Estava furioso porque não passou por sua cabeça prever essa possibilidade: que alguém se atrevesse não só a tentar, mas sim conseguisse invadir a casa de Francesca mesmo bem protegida como estava. Arnaldo não tinha culpa. Por isso agradeceu sua devoção pela dama com um italiano muito perfeito e diplomático... e a seguir passou ao seu lado e entrou no salão mais carregado de toda a Itália. E essa descrição ficava curta. — Graças a Deus que todos os putti seguem aqui — disse. — Ao me inteirar de que aconteceu algo, temi que todos os meninos tivessem estendido suas asinhas e ido voando. A viu dar um passo para ele e por um instante acreditou que se jogaria em seus braços. Mas Francesca se deteve em seco, ficou mais rígida que um pau e disse: — Hoje não recebo visitas. — Entendi que recebeu a visita de uns ladrões. Isso a deixou boquiaberta. — Os rumores correm como a pólvora através do canal — observou. — Meu gondoleiro se inteirou por um dos mercadores, que a sua vez se inteirou por sua cozinheira — jogou uma olhada a seu redor. — Nada de aficionados, certamente. — É obvio que não eram. Uns aficionados não teriam conseguido entrar. — O que te fez suspeitar? — Foram os criados quem suspeitaram — respondeu. — Cheguei recentemente. Embora não seja de sua incumbência. Arnaldo, que entrou atrás dele, disse: — Vimos que alguns objetos e alguns móveis não estavam em seu lugar habitual, signore. Bonnard levantou as mãos. — Porque todo mundo te presta conta? — É por meu encanto — disse. — Sou irresistível. Afastou-se dele e se deixou cair em uma cadeira. Fez gestos para Arnaldo com

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a mão. — Vamos. Conta tudo. Em um veneziano tão rápido que mal foi capaz de seguir, e com consideráveis detalhes, Arnaldo fez como sua senhora disse. — Freiras? — perguntou James, sentiu uma pressão muito incômoda no peito. — De Chipre? Sabia que Veneza no passado foi o coração de um vasto império comercial. As pessoas continuavam chegando à cidade de todo canto do mundo, face aos tempos ruins que corriam. Os armênios tinham sua própria igreja. Assim como os gregos. E os judeus várias sinagogas. Freiras de Chipre não chamariam atenção. O problema era que estava a par de que supostas freiras cipriotas foram responsáveis por vários roubos espetaculares no sul da Itália durante o ano anterior. Um desses roubos o levou a Roma e provocou seu encontro com Marta Fazi, a cabeça da operação... louca pelas esmeraldas. Se não fosse por essa loucura e pela indiscrição, que a levou a usar as joias em público, em lugares de má reputação, mas em público, teriam desaparecido para sempre. Entretanto, supunha-se que Marta estava na prisão. Seu bando desintegrado. Seria o trabalho de um imitador? Uma coincidência? Arnaldo deve ter percebido sua expressão desconcertada, já que respondeu em italiano. — Todo mundo conhece esse sotaque. Em Veneza se ouve quase diariamente. James lembrou o traço estrangeiro na fala de Marta Fazi. Nascera em Chipre. Qualquer um podia apresentar uma procedência cipriota. Mas o acento era muito particular, ao menos para Arnaldo. A possibilidade de coincidência ou do trabalho de um imitador se reduzia. Alguém podia ter libertado Marta. Foi presa em Roma, e os Estados Pontifícios eram famosos por sua corrupção. Qualquer amigo poderoso com dinheiro poderia ter acertado sua libertação. Enquanto sua mente tentava ordenar os detalhes e analisá-los para chegar a uma conclusão lógica, manteve um semblante tranquilo e relaxado. — E suas joias? — perguntou para Francesca. — Suponho que se foram. Olhou-o e piscou várias vezes. — Minhas joias? — Isso é o que Piero disse que procuravam quando a assaltaram — lembrou James. Duvidava muito que essa história fosse verdade, já que tanto a lógica como o

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instinto lhe diziam que havia muito mais do que Piero contou. Começava a ver um padrão de comportamento. E não era agradável. — Parece que suas joias são realmente famosas entre os ladrões. Francesca saltou da cadeira e saiu da sala correndo. James a seguiu. Os aposentos de Francesca não sofreram uma revista tão cuidadosa como o restante dos cômodos. A cena lhe provocou um calafrio. Os colchões estavam quase no chão. As bagatelas da penteadeira, esparramadas, e algumas inclusive caídas. Não se parecia em nada ao acontecido em Mira. Naquela ocasião, os intrusos mal deixaram rastro de sua passagem. O que via era... inquietante. Thèrése estava no vão da porta do quarto de vestir. Chorando. Jamais viu sua donzela derramar uma só lágrima. Nem lhe passou pela cabeça que essa mulher tão altiva e independente fosse capaz de chorar. — Thèrése? — disse, aproximou-se dela e passou um braço por seus ombros. — Está bem? — Ai, madame! — a donzela se voltou e apoiou a fronte em seu ombro antes de desfazer-se em lágrimas. — Não passa nada — disse Francesca. — Todo mundo se sentiu mal, mas ninguém sofreu dano algum. Thèrése levantou a cabeça, enxugou as lágrimas com o dorso da mão e soltou em um furioso francês: — É uma infâmia. Asquerosos ladrões. Atrever-se a tocar seus preciosos vestidos, suas joias... — Desapareceram? — perguntou uma voz masculina a suas costas. Por um instante e aniquilada ao ver Thèrése chorando, Francesca esqueceu que Cordier estava ali. Chorosa ou não, Thèrése não se importou, da mesma maneira que nunca se importava com os homens que havia na vida de sua senhora. — Jogaram tudo pelo chão — explicou a donzela. — Derrubaram seu joalheiro — apontou com a cabeça o interior do quarto de vestir. Tudo estava no chão. Incluídas as joias. — Muito interessante — disse Cordier, sua voz soava muito mais perto que antes. De fato, estava olhando o quarto de vestir por cima da cabeça de Thèrése. — Não levaram as joias. O que procuravam? As memórias que mencionou? Já começou a escrever?

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Aquilo nada tinha a ver com as memórias que duvidava muito que algum dia chegasse a escrever. E tampouco com um simples roubo. Os ladrões habituais não deixavam joias valiosas atiradas no chão. Quaisquer pessoas que fossem procuravam algo muitíssimo mais valioso: as cartas. Francesca meneou a cabeça e falou com indiferença apesar do coração pulsar disparado. — Talvez não caia bem a alguém. Talvez seja uma brincadeira. — Uma brincadeira muito complicada — replicou ele. — Disfarçar-se de freiras e envenenar seus criados... — É muito estranho que não levassem as joias — reconheceu Francesca. — Talvez fossem freiras de verdade. Quem mais poderia conter-se até o ponto de prescindir de minhas pérolas e de minhas safiras? As joias estavam ali, esparramadas entre seus vestidos, anáguas, espartilhos, regatas, luvas e meias. Como se zombassem dela. E bem que ela zombou de Elphick cada vez que lhe enviava informações de suas joias, de suas conquistas. E ele zombou dela com seus lucros, com suas conquistas. Um jogo, embora possivelmente não muito maduro. Que se converteu em algo muito sério e feio. — Talvez as freiras fizeram isso como modo de aviso para que me afaste do mau caminho — disse. — Ou talvez queriam me dizer que tudo isto é vaidade ou qualquer outra tolice santa. — Suas cartas — disse a donzela ao mesmo tempo que entrava no quarto de vestir. — A caixa onde as guardava está aqui, no chão, mas não vejo cartas, nenhum papel, madame. Era impossível, disse para si James. Se tivesse guardado as cartas que incriminavam Elphick em um lugar tão evidente, os homens de Quentin teriam encontrado quando revistaram suas várias residências. Revistaram os lugares mais evidentes e os que não eram tanto. Vários agentes tiveram acesso a todos os bancos que tinha cofres. Neles encontraram joias — depositadas como seguro para esse dia que as rameiras deviam enfrentar à medida que envelheciam — além de seu testamento e vários documentos legais e financeiros, mas não as cartas. Tão simples quanto abrir um cofre portátil, procurar bolsos ocultos em sua roupa e nas cortinas ou compartimentos secretos nos móveis e demais parafernália, não teriam necessitado de sua intervenção. Entretanto, a ouviu conter o fôlego e percebeu o muito que lhe custava manter

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a compostura. Francesca sabia que estava em perigo. O difícil era conseguir que admitisse. — Isto é cada vez mais absurdo — a ouviu dizer. — É impossível saber o que desapareceu e o que não com este caos. Chama as criadas para que ajudem a pôr tudo isto em ordem, Thèrése. Logo pode fazer uma lista do que falta, se é que falta algo. Tramassem o que tramassem essas freiras tão travessas, me surpreenderia muito que tenham levado uma só joia. A donzela partiu para cumprir suas ordens. — Talvez alguém pense que começou a escrever suas memórias — aventurou James. — Isso não faz sentido — disse ela. Deu meia volta e se pôs a andar em volta da cama. — Me dedico a isto a menos de cinco anos. Minhas relações não são segredo. Ao contrário. Além de ser uma puta magnífica, adoro me mostrar. Nada de portas dos fundos nem de escadas de serviço. Quem quer saber os nomes de meus amantes pode encontrá-los nos jornais. Em questão de quinze ou vinte anos, talvez seja vergonhoso para os participantes. Mas agora mesmo é mais provável que considerem uma relação com Francesca Bonnard como um galardão. Verá, embora você não me aprecie como é devido, outros sim fazem. — Aprecio — disse. — Pensei que havia demonstrado isso recentemente. No Campanile. Ou já se esqueceu? Seus olhos verdes o fulminaram. — Cordier, é um tosco insuportável. — Sei — admitiu. — Não deveria ter deixado que fugisse. Nesse momento os olhos dela escureceram e James pensou voltar a ver essa moça capaz de acreditar, capaz de confiar em alguém. Mas desapareceu imediatamente. — Não fugi — o corrigiu. — Terminei contigo, então, fui. — Pois eu não terminei — disse ele. — Pois não me importa — assegurou ela. "Como fazer que se importe?" James queria perguntar. — A mim sim — replicou. — Me preocupo com você. Faz uns dias alguém tentou te matar. — Para me roubar — particularizou. — Faz uns dias a assaltaram — corrigiu com voz paciente. — E ontem à noite saquearam sua casa. — Revistaram — observou ela. — De momento, parece que a única coisa que falta é minha correspondência — esboçou um sorriso tenso. — E será uma leitura

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muito interessante para quem quer que as tenha. — Cartas de amor? — Absolutamente — respondeu ela. — São de meu marido. A porta do dormitório se abriu e Magny entrou apressadamente, seguido de perto por uma Thèrése que não deixava de protestar. — Madame, disse a ele que estava ocupada — disse a donzela. — Allez-vous en — ordenou Magny a Thèrése. Ela sequer o olhou. — Continua com o que estava fazendo, por favor — disse Francesca. — Sei que quer pôr tudo em ordem. Com o queixo para o alto, Thèrése passou junto ao conde e entrou no quarto de vestir. — Seus criados são extremamente insolentes — disse Magny. — Meus criados são leais — corrigiu Bonnard. — Se não queria me ver, para que demônio me mandou chamar? — quis saber o conde enquanto a fulminava com o olhar. — É obvio que queria vê-lo — assegurou. — Mas não quero que dê ordens aos meus criados. Aí está o problema. Esse foi sempre o problema. Não deveria esquecer-se disso. Em que demônio estava pensando para querer seu conselho? — Exatamente o que me pergunto. Tem monsieur Cordier para... — Magny fez um gesto para subtrair importância. — Para fazer o que for que veio fazer. — Não estou seguro de poder fazer algo — replicou James. — Por alguma estranha razão, parece que um grupo de freiras levou as cartas, absolutamente de amor, de seu marido. — Cartas? — repetiu Magny. — Mas... — deixou a frase no ar e se aproximou da porta do quarto de vestir, de onde olhou à donzela com cara de poucos amigos. Thèrése lhe deu as costas e continuou dobrando as roupas. O conde se afastou da porta. — Vi mais que o suficiente, Francesca. Vai deixar esta casa e vir comigo. — Já tentamos isso — protestou ela. — Duas vezes. E em ambas as ocasiões, foram desastrosas. — Não é de admirar — apontou James. Magny o fulminou com o olhar. E não lhe fez nenhum caso. — Venha viver comigo, então — disse James. O conde o olhou sem acreditar. Assim como ela. E, por um instante, pareceu que ambos tinham a mesma expressão. Mas nesse

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momento o fantasma voltou a assombrar os olhos de Francesca. — Por quê? — perguntou ela. — Porque me preocupo contigo — respondeu. — E porque minha casa está muito mais perto, justamente do outro lado do canal. E por que... — deteve-se. — Porque estou apaixonado. — Vou vomitar — disse Magny antes de levantar as mãos e sair do quarto. Francesca o olhou partir. — Não é um homem muito romântico — o desculpou ela. — Eu tampouco — assegurou James. — Se me tivesse ocorrido um motivo menos nauseante, teria usado. Mas a verdade é que queria vencer o jogo. — Como muitas pessoas — assegurou ela. — Incluindo a mim. — Em meu caso, parece que tudo se deve aos ciúmes. Ela virou-se e se aproximou da penteadeira, onde endireitou um pote caído. — Compreende que é uma tolice estar enciumado? Não pertenço a nenhum homem. Esse é o problema de viver com um. Quando uma mulher vai viver sob o teto de um homem, ele acredita que é mais uma de suas posses. Eu não sou a posse de ninguém. — Muito bem — concordou James. — Podemos discutir as condições, se for isso o que quer. — Não há condições que valham — replicou ela. — Porque não viverei contigo. — Então virei eu para cá — sentenciou. Nesse momento ela deixou os frascos e potes, coisa que era tarefa de Thèrése, e se voltou para olhá-lo. Colocou as mãos na penteadeira para se apoiar. Sorriu. — Nem pensar. — Madame — Thèrése saiu do quarto de vestir com um estojo forrado de veludo nas mãos. — As esmeraldas desapareceram.

Capítulo 11

Um beijo longo, longo, um beijo de amor, de juventude e de beleza, concentrado em um só lugar qual raios procedentes das alturas. Esses beijos pertencem à primeira época, em que o coração, a alma e o sentido se movem ao mesmo tempo, e o sangue é lava; o pulso, uma fogueira; e cada beijo, um terremoto. O poder desses beijos reside, acredito eu, em sua duração.

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LORDE BYRON Dom Juan, Canto I James estava encaixando por fim as peças do quebra-cabeça e não gostava absolutamente da imagem resultante de suas conjeturas. Cartas roubadas. Esmeraldas roubadas. Aparentemente, os ladrões levaram as cartas equivocadas. Bonnard não teria agido com tanto humor, porque estava seguro de que não era fingido, se tivessem levado as que procuravam de verdade. O que havia nas cartas desaparecidas para que seu roubo fosse tão engraçado para ela? Ou a graça era o engano em si? Não entendia nem um pingo. Alguém que, para começar, não soubesse ler e que, além disso, entendesse pouco o inglês poderia ter cometido facilmente esse engano. E esse alguém não podia ser outra a não ser Marta Fazi. Quem mais, além dela, estaria tão louco para levar umas esmeraldas e deixar para trás diamantes, rubis, pérolas e safiras? A conclusão lógica era que alguém ordenou a Marta que roubasse as cartas. E esse alguém superestimou a inteligência de Marta e subestimou a de Francesca. Seu ex-marido? "Estão jogando uma partida, e matá-la seria como admitir que perdeu" dissera Giulietta, referindo-se a madame Bonnard e seu ex-marido. Entretanto, o fato de que alguém envolvesse à desequilibrada Marta, indicava certa disposição a matar. Tentou lembrar algum comentário que ligasse a existência de uma relação entre a Fazi e Elphick. Não recordou nada. Estaria enganado? Estaria passando por cima de algum detalhe? Se fosse assim, tampouco seria tão surpreendente. Avançava na escuridão, porque não entendia o jogo entre Francesca e Elphick. E seguiria avançando às cegas a menos que pusesse fim ao jogo que Francesca mantinha com ele. Voltou-se para Thèrése e utilizou o francês que aperfeiçoou décadas antes e que o ajudou a livrar-se da guilhotina em mais de uma ocasião. — Madame necessita de um banho. Enquanto o prepara, que os criados arrumem o desastre da cama. Você, enquanto isso começará a arrumar o quarto de vestir e fará o inventário que madame ordenou.

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Deverá incluir nele todos os objetos desaparecidos, por insignificantes que sejam. Uma vez que madame se banhe e descanse e tenha analisado o relatório meticuloso, decidirá como atuar. Thèrése inclinou a cabeça. — Oui, monsieur — assentiu e se apressou a sair do quarto. Francesca a seguiu com o olhar e depois olhou para James. — Quem é você? — perguntou. — Um dos Borbones desaparecidos? Thèrése jamais se dignaria a obedecer a um homem, sequer a Magny, e, entretanto, te obedece. — É por meu encanto — afirmou ele. — É irresistível. Esses preciosos olhos verdes se entrecerraram. — Ordenei que faça precisamente o que ansiava fazer — explicou. — Está muito preocupada com você para prestar a atenção necessária a suas coisas. Uma vez que você tenha se banhado e descansado, será capaz de concentrarse em seu trabalho. E você tampouco poderá pensar com clareza até que tenha tomado o tempo necessário para se recuperar. — Por não ter dormido em toda a noite? — precisou. — Já estou acostumada a isso. — Por ter passado por uma imensa pressão. — Certo. A ideia de um trio de freiras ladras ainda me tem aniquilada. — Não eram freiras de verdade — assegurou. — E não se tratava de um simples roubo. O que é tudo isto, Bonnard? Viu-a encolher os ombros antes de se inclinar para recolher um frasco do chão. Aproximou-se dela. — Me vê assim tão estúpido? Sei que aqui está acontecendo algo. O que está escondendo? Como quer que te ajude se não me conta nada? — Quem disse que necessito ajuda? — A semana passada te atacou um par de rufiões, supostamente porque foram atrás de suas joias... — Como supostamente? Não está seguro? Conforme me disse, o homem que apanharam confessou que foi uma tentativa de roubo. — Uns dias depois, revistaram a casa — prosseguiu ele. — Quanta prova mais precisa para admitir que têm gato preso? Por que roubaram as cartas de seu exmarido? — E minhas esmeraldas — acrescentou ela. — Talvez as malvadas freiras se assustaram por algo enquanto revistavam meu quarto de vestir e simplesmente agarraram o que tinham mais à mão. É possível que confundissem as cartas com

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notas promissórias bancárias. Ou possivelmente tomaram por cartas de amor apaixonadas e pensaram que poderiam vendê-las a algum jornal. Se for assim, terão uma desilusão. Só gerariam comentários jactanciosos e muitos nomes de pessoas conhecidas... — Francesca... — Não é assunto seu! — exclamou ela. — Não quero que me ajude! — Seu comportamento é absurdo — afirmou. — Está grávida? O frasco voou direto à sua cabeça. James se agachou para que passasse por cima e acabou impactando contra o encosto de uma cadeira, depois caiu ao chão sem se quebrar. Devia ser um frasco muito pesado. Se não tivesse se agachado, poderia ter aberto sua cabeça. — Grávida!? — gritou. — Grávida!? Por que não me pergunta se estou naqueles dias do mês? — Enfim, está? — É um idiota! Não estou grávida. Não estou naqueles dias do mês. Estou cansada, suja e preciso de um banho. E dormir um pouco. E te quero fora da minha casa. Vai via! — exclamou, e ergueu uma mão para indicar que partisse com esse gesto tão irritante. James balançou a cabeça e olhou para o teto, coberto completamente pelas alegres criaturas mitológicas. Não era isso o que acabava de lhe dizer pouco antes, que necessitava um banho e um pouco de descanso? Aproximou-se dela e a ergueu nos braços. — Desça-me — ordenou ela. — Vou me encarregar de que tenha um banho — assegurou ele. — No canal. Francesca se debateu, mas foi em vão. O bruto que tentou estrangulá-la na gôndola era três vezes mais corpulento que ela e não pôde fazer nada para se livrar do homem que a levava nos braços. Recordou a facilidade com que Cordier o dominou, a facilidade com que o jogou ao canal. — Não se atreverá. Em lugar de falar, Cordier saiu do quarto e foi em direção às janelas voltadas ao canal. Janelas com balcões. Diretamente sobre a água. — Sabe nadar? — perguntou. — Sim. — Nesse caso, não tem por que se preocupar, verdade? — Cordier... — advertiu-o.

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— Nesta época do ano a água está fria e é estimulante — observou ele. — Justamente o que necessita para se livrar da confusão mental. Estava confusa, certo. E também reconhecia que estava se comportando como uma bruxa desalmada. Apoiou a cabeça em seu ombro. — Sinto muito — se desculpou. — Sou muito... excitável, já sei. — Não. Você é como um sino — a corrigiu. — Não quero sentir nada por você — confessou ela. — As palavras adocicadas não vão te servir de nada — replicou Cordier sem sequer se deter. — Não me convencerá como faria uma cereja. — Está bem! — exclamou. — Me Afogue. Me fará um favor. — Não. Sabe nadar, admitiu. Além disso, é bela. Seguro que um romântico veneziano te tirará da água antes que a corrente te arraste até o mar. Francesca se agarrou ao seu pescoço com força. — Sinto muito — repetiu. — Não se zangue comigo — sentiu que as lágrimas começavam a escorrer por suas faces. Outra vez. Aquilo era horrível. Pior do que imaginou. E isso que acreditou que já havia imaginado o pior. Dava-lhe medo perdê-lo. Devia estar louca. Oxalá estivesse. Porque a alternativa era muito espantosa para sequer pensar. Cinco dias! O conhecia fazia apenas cinco dias! — Sou imune às lágrimas — ele soltou. — Vou fazer por seu próprio bem. — Vou-vou gri-gritar pedindo ajuda — avisou. — Os criados virão-virão me resresgatar. — Terão que ser muito rá-rápidos — zombou ele. Acabavam de chegar às janelas. — Cordier... O braço que tinha sob os joelhos se moveu um pouco para agarrar o trinco da janela. — Não fará isso — disse. — Espera e verá — a desafiou. Percebeu que várias cabeças apareciam pelas portas das diferentes casas. — Os criados não permitirão. — Sim, o farão — a contradisse. — São italianos. Entenderão perfeitamente. Abriu a muito alta janela e saiu ao balcão com ela nos braços. Era muito estreito e mal havia meio metro até a balaustrada de pedra, onde a deixou. — Se me soltar, o arrastarei comigo — ameaçou, enquanto se aferrava com força a seu pescoço.

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Cordier fez gesto de escapar de suas mãos. Não teria o menor problema para livrar-se dela. E esse era o problema. Francesca se soltou e, antes que pudesse pensar duas vezes, girou o corpo e saltou. — Merda — o ouviu dizer. Não passou muito tempo. Apenas uma vida, durante a qual seu coração parou e piscou, atônito, enquanto soltava essa única palavra e tirava os sapatos. Mal passou uma vida enquanto se lançava à água atrás dela. Agarrou-a antes que pudesse afastar-se nadando... ou tentar. Um desafio considerável, tendo em conta o impedimento das saias, as anáguas, o espartilho. Nadou com ela os escassos metros que os separavam do embarcadouro, subiu, puxou para tirá-la da água, obrigou-a a ficar em pé e a sacudiu. — Não volte... — sacudiu — a fazer... — sacudiu — jamais. Ela se limitou a olhá-lo, jorrando água. Seus olhos verdes olhavam com ternura, possuídos pelo fantasma. — Não me olhe assim — disse ele. — Não estou olhando de maneira nenhuma — protestou ela. Abraçou-a. Beijou a fronte molhada, o nariz e as faces. Passou as mãos pelos cabelos encharcados dela e esperou que seu coração recuperasse o ritmo normal. Mas não foi isso que aconteceu. Seguiu pulsando de forma errática pelo medo, a fúria e não sabia o que mais. Não sabia como refrear. Não sabia o que fazer para recuperar o controle. Entretanto, seus lábios se apoderaram dos lábios dela e a beijou como se estivesse se afogando. Foi um beijo ardoroso, apaixonado e longo, correspondido com o mesmo frenesi. Era uma mulher descarada, intrépida e desavergonhada; o oposto do que ele queria. Mas a desejava de todas formas, e o apaixonado beijo amoleceu seus joelhos. Claro que não se deixou arrastar enquanto durou e foi consciente em todo momento do lugar onde se encontravam. Sabia que não podia permitir que o bom senso o abandonasse. E ainda menos nesses momentos. Devia estar alerta pelo bem de Francesca. Sim, e também pelo rei e por sua pátria. A última ideia teve o mesmo efeito que um bofetão. Separou-se dela. — Deveria ter ficado onde estava e te dizer adeus — disse James. — Ciao,

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deveria ter dito. Deveria ter dito adeus com a mão enquanto pensava "Menos mal que se vai!". Deveria ter feito isso. Porque tê-la perto só me cria problemas. Francesca o abraçou pela cintura e o estreitou com força. — Cheira a água do canal — comentou ele. — Necessita um banho. — E você também — a ouviu dizer com a voz amortecida pelo tecido encharcado de sua jaqueta. — Sua banheira é grande? — quis saber. — Sou uma grande prostituta — respondeu. — O que você acha? A distância até o reservado era curta, já que se encontrava em uma das acolhedoras salas entre o térreo e o primeiro piso. A banheira era muito grande, tal como correspondia a uma cortesã, mas ainda não a usara em companhia de um homem. A luz entrava por uma pequena janela voltada para o pátio. Apesar disso e embora o dia estivesse ensolarado, esse cômodo em particular era um dos mais escuros do palazzo. Um criado estava acendendo as velas quando entraram. Já acendera o fogo na lareira. A luz piscava em um cômodo que parecia uma cova fastuosa. A banheira estava de um lado da lareira. Do outro havia um triclinio 10. Várias pilhas de toalhas felpudas, cuidadosamente dobradas, descansavam sobre as várias mesas. O reservado foi mobiliado fielmente ao estilo que viu nos mosaicos romanos para que não desafinasse dos afrescos. Em lugar dos anjos, os Santos e os mártires que prevaleciam no resto do palazzo, nesse lugar a luz piscava sobre imagens de deuses e deusas, ninfas e sátiros, comida e vinho, danças e posturas sensuais. O aroma de incenso que ardia nos braseiros perfumava o ar, tal como o fez nos longínquos dias da República. Era um cômodo privado. Um refúgio ao qual nunca levava ninguém. Entretanto, os criados já haviam preparado tudo e, dadas as circunstâncias, era absurdo e desconsiderado ordenar que começassem de novo e subissem água até o primeiro piso. Francesca estava gelada e encharcada. Cordier estava gelado e encharcado. Que mal tinha se o deixasse entrar em seu santuário? Que sentido fazia tentar mantê-lo afastado de sua vida? — É uma caixa de surpresas — disse ele enquanto observava o local. — Pensei que levariam uma banheira portátil a seu dormitório ou a seu quarto de vestir. — Acima há uma banheira menor — disse. — Mais que tudo para satisfazer o 10

Sala de refeições dos antigos romanos, na qual havia três leitos inclinados, dispostos em volta de uma mesa.

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capricho de algum cavalheiro que queira me ver enquanto me banho, mas este local é só para mim. O criado saiu e Thèrése entrou com rapidez levando uma cesta carregada de sabão, cremes e perfumes. De um de seus braços pendurava uma camisola. A donzela a olhou com gesto áspero, depois olhou Cordier e apertou os lábios. — Madame pegará friagem. — Me encarregarei de que isso não ocorra — assegurou ele enquanto lhe tirava a cesta e a camisola. — A madame adora me desenquadrar e... — E monsieur adora me devolver o favor — concluiu ela. — De toda forma, me encarregarei que não lhe aconteça nada — disse Cordier. — Pode ir. Gritará se precisar de você. Thèrése a olhou. — Pode ir — repetiu ela para confirmar a ordem. A donzela partiu. — Toda a criadagem sabe o que aconteceu — disse ele. — Toda a cidade saberá dentro de cinco minutos. — Perturba-me — soltou. — O sentimento é mútuo. — Não gosto de me sentir perturbada. — Alguém gosta? — Passei os últimos cinco anos de minha vida evitando essa sensação — acrescentou. Viu ele examinar os potes, os frascos e os sabões levados por Thèrése. Escolheu um frasco e depois soltou a cesta sobre a mesa em frente à banheira. Destampou para cheirar o conteúdo e verteu umas gotas na água. — Começo a entender — confessou ele. — É um homem — replicou. — É impossível que entenda. Os homens ostentam o poder. Controlam tudo. Promulgam leis oficiais e estabelecem as normas não escritas que regem todo o resto. — Seu marido quebrou seu coração — soltou sem mais. O que podia fazer? Seguir mentindo? Seguir fingindo eternamente? Essa estratégia funcionava com os outros, mas com esse homem as mentiras a deixavam confusa e enojada. — Sim — admitiu, deixando cair os ombros. Estava cansada. Muito cansada. — Veem aqui — disse ele. E foi, é obvio. Era a coisa que mais queria fazer. Aproximar-se dele, sentir-se em seus braços.

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Entretanto, não a abraçou. Obrigou a se voltar para desabotoar seu vestido. — Com este vestido se parece com Isis — o ouviu dizer. — Após cair ao Nilo. Francesca sorriu apesar do cansaço e das velhas feridas. — Caiu ao Nilo? — Ou talvez a empurraram, quem sabe? — assinalou ele. Desatou o laço da cintura e o vestido caiu de repente. Se estivesse seco teria deslizado com suavidade. — Gosto deste desenho — confessou enquanto dava um puxão ao vestido para baixá-lo pelos quadris. — Era um vestido precioso — disse. — Se estivesse seco, deslizaria sobre as anáguas com suavidade. Claro que como nesses momentos não estava seco, teve que ser ele quem o tirasse. E uma vez que passou seus joelhos, caiu por seu próprio peso com um som muito pouco sedutor. Cordier seguiu ajudando-a, nesta ocasião com as cintas úmidas das anáguas. — Estou seguro de que estar molhada e suja te agrada quase tanto como se sentir perturbada — disse. — Deveria ter pensado nisso antes de saltar ao canal. — Ia me atirar à água. — E você vai e salta para me privar desse prazer? — Não estava pensando com clareza — observou ela. — Parece-me que já lhe disse isso. Em mais de uma ocasião. Ao diavolo! — O que acontece? — Não posso desamarrar as cintas — respondeu. — Se paro para fazê-lo e sigo com as do espartilho, pegará uma febre dos pulmões. E a água esfriará. Vou cortálas. De todas formas, não acredito que tenha problemas para as substituir sendo como é a grande prostituta da Babilônia, mais rica que Cleópatra. Francesca começou a respirar de forma entrecortada. — Não chore — o ouviu dizer. — Não-não estou chorando — assegurou. Sentiu que as cintas cediam. Em um abrir e fechar de olhos, Cordier lhe tirou as anáguas, o espartilho e a regata. Só restavam as meias, as ligas e os sapatos, manchados por culpa da água. Ouviu-o conter o fôlego. Se voltou para olhar. Estava observando-a de cima abaixo com um canivete na mão direita. — Vou desmaiar. — Não seja tolo — disse. — Viu centenas de mulheres nuas.

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— Não sou tolo — protestou ele. — Sou meio italiano e você... — passou a mão esquerda por cima de um seio. — Acredito que é o oitavo pecado capital. E que por você vale a pena passar a eternidade no inferno. — ajoelhou-se e introduziu a folha do canivete sob uma liga para cortá-la. Baixou a meia, tirou o sapato e depois a meia. A seguir deu um beijo no joelho. Suas pernas tremiam tanto que se viu obrigada a pôr uma mão em seu ombro para se sustentar. Enquanto isso, Cordier cortou a outra liga e repetiu o ritual. — Me ocorre um sem-fim de coisas que fazer neste momento — disse enquanto lhe acariciava uma coxa. — Mas a água vai esfriar e cheira mau assim como eu. Cordier se endireitou, soltou o canivete e fez gesto de tirar a jaqueta encharcada. O objeto era ajustado, como mandavam os cânones da moda, de modo que se ajustavam como uma segunda pele. Aproximou-se para ajudá-lo. Indicou com um gesto que se afastasse. — Entre na banheira — ordenou. — Não poderá tirar isso sozinho — interpôs ela. Possivelmente necessitaria de dois criados para livrar-se da jaqueta. — Olhe e verá. Se ponha na banheira — insistiu. E o fez. Soltou um suspiro assim que tocou a água. Estava quente e cheirava a limão. Fechou os olhos e se reclinou para apoiar o pescoço nas toalhas que o criado pôs na borda. — Este banheiro é maravilhoso — admitiu Cordier. Francesca abriu os olhos para olhá-lo. James estava colocando a jaqueta no encosto de uma cadeira. Saltava à vista que era um homem acostumado a valer-se sem a ajuda de um criado. Esse homem... Sabia tão pouco sobre ele... Cinco dias. E mesmo assim... — Ninfas e sátiros pulando nas paredes — prosseguiu ele enquanto desabotoava o colete. — Vela e incenso. É seu pequeno templo, verdade? O templo de Francesca, a deusa do canal. — É o templo das virgens vestais — o corrigiu. — Até agora nunca trouxe nenhum homem aqui. — Sou o primeiro? — perguntou. Deteve-se com o colete a meio caminho de tirá-lo. — Não sabe quão afortunado é — respondeu. Uma vez que tirou o colete, deixou-o cuidadosamente sobre a cadeira.

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— Faço uma ideia — repôs ele. — Sobretudo agora que a vi nua. — As adulações não são necessárias. Não necessito palavras açucaradas. — Alguma vez te adulei? — protestou Cordier enquanto desabotoava o botão da gola da camisa, que estava colada ao torso. O objeto se abriu imediatamente, revelando parte de seu musculoso peito, que à luz das velas brilhava com um tom de bronze. — Acredito que te chamei idiota algumas vezes, e isso só contando esta manhã — sentou-se na cadeira, em cima do colete molhado, para tirar as meias. — E pensar que estive a ponto de calçar botas... Teríamos ambos nos afogado. Ou você estaria quando acabasse de tirá-las. — Não sei o que fazer — confessou ela. Cordier ficou em pé e passou a camisa pela cabeça. — Espera um minuto — lhe disse. — Já me ocorrerá algo — e começou a desabotoar as calças. Observou-a colocar a cabeça sob a água e quando saiu acreditou estar vendo uma das ninfas dos afrescos. Mas muito mais formosa. Sim, havia visto incontáveis mulheres nuas, nisso ela tinha razão. Talvez Francesca não fosse perfeita. Seus seios, rosados e arredondados, poderiam ter sido um pouco mais generosos; sua cintura, um pouco mais estreita... Não. Não podia ser objetivo. Porque o que via era a perfeição feita mulher, uma deusa. Baixou as calças encharcadas , tirou com a ajuda dos pés e se meteu na banheira. Ela dobrou as pernas para lhe dar espaço. A princípio se limitou a desfrutar do calor da água que o rodeava e do maravilhoso aroma que flutuava no ar. Meteu-se sob a água tal como fez ela e voltou a tirar a cabeça. Apoiou-se nas felpudas toalhas que descansavam sobre a beira da banheira e contemplou o teto, onde as ninfas e os sátiros pulavam entre cachos de uvas e jarras de vinho enquanto Pã tocava sua flauta. — Sempre pensei que os cômodos entre os andares fossem usados como escritórios, como os do térreo — explicou ela. — Mas me disseram que a última geração da família começou às usar como gabinetes e saletas de estar. Assim converti esta em meu reservado particular porque está mais perto da cozinha e, para os criados, é mais cômodo esquentar a água ali e trazê-la até aqui. Além disso, gosto dos afrescos. James se ergueu para agarrar um sabão da cesta sobre a mesa. Colocou a mão sob a água e a agarrou por um tornozelo. — Necessita de um banho, minha náyade — lhe disse. — E vou me encarregar

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que se banhe bem. — Promete que não fará nenhuma afogadinha? — perguntou. — Não — respondeu enquanto erguia um pé dela e começava a ensaboar com muita parcimônia. Seguiu subindo pela panturrilha, acariciando-a antes de chegar ao joelho. Foi se aproximando dela à medida que a ensaboava. Entretanto, quando chegou a sua virilha passou por cima e não se deteve até chegar a seu umbigo. Escutou-a conter o fôlego e seguiu para a outra perna para ensaboá-la em sentido contrário ao primeiro. — Não está sendo muito... meticuloso — disse Francesca com voz fraca. — Me dê tempo — replicou. — Nem pensar. Me dê tempo você — o contradisse. — Minha vez — disse enquanto estendia um braço para agarrar uma esponja da cesta. Umedeceu-a e tirou o sabão com as mãos para esfregá-lo sobre a esponja até criar uma boa camada de espuma. Aproximou-se dele e lhe rodeou a cintura com as pernas, de modo que ficaram no centro da banheira. Começou a lhe passar a esponja pelo pescoço, os ombros, o peito e mais abaixo... ali onde seu membro se esticava com a esperança de alcançar sua mão... ou qualquer outra parte feminina que estivesse pelos arredores. Entretanto, teria que esperar. James estendeu uma mão. — Minha vez — disse ele então. Repetiu o que ela fez, deslizando a esponja por seu pescoço e seus ombros, mas seguiu pelos braços. Esfregou suas mãos, os dedos e as palmas, e voltou a subir. Concentrou-se em seus seios, nesses seios perfeitos e rosados, e acariciou devagar e com adoração. Enquanto isso, as palavras saíram de seus lábios com facilidade, como se estivessem aguardando esse momento. E lhe disse em voz baixa, utilizando a língua de Dante, que a paixão o consumia, que a desejava desde o momento em que a viu... Ela ergueu os braços e enterrou os dedos em seu cabelo sorrindo. Era o sorriso de uma menina pícara e travessa. Estava hipnotizado. A esponja caiu e suas mãos começaram a deslizar sobre ela, pele contra pele. Passaram sobre seu pescoço, sobre a delicada curva de seus ombros e desceram por seus braços. Atrasaram-se em seus dedos e voltaram a subir até posar em seus seios. Tudo isso sem afastar o olhar desse rosto que não parecia deste mundo, enquanto ela seguia brincando com seu cabelo.

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Tudo isso lhe murmurando palavras de amor na língua de sua mãe, como o romântico que não era. Os olhos verdes de Francesca se cravaram nos seus. Seus olhares se fundiram um instante. Até que ela aproximou sua boca a dele, mal a roçando. — Per quanto ancora me farai aspettare? — "Até quando vai me fazer esperar?", perguntou James sem se afastar desses lábios que o torturavam. — Baciami. — "me beije." Ela sorriu. Ele deslizou os lábios sobre esse sorriso. — Baciami — repetiu. O sorriso que seus lábios percorreram era o da rameira, daí esperar encontrar com o beijo da rameira, apesar de que não era isso o que queria, embora ele tampouco podia lhe dizer o que queria de verdade. — Baciami — insistiu. E ela o beijou. Com acanhamento. Com doçura. Com ternura. Com tanta ternura que ele estremeceu, embora disse a si mesmo que era por culpa da água, que estava esfriando. Entretanto, não havia acanhamento. Não havia doçura. Não havia ternura. Ela não era assim. Mas sim era. Essa mulher esquentava seu frio e ermo coração. Abraçou-a para grudá-la a seu corpo. Suas pernas o estreitaram enquanto seguiam beijando-se, cada vez com mais ardor, até que acreditou afogar-se nesse beijo. Abraçou-a com força, como se não quisesse que partisse, como se temesse que a arrancassem dos seus braços e pudesse perdê-la para sempre. Talvez foi nesse momento quando compreendeu o que lhe aconteceu ao vê-la atirar-se pelo balcão. Ou talvez sentiu algo que compreendeu até muito depois. As mãos de Francesca abandonaram seu cabelo e deslizaram por seu rosto, pelo queixo, por seu peito. James pôs fim ao beijo para agarrar essas mãos e beijar os nódulos, as pontas dos dedos e, por último, as palmas. Enquanto isso, lhe beijou o dorso da mão e introduziu a mão livre sob a água. Seus dedos se fecharam em torno de seu membro. Ele gemeu. Silenciou-o com seus lábios e roubou sua alma com outro beijo demolidor. Sem perda de tempo, a soltou e colocou uma mão sob a água para afastar a dela. Ato contínuo e muito mais depressa do que pretendia, afundou-se em seu corpo, sem deixar de abraçá-la, como se temesse que o mundo chegasse ao fim se a

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soltasse. "Devagar — se disse. — Faz que dure para sempre." Tentou, mas ela não parava de beijar seu rosto, o pescoço, e suas mãos eram tão suaves, e nada era real... A água se agitou em torno deles enquanto se moviam um contra o outro. Retrocedeu no empenho de controlar o que estava experimentando e deixou que a maré o arrastasse. Uma maré que foi elevando até que chegaram ao cume e a sentiu estremecer sobre ele, e o mundo se despedaçou. Quando o prazer o alagou, se deixou levar, feliz e à deriva, embora soubesse que estava se afogando.

Capítulo 12

Se ruborizam, e nós acreditamos; ao menos eu sempre fiz; não faz sentido, de toda forma, tentar responder, já que sua eloquência se volta bastante abundante. E quando por fim ficam sem fôlego, suspiram, baixam seus olhares languidamente, e deixam escapar uma lágrimazinha ou duas, e depois fazemos as pazes; E depois... e depois... e, bom, depois nos sentamos para jantar. LORDE BYRON Dom Juan, Canto I Cordier a estava beijando com muita doçura. Uma delicada chuva de beijos no nariz, faces, fronte, orelhas, pescoço e ombros. Devolveu os beijos da mesma maneira, como uma jovenzinha com seu primeiro amor. E quando ele se deteve e se afastou um pouco para olhá-la, foi consciente de que o estava olhando entusiasmada, mas não podia evitar. Levava muito tempo intumescida, incapaz de sentir, embora não se desse conta. Até esse momento. Parecia que o longo e sensual ritual do banho levou não seus pecados, porque estava muito apegada a eles, mas talvez algum tipo de couraça que a impedia de experimentar os sentimentos em profundidade, em sua totalidade. Nesse momento sentia profundamente.

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A alegria corria por suas veias. Não se tratava do mero prazer físico do sexo, mas sim de uma felicidade maravilhosa que alegrava seu coração. James a ajudou a se erguer, e ela levantou como se estivesse hipnotizada. Era incapaz de deixar de olhá-lo, de contemplar seu bonito rosto. Se perguntaria mais tarde por que o estava fazendo, mas nesse momento só era capaz de olhá-lo como uma tola. — Não me olhe assim — disse ele. — Assim como? — perguntou ela como se não soubesse que sua face era a de uma jovenzinha desesperadamente apaixonada. Viu que ele estendia a mão para agarrar uma toalha seca. — Vai dar ideias — assegurou, envolvendo-a com a toalha, e ajudando-a a sair da banheira. — Não deveria te ter entretido tanto tempo. Se você se resfriar, Thèrése me matará. — Mas foi divertido — apontou ela. — Divertido — repetiu ele enquanto franzia o cenho e pegava outra toalha que enrolou em sua cabeça como um turbante com a mesma habilidade que teria demonstrado sua donzela. — Vá, vejo que já fez isto antes. — Nunca — a contradisse. — É a primeira. Oxalá fosse verdade. Oxalá tivesse sido seu primeiro homem. Oxalá pudesse convencer-se de que Cordier sentia o mesmo que ela. Mas sabia que desejava o impossível. Entretanto, disse a si mesma, se fosse sua primeira vez, não teria apreciado como merecia o que aconteceu. Porque faltaria a experiência necessária para saborear, para guardar na memória. — Sente-se junto ao fogo — ordenou ele. Caminhou para o sofá e se sentou. Observou-o pegar outra toalha para secar o cabelo com vigor. Quando terminou, os cachos negros se agitaram ao redor de sua cabeça. Ansiava enterrar os dedos nesse cabelo uma vez mais. Ansiava tocá-lo por toda parte. Deixou que seu olhar vagasse com ânsia por seu corpo. Depois se obrigou a afastar o olhar. Recostou-se no sofá e cravou o olhar no fogo. Não se deu conta de que estava ficando adormecida. E não o ouviu partir. James enrolou uma toalha à cintura e saiu em busca de algum criado que levasse algo para comer e fosse à procura de sua roupa.

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Encontrou um antes do que esperava. Sedgewick estava sentado na escada, esperando-o. Arnaldo já havia cruzado o canal para ir buscar uma muda de roupa. Sedgewick a levava, assim como junto trazia uma mensagem. — É de São Lázaro — disse seu auxiliar. — Querem que vá. "Sem perda de tempo", me ordenaram que lhe dissesse, senhor. — Monsieur deixou uma nota, madame — disse Thèrése enquanto lhe entregava o papel. Meu amor: Esses malditos monges! Tinha um compromisso com eles esta manhã em São Lázaro. E não sei por que, me esqueci. Acredito que por culpa de uma jovenzinha muito irritante. Me perdoe. Jante comigo hoje à noite em minha casa e te compensarei. Caramente, C Francesca sabia que era uma tola sem remédio. Antes que a tristeza e a desilusão pudessem se apoderar dela, escreveu rapidamente um bilhete. Embora tentasse, não foi capaz de evitar que alívio e felicidade a embargassem. Se pôs a rir baixinho. E quando Thèrése lhe disse zangada que devia comer algo e descansar bem, lhe deu razão com um sorriso. Precisava recuperar as forças para essa noite. Enquanto isso, em uma zona menos elegante de Veneza... Uma virgem de porcelana saiu voando pela saleta dos aposentos de Marta Fazi e estatelou contra o batente da porta. Os dois jovens que esperavam para cobrar seus honorários tinham o olhar cravado na mão dela, se por acaso atirasse algo mais. Entretanto, estava mais desconcertada que furiosa e sua explosão acabou logo, como costumava passar. — Estas não são as cartas — disse uma vez que voltou a sentar-se. Os dois jovens se olharam entre si e a seguir para ela. — Eu as mostrei — protestou o mais baixo. — E você disse: "Sim, vamos” e nos apressou. Não nos deu tempo para agarrar algumas joias. — Disse a vocês que eram falsas! — mentiu. — Quer que a puta inglesa ria de quão tolos são? Acredita que tem suas joias verdadeiras em sua casa, em uma gaveta onde qualquer um possa pegar? Nem sequer ela, que sabia das joias, deu crédito no princípio. Mas a inglesa era ** Essa tradução foi feita apenas para a leitura dos membros do Talionis. **

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uma puta rica com muitos criados. A essas damas arrogantes nunca lhes passava pela cabeça que alguém as roubasse. Sempre levavam as mãos à cabeça, escandalizadas e furiosas, quando acontecia. Embora o mensageiro tivesse insinuado que poderia agarrar o que quisesse, Marta sabia que era melhor não fazer isso. Quando se roubava aos ricos, as autoridades, normalmente relapsas, tornavam-se muito eficientes... e os austríacos não eram relapsos, nem um pouco. Prenderam Piero em um abrir e fechar de olhos. Claro que Piero era um imbecil. Além disso, saltava à vista que a famosa puta inglesa não era uma puttana qualquer aos olhos do governador veneziano. Se tivessem levado todas as joias que encontraram, sairiam para prendê-los sem perda de tempo... E se chegassem a apanhá-los, as valiosas cartas cairiam nas mãos erradas. Sabia o risco que corria ao levar as esmeraldas. Mas só era um par de gemas entre as incontáveis riquezas... e era magnífico, tal como prometeu o mensageiro. Dignas de uma rainha. Tudo isso era muito complicado para explicar a esse par de idiotas. E, além disso, não sabiam que ela pegou algo. Entretanto, e de momento, não a preocupava que a perseguissem por um insignificante par de esmeraldas. As cartas a preocupavam muitíssimo mais. — Estas são de seu punho e letra — disse mais para si que para eles. — Com as datas deste ano e também do ano passado. As que queremos são antigas. Onde estão os nomes que me disseram que procurasse? Não os vejo por nenhuma parte. Por que ele segue escrevendo à mulher que odeia? Seus cupinchas a olharam como se acabasse de lhes pedir que lhe explicassem o Teorema de Pitágoras. Eram um par de adolescentes, já que um homem feito com a sombra de uma barba não podia se fazer passar por freira. Os viu encolher os ombros, esse gesto universal de "não sei". Dobrou as cartas, prendeu com uma fita e deixou sobre a mesa. — Ele me explicará — disse. — E será melhor que seja uma explicação muito boa ou se arrependerá — olhou os moços. — Não são as cartas que queremos. E já estou farta de jogar com a grande dama, com a puta inglesa. Acabou. — Terminamos? — perguntou o mais baixo. — Terminamos? Acaso o sol siciliano amoleceu seu cérebro? Como vamos terminar se estas cartas não são as que quero? — Mas disse “acabou...". — Acabou isso de ir na ponta dos pés — particularizou. — Acabou isso de ir

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revistando por toda parte. Da próxima vez faremos direito. — Como deveriam ter feito os imbecis Bruno e Piero. — A próxima vez vamos fazer que ela nos diga. Desembainhou sua adaga, sustentou-a contra a luz. E sorriu. O monastério de São Lázaro dos Armênios se erguia entre fileiras de ciprestes e belos jardins na pequena ilha de Lido. Em princípios do século anterior, o antigo hospital de leprosos foi cedido a um monge armênio procedente de Morea, a quem os turcos obrigaram que fugisse de sua terra. Ali foi onde Byron tentou aprender armênio. Não conseguiu, certamente pela quantidade de mulheres que o distraíram. James só tinha uma mulher que o distraía. Claro que para sua capacidade de raciocínio ela sozinha era mais perigosa que todo o harém de Byron. Tentar esquecê-la era impossível, sobretudo por ser o tema da conversa que estava mantendo. Passeava relaxadamente — ou fingindo que passeava relaxadamente porque por dentro arrebentava de impaciência — pelo claustro com lorde Quentin. O homem que, há uma eternidade, evitou que caísse em uma carreira criminal ilícita ao lhe oferecer uma carreira criminal dentro das margens da lei. Lorde Quentin, que lhe passava em dez anos, também começou sua caminhada no mundo dos segredos e as conspirações com muito pouca idade. Em muitos aspectos era muito mais adequado que ele para o trabalho, graças a sua estatura média, a sua aparência comum e sua habilidade para passar despercebido, exatamente como fazia Sedgewick. Homens como ele raras vezes precisavam disfarçar-se, pela simples razão de que as pessoas não se fixavam neles. — Se a senhora Bonnard souber que está aqui e que estive falando contigo, já posso voltar para minha casa — disse James. — Conheço muito bem os riscos — respondeu Quentin. — Mas precisava falar contigo pessoalmente. Soube do ataque da outra noite. — Coisa que me surpreendeu — reconheceu. — Ninguém me disse que ela estivesse em perigo. — Não esperávamos que Elphick agisse tão depressa. — Cedo ou tarde saberia que fez uma visita a sua mulher — observou James. — Tem agentes na zona. Embora na realidade não são necessários. Certamente ela contou em uma carta. — Se Elphick escrevia a Francesca, certamente, ela devia lhe responder. — Mantêm-se em contato, sim, mas a menos que utilizem um código secreto, é tudo muito corriqueiro: quem esteve em que festa e o que disse. Há coisas mais suculentas nos jornais de mexericos. — Quentin meneou a cabeça. — O mais provável é que o farejasse assim que

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soube que eu estava na Itália. Mas esperava ter voltado para casa antes que se inteirasse. Quem imaginaria que a dama se mostrasse tão turrona com as cartas que queremos? Sobretudo depois do que lhe fez. Estava certo de que aproveitaria a oportunidade de arruiná-lo. Se soubesse, não me teria dirigido a ela diretamente. Isso resolvia uma questão: as cartas que não eram de amor de Elphick e cuja ausência Thèrése notou não tinham importância, ao menos para a missão. A indiferença de Francesca por seu paradeiro não era fingida. Em verdade a ela importava um cominho onde estivessem. — De qualquer modo — prosseguiu Quentin — não parece estar fazendo progressos. Que demônios esteve fazendo toda esta semana? Além de deixar a beira da morte um informante em potencial. — Até onde sei, Piero segue vivo — recordou. — Referia-me ao outro — particularizou Quentin. — O encontramos ontem, e nos custou vida e milagres capturá-lo sem chamar a atenção. — Bruno? Está vivo? — Não graças a você. No que estava pensando? — Em evitar que matasse a senhora Bonnard. — Pois esteve a ponto de evitar que respondesse a nossas perguntas de forma permanente — disse Quentin. — Essa irritante mulher também jogou a luva em você? "Sim — pensou — E como me jogou." Em troca, disse: — Estava a ponto de lhe surrupiar a informação que necessitamos quando mandou me chamar. Foi só para se queixar que estou demorando muito? Quentin jogou uma olhada a seu redor. O claustro rodeava um jardim bastante amplo. Duas freiras passeavam à sombra por uma das laterais do jardim, o bastante longe para que não pudessem ouvir nada. — Nosso amigo Bruno está muito doente para nos ser de utilidade — explicou Quentin. — Febre dos pulmões, traqueia danificada, ombro deslocado e algumas coisinhas mais. A única coisa boa é a febre. Esteve delirando. Entre outras coisas, disse algo a respeito de umas cartas e mencionou várias vezes Marta Fazi. O débil vestígio de esperança — a esperança de estar totalmente enganado — morreu de pronto. Suas conclusões eram certas, e a situação, tal como já deduziu, era um embrulho de proporções épicas que estava a ponto de se embrulhar ainda mais. O que esperava? se perguntou.

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— Ah, já vejo que tivemos sorte, sim — disse. — A boa Marta. A recordo muito bem. Essa doce criaturinha que jurou me cortar as bolas em pedacinhos e muito devagar na primeira oportunidade. A mesma que, conforme entendi, estava encarcerada na masmorra mais escura de Roma. A mesma que, conforme parece, não está encarcerada em nenhum lugar, dado que ontem à noite estava em Veneza, revistando o palazzo Neroni. Não queria nem imaginar o que Marta faria se Francesca Bonnard estivesse em casa. Entretanto, de toda forma sua cabeça imaginou e o estômago se revolveu. — Isto não parece bem. — Quentin se deteve e meneou a cabeça. Em seguida, se aproximou de um banco de pedra e se sentou com expressão cansada. James se sentou ao lado, também cansado. Estava furioso, sim, mas era algo habitual nele. Os planos se desbaratavam. Os malfeitores escapavam dentre os dedos. Os documentos acabavam nas mãos erradas. E os companheiros eram assassinados, às vezes da pior maneira. Assim era seu trabalho. Não demorou muito em aprender. Tratava com seres humanos. Todos eram falíveis. Nem todos eram de confiar. — Está seguro de que foi Fazi? — perguntou Quentin. — Foram vestidas como malditas freiras! Meteram-se na casa e jogaram algo à comida. O mesmo método que usou em outros roubos. Levaram um maço de cartas, erradas, e as esmeraldas. Nenhuma outra joia. Só as esmeraldas. Quem mais seria senão a própria? — Então Elphick a enviou para que se encarregue de sua ex-mulher — disse Quentin. — Bastardo. — Como diabo a contratou? — Saberá Deus... — Quentin olhou ao redor. — Estamos somente há dezoito meses lhe seguindo os passos... desde que decifrou o código. Deve tê-la conhecido há alguns anos, quando ninguém lhe prestava atenção. Ou é possível que um de seus agentes na Itália a escolhesse para fazer o trabalhinho. Devem ter pago uma fortuna para tirá-la da prisão. — Isso me cheira a que Elphick a conhece bem, já seja em pessoa ou por sua reputação — observou. — Eu também a teria escolhido para fazer semelhante trabalho se estivesse em seu lugar. Não se destaca por sua inteligência, mas é mais esperta que a fome, atrevida e muito teimosa. Sua inteligência e atrevimento a levaram a realizar uma série de roubos de joias impressionantes durante o ano anterior. Entretanto, tanto James como seus sócios deixaram o assunto nas mãos das autoridades locais, até o roubo das esmeraldas.

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Nesse caso, os agentes britânicos se envolveram para fazer um favor a um importante aliado. O aliado correspondeu ao favor assinando um tratado crucial. — O instinto me dizia que o primeiro ataque contra a senhora Bonnard não era um simples roubo — prosseguiu James. — Mas não parecia trabalho da Fazi. — Incapacitou seus melhores homens em Roma — recordou Quentin. — Está usando o que tem disponível. Aposto o que quiser que a dupla da outra noite não seguiu suas ordens. Cometeram alguma falha. James guardou silêncio enquanto refletia. — A senhora Bonnard usava um jogo de safiras impressionante. Seguro que lhes ardeu a avareza. Aparentemente Bruno carece de meu poder sobre-humano para conter-se. As brilhantes joias e a formosa mulher o distraíram. Que possibilidades tem uma besta como ele de pôr as mãos em cima de uma mulher bela e de linhagem? Muita tentação para tão pouco cérebro. E eu o interrompi antes que seu comparsa pudesse lembrá-lo do que se supunha deveria fazer. — Gostaria de saber o que supõe exatamente que deviam fazer — assinalou Quentin. — Nosso amigo Bruno não foi muito esclarecedor. — Supunha-se que deveriam aterrorizá-la — agora ciente da participação de Marta Fazi, via tudo muito claro. — Eram valentões enviados para assustá-la e a obrigar a lhes contar onde estavam as cartas. Se isso não funcionasse, a sequestrariam e torturariam até que confessasse — fez um nó no estômago e lhe disparou o coração. Ficou em pé. — Assim que saltei à gôndola a semana passada, soube que estava me metendo em uma maré de merda. Será melhor que volte para Veneza. Quentin também se levantou. — De minha parte, será melhor que me assegure de que Goetz saiba de que há uma perigosa criminosa solta em Veneza. Chegados a este ponto, não importa quem encontre Fazi, desde que alguém a encontre e ela acabe entre as grades. A última coisa que precisamos é que aconteça algo à senhora Bonnard. Sua morte seria... — Um maldito inconveniente — concluiu James. — Sim, sei. Teve a sensação que a volta a Veneza demorava uma eternidade. Passou todo o caminho roendo as unhas, embora o bom senso lhe dissesse que seria improvável que Marta Fazi atacasse em plena luz do dia, embora tomasse precauções. Antes de abandonar São Lázaro enviou uma mensagem a Lurenze, sugerindo que voltasse a passar por cão de guarda. E para se assegurar que o príncipe não interpretasse nenhum outro papel, também enviou uma mensagem a Giulietta.

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A essa altura, ambos teriam se informado do roubo perpetrado pelas supostas freiras. Certamente iriam ao palazzo Neroni sem que ele os avisasse. Mas queria assegurar-se que ficavam com Francesca até que ele chegasse. Fazi jamais a atacaria se estivesse com convidados importantes, e muito menos se pertencessem à realeza. Até o governo mais indulgente e corrupto reuniria suas tropas para caçar qualquer um que incomodasse convidados importantes. De toda forma, passou todo o tempo dessa volta com um humor de cão e consumido pela impaciência. Zeggio e Sedgewick pagaram o pato, já que o irritaram ainda mais com uma troca de olhares engraçadinhos. Quando chegou ao canal e viu as duas gôndolas atracadas junto ao palazzo Neroni, James começou a relaxar um pouco. Entretanto, seguiu tenso enquanto trocava de roupa e distribuía um montão de ordens ininteligíveis para o jantar dessa noite. Quando os criados informaram que a gôndola da senhora Bonnard estava cruzando o canal, desceu a escada a toda pressa. Assim que a viu entrar no térreo, se equilibrou sobre ela para abraçá-la com força e a beijou com tanto ímpeto que os dois acabaram ofegantes. James pôs fim ao beijo a contra gosto para deixá-la respirar. — Deus, pensei que esses malditos monges não iam me soltar nunca! — exclamou. Ela o olhou como antes, com o fantasma em seus exóticos olhos verde, de modo que ele somente viu uma moça, uma moça muito bela, que o olhava com adoração. Isso foi o que sempre desejou, que uma moça o olhasse assim, com o coração nos olhos, mas sempre imaginou que seria de outra maneira. Imaginou uma moça inocente com um coração puro e bondoso que não sabia nada do lado mais escuro da vida, tivesse se reservado para ele e que se manteria fiel, que nunca o enganaria. — Que maus são os monges — disse ela. — O obrigaram a estudar armênio contra sua vontade? Ao final Byron admitiu que era superior a suas forças. — O maldito demorou um século para chegar, o monge que tinha a chave da biblioteca, digo — mentiu. E entendeu a ironia de sua situação imediatamente: ele, que só mentia aos outros, insistia na pureza e a honestidade em uma mulher. — Mas hoje havia mais visitantes, e ele resolveu levar a todos num passeio pela sala e nos mostrar até o último livro que havia. E, a seguir os outros resolveram fazer perguntas idiotas, que ele respondeu com voz séria, muito parcimoniosa e com riqueza de detalhes. Ela estendeu um braço e colocou a mão na sua face. — Pobrezinho. Que calvário teve que suportar.

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James voltou a cabeça para lhe beijar a palma. Aspirou o aroma de sua pele, misturado com o sugestivo perfume de jasmim. — E tudo para nada — protestou ele. — Não escutei nem meia palavra. Tinha a cabeça em Veneza e no palazzo Neroni, onde uma jovenzinha muito irritante estaria dormindo... e, passei quase todo o tempo me perguntando se estaria sonhando comigo. Ela afastou a mão e o olhar. — Cuidado, senhor. Começa a soar romântico. — Certamente pela falta de sono — disse ele. — Terá passado pela manhã. — Depende de como passe a noite, não? — soltou ela. A sombra dessa moça desapareceu de seus olhos verdes e foi substituída por um brilho zombador. — Tenho um plano — disse ele. Tratava-se de representar uma orgia romana, explicou Cordier. O problema era que não possuía os móveis apropriados para imitar o estilo. E por isso mandou que os criados tirassem quase todos os móveis, estendessem tapetes e almofadas pelo chão de um dos cômodos do primeiro piso voltado para o canal e espalhassem pétalas de flores por toda parte. Teriam que se contentar com um harém turco. James seria o sultão e ela teria que interpretar todas as mulheres do harém. Sua forma de olhá-la enquanto explicava fez que Francesca se sentisse como se fosse todas as mulheres do mundo... ou ao menos como todas as mulheres que ele podia desejar. Supôs que outros homens a viam desse modo. Mas lembrou de seu abraço quando desceu da gôndola, e também seu beijo, tão apaixonado e agitado que por um momento acreditou que o gesto tinha algo de desesperado. Ela também sentiu esse desespero. Lurenze e Giulietta souberam sobre as freiras ladras e estiveram esperando que ela despertasse. Passou um momento terrível tentando acalmar seus medos e depois manter uma conversa racional com eles. E tudo enquanto desejava com todas suas forças cruzar o canal. Estar nos braços desse homem. Só o orgulho evitou que saísse correndo de camisola da casa. O orgulho a fazia vestir um vestido que lhe desse água na boca. Era vermelho, a cor perfeita para uma rameira, com um decote muito baixo tanto nos seios como nas costas. Via-se um pedacinho da tatuagem de suas costas, da marca de seu pecado. Sabia que ele, como homem que era, não podia sentir o mesmo desespero que a consumia, tola dela... A paixão selvagem que sentia era somente luxúria, que ela

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mesma avivou de forma premeditada. O que ele experimentava só era a paixão irrefreável própria do começo de uma aventura. Enquanto jantavam tentou não construir castelos no ar. Era muito difícil evitar, sobretudo quando ele a tratava com tanta ternura e consideração. Recostados como devem ter feito seus antepassados romanos, ele foi lhe dando bocadinhos de um sem-fim de quitutes: azeitonas e torradas; fruto do mar maravilhosamente cozinhados; fruta e queijo. Após comer seguiu deitada com a cabeça em uma almofada enquanto ele se inclinava de lado e se apoiava em um cotovelo. Seus olhares se fundiram em uma espécie de intimidade muito estranha, como se fossem... amigos, enquanto... conversavam. Descreveu o monastério e disse que os monges converteram em um altar o cômodo onde Byron estudou. — Você também estudará ali? — perguntou ela. James piscou. — Eu? — Não veio aqui para estudar armênio com os monges? — Pareceu uma boa ideia em seu dia — respondeu. — Mas o armênio é impossível. Não é de estranhar que Byron se desse por vencido. Prefiro estudar a você. — Não de perto — disse. — E nunca à luz do dia. Nenhuma mulher estaria bem com semelhante exame minucioso. — Como? Acredita que a luz do meio-dia destruiria minhas ilusões? Acredita que resta alguma, tontorrona 11? Era muito tola. Quando sorria dessa maneira, como se tivesse verdadeiro carinho por ela, e olhava seus olhos azuis, esquecia de tudo o que aprendeu ao longo dos últimos cinco anos. Todas suas ilusões e delírios retornavam. — O sol é mais benévolo com as mulheres na Inglaterra — disse Francesca. — Não precisam enfrentar o seu feroz resplendor, porque raras vezes resplandece. — "Essa pobre vela que reluz sobre o fedorento e fumegante caldeirão de Londres" — ele interpôs, citando Byron. — Por vezes sinto falta dessa pobre vela — admitiu Francesca. — O suficiente para voltar? Francesca sentiu uma repentina e surpreendente pontada de saudade que 11

tontorrona: Pateta, tolinha.

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levava muitíssimo sem sentir. Talvez tenha sido isso o que lhe soltou a língua. Ou talvez sua forma de observá-la, de prestar tanta atenção, escutando de verdade o que dizia como muito poucos homens faziam. Nem sequer a escutavam, porque estavam presos mais a sua forma de falar e gestos que do significado de suas palavras. Conhecia esse defeito dos homens. Usava-o para manipulá-los. Mas com ele era impossível. — Em ocasiões desejo voltar... para casa — confessou. — Sei que é uma tolice. No continente só sou uma divorciada. Em muitos lugares se considera uma posição bastante respeitável. Convidam-me a quase toda parte, salvo às reuniões sociais dos ingleses. O fato de ter me libertado de suas tediosas e infinitas regras e dessa hipocrisia tão peculiar deveria me alegrar. — Mas isso não impede que siga sendo uma estrangeira — apontou ele. — É normal que de vez em quando sinta falta do mundo onde cresceu. Era normal que ele entendesse, e não tinha nada que ver com serem almas gêmeas, disse-se. Essa relação não existia entre homens e mulheres. Aprendeu do modo mais duro. Ele entendia como se sentia porque também era um vagabundo. Nada mais por saber lhe contou que passava muito pouco tempo na Inglaterra. — Sinto falta das vozes — prosseguiu ela — Sinto falta do som de minha língua com todos seus acentos, com todas suas variantes. E também sinto falta da alta sociedade, a temporada social. Asseguro que isso me agradava muito. Era uma boa anfitriã. Fiz tudo o que devia fazer. De verdade fui uma boa esposa. Amava meu marido. Queria ser a melhor esposa do mundo. Acreditava que era parte do trato, que seríamos bons um com o outro na medida do possível. Acreditava que se amasse a alguém e se casasse com esse alguém, era para sempre, tal como dizem os votos matrimoniais. Sentiu um nó na garganta e começou a chorar. Enxugou as lágrimas enquanto dizia: — Maldito seja, Cordier! O que você tem para me levar a lamentar? Como me faz chafurdar em meu casamento malogrado? Que vinho me deu para me pôr tão melancólica? James estendeu uma mão para acariciar sua face com seus longos dedos. — Melancólica ou furiosa? — perguntou ele. — Às vezes as mulheres choram

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porque estão furiosas. Diferente dos homens, não lhes é permitido liberar seus sentimentos mediante a violência física. Atirar alguém ao canal, por exemplo, é um bom método para lutar com muitas das emoções irritantes que fervem em nosso interior. Francesca soltou uma gargalhada e a desconcertante dor desapareceu, como se nunca tivesse existido. E quando ele afastou a mão, desejou que não o fizesse. — Certo — concordou. — A nós mulheres nos treinam para sorrir e pôr boa cara... ou para aliviar nossos sentimentos com palavras. — Poderia escrever uma novela, uma espécie de roman à clef, como Glenarvon, de Caroline Lamb — sugeriu. — Recorda como elegantemente destroçou seu amado Byron. Balançou a cabeça. Soergueu-se, agarrou a taça de vinho e tomou um gole. Contemplou o líquido como se este pudesse lhe dizer o que fazer, o que dizer, até onde confiar. — Tenho meu próprio método — confessou após um momento. — Mais direto. Escrevo a Elphick ao menos uma vez por semana. Cordier arqueou as sobrancelhas. — Tão frequentemente? — Sim. Sou muito fiel... em minha correspondência. — Escreve para destrambelhar contra ele depois de todo esse tempo? Francesca soltou uma gargalhada ao ver sua expressão desconcertada. — Claro que não. Acreditaria que sou infeliz e que estou sofrendo. Faço que saiba o quanto minha vida é maravilhosa. Conto quem vem me visitar e do que falamos, quem me convida aqui ou lá, quem encomendou meu retrato a algum artista famoso, quem me comprou isto ou aquilo e quanto vale o presente. Minhas cartas estão cheias de personagens de renome, pintores, poetas e dramaturgos. Gente assim. Mas o mais importante é que estão infestadas dos nomes da realeza e da aristocracia europeia... justamente as pessoas com quem ele gosta de se acotovelar. Sei que ler essas coisas o tira do sério, e é uma vingança muito prazerosa. Houve um silêncio. Francesca bebeu um pouco mais para ganhar coragem. — Acho que é justo. Ele conseguiu colocar todos meus amigos contra mim. Meu pai já havia partido. Não tinha a ninguém que me protegesse. Evidentemente, Elphick esperava que acabasse na lama em pouco tempo. — Mas se converteu em uma rainha. — A rainha das putas, mas no continente é quase o mesmo que ser uma rainha

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de verdade — assinalou. — Sabe que em algumas cortes europeias havia um posto oficial como amante do rei? Na França era assim, e me disseram que na Gilenia também. A expressão dele mudou, e ficou pétrea imediatamente. Ergueu-se; tinha o semblante sério. — Quer ocupar essa posição ao lado de Lurenze? Destruí seus cuidadosos planos? — Não quero pertencer a nenhum homem — respondeu ela. — Seja rei ou não — se obrigou a rir. — Senhor tranquilize-se ou terei que acreditar que está enciumado. — Estou — assegurou. — Contará também isto a seu ex-marido? — Valha-me Deus, não! — exclamou. — É só um filho mais jovem. Importaria um cominho a ele. — É ridículo, sabe, não é? — resmungou ele. — É um jogo muito ridículo e perigoso. Seu casamento terminou faz cinco anos. — É ele quem não deixa passar — afirmou. — Por que eu faria isso? Atormenta-me com os eventos sociais em que comparece. Conta com quem esteve e o que disse. Sabe que sinto falta disso. Sabe que sinto falta de meus supostos amigos. E por isso se assegura de jogar sal à ferida. Sei que quer que todo mundo me despreze e que acabe sem um penique12... e por isso o atormento com meu êxito. O que você faria em meu lugar? Cordier tirou a taça da mão dela e pôs de lado. — Primeiro nunca a teria deixado partir — respondeu, se aproximando com incrível rapidez para abraçá-la. Beijou-a com fúria e paixão, depois com tanto ardor que ela não soube onde estava. Jogou a cabeça para trás para que tomasse o que quisesse e fizesse o que quisesse. Em um abrir e fechar de olhos estavam tombados de costas, rindo, enquanto ele levantava suas saias.

Capítulo 13

O coração, como o céu, forma parte do paraíso e, assim como o céu, muda da noite ao dia. As nuvens e os trovões devem cobri-lo em ocasiões; a 12

Moeda inglesa. Expressão semelhante ao dito; "não vale um vintém".

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escuridão e a destruição, reinar nas alturas. Mas uma vez calcinado, rachado e dividido, as tormentas se diluem com as gotas de água. Os olhos por fim derramam o sangue do coração em forma de lágrimas. Tal qual é o clima inglês hoje em dia. LORDE BYRON Dom Juan, Canto II James estava zangado por uma centena de razões. Francesca estava envolvida em um jogo perigoso com um homem perigoso. Perseguida por uma das piores criminosas da Itália — e a descrição ficava distante do real. — Ele mentia para ela e o odiaria assim que soubesse da verdade. E devia saber o antes possível, por seu próprio bem. Existia muito mais, muitíssimo mais, mas não estava de humor para refletir sobre o mínimo matiz de seu estado mental. Lutava com isso do modo que lutavam os homens com os sentimentos poderosos: entrando em ação. Assim a conquistou com um beijo apaixonado e impaciente. Sua impaciência deve ter lhe parecido engraçado, porque sentiu sua risada nos lábios. E ela seguiu rindo enquanto a tombava de costas e erguia suas saias. Nesse momento compreendeu, consumido na voragem de sentimentos que o embargava, o que o intrigou nela desde o começo: seu caráter entusiasta. Nesse momento compreendeu. Francesca tinha emoções profundas, vivências profundas, amores profundos... e iria odiá-lo com a mesma intensidade. Não se incomodou em despi-la nem em despir-se. Desabotoou e baixou as calças tal como fez no Campanile. A impaciência o consumia como a um pirralho. Não reparou em sua falta de delicadeza, nem ela tampouco. Francesca enterrou os dedos em seu cabelo e sussurrou um sem-fim de palavras num meio-tom. Em inglês e depois em italiano com um marcado acento inglês, coisa que o excitou muito mais. Ao ouvi-la se pôs a rir. Não pôde evitar. Entretanto, a risada era produto da excitação. Da impaciência, da desenquadrada luxúria e da alegria incontrolável que lhe provocava essa mulher. A alegria de tocá-la e de descobrir que esse delicado lugar entre suas coxas também estava preparado. Notou o roçar de seus dedos enquanto a penetrava. A carícia lhe roubou a razão e sossegou a fúria enquanto se perdia nela, em seu corpo. Nessa ocasião sequer tentou manter o controle. Foi uma união rápida, febril; uma corrida para o clímax e a satisfação. Separou-se dela e rodou, levando-a junto. Abraçou-a com força, colando seu traseiro contra sua virilha e se concentrou na sensação de tê-la entre os braços, ** Essa tradução foi feita apenas para a leitura dos membros do Talionis. **

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onde encaixava com perfeição. Tentou não pensar no que lhe proporcionaria o futuro mais próximo. Negou a se perguntar o que faria quando ela o odiasse. Porque neste momento não o odiava. Francesca teria que saber a verdade logo... muito logo. Não podia seguir jogando com ela. Não restava tempo. Corria um terrível perigo. Mas ainda não tinha por que saber a verdade. Ainda restava essa noite. A lua apareceu no firmamento durante seu febril encontro amoroso. Sua tênue luz penetrava através das amplas janelas e conferia um brilho perolado à pele da mulher que abraçava. Depositou um beijo nesse ponto situado atrás da orelha onde tanto gostava que a beijassem e notou que estremecia como sempre acontecia quando a beijava justo aí. Beijou a nuca e se afastou para desabotoar os colchetes do vestido. Despiu as costas e a chocante tatuagem ficou à vista. Inclinou a cabeça para beijar a serpente. E seguiu despindo-a. Tirou seu vestido, as anáguas, o espartilho e a regata. Permitiu-se fazer às vezes de donzela, sorrindo enquanto a obrigava a girar de um lado a outro até que esteve nua. Depois fez o mesmo com sua roupa, sem pressa nessa ocasião. Viu que ficava de costas para observá-lo com as mãos entrelaçadas sob a cabeça. Seus olhos verdes percorreram seu corpo, e isso bastou para que seu membro ganhasse vida. Nesse momento, entretanto, devia esperar. Porque nesse momento faria tudo muito devagar. Exploraria e memorizaria seu corpo por inteiro. Já se deleitava com cada centímetro de pele que deixava à vista, que tocava. Nesse momento se embriagou com seu aroma e deixou que sua imagem ficasse gravada a fogo em sua memória. Memorizando todas as curvas que seus dedos acariciavam: o elegante arco de seu pescoço, a delicadeza de seus ombros, a plenitude de seus seios e o peso em suas mãos... Dedilhou o contorno de sua cintura e seus quadris, a voluptuosa curva de seu traseiro. Explorou a elegante forma de suas pernas e deslizou as mãos por elas até chegar a seus pés. Beijou seus dedos, os tornozelos e joelhos. E dali subiu até chegar a esse lugar tão suave e delicado. Decidido a agradá-la com a boca e mãos, se concentrou em memorizar seu aroma, seu sabor.

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Seus suspiros de prazer, suas risadas e seu grito quando alcançou o clímax. Seguiu subindo enquanto a beijava, enquanto guardava sua lembrança na memória, enquanto estendia o momento ao máximo. Mas ao final, quando estava a ponto de perder por completo o controle, penetrou-a e começaram a se mover juntos, devagar e com grande ternura. Francesca o beijou e suas mãos acariciaram seu rosto e pescoço. Seus lábios seguiram o percurso de seus dedos. Esses beijos e carícias, a ternura que irradiavam, apunhalaram-no centenas de vezes no coração. Mas a beijou do mesmo modo. Beijos de Judas, mas igualmente meigos. Por desgraça para ele. E quando seus corpos por fim estremeceram juntos, se deixou levar com mais pesar do que deveria, do que gostaria de sentir. Deixou se levar, deixou que a maré o arrastasse uma última vez. Francesca dormiu como um bebê pela segunda vez em menos de um dia. E teria seguido dormindo se ele não se movesse. Porque despertou e nesse momento ouviu o ruído. Meio adormecida, foi consciente de que ele se levantava e vestia as calças. — Essa cadela — o ouviu dizer de caminho à janela. — Está louca? Ah, já vejo! E isso a despertou totalmente. Conseguiu encontrar a regata e a vestiu enquanto corria para a janela. Do outro lado do canal, as chamas se estendiam pelo térreo do palazzo Neroni. — Meu Deus! — gritou Francesca, horrorizada e por um instante sem acreditar no que via. Em seguida, se voltou e começou a procurar sua roupa. — Pare — disse Cordier, agarrando seu braço e a obrigando a se endireitar. — Também me enganou em um primeiro momento. Mas sua casa não vai arder. Não podem correr esse risco. É uma distração, assegurou enquanto a conduzia de novo à janela. — Olhe. Empregaram algum tipo de artefato incendiário. Certamente foguetes. Algo com o que fazer muito escândalo de maneira espetacular. Assim despertam todo mundo em plena noite, e o pânico está feito. Seus criados estarão correndo de um lado para outro, descuidando a vigilância, e... — O que está dizendo? — interrompeu. — Não podemos ficar aqui. Pode ter feridos. — É uma distração — repetiu com ênfase, como se estivesse falando com uma menina. Francesca teve a sensação de que ele queria lhe dizer algo mais, mas James guardou silêncio e seguiu olhando-a como se não a estivesse vendo realmente. Depois o viu assentir com a cabeça.

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— Possivelmente seja uma armadilha. Não te convém sair correndo. É possível que alguém a esteja esperando. — A mim? — perguntou ela. — Sim. O temor que sentia pelo que pudesse acontecer com seus criados e sua casa deu lugar a outra sensação muito mais profunda e inquietante. Teve a impressão de que o mundo se abria sob seus pés e não sabia muito bem onde pisar para não afundar. — O que quer dizer? — perguntou. — Por que eu? O que sabe de tudo isto? — Vou te dizer — ele respondeu, — e me odiará — soltou seu braço. — Cordier. Francesca sentia náuseas. Acreditou nele! Queria seguir confiando nele. E mesmo assim não podia livrar-se da sensação de estar em meio a areias movediças. O que devia lhe dizer? Recordou a noite que se conheceram. A noite que matou um homem com extrema facilidade. — Mas antes de lhe dizer isso, preciso pedir emprestado sua roupa. — O que!? James não respondeu, e ela se limitou a olhá-lo enquanto tentava encontrar sentido em algo que não fazia sentido algum. De todas as respostas que esperava escutar, algumas boas e outras intoleráveis, essa era a última que podia ter imaginado. Seguiu olhando-o boquiaberta enquanto ele recolhia sua roupa do chão. Depois o viu se endireitar com os objetos presos contra o peito. — Preciso me fazer passar por você — disse. O medo e a náusea desapareceram. Não sabia se ria ou chorava. Conhecia alguns homens que gostavam de vestir-se com roupa de mulher. Alguns eram muito viris. Entretanto, não lhe fez nem um pingo de graça. — Minha roupa ficará pequena — lembrou. — Arrumaremos — replicou ele. — Cordier, seu tamanho é duas vezes o meu e esse é meu segundo vestido favorito! Ele olhou a roupa que sustentava como se fosse um menino que protegesse com unhas e dentes seu brinquedo preferido. — Não mereço seu segundo vestido favorito? — Meu favorito está destroçado! Jogou-o no canal, comigo dentro! — Eu não te atirei no canal — assinalou. — Você se atirou sozinha.

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— Porque estava me olhando como se fosse atirar-me — observou ela. Os lábios de James esboçaram um sorriso torcido e de repente pareceu um menino, o pior menino que pisou na face da Terra. Aproximou-se dela sem soltar a roupa. — Deus, vou sentir sua falta — disse, e a beijou apaixonadamente. O beijo derreteu seu corpo e esteve a ponto de derreter seu cérebro também. Entretanto, algo não encaixava. A distraiu. Com o vestido. Outra distração? Afastou-se dela. — Voltarei logo — assegurou. — Me diga aonde vai — ordenou. — Diga o que vai fazer. — As explicações levariam muito tempo. — Não. Cordier, não sou imbecil. Entretanto, já saíra pela porta. Correu para o vão e o observou se afastar. — Cordier... — chamou. — Logo — respondeu ele. Conteve uma maldição, mas se negou a correr atrás dele vestida só com a regata para que todos seus criados a olhassem... sem terem pago. Além disso, por muito que o perseguisse, Cordier faria o que quer que tenha metido na cabeça. — Não se atreva a estragá-lo! — gritou. Não era a primeira vez que James se vestia de mulher. Claro que nessas outras ocasiões os objetos foram escolhidos com esmero, cortados para uma mulher corpulenta e adaptado a sua altura e a sua largura de ombros. O vestido de Francesca era muito pequeno, muito menor do que pensou, tal como comprovou enquanto tentava se vestir em uma das mofadas salas do térreo. — Teremos que cortá-lo, senhor — disse Sedgewick. — Nem pensar — replicou. — Me mataria. É seu segundo vestido favorito e já destrocei o primeiro. Sedgewick olhou Zeggio com essa expressão tão irritante. — Senhor, não temos tempo para descosturá-lo — lembrou em um tom exageradamente paciente. — Não, não — atravessou Zeggio. — Não precisa tirar as costuras. Faremos uma coisa, senhor. Muito fácil. Deixamos desabotoada a parte do peito. — O sutiã — particularizou ele. — Isso. Deixamos aberto. Desse modo poderemos vesti-lo pelos pés e assim subi-lo — disse, descrevendo com gestos o processo de subir pelas pernas. — Aí — assinalou os quadris, — não é tão largo como aqui — apontou o peito e os ombros. — Lembre que não é necessário que vejam todo o vestido. Daqui é suficiente

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— apontou da cintura para baixo. — É suficiente que se veja a cor, e para lhe tampar as pernas, e esconder as calças. Ponha o xale na cabeça e sobre os ombros e ninguém verá que tem o decote do vestido na cintura. É de noite. Como o verão bem debaixo do facho de luz da lua? — Bem pensado — concordou James. Isso deveria ter ocorrido a ele. Deveria ter visto imediatamente o que devia fazer com o vestido. Estava acostumado a solucionar os problemas imediatamente. — Assim poderá mover-se com mais facilidade — assinalou Sedgewick. — Quererá ter os braços livres para quando tentarem matá-lo. É obvio que precisava ter os braços livres. Sabia muito bem. A ideia era enganar aos assaltantes para que o atacassem... O vestido estava sentenciado de toda forma. Que mais ocorreria? Francesca o odiaria igualmente. Enfim... Pelo rei e pela pátria. Uma vez mais. Tinham-na encerrado. Uma vez que voltou a entrar no dormitório, um criado levou uma bandeja com comida e algo de beber. Ao sair fechou a porta e ela acreditou que estava protegendo seu estado de seminudez dos olhares curiosos da servidão. Comendo se entreteria um momento enquanto esperava, mas não tinha fome. Olhou a comida e acabou deixando de lado. Aproximou-se da porta. Talvez algum membro da criadagem soubesse o que estava tramando seu senhor. Era uma sedutora, recordou. Poderia surrupiar a informação a qualquer um. A porta não se abria. Tentou com outras duas portas mais, mas foi em vão. Estava trancada pelo bem dela ou porque era conveniente? Possivelmente Cordier pensasse que ambas as coisas eram o mesmo. Quem ficaria ao lado de uma mulher que era um aporrinho? Considerou a ideia de gritar, mas chegou à conclusão de que não lhe serviria de nada. Se ele deu ordens aos criados, obedeceriam. Até sua donzela o obedecia, por Deus! Passeou nervosa de um lado para outro um momento, até que percebeu que estava esfregando os braços. O único objeto que lhe deixou era a regata que usava. Embora a noite não fosse muito fria e o fogo crepitava na lareira, era impossível a ela se aquecer. Agarrou um dos cobertores e jogou nos ombros. Nesse momento compreendeu que o frio vinha de seu interior. Da dúvida e do companheiro preferido desta: o medo. Obrigou-se a pensar com calma. Cordier dissera que o fogo e o ruído só eram uma distração, uma armadilha.

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Alguém estava nos arredores do palazzo Neroni ou no interior, aguardando-a. Quem quer que fosse não estava interessado em suas joias. Queria as cartas. Cansou-se de procurá-las e queria obrigá-la a revelar onde as escondeu. Elphick devia estar muito assustado. Por fim... após cinco anos. Claro que antes não teve motivos para assustar-se. Arruinou-a até o extremo em que ninguém teria acreditado em nada do que ela dissesse sobre seu ex-marido. Naquela época sequer estava segura de que as cartas significassem o que supunha que significavam. Embora sim soubesse que eram importantes. Senão, que sentido fazia que as guardasse em uma gaveta fechada a chave? A visita de Quentin esse verão dissipou as poucas dúvidas que restavam. Se essas cartas não fossem importantes, não as teria pedido e não teria voltado várias vezes para tentar convencê-la de que as entregasse. Segundo ele, seus colegas reuniram certas pistas, outras peças do quebracabeça que levavam anos tentando montar. O problema era que, conhecendo o quanto seu ex-marido era cruel e retorcido, não lhe causaria surpresa absolutamente que Quentin estivesse sob suas ordens. Era lógico que Elphick queria atar qualquer cabo solto depois de ter alcançado tanta popularidade. Sabia muito bem que aspirava a substituir lorde Liverpool como primeiro-ministro. Enquanto isso, e graças às cartas que lhe enviava de forma periódica, sabia que ela se movia nas altas esferas e se acotovelava com homens influentes. Estrangeiros, sim... mas, alguns estrangeiros tinham influência em Whitehall. Um aristocrata estrangeiro ou algum membro da realeza de outro país conseguiriam atrair a atenção das pessoas indicadas, ali onde uma ex-esposa não poderia fazer. Recordou o que Magny lhe disse sobre os pais de Cordier. Arriscaram suas vidas para salvar da guilhotina aos nobres franceses e a outras pessoas. Havia muitos outros estrangeiros cuja simpatia não estava do lado francês e que estariam muito contentes de abater um traidor. Elphick tinha motivos para estar assustado em sua situação atual. E isso lhe daria um motivo para atuar..., tal como Magny a advertiu mais de uma vez sobre isso. Mas Magny confiava em Quentin tão pouco como ela. O conde não confiava em ninguém. E seria melhor se ela fizesse o mesmo.

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Inquieta, aproximou-se da janela. A luz da lua minguante, três quartos de sua esfera total, banhava no canal. A confusão que pouco antes reinava em seu palazzo parecia estar diminuindo, assim como o fogo. Ficavam poucos curiosos nos balcões próximos. Cordier tinha razão. Não foi um incêndio em toda regra. Nessas casas antigas era raro poder extinguir um incêndio tão rapidamente e com essa facilidade. E, em certo modo, era muito irônico o fato de que uma casa construída sobre uma lacuna, presa por uma estrutura de madeira que se afundava na água, ficasse reduzida a cinzas. Entretanto, ela presenciou semelhante sucesso no primeiro ano que passou em Veneza. E sabia que o Palácio Ducal ardeu várias vezes ao longo dos séculos. Não obstante, e de acordo com Cordier, esses eram incêndios reais, enquanto que o que acontecia em sua casa era uma distração. "Preciso me fazer passar por você", havia dito. Viu a gôndola atravessar o canal em direção a sua casa. Em seu interior havia uma mulher... com seu vestido vermelho. A cor se distinguia perfeitamente ante à escuridão da noite, tal como ela gostava. Adorava o intenso contraste entre uma cor chamativa e o negro da gôndola. E que cor era mais intensa que o vermelho? Grudou o nariz ao vidro. "Preciso me fazer passar por você." Era ele. Precisava se fazer passar por ela para que mordessem o anzol. O coração deu um tombo antes de começar a pulsar com tal rapidez que a deixou sem fôlego. Observou a gôndola deslizar pelo canal. A distância era muito curta. Quando se deteve, as portas do embarcadouro se abriram de repente e várias figuras escuras apareceram subitamente e se equilibraram sobre a gôndola, lançando os gondoleiros à água. A lâmina de uma faca brilhou à luz da lua. O portador correu para o felze. Era uma emboscada e dessa vez não pensavam correr o menor risco, descobriu James. Dessa vez não eram dois rufiões, mas ao menos seis. Deviam ter se escondido na planta baixa durante o alvoroço que provocou o fogo. Nesse momento saíram pela porta do palazzo e correram para a gôndola. Uliva e Zeggio esperavam um ataque, mas não dessa magnitude. James estava tirando a adaga quando viu que ambos os homens eram jogados na água. O tipo que se equilibrou sobre ele, faca na mão, titubeou quando o viu sair da cabine direto

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para ele. Entretanto, tropeçou com a barra do vestido e caiu de bruços no chão. Sentiu o movimento de seu atacante, já que não conseguia vê-lo, e rodou antes que lhe desse uma punhalada nas costas. Ato seguido, contra atacou dando um chute nos tornozelos e seu inimigo caiu ao embarcadouro. Acabava de ficar de joelhos, empunhando seu punhal, quando ouviu que uma mulher gritava: — Cuidado! Agachou-se de forma instintiva, de modo que a maça passou a escassos centímetros de sua cabeça antes de estrelasse contra o embarcadouro. — Aiuto! Aiuto! Socorro! Auxílio! Assassinos! A voz feminina reverberou no silêncio da noite. Os cães começaram a ladrar e a uivar. Os atacantes ficaram petrificados um instante, observando os arredores. As pessoas começaram a aparecer nos balcões proferindo gritos. James aproveitou o momento de distração para atacar o inimigo. Arrebatou a maça com a qual tentou esmagar seu crânio, enquanto Zeggio voltava a subir à gôndola e imobilizava aquele com adaga. Os outros tentaram fugir, mas os criados de Francesca haviam saído em massa para o embarcadouro. James deixou que se encarregassem dos assaltantes e se virou na direção de onde vinham os gritos. Viu Francesca agarrada a um dos postes onde se amarravam as gôndolas. Podia voltar para sua casa nadando, disse Francesca toda indignada quando subiu à gôndola. Só eram uns quantos metros, observou. Deteve-se para recuperar o fôlego depois de gritar. Entretanto, levaram-na sem perda de tempo da gôndola à planta baixa do palazzo Neroni. Todos os criados estavam presentes; alguns acompanhados pelos bandidos que capturaram, mas todos levavam armas improvisadas: candelabros, facas de cozinha, jarros, bandejas e garrafas. Quando viram que Cordier entrava com ela nos braços, baixaram as armas. Cordier a sacudiu. — Não volte... — sacudiu — a fazer isso... — sacudiu — jamais. — Estava criando uma distração — disse ela. — Agora sim que está criando uma distração — replicou ele. — Veste uma regata ensopada. Seria o mesmo que estar nua. E todo mundo está olhando. — Nem pensar — soltou. — Sou uma rameira. Têm que pagar para me ver. — Vou te matar — ameaçou antes de voltá-la. — Zeggio, fecha a boca e traz o xale da senhora antes que pegue uma febre dos pulmões. A última coisa que preocupava Francesca era pegar um resfriado, ocupada

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como estava olhando-o. Vestia a camisa, o colete e seu vestido, este último do avesso, de modo que o sutiã caía sobre o traseiro. Cordier percebeu que o observava. — Não me cabia — alegou. — Você quem diz. Zeggio se aproximou com o xale e Cordier o arrancou das mãos para jogar por cima dos ombros e cobri-la. Em seguida, obrigou que caminhasse para a escada. Thèrése, que acabava de abrir caminho entre dois ajudantes da cozinheira, exclamou: — OH, madame! — Sei — assentiu ela. — Acaba de destroçar meu segundo vestido favorito. — Não está destroçado — ele a contradisse. — Tive muito cuidado para não manchar de sangue. Percebeu que desta vez não me lancei à água para te salvar? Olhe — se virou com muita elegância para que pudesse apreciá-lo, como se levasse toda a vida usando vestidos... Francesca se pôs a rir. Não pôde evitar. Era um excelente imitador. Até esse momento passou por cima... Um imitador. Centenas de imagens lhe passaram pela cabeça. O gracioso espanhol, que se converteu em um personagem muito mais perigoso em um abrir e fechar de olhos. O homem de pernas longas sentado em sua gôndola, que tirou o chapéu no café Floreiam e lhe fez uma florida reverência... o cabelo negro esmagado pela pomada. A condessa de Belzoni olhando de cima abaixo seu corpo alto e forte, sem reparar em seu cabelo. Esse mesmo corpo alto e forte. Recordou outro corpo com a mesma altura e corpulência. Voltou a ver as pernas musculosas e longas ornadas com as meias do criado... no camarote de La Fenece. O criado que derramou o vinho em cima de Lurenze. O criado cujo corpo lhe deu água na boca. Esse corpo! Lembrou o que disse antes que levasse seu vestido: "vou falar sobre isso e me odiará". — Você — disse. — Foi você. O viu ficar petrificado. A expressão brincalhona desapareceu e seus olhos se tornaram perspicazes. — Era eu? — Você — repetiu, procurando as palavras adequadas que não conseguia encontrar por culpa do torvelinho de imagens que tinha na cabeça. O Campanile.

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Fazendo o amor. O serrallo. Fazendo o amor. — O criado. O espanhol. Você. Quem quer que seja. Seu semblante crispou. — Thèrése, será melhor que leve madame acima. Nesse momento Francesca se voltou para sua donzela, tirou a bandeja de suas mãos e a jogou contra James. Ele se agachou para esquivá-la, e essa acabou se estrelando contra o chão. — Porco! — gritou. — Donnola! — insultou em italiano, o italiano obsceno das ruas. — É um porco asqueroso. Deveria ter deixado que o matassem. Oxalá o matem e acabe apodrecendo no inferno. Se voltar a se aproximar outra vez de mim, lhe cortarei as pelotas. E voou escada acima com Thèrése atrás. James a observou enquanto subia e pigarreou. — Tampouco foi tão mal... — Certamente, senhor — concordou Sedgewick. — Signore, isso não é nada — comentou Zeggio. — Coisa de mulheres. Sempre ameaçam cortar as pelotas. É como quando os homens dizem: "Amanhã começarei a te ser fiel". São palavras vazias. — Ocas. São palavras ocas — o corrigiu James. Jogou uma olhada aos criados que o olhavam com decepção em seus rostos. Até os assaltantes pareciam decepcionados. Todos esperavam que fosse atrás dela e protagonizasse uma grande cena. Muitos gritos que acabariam em uma apaixonada queda. "Italianos...", pensou. Mas nesse momento recordou que ele também era italiano. — Per tutti i diavoli dell'inferno! "Por todos os demônios do inferno!" E saiu correndo escada acima. — Vai al diavoli! — gritou ela. — Vai all'inferno! "Vá ao diabo! Vá ao inferno!" Sim... o típico intercâmbio de pérolas de sabedoria... — É uma ingrata insuportável! — acusou-a aos gritos. Francesca havia chegado ao arco de acesso ao primeiro piso. Deteve-se e se voltou para olhá-lo. Seus exóticos olhos verdes faiscavam furiosos. — É um porco traidor e mentiroso! — gritou. — Só serve para dar problemas e isso é a única coisa que fez desde que apareceu. Eu tinha uma vida maravilhosa, uma vida tranquila e agradável... até que você apareceu em Veneza!

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— voltou-se e enfiou pela porta feito uma fúria, deixando atrás de si os rastros molhados de seus sapatos. — Sua vida era uma merda e sabe muito bem! — gritou ele. — Nada disto teria acontecido se tivesse um pingo de bom senso. Você tem a culpa de tudo isto! — Minha vida era perfeita! Alcançou-a nesse momento. Ela começou a andar mais depressa, mas seus esforços por deixá-lo para trás foram em vão. — Uma perfeita mentira — a corrigiu. — Olhe quem fala. Eu não vou por aí fingindo ser... — Isso é a única coisa que faz! — a interrompeu James. — Fingir, se entreter com seus joguinhos e mentir! Por que não se chama de atriz? É uma palavra muito mais digna... e poderia dizer que sua profissão requer grande dose de atuação. Como a minha. A viu entrar por uma porta. Thèrése tentou fechá-la antes que ele entrasse, sem sucesso. — Como a minha — repetiu em voz mais baixa. — Seria possível seguir falando sem que os criados nos escutem? — O que te parece se em vez de falar o apunhalo diante deles? — ela soltou. — Allez-vous en — disse Thèrése com voz baixa. — Não se atreva — advertiu Francesca à donzela. Thèrése olhou sua senhora e depois a ele, e saiu do cômodo a toda pressa. — Thèrése! — gritou Francesca enquanto a seguia. Para impedir que partisse, James lhes fechou o passo. — Odeio você — disse. É obvio que o odiava. Mentiu desde o começo. Traiu a confiança do fantasma dessa menina inocente que de vez em quando aparecia em seus olhos. Baixou o olhar ao vestido que levou sem lhe dar a menor explicação porque o assustava o que aconteceria quando explicasse. Observou o vestido que levou quando fugiu como um covarde deixando-a para trás... depois de terem se entregado um ao outro como só faziam aqueles que se amavam de verdade. James desceu o vestido pelos quadris e o deixou cair no chão. Afastou os pés e se agachou para recolhê-lo. O ofereceu. Francesca o arrancou de suas mãos e levou ao peito, sem prestar atenção às manchas que o xale úmido e a regata deixariam na seda. — Sei que me odeia — assegurou ele. — Sei que não pode nem me ver agora mesmo. Me diga onde estão as cartas e partirei.

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Capítulo 14

Ah, o amor das mulheres! Sabe-se que é algo lindo e também terrível; pois algumas lançam tudo no jogo da sorte, e se perderem, a vida não lhes traz mais que as zombarias do passado, e sua vingança é como o ataque de um tigre: rápido, letal e devastador; e por mais real que seja a tortura que sofrem, também sentem a dor que infligem. LORDE BYRON Dom Juan, Canto II — Odeio você — disse Francesca. Estava encharcada e deveria sentir frio, mas fervia de raiva e humilhação. Não acreditava que tivesse sido tão idiota. Isso era pior, muitíssimo pior que a idiotice que cometeu com John Bonnard. Porque então tinha como desculpas sua juventude e sua inocência. Que desculpa tinha aos vinte e sete anos, depois de um despertar tão abrupto cinco anos antes, e depois dos meses que passou estudando com Fanchon Noirot para não ser uma parva? Conheceu esse homem fazia uma semana — sem contar as vezes que se cruzaram sem saber que era ele, — mas não o conhecia absolutamente. Menos de uma semana com ele e havia se... apaixonado. Oxalá pudesse chamar de outra maneira, mas como depois de ter saltado no canal para salvá-lo? Morria de vergonha ao lembrar. Durante um momento, durante um maravilhoso instante, justamente antes de se dar conta dos motivos pelos quais estava ali, tudo pareceu muito... romântico. — Odeio-o — repetiu. — Mas odeio ainda mais a mim mesma. Cordier fechou a porta. — Sinto muito — se desculpou. — Mas precisa me dizer onde estão as cartas. Para sua própria segurança. — Que cartas? — perguntou, tal como o fez uma e outra vez a lorde Quentin. — Francesca... Ela jogou uma olhada a seu redor. Caminhou sem prestar atenção e abriu uma porta ao acaso. Dentre todas as que podia ter escolhido, tinha que ser a do

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Puttinferno. Nesse momento os querubins a olhavam e riam a gargalhadas enquanto apontavam com seus dedos gordinhos não à Grande Prostituta, mas sim à Grande Idiota. Levantou o olhar ao teto. Quantos querubins irritantes havia ali acima? Multiplicaram-se da última vez que olhou, assim como seus problemas? — Também odeio a eles. — Francesca, não temos tempo para seus joguinhos — disse ele. — Não estou jogando — replicou. — As cartas — insistiu. — Que cartas? — voltou a perguntar. "De que lado está?", era o que queria perguntar de verdade. Mas que sentido tinha? Por que lhe diria a verdade? A verdade não importava. Só importavam as cartas. Ao diabo com as cartas. E ao diabo com ele. — Vou explicar isso tudo — o ouviu dizer. — Não quero suas explicações. Oxalá pudesse compreender por que arrisquei minha vida, e minha dignidade, que é o pior de tudo, por você. — Sei que não acreditará em mim, mas explicarei de toda maneira — insistiu ele. — Depois te surrupiarei a informação se for preciso... porque estamos jogando algo muito mais importante que você ou eu, muito mais importante que os sentimentos de qualquer um dos dois. — Cretino! — exclamou. — Sim, sou, porque me ajuda a seguir com vida — admitiu. — Assim é como faço meu trabalho. Sendo um cretino. Se não fosse por você, não teria um trabalho há fazer. Se não fosse por você, a essa altura estaria na Inglaterra, aprendendo a ser humano de novo. Ou inclusive, ainda melhor estaria cortejando uma virgem de bom berço, enrolando alguma muito inocente para que se casasse e tivesse filhos comigo. Poderia estar passando os dias em meu clube, lendo os jornais ou olhando pela janela e fazendo apostas ou jogos sobre qualquer coisa que passasse pela frente. Poderia estar exibindo meu belo cavalo e meus dotes como cavaleiro no Hyde Park, jogando um olho às moças casadouras e seus acompanhantes. Poderia estar dançando com jovenzinhas vestidas de branco no Almack's. Poderia estar me embebedando e trocando piadas novas com os cavalheiros depois que as damas se levantassem da mesa. Poderia estar entre gente normal, levando uma vida normal. Mas não. Negou-se a ajudar Quentin. Por um punhado de

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cartas. Isso era a única coisa que queria. Mas se negou a ajudar um grupo de leais britânicos a capturar um homem que se vendeu aos nossos inimigos. Por sua culpa não pude voltar para a Inglaterra. Tive que vir aqui... e ferir seus malditos sentimentos! Sua consciência a picou bastante forte para dar um coice. Reconhecia as imagens que ele criou e compreendia a perfeição do que ele sentia falta, o que ansiava. Era o mesmo mundo do qual ela sentia saudades em ocasiões, apesar da felicidade e a liberdade que encontrou após abandoná-lo. O mundo que deixou, o que a jogou, não era o melhor mundo, mas lhe era familiar e tinha suas recompensas. Gostava da vida que levava antes de tudo se retorcer. Em qualquer caso, sabia de primeira mão o que era sentir-se forçosamente separada do que uma vez foi seu lar. — Por que confiaria em Quentin? — perguntou. — Sabe a quantidade de homens que mentiram para mim? Sabe quantas pessoas em quem confiava se voltou contra mim? Sabe o que se sente quando todas as pessoas que conhecia, todas sem exceção, voltam-se contra você... e tudo pela palavra de um homem? Como podia estar segura de que Quentin não estava do lado de Elphick? Todos estavam. Todos e cada um deles. Inclusive meus advogados me desprezavam. — Quentin e eu não estamos do lado de Elphick — assegurou. — Faz dez anos seu ex-marido me traiu, junto a mais cinco companheiros. Vendeu-nos aos agentes de Napoleão e acabamos em L'Abbaye. Torturados. Durante semanas. Francesca fechou os olhos um instante. Tinha ouvido rumores sobre as prisões parisienses. L'Abbaye era infame. Fanchon Noirot lhe falou sobre alguns de seus amigos que acabaram ali. Os poucos que saíram vivos morreram na guilhotina. Abriu os olhos e se encontrou com seu penetrante olhar. — "... ficaram todos mortos" — citou do livro de Jó. — "Só eu pude escapar para te trazer a notícia." Mas por que acreditaria? Certamente, por quê? E mesmo assim, estava lhe custando não fazê-lo. Sua tensa expressão indicava que viu ou escutou seus companheiros morrer... de uma forma horrível, não restava dúvida. Além disso, sabia muito bem do que era capaz Elphick... ou isso acreditou. Até esse momento não se deu conta de todas as implicações. Deveria ter percebido: Elphick não tinha consciência, nem lealdade. Era incapaz de sentir qualquer coisa. Era um monstro. O que fez a ela era uma ridicularia comparada ao que fez há outras pessoas. Concentrou-se nela mesma e na desdita que se via obrigada a suportar. Era tão

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jovem, tão inocente... Sua aliança com os inimigos da Inglaterra, suas consequências e as pessoas sofreram por sua culpa... tudo era algo abstrato para ela. Cordier o converteu em realidade. Em seres humanos. Jovens. Seus companheiros. Ele mesmo. Torturado. Talvez fosse tudo uma mentira, mas lhe revoltou o estômago. Deu as costas e se aproximou da janela. Ao outro lado do canal, nas janelas de Ca' Munetti, viam-se luzes. O resto estava às escuras. A lua devia estar oculta atrás das nuvens ou já havia desaparecido do firmamento. Essa escuridão era muito apropriada. Até esse momento acreditou compreender o jogo, quando na realidade esteve tateando no escuro. — Vai ter que confiar em alguém — disse ele. — E terá que ser neles ou em mim. — Sério? — perguntou. — Como sei que não está metido no alho? Como sei que tudo isto não é mais que uma mutreta para ficar como um herói de modo que confie em você? — O que quer que diga? — resmungou. — O que posso fazer para que acredite em mim? Por que não fala de uma vez e acabamos com este assunto? — guardou silêncio, aparentemente para controlar seu mau gênio, porque depois continuou com voz mais temperada. — Os dois homens que a atacaram na semana passada. As freiras que revistaram sua casa. Os tipos que assaltaram sua gôndola esta noite acreditando que estava dentro. Seu chefe é uma mulher chamada Marta Fazi. É de sua idade, mais ou menos, mas não acredito que te caísse bem. Quando tinha oito anos, cortou a orelha de uma menina que a insultou. Se esses tipos tão encantadores desta noite a tivessem sequestrado, a levariam para Marta. Ela teria te convencido para que dissesse onde estão as cartas. Convenceria te fatiando o rosto. Gosta de fazer isso às mulheres bonitas. Se estiver de bom humor. Se não, o método de persuasão é mais desagradável. Francesca sentia um zumbido nos ouvidos e se deu conta de que estava cambaleando. Cordier se aproximou dela com uma mão estendida. Afastou-o, aproximou-se aos tropeções de uma cadeira e se sentou. — Estamos buscando-a — prosseguiu ele. — Quentin inclusive pediu ajuda para Goetz, embora o governador não saiba nem a metade do assunto e não deve inteirar-se. Não estará a salvo até que a apanhemos ou até que nos dê as cartas. Francesca soltou uma gargalhada. Não era uma risada agradável, mas amarga e com um traço histérico. — Ninguém me acreditou durante todo este tempo — disse. — Quando Elphick

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descobriu que levei as cartas, nem se alterou. Já havia me arruinado. Ao me pintar como uma mulher amoral se assegurou que não pudesse lhe causar mal. E enquanto não pudesse lhe fazer mal, estava a salvo. Deixou-me fugir para o estrangeiro como fazem os duelistas, os morosos, os criminosos e os indesejáveis. Não me perseguiu. E se tivesse acabado na valeta como esperava, teria seguido sentindo-se seguro. Mas não, tive que fazer que os aristocratas e a realeza se rendessem a meus pés. Agora sou importante. Agora tenho amigos importantes. Agora vale a pena me matar. Estava gelada. Começou a tremer. Notou que Cordier se movia. Apesar da agonia e do zumbido dos ouvidos, foi consciente do tinido do cristal. Cordier colocou algo em sua mão. Uma taça de brandy. — Me pergunto se está envenenado — disse antes de beber de um só gole. O líquido queimou a garganta, mas o zumbido dos ouvidos diminuiu. — Não está envenenado — assegurou ele. — Não estamos em uma ópera e não sou o vilão da obra. Por favor, Francesca, seja sensata e me diga onde estão as cartas... Francesca olhou seu bonito rosto, esses olhos de um azul tão escuro. Supôs que, como tola que era se tivesse que fazê-lo de novo, voltaria a saltar ao canal, por ele. Para salvá-lo. Desviou o olhar para as paredes e então ao teto. Que irritantes eram esses meninos. — É complicado — respondeu. — Não, não é — a contradisse ele. — É muito simples. Diz onde... Aguardou escutar o final da frase. E demorou um minuto em perceber o motivo pelo qual Cordier guardava silêncio. Tinha um ouvido muitíssimo mais afinado que ela. Nesse momento percebeu o ruído que chegava do pórtico. Passos... de botas, para ser mais exata. Passos marcial. E de várias pessoas. A porta se abriu. Ninguém chamou. Ninguém esperou a que dissesse "Avante". Entretanto, foi Arnaldo quem, como era habitual, encontrou-a sem o menor esforço. Devia ter sangue de sabujo. Sempre sabia em que lugar da casa estava. — Sua Excelência o governador Goetz — anunciou. O governador austríaco pisava em seus calcanhares. Depois de um olhar desconcertado ao princípio, o conde se esforçou para não olhá-la diretamente. — Peço desculpas, madame, por minha repentina chegada, mas seguro que imagina a causa. — Nossa pequena briga — disse. — Não tão pequena como gostaríamos — interpôs o conde. — Devo falar com o senhor Cordier.

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— Já imaginava — disse Cordier, que havia recuperado sua habitual serenidade, fosse real ou não. — Estou seguro de que a senhora Bonnard nos desculpará. Quererá... isto... vestir-se, ao menos. — A senhora levou um susto tremendo — observou Goetz. — Todos levamos uma tremenda impressão. Não queremos incomodá-la. Você e eu falaremos no Palácio Ducal. E enquanto isso, assim que a senhora esteja preparada, insisto que parta desta casa. — É obvio que não! — exclamou ela. — Devo insistir — disse o conde. — Devemos averiguar a casa de cima abaixo. É possível que haja homens ocultos ou algum objeto perigoso. Deve ficar a salvo em outra parte, com um amigo. Enviarei uma escolta armada para que a acompanhe. Era o governador de Veneza. Quando o governador insistia, teria que obedecer. O regime austro-húngaro tolerava bastante as peculiaridades e as debilidades venezianas, mas não toleraria absolutamente nenhuma mostra de desacato à autoridade. Para os austríacos, o desacato à autoridade era o primeiro sinal de insurreição... e se cortava pela raiz com firmeza... e brutalidade se necessário. Talvez fosse o melhor, depois de tudo, disse-se Francesca. Não se sentia a salvo em sua casa. Não sabia em quem confiar. Não sabia o que esperar da situação nem o que fazer. De qualquer modo e sem importar o que os homens de Goetz encontrassem em sua revista, estava convencida de que não achariam as cartas. Claro que os austríacos não saberiam o que fazer com elas se as encontrassem. — Com prazer, senhor conde — cedeu Francesca. O governador assentiu com um gesto brusco de cabeça, embora não a olhasse. — Suponho que irá querer ir para a casa de sua amiga? — Não — contradisse. — Estará... ocupada — não pôde conter um sorriso ao pensar em Giulietta e em seu príncipe. Se ao menos ela tivesse se encantado por Lurenze... Sua vida seria muito mais simples. — Irei para casa de Magny — disse. — Sei que me receberá de braços abertos sem importar a hora que seja. Saiu do salão, consciente que Cordier a perfurava com o olhar. James não se sentia nem de longe tão complacente como aparentava. Não gostaria absolutamente de ir ao Palácio Ducal sem protestar. Entre outras coisas porque existia a possibilidade de acabar nos pozzi. Uma grave inconveniência, dado que Quentin demoraria horas, talvez mais de um dia, em conseguir que o libertassem. Uma prisão, como sabia por experiência, não era necessariamente ruim. Salvo

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pelo tempo que passou em L'Abbaye, era uma experiência... pacífica. Embora incômoda, em função das dependências, oferecia o tempo necessário para pensar com serenidade, sem distrações. E ele tinha muito em que pensar. Nesse momento, entretanto, não restava tempo para desfrutar da fria, escura e úmida solidão de uma masmorra. Goetz possuía motivos de sobra para encerrá-lo. O governador não era um idiota, de modo que era difícil adivinhar o que rondava por sua cabeça. "Eu levava uma vida maravilhosa, uma vida tranquila e agradável... até que você veio a Veneza!" dissera Francesca. Goetz estaria pensando algo do mesmo estilo: "Veneza era muito tranquila até que James Cordier chegou". Haveria um interrogatório, não restava a menor duvida, e isso seria muito aborrecido. Outra perda de tempo incalculável. Talvez devesse ter seguido seu instinto e fugir assim que ouviu os passos, depois de tudo. Porque teria reconhecido os passos de um militar em qualquer parte. Entretanto, nesse momento ignorava o que eles, quaisquer pessoas que fossem, queriam, e teria sido pouco cavalheiresco deixar Francesca com os lobos... Apesar de que a teria abandonado se lhe tivesse dito onde estavam as malditas cartas, disse para se convencer. Só queria as cartas. O resto — o ciúme, os sentimentos feridos e a confiança traída — não importava. Assim era seu trabalho, e ele melhor que ninguém sabia que não teria que misturar os sentimentos com o trabalho. Que fosse para a casa de Magny se queria. Que fosse ao inferno. Ele se encarregaria de acalmar os ânimos de Goetz, porque quanto antes o fizesse, antes poderia retomar sua missão. — Conheço bem a casa — disse. — Talvez a revista seja mais rápida se os ajudar. Uma vez que Marta Fazi não estava no tumulto do palazzo Neroni, mas sim observando a cena de um pequeno barco a uma distância segura, demorou mais que seus comparsas em perceber que o plano "C!" não corria bem. Não esperou nos arredores que se arrumasse o assunto. Sim, não sabia ler com desenvoltura como algumas pessoas, mas reconhecia perfeitamente um fracasso quando tinha um diante de si. Melhor que estava com as mãos ocupadas remando, porque do contrário algum inocente teria descoberto — de uma maneira muito dolorosa — quanto decepcionada estava.

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Entretanto, achava-se em Veneza, e era difícil machucar fisicamente a outros enquanto se remava e se tentava encontrar o caminho na escuridão sem se chocar com as malditas gôndolas que lotavam os canais. O melhor que podia fazer era aliviar sua frustração em voz alta, em sua língua materna, incompreensível para aqueles que a ouviam ao passar. — Isto é o que acontece quando se trabalha com incompetentes — resmungou ao mundo em geral. — Que fácil para ele, que está em Londres com todos seus lacaios, dizer: "Ah, Marta, querida, me faça o favor de me conseguir umas cartas". Por que deixou que a grande prostituta levasse as cartas? Por que não lhe deu uma surra e obrigou que as devolvesse, por que segue lhe escrevendo? O que lhe importa ela? É muito alta. Por que não me compra um vestido vermelho? Quando foi a última vez que me mandou joias? Se quiser algo, posso roubá-lo por mim mesma. Mas ela não. Esses imbecis dão a ela, só porque abre as pernas e lhes dá algo que a maioria das mulheres daria grátis. A odeio. E odeio suas estúpidas cartas. Acredita ser muito esperta e pensa que todos os homens têm que obedecer a grande dama. Se puser as mãos em cima, embora seja só uma vez, vai descobrir. Vai descobrir quão bonita e esperta ela é. Ah, sim, se pudesse pôr as mãos em cima uma só vez... então saberia o que fazer. É obvio, Marta Fazi sabia muito bem o que fazer com essa puta inglesa tão esperta. A questão era como lhe pôr as mãos em cima. Goetz foi meticuloso. Seus homens começaram pelo telhado e foram descendo. Embora James os ajudasse, não tinha esperanças de encontrar as cartas. Francesca não teria ficado tão tranquila diante da ideia de uma revista se estivessem escondidas no palazzo. Embora os ataques a sua pessoa ou seu lar a tivessem inquietado, nunca demonstrou a menor preocupação pelas cartas. Que diabo fez com elas? Embora fosse melhor não mencionar o diabo... teria mandado ao diabo queimando-as? Não, não, não era tão tola. Francesca Bonnard podia ser muitas coisas, mas não tola. Difícil, temperamental, cínica, teimosa, impulsiva e muito, mas muito travessa, certamente que sim. Se não fossem todas essas coisas e muitas mais. — Inteligente, esperta, ferozmente vital, apaixonada... e cara, pois não podia se esquecer que era muito cara... — teria resolvido o problema em um máximo de três dias. Não obstante, era todas essas coisas, e as cartas não estavam em nenhuma

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parte do palazzo Neroni. Apostaria sua vida com qualquer um sobre isso. Subiu numa escada e revistou as numerosas curvas e fendas dos querubins no estuque e as molduras. Checou as molduras dos quadros em busca de algum esconderijo. Disse a Goetz que estava procurando arames ou molas de armadilhas. Muito mais tarde e sem ter encontrado nenhum artefato letal, acompanhou o governador ao Palácio Ducal para um longo interrogatório. Conseguiu acalmar Goetz dizendo que ouviu sobre tal Marta Fazi, uma criminosa conhecida no sul e nos Estados Pontifícios, que andava solta em Veneza. Era muito provável que tivesse à senhora Bonnard como objetivo porque a dama inglesa era uma mulher e, como tal, vulnerável, e porque era a proprietária de uma grande coleção de joias. — Fazi é uma ladra — disse Cordier ao governador. — Uma ladra violenta, como muitos criminosos das zonas violentas da Itália. Sem elegância. Fazem muito ruído e matam pessoas sem necessidade. São vingativos. Aparentemente, essa tal Fazi tentou várias vezes e fracassou. Quanto mais zangada, mais decidida, violenta e impulsiva será. — Os Estados Pontifícios são uma vergonha — declarou Goetz. — Duzentos assassinatos só o ano passado. Mas aqui impera a lei. Encontraremos essa mulher e o resto dos criminosos saberá que deve ficar em seus turbulentos países. "Boa sorte" pensou James. James voltou para a Ca' Munetti pouco antes da meia-noite e dormiu até bem avançada a manhã do dia seguinte. Dormir, sem importar as circunstâncias, era uma habilidade que aprendeu fazia muito tempo. Entre outras diversões, os torturadores de L'Abbaye os mantiveram acordados durante dias até que começaram a ter alucinações. De modo que aprendeu a dormir com os olhos abertos. Era capaz de dormir em qualquer lugar, em qualquer momento, e despertar a vontade. Estava muito zangado, muito insatisfeito — e até aí chegava a análise porque não pensava afundar mais no torvelinho emocional que sentia — mas mesmo assim dormiu. Quando acordou, a situação não parecia ter melhorado muito. Estava tomando o café da manhã quando chegou a mensagem. Não era de Francesca. Estava escrito em um papel masculino muito caro, redigido com a letra clara e precisa de um secretário, e com o estilo formal de... Como dizer? Sim, de uma proclamação real.

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Em resumidas contas, estava convidado a tomar o chá na casa do conde de Magny. Mandou uma resposta igualmente formal e depois chamou Sedgewick e passou as horas que faltavam quebrando a cabeça para decidir o que usaria. Francesca precisou enviar alguém ao palazzo Neroni em busca de roupa. Resistiu à tentação de preocupar-se e se limitou a dizer a Thèrése que tomaria o chá e deixar a escolha nas mãos da donzela. O resultado? Babados, fileiras de babados. Brancos, nada menos. Começavam na gola, ao redor do modesto decote do vestido. Descia pelo sutiã em camadas e também decoravam a parte de baixo. As mangas eram bufantes e com fitas de seda separadas o suficiente e presas com um laço para conseguir que parecesse uma sequência de lanternas. Terminava com dois punhos esvoaçantes. A primeira vez que se olhou ao espelho, pensou em um dos enormes bolos que costumavam servir nas festas londrinas. Também pensou que estava igualmente deliciosa... e que o coração de Cordier se corroeria. Mas após um momento temeu estar ridícula, parecer uma menina tola... e que ele morresse de rir. Claro que desde que morresse, não teria motivos de queixa. Isso foi o que disse a si mesma quando Cordier entrou no salão e seu estúpido coração se agitou assim como os babados. Estava impecavelmente vestido com um fraque de lã da melhor qualidade, de uma cor que ressaltava injustamente seus olhos azuis e que contrastava de forma muito elegante com o colete amarelo claro. As calças aderiam às musculosas coxas como uma segunda pele. Sua gravata era branca como a neve e estava atada à perfeição, com cada dobra justamente em seu lugar. Entre elas brilhava uma ônix. Entretanto, sua mente foi cruel ao oferecer uma imagem desse corpo nu, e outra dos dois entrelaçados sobre os tapetes e as almofadas de seu falso harém, fazendo amor com impaciência e paixão a primeira vez, e depois com imensa ternura. Mas para ele não fizeram amor, lembrou-se, para ele se deitaram sem mais. Um meio para conseguir seu objetivo. O aviso a ajudou a compor uma expressão distante e um sorriso torto e gélido. Ajudou a fingir que enfrentava à reunião tal como fazia Magny. Como uma negociação, havia dito o conde, e ela, ao fim e ao cabo, era uma mulher de negócios. Por isso as saudações de rigor foram educadas, e as respectivas reverências, as

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que a ocasião requeria. Cordier e Magny estavam decididos a atuar como homens do mundo, e ela, como mulher do mundo, podia atuar muitíssimo melhor que a maioria. "Essa é a única coisa que faz! — dissera Cordier — Fingir, se entreter com seus joguinhos e mentir! Poderia dizer que sua profissão requer grande dose de atuação. Como a minha." Sentiu uma pontada. Bom, talvez tivesse parte de razão nisso. Mas... O que importava? O que jamais poderia esquecer era sua própria imagem, vestida com uma regata, enquanto saltava ao canal para salvá-lo, como a parva romântica maior do planeta. "Não seja pueril — dissera Magny no dia anterior, enquanto discutiam sobre suas opções. — Deixa de emoções e orgulho, e começa a usar a cabeça." Não era uma menina. Suportou piores traições: o abandono de seu pai precisamente quando mais o necessitava e a crueldade de seu marido, que ninguém a ajudou a aguentar, nem sequer seus amigos. Certamente podia suportar esse pequeno desengano... com a cabeça bem alta. Manteve a cabeça bem alta e atuou como uma anfitriã consumada, um papel que sempre interpretou à perfeição e do qual tanto desfrutou, tanto em sua casa como no transcurso de suas viagens. Serviu o chá, insistiu para os cavalheiros provarem as deliciosas massas que a cozinheira de Magny preparou e, enquanto isso, contribuiu com uma conversa inútil. Falou de livros, poesia, peças de teatro e ópera, tudo isso intercalado com o tema de conversa mais interessante: os mexericos sobre os conhecidos. Ao final, quando esgotaram todos os temas habituais, Magny disse: — Monsieur Cordier, sabe que meu propósito ao convidá-lo aqui não foi puramente social. — Estou seguro de que se a senhora Bonnard tiver um propósito — disse, — é o de me arrancar o coração, talvez com a aterradora faca que tem perto, para jogálo às pombas da praça de São Marcos. Ela esboçou um sorriso doce. — Que ideia maravilhosa. — Possivelmente depois — replicou Magny, — mas neste momento Francesca está de acordo em que é mais útil vivo que morto. Asseguro que me custou imenso trabalho que adotasse uma atitude agradável. Mas chegamos a um acordo, não é verdade, ma chérie? — Mais oui, monsieur — respondeu ela com atitude recatada.

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Cordier franziu o cenho e seus olhos começaram a jogar faíscas. — É evidente — prosseguiu Magny — que enquanto Francesca tenha em sua posse esses artigos, não estará a salvo. Estar a salvo é mais importante que vingar velhas feridas. Não tem simpatia a seus compatriotas, pois nenhum a defendeu quando mais necessitava. Não lhe importa o que possa acontecer com seu cidevant 13 marido. Quem diz a verdade e quem mente? O que importa isso? Mas como você não tentou matá-la, aconselhei que lhe entregue esses artigos. Depois poderá dar aos bons ou aos maus, como mais quiser. A única coisa que pedimos em troca é que agarre esses irritantes artigos e saia de Veneza e também de nossas vidas. Depois de todas as dificuldades, das complicações, dos obstáculos e das atribulações, aquilo era muito simples, pensou James. Entregariam as cartas e ele só teria que fazer o que quis fazer desde o começo: voltar para a Inglaterra. Tinha uma missão a cumprir, cumpriria e acabaria com essa mulher. — Entendo perfeitamente — disse. — Me alegra saber que conseguiu convencer à senhora Bonnard para... Deteve-se para olhá-la, olhar esses absurdos babados que o faziam pensar em anáguas e lençóis enrugados. Imaginou-a saltando pelo balcão ao canal. Recordou-a agarrada ao poste... criando uma distração. Era uma distração, sim. Distraía-o de seus planos, de seu dever, de sua razão. — As condições... — interrompeu-se. "Não seja imbecil, Jemmy" recriminou-se. — As condições... — repetiu, — não posso aceitar as condições. — Que condições? — perguntou Magny. — O que pode ser mais simples do que o proposto? Não pedimos dinheiro, até sabendo de que nada o impede de vender as cartas a essa tal Fazi... ou diretamente a Elphick. — Não penso sair de suas vidas — afirmou. — Farei o que devo fazer porque é meu dever. Mas uma vez feito, voltarei para Francesca. Viu que ela ficou muito quieta. Se não fosse pelo movimento dos muitos babados que levava sobre os seios, ninguém diria que estava respirando. James olhou Magny. — Já sabe que tudo vale no amor e na guerra, monsieur, assim o advirto a partir deste momento: não vou deixar que esta mulher me use e depois me deixe sem mais. Talvez você a tenha agora, mas a recuperarei, custe o... — Por favor! — Magny levantou uma mão. — Já basta. Vai me embrulhar o 13

cidevant: Algo como ex-marido.

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estômago. — A mim tanto faz — interpôs James. — Não sou um francês prático. Sou inglês e italiano, e... — E também é cego — interrompeu o conde. — Não compreende que sempre a terei? — Nem sempre — contradisse. — Sempre! — exclamou Magny. — Toujours14. — Sempre — atravessou Francesca, e esboçou esse lento e perverso sorriso tão dela. — É minha filha — confessou Magny.

Capítulo 15

Era perfeita; assim como a perfeição, insípida neste pérfido mundo que habitamos, onde nossos primeiros pais não aprenderam a se beijar até que os exilaram daquele frondoso primeiro lar em que reinava a paz, a inocência e a sorte (me pergunto como passavam as horas do dia). LORDE BYRON Dom Juan, Canto I James estava seguro de que seu rosto era um poema. Porque o de Francesca era, certamente. Estava tão surpresa como ele. Entretanto, enquanto ele, como um idiota, olhava repetidamente de um a outro em busca de alguma semelhança, ela começou a empalidecer até que não aguentou mais e se levantou de um salto. Sem deixar de olhá-los, ele fez o mesmo, como era apropriado. Podia ser muitas coisas, mas ninguém podia negar que fosse um cavalheiro por nascimento e por educação. Francesca fulminou Magny com seus olhos verdes. — Ficou louco? Quando veio, deixei muito claro... — Não vai me impor nenhuma condição — a interrompeu monsieur. Ou sir Michael... ou quem quer que fosse. Francesca ergueu as mãos. 14

Sempre em francês

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— Isto é incrível! Toda Veneza descobrirá e depois... depois... — Aspetti — os interrompeu James, erguendo uma mão. — Espera. Por favor. Você disse "filha"? — É insuportável! Desaparece quando necessito, e quando não necessito, apresenta-se de repente e tenta conduzir minha vida. — Sua vida é une merde — replicou Magny. O comentário fez que James desse um coice ao lembrar que dissera o mesmo, mas usando a palavra italiana. — Não é! — esses olhos verdes fulminaram ambos. — Por que não entendem nenhum dos dois? Escolhi esta vida. Tive amantes, sim, e, salvo por uma exceção... — interrompeu-se e olhou James com o cenho franzido. — Salvo por uma exceção, todos pagaram esplendidamente pelo privilégio. Entretanto, sempre, sempre! sou eu quem escolhe. Eu! — levou uma mão ao peito com o punho fechado. — Nunca, nenhuma única vez, fiz algo com um homem contra meus desejos, salvo durante meu casamento. Minhas experiências carnais não se diferenciam tanto das suas. — Enfim, isso espero — atravessou Magny. — Ao fim e ao cabo... — Mas como decidi não viver como uma freira — o interrompeu, — a você parece que minha vida é uma merda, verdade? Pois não é. Fui feliz. E livre. O único defeito que tem minha vida são vocês. Vocês dois. Por mim podem ir ao inferno — e se pôs a andar para a porta. — Um momento — disse James. — Por favor, espera. Francesca se voltou com brutalidade para lhe lançar um olhar assassino. — O que!? — Isto... e as cartas? Francesca entrecerrou os olhos. — Sinto muito — disse ele. — Era uma grande saída — protestou ela. — Eu sei — admitiu James. — Já te disse que sinto muito ter estragado. Em lugar de retornar à mesa de chá, Francesca se dirigiu feito uma fúria para o sofá próximo à lareira e se deixou cair sem mais. — Sua mãe também era uma mulher temperamental — a desculpou Magny. Não, nada de Magny. Saunders. Claro que era inevitável que continuasse pensando nele como se fosse francês, e conde para piorar as coisas. Talvez porque falasse com um acento francês muito natural. — Minha mãe, como não... — soltou Francesca. — É você quem sempre está

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subindo pelas paredes por qualquer bobagem. — Minha filha é uma cortesã — disse Magny Saunders. — Isso não é o que se diz bobagem. — Ao senhor Cordier não interessam nossas desavenças familiares — lhe recordou. — Ah, não — contradisse James. — Me interessam muitíssimo. — Pois a mim não — afirmou ela. — Estou até o coque delas. É muito aborrecido que a tratem como uma menina. Seu pai suspirou. — Se nós pais pudéssemos, nossas filhas permaneceriam intocadas para sempre. As encerraríamos num convento se nos deixassem. Mas não nos deixam, porque o mundo chegaria ao seu fim. Ou melhor, não, porque os libertinos se lançariam aos conventos à vontade. — E estou segura de que as freiras dão graças a Deus de todo coração por isso — ela comentou, e soltou essa risada tão ardente e irresistível. Foi consciente de que algo se derretia em seu interior, e soube sem dúvida que seu semblante se abrandou até mostrar uma expressão de puro arroubo, mas não pôde fazer nada para evitar. — Você é má — disse James. — Sim — ela reconheceu. — Me pergunto como me tem dessa forma. — Você tem uma queda por mim — insistiu Francesca. — Já te disse isso várias vezes. — Acredito que tem razão. — Não me importa — replicou ela, minimizando suas palavras com um gesto de mão. — É problema seu. Tenho meus próprios problemas, que são pôr fim a esta farsa e impedir que continuem tentando me matar. — É obvio — concordou ele, assentindo com a cabeça. — Mas sinto certa curiosidade por você... mmm... por monsieur — cravou o olhar no acuado pai. — O título. Ninguém pôs em dúvida que o assumisse? Não teve dificuldades com os passaportes? James nunca tinha dificuldades com suas falsas identidades porque seus supervisores se encarregavam de que não acontecesse. Esse homem, entretanto, estava supostamente morto. Em vida o buscavam por fraude. Por uma fraude assombrosa. — Se tivesse tido, não estaria aqui me dando na lata — acrescentou a amorosa filha.

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Saunders Magny lançou um olhar furioso. Que ela devolveu. Naquele momento percebeu a semelhança entre eles. Não era tanto no aspecto físico, mas nos gestos. A semelhança aumentava no porte e em suas expressões. O suposto conde se aproximou da janela e se deteve de costas à luz do entardecer com as mãos às costas. — Minha família materna era francesa — disse. — Um de meus primos detém o título. Somos muito parecidos. Quando éramos pequenos, tentávamos enganar as pessoas, e às vezes conseguíamos. Fomos grandes amigos. Assim quando meus problemas econômicos começaram, parti para França para pedir ajuda. Justo na época em que Napoleão escapou de Elba. James recordava perfeitamente aquela época, sobretudo a carnificina em Waterloo e que acabou de uma vez por todas com as tentativas de Napoleão por reclamar seu império. — Ajudei meu primo em seu projeto de derrotar o corso — prosseguiu Saunders Magny. — Mas não era mais que um simples mensageiro, nada tão sofisticado como o que faz você. Entretanto, meu primo... — interrompeu-se e meneou a cabeça. — Devo ser discreto. Limitarei a dizer que lhe conveio me entregar sua identidade enquanto partia para encarregar-se de outros assuntos. — Pode imaginar a vontade que tenho de que seu primo acabe com esses assuntos — atravessou Francesca, olhando seu pai com uma expressão estranha. Foi apenas um instante, nem mesmo suficiente para estar seguro, mas pareceu que em seus olhos se mesclava o afeto com a exasperação. Entretanto, a emoção desapareceu quando o olhou. — Mas voltando para o que nos ocupa, Cordier... quer saber o que fiz com as cartas? — Sim, é obvio. Sei que não estão em sua casa. Ela sorriu. Não era o sorriso sedutor que levava os homens à ruína. Era um sorriso genuíno e talvez triunfal. — Che io si dannato — disse ele. — Que um raio me parta! Estão ali. Que esperta é, condenada bruxa. — Quando te disser, arrancará os cabelos enquanto se pergunta: "Como pude ser tão tolo?" — ela assegurou. — Não será a primeira vez — confessou. Pensou em tudo de estúpido que fez desde que a conheceu. Em todos os enganos que cometeu. No dia anterior cometeu o último, ao não confiar nela. Deveria ter enfrentado à situação de cara, como um homem, em lugar de atuar como um covarde e adiar o inevitável.

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"Tive amantes, sim, e salvo por uma exceção, todos pagaram esplendidamente pelo privilégio", dissera ela. Certamente era um privilégio ser seu amante. E ele foi o mais privilegiado de todos porque Francesca lhe abriu seu coração. Nesse momento compreendeu que se quisesse voltar a conquistá-la, teria que pagar por esse privilégio. — Não seria a primeira vez que me comportei como um imbecil contigo — afirmou. — Não posso estar mais de acordo — ela admitiu. — Não sabe como estou tentada em deixá-lo quebrar a cabeça tentando adivinhar onde estão, até que fique louco pensando. Mas isso nos levaria uma eternidade e estou desejando seguir com minha vida. "Sem você", queria dizer. "Não sem mim — concluiu ele para seus botões. — Não se puder evitar." — Sim, quanto antes acabe com isto, melhor — disse Saunders-Magny. "Pensa — se disse. — Pensa rápido." — É complicado, como já disse — afirmou ela. — E não penso dizer isso a você em voz alta do outro lado da sala — fez um gesto com um dedo para que se aproximasse. — Veem, idiota, e direi em seu ouvido. Começou a caminhar para ela. Mas se deteve, com o cenho franzido. Para pensar. E seguiu pensando. — Cordier, é um pouco tarde para se fazer de difícil — recordou Francesca. — Estou pensando — disse. — Não é necessário que quebre a cabeça — aconselhou ela. — Tenho quebrado bastante a minha, caro mio. Tudo que você tem a fazer... — Não me diga isso — a interrompeu. — Não me diga isso, por favor. Francesca queria estrangulá-lo. Estava desejando atraí-lo ao sofá com suas más artes para torturá-lo enquanto sussurrava em seu ouvido e o excitava. Desejava com todas suas forças castigá-lo por ter conseguido que o amasse. — Esta é a gota que transborda o copo — disse Francesca ao se pôr em pé e andar. Ouviu seus passos atrás dela. — Va vial — exclamou sem virar a cabeça. — Vete. Vai all'inferno! — Lá é onde minha mãe diz que vou acabar — concordou ele com voz de dom Carlos. — Mas tudo no devido tempo, minha preciosa. Não para agora, espero. Peço que não me envie antes da hora para esse lugar de tormento onde os diabinhos me espetarão no traseiro com tridentes. Porque, enfim, antes tenho

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coisas importantes a fazer — disse quando a alcançou. — Tenho um plano magnífico. — Não me importo — disse ela. — Pensa um pouco — aconselhou com a voz de Cordier, esse inglês irritante e presunçoso. — Já pensei, e cheguei a conclusão de que o mais sensato é me manter afastada de você — ela assegurou. — Quer estar a salvo. Teu p... — interrompeu-se para examinar a porta em busca de algum criado curioso. — Magny disse que o importante é que não corra perigo. Não estará a salvo enquanto essa mulher esteja solta — concluiu em voz baixa. — Não tente me assustar — protestou ao notar que seu coração acelerava. — Estarei segura assim que você lhe entregue os... artigos. — Não vou dar nada àquela mulher. Não estou de seu lado. E não diga que não é importante de que lado esteja ou que não se importa. — Não direi — ela assegurou. — Mas é o que penso. — Sim, importa — insistiu ele. — Francesca, por favor, me escute. Não queria escutar. Era muito persuasivo, e o desejo que sentia por ele muito intenso. Por culpa dele agiu contra o bom senso em mais de uma ocasião e quebrou as regras que tanto tempo e tantas lágrimas levou em aprender. Ela percebeu que o grande arco de mármore que dava acesso à escada estava a pouca distância. Poderia correr até o térreo, sair ao pátio e desaparecer rapidamente através do labirinto formado pelos becos e ruelas da cidade... onde sem dúvida acabaria perdendo-se e, dada a sorte que tinha, nas mãos de algum outro grupo de malfeitores. A outra direção, para o canal, era provavelmente a mais segura, mas teria que esperar até que preparassem uma gôndola. Adeus a sua saída grandiosa. Adeus as suas possibilidades de fuga. Deteve-se no arco para olhar esse rosto bonito e enganoso. — Acredita que não entendo, mas sim entendo — disse James. — Está zangada com a Inglaterra. A instituição que concede os divórcios é o Parlamento e todos esses homens, os homens que fazem as leis do país, trataram-na como se fosse a prostituta da Babilônia. Destruíram seu bom nome e sua vida. Por que iria querer salvar esse mesmo governo que te fez tão mal? Por que deter Elphick? Por que não deixar que tenham o líder que merecem? Francesca ergueu o olhar para os baixos-relevos que adornavam o arco. Netuno, em meio a um mar enfurecido pela tempestade, rodeado por criaturas

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estranhas. Ela deixou atrás um mar enfurecido quando abandonou a Inglaterra, ou nisso acreditou. Porque a tempestade acabou por encontrá-la. — Poderia acrescentar algo mais — disse ela, — mas fez um bom resumo. — De toda forma, sabe que se importa — insistiu ele. — Sempre soube. Por isso guardou as... os artigos todo esse tempo. Se não se importasse, teria destruído há muito tempo. Mas guardou embora soubesse da possibilidade que algum dia poderia se converter em um perigo para você. — Cheguei à conclusão de que são muito perigosos — afirmou. — Decidi que não vale a pena correr o risco nem sofrer tantos inconvenientes. Por que arriscar o pescoço pela Inglaterra, por esse governo e esses homens tão desprezíveis? — Eram maus tempos aqueles — recordou. — Tal como seu p... Tal como Magny observou, Napoleão havia escapado de Elba. As classes altas transpiravam terror e ódio. Temiam que recuperasse o poder e os eliminasse com a ajuda dos elementos desestabilizadores que existia em nosso próprio país. Não se esqueça que a época do Terror estava, e ainda está muito presente na memória de muita gente. Daí para que os membros do Parlamento imaginassem a cabeça de suas esposas e filhas rolando pelo cadafalso era só um passo. — Mas eu não estava fomentando a revolução! Só tive uma aventura! Uma! Meu marido teve centenas. Tinha uma amante antes que nos casássemos e continuou mantendo-a depois. Ainda continua com ela... E ninguém o critica por isso! — Não estou dizendo que tentava derrocar a Coroa. Estou dizendo que esses homens estavam em uma situação mental que favorecia as aspirações de Elphick. Um grande escândalo. Uma mulher depravada... Conseguiu concentrar o medo e o ódio coletivo em sua pessoa. Foi um objetivo tangível e real. Porque contra você podiam lutar, enquanto que Napoleão e o inquieto clima político eram farinha de outro saco. Você estava à mão. Foi a distração que Elphick necessitava, não compreende? Se todos estavam focados em você, ninguém repararia no que ele fazia às costas dos outros. Reconheço que se comportaram mal, sim. Além disso, não foi nem a primeira vez nem será a última que farão. Mas sei que cometeram um engano e que, se lhes der oportunidade, emendarão. Embora Francesca não quisesse compreender os motivos que levaram esses homens a humilhá-la e degradá-la, também era certo que não levou em conta o contexto.

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Isso não diminuía absolutamente o ódio que sentia por eles, mas, sim a ajudava a entender em parte o comportamento que demonstraram. — Se querem emendar o engano, não penso detê-los — declarou. — E se você for quem diz ser, se for um dos bons... — Nada disso de se for! — interrompeu-a. — Sou e quero que tenha isso muito claro e sem o menor indício de dúvida. Não dentro de seis meses, nem de doze ou do tempo que nos levará esclarecer as coisas, mas sim agora mesmo. E quero demonstrar isso a você — guardou silêncio um momento. — E acredito que já sei como. Francesca ergueu o olhar até Netuno antes de desviá-lo para Minerva, a deusa da sabedoria, que defendia outro portal. Uma mulher era capaz de comportar-se com sabedoria ao que se refere aos homens? Certamente não, porque se fosse assim, a espécie se extinguiria. — É exasperante — disse. — Quando por fim digo, depois de todo esse tempo, que me desfarei dessas malditas cartas e desejo entregá-las, vem você e me diz que não as quer. — Sim quero, mas não vai entregá-las hoje — ele particularizou. — Até que consiga resolver alguns problemas, estão mais seguras onde estão. — E que supõe que devo fazer? Esperar de braços cruzados enquanto você põe em ação seu ardiloso plano? Esperar sem saber como nem quando essa tal Fazi atacará de novo? — Ela precisa reagrupar — recordou. — Precisa de reforços. Isso nos dá ao menos uma semana. Mas te prometo que não a farei esperar tanto. Um dia ou dois no máximo. Que remédio restava? perguntou-se ela. — Muito bem. Resolve os problemas. Eu vou para casa. Estou até o pescoço de me... do Magny. E se de verdade é inteligente, se manterá afastado de mim até que tenha algo importante com o que me incomodar. No dia seguinte, no Palácio Ducal, James teve que enfrentar o conde de Goetz que seguia suspeitando de um jogo sujo. — Interrogamos ao tal Piero em inúmeras ocasiões — disse o conde. — Como é natural, me passou pela cabeça a possibilidade de que tenha mentido, de que tenha mentido inclusive a você, a respeito de seu verdadeiro nome. Aparentemente, provém do sul. Esse dialeto tão abominável... Conforme me informaram, a tal Fazi também é do sul. Que os dois apareçam ao mesmo tempo em Veneza não pode ser uma coincidência. Entretanto, o detido insiste em afirmar que não a conhece. Aferra-se à

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mesma versão dos fatos como um cão a um osso. Sei que está mentindo, mas o que posso fazer? Pendurá-lo pelos polegares? Se fizermos, alguém nos acusará de brutalidade e começarão as manifestações nas praças. Antes de nos darmos conta, teremos um levantamento. Essa gente é muito obstinada, e, além disso, um temperamento volátil. — Não acredito que nosso detido seja obstinado — assinalou James, — mas penso que está apavorado. Goetz o olhou em silêncio por instantes. — E que diferença faz isso para nós? O caso é que não nos diz nada. E se fizesse, não entenderiam nem meia palavra... — Estava me perguntando se me deixaria tentar — sugeriu. — Não — recusou o conde. James voltou para o Palácio Ducal duas horas mais tarde, mas nessa ocasião acompanhado pelo príncipe Lurenze. Embora o conde de Goetz o tenha olhado com cara de poucos amigos, recebeu o príncipe com extrema cordialidade, ansioso por saber o que podia fazer por Sua Alteza. Pertencer à realeza tinha certas vantagens. — Por favor, senhor conde — disse o príncipe da Gilenia. — Me explique por que não permite ao senhor Cordier tentar conseguir informações que possam evitar que façam mal à senhora Bonnard quando você fracassou nesse aspecto. O conde começou a enumerar as normas sobre os prisioneiros e os visitantes estrangeiros. Lurenze ergueu uma mão. — Faça o favor de me explicar a norma que permite deixar que a vida de uma dama corra perigo em lugar de fazer todo o possível para protegê-la e capturar aos criminosos perigosos. O olhar do conde de Goetz se fixou sobre sua mesa. Apertava os dentes com força. Não era difícil adivinhar o que estava pensando. Diziam que o norte da Itália estava sob domínio austríaco, quando na realidade os governantes eram austro-húngaros. E Goetz sabia tão bem como ele que certa dama de bom berço e de procedência húngara aspirava converter-se na consorte do príncipe Lurenze. O governador de Veneza não podia cometer a estupidez de ofender ao herdeiro do trono da Gilenia, e muito menos por um assunto tão corriqueiro como era conceder uns minutos a sós com um prisioneiro há um dos amigos ingleses de

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Sua Alteza. Depois de uma breve reflexão, Goetz chegou à conclusão de que não estava seguro de ter interpretado a norma corretamente. — Pode tentar, Cordier — claudicou, — mas deve me dar sua palavra de honra que me contará tudo o que ele disser. — É obvio — concordou. Com honra ou sem honra, já mentiu antes. Claro que não tinha por que mentir. Afinal, o conde não especificou o que teria que dizer. James conhecia o Palácio Ducal graças a uma visita anterior. Naquela ocasião, o governador o olhava com melhores olhos e o acompanhou em uma visita pelo palácio. Entretanto, não chegaram ao calabouço. Durante sua última visita, Goetz fez tirarem Piero da prisão para submetê-lo ao interrogatório. Nesta ocasião acreditou oportuno visitar o prisioneiro em sua cela. Lurenze insistiu em acompanhá-lo, no caso de algum suposto impedimento, observou. — Desagrada-me o comportamento que o governador demonstrou — disse o príncipe uma vez que deixaram para trás um irritado conde de Goetz. — Não parece muito amistoso. Se o acompanhar, não inventará nenhuma norma pela qual possam prender você também. Ah, por fim alguém confiava nele, pensou. Irônico que fosse um rival. Ou talvez não fosse. Não tanto como no início, ao menos. Depois de revirar toda Veneza em busca do príncipe, o encontrou por fim a caminho — ou no canal, para ser mais exato — ao palazzo de Magny. Giulietta o acompanhava na gôndola. O casal se comportou como um par de pombinhos, embora Giulietta insistisse em se referir a Sua Alteza com uns apelidos mais que ridículos: "Sua excelsíssima", "Sua Luminescência" ou "Sua Majestuosidade", e o príncipe suportava estoicamente. Nesse momento, enquanto seguiam ao guarda que os guiava até a cela de Piero, o belo rosto do príncipe exibia uma expressão solene. O caminho do palácio ao calabouço não foi projetado para levantar o ânimo. Enfiaram-se numa comprida, estreita e desnivelada passagem que os levou até a Ponte dos Suspiros. Embora do exterior a ponte fosse bonita, por dentro era um lugar lúgubre que dava sentido ao nome. O interior estava dividido em dois corredores iluminados por duas janelas gradeadas. O guarda, que levava uma vela, conduziu-os por uma série de passagens estreitas e de escadas até chegar à zona mais profunda de todas: aos calabouços, conhecidos também como os pozzi. Os

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poços. O guarda, que claramente estava acostumado ao papel de guia — e que certamente fazia visitas guiadas para turistas — mostrou-se muito falador durante o percurso. Disse que havia dezoito celas construídas em fileiras. Todas elas mediam três metros de comprimento por dois de largura. O teto era abobadado e com pequena abertura frontal. A fileira inferior estava sobre o nível da água do canal. Em seguida apontou para uma série de buracos escavados nas paredes de pedra e disse que sua função era segurar as barras onde se penduravam ou onde se enforcavam os prisioneiros sentenciados à morte. Outros buracos estavam enegrecidos pela fumaça, já que os carrascos penduravam as lanternas para verem o que estavam fazendo. No chão também havia buracos, e explicou sua função, encantado. Segundo o homem, quando se esquartejava os prisioneiros, o sangue vertia para o canal através de tais buracos. Apontou uma porta, pela qual jogavam os cadáveres aos barcos para se desfazerem deles. — Me disseram que esta era uma prisão moderna — disse Lurenze. — Prigioni Nuove, se chama. A Prisão Nova. — Era moderna há duzentos anos, quando se construiu — observou ele. — Isto é monstruoso — sentenciou o príncipe. — Vi piores! — de fato, esteve preso em lugares piores. Por fim chegaram à cela onde deixaram Piero para que refletisse sobre seus pecados e sobre a conveniência de contar aos seus captores o que queriam saber. Estava às escuras. O fedor que surgiu da cela quando o guarda abriu a porta era quase insuportável. Insuportável para Lurenze, que cambaleou para trás. — Isto é abominável — disse. — Não é necessário que entre — lembrou James. — Estaremos muito apertados aí dentro. — Vou entrar — insistiu o príncipe. — Só preciso um momento — endireitou os ombros. — Pronto. Estou preparado. Sim, era um príncipe, e talvez fosse muito mimado, mas precisava admitir que era de boa cepa. Claro que seria melhor não demorar muito, concluiu. Por mais valente que fosse não estava acostumado a essas coisas e era muito possível que acabasse desacordado ou jogando o conteúdo de seu estômago.

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Essa não era a melhor forma de inspirar respeito e temor no prisioneiro. — Muito bem, Alteza — disse em voz baixa e em inglês, para que nem o guarda nem o prisioneiro entendessem. — Em primeiro lugar, fique perto da porta. Assim poderá respirar o ar do corredor, o pouco que há, através do respiradouro. Em segundo lugar, deve me dar sua palavra que não falará a menos que eu lhe dirija a palavra e que, se chegar a esse caso, me seguirá na corrente. É muito importante, Alteza. Questão de vida ou morte. — Sim, é obvio — concordou Lurenze. Depois de obter a promessa, James disse ao guarda que estavam prontos, e o homem acendeu a lanterna que iluminava o corredor além da vela. Entrou na cela com a vela na mão, seguido por Lurenze. E a porta se fechou com um golpe metálico a suas costas. Piero estava de mau humor. A semana na cela o deixou feito uma pelanca humana. Nem sequer a aparição de Cordier o fez reagir; só fez uma careta de asco. Estava encolhido em um canto, olhando os pés descalços e incrivelmente sujos. Lurenze ficou junto à porta, tal qual o combinado. Entretanto, não sabia o quanto o príncipe aguentaria. O fedor era insuportável. "Não há tempo a perder", disse-se. De modo que foi direto ao cerne. Recorreu às palavras e às frases simples. — Procuramos Marta Fazi. Embora o dialeto de Piero fosse incompreensível, o normal era que entendesse a linguagem culta... ou ao menos o suficiente. — Nunca ouvi falar dela — afirmou. — Que pena — lamentou James, — porque tenho algo que a dama quer. Algo que estava com a dama inglesa. Não são joias. São papéis. Piero não disse nada, mas ficou tenso. — Sei que Marta Fazi quer esses papéis — prosseguiu James. — Posso vender a ela, ou posso vender ao outro bando. — A mim tanto faz — disse Piero. — Acredito que não — o contradisse. — Se não conseguir encontrá-la, venderei a outro. E quando se inteire de que podia ajudá-la a conseguir esses papéis e se negou... Viu-o revolver-se, inquieto. — Se se inteira de que falhou com ela, se desgostará muito. Piero seguiu calado. — Não sei se estará a salvo dela em algum lugar, nem sequer aqui. Embora não obteve resposta, algo mudou. O medo era evidente. De modo que

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insistiu. — Enfim. Já disse que não sabe nada. É possível que não a conheça. Nesse caso, é injusto que siga preso aqui embaixo. O melhor será que arrume tudo para que o liberem. James ouviu o ofego do príncipe e virou a cabeça para olhá-lo, assim como fez Piero. Entretanto, o príncipe guardou silêncio, fiel a sua palavra. Ou talvez não quisesse nem abrir a boca por temer vomitar. Os olhos de Piero se cravaram de novo nele. A expressão mal-humorada desaparecera e o medo era patente em seu sujo rosto. — Não me deixarão sair — disse. — É obvio que sim — James assegurou alegremente. — Não se preocupe. Direi que depois de te jogar uma boa olhada percebi que cometi um engano e de que não é o homem que atacou à dama inglesa. — Não disse nada. Não sei nada. Saltava à vista que Marta Fazi o aterrava. A tal ponto que preferia calar o que sabia. — Isto é frustrante — disse James. — Estou cansado deste buraco pestilento e também de você. Tentei ser razoável contigo, mas se nega a colaborar. Assim que isto é o que vou fazer: farei correr o rumor de que traiu Marta Fazi e de que, como recompensa, o porão em liberdade — olhou de novo para Lurenze. Era difícil distingui-lo com precisão à luz da vela, mas parecia muito pálido. — Alteza — disse. — Estaria disposto a usar sua influência para obter a libertação deste homem? — Certamente — respondeu o príncipe, tentando conter a ânsia. — Não disse nada — repetiu Piero. — Não sei nada — entretanto, sua voz já não parecia tão mal-humorada e sim um pouco mais aguda. — Os rumores se estendem com grande rapidez em Veneza — prosseguiu James. — Se Marta Fazi segue aqui, amanhã a esta hora já saberá, ou até mesmo antes. Suponho que poderemos te libertar dentro de dois ou três dias. É possível que possa escapar antes que te encontre. Ou talvez esteja te esperando depois da esquina. Ou talvez se encontre com um grupo de amigos dispostos a te convidar a tomar algo. Embora possivelmente não tenham nada de amistoso. Possivelmente o levem a algum lugar e não precisamente para te convidar a tomar um gole, verdade, meu amigo? — É você um demônio — respondeu Piero. — Mas ela... ela também. — Só quero que leve uma mensagem. O silêncio foi eterno enquanto Piero considerava a ideia.

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— É melhor que eu faça isso — disse por fim. — Mas que esse vá antes que me vomite em cima.

Capítulo 16

Ai! Mas, quem pode amar e ser sensato ao mesmo tempo? LORDE BYRON Dom Juan, Canto I Em resposta à mensagem de James — pouco depois de seu encontro com Piero — a senhora Bonnard concordou se encontrar com ele na manhã seguinte, sextafeira, às dez. A primeira coisa que Cordier notou ao entrar no salão infestado de querubins foi sua palidez. Não parecia ter dormido o suficiente. Ou talvez a palidez fosse só um efeito do vestido. Era branco neve, com decote alto e adornado com um singelo festão de cor verde claro. Não usava joias. Tinha uma espécie de lenço ao redor do cabelo. Outras mulheres usavam toucas com os vestidos matinais, mas a ideia de Francesca Bonnard com touca — por mais adornada de rendas e fitas que estivesse — era ridícula. Claro que o vestido também parecia ridículo. Seria perfeito para uma inocente jovenzinha. O contraste com a mulher que o vestia era incrível; esses olhos rasgados, a maliciosa promessa de sua boca, suas pecaminosas curvas. O efeito era surpreendente... e, também incitante. — Pensei que não se levantasse até o meio-dia — disse ele sem se incomodar em empregar as saudações de rigor. — Bem, é o que costumo fazer — disse ela. — Mas estou ansiosa por terminar com isso. — Querida... — atravessou a sala e segurou suas mãos. — Sou uma besta. Deveria ter mandado ontem uma mensagem e comunicar ao menos minhas intenções. Mas não estou acostumado A... A... — A informar uma mulher de seu paradeiro? — quando a viu sorrir, teve a impressão de que o sorriso era sincero. Obteria de verdade seu perdão? — Não desde quando minha mãe queria saber o que tramava — respondeu. — Com oito anos?

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— Com dezoito — respondeu ele. — Com vinte e oito. Cada vez que me vê, espera que lhe dê um relatório completo de minhas atividades. Ela inclinou a cabeça e seguiu olhando-o. — Estou segura de que consegue. — Minha mãe me dá medo — confessou. — Todas as mães dão. — Você é horrível — disse ela. — Está decidido a me enrolar embora mal possa manter os olhos abertos e esteja furiosa por ter que fazê-lo. É uma hora desumana para estar levantada! — Poderíamos voltar para a cama — sugeriu. — Segue sonhando — replicou ela. — O encanto por si só não te ajudará a chegar ao dormitório — soltou as mãos e se afastou. Nesse preciso momento, enquanto a observava se afastar, percebeu por fim o que existia de estranho na sala. Embora fosse bastante evidente, na verdade. Havia uma escada em um canto, justamente em frente das janelas. Não a viu porque só tinha olhos para ela quando entrou. Viu que pegou um pequeno objeto do console que havia junto à escada. Aproximou-se dela e olhou o que tinha na mão. — Um abridor de cartas? — Identificou corretamente — respondeu ela. James olhou ao abridor, olhou a escada, e depois levantou a vista até o teto infestado de querubins. Quando voltou a olhá-la, ela o observava com um brilho zombador em seus olhos verdes. — Já procurei lá em cima — assegurou. — Pensei que estivessem escondidas nos meninos. E não foi nada fácil revistá-los. Há muitas figuras de estuque, não só aqui, mas por toda a casa. Acreditei que talvez tivesse escondido as cartas entre as pernas de uma das mulheres de peitos grandes do canto. Isso teria divertido você. Mas não as encontrei e em nenhum outro lugar. — Sei — disse ela. — Sabia que olharia aí. E sabia que não as encontraria. Mas esteve muito perto. Veem, segure a escada. — Como segurar a escada? Ficou louca? Não subirá aí. Francesca se virou e olhou com a expressão que costumavam usar as mulheres quando estavam muito tentadas a dar um bofetão em um homem que merecia. — Por uma vez, só por uma vez — replicou ela com exagerada paciência, — gostaria de fazer algo sem ter que discutir contigo. — Faz o que tem vontade constantemente. Faz antes mesmo que alguém possa sequer discutir contigo. Como pular no canal, por exemplo.

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— Não vou pular da escada — assinalou Francesca. — Só seria divertido se caísse em cima de você e te partisse a crisma, mas suspeito que tenha a cabeça muito dura. Vai segurar a escada ou não? — Quem a segurou na primeira vez? — Ninguém. A última coisa que queria era ter testemunhas. Fiz numa noite enquanto os criados estavam em uma comemoração fora. Arrastei algumas das mesas mais pesadas para segurar a escada. Deveria ter feito o mesmo hoje, mas pensei que você gostaria de dar uma olhada por debaixo de minhas saias. O teto era alto, e a escada excessivamente longa. Mesmo assim, era uma mulher muito teimosa, e ele, só um homem. — Bom, bem olharia... Resistiu com valentia a tentação de lamber seus tornozelos quando passaram diante de seus olhos e se contentou olhando a paisagem. Admirou suas panturrilhas o máximo que pôde, embora não o bastante, já que o vestido e as anáguas colavam a suas pernas de um modo muito irritante. Entretanto, assim que Francesca pôs mãos à obra, só teve olhos para ela enquanto introduzia o abridor de cartas em uma das juntas do estuque. Tal como dissera julgou bem; ao menos julgou bem seu senso de humor. Não escondeu o maço de cartas entre as pernas de uma das mulheres de seios grandes que estavam no canto, mas perto delas, exatamente onde as pernas e o traseiro de um querubim se sobressaíam por baixo de uma das molduras que imitavam as dobras de uma cortina. Enquanto lhe caíam na cabeça pedacinhos de estuque, se perguntou por que não pensou nisso: colocar o maço de cartas em uma fenda conveniente e em seguida cobrir tudo com mais gesso. Para que não se notasse só era necessário uma fina camada de estuque e um pouco de habilidade. Um artista, como o que realizou o trabalho original, teria percebido. Mas até um olho treinado como o seu deixou passar. O maço teria o aspecto de outra dobra das cortinas, e ele esteve procurando cartas, quer dizer, papel. — Não se preocupe porque não sofreram nenhum dano — ela o tranquilizou enquanto prosseguia com seu meticuloso trabalho. — Tomei precauções. Envolvi-as com um tecido lubrificado de óleo para proteger da umidade do gesso fresco, e em seguida às envolvi com um pano grosseiro, de modo que o gesso grudasse ao tecido. Funcionou. Deu uma forma mais arredondada ao maço, fazendo parecer perfeitamente mais uma dobra da moldura.

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— Li em algum lugar que as grandes cortesãs de Veneza eram incrivelmente cultas e que possuíam muitos talentos. Mas nunca li nada que dissesse que aprenderam a engessar. — Eram loiras, sabia? — perguntou ela. — Acredito que o loiro acobreado era a cor da moda. As que não eram de forma natural costumavam se submeter a um processo de clareamento muito desagradável. — Gosto de seu cabelo tal como é — disse. — Mas essas belezas trabalhavam o gesso? — Talvez — respondeu. — Muitas damas inglesas fazem, certamente. Aprendemos na sala de aula. Interesses artísticos. Como incrustar conchas e outros enfeites semelhantes nas paredes dos quartos infantis, decorar as grutas construídas nas propriedades campestres pelos homens... ou em realidade pelas mulheres. Fazer moldes de gesso das mãos. Máscaras... Outra chuva de pedacinhos caiu ao chão. Viu colocar a mão por trás do traseiro do menino e tirar um pacote redondo. Depois desceu a toda pressa. Os olhos brilhavam e estava ruborizada. James se separou da escada para que ela descesse o último degrau. — Toma — disse Francesca enquanto soltava o abridor de cartas e estendia o pacote. Tinha pequenos pedaços de gesso grudados. Agarrou-o. Contemplou o maço em silêncio. Por fim o tinha nas mãos, depois de todo esse tempo, depois de todos os problemas. Não teria encontrado mesmo que revistasse a casa outra vez. Levantou o olhar para o teto, para o traseiro e as pernas do menino, onde só uns pedaços de gesso indicavam que arrancaram um pedacinho de moldura. Entretanto, quem perceberia? O estuque tinha mais de um século, estava esquartejado em vários lugares, emendado em outros tantos. — A única coisa que me preocupava de verdade era que a casa queimasse — disse ela. — Por isso me assustei tanto na outra noite. James assentiu com a cabeça. — O que? — perguntou ela. — Ficou sem palavras? Ergueu o olhar para encontrar com seus olhos. Viu uma expressão triunfal, risonha... e ao fantasma. — Só a você ocorreria escolher o traseiro de um menino como esconderijo. É uma mulher má. — Sim — reconheceu. — Sou — se afastou alguns passos e agitou uma mão. — Bem, já pode ir para fazer o que quer que precise fazer.

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Entretanto, James seguiu onde estava, olhando o pacote que tinha nas mãos, e mal a olhou, com esse vestido de jovenzinha inocente que de algum jeito conseguia fazê-la mais exótica e sedutora. Pensou no quanto era inteligente para ganhar o jogo de seu retorcido marido e dos melhores agentes da Coroa. Pensou quanto valente era; beirando a idiotice, porém, valente, o único remédio que restava às vezes. Pensou na vergonha e na miséria que suportou e em sua capacidade para transformar seu infortúnio em seu maior lucro. Pensou em seu próprio estado de ânimo ao chegar a Veneza: estava exausto, em corpo e alma, e enojado até não poder mais. Aquele homem lhe era um desconhecido nesse momento. Graças a ela. Porque se apaixonou, porque estava louco e irremediavelmente apaixonado. O problema era que, se dissesse, não acreditaria, e não poderia culpá-la por isso. De modo que se calou. — O que seja que precise fazer... — repetiu. — Estava me perguntando... gostaria de fazê-lo comigo? Ela o observou um instante. — O que está insinuando? Perdoa se não entendo, mas é que é muito cedo, droga. — Não insinuo nada — afirmou. — Disse que tinha um plano, mas ainda não contei a você. Gostaria de ser minha cúmplice? O rosto de Francesca se animou, tal como fez a primeira vez que falou com ela, quando ele interpretava o papel de dom Carlos e ela começou a falar de Byron. — Cordier, é o primeiro sinal de inteligência que demonstrou esta manhã. — Isso é um sim? Francesca se jogou em seus braços com tanta força que as cartas caíram no chão. Não se importou. Ela obrigou ele a baixar a cabeça e o beijou com paixão. Tampouco se importou. Estreitou-a em seus braços e devolveu o beijo com o mesmo frenesi, enquanto desejava não ter cometido o pior engano de toda sua vida. Essa noite Não era difícil esconder-se em Veneza desde que fosse preparado, soubesse aonde ir e fizesse amigos com facilidade. Por desgraça, esse não era o caso de Piero. Não teria acabado nos pozzi se não tivesse tentado roubar uma gôndola. Não

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sabia que era necessária muita habilidade para guiá-las. Não sabia de como eram possessivos os gondoleiros com suas ridículas embarcações. Marta Fazi poderia ter-lhe dito. Diferente dele, viajara muitíssimo, sobretudo durante a guerra, e já esteve em Veneza. Tinha dinheiro e boas acomodações no bairro onde estava a ponte do Rialto. Quando apareceu em sua porta, recebeu-o como se fosse o filho pródigo. Embora Piero não fosse o tipo mais inteligente do mundo, sabia que a alegria de Marta ao vê-lo não era sincera. Apesar disso, sabia também que necessitava desesperadamente de procurar homens que a ajudassem, porque capturaram todos os que foram atrás da inglesa na noite anterior. A menos que sofresse um de seus arranques de fúria, estaria a salvo de sua faca. Observou-a se sentar a uma mesinha em uma acomodação pequena, mas cômoda. Havia outras duas cadeiras em torno da mesa sobre um tapete. O fogo crepitava na pequena lareira. Sabia que Marta se acostumou a coisas mais luxuosas nos últimos tempos, mas no passado viveu nas ruas. Era capaz de fazer uma toca em qualquer parte. Nesse momento estava bebendo vinho de uma bonita taça. Em outras ocasiões a viu beber diretamente da garrafa. Não ofereceu a ele. Mas tampouco pegou a faca que estava perto. Escutou com paciência sua explicação a respeito dos motivos que levaram o governador a libertá-lo. — É pela dama inglesa — disse Piero. — Tem medo de você. — Por quê? Não me conhece. Nem sequer você é tão tolo para falar de mim com ela ou a qualquer outro. Piero balançou a cabeça. — Eles me falaram de você; um dos estrangeiros, na primeira noite. E o governador também disse seu nome. Mas repeti uma e outra vez que não sabia nada de você. Só esta noite, quando me explicaram o que queriam que fizesse, disse que tentaria te passar a mensagem. Viu que ela olhou a faca, que brilhava à luz do abajur. — Piero, espero que não tenha cometido outra estupidez. — Tentaram me seguir — prosseguiu ele. — Os despistei entre a multidão que havia perto de um teatro. — Não acrescentou que ele mesmo se despistou várias vezes antes e depois disso. — E a multidão não se afastou quando o viram aparecer? — perguntou ela. — Fede como um peixe podre.

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— Perdão pelo cheiro — disse. — Não tive tempo de me lavar. Vim tão rápido como pude. Quando contar o que é, dirá se me equivoquei. Marta guardou silêncio, à espera. — Sei que quer uns papéis da dama inglesa — continuou. — Um dos estrangeiros também sabia dos papéis. Ela assentiu com a cabeça. — Se não soubessem, meu amigo da Inglaterra não teria me pedido que lhes fizesse este favor. — Os dois homens que vieram me ver esta noite não queriam te dar os papéis — ele esclareceu. — Mas a dama inglesa tem medo que a siga aonde quer que vá. Está obrigando seus amigos a fazerem o que ela diz. O príncipe, o dos cachos loiros, é um de seus amigos. — Ah, sim. O vi. Muito bonito. — Esse é o que obrigou a me soltarem. Discutiu com o outro... um moreno e maior. Esse é o irritante. Para me distrair, estive imaginando maneiras de matá-lo. — Pobre Piero! Sei que o tempo corre mais devagar na prisão. Essa mulher teria deixado que apodrecesse ali dentro, ou que o enforcassem ou que lhe cortassem a cabeça com essa máquina infernal, a guilhotina. Mas ele faria o mesmo se ela acabasse nos pozzi. Cada qual precisava se preocupar consigo. — Ao príncipe não importa o que os outros querem. A dama é mais importante, isso é o que diz. Não quer que ela tenha mais problemas. Quer que vá. Diz que é uma irritação. Marta soltou uma gargalhada. — Uma irritação? Certo. Mas não seria tão irritante se meus homens fizessem o que ordeno. Poderíamos ter conseguido esses documentos na primeira noite. Mas não, Bruno e você precisavam brincar com a puta — levantou a taça e o olhou por cima da borda. — Foi culpa do Bruno — assegurou Piero. — Foi ele quem desobedeceu às ordens. — E você foi tão tolo que deixou que o apanhassem — replicou ela. — Veja só, tentar escapar em uma gôndola roubada... Que imbecil rouba uma gôndola? Piero deu de ombros para dizer que não sabia. — Isto é o que acontece quando se usam ferramentas de má qualidade — se queixou ela. — Vim a Veneza com incompetentes, com idiotas. Por quê? Porque meus melhores homens estão presos ou machucados, imprestáveis. Tudo por culpa desse canalha. Piero esperou com paciência enquanto Marta desafogava e soltava a enxurrada

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que já escutou sobre esse cabrón 15 alto e bonito que a seduziu, lhe roubou as esmeraldas e feriu seus melhores homens fazia uns quantos meses em Roma. — Nada me sai bem — continuou dizendo. — Esta cidade tão ridícula tem mais ratos que gente, e ruas impossíveis. Para ir a qualquer lado precisa subir num barco, e escutar os venezianos e seu jargão incompreensível. A última vez que estive aqui disse que não voltaria. Mas... — serviu-se de mais vinho e bebeu. — Enfrentei coisas piores por uma recompensa menor. Mas desta vez... — olhou a ele com o cenho franzido. — O que me oferece para que parta? Essa cadela acredita que basta com um bom suborno? — Os papéis — disse. — Os papéis que quer o seu amigo inglês. — Nada mais? — Dizem que te dará os papéis para que vá. — Não acredito. Cheiro uma armadilha... ou é você? Piero voltou a encolher os ombros. — Não sei. É o que me disseram. Dizem que a dama inglesa sabe que não confiará nela. E por isso diz que você escolhe a hora e o lugar. Assim demonstrará que não é uma armadilha nem nada. Onde disser que vá, tanto faz à hora, ali estará. Mas como tem medo de você, levará um homem para que a proteja. — Que homem? — Quem sabe? Um de seus amantes. O príncipe, certamente. É como um cãozinho mulherengo. Marta Fazi aproximou a garrafa dele. — Vamos, tome um gole enquanto decido. Agarrou um copo e se serviu de uma dose, e logo outra. Após um momento, ela disse: — Já sei o que fazer. É um pouco arriscado. Mas estes assuntos sempre são. — Olhou-o até que deixou o copo sobre a mesa. — Tem ideia do que vale esses papéis, cobertura de burro? — Espero que muito, depois de todos os problemas que nos deram. — Quando meu amigo da Inglaterra tiver esses papéis, nada se interporá em seu caminho. Será como... como um rei. E, me recompensará bem, como fez antes. Mas desta vez pode me converter em aristocrata. Por... como se costuma dizer? — demorou um momento em recordar a expressão. — Ah, sim. Por serviços à Coroa — soltou uma gargalhada. — E as mulheres, como essa dama inglesa, terão que se ajoelhar a minha passagem e me chamar "Excelência". Como me agradará 15

cabrón: corno.

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ver essa cadela inglesa, sua ex-esposa, ajoelhada aos meus pés — preencheu as duas taças. — Acredito que vale a pena deixá-la viver — se deteve. — Mas me anima fazer um cortezinho em seu rosto — agarrou a faca e a olhou absorta no reflexo da luz do candelabro sobre a folha. Piero tomou o vinho de repente. Marta acariciou o dorso da folha com o dedo. — Logo veremos — disse ela. — Logo veremos o que acontece, verdade? — Os dois? — perguntou enquanto jogava uma olhada pela pequena acomodação. — Sim, você e eu — respondeu. — Ela levará um homem. Eu levarei outro: você. E se for uma armadilha e me traiu... — sorriu. — Sou rápida. Rápida com os pés e rápida com a faca. Reza muito, Piero, para não ter cometido outra estupidez. Na noite seguinte O trabalho de Cordier, decidiu Francesca, não era muito agradável. Entre outras coisas porque precisavam esperar muito. Não estava acostumada a esperar. Não estava acostumada a depender de outros, e muito menos do que faria uma turma de ladrões e assassinos. Não gostava. Giulietta e Lurenze jantaram com eles, mas depois o príncipe precisou assistir um evento social inadiável. Embora Giulietta se oferecesse para ficar com eles, Cordier a animou em acompanhar ao príncipe. — Duvido muito que aconteça algo esta noite — dissera a sua amiga. — E sei que os tediosos assuntos diplomáticos serão mais suportáveis para Sua Alteza se você estiver ao seu lado. Depois de assegurar que mandariam chamá-los assim que mudasse a situação, Lurenze e Giulietta se foram. Isso fazia uma hora. Nesse momento estavam no gabinete particular de Francesca. Ela tentava escrever uma carta ao lorde Byron, mas custava muito concentrar-se com Cordier fazendo perguntas, olhando por cima do ombro e respirando em sua nuca. No início ele se reclinou no sofá e ela supôs que, como estava acostumado a esperar, teria um cochilo. Mas assim que a viu escrever, mostrou-se muito interessado no que estava fazendo. Deixou a pluma de lado. — Talvez devesse esperar em sua casa — sugeriu ela. — Se chegar alguma mensagem, posso comunicar a você em questão de minutos. — Como disse ao Lurenze, duvido muito que chegue uma mensagem tão cedo. Certamente Fazi nos terá outro par de dias esperando enquanto prepara sua fuga.

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Enquanto inspeciona toda Veneza em busca do melhor lugar para um encontro. Francesca se virou na cadeira para olhá-lo. — Está seguro de que aceitará? — perguntou. — É claro que sim. Escreve-lhe de forma regular? Olhou de novo a carta e a afastou. Sua mesa estava lotada. — Não tão frequentemente como gostaria — agarrou o tinteiro. — Sinto muito — se desculpou Cordier enquanto se endireitava. — Mas me dedico a espionar. Entre outras coisas. Ele esboçou um sorriso, um sorriso tão pícaro que Francesca esteve a ponto de se levantar, agarrá-lo pelo lenço e beijá-lo até deixá-lo sem sentido. Seria uma maneira estupenda de matar o tempo. E aliviaria a tensão. Não, certamente não faria isso. Para falar a verdade, estava muito nervosa pelo que aconteceria, embora se esforçasse em manter uma fachada tão despreocupada como Cordier. — Supõe-se que você entenda desses assuntos melhor que eu — disse ela. — Mas se fosse Marta Fazi, me tiraria do caminho. Custa-me muito acreditar que se arriscará por Elphick, por muito que a esteja pagando. Custa-me acreditar que esteja tão desesperada. — Não que esteja desesperada, mas sim que é uma criminosa — apontou ele. — A contrataram porque sabem como é. Não se dá por vencida. Já tentou tirar as cartas de você três vezes, e falhou em todas. Mas isso não a fará desistir. Vencer converteu-se em uma questão de orgulho. Depois de todos os aborrecimentos que teve não a vejo deixando escapar uma oportunidade, mesmo que suspeite que possa ser uma armadilha. — Teria que ser tola para não suspeitar. — É atrevida e engenhosa — ele assegurou. — Não lhe resta outro remédio. Os homens não gostam de receber ordens de uma mulher. Mas ela sempre teve um grupo de malfeitores as suas ordens. — Mas desta vez não é assim? — É pouco provável — disse ele. — Os homens que tentaram te sequestrar estão na prisão. O amigo de Piero, Bruno, está fora de combate. Então resta Piero. Necessitará de tempo para recrutar novos comparsas. Além disso, não entende o veneziano. O fato de se ver sem ajuda e de estar frustrada pode torná-la mais perigosa. Claro que também pode levá-la a correr mais riscos. Quanto antes responda menos possibilidades terá que conte com mais homens além de Piero. Seus olhos azuis a olharam, penetrantes.

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— Está recuando? Não é muito tarde para descer do navio. Posso fazer que Zeggio se vista como você, que é o que pensei no início. Era uma ideia muito tentadora sim. — E deixar que me destrocem outro vestido? — exclamou ela. — Nem pensar. E sim, sentia medo. Mas a convidou a participar, a ser sua cúmplice, e para ela isso era quase tão bom quanto se lhe desse diamante de presente. Na realidade, possivelmente era até melhor, levando em conta que enfrentavam uma mulher desesperada, uma criminosa desesperada, de um ponto de vista sentimental e romântico. — Falando de vestidos... — disse ele. Embora soubesse que podia passar a noite esperando por notícias, Francesca não se vestiu para estar em casa. Arrumou-se como se fosse sair. Escolheu um vestido de crepe azul e um colar de pérolas. Seu intenso olhar a percorreu da cabeça aos pés e retornou ao pescoço ornamentado com as pérolas e às orelhas com os brincos combinando. — Não pensa que seu aspecto é um pouco exagerado para um encontro com uma assassina? — É noite — observou ela. — No caso de ser obrigada a sair, quero estar apropriadamente vestida. — Quer dizer "inapropriadamente", não? Se o decote fosse mais baixo, veria se tem o umbigo saltado ou não. — Não se lembra? — perguntou. — Não é saltado — respondeu ele. Ela também recordou o momento, e uma onda de desejo fez que sua cabeça desse voltas. Mas não era uma mocinha inocente que se deixasse aturdir por meras palavras. Passou o dedo indicador pelo decote. O olhar de seus olhos azuis a abrasou. — Claro que, bem pensado — o ouviu dizer, — se esse metido decote for para meu prazer pessoal... — inclinou a cabeça. A porta se abriu e Arnaldo entrou com uma bandeja de prata nas mãos. — Um moço trouxe isto, signora — anunciou. Cordier ficou firme, sem traço algum de desejo e com uma expressão alerta e áspera no rosto. — Um menino de rua, muito sujo — acrescentou o mordomo. — Me deu isso e saiu correndo. Aproximou a bandeja de Francesca. Ela agarrou o bilhete. Arnaldo fez uma reverência e voltou a sair.

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Embora tentasse se controlar, os dedos tremiam enquanto desdobrava o papel. Cordier roçou sua mão, e isso bastou para deter os tremores. — As onze esta noite — leu em voz alta; as breves palavras estavam escritas torpemente entre borrões de tinta. — Na igreja de São Giácomo de Rialto. Nada de máscaras. Foram minutos de puro nervosismo. A mensagem chegou pouco depois das dez, de modo que tiveram pouco tempo para pensar, e muitíssimo menos para se preparar. Entretanto, Francesca já esboçara seus planos o dia em que Cordier contou o seu para lutar com essa tal Marta Fazi. Entrou um momento no quarto de vestir para recolher o pacotinho que preparou. Thèrése já havia tirado seu xale. Depois de apenas cinco minutos, Francesca corria escada abaixo em busca de Cordier, que estava recheando de ordens os criados. Rapidamente estiveram em sua gôndola. Não usavam máscaras, como indicaram, embora não estaria fora de lugar em Veneza. Uma vez que estavam a caminho e ficou segura de que Cordier não poderia mandá-la de volta, tirou o pacotinho debaixo do xale e colocou sobre o colo. Estava envolvido com um lenço de seda rosa e preso com fitas azuis. — O que é isso? — perguntou ele. — Um presente. — Seda rosa? Então não é para mim. Francesca engoliu saliva. — É para ela. Cordier olhou o pacote que levava entre as mãos enluvadas e enfeitadas pelos braceletes. — Está louca? — explodiu. — Um presente? Para Fazi!? — Na realidade é um suborno. — Um suborno? Um suborno!? Ficou louca? Sabe com quem está tratando? Estava furioso. Sua expressão era a mesma da noite em que lançou o enorme valentão ao canal. — Estou tratando com uma mulher que quer me matar — respondeu. — Com uma mulher. — Não conhece esse tipo de mulher! Não é como você! Não é como Giulietta! — deteve-se para tomar ar. Quando voltou a falar, sua voz era mais calma. — Reconheço a forma do pacote. Me diga que não fará o que acredito que quer fazer. — Entrou em minha casa — disse. — Viu minhas joias. Certamente as teve em

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suas mãos. Mas as deixou para trás. Só levou as esmeraldas. — As esmeraldas a enlouquecem, literalmente a deixam louca. Já sabe, non compos mentis. — Continua sendo uma mulher — insistiu. — Deixou o restante de minhas joias. Isso supõe um tremendo esforço e demonstra uma vontade de ferro. — Vai me fazer arrancar os cabelos — disse Cordier. — No que estava pensando quando te convidei para participar de tudo isto? Deveria saber que te ocorreria um plano tresloucado... — Disse que conseguir as cartas se converteu em um assunto de honra para ela — recordou. — Estão pagando-a para que as consiga. Mas e se eu pagar mais? Não acredito que Elphick lhe dê nenhuma mínima parte do que valem estas joias — Francesca deu um golpezinho no pacote oval. — Não vai dar nada — contradisse ele. — Está aí a essência da questão. Apostou no lado perdedor. Isso é o único que precisa saber. Esta é sua única e última oportunidade de se safar. Se tivesse tido tempo para preparar as coisas para que não escapasse, teria feito. Mas Zeggio foi incapaz de seguir o rastro de Piero e não temos a menor ideia de onde está Fazi. É a única forma de fazer que saia à luz... e não podemos contar com a possibilidade de que as forças da ordem apareçam a tempo. Maledizione! — apoiou-se a contra gosto no encosto da cadeira. — Acreditei que tínhamos mais tempo, de verdade. Isto é o que ocorre por deixar que os sentimentos me afetem o cérebro. Isto é o que consigo por me guiar pelo coração em vez da cabeça. Isto é o que ocorre quando um homem deixa que uma mulher o agarre pelo... — Por Deus! Como fica por umas joias de nada! — exclamou Francesca. — Sou um ladrão! Um ladrão de joias! Tem ideia do que significa para mim jogar uma fortuna em pedras preciosas? Olhou-o. — Faço uma ideia, sim — respondeu. — Isto é quase melhor que uma ópera. Sua forma de olhar para ela devia ser semelhante a que seus antepassados italianos olharam para seus cônjuges irritantes justamente antes de ordenar que os envenenassem ou estrangulassem. — Fica muito bonito quando se zanga. Cordier fechou os olhos. Nesse momento Francesca pensou: "Vai me jogar pela amurada agora mesmo". James meneou a cabeça e se pôs a rir.

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Ela soltou o ar que esteve contendo. — É impossível — disse Cordier. — Já disse a você e faz tempo — disse ela. — Também é tola — acrescentou. — Mas isso é irremediável. Também sou tolo. Estava tão encantado esta noite que não pensava com clareza. São essas malditas pérolas. Deveria ter dito a você que as deixasse em casa. Não deveria usar joias. — Um vestido de noite sem joias? Pareceria uma provinciana! Além disso, acreditaria que tenho medo dela. — E não é certo, verdade? — perguntou ele. — Está louco? Claro que tenho medo. Que mulher em suas plenas faculdades não teria medo? — Ninguém diria, ao ver sua magnífica fachada — ele comentou. — Minha parte traseira também recebe muitas adulações — replicou. Cordier agarrou-lhe uma mão e a beijou. Como usava luvas, o beijo não foi muito satisfatório. Mas conseguiu reconfortá-la. — Você faz isto todo o tempo — disse ela. — E outras coisas muito mais perigosas. Alguma vez sente medo? — Ocasionalmente — respondeu ele. — Às vezes sinto medo. Mas outras vezes adoro. — E agora? — Estaria mais tranquilo se tivéssemos tido um pouco mais de tempo, se soubesse com segurança que Lurenze e sua gente estão perto. Mas o truque era estar disponíveis quando chegasse o aviso. Marta sabia que não teríamos tempo de reunir nossos efetivos da mesma forma que nós sabemos que ela não poderia reunir os seus. Oxalá estivesse certo, pensou. Bem, em todo caso seria emocionante, disse a si mesma Francesca. E Cordier não a obrigou a ficar em casa, esperando. Estaria na medula do assunto, para bem ou para mau. O coração pulsava acelerado, e possivelmente não devido unicamente ao medo. Certamente também pela emoção. De toda forma, Cordier ainda segurava sua mão e não havia lhe tirado o pacote, assim esperava que tudo saísse bem. Ele virou a cabeça e ela seguiu seu olhar; estava observando a Ponte Rialto. Após um momento passaram sob ela para chegar a Riva do Vin, a ampla esplanada paralela ao Grande Canal em que se organizava um dos mercados mais movimentados da cidade.

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A gôndola parou. — Descemos aqui — disse Cordier.

Capítulo 17

Diz-se que sua última despedida foi patética, como normalmente são as despedidas, ou deveriam ser, e que seu pressentimento foi bastante acertado ao pensar que nunca mais voltariam a se ver. (Uma sensação um tanto mórbida, meio poética, que sei que afetou a mais de dois ou três.) LORDE BYRON Beppo São Giacomo de Rialto, uma igreja antiga e muito modesta, achava-se muito perto da Ponte do Rialto. A seu lado estava a Rua Degli Orefici, uma rua cheia de ourives e ourivesarias. Como de costume, a igreja dominava a praça, em uma das laterais se erguia a estátua de algum personagem de relevância histórica. Nesse preciso momento James não conseguia se lembrar de quem se tratava. A rua e o lugar durante o dia estavam abarrotados de artistas, comerciantes e turistas que saíam de seus hotéis. Nessa hora, entretanto, os trabalhadores dormiam e as classes altas estavam na ópera ou em outros espetáculos, por isso não havia nem uma alma. Fazi escolheu muito bem o momento. Também escolheu uma boa noite. O céu estava espaçoso e a lua minguante, cuja luz banhava a praça, via-se claramente. Embora houvesse muitas sombras, não era fácil ocultar um bando de malfeitores, da mesma maneira que ele não poderia ocultar guardas nem soldados. Quando chegaram à praça, ergueu o olhar para o formoso relógio do campanário... e franziu o cenho. — Não perca tempo olhando esse relógio — aconselhou Francesca. — Não deu bem a hora desde que o instalaram, faz dois ou três séculos. — Espero que Fazi saiba — replicou, sem perder detalhe dos arredores, como fez durante o trajeto na gôndola. Não vira nada fora do lugar. Tal como disse a Francesca, as possibilidades de uma armadilha (por qualquer das partes) eram

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escassas. Ele não teve suficiente tempo para organizar um ataque, e duvidava muito que Fazi tivesse tido tempo ou vontade de fazer um próprio. Marta gostaria que a coisa fosse assim. Simples. Como um duelo. Dois atores principais e dois secundários. Que fácil era compreendê-la! Para ele era muito simples compreender à maioria das mulheres. Onde outros homens viam um sem-fim de complicações e ideias contraditórias, ele via uns princípios de funcionamento muito simples. No passado utilizou tais princípios para manipular tanto Fazi como a um bom número de mulheres. E acreditou que poderia usá-los para manipular Francesca Bonnard. Esse foi seu primeiro engano. Entretanto, não teve tempo de refletir sobre o resto de seus erros porque vislumbrou um movimento entre as sombras do pórtico da igreja. Um instante depois, Marta Fazi saía das sombras com Piero a seu lado. Viu-a caminhar para o centro da praça. Prendeu o longo cabelo negro em uma trança que pendia sobre um ombro. Nada de tolices, babados e plumas para Marta. Embora parecesse enfeitiçada ao ver o conjunto de pérolas de Francesca. Enquanto olhava, um sorriso zombador apareceu em seus lábios. Seus olhos passearam indecisos por um instante entre o conjunto e ele, mas quando se cravaram definitivamente em sua pessoa, já não sorria. Parecia petrificada. — Você. — Vejo que se lembra de mim — disse James. — Me sinto adulado. — Eu também lembro — atravessou Piero. — Lembro o que me fez. Foi um imbecil em vir. Deveria ter mandado o príncipe. Não tenho nada contra ele. Fazi olhou o seu comparsa. — Este é o demônio que esteve a ponto de arrancar meu braço — explicou Piero. — O que ameaçou me torturar e ainda tentou me assustar dizendo o que me faria. O sorriso zombador de Fazi retornou enquanto percorria os últimos metros que os separavam. — Estupendo — disse ela. — Muito melhor do que imaginei — olhou Francesca. — Tem algo para mim, grande dama? Um maço de cartas? Ou está com seu cavalier com seu leque e seu lenço? Francesca tirou o pacotinho das dobras de seu xale. — Não confiaria nele — disse. — Poderia ter vontades de sair correndo e leválas.

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Fazi soltou uma gargalhada enquanto esses olhos negros se cravavam de novo nele. — Não ganhou sua confiança como ganhou a minha? Ou a decepcionou na cama? Ou a fez ficar muito cansada depois de saltar de cama em cama por toda a Itália? — Ah, mas nunca se cansa — ele assegurou. — Às vezes se aborrece, mas nunca se cansa. O único problema foi que a dama e eu não nos púnhamos de acordo sobre as cartas que seu amigo inglês deseja com tanto desespero. — Certo, certo. Deseja muitíssimo mais as cartas do que jamais desejou a sua esposa — Fazi olhou Francesca de cima abaixo. — Mas seu pai tinha dinheiro e seus amigos eram influentes. Por isso se casou com ela, como você bem entenderá. Quando ficou com todo seu dinheiro e com todos seus amigos, poderia tê-la matado, mas teve piedade dela e só se divorciou. — Foi encantador, sim — disse Francesca. — Um gesto muito generoso da parte dele. — Ele disse que estava sendo muito bom — continuou Marta. — Mas você... aproveitará a oportunidade que te deu, grande dama? Ou desperdiçará com esse ai? — assinalou James com um gesto de cabeça. — Tem o coração negro e vale menos que uma falsa moeda. É um ladrão e um puto. A coisa não ia bem. Fazi estava a ponto de sofrer um de seus arrebatamentos de fúria e não estava muito definido em que estado se encontrava Francesca. Avaliando a situação, talvez deveria ter explicado a Francesca sobre sua missão em Roma. — Vero — disse James, tentando fazer que sua voz soasse contrita, tal como correspondia. Nem a admissão nem o tom arrependido de sua voz captaram a atenção de Marta. Seguia destrambelhando contra ele, entretanto, buscava provocar Francesca com a esperança de que a dama inglesa dissesse ou fizesse algo impulsivo, e oferecesse uma desculpa para empunhar sua faca. Entretanto, Cordier sabia que não devia olhar Francesca nem tentar avisá-la. Ela parecia indiferente. Com isso o fez lembrar a boa atriz que era. Marta não era boa atriz. Demonstrava claramente seus sentimentos e o fato de que era fácil alterá-la. — Um mentiroso compulsivo, um trapaceiro e um grande puto — insistiu Marta, para aborrecer Francesca. — Renunciou a um príncipe por esse? Não

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renunciaria nem a um mendigo cego por ele... Nem a um aleijado cego com pústulas no rabo! Vaca imbecil, só escolhe perdedores! "Vaca", como certamente saberia Francesca, era um insulto maiúsculo. — Sim, sou uma vaca imbecil — disse Francesca com seu sorriso mais gélido, tocou as pérolas de seu pescoço. — Os homens ricos me cobrem de joias enquanto que você... — Eu tinha joias! — gritou Marta. — Esmeraldas. Ele te disse que me fez o amor docemente só para roubar minhas preciosas esmeraldas antes de sair correndo? — Então por isso levou as minhas na outra noite, quando se fez passar por freira — disse Francesca. — Queria substituí-las? — As minhas eram melhores! — Maiores — corrigiu James. — Um jogo de pedras enormes, muito vulgares e de qualidade inferior. — Vulgares? — os olhos de Marta começaram a soltar faíscas. Entretanto, só conseguiu distraí-la e chamar sua atenção por um instante. Não a interessava. O que desejava era a vistosa roupa e as magníficas joias de Francesca. Marta Fazi estava enciumada por essas coisas, não por um homem insignificante, por um amante passageiro. Ele só era um complemento mais com o qual atormentar uma mulher tão luxuosamente enfeitada. — O que importa isso? — perguntou Francesca, tirando importância do assunto com um gesto da mão. Ah, a Marta encantaria esse gesto tão arrogante... — Não viemos para discutir sobre quem tem as melhores joias — prosseguiu Francesca. — As maiores, ou sobre quem se deixa manipular por um homem infiel e cruel. — Teu Gianni é fiel a mim — afirmou Marta enquanto tocava o generoso busto com o dedo polegar. — De verdade? Conhece-o pessoalmente? Que demônios estava fazendo Francesca? Tentava provocá-la deliberadamente? Ou só estava tentando ganhar tempo para que Lurenze e seus homens chegassem? — Conheço-o há muito tempo — respondeu Marta. — Há anos. Muito antes que se casasse contigo. Após se casar contigo manteve-me em uma preciosa casa em Londres. Quando vou visitá-lo me dá tudo o que peço.

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Faça o que fizer por ele, me recompensa com generosidade. Quando tenho problemas, faz com que os problemas desapareçam. Mas já perdi muito tempo falando contigo. Me dê as cartas. — Faz tudo isso? — perguntou Francesca. — Mãe do amor formoso, sim deve estar ocupado! E você é... o que? Sua amante cinquenta e dois? A oitenta e sete? Com razão necessitava de uma esposa rica. — Sou a primeira, sempre — assegurou Marta. — Johanna Ide se surpreenderia se te escutasse — replicou Francesca. — Claro que ela está em Londres com ele todo o tempo, e você não. Isso deixou Marta desconcertada por um momento. — Não conheço esse nome. — Claro que não conhece. Por que falaria a você sobre sua lady Macbeth? — Não me importam seus nomes — assegurou Marta com o queixo alto. — As demais só são putas, e os homens devem ter suas putas, como você bem sabe. Mas já perdi muito tempo. As cartas, grande dama. — Ah, querida, espero que não dependa muito de meu antigo marido — advertiu Francesca. — Porque não será capaz de continuar oferecendo tudo o que disse... A casa a sua disposição, as recompensas e o desaparecimento dos problemas... Marta entrecerrou os olhos e a mão que estava estendida à espera do pacote se moveu para sua cintura, onde levava a faca. James se esticou a espera do ataque. — Sinto muito — prosseguiu Francesca como se nada acontecesse. — Nunca trabalhei em plena rua, como fazia você, e por isso sempre me deram medo os encontros noturnos com estranhos em lugares solitários. Ontem fui de gôndola a São Lázaro e dei as cartas a um cavalheiro inglês. Estão a caminho da Inglaterra agora mesmo. Mas não vão para seu querido Gianni. Se fosse você renunciaria a ele e buscaria outro homem. Uma mulher bela como você, que é jovem... Pode encontrar outro melhor, outro que não te faça trabalhar tão duro enquanto mantém todo um harém na Inglaterra e promete há um montão de mulheres as mesmas coisas que a você. Marta havia inclinado a cabeça. Estava prestando atenção e tentava entender tudo. Entretanto, era impossível adivinhar o que estava pensando. Deveria ter percebido que Francesca não seguiria suas regras, pensou James. — É uma brincadeira — disse Marta ao final. — Vejo as cartas no pacotinho em sua mão. — Se refere a isto? — Francesca levantou o pacote. — Bom, sim, a verdade é

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engraçada. Dá-me lástima por todas as artimanhas que os homens usaram sobre você. Tenho pena por todos os problemas que te causaram. Marta tirou o pacote de suas mãos. Entretanto, era o bastante feminina para não cortar os laços. A viu percorrer o lugar com o olhar — lembrava uma ave de rapina em busca de seu jantar — antes de desatar as fitas. Quando afastou a seda do pacote apareceu um estojo. Enfiou o bonito pacote e as fitas no sutiã e após abriu. No interior brilhava um belo conjunto de safiras, que Francesca usou na primeira noite que a viu. Marta ofegou. E ele conteve um gemido. Qualquer ladrão que se prezasse sentiria o mesmo. — São tuas — disse Francesca. — Pelos problemas. Pegue-as e vai. Antes que seja muito tarde. — Não conseguirá nada mais de nós — acrescentou James. — Nunca conseguirá as cartas e Elphick já não poderá tirá-la de mais problemas. Se estivesse em minhas mãos, acabaria na forca. Mas eu não apito nada. Esta dama acredita que você merece algo pelos problemas que teve. Não sou da mesma opinião, asseguro isso. De qualquer maneira, se fosse você me afastaria daqui enquanto pudesse, antes que cheguem os soldados. Marta retrocedeu um passo. Virou-se. E se dirigiu a Piero em sua língua materna. — Mate-o — sussurrou. Piero tirou a faca antes sequer que terminasse de dar a ordem. — Com prazer — respondeu o rufião, e a seguir se atirou sobre eles. James afastou Francesca e estendeu o braço para agarrar Piero pelo pulso. Em seguida, virou de tal modo que deu as costas ao seu atacante, cuja altura e corpulência eram menores, e aproveitou o impulso de seu próprio corpo para lhe tirar a faca. Piero, embora baixinho era um osso duro de roer, defendeu-se e lhe rodeou o pescoço com o braço livre. Para rebater o puxão, James se inclinou para frente e levantou seu atacante do piso, lançando ambos ao chão. Piero caiu primeiro e ele por cima. Ouviu como bateu a cabeça nos paralelepípedos e depois o ruído metálico da faca ao cair de sua mão. James levantou-se de um salto e jogou um olhar ao redor. Marta tinha ido, menos mal. Mas onde estava...? Percorreu o lugar com o olhar, preso dos nervos. Não havia ninguém. A praça

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estava deserta. Salvo pelo homem inerte sobre os paralelepípedos. Correu pela Rua Degli Orefici. Quando chegou à ponte, ouviu um grito e um chapinhar. — Francesca! — gritou. Atravessou correndo a Riva do Vin para o lugar de onde vinha o grito. O silêncio inicial, fruto da surpresa, deu lugar à gritaria dos gondoleiros. Essa parte do canal era muito escura devido às sombras dos edifícios, sendo difícil distinguir silhuetas. Diminuiu o passo com o coração disparado. Havia pessoas apontando para a água. — Ali! — gritou alguém. — Não, ali! — exclamou outro. — Estou vendo-a! — Não, está ali! E por fim ouviu a voz brusca de uma mulher com acento inglês. — Ali! Rápido! Por ali! Não veem? — Não, signora. Ali não há ninguém. Só é um pedaço de madeira. James correu para ela e a abraçou com força. — Está a salvo. Pelo amor de Deus! Deu-me um susto de morte — beijou sua cabeça sobre o coque. — Está a salvo, cuore mio — esmagou-a contra seu peito. Mas ela começou a lutar. — Cordier. Abraçou-a com mais força, seus movimentos eram maravilhosos. Assim como era tê-la entre os braços. Jamais voltaria a soltá-la. — Cordier — Francesca protestou outra vez enquanto lutava. Seguiu abraçando-a. Até que lhe deu um forte pisão. Soltou-a e a olhou estupefato. — Essa mulher... — disse Francesca. "Essa mulher? Que mulher?", perguntou. Nesse momento lembrou o que esquecera por culpa do pânico enquanto corria. Marta Fazi. Fugira... e Francesca a perseguiu. — É idiota! — exclamou ele. Agarrou seus ombros e a sacudiu. — Não volte... — sacudiu, — a fazer isso... — sacudiu, — jamais. Francesca se afastou dele. — Está me dizendo que queria que ficasse para te ajudar a lutar com aquele tipo tão baixinho?

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— O que queria era que ficasse quietinha e não me desse um susto que me tirou dez anos de vida — respondeu. — Ela poderia ter se escondido entre as sombras e desfigurado seu rosto. Sabe o prazer que teria em te desfigurar? — Sei perfeitamente. Pobre ignorante... Deixou-se manipular por Elphick. Se de verdade esteve na bela casa de Londres, Elphick teve que tomá-la de sua ocupante anterior. E com certeza foi consumida pelo ciúme o tempo todo. Ou não. Elphick teria dito: "Ma amo solo te, dolcezza mia". "Mas amo só você, minha doçura." O próprio Elphick sussurrou essas palavras para ela, em brincadeira, na noite que a atacaram pela primeira vez, quando ela o tomou por um dos atacantes. — Para os homens é muito fácil dizer isso — ela comentou. — Mas nunca dizem de verdade. — Ma amo solo te, dolcezza mia — ele disse. — E digo de verdade. Francesca o olhou em silêncio e isso fez que ruborizasse. — Se tivesse me desfigurado, continuaria sentindo o mesmo? — ela perguntou por fim. Tinha a resposta, a habitual, na ponta da língua: "É obvio que continuaria sentindo o mesmo". Mas era verdade? Entretanto, a essência da questão era arriscar-se a dizer a verdade, embora a resposta não fosse a ideal. — Não sei — respondeu ele. Viu que ela abria os olhos de espanto. — Isso é sinceridade, e o resto, tolices. — Mas nunca saberemos, verdade? — perguntou James. Cravou o olhar no canal, onde os gondoleiros e os ocupantes de outras embarcações prosseguiam com a busca. — Acredito que saiba nadar. Mas mesmo assim... com as saias e a anágua? Não sei. Não estamos falando de um canal secundário, mas sim do Grande Canal, com suas fortes correntes. Não estou certo de que uma mulher ornamentada com tanta roupa possa lutar contra isso. Ficaram em silêncio um momento enquanto ouviam as vozes dos gondoleiros e observavam a busca, embora não vissem muito porque a noite já não era tão clara. James olhou para o céu. A lua minguante estava oculta atrás de nuvens. — Não sei se me sinto triste ou aliviada — confessou Francesca. — Essa mulher está meio louca! As safiras... valem uma fortuna. Ele mordeu a língua para não soltar um "Eu te disse". — Entendo que estivesse furiosa conosco, mas... como é pouco prática! — prosseguiu ela. — Se tivesse um pouquinho de bom senso, para não falar de um

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mínimo de educação, nos teria agradecido e teria ido. Em troca, vai e ordena ao seu homem que o mate. Porque suponho que isso foi o que lhe disse. Entendi quase tudo, mas essa última parte teria perdido se não o visse tirar a faca com essa expressão tão desagradável. James não pôde perguntar como conseguiu entender tão bem o italiano bairrista de Marta, porque percebeu que Zeggio se aproximava com outro gondoleiro. — Pedimos mais lanternas, signore — disse o homem. — Mas as nuvens que cobrem a lua fazem que seja quase impossível encontrá-la. Pode se esconder em muitos lugares. Ou pode estar no fundo do canal ou rumo a mar aberto. Mas este homem, meu primo, encontrou algo. O primo de Zeggio entregou uma caixa. — Zeggio pensa que isto pertence à dama. Espero que a água não tenha estragado. — Suponho que isto era o que estava procurando, verdade? — perguntou James a Francesca lhe entregando a caixa. Observou enquanto ela abria. As safiras seguiam no interior, presas ao forro de veludo. — Que tola — murmurou ela. — Nem chegou a usá-las. — Por isso a perseguiu? — ele quis saber. — Para recuperá-las? Francesca fechou o estojo. — Não estou certa. Talvez. Estava furiosa. Queria lhe arrancar os cabelos. — Espero que não tenha arriscado o pescoço de novo por minha desprezível pessoa — disse ele. — Não seja bobo, replicou. — Estava furiosa porque trapaceou. Tentei jogar limpo com ela. Tentei ser cuidadosa, e ela... franziu o cenho. — Agora que penso nisso, é bastante compreensível. Se estivesse em seu lugar, também teria vontade de te matar. Nesse instante James percebeu a animação que ouvia atrás deles. Mais vozes. Se voltou. Giulietta e Lurenze corriam para eles. Giulietta abraçou Francesca com força. — Não está ferida — disse a recém chegada. — Sentia tanto medo que mal podia pensar. — Também senti medo, acredite — assegurou Francesca. — Mas já estou bem. — Viemos o antes possível — disse Lurenze. — Mas penso que já terminou tudo.

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Francesca jogou um olhar ao redor, aos gondoleiros que seguiam procurando, e depois cravou o olhar no estojo que tentou dar a uma mulher que não entendia gestos generosos. Depois o olhou um instante antes de afastar a vista. — Sim, terminou — disse. — Por que há tanta luz? Em seguida, caiu ao chão.

Capítulo 18

Por exemplo... esses cavalheiros cujas esposas tomam a liberdade de ultrapassar os direitos escritos da mulher, violando o... que mandamento é o que violam? (esqueci seu número, e penso que nenhum homem deveria se apressar a dizer, por medo de erra) LORDE BYRON Dom Juan, Canto I Desmaiou porque não estava acostumada a correr, assegurou Francesca, já na gôndola, para tranquilizá-los. Por sorte, era a gôndola de Lurenze, uma embarcação grande e usada nos atos oficiais. Entretanto, aos príncipes era permitido considerar qualquer ato oficial, motivo pelo qual neste momento viajavam muito mais cômodos do que se estivessem em sua própria gôndola, muito mais estreita. — Correu alguma vez usando um espartilho? — ela perguntou ao James. — Ora! Não sei nem por que pergunto, claro que o fez. Em todo caso, é um homem e seus pulmões são maiores. — Não deveria ter corrido atrás dela — replicou ele, esfregando seus pulsos com muita força. — Nada de sermão — o repreendeu Giulietta. — Correu um grande risco por você. Inclusive se mostrou amável e amistosa com sua antiga amorosa. — Fazi não é minha antiga amorosa — observou ele. — O que é então? — perguntou Francesca. — Certamente, você deixou uma marca. Se bem me lembro, disse algo sobre "fazer o amor docemente". — É um homem — justificou Lurenze. — É normal que queria ser doce e romântico com ela. Ou acaso é um idiota? Como você diz, minha querida? A palavra que você usa para esse tipo de pessoas, ignorantes e sem maneiras.

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— Digo cafone — Giulietta respondeu. — Acredito que essa é a expressão a que se refere, Excelentíssimo. — Sim, isso. Um homem ignorante e sem educação não leva em conta os sentimentos da mulher. Entretanto, um cavalheiro de verdade sempre é galante, mesmo que a mulher esteja em uma posição inferior. — Refere-se quando a tem embaixo, Absolutíssimo? — perguntou Giulietta. — Sabe muito bem a que me refiro, menina malcriada — respondeu Lurenze; logo estalou a língua e acrescentou: — Faz umas brincadeiras muito graciosas com as palavras. Escandalosas, mas graciosas. Não devo esquecer nunca. — Fazi só foi um assunto de negócios — esclareceu Cordier em um tom imensamente paciente. — Deixei marcas porque roubei as esmeraldas. Que, por certo, não eram delas. As tinha roubado de seu legítimo dono. — Também foi romântico com a legítima proprietária? — perguntou Francesca. — Não — resmungou ele. — Devolvi ao seu dono, um homem, e nada mais. Casualmente pertenciam às joias da Coroa de certo país, e os donos originais fizeram um trato pelo qual cediam algo muito valioso a certas pessoas para as quais eu trabalhava. E isso é tudo o que vou dizer sobre o tema. — Política — acrescentou Lurenze enquanto balançava a cabeça. — Sei muito destas coisas. Senhoras, peço que deixem a curiosidade de lado. Senhor Cordier, devemos falar com o governador. Deve saber o quanto antes o que ocorreu em Riva do Vin. Me diga o que devo lhe dizer, porque não quero meter a perna 16. — O melhor será ir ao Palácio Ducal — aconselhou Cordier. — Alguém precisa acordar o conde de Goetz para lhe dar a notícia. O melhor é que sejamos nós. Mas você... — fez uma pausa para olhar Francesca sem soltar sua mão. Sua mão era grande e morna. — Antes vamos deixá-la em sua casa e deve me prometer que vai direto para cama. — Prometo — concordou. — Não tenho vontade de discutir. Sequer tenho energia para fazer um escandaloso comentário com segundas intenções — olhou Giulietta. — Isso deixo para você, querida. — Não, não — disse sua amiga enquanto agarrava sua outra mão e a levava a face. — Não posso brincar com esse assunto. Sei que está cansada e preocupada. Ficarei contigo esta noite. Que sejam os homens que façam suas coisas de homens, 16

meter a perna: Algo como "enfiar o pé na jaca(sic)".

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suas argúcias, suas conspirações e sua política. É aborrecidíssimo. De minha parte, prefiro comer e beber algo, e depois ficar quietinha sem fazer nada de nada. Vamos colocar os pés para cima perto do fogo e talvez nos entreter contando os pequenos pênis do teto. — Parece maravilhoso — concordou Francesca. — E amanhã a noite, quando estivermos descansadas e voltarmos a ser as mesmas de sempre, iremos à ópera. — Um plano excelente. — E talvez deixemos que os homens nos acompanhem se prometerem não falar da aborrecida política nem de outras mulheres a quem quebraram o coração. — Não quebrei o coração de nin... — protestou Cordier. — Diga "Sim, prometo" — o interrompeu Lurenze. — Concordar é mais fácil. — Sim, prometo — disse Cordier. Francesca e Giulietta passaram uma agradável noite juntas. Em lugar de sentarse no Puttinferno, fizeram isso no gabinete particular, onde comeram um pouco, beberam outro pouco e falaram pelos cotovelos. Quando eram incapazes de manter os olhos abertos, meteram-se na enorme cama de Francesca e seguiram conversando com voz de sono sobre coisas sem importância até que o sono as venceu. Não havia nada de mal em ter um homem na cama, tal como dizia Giulietta. De fato, era justamente o contrário via de regra. Entretanto, em algumas ocasiões era melhor estar sozinha. E, em outras, era melhor estar com uma boa amiga. Estar com sua amiga aplacou o torvelinho de pensamentos de Francesca. Com Giulietta podia falar livremente sobre Elphick, Marta Fazi e o porquê sentia lástima por ela e a odiava ao mesmo tempo. Além disso, sabia que Giulietta falava de coração ao dizer que fez o correto em lhe oferecer as safiras; que atuou de forma decente e generosa; e ao assegurar que não era sua culpa que a outra mulher fosse muito ignorante para apreciar o gesto. Outro ponto a favor era que Giulietta também compreendia por que a perseguira. — Teria me encantado sacudi-la até que chacoalhassem os dentes — reconheceu sua amiga. — "Como pode ser tão idiota!?" teria dito a ela. "Por que se arrisca a acabar na forca ou decapitada... por um homem? Algum merece? Onde deixou seu cérebro?" Sabe o que teria feito se estivesse em seu lugar? Teria feito uma elegante reverência e diria: "Obrigada, senhora. É um presente maravilhoso. E esse homem que a acompanha... agora que olho bem, não acredito tê-lo visto na vida. Adeus".

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E depois teria dito ao homem que me acompanhava que guardasse a adaga. "Veneza é muito úmida" continuaria "Vamos bem longe, para outro lugar onde haja menos água e falem um idioma compreensível." Teria feito isso. — Mas você nunca se poria nessa situação — replicou Francesca, — porque tem cérebro e bom coração. — De toda forma, rezemos sempre: "Virgenzinha, Virgenzinha, que me mantenha como estou". E graças a essa conversa e após a pérola filosófica que sua amiga acabava de soltar, Francesca descobriu que a invadia uma tranquilidade há muito não sentida. Tal como disse para Lurenze, tudo tinha acabado. O interminável e perigoso jogo com Elphick acabara por fim. Pôs um ponto final a essa etapa de sua vida, e se sentia satisfeita. Até esse momento não percebeu que durante todo esse tempo levava um espinho cravado no coração. E descobriu justamente nesse momento porque desapareceu e por fim podia respirar livremente. Quanto a Cordier... — Penso que é dos que terá que conservar — foi a conclusão de Giulietta quando ela o mencionou. — Já sabe, como a condessa de Benzoni com seu devoto Rangone. Penso que Cordier te professa a mesma devoção. — Logo veremos — disse Francesca meio adormecida. — E Lurenze? Giulietta esboçou um sonolento sorriso. — Humm, é delicioso! Temo que se aborreça de mim muito antes que eu dele. Esse é o risco que ronda as pessoas. Mas o aceitei de olhos abertos. — Nesse momento seus preciosos olhos castanhos se fecharam e adormeceu. Francesca estava no palazzo de Magny na tarde do dia seguinte. O conde enviara uma nota em que exigia que contasse o acontecido, já que lhe chegaram rumores dos mais ridículos. Não gostou de sua descrição dos fatos. Embora tampouco ela esperasse que gostasse. Magny protestou ao saber que foi a um encontro com uma criminosa em plena noite e em praça deserta. Protestou quando soube que entregou suas safiras a uma delinquente transtornada. A fúria o deixou sem palavras quando contou que perseguiu Marta Fazi até a beira do canal. — Ficou louca de pedra? — perguntou ele quando recuperou a fala. — Estava zangada — respondeu. — Até aqui chegamos! — sentenciou ele. — De agora em diante... A frase ficou no ar diante da aparição de um criado, que entrou para anunciar

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que o senhor Cordier solicitava permissão para ver o conde. — É obvio que tem permissão para me ver — replicou com irritação. — Não entendo toda essa pompa — acrescentou quando o criado se foi. — Já me enviou uma nota esta manhã. Diz que precisa discutir comigo um assunto particular. O suposto conde ficou em pé e se aproximou de sua escrivaninha. — Olhe — ergueu um pedaço de papel grosso e caro. Francesca, que o seguiu, tirou a nota de suas mãos. Só continha umas poucas linhas. — Que formalidade — comentou, olhando seu pai com as sobrancelhas arqueadas. — Aposto o que quiser que tem algo haver com minha identidade emprestada — disse em voz baixa. — Suponho que Quentin esteve fazendo perguntas incômodas. — O signor Cordier. O criado se afastou para que Cordier entrasse. Estava mais elegante do que o habitual, com um fraque azul marinho e um colete estampado com lenço no pescoço, sem lapelas. Suas calças brancas presas às botas por uns quantos laços. Francesca deixou cair a nota sobre a escrivaninha. Cordier a saudou com excessiva formalidade e ela seguiu a corrente, encantada. Depois de breve troca de trivialidades, ela disse: — Sei que desejava um encontro privado com monsieur. Veremo-nos mais tarde. Na Fenece? — passou ao seu lado e deixou que sua saia roçasse as pernas enquanto murmurava. — Possivelmente poderia ir com seu disfarce de criado. Seria muito... excitante. — Possivelmente — murmurou ele antes de dizer em voz alta. — Não é necessário que vá, Bonnard. Pode ficar para escutar o que tenho a dizer ao conde de Magny. Francesca sentia curiosidade. O homem que fingia ser Magny exigia saber tudo dela. Sem lhe devolver o favor. O exemplo mais claro dessa atitude foi sua relutância em lhe comunicar que não havia morrido. Limitou-se aparecer um dia em Paris, lhe dando um susto de morte. Cordier se dirigiu ao irritante pai de Francesca. — Senhor, não vou aborrecê-lo com tolices sentimentais. Direi diretamente e sem rodeios: Gostaria de ter sua permissão para me casar com sua... isto é... com a dama aqui presente. Isso a deixou boquiaberta. Magny, se fosse possível, estava ainda mais surpreso que ela.

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— Acaba de me deixar sem fôlego — disse com voz baixa e entrecortada, levando a mão ao coração. — Está seguro... de querer casar-se com ela, refiro-me... — Não vejo alternativa — respondeu Cordier. Quando por fim recuperou o bom senso e a fala, Francesca interveio na conversa. — Eu sim, mas casamento? — Sim, por favor — respondeu ele. — Estou tão apaixonado por você que me dá medo. — Sim, sei, mas matrimônio? Ficou louco? Por que quer se arriscar a estragar uma relação estupenda com o casamento? — Porque só quero a você, docinho. — É obvio, mas não estou segura de querer só a você — disse. — Francesca, por favor — atravessou seu pai. — Tem diante de si um homem disposto a fazer de você uma mulher respeitável apesar de tudo o que esteve fazendo... — Não quero ser uma mulher respeitável! Quando isso vai entrar nessa sua cabeça dura? — Tudo o que quero é vê-la feliz e com a vida resolvida, menina — disse Magny. — E preferia que os desgostos não me levassem a tumba antes do tempo. E que saiba que essa não é a forma de você falar com... bem... às pessoas mais velhas. — Nesse caso, não falarei — e saiu da sala como uma fúria. Para sua mortificação e desgosto, Cordier não a seguiu. Bateu a porta caminhando com rapidez, mas não pôde evitar apurar o ouvido para comprovar se a seguia. Nada. Desceu depressa a escada até chegar ao térreo e saiu para subir em sua gôndola. Magny olhou para Cordier. — Está seguro de que quer se casar com ela? — Sim. — Tem um caráter impossível. — Igual a mim. Os nervos a fizeram perder a compostura. Magny olhou para a porta pela qual Francesca fez sua melodramática saída. — Não vai segui-la, se prostrar de joelhos, a jurar devoção eterna e demais tolices nauseantes? — Não. — Enfim, nesse caso, gostaria de algo para beber? — Sim. Sim, agradeço.

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Essa noite Francesca contemplava ressentida da janela de sua gôndola a fachada da Ca' Munetti, onde nenhum amante devotado retornou. Um amante devotado que sequer lhe enviou uma nota. O muito descarado. Não importava, disse a si mesma enquanto a gôndola seguia seu caminho e deixava atrás as duas casas para que continuassem contemplando-se frente a frente. Essa noite pensava passar em grande estilo. Estreava um vestido que acabava de receber nessa mesma tarde, um golpe de sorte, já que perdeu dois — ou eram três? — de seus melhores vestidos. E ela era a única culpada de ter se envolvido com um descarado. E um tirano, além do mais. Casar-se com ele... afh! Recordou o maravilhoso poema, pertencente ao inacabado Canto III de Dom Juan, que Byron lhe enviou. "Há, sem dúvida, algo na vida doméstica que conforma, de fato, a antítese do verdadeiro amor; os romances nos contam com todo detalhe os noivados, mas dizem bem pouco dos matrimônios." E com toda a razão, pensou. Não havia nada como o casamento para acabar com um maravilhoso romance. E nada como um pouco de rivalidade e de ciúmes para que um homem recuperasse o bom senso. O vestido novo estava confeccionado em crepe negro debruado com um festão de cetim da mesma cor bordada com fios prateados. Tanto o decote como as costas eram muito baixos. Comparado com os outros vestidos, era quase simples. Daí que fosse o marco perfeito para mostrar seus maravilhosos diamantes, cuja peça principal era o colar com as pedras esculpidas em forma de lágrima. Os brincos, compridos e recarregados, eram um de seus preferidos. imaginou-se sentada em seu camarote, emoldurada pelo fundo das cortinas azuis enquanto flertava com todos os homens bonitos que entrassem. Isso ensinaria Cordier a dar por certa sua opinião. Onde já se viu ir pedir sua mão a seu pai. Como se fosse uma jovenzinha recém saída da sala de aula, sem opinião alguma e sem a menor experiência sobre casamento... Francesca de repente viu um vulto escuro na fondamenta, justamente quando a gôndola estava prestes a virar na esquina para alinhar o próximo canal. Um vulto alto e... E que saltou com agilidade para a gôndola. A embarcação acusou o brusco

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movimento. Uliva soltou uma maldição, assim como Dumini. — O que querem que faça? — perguntou uma voz grave e familiar em italiano. — Quando tento falar com ela em um lugar como Deus manda, ou seja, a casa de seu pai, sai feito uma fúria. Aqui não poderá escapar. Dito isto, Cordier entrou no felze, fechou a porta e caiu no assento ao lado dela. Ela desviou o olhar para o exterior, consciente que a emoção acelerou seu coração. — Bonitos diamantes — o ouviu dizer com a dicção perfeita de um aristocrata inglês. — O conjunto é obra de Nitot — disse ela. Nitot era o joalheiro que criou as joias para a realeza francesa, dos Borbones aos Bonaparte, e vice-versa. — Algumas das pedras pertenceram ao rei Luis XIV. Um márchese muito bonito, dedicado e divertido me presenteou com isso. — Sei a quem se refere — ele assegurou. — Mas minha família materna é muito mais antiga e distinta que a dele. Além disso, minha mãe te dará boas-vindas muito mais cálidas do que a dele te teria dado. A mãe do marquês é uma mulher rígida porque suas origens são burguesas. Minha mãe, em troca, ficará encantada em ver que encontrei uma esposa com um gosto requintado para joias. As miudezas, como as chama ou como as conseguiu, não lhe importam. E a mim importa menos ainda porque consegui joias usando métodos muito mais infames. O problema com ele era sua sinceridade. Era um descarado sincero. Virou a cabeça para olhá-lo. Estava muito elegante com seu traje de gala, todo negro salvo pelo toque de branco na gola e nos punhos. Tirou o chapéu, o muito trapaceiro, e os cachos negros brilhavam à luz da cabine. Cordier sabia que seu cabelo era bonito. Sabia que as mulheres adoravam enterrar os dedos nele. Era muito mau! — Cordier... Ele agarrou a mão dela. A carícia não era satisfatória por culpa das luvas, mas se as tirasse, teria que pedir que ele também tirasse e... — Já é hora de deixarmos o passado para trás — disse ele. — Acabamos, você e eu, com o Elphick. Jamais poderia assentar a cabeça sem antes vingar meus companheiros. Mas já estão vingados. Como estará você. E quando as coisas se solucionem por fim, seu pai também recuperará seu bom

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nome. Será absolvido quando se descobrir que foi Elphick quem cometeu a fraude. Francesca cravou o olhar nessa mão enluvada que sustentava a sua e franziu o cenho. — Está seguro, muito seguro, de que não foi meu pai? Porque, bom... não é um homem de confiar. — Seu pai pode ter feito um sem-fim de coisas, mas a fraude em questão foi orquestrada e levada a cabo por seu ex-marido. — Meu pai nunca disse nada — afirmou ela. — Foi tudo tão engenhoso, e os resultados tão espetaculares, que no fundo acredito que teve um pouco de inveja e não quis admitir que o enganou como a todos os outros. — Dá no mesmo — disse ele. — Esse capítulo está encerrado. Adoraria que começássemos um novo. — Eu também — admitiu. — Sei que suas intenções eram boas ao me pedir em casamento, mas não entende. É um homem. — Sei. Não posso evitar. — Não entende o que significa para nós ser uma respeitável mulher casada. Antes acreditava que significava ser livre... até que me mudei ao continente e deixei de ser respeitável. As mulheres, as mulheres casadas, vivem em uma prisão feita de regras, e sequer são conscientes disso. As mulheres respeitáveis não podem fazer isto nem aquilo, e se querem quebrar as regras, devem fazer com muita discrição. Devem fazer às escondidas e se converter em umas hipócritas consumadas. — Isso é na Inglaterra — disse ele. — Estamos na Itália. E seu pai e eu acordamos e assinou um contrato matrimonial perfeitamente italiano... — Ficaram surdos os dois ao mesmo tempo? — o interrompeu. — Disse que não. Isto é típico da arrogância masculina e... — ... no que especifica claramente a figura de um cavalier servente — continuou como se ela não tivesse falado. Soltou-lhe a mão para tirar as luvas. — É impensável que uma dama de linhagem não tenha um. Deve ter um marido, um chato insuportável. E para mitigar a cansativa situação, há a figura do amigo devotado, que acompanha à dama aonde vai e que faz o que ela quer, que a entretêm e que pode ou não ser seu amante. As luvas desapareceram enquanto falava. Francesca cravou o olhar nessas mãos nuas de dedos longos e espertos. Engoliu em seco. — Mas não pode ser meu marido e meu cavalier servente ao mesmo tempo — protestou.

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— Já pensei nisso, mas se conseguir não me converter em um chato insuportável, é possível que não requeira os serviços de um cavalier servente ... nem de nenhum outro amante para que sua felicidade seja completa. Seguiu com o olhar esses longos dedos que se moveram por seu braço até desaparecer sob o xale. Sentiu o roçar da mão do muito bandido, que baixou a luva até o pulso e deslizou com cuidado sob seus braceletes. — Diz isso agora, falou ela com voz trêmula. Entretanto, acreditava em sua palavra mesmo contra o bom senso e sua experiência ruim anterior. Claro que uma mulher poderia acreditar em qualquer coisa enquanto essas mãos certeiras a despojavam da razão. — Meu amor, se não for capaz de te manter feliz e contente, não mereço sua fidelidade — inclinou-se um pouco para lhe tirar a outra luva. — E se não for capaz de ser feliz ao lado de uma mulher que é meu sonho feito realidade... — Que não nos esqueçamos que sou o sonho de qualquer homem — o interrompeu. — Nunca esquecerei, esteja certa — assegurou. — Se não for capaz de ser delirantemente feliz com você, se não for capaz de te fazer feliz, mereço que me converta em cornudo todas as vezes que te dê vontade. A segunda luva desapareceu. Observou enquanto ele a jogava para um lado e caía sobre as outras três. — Tem toda a razão — ela reconheceu. — Nesse caso, me permita que siga me explicando — disse ele. Sua mão escapuliu para cima em busca de um de seus brincos. — Assim como demonstrei ao seu pai, para sua mais completa satisfação, e apesar de ser só um dos filhos mais novos de um conde, tive bastante êxito em minha profissão — começou a brincar com o diamante. — Poderia te manter com o estilo de vida que está acostumada... Bom, talvez não exatamente o mesmo, mas sim quase, quase — beijou-a na orelha. — Não sou mesquinha — ela reconheceu com voz rouca. — Esse quase, quase me parece suficiente. Mas deve me devolver os peridotos. Ouviu ele rir contra seu pescoço, e o quente roçar de seu fôlego lhe fez cócegas. — Essas pedras insignificantes? — São as primeiras joias que esteve a ponto de me dar de presente — lembrou. — Guardarei por motivos sentimentais. — Muito bem, devolverei. Isso significa que me aceita, tesouro meu? — beijou nesse lugar tão especial antes de descer por seu pescoço. Sentiu-se entorpecida por uma sensação espessa e doce como mel. Como não

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o aceitaria? Pensou extasiada. Já arriscou a vida por ele em mais de uma ocasião. Como não arriscaria seu futuro? Lembrou o que disse Giulietta na noite anterior antes de adormecerem. "Esse é o risco que ronda as pessoas. Mas o aceitei com os olhos abertos." Sempre havia um risco no amor. — Estou pensando — respondeu Francesca. — Então vamos por bom caminho — a puxou sobre seu colo. Inclinou a cabeça e deixou um lento e ardente caminho de beijos sobre seu decote. — Está seguro de que não se arrependerá por não se casar com uma dessas jovenzinhas inocentes vestidas de branco? — sussurrou. Em lugar de responder, notou que abaixava o sutiã do vestido, e seus lábios deslizaram sobre um seio. — As jovenzinhas inocentes — repetiu ela com um fio de voz. — Os clubes. Os jantares, o vinho do porto e as piadas com os homens. Hyde Park. — Ao inferno com tudo isso — grunhiu James. Chupou o endurecido mamilo e Francesca sentiu o mesmo que sentiu a primeira vez que o viu quando ainda sequer sabia seu nome. Luxúria, talvez, por um homem atraente. Ou talvez fosse a poderosa atração que exercia uma alma gêmea. Não queria resistir. Entretanto, estava... assustada. — E sua família? — perguntou desesperada. — As mães italianas... Nenhuma mulher é o bastante boa para seus... — Confia em mim — ele interrompeu com voz baixa enquanto suas mãos desciam em busca das saias. — Gostará de você. Dirá que sou eu quem sai ganhando. Como pode falar de mães num momento assim? Francesca não queria falar dessas coisas, mas precisava fazer antes de derreter por completo. Sua mãe morreu pouco depois de seu casamento com Elphick, e sentiu tanto. — Eu amo... ser amigo de mulheres. Essas mãos penetraram sob seu vestido e suas anáguas. Uma parte dela estava perdida, escravizada por essas mãos, pelo desejo. Quanto tempo passou desde a última vez que fizeram amor? Entretanto, outra parte seguia pensando nos amigos, nos inumeráveis amigos que perdeu durante aquela horrorosa etapa de sua vida. — Giulietta — murmurou. — Eu sei — disse ele, levantando a cabeça para olhar em seus olhos. — Confie em mim. Você será feliz. Fecha as janelas.

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Fechou-as e se remexeu quando sentiu que a acariciava por cima das ligas. Tomou seu rosto entre as mãos para aproximá-lo mais. — Vai muito rápido — protestou. — Baciami. Isso fez ele rir enquanto plantava um beijo em seus lábios. Era um pecador, como ela, que não se arrependia de nada, como ela. Jamais seria um homem totalmente respeitável. Jamais seria um homem aborrecido. Para ele tanto fazia que tivesse sido uma prostituta ou que sua melhor amiga continuasse sendo. Com esse homem podia ser feliz. Com os beijos desse homem, ardentes e risonhos, podia se embriagar imediatamente. Desceu a mão para desabotoar a braguilha. Assim que o teve em sua mão, o ouviu ofegar. — Quem vai muito rápido agora? — perguntou ele com voz rouca. — Estamos a ponto de chegar ao teatro — ela observou enquanto o acariciava da ponta à base, mas não estava de humor para joguinhos. E ele tampouco, porque ergueu suas saias e ela aproveitou para se sentar escarranchada em seu colo. Uma de suas grandes e ardentes mãos a acariciou. — Sim — sussurrou. — Sim, agora — jogou os braços em seu pescoço e o beijou com ardor enquanto ele a penetrava. Ela foi invadida por uma cálida sensação. A mescla do prazer e a felicidade com o afã possessivo. Se deixou arrastar, deixou de pensar e abandonou o tão prezado controle para ficar nas mãos das sensações e dos sentimentos. Ele, esse homem, era daqueles que devia se conservar, assim se agarrou a ele enquanto seus corpos estremeciam em uníssono e seus corações pulsavam em ritmo cada vez mais frenético. Agarrou-se a ele e o beijou entre gargalhadas, a caminho do auge do prazer. Chegou ao clímax, seguido por um segundo e logo por um terceiro antes que ele se rendesse, e por fim, juntos, atingiram a última onda e flutuaram nas águas da satisfação mais pura. Enquanto isso, no exterior, Uliva e Dumini perceberam de que as persianas da janela estavam fechadas apesar da noite não estar muito fria e não ter ameaça de chuva. Os dois venezianos se limitaram a se olhar e tomaram o caminho mais longo para o teatro com infinita paciência.

Epílogo

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Todas as tragédias acabam em morte, todas as comédias chegam ao seu fim com o matrimônio. LORDE BYRON Dom Juan, Canto III O escândalo que suscitou o julgamento de lorde Elphick foi muitíssimo maior do que aquele suscitado por seu divórcio. Os jornais dedicaram coluna após coluna a debulhar os detalhes do processo. O senhor Cruikshank e seus companheiros desenhistas deleitaram os leitores com um banquete de caricaturas: lorde Elphick beijando o traseiro de Napoleão; lorde Elphick desfrutando de uma orgia de álcool com um grupo de raparigas sifilíticas; a cabeça de lorde Elphick em forma de cogumelo sobre um monte de esterco; lorde Elphick defecando sobre uma GrãBretanha tomada pelo inimigo; lorde Elphick roubando comida de um grupo de soldados esfomeados... E essas eram as mais indulgentes. Dia após dia, cada vez que transportavam Sua Senhoria à Westminster para assistir às sessões diárias do tribunal, uma multidão jogava animais mortos e excrementos em sua carruagem, já que as verduras e as frutas podres foram consideradas insuficientes para expressar os sentimentos dos leais britânicos. O julgamento foi muito longo. Mais que o da rainha Carolina e muito mais sórdido. Ao final foi declarado culpado, coisa que não surpreendeu a ninguém. Entretanto, arrumou para evitar à justiça. A véspera de sua execução foi encontrado agonizando no chão de sua cela. Não permitiram que usasse lâminas, navalhas, cordas e tampouco suspensórios, prevendo que tentasse o suicídio. Precauções excelentes, embora insuficientes. Porque de algum modo conseguiu veneno. Encontraram-no vivo, mas era muito tarde. Nada se pôde fazer. Morreu horas depois, após uma horrível agonia. Tendo em conta os sintomas que descrevia o recorte de jornal que uma das irmãs de James lhes enviou, este concluiu que deve ter usado arsênico. E que não foi um suicídio. — Se conseguiu veneno — disse a Francesca, — também poderia ter conseguido uma pistola ou uma lâmina. Além disso, dentre todos os venenos, escolheu o arsênico, cuja dose é muito difícil de calcular. Aposto o que quiser que foi uma mulher. Não é tão difícil envenenar um detento. — Mesmo que esteja vigiado em todas as horas? — perguntou sua esposa. —

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Como você o faria? — Não penso responder — respondeu ele. — Se decidir me envenenar, terá que se virar você sozinha, seguindo a ancestral tradição de meus antepassados. — Bom, não penso quebrar minha cabeça em busca de sua assassina — disse Francesca. — Poderia ser qualquer uma das centenas de mulheres de quem se aproveitou. — Alguma que não fugiu quando explodiu o escândalo — disse James. — Sua querida Johanna sequer esperou até esse momento — ela recordou. — Se foi antes que Quentin pusesse um pé em Londres. As cartas começaram a chegar pouco depois dessa conversa. Lorde Byron havia dito por carta a Francesca: "Por fim um dos dois foi vingado". Junto com a carta enviou um poema escrito para celebrar a ocasião, que continha várias insinuações obscenas sobre seu segundo marido. Lorde Quentin também escreveu para informá-los sobre o processo judicial e para agradecer a ela por sua ajuda para fecharem o caso no qual trabalharam por meses. E depois, para a mais absoluta surpresa de Francesca, começaram a chegar cartas de antigos amigos e conhecidos. Cartas de agradecimento e também de desculpa. Entretanto, a mais surpreendente para os dois foi a carta do rei. Entregue por um mensageiro especial numa tarde de fevereiro, muito depois que os criados já haviam levado a correspondência. Essa tarde esperavam convidados, já que Giulietta e Lurenze jantariam com eles antes de irem juntos para a ópera. James estava inclinado no sofá, contemplando os putti. O dia em que discutiram sobre a residência em que se instalariam, depois do casamento, foi ele quem sugeriu o palazzo Neroni pelo apego que sentia para as figuras de gesso. Francesca se sentou a seu lado, carta na mão, e ele se sentou para ler por cima de seu ombro. Entre outras coisas, Sua Majestade agradecia a Francesca pelo risco que correu por seu país. — Não sabia, verdade? — murmurou ele depois que ambos leram a carta mergulhados em um estupefato silêncio. — Arriscou sua vida para me salvar sem saber que estava realizando um serviço público. — Foi um detalhe da parte de Quentin me converter em uma heroína — disse ela. — Mas na realidade agi assim porque estava loucamente apaixonada. — Foi um detalhe por sua parte que se deixasse levar pela loucura — admitiu. — Uma loucura, mas todo um detalhe.

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Francesca virou a primeira folha para continuar lendo a seguinte. — Pelo amor de Deus! — exclamou ela. — Meu Deus! — exclamou ele por sua vez. — Que tolice. No que estão pensando? — Lorde e lady Delcaire — olhou para ela. — O que te parece? Concedeu-nos um título... por serviços à Coroa, nem mais nem menos. — O título é para você — apontou ela. — Eu sou um simples adorno. — Certamente, e muito picante. — Ora... com o que custou para me acostumar a ser a senhora Cordier. — Há várias senhoras Cordier, cara minha — recordou. — E ainda restam algumas por chegar, sem dúvida. Mas pensa que como lady Delcaire usará uma preciosa coroa com bolas de prata e um manto de arminho que poderá pôr para as coroações. — Mas se o rei já foi coroado! — Poderá pôr a coroa e o manto para ir à cama. Francesca considerou a ideia. — Sem nada mais. — Uma ideia estupenda. Uma das muitíssimas coisas que adoro em você é seu sentido de moda. — Mas teríamos que ir a Londres — disse ela. — Seria o mais apropriado — ele reconheceu. — Faria o sacrifício? Não precisamos ficar para sempre. Mas possivelmente uns quantos meses ao ano. Talvez durante o apogeu da temporada social. Sim? — Como me negar? — perguntou ela por sua vez. — Meus amigos pediram que os perdoassem. A meu marido concederam um título nobiliário. O apogeu da temporada social me parece estupendo. Celebraremos festas — soltou a carta, distraída pelos alegres planos. — Um jantar para começar, acredito. Será divertidíssimo! Me pergunto se poderemos convencer Giulietta e Lurenze para que também vão a Londres. Seguro que podemos. Se a nomear condessa ou algo assim, ninguém protestará. E ele é um príncipe estrangeiro. Todo mundo deixa que a realeza faça o que a agrade, sobretudo se for estrangeira. Não precisam se pautar pelas mesmas normas — assentiu com a cabeça. — Sim, podemos fazê-lo. Olhou para ela em silêncio um instante, deleitando-se com a exótica beleza de seu rosto, que resplandecia de felicidade. Era incapaz de enumerar o muito que a amava, mas talvez fosse dessa maneira,

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transbordante de alegria e vivacidade, quando o sentia mais que nunca. — Veem aqui — disse enquanto se encostava ao sofá para abrir espaço, dando uns tapinhas no assento. — Ainda não beijei lady Delcaire. — Nem pensar — ela declinou com voz afetada enquanto esses extraordinários olhos o olhavam com picardia. — Amassará meu vestido. — Essa era minha intenção. — Temos convidados. — Seguro que não se assustam! Veem aqui, mulherzinha. Só quero te dar um beijo... e talvez uns quantos carinhos conjugais. Ela se pôs a rir enquanto estendia seu precioso corpo no sofá, a seu lado, segurou-a pelo queixo para girar seu rosto e a beijou, longa e docemente. Francesca enterrou os dedos em seu cabelo com infinita ternura. Quando se separaram por fim e viu a expressão terna com que o olhavam esses olhos verdes, James pensou: "Sim, me afogarei feliz em suas profundezas". — Quando vamos? — quis saber ela. — Me refiro a Londres. — Quando quiser — suas mãos deslizaram pelo decote do vestido. — Dentro de quinze dias? Quanto demora uma mulher para arrumar a bagagem para uma viagem longa? — Acredito que poderei arrumar em quinze dias — respondeu. — Evidentemente voltaremos — ele assegurou. — Não sei quanto tempo suportarei sem estar perto dos meninos. A viu olhar ao teto com um sorriso. — São tão ridículos... embora seja verdade que tenhamos certo apego, sim. — Ou que tenham coisas... em seus inocentes traseiros, por exemplo — guardou silêncio justo quando uma de suas mãos passava por cima da curva de seu seio. — Isso me recorda uma coisa. Quando chegarmos a Londres, não diga a ninguém onde escondeu as cartas. Sua advertência a fez abrir os olhos, cujas pálpebras começava a fechar devido as suas carícias. — Não disse ao Quentin? Ele não lhe perguntou sobre isso? O dia que entregaram as cartas só ele desceu da gôndola no embarcadouro de São Lázaro enquanto ela o esperava no interior. — Não costumamos falar dos detalhes nestes casos — respondeu. — Me limitei a entregar o pacote e ele me disse: "Já era hora". E se foi. — Sequer te disse obrigado, merece que não digamos — sentenciou. — Não diria ainda que tivesse perguntado — ele assegurou. — Quem sabe?

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Talvez algum dia precise do esconderijo — disse enquanto voltava a acariciar os seios de sua mulher. — Acreditava que tivesse se aposentado — disse ela. — Certamente que o fiz — admitiu. — Apesar de quão emocionante foi tê-la como cúmplice do crime. Embora devesse dizer cúmplice na luta contra o crime. — Mas sempre disse que era emocionante seu trabalho. — Já estava farto de viver em um perpétuo engano quando cheguei a Veneza — confessou. — Mas as coisas deixaram de ser aborrecidas assim que te conheci. E o encontro com Marta Fazi foi, possivelmente, a experiência mais horripilante de minha vida. Francesca se acomodou no sofá e ergueu uma mão para lhe acariciar o queixo. — Foi emocionante. James virou a cabeça para beijar a palma da mão que o acariciava. — Tudo é culpa de sua impulsividade. Acrescentou um fator que fazia anos que não sentia. Puro medo — franziu o cenho. — Não, pensando bem, estar casado contigo será por si só bastante emocionante. De toda forma, é melhor que guardemos o segredo dos putti. Tudo bem? Antes de responder, sua esposa seguiu o contorno de seus lábios com um dedo. — Si, eccellenza — respondeu por fim. Sua resposta arrancou uma gargalhada dele e ela afastou a mão imediatamente. — O que? — perguntou. — Não se chama eccellenza a todos os aristocratas? — É seu acento — ele explicou. — Muito inglês. — O márchese dizia que tinha um acento encantador. — É delicioso — ele assegurou. — Toda você é deliciosa. Esquece ao márchese. O brilho travesso voltou a iluminar os olhos dela, ressaltando os pontinhos dourados de sua íris. — Não sei se poderei. Talvez necessite alguma... distração. A mão que lhe acariciava o seio desceu por esse curvilíneo e maravilhoso corpo. — Muito bem, lady Delcaire. Vejamos até que ponto posso distraí-la. Fim

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Sobre a autora: Loretta Chase é considerada como a "Jane Austin de nossos dias" e sua novela romântica ambientada na Regência "Lorde of Scoundrels" é considerada uma das melhores neste gênero. Recebeu vários prêmios, incluindo RITA de melhor novela de regência por sua obra "The Scandalwod Princess". Loretta Chase se graduou tarde em licenciatura na Universidade Clark em Língua Inglesa. Nesse ínterim trabalhou em uma joalheria, de balconista em uma loja de roupas como empregada da Metro. Pouco depois, enquanto trabalhava como roteirista, conheceria aquele que hoje é seu marido, Walter, um produtor que a convenceu a ser escritora.

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