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4.2. “Dá licença galo velho, pinto novo quer saravar”
from Jongo e educação: a construção de uma identidade quilombola a partir de saberes étnico-culturais do
sugestão vingar. Uma das razões para isso é que não haveria homens em quantidade suficiente no quilombo, o que tornaria esta sugestão inviável, já que, no jongo do Bracuí, as rodas acontecem necessariamente com um homem e uma mulher dançando no centro simultaneamente, o que não é uma regra seguida por outras comunidades ou grupos jongueiros. A partir da explanação sobre o que chamamos de jongo tradicional, entraremos adiante na descrição do segundo momento de ressignificação do jongo em Bracuí, que ocorreu mediante a implementação de um projeto de educação não formal. Este momento foi intitulado de jongo de formação. Para tanto, uma vez que já foi descrito o processo de renascimento do jongo no capítulo anterior, fazse necessário demonstrarmos a passagem do jongo renascido pra o jongo de formação, o que será feito menos do ponto de vista da performance, e sim enfatizando o ponto de vista da função social que ele passa a exercer. Trata-se também de apontarmos as consequências dessa ressignificação - que dá às crianças e jovens autonomia, ainda que parcial, no comando das rodas - para os velhos jongueiros que vivenciaram o chamado jongo tradicional e/ou cresceram envoltos ao seu discurso corrente.
4.2 “Dá licença galo velho, pinto novo quer saravar”
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Iniciamos este subcapítulo trazendo à tona uma cena narrada por Dona Olga e repetida pelos jovens jongueiros de Bracuí, que faz menção à rejeição de alguns velhos jongueiros em relação às crianças nas rodas. Desse modo, a partir dessa explanação, esperamos marcar a transposição do jongo renascido para o jongo de formação na comunidade. Dona Olga contou que, na última roda que o “Jongo de Angra”
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41 No ano seguinte, no dia 13 de maio de 2011, houve um evento promovido pela prefeitura de Angra dos Reis denominado “Festa da Cultura Negra”. A programação do evento contava com a apresentação do Jongo do Bracuí, e não mais do Jongo de Angra. Tal questão tornar-se-á importante para a construção do subcapítulo seguinte, intitulado o jongo de apresentação. emancipação do jongo do Bracuí do tradicional jongo de Angra aponta para um fortalecimento daquele em detrimento deste, o que ocorreu principalmente pela formação político-pedagógica que se deu por meio do jongo na comunidade e pela sua entrada na “rede de resgate” do jongo. Os jongueiros de Mambucaba e Gamboa não parecem ser tão favoráveis às transformações sobre as quais o jongo vem se submetendo, inclusive com relação à participação efetiva das crianças e jovens. Nesse sentido, eles vêm perdendo espaço (e também jongueiros, já que preconiza apenas a presença dos velhos jongueiros) na esfera do movimento jongueiro do Sudeste.
se apresentou, por convite da prefeitura municipal de Angra dos Reis, no dia 19 de novembro de 2010, Rozaú - irmão de Délcio e representante do jongo da Gamboa - quis monopolizar os pontos, ao longo da roda. Dona Olga disse que “ele tirava um ponto atrás do outro e não deixava as crianças tirarem”. Considerei este fato narrado como um fato interessante para ser analisado. Sendo assim, resolvi confirmar essa história com a Jussara, perguntando como havia sido essa roda de jongo, uma vez que Dona Olga já havia me contado que Rozaú foi desafiado neste dia pela própria Jussara que, incomodada com a sucessão de pontos tirados por ele, resolveu interrompê-lo, colocando um novo ponto de jongo. Lembramos que o sentido do desafio, nesse caso, não está relacionado ao caráter mágico do jongo tradicional, mas à interrupção do ponto que está sendo cantado por meio da colocação de um novo ponto por outro jongueiro que tem como objetivo passar uma mensagem, ainda que esta venha acompanhada de um caráter metafórico.
Ao falar com a jovem jongueira, ela não só confirmou o ocorrido, como complementou sua fala, fazendo uma queixa ao Rozaú e a outros jongueiros (do chamado “Jongo de Angra”), que não aceitam muito bem os mais jovens nas rodas, principalmente no aspecto que diz respeito à colocação de pontos. Segundo a mesma, ele sempre fica um período longo no mesmo ponto, diferente das crianças, que vão mudando os pontos com frequência. No caso da roda mencionada anteriormente, tanto Jussara como Dona Olga narraram a mesma situação: em um determinado momento, com as crianças já cansadas de não participarem tanto, Jussara colocou a mão no tambor e pediu licença ao velho jongueiro: “Dá licença galo velho, pinto novo quer saravar”. Ao ouvir o ponto dela, ele colocou outro ponto, no intuito de cortar a Jussara. Entretanto, quem pensa que ela se acanhou, está enganado. Jussara corajosamente rebateu o velho jongueiro: “Água com areia não pode combinar, a água vai embora, areia fica no lugar”. Essa resposta foi muito interessante, pois remete à relação entre o jongo dos mais velhos e a sua ressignificação por parte das crianças e jovens. Os jongueiros velhos seriam a água se esvaindo, indo embora, enquanto as crianças seriam a areia ressignificando a tradição herdada dos mais velhos. Ao contrário dos mais velhos, as crianças e jovens preferem as rodas junto com os jongueiros mais experientes, mas claro, desde que estes concebam-lhes a
participação plena. Na visão das crianças, a roda se prolonga na presença dos mais velhos, pois elas sozinhas acabam se dispersando, ao logo do tempo, o que dificulta o processo de criação e a capacidade de versar com pontos originais, característica marcante dos velhos jongueiros. Assim sendo, com raras presenças de velhos jongueiros, em geral, no jongo que pode ser contemplado atualmente, os pontos colocados são aqueles conhecidos por todos os jongueiros ali presentes, que foram criados em algum momento anterior, tendo sido devidamente assimilados por todos, o que, de forma alguma, impede que algum deles resolva criar o seu, no exato momento da roda, e colocá-lo ao grupo. A criação de ponto espontâneo criado na hora já foi observada por nós, mas podemos dizer que não é algo muito comum - principalmente pelo formato mais recente do jongo do Bracuí, que remete à apresentação. O único jovem que observamos criando pontos na hora foi o Emerson (Mec), fato este que ocorreu numa roda de jongo durante a festa em homenagem à Santa Rita, em maio de 2011, sobre a qual faremos uma descrição etnográfica mais adiante. Se por um lado é o Délcio quem resgata o jongo, por outro, é a família do Seu Zé Adriano que se incumbe de perpetuá-lo e fortelecê-lo dentro da comunidade. Isso se comprova porque, além de os seus netos dançarem, quando as oficinas começaram, em 2005, como já mencionado no capítulo 3, foram suas filhas que ficaram responsáveis pelos encontros, justamente por terem suas habilidades jongueiras reconhecidas, habilidades estas herdadas de seus pais. Mas não foi nada fácil inserir as crianças da comunidade no jongo, já que muitas delas não faziam ideia do que ele era, até porque algumas famílias não tinham a tradição do jongo no seu interior. Numa das idas a campo, Raísa (filha da Marilda) que está em contato com o jongo desde o início do projeto “Pelos caminhos do Jongo”, trouxe-nos a trajetória das crianças nesta prática. Raísa conta que as crianças, assim como ela, foram aprendendo com a Luciana nas oficinas e, aos poucos, entendendo o seu significado. No início, todo mundo tinha muita vergonha de dançar. Ninguém queria entrar na roda, nem mesmo puxar ponto. Elas ficavam tão apavoradas que, quando tinha jongo, fosse nas oficinas ou na própria comunidade, pediam para não serem chamados para dançar ao centro da roda. Nessa questão, foi muito importante o papel da mediadora Luciana que, durante as oficinas, insistia para
que todos que estivessem ali participassem, convencendo-os de que não havia razão para tanta vergonha. “O jongo se fortaleceu mais pela insistência da Luciana mesmo. Hoje a gente sente falta quando fica muito tempo sem ter jongo” (Raísa, novembro de 2011). Ainda na entrevista que realizei com ela, perguntei se costumava puxar pontos nas rodas e ela me disse que não, pois tinha muita vergonha, sentimento este que assola outros jovens jongueiros também. Nosso campo aponta para o protagonismo dos netos do Seu Zé Adriano, por serem eles os jongueiros jovens que mais colocam pontos nas rodas. Além de puxarem a maioria dos pontos, eles também tocam muito bem os tambores e entram com frequência no centro da roda para dançarem. São eles: a Jussara e o Eduardo (irmãos); e o Patrick (filho único da Luciana). Nesse contexto, no momento atual podemos perceber que a jovem Jussara (15 anos) vem sendo preparada para assumir a responsabilidade sobre o jongo da comunidade. Isso pode ser facilmente observado por meio do acompanhamento das rodas de jongo do Bracuí. Na última que assistimos foi ela quem abriu a roda, colocando o primeiro ponto, e sendo a primeira a dançar, e não mais sua tia Luciana, como era de costume. Outra questão interessante é que, por mais que tenhamos dito que a Jussara está sendo preparada para assumir o jongo, de fato, todos os jongueiros são considerados responsáveis pelas rodas. Como nos conta o Mec (novembro de 2011): “na verdade nós todos somos responsáveis pelo jongo. Não tem um em especial”, o que traz à tona o aspecto dos laços de solidariedade e coletividade do grupo, perpetuado entre crianças e jovens. Ele ressalta que, hoje em dia, as crianças apreendem o jongo umas com as outras. Desse modo, quando citamos que a Jussara estaria sendo preparada para assumi-lo, significa dizer que ela, dentre as outras crianças e jovens, seria a responsável por comandar as rodas do jongo do Bracuí, ou seja, ela vem sendo preparada para ser uma liderança jongueira na comunidade. Percebemos, então, um incentivo à emancipação dos jovens jongueiros nas rodas, o que pode ser observado tanto internamente à comunidade, como na “rede de resgate, ” que vem sendo criada em torno dele. Se, no momento de seu renascimento, a presença dos velhos jongueiros e do Délcio foi fundamental e, até mesmo, majoritária, num segundo momento, no formato de um projeto de
educação não formal, que se inicia no ano de 2005, o jongo, enquanto um elemento cultural passa a ser um instrumento de formação e, enquanto tal, supriu uma lacuna advinda do campo da educação escolar em torno da história local da comunidade, de suas demandas políticas, de seus direitos constitucionais e de seu reconhecimento legítimo, enquanto um grupo étnico atravessado por estruturas de diferenciação. Como nos lembra Santos (1983, p.45):
Cultura é um território bem atual das lutas sociais por um destino melhor. É uma realidade e uma concepção que precisam ser apropriadas em favor do progresso social e da liberdade, em favor da luta contra a exploração de uma parte da sociedade por outra, em favor da superação da opressão e da desigualdade.
Este momento do jongo que enfoca crianças e jovens em seu caráter formativo, o que se deu tanto na comunidade de Bracuí, como no movimento jongueiro do Sudeste, foi chamado aqui de jongo de formação. Um bom exemplo que retrata a preocupação na inserção e consolidação das crianças e jovens no jongo pode ser exemplificado pelo evento organizado pelo Pontão de Cultura Jongo/Caxambu, já citado brevemente no capítulo 2, denominado “Noite do Jongo”. Este, ao privilegiar e subsidiar a presença de dois jovens jongueiros de cada uma das comunidades jongueiras do Sudeste, pode ser considerado tanto um evento de mediação, voltado para a rede em torno do jongo que vem sendo estabelecida, como também de formação dos jovens jongueiros, uma vez que são justamente encontros desse tipo que possibilitam o intercâmbio entre as comunidades e seus saberes, além do fortalecimento do movimento jongueiro como um todo, por meio da valorização de sua cultura. O objetivo do evento era criar uma rede de trocas entre os jovens jongueiros que representavam suas respectivas comunidades, fazendo com que cada um apresentasse o seu jongo para os demais. No caso de Bracuí, as representantes do jongo foram a Raísa e a Jussara. Desse modo, lançamos mão da obra de Gonh (2011, p. 44) para retratar a valorização da cultura jongueira, num evento como a “Noite do Jongo” que, consequentemente, contribuiu para o trabalho de temas relevantes, que emergem desta cultura, fazendo sentido para aqueles que o praticam, no caso, a juventude e as crianças jongueiras:
A cultura é também uma força, enquanto uma prática plena de significados. Ela demarca diferenças porque estas são produzidas no interior dessas práticas de significações. O exercício das práticas produzem continuamente novos significados, por muitas vezes está se procurando demarcar as diferenças de outra forma. O preconceito racial, por exemplo, é uma diferença carregada de negatividade, que busca separar, segregar, excluir. Contra ela, os grupos organizados lutam e procuram construir outros significados para a questão da raça, baseados em valores positivos. Ao fazer isso, geram identidade a partir da demarcação do campo de suas diferenças.
Ao conversar com as duas sobre o evento, elas falaram com grande entusiasmo sobre tudo o que ocorreu. Entretanto, o que mais chamou à atenção foi a colocação da Raísa sobre a vergonha de entrar nas rodas que lá aconteceram, já que, como havia jongueiros de diversos lugares, os passos eram diferentes daqueles característicos do jongo do Bracuí, eram as chamadas “umbigadas”
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categoria nativa que designa passos de jongo dos outros grupos. No último dia, as duas foram questionadas por um senhor presente no evento sobre o porquê de não terem entrado na roda. Ele insistiu para que elas dançassem do jeito que quisessem, enfatizando que não deveriam deixar de entrar. Raísa conta que, de repente, começaram a bater o tambor no ritmo do jongo do Bracuí e, só por isso, ela teve coragem de entrar. Depois que entrou, não queria mais sair. Disse também que acabou aprendendo alguns passos de “umbigada” de outros grupos, que, aliás, ela faz questão de dizer que são muito lindos. Inclusive, elas começaram a identificar as diferenças nos passos, de acordo com cada uma das comunidades que dançam o jongo. A questão da rede de troca de saberes entre os jovens jongueiros pode ser retratada também pelo exemplo a seguir. Numa viagem que o jongo do Bracuí fez para um evento de jongo em Campinas, um grupo lá de São Paulo, em determinado momento, lançou a seguinte frase: “Agora vamos cantar um ponto do jongo do Bracuí”. Todos os quilombolas jongueiros de Bracuí que estavam presentes ficaram muito orgulhosos. Da mesma forma, ao longo do trabalho de campo, eu pude assistir às “umbigadas”, assim como pude ouvir pontos da Serrinha, numa roda do jongo do Bracuí, que ocorreu no próprio quilombo.
42 Quando as meninas aprendiam as umbigadas nas oficinas, no interior da comunidade, encontravam-se fora do horário destas para ficar treinando os novos passos. Elas os achavam muito difícil. Aqui fica claro que há um gesto diferenciado para o jongo que identifica a comunidade jongueira que o faz. Cada “umbigada” vem acompanhada de um determinado tipo de ponto e de um jeito específico de bater o tambor.