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5. O corpo no/do jongo

5 O corpo no/do jongo

Será que a cultura existe de facto? Existe um lugar para a cultura residir? Está ela situada, localizada? É uma questão da ordem da mente ou/e da ordem da corporalidade? (Raposo, 2004, p.1, grifo nosso)

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Neste quinto capítulo, que intitulamos “o corpo no/do jongo”, nos voltaremos, de um lado, ao corpo no jongo, ou seja, às questões ligadas à subjetividade e aos aspectos simbólicos desse corpo - individual/coletivo, natural/cultural, tradicional/moderno, jovem/velho - inserido em tal prática. Por outro, abordaremos o corpo do jongo, isto é, o foco, nesse caso, se volta para as técnicas corporais e a performance da roda. Apesar dessa diferenciação ter sido brevemente destacada aqui, ressaltamos que as duas chaves de análise diferenciadas, apresentadas até então sobre o corpo imerso no contexto da prática cultural do jongo, não podem ser consideradas separadamente uma da outra. O corpo simbólico estará sempre alimentando o conjunto de técnicas corporais e, consequentemente, a performance, como o contrário também é verdadeiro. Seguindo a linha de raciocínio da citação que abre este capítulo, entendemos que é no uso social que se faz do corpo biológico, que podem ser observados elementos culturais, identitários e/ou étnicos de determinada comunidade, tribo ou grupo. O corpo, na sua relação com os elementos do cotidiano e inserido em sociedade, expressa costumes, em certa medida, específicos do grupo ao qual pertence, mostrando-nos, pelas suas expressões corporais, que cada uma delas possui hábitos que lhes são particulares. A este conjunto de expressões e práticas corporais, impressas nos corpos naturais, que englobam necessariamente, e respectivamente, um conjunto de técnicas corporais (Mauss, 1974), compreendido como fenômeno social em sua totalidade, demos o nome de corporalidade. Um dos instrumentos - e porque não o mais significativo deles - de compreensão do processo de construção de uma identidade quilombola em Bracuí passa por uma análise do corpo no/do jongo. Silva, Silva e Tucunduva (2011) compreendem que, no caso de comunidades quilombolas, é pela experiência de pertencer a uma comunidade remanescente de quilombo - e não tanto pelo reconhecimento dessa palavra

recentemente incorporada pelas comunidades em seu vocabulário - que é possível perceber a gestualidade, os modos e costumes com que as corporalidades criam identidades e performances próprias. É na experiência na relação com os demais, portanto, étnica cultural e historicamente construída, que a identidade quilombola mostra-se por meio dos corpos. Nesse caso, a experiência foi compreendida no sentido empregado por Thompson (1981, p. 111): como um conceito polifuncional que remete a culturas específicas, marcadas por uma condição étnica e de classe, histórica e geograficamente datada que constituem os indivíduos “homens e mulheres, em sua vida material, em suas relações determinadas, em sua experiência dessas relações e em sua autoconsciência dessa experiência”. Desse modo, podemos dizer que a experiência no jongo entre os próprios jongueiros quilombolas passa a ditar a relevância desta tradição em suas construções identitárias, o que ocorre pelo viés da corporalidade. Partimos do princípio de que o corpo é tanto linguagem como veículo de comunicação. Este é submetido a constantes processos formativos, ao longo do tempo, o que ocorre à medida que determinada técnica corporal, ou o conjunto destas, é considerado eficaz sendo transmitido de geração a geração (Mauss, 1974). Portanto, a corporalidade contribui significativamente para a construção de uma identidade coletiva e, até mesmo, para o fortalecimento desta. A partir da performance observada em uma tradição como o jongo, expressa por gestos e movimentos corporais específicos, comunidades quilombolas e comunidades negras rurais e urbanas conseguem ser trazidas para o debate com o poder público, o que até então não tinha sido possível, fato este que as deixava às margens das políticas de reconhecimento e, portanto, da luta por políticas diferenciadas, já garantidas constitucionalmente. Destacamos que as teorias de reconhecimento podem ser definidas como:

Lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa coletiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades" (Honneth, 2003, p. 156).

O corpo no/do jongo e, consequentemente, a performance que emana desta dualidade, no caso da comunidade quilombola de Bracuí, ganha destaque ímpar

nesse processo de reconhecimento e legitimação de sua identidade quilombola, ao ser apresentado aos “externos”. Ressaltamos que, indo além de uma concepção de corpo enquanto produto de determinada cultura e datada em um contexto histórico específico, compreendemos que ele também é responsável por produzi-la, transformá-la e legitimá-la, principalmente no campo das teorias de reconhecimento. Esperamos demonstrar tal posicionamento ao longo do presente capítulo. No item 5.1 trazemos uma contextualização antropológica para o corpo, apontando os principais autores, tanto no campo da antropologia, como no das ciências sociais, da história e da própria educação física, que se voltaram a ele com o olhar pautado nas ciências humanas, e não mais nas ciências naturais. Pretendemos pensar o corpo aqui como um objeto de pesquisa relevante para a compreensão de fenômenos sociais que o colocam no patamar, simultaneamente, de produto e produtor de cultura, partindo do princípio de que toda a prática cultural é também corporal, isto é, toda a prática é condicionada à experiência sensível/corpórea. No item 5.2 lançamos mão de pesquisas etnográficas que se voltam para a antropologia da dança. O intuito é pensar que tal prática exerce uma função social que varia de acordo com o contexto na qual está inserida. Nesse sentido, pretendemos apontar para o corpo no/do jongo de apresentação da comunidade de Bracuí, que dança e performativa nas rodas. Além disso, abordaremos brevemente os processos de transmissão e apreensão das técnicas corporais das danças citadas nas etnografias analisadas, com o objetivo de nos respaldarmos analiticamente na reflexão sobre os dados empíricos acumulados a respeito dos processos de transmissão do jongo entre as comunidades observadas, ao longo do trabalho de

campo.

No item 5.3 vamos nos ater aos estudos da performance, para embasar as diferentes experiências vividas e observadas por nós nas rodas de jongo de algumas comunidades quilombolas jongueiras. Abordaremos, também, a relação entre o que é universal e o que é particular nos diferentes jongos observados. Além disso, no intuito de caracterizar o jongo do Bracuí, traremos uma etnografia de uma roda realizada dentro da comunidade em uma data festiva.

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