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2.5. Breve aporte ao debate sobre uma Educação Quilombola
from Jongo e educação: a construção de uma identidade quilombola a partir de saberes étnico-culturais do
analítico, no campo da Educação. Temas como identidade, oralidade, memória, ancestralidade, corporalidade, práticas educativas não formais e os mestres desse processo, gênero, concepções de juventude e infância, formam um emaranhado de questões a serem problematizadas em torno do jongo, o que se dá pelo método etnográfico de pesquisa. Em nosso caso, focaremos a construção da identidade étnica, isto é, da identidade quilombola, a partir de um saber-fazer transmitido e apreendido por meio do corpo. Para tanto, lançaremos mão também da etnografia, mas com um enfoque na reconstrução dos processos de transmissão e fortalecimento do jongo na comunidade de Bracuí, assim como da associação da identidade jongueira à identidade quilombola, apontando para a relação entre este e a educação escolar.
2.5 Breve aporte ao debate sobre uma Educação Quilombola
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Eu fui na escola aprender o ABC, agradeço a meu deus por ter aprendido a ler (Ponto de Tainara, 13 anos, Bracuí)
Por fim, o último ponto é inserir o leitor no debate ainda incipiente sobre a educação quilombola. Como nos lembra Gomes (2009), uma política pública voltada para a diversidade étnicorracial precisa reconhecer e dialogar com as lutas históricas da população negra. Uma luta repleta de iniciativas e práticas afirmativas, antecessoras e inspiradoras da atual demanda por políticas de ação afirmativa realizada pelo movimento negro nos dias atuais e, aos poucos, implementadas pelo Estado. O Brasil tem um número elevado de comunidades quilombolas. Mesmo que ainda não haja um levantamento preciso, há mapeamentos que apontam existir mais de cinco mil comunidades. De acordo com o relatório das Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola, baseado no Censo Escolar de 2010, existe no Brasil 1.912 escolas localizadas em áreas remanescentes de quilombos. Desse total, 1.889 são públicas e 23, privadas. Das públicas, 109 são estaduais, 1.779 municipais e apenas uma é federal (Brasil, 2012).
Entretanto, apesar do número elevado de escolas em comunidades quilombolas, cabe ressaltar que há uma deficiência do Estado no atendimento educacional dessa população. Muitas vezes ele sequer é ofertado. Quando o é, não se insere no cotidiano e cultura das comunidades, não atendendo, consequentemente, suas demandas específicas. Os currículos e as práticas pedagógicas não sofrem alterações, mesmo após o reconhecimento legal das comunidades enquanto quilombolas. Nesse sentido, é importante entender que o debate sobre o tema da educação escolar em comunidades remanescentes de quilombo se sustenta, no plano normativo, em, ao menos, seis documentos, a saber: a Lei Federal nº. 10.639/2003, cuja orientação consiste em que a Educação Básica adote nos conteúdos programáticos o estudo da história e da cultura afro-brasileira; a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), promulgada pelo decreto 5.051, de 2004, que garante o direito de uma educação apropriada às diferenças das populações étnicas; o Plano Nacional de Desenvolvimento de Populações Tradicionais (decreto 6.040, 2007), que aponta para a necessidade de se produzir modalidades de educação adequadas aos modos de vida das populações tradicionais; o Parecer nº 7/2010 do CNE Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Câmera de Educação Básica (CEB), que avança na garantia de uma “educação diferenciada” ao mencionar a necessidade de respeito por parte das escolas que atendem às populações do campo, comunidades indígenas e quilombolas, para com suas peculiaridades de modos de vida. Além disso, este mesmo Parecer recomenda a utilização de pedagogias condizentes com as suas formas próprias de produzir conhecimentos; a Resolução nº 4/2010 do CNE/CEB que institui as diretrizes gerais para a Educação Básica, fazendo menção na secção VII especificamente à Educação Escolar Quilombola; e, finalmente, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, que foram aprovadas em junho de 2012 pelo CNE. Vale lembrar que a elaboração destas segue as orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Assim, de acordo com estas últimas (Brasil, 2010, p. 42), a saber:
A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum
e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas deve ser reconhecida e valorizada sua diversidade cultural.
No que tange à Lei 10.639/03 e seus desdobramentos legais, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnicorraciais, publicadas em 2004, podemos dizer que estas vêm atender a uma reivindicação de lutas sociais do movimento negro, mas também vêm somar ao processo de conquista de espaço para o tema da diversidade sócio-cultural, já reivindicado por diversos movimentos sociais. Esta conquista é materializada em documentos como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e os Parâmetros Curriculares Nacionais, em que ganha destaque a inserção dos temas transversais e, entre eles, o da pluralidade cultural. Além deste suporte normativo, a educação escolar para comunidades quilombolas ganhou o seu primeiro suporte político no texto do Programa Brasil Quilombola (PBQ), de 2006. Das oito linhas de Ação do PBQ, duas são relativas à regularização fundiária, duas ao tema do desenvolvimento local e sustentável e quatro são relativas à educação. Segundo a Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade (SECAD), as ações dirigidas às comunidades quilombolas incidem no apoio à formação de professores de Educação Básica, na distribuição de material didático para o Ensino Fundamental, na ampliação e melhoria da rede física escolar e na capacitação de agentes representativos das comunidades. Assim, podemos dizer que as ações educacionais se distribuem entre aquelas informais e aquelas formais, relacionadas ao funcionamento das escolas em áreas quilombolas. O panorama geral acerca das políticas públicas educacionais voltadas para as comunidades quilombolas até 2009 (Arruti, 2009) evidencia duas formas de tratamento da questão: a primeira delas seria uma atenção diferenciada para as escolas em territórios quilombolas, já a segunda remete às ações para uma escola quilombola diferenciada. Se, por um lado, existe uma política diferenciada para a regularização dos territórios quilombolas, que implica, por exemplo, o uso comum (em oposição à propriedade privada) e uma definição de limites com base na cultura e na memória (em oposição aos critérios estritamente econômicos e agronômicos dos assentamentos rurais), por outro, as demais políticas, relativas à
educação e à saúde, não reconheciam nenhuma diferença no tratamento dessas populações. Implicavam apenas novos recursos e expedientes administrativos para estender àquelas comunidades que, tradicionalmente, foram-lhe negados, não só pelo isolamento relativo de algumas delas, mas principalmente em função de um racismo institucional que atinge a maioria destas. Em um quadro no qual o foco está em oferecer uma atenção diferenciada para as escolas em territórios quilombolas, a abordagem tende a se restringir à ênfase nas relações étnicorraciais e à remissão ao “passado africano” dessas comunidades, o que pode ser deduzido através da Lei 10.639/03. Ainda que este já seja um desafio importante, quando deslocamos o foco para a proposta de reconhecer as especificidades dessas comunidades de forma a desenvolver ações para uma escola quilombola diferenciada, os desafios são ampliados. O primeiro deles é justamente discutir e construir a idéia do que seria uma “educação diferenciada” para quilombos. Se a especificidade da educação quilombola já é prevista, tanto na Resolução n º 4/2010, como também no Parecer nº 7 de 2010, ambos do CNE/CEB, estas remetem à definição dessas especificidades à elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Desde 2009, porém, ocorreram mudanças significativas no quadro das políticas para quilombos no campo da educação. Foram realizados seminários nacionais e regionais (como os da PUC-Rio e da Secretaria Estadual de Educação da Bahia) e a implementação de diretrizes estaduais (como as do Paraná e do Mato Grosso do Sul) e mesmo municipais (como a de Santarém – PA) sobre o tema. Dois marcadores importantes, mas que ainda não têm suas definições finais legalmente sancionadas foram os textos do PNDE 2011-2020 (que cita como estratégias: implementar políticas específicas para a formação de professores para as comunidades quilombolas; expandir as matrículas de Ensino Médio destas; e ampliar a Educação Escolar Quilombola por meio de uma visão articulada ao desenvolvimentos sustentável e à preservação da identidade cultural) e das Diretrizes Nacionais específicas para esta modalidade da educação (Brasil, 2012). Além destes últimos textos serem recentes demais para terem resultado em qualquer efeito prático, a sua relação com as realidades locais é complexa e pouco linear. Como nos lembra Mainardes (2006), os textos das políticas já são, por si
mesmo, resultados de disputas que, muitas vezes, expressam posições concretas e experiências locais. Seguindo esta lógica, depois de definidos os textos das políticas, a aplicação destas estará submetida a reinterpretações e novas disputas, que poderão vir a refletir outros embates locais. Portanto, o jongo enquanto objeto empírico vem se configurando como relevante no que tange a dois aspectos no campo da chamada Educação Escolar Quilombola: o primeiro deles remete ao apelo desta população por uma “educação diferenciada. Já o segundo aspecto possui relação com a dimensão legal que enfatiza o direito à diferença e a valorização da história e da cultura negra no Brasil, expressa pela Lei 10.639/03. Entendemos que, pelo fato de o jongo ser uma marca identitária de comunidades quilombolas, além de um dos meios eficazes pelos quais algumas delas estão alcançando visibilidade política e social, a formação identitária também contrastiva e diferenciada e, nesse caso, vinculada a uma especificidade cultural - que se dá em torno da sua prática, torna-se um subsídio importante para a reflexão sobre que Educação Escolar Quilombola é essa que vem sendo demandada. De fato, a experiência de educação não formal a partir dos Pontos de Cultura nas comunidades por nós pesquisadas nos trazem indícios de que elementos poderiam vir a constituir modelos pedagógicos para uma escola quilombola. Nas palavras de uma liderança de Campinho da Independência:
A gente começa a enxergar que o Ponto de cultura é o fundamento do nosso modelo educacional. Porquê? Porque a partir do ponto de cultura, a partir das atividades culturais, as crianças começam a se expressar artisticamente, as crianças começam a fazer telas de artes, nas oficinas os desenhos são coloridos, tem ritmos, tem cores, tem tudo. Então a gente começa a enxergar esse apoio que o Ponto de Cultura nos traz.
Desse modo, abre-se um novo campo de estudo que é a política nacional de Educação Escolar Quilombola, que poderá se respaldar em projetos de educação não formal, cosmologias, experiências específicas, dentre outros, para ser colocada em prática, uma vez que a “educação diferenciada” é um direito assegurado por essa população perante o Estado.