
12 minute read
Figura 6 - Jongueiros reunidos na sede da Arquisabra
from Jongo e educação: a construção de uma identidade quilombola a partir de saberes étnico-culturais do
salvaguarda do jongo. Dentre as comunidades atendidas, a grande maioria se localiza no estado do Rio de Janeiro, seguindo de São Paulo. No Espírito Santo e em Minas Gerais há uma comunidade atendida em cada um dos estados.
Como exemplo de um evento de mediação promovido, financiado e organizado pelo Pontão, merece destaque um, dentre muitos outros, que ocorreu entre os dias 13 e 14 de março de 2010, na comunidade quilombola de Bracuí, que reuniu algumas comunidades jongueiras do estado, e do qual foi possível a nossa participação. O evento tinha como objetivo a articulação entre as mesmas para que houvesse troca e compartilhamento de ideias acerca dos pontos negativos e positivos que cada uma das comunidades vinha enfrentando nos processos de salvaguarda e transmissão do jongo. Cada uma delas exprimiu suas lutas, seus anseios e suas vitórias nesse quesito, reforçando um processo de reflexão entre as comunidades, cujo jongo se torna um forte aliado no que concerne à resistência e à visibilidade política das mesmas perante o poder público. Neste evento estavam presentes lideranças jongueiras das comunidades quilombolas de Bracuí e Campinho da Independência, e das comunidades de Barra do Piraí e Pinheiral. Conforme demonstra a foto abaixo, os presentes se posicionaram no formato de roda, de maneira que todos podiam se olhar, fazendo alusão a uma roda de jongo.
Advertisement
Figura 6. Jongueiros reunidos na sede da Arquisabra no dia do evento (Maroun, março 2010)
A pauta do evento versou sobre a troca de saberes entre as comunidades que já haviam tido contato com uma outra forma de mediação e as que ainda não o tinham tido, ou seja, o debate era entre as comunidades que já tinham implementado Pontos de Cultura e as que ainda não o tinham feito. Os Pontos de Cultura compreendem iniciativas culturais desenvolvidas pela sociedade civil que estão sendo potencializadas pelo Governo Federal, através do Programa Mais Cultura, em conjunto com os Governos Estaduais. Os recursos podem ser utilizados para a realização de cursos e oficinas, produção de espetáculos e eventos culturais, compra de equipamentos, dentre outros. O Pontão Jongo/Caxambu também é Ponto de Cultura, no entanto, diferente deste último, ele não passou por processo de seleção pública, tendo sido indicado para existir pelo próprio Estado após o registro do Jongo do Sudeste como patrimônio cultural imaterial.
Fica claro que as necessidades das comunidades com relação à salvaguarda e ao processo de transmissão do jongo vêm encontrando, nos Pontos de Cultura, um meio eficaz de resistência e de perpetuação, pois a implementação dos Pontos estrutura o funcionamento das oficinas. Muito mais do que a salvaguarda do jongo, as lideranças das comunidades apontam para a importância do jongo enquanto signo e marca de pertencimento a uma identidade negra, o que sugere a necessidade de condições dignas para trabalhá-lo neste contexto específico. Ao longo da reunião, as comunidades de Campinho e Pinheiral, que possuem Pontos de Cultura, partilharam suas experiências com as comunidades jongueiras que ainda não os possuíam (Bracuí e Barra do Piraí), demonstrando como lidar, principalmente, com os editais, a elaboração dos projetos e a prestação de contas, isto é, com toda a parte burocrática que acompanha o fato de ter um Ponto de Cultura atrelado à sua comunidade. Além disso, foram ressaltados os problemas e as dificuldades enfrentados pelas comunidades de Bracuí e Barra do Piraí que, apesar de empenhadas no processo de transmissão do jongo já há algum tempo, não possuem respaldo do Estado através da política cultural. Um momento de destaque foi a fala de uma representante do Pontão. Ela cita que há uma grande dificuldade das comunidades na compreensão da lógica de funcionamento dos Pontos de Cultura, já que, para participar, os interessados devem estar atentos aos editais e aos mecanismos específicos de elaboração dos
projetos, o que muitas vezes só acontece por meio de mediadores que, até então, eram majoritariamente externos às comunidades. A elaboração e redação dos projetos foram, inclusive, as maiores dificuldades apontadas pelas comunidades, no que tange ao acesso a esta política pública de Estado. Entretanto, ultrapassadas as dificuldades presentes na leitura dos editais e na elaboração dos projetos, podemos dizer que, ao serem implementados, os espaços educativos subsidiados pelos Pontos de Cultura oferecem práticas educativas não formais bastante significativas para as comunidades jongueiras. Apesar de, até a década de 1980, a educação não formal, como no caso das oficinas de jongo, ter ocupado um lugar de menor importância, tanto com relação às políticas públicas como entre os próprios educadores, já que a atenção se voltava exclusivamente para o contexto da educação formal, na década de 1990 esse quadro se modifica. Segundo Gohn (2011, p. 100) nesse novo cenário:
Passou-se a valorizar os processos de aprendizagem em grupos e a dar-se grande importância aos valores culturais que articulam as ações dos indivíduos. Passouse ainda a falar de uma nova cultura organizacional que, em geral, exige aprendizagem de habilidades extraescolares.
Nesse contexto, se há uma formação identitária diferenciada no âmbito não formal por meio do jongo, tal fato vem a sugerir uma negligência da educação formal para com os saberes tradicionais quilombolas. Neste momento, em que se tem início discussões acerca do que seria uma “educação diferenciada” para as escolas quilombolas (Arruti, 2009), torna-se relevante levantar alguns aspectos analíticos, a partir do jongo, que podem vir a subsidiar este debate. O que podemos perceber, portanto, é que os Pontos de Cultura, pelo viés do trabalho em torno de especificidades culturais, vêm apontando modelos educacionais quilombolas muito mais significativos que a própria escola. Assim, podemos dizer que a educação não formal nas três comunidades quilombolas jongueiras pesquisadas - que juntas compõem o que chamamos de “rede de resgate” do jongo , juntamente com a contribuição permanente do Pontão, formou uma massa de futuros militantes para o fortalecimento do movimento quilombola, assim como para a luta por políticas públicas diferenciadas, inclusive no âmbito da Educação. Os apontamentos aqui levantados
caminham no sentido da formalização de demandas sociais e políticas de reparação.
Cenário 3- Os jongueiros
Se, por um lado, podemos dizer que se instaura uma “rede de resgate” e perpetuação do jongo entre as comunidades, auxiliada e permitida também por uma política de Estado representada pelos Pontos de Cultura, devemos refletir sobre os caminhos pelos quais cada uma das comunidades pesquisadas vem conseguindo perpetuar suas lutas e, também, como o movimento jongueiro vem sendo fortalecido. Sendo assim, os mediadores que “ritualizam e negociam as categorias portadoras de identidades para ação na esfera pública, propondo, desta forma, articulação entre cultura e política” (MONTERO, Arruti e Pompa, 2009, p. 32), tornam-se peças fundamentais nesse processo. Mas que mediadores são esses? Quem são eles em Bracuí? E no movimento jongueiro, quem são ou como essa mediação se apresenta? No cenário 1 trouxemos à tona a “rede de resgate” do jongo na região Sul Fluminense, demonstrando os processos cruzados que se deram entre as comunidades no reavivamento ou na “invenção” do jongo. Nesse caso, destacamos o importante papel de Bracuí na consolidação do jongo enquanto forte elemento identitário para com a questão quilombola. Já no cenário 2, procuramos demonstrar os agenciamentos que corroboraram e impulsionaram a efervescência desta “rede de resgate”, que podem ser traduzidos pela mediação entre as comunidade jongueiras e o Governo, proporcionada diretamente por uma política pública de estado que, apesar de não ser específica para a questão quilombola, tal como a questão fundiária, vem sendo por eles utilizada. Nesse âmbito, os Pontos de Cultura podem ser considerados ferramentas relevantes ao subsidiarem financeiramente projetos, contribuindo para a institucionalização de algumas práticas culturais próprias das comunidades, dentre os quais o jongo pode ser destacado. Temos também o Pontão de Cultura Jongo/Caxambu, que promove a articulação das comunidades jongueiras, com o intuito de fomentar uma discussão para além do jongo, incluindo questões relacionadas à educação para as relações étnicorraciais, à baixa escolaridade desses jongueiros e jongueiras, ao racismo, ao preconceito racial, dentre outros.
Trataremos agora dos próprios jongueiros, também mediadores, que possibilitaram ao jongo tornar-se um caminho de disputa e visibilidade política, tanto em Bracuí, foco de nossa pesquisa, como no movimento social em torno do jongo, que se dá em toda a região Sudeste. No caso de Bracuí destacamos o papel de Délcio. Este já havia há algum tempo, perante o seu próprio núcleo familiar, assumido o compromisso com a continuidade e com a perpetuação do jongo, o que vem sendo observado pela expansão das áreas em que vem atuando. Se ele foi um ator central no reavivamento do jongo em Bracuí e em sua “invenção” em Campinho, hoje ele começa a ser reconhecido e solicitado por aqueles interessados na entrada na “rede de resgate” do jongo. O próprio movimento quilombola o reconhece como um grande mediador, mediação esta que se dá através de sua posição enquanto mestre jongueiro e, consequentemente, como educador popular. “Délcio é um cara que é considerado quilombola, não precisa de título nenhum” (fala do coordenador geral da última gestão da Arquisabra). Além disso, em nossa análise percebemos que ele foi o grande responsável pela entrada da juventude na luta política em Bracuí, capacitando-a enquanto líderes e futuros mediadores nas comunidades:
Uma vez o Délcio me ligou e disse que tinha uma viagem pra representar o jongo e me perguntou se eu podia ir. [...]. Délcio me deu um bolo de papel pra mim estudar e eu fui representando o jongo do Bracuí. Esse foi o meu primeiro passo no jongo na minha comunidade (Angélica, março de 2010).
Anjos e Silva (2008) já apontavam que a escolha do mediador junto às instâncias externas nem sempre coincide com a liderança política constituída na comunidade. Os autores fazem, inclusive, uma crítica aos mediadores externos, suspeitando que os quilombolas têm demandado a substituição de mediadores externos por aqueles oriundos da própria comunidade. Sendo assim, Délcio também foi um mediador/educador no que tange à formação político-pedagógica dos jovens daquela comunidade, principalmente por ter sido responsável por inseri-los no debate sobre a valorização de sua cultura local e da negritude como ferramenta, tanto na luta contra a discriminação racial, como na luta por políticas públicas diferenciadas e ações afirmativas. Em Bracuí, a formação das jovens
lideranças quilombolas que compõem hoje a Arquisabra tem relação direta com a consolidação do jongo, que os permitiu reafirmarem seus pertencimentos ancestrais, culturais e identitários. Nas palavras do Délcio:
Então, quando o jongo começa a mostrar pra gente esses caminhos, você precisa lutar pela terra, você precisa lutar por mais qualidade de vida, por uma escola melhor, lutar pra que a garotada possa frequentar uma Universidade, enfim... então você tem uma série de coisas que a gente só teve isso, a gente poderia até ter percebido isso de uma outra forma, mas a forma foi o jongo (novembro de 2010).
No interior da comunidade, destacamos que a mediação realizada pelo Délcio só foi possível e ganhou força por meio de mediadores internos: os próprios quilombolas jongueiros. Nesse caso, devemos destacar o papel da família Adriano. Ainda que o jongo estivesse vivo na memória dos velhos jongueiros, era a família de Seu Zé Adriano, viúvo da jongueira Clotilde, que representava a tradição do jongo na comunidade. O jongo, enquanto uma tradição familiar dos Adriano passou de geração em geração, chegando aos dias atuais, com duas jovens lideranças que foram formadas justamente através do trabalho realizado por uma de suas filhas: Luciana Adriano. No capítulo 3 discorreremos mais detalhadamente sobre todo o processo de reavivamento do jongo em Bracuí. No caso do movimento jongueiro da região Sudeste, destacamos que todos os jongueiros e jongueiras assumiram um importante papel de mediação para com o fortalecimento do jongo perante a sociedade e o poder público, o que foi materializado no formato de eventos de mediação denominados de Encontros de Jongueiros. Tais encontros alimentaram cada comunidade, tanto de forma individual, como numa rede de jongueiros que se formava, o que contribuiu para o próprio reconhecimento do jongo como patrimônio cultural. Em 1996 aconteceu no município de Santo Antonio de Pádua, Rio de Janeiro, o I Encontro de Jongueiros, resultado de um projeto de extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF), desenvolvido pelo campus avançado que a universidade possui neste município. Deste encontro participaram dois grupos de jongueiros da cidade e mais um de Miracema, município vizinho. A partir daí, o encontro passou a ser anual. Hoje, cerca de dezoito comunidades jongueiras do Sudeste participam deste evento.
O mais recente encontro, cujas informações estão disponíveis, o XII Encontro de Jongueiros, foi realizado nos dias 25 e 26 de abril de 2008, no município de Piquete (São Paulo) e teve a participação de 1000 jongueiros das cidades de Valença, Barra do Pirai, Pinheiral, Angra dos Reis, Santo Antonio de Pádua, Miracema, Quissamã, Campos (ambos municípios do Rio de Janeiro), Serrinha (comunidade urbana situada na zona Norte do município do Rio de Janeiro), São Mateus (Espírito Santo), Carangola (Minas Gerais), São José dos Campos, Guaratinguetá, Campinas e Piquete (ambos municípios de São Paulo). Numa breve análise sobre a trajetória dos Encontros de Jongueiros cabe ressaltar que, se, inicialmente, em 1996, o evento foi pensado e mediado por acadêmicos, os jongueiros, até um determinado momento, conseguiram protagonizar os encontros de acordo com suas demandas. Eles determinavam, por meio de votação, a cidade que sediaria o próximo encontro, o que se dava em função dos problemas que a comunidade vinha passando. Ter o encontro em uma comunidade era uma forma de dar visibilidade às questões levantadas e fortalecer a luta, a exemplo daquele que ocorreu em 2006, no quilombo de São José da Serra, em Valença. “A gente fazia tudo, a gente vivia o Encontro do nosso jeito” (Délcio, novembro de 2010). No entanto, com o passar dos anos, o encontro foi perdendo a dimensão política e afastando os jongueiros de sua organização, o que se deu mediante aos patrocínios de grandes estatais brasileiras. Para exemplificar, temos o encontro de 2004, que ocorreu numa casa de shows famosa, situada na Lapa (centro do Rio de Janeiro). Armaram um cenário com terra, cercas e bananeiras, para que eles fizessem um “show”, cobraram entrada e, enquanto não dava a hora de entrarem no “palco”, cada grupo ficou esperando num minúsculo camarim, o que significou uma agressão ao verdadeiro sentido do Encontro. Na verdade, esta edição do evento pode ser considerada uma atividade vinculada à indústria cultural, e não a uma mobilização social e política do movimento jongueiro.
O que era bacana no Encontro é que as pessoas se encontravam e se falavam. A gente não podia, ficou cada grupo num lugar fechado, e aí uma das meninas nossa foi falar com a menina de São José e disseram que não podia falar com ela, só depois do show (Délcio, novembro de 2010).