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INGREDIENTE
Enan Correia/divulgação
Caio Soter, chef do Pacato, rejeita o rótulo de “não convencionais”: “Taioba, ora pro nóbis... Tudo isso faz parte da nossa cultura, do nosso dia a dia”
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Negligenciadas por décadas,
as PANCs (Plantas Alimentícias Quando inaugurou seu restaurante Pacato, em Lourdes, o chef Caio Soter foi questionado sobre o motivo que o fez apostar nas
Não Convencionais), têm Pancs (Plantas Alimentícias Não Convencionais) ao criar o cardápio (re) conquistado cada vez da casa. A resposta veio na forma da pergunta que dá título a esta matéria. “Taioba, ora pro nóbis... Tudo isso que é chamado ‘de não mais espaço nas mesas convencional’ faz parte da nossa cultura, do nosso dia a dia”, disse o chef, responsável pela cozinha que usa os seus pratos para contar os e nos restaurantes de BH séculos de história da nossa culinária. Que não sente a boca salivar ao pensar no sabor de uma costelinha com ora-pro-nóbis? Ou em
para quem? GABRIEL MARQUES

Feira Terra Viva, parte do Projeto Vista Alegre, que reúne produtores de frutas e legumes orgânicos: boa opção para quem quer comprar PANCs

Brejo/divulgação
O bife wellington do Pacato é enrolado na taioba e depois na massa fresca: os acompanhamentos variam com o tempo, respeitando a sazonalidade dos ingredientes
Geraldo Goulart uma taioba que acabou de ser refogada com bastante alho? Apesar de tradicionais, durante um bom tempo as PANCs andaram sumidas. Nos supermercados, as espécies do solo mineiro foram suprimidas por outras culturas, como repolho, beterraba, alface e vários tipos de folhas e legumes. No entanto, pessoas ligadas emocionalmente aos produtos originários do nosso solo ainda lutam para tirar o “não” do nome.
A história destas plantas está diretamente ligada à história do nosso estado. Com a descoberta dos metais preciosos, Minas viu sua população crescer com uma velocidade impressionante, sem contar com uma infraestrutura que fosse capaz de trazer insumos para todos. Foram vários os períodos de crise e de fome aguda. Para colocar algo na barriga, os colonizadores tiveram de aprender a usar o “mato” da região como alimento, levando à descoberta de inúmeras plantas e receitas. Segundo o engenheiro agrônomo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural, Gastão Goulart, Minas Gerais já teve mais de 10 mil espécies diferentes de plantas nativas. Hoje, as estimativas estão na casa das dezenas. “A urbanização e o desenvolvimento de adubos e sistemas de irrigação são os motivos por trás do desaparecimento”, explica o engenheiro da Emater. “Houve um lobby muito forte que convenceu os fazendeiros a optar por couve, repolho, beterraba, para ter uma padronização.” Para tentar reverter esse cenário, a Emater criou, em parceria com a Epamig, um programa de compartilhamento de mudas de PANCs, que são doadas a qualquer produtor rural interessado. “Essas plantas estão muito ligadas ao saber popular, ao conhecimento das comunidades quilombolas. É algo que precisamos resgatar para não deixar morrer”, diz Gastão. Uma das principais vantagens para quem estiver interessado em investir neste plantio está na praticidade. Segundo o engenheiro, por estarem totalmente adaptadas ao nosso clima e ao solo, não é preciso usar quase nenhum defensivo agrícola.
Há mais de dez anos trabalhando com o cultivo de PANCs e plantas orgânicas, o fundador do projeto Vista Alegre, Lucas Castro, usou os bancos da Epamig e várias parcerias para trazer espécies diferentes à sua fazenda. “A troca de mudas entre vizinhos é algo comum. Essa característica de doação, de compartilhamento, é muito
forte entre quem mexe com PANCs”, conta. Além de uma plataforma de compras na internet do projeto Vista Alegre, Lucas também expõe os seus produtos aos sábados na Feira Terra Viva, localizada no bairro Santa Tereza. Além de ora pro nóbis, taioba, azedinha e peixinho da horta, o agricultor também surpreende com as suas variedades de milhos crioulos. “Muita gente olha para as espigas vermelhas, pretas e pergunta se é transgênico. Este, na verdade, é o milho do nosso solo”, diz Lucas, que tem de tomar cuidado com os arredores da sua fazenda. Por ser uma planta de polinização aberta, a presença de mudas de milhos transgênicos nas redondezas podem acabar suprimindo as variedades tradicionais, uma vez que o pólen consegue viajar distâncias de até 400 metros. Além da preocupação com as suas plantas, o fazendeiro também voltou parte de sua atenção não só para levar a comida à mesa dos clientes, mas também, os clientes à comida. “Nós convidamos as pessoas que compram dos pequenos produtores a visitarem a fazenda, colocar a mão na horta, conhecer mais sobre o processo”, conta Lucas.
Outra participante da Feira Terra Viva é Veranilda Castro Alves. Durante a infância, a família de Dona Vera, como é conhecida, usou as PANCs para ter o que comer em alguns dias, lembrando que os grandes períodos de fome não são uma exclusividade do passado distante. “A vida toda nós comemos beldroega, caruru, ora pro nóbis”, recorda. Além de alimento, as plantas também serviam como medicamento. A transagem é usada para tratar infecção urinária; cansanção, para diabetes; babosa, para câncer; serralha, para aumentar a imunidade; capim cidreira, para acalmar os ânimos; e mais uma infi nidade de outras receitas passadas de pais para fi lhos. Hoje, ela cuida de suas mudas na horta dentro de casa, no bairro Ribeiro de Abreu. Para Dona Vera, a conexão com a terra é uma mistura de terapia com fé. “São coisas que Deus dá, como diziam os antigos”, conta a produtora, que sempre deixa um terço na horta. “Agora mesmo, a chuva acabou com meus alfaces. Mas tudo bem, daqui a pouco começa a brotar outras plantinhas”. Nos dias de feira, os produtos que mais têm sido procurados são a vinagreira, peixinho da horta, taioba, almeirão e a azedinha, que tem sido a campeã de venda.

Dois pratos da Panorama: a pizza Floresta, feita com fl ores da estação, e o carpaccio bovino com pasta de azedinha
Divulgação

Lucas Brandão, sócio da Panorama Pizzaria e do Agosto Butiquim, apostou na utilização dessas espécies para levar aos clientes um cardápio diferenciado: almeirão refogado ou pesto de maria gondó nas pizzas e taioba no goulash do bar
Fotos: Victor Schwaner/divulgação

Nos restaurantes e bares, as PANCs mostram seu valor. Lucas Brandão, sócio da Panorama Pizzaria e do Agosto Butiquim, apostou na utilização dessas espécies para levar aos clientes um cardápio diferenciado. “Na pizzaria, a gente tem essa pegada de valorização da cultura alimentar de Minas, dos ingredientes ao modo de preparo”, diz. Esse passeio pela história começa logo nas opções de entrada da Panorama, com um carpaccio bovino servido com pasta de azedinha e queijo canastra. Já entre as redondas mais pedidas, está a Floresta, feita com muçarela, linguiça desconstruída com páprica, cebola roxa, flores de acordo com as plantas da estação e cebolinha. Há também outras opções de pizzas, feitas com almeirão refogado ou pesto de maria gondó. No Agosto, a taioba é um dos acompanhamentos do prato UAI Goulash, servido com cubos de maçã de peito cozido ao molho de cerveja preta e páprica doce, croutons de queijo canastra, salsa, pimenta rosa e ervas frescas. Já o chef Caio Soter fez da taioba uma parte importante da sua releitura do tradicional bife wellington. No Pacato, os clientes encontram uma versão do prato feito com carne de porco refogada e enrolado na PANC e na massa tradicional. Os acompanhamentos variam de acordo com os meses, respeitando a sazonalidade dos ingredientes. z
O Goulash, sopa tradicional da hungria, ganhou uma releitura mineira no Agosto Butiquim: com direito a taioba na receita
