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Sol Nascente: a vida por um fio de água

Foto: Victor Mendonça

Em meio à inconstância do abastecimento e dificuldade de higienização, em fevereiro de 2020, o medo da morte bateu à porta

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Mariana Fraga

Obrilho do sol que nasce, em meio a um céu azul-claro, que faz a vista doer, contrasta com a poeira da terra vermelha e esburacada, cortada por um traço de fossa, das ruas do Trecho 3 do Setor Habitacional Sol Nascente. O carro ano 1997 empoeirado em frente à casa de reboco, número 31, anuncia que aquele lugar está há muito tempo sem ver água. Ao bater palmas, em frente a moradia de paredes revestidas de cimento, e gritar: “Ô, de casa!”, a dona Nilacir da Silva, de 62 anos, abre a porta e traz consigo uma pergunta, que serve muito mais como uma resposta. “O que é lavar um carro quando se tem dias que não dá nem para lavar as mãos?”. Na casa comprada em 2013, no valor de R$ 17 mil, água - um dos principais elementos no combate ao coronavírus -, é uma raridade. “Hoje de manhã teve água na minha casa, mais ou menos até uma hora da tarde, mas depois cortou. Agora só Deus sabe que horas ela volta”, disse, em uma terça-feira de maio. De acordo com ela, sempre falta água aos sábados, domingos e feriados. “Lavar roupa e limpar a casa só é possível de madrugada”, lamentou. Apesar de receber mensalmente a

conta de água da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB), não há abastecimento da casa. A água que chega não é legalizada. Os canos são formados por uma gambiarra, um “gato”, como se diz por aqui. Durante a produção desta reportagem, a Caesb não respondeu aos questionamentos que fizemos. A assessoria de imprensa do órgão, ao ter conhecimento que a reportagem era feita no âmbito universitário, direcionou o atendimento para um setor de trabalhos acadêmicos.Até o final de junho, nenhum representante da Caesb esclareceu por que a população do Sol Nascente tem abastecimento irregular Em meio à inconstância do abastecimento de água e dificuldade de higienização, em fevereiro de 2020, o medo da morte bateu à porta. Foi na sala de televisão, que fica de frente à rua, que dona Nila conheceu, por intermédio dos principais telejornais brasileiros, duas palavras até então desconhecidas: coronavírus e covid-19. A doença, descoberta na China, se espalhou pelo mundo e foi registrada pela primeira vez no Distrito Federal, no dia 5 de março de 2020. As informações dominaram a programação dos jornais brasileiros. Pelo noticiário, Nilacir aprendeu que a principal medida de prevenção é lavar bem as mãos e manter ambientes constantemente higienizados. “Mas como isso será possível em nossa comunidade se aqui mal tem água?”, questionou a aposentada por invalidez pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Nilacir é hipertensa, tem obesidade e úlcera varicosa. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), pacientes com condições crônicas pré-existentes, como a hipertensão e diabetes, predispõem ao agravamento da Covid-19. Como parte do grupo de risco, os cuidados precisaram ser ainda maiores. Também por meio do noticiário jornalístico, ela aprendeu sobre a necessidade do isolamento social. Artesã depois da aposentadoria, Nilacir vendia seus produtos de crochê e fuxico em feiras da Secretaria de Turis

mo, como a da praça do Relógio, em Taguatinga. “A gente não faz visita nem recebe. Sair de casa só para fazer o extremamente necessário. Se eu pegar coronavírus, a chance de eu morrer é muito grande”, disse. A aposentada mora com o marido em uma casa com um quarto, banheiro, sala e cozinha. Aluízio dos Santos, de 63 anos, é mecânico e possui uma oficina no Setor O, de Ceilândia. Mesmo sendo um serviço considerado essencial, o marido de dona Nilacir, que se trata do diabetes, também faz parte da faixa de risco, decidiu suspender o trabalho. Para manter o sustento, Aluízio foi aprovado como beneficiário do auxílio emergencial, programa lançado em 7 de abril pelo governo federal, no valor de R$ 600, para cidadãos brasileiros em situação de vulnerabilidade social durante a pandemia.

Descaso

A apenas 35 quilômetros de um dos principais símbolos de poder do país, o Congresso Nacional, está a comunidade Sol Nascente, a segunda maior favela do Brasil, com 25.441 casas, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019. A cidade fica atrás apenas da Rocinha, no Rio de Janeiro, maior aglomerado subnormal do país, com 25.742 domicílios. O maranhense José Goudim Carneiro, de 64 anos, mora no Sol Nascente há 28 anos. Radialista e técnico em telecomunicações, desde 2009, Goudim se engajou em lutar pela independência da cidade como região administrativa e em movimentos sociais. Ele defende a participação popular nas decisões. “Morar aqui não foi uma escolha. A maioria que mora aqui, veio do interior do nosso país, em busca de melhores condições de vida. Mas quando eles chegam aqui, só têm espaço são nas periferias. Esse povo não invadiu, esse povo comprou o seu lote. Eles sabiam que era irregular, mas

não tinha dinheiro para comprar em uma área regularizada. Eles também tinham o sonho da regularização e um dia terem a casa própria”, disse. De acordo com Goudim, moradores em vulnerabilidade no Sol Nascente é vítima de um processo político de desamparo social. “As pessoas me perguntam como não temos hospital e médicos na cidade Sol Nascente? Não tem porque ao longo da vida a saúde foi tratada de forma mesquinha, copiando os americanos para ter saúde somente particular Ao longo do tempo foi construído um país em que saúde a pública nunca foi prioridade”, afirmou. Na região administrativa, há apenas uma unidade básica de saúde, no Trecho 1. O Hospital Regional de Ceilândia é o mais próximo da região e fica a cerca de sete quilômetros de distância. Em 14 de agosto de 2019, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), sancionou uma lei que criou a região administrativa Pôr do Sol/ Sol Nascente. José Goudim lembra que foi convidado a administrar a região. Morador do Trecho 1 do Sol Nascente, na casa dele chega água, mas não há rede de esgoto. Em meio à demanda local de escassez do principal recurso no combate a Covid-19, ele mandou instalar lavabos pela cidade para ajudar na higienização dos moradores. “Desde o início, tive a preocupação que o vírus chegasse até aqui, pois aqui a contaminação poderia ser assustadora, justamente pela falta de infraestrutura, das pessoas viverem aglomeradas, além da situação financeira”, revelou. O administrador também falou sobre a dificuldade dos moradores do Sol Nascente cumprirem o isolamento social e a necessidade da flexibilização do comércio não essencial. “Para o povo que tem condição, é fácil falar que todo mundo deve ficar em casa, mas se a pessoa está ali com o filho passando fome e necessidade, ela vai ficar dentro de casa? Não fica mesmo. Não dá para aplicar a mesma condição do povo do Guará e Plano Piloto para a cidade Sol Nascente, pois são realidades diferentes. A maioria desse povo trabalha de ma

nhã para ter o que comer a noite ou para comer no outro dia. Como vamos nos manter, se sabemos que a ajuda do estado é muito pequena quando comparada com a necessidade desse povo”, indignou. Para amenizar os efeitos da pandemia, a administração de Sol Nascente está distribuindo cestas básicas em comprovada situação de vulnerabilidade social. “A gente sempre distribui cesta básica pq aqui tem muita população carente. Agora só aumentou pq agora muitas pessoas perderam sua fonte de renda”. Além disso, também estão distribuindo máscaras para os moradores da região.

Aulas off-lines

Os tons avermelhados do barro da terra harmonizam-se com o muro de tijolos, sem reboco, da casa 21 do Trecho 3 de Sol Nascente. O equilíbrio das cores na fachada da moradia dá boas-vindas aos visitantes do jovem estudante-tenista Pablo Maia. O garoto de 11 ficou conhecido nas redes sociais, no fim de 2018, por improvisar uma quadra de tênis no quintal de casa com dois pedaços de madeira e um pedaço de pano, além de receber mensagem de apoio emocionante do ídolo Roger Federer e assistir ao Rio Open ao lado de Gustavo Kuerten. No entanto, no primeiro semestre de 2020, o atleta mirim conheceu novos adversários, diferentes daqueles enfrentados em quadra: a pandemia de coronavírus e a dificuldade de continuar os estudos online devido a instabilidade da internet e a falta de um computador. Por conta da crise sanitária enfrentada no Brasil e no mundo, as aulas presenciais foram suspensas no Distrito Federal desde o dia 12 de março. Pablo cursa o 6º ano do Centro de Ensino Fundamental 28 de Ceilândia Norte. Com a escola fechada, ele ficou mais de três meses sem estudar. Para tentar manter a rotina, Pablo continuou fazendo

os treinos no quintal de casa. O garoto faz parte do projeto social do Instituto Tênis e recebe exercícios especializados para fazer em casa, enviados pelo treinador, o ex-tenista profissional Carlos Chabalgoity. No início de junho, a Secretaria de Educação anunciou que a retomada das aulas aconteceriam no dia 29 do mesmo mês por meio do Google Sala de Aula e pela televisão. No entanto, o atleta mirim não tinha computador e nem mesmo internet capaz de sustentar a conexão durante as aulas. Segundo Brasilene Maia, avó do Pablo, o jeito foi tentar usar o celular. “Começaram as aulas online, ele tinha que estudar pelo meu celular e ficava tudo travando. Não foi nada fácil, porque eu não sou muito expert no assunto, né? Tem que ficar entrando em várias páginas para poder ver as aulas, para poder responder. Se o professor manda um texto, você tem que clicar em outro lugar para abrir uma imagem para interpretar o texto, e no celular não dá para fazer isso tudo, principalmente o meu que não é lá grande coisa”, lamentou. Após divulgar a falta de equipamentos do jovem atleta promissor, Brasilene contou que Pablo recebeu a doação de um notebook e uma pessoa se comprometeu a pagar uma internet de qualidade, para que Pablo possa prosseguir com os estudos. De acordo com pesquisa feita pelo Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF) entre os dias 21 e 31 de maio de 2020, mais de 127 mil estudantes da rede pública de ensino do DF não tem acesso à internet. O número representa 27,71% dos estudantes. De acordo com pesquisa da realizada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) entre março e outubro de 2018, 94% dos estudantes da rede pública têm acesso à internet de alguma forma. Pablo mora com a avó, a tia e a prima, em uma casa de dois quartos, um banheiro e um cômodo que agrega a cozinha e sala. A moradia não tem rede de esgoto. A avó, Brasilene, de 52 anos, trabalha como diarista durante duas vezes na semana. Nos outros três dias, ela acompanha

Pablo nos treinos de tênis em um clube do Setor de Clubes Sul, no centro da capital. Com o início da pandemia, a empregadora de Brasilene a pediu para cumprir o isolamento social. “Ela falou que queria que eu ficasse em casa e continuou me pagando o valor completo das diárias. Mas sei que infelizmente nem todo mundo teve essa mesma sorte que eu”, contou. A diária paga é no valor de R$ 150. A tia de Pablo, por sua vez, que estava desempregada, conseguiu receber o auxílio emergencial. O medo de dona Brasilene é a falta de conscientização dos vizinhos e moradores do Trecho em relação às medidas de prevenção contra a Covid-19. “Aqui no Sol Nascente tem muita gente que não está levando a sério e não usa máscara”, disse. A mesma situação foi testemunhada por Nilacir Arce. “Tem movimento normal nas ruas e nos comércios como se nada estivesse acontecendo.“

Casos na periferia

Ceilândia e Sol Nascente somam o recorde de casos em mortes no Distrito Federal. Até o fim do primeiro semestre de 2020, foram registradas 6.459 pessoas infectadas pelo coronavírus e acumulou mais de 111 vidas perdidas, em média de uma a cada cinco pessoas que morriam na capital do país durante a produção desta reportagem. A segunda região com mais casos é o Plano Piloto, com mais de 3.448 pessoas positivas para a Covid-19. José David Urbaéz, médico médico e diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, disse que a maior incidência de infectados e vítimas na periferia era esperado. “A gente sempre soube que a pandemia entrou pelas regiões mais privilegiadas da cidade, do centro, e uma vez que a Covid entrou com casos importados, de pessoas que estavam nos Estados Unidos e sobretudo na Europa. Mas aqui em Brasília, a gente tem como em to

das as metrópoles brasileiras, pessoas que moram em áreas periféricas, mas trabalham nas áreas centrais. Não tínhamos nenhuma dúvida que a partir dessas práticas laborais nas áreas centrais, o vírus iria adentrando cada vez mais nas regiões mais vulneráveis socialmente, com muitos problemas econômicos e problemas de infraestrutura”, analisou.

Flexibilização

De acordo o infectologista, inicialmente a contaminação em massa das periferias foi adiada, em função do isolamento social estabelecido no Distrito Federal, ainda no meio do mês de março. No entanto, nos últimos meses houve a flexibilização do isolamento social. Segundo o médico, a medida aconteceu por uma ineficiência política. “Se viu o triste espetáculo no Brasil de um abandono das atividades de isolamento social e uma impossibilidade de manter pessoas muito vulneráveis dentro de casa por uma ausência de programas de apoio, que a renda mínima mensal. Os auxílios sociais que são indispensáveis para manter o isolamento social porque as pessoas de vulnerabilidade social e econômica precisam de trabalhar para a subsistência”, disse. Com a abertura da atividades não essenciais, a proporção de infectados aumentou.“É óbvio que você abrindo esses fluxos, você vai começar a ter o vírus migrando para essas regiões periféricas e nas regiões periféricas, as situações de isolamento são muito mais difíceis, porque as pessoas não tem uma capacidade de uma moradia suficiente para o número de pessoas para manter o isolamento e a situações de acesso mesmo a serviços de saúde fica muito mais difícil. Além do próprio conhecimento das pessoas quanto a gravidade da pandemia. O vírus, quando entra nas regiões mais vulneráveis,vai se multiplicando de maneira muito mais intensa, pois a um favorecimento disso”, apontou.

Solidariedade

Em meio à tristeza da morte por coronavírus de amigos próximos, Margarida Minervina tornou-se uma referência para famílias em vulnerabilidade social durante a pandemia. A pedagoga e assistente social, de 47 anos, é líder comunitária no Sol Nascente desde o ano 2.000.. A educadora social, voluntária da Escola Classe 66, fundou em 2009 a Associação Despertar Sabedoria do Sol Nascente, uma instituição pedagógica/social, de reforço escolar. “Em um turno, a criança vai para a escola e, no outro, vai para a instituição. Além de ajudar as famílias que não tem com quem deixar o filhos, nós temos o objetivo de fazer essas crianças terem capacidade pedagógica no ano que estão matriculadas”, disse. A associação também auxilia as 70 famílias cadastradas com doação de alimentos, assistência psicológica, entre outros apoios sociais. Com a suspensão das aulas presenciais em março, a função pedagógica da instituição foi interrompida, mas a parte social se fortaleceu. Para amenizar os efeitos do isolamento social, que provocou a perda da fonte de renda de moradores das periferias do Distrito Federal, a associação teve que se reinventar. “Começamos a acolher as famílias cadastradas e a demanda foi crescendo a cada segundo. Tivemos que meter a cara e tentar trazer uma solução para a nossa comunidade. Corremos atrás de recursos, cestas básicas, material de higienização, álcool em gel, leite, alimentos essenciais. Quando a gente percebeu, tinham mais de três mil famílias cadastradas”. Minervina está desempregada. Um filho adulto a ajuda nos mantimentos de casa. Ela sabe que a situação é difícil. Mas agora sabe que não é possível pensar apenas em si mesma. Mais do que as doações de materiais, ela mostra que um insumo obrigatório naquele lugar é a solidariedade.

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