A Dogmática Luterana Confessional: Escatologia (Portuguese) Eschatology

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DOGMÁTICA LUTERANA CONFESIONALE XIII

ESCATOLOGIA

John R. Stephenson

Tradução por Gerson Luis Linden

Publicado por Projeto VDMA

Missões para a América Latina e o Caribe da LCMS

2024 © Luther Academy

6600 N Clinton St, Fort Wayne, IN 46825 USA

Versão em espanhol: Escatología 2021 © Luther Academy

Versão em inglês: Eschatology 1989 © Luther Academy

P.O. Box 94, Cresbard, SD 57435

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As citações do Livro de Concórdia, traduzidas e editadas por Theodore G. Tappert, são usadas com a permissão da Augsburg Fortress Press. As citações de Luther's Works: The American Edition são usadas com a permissão da Concordia Publishing House (CPH) e da Augsburg Fortress Press.

ISBN: 9798328115162

Impressão apoiada pela Fundação Luterana do Patrimônio

www.LHFmissions.org

In piam memoriam

pastor animarum

Beati qui ad coenam nuptiarum Agni vocati sunt.

CONTEÚDO

Abreviaturas vii

Introdução geral ix

Prefácio xiii

Parte Um: Introdução 15

1. Apostasia Geral - O Sinal do Nosso Tempo 17

2. O Que é Escatologia? 37

3. Escatologia Realizada e Inaugurada na Escritura 49 e no Livro de Concórdia

Parte 2: O fim do ser humano – Microcosmo (Escatologia Individual) 57

4. A morte temporal 59

5. A imortalidade da alma 65

6. O Estado Intermediário da alma 79

Parte 3: O fim do mundo (escatologia macrocósmica) 93

7. Os sinais da vinda de nosso Senhor 95

8. A parusia e seus concomitantes 143

9. A consumação da lei no impenitente final: inferno e condenação eterna 165

10. A consumação do evangelho na vida celestial dos bem-aventurados bienaventurados 179

Bibliografia 193

ABREVIATURAS

Referências a versões da Bíblia

LXX Septuaginta

NAA Versão bíblica - Nova Almeida Atualizada

NEB New English Bible

NVI New International Version

RSV Revised Standard Version

Documentos do Livro de Concórdia

CA ApCa Confissão de Augsburgo

Apologia da Confissão de Augsburgo

AE Artigos de Esmalcalde

Cm Catecismo Menor de Lutero

CM Catecismo Maior de Lutero

FC Ep Fórmula de Concórdia (Epítome)

FC DS Fórmula de Concórdia (Declaração Sólida)

Edições do Livro de Concórdia

BKS Die Bekenntnisschriften der evangelisch-lutherischen Kirche. Editado pela la Deutscher Evangelischer Kirchenausschuss. 10a edição. Göttingen: Vanderhoeck & Ruprecht, 1996.

LC Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana, editado por Yedo Brandenburg, traduzido por Arnaldo Schüler, São Leopoldo, Porto Alegre; Sinodal, Concórdia, 2021.

Tappert The Book of Concord: The Confessions of the Evangelical Lutheran Church. Traduzido e editado por Theodore G. Tappert. Philadelphia: Fortress Press, 1959.

Referências às obras de Lutero

WA D. Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe. 58 vols. Weimar: Hermann Böhlau und Nachfolger, 18831948.

WABr D.Martin Luthers Werke. Briefwechsel. 15 vols. Weimar: Hermann Böhlau und Nachfolger, 1930-1978.

WADB D.Martin Luthers Werke. Die Deutsche Bibel. 12 vols. Weimar: Hermann Böhlau und Nachfolger, 1906-1961.

WATr D.Martin Luthers Werke. Tischreden. 6 vols. Weimar: Hermann Böhlau und Nachfolger, 1912-1921.

AE Luther´s Works: The American Edition 55 vols. Editado por Jaroslav Pelikan e Helmut T. Lehmann. St. Louis: Concordia; Philadelphia: Fortress, 1958-1967.

OS Martinho Lutero – Obras Selecionadas. Editado pela Comissão Interluterana de Literatura. Traduzido por Luis M. Sander et. al. Porto Alegre: Concórdia, São Leopoldo: Sinodal, canoas: editora da Ulbra. 19872017.

Outras referências:

MPG Migne, J. P., ed. Patrologiae Cursus Completus. Series graeca. 161 vols. Paris: Garnier Fraher, 1844-.

MPL Migne, J. P., ed. Patrologiae Cursus Completus. Series latina. 221 vols. Paris: Garnier Fraher, 1844-.

TDNT Kittel, Gerhard, ed. The Theological Dictionary of the New Testament. Editado e traduzido por Geoffrey W. Bromiley. 10 vols. Grand Rapids: Eerdmans, 1964-1976.

INTRODUÇÃO GERAL

por Robert D. Preus, Editor geral, 1984-95

Dogmática Luterana confessional

Já faz algum tempo que aqueles de nós na Igreja Luterana que tem se interessado nas Confissões Luteranas, ensinado a partir delas e conduzido pesquisa esses grandes escritos simbólicos, reconhecemos a necessidade de um recurso dogmático baseado no esboço e na forma de pensamento das Confissões Luteranas. Tal recurso, até a presente data disponível apenas do pequeno Compendium Locorum Theologicorum, de Leonard Hutter, se dirigiria a teólogos de nossos dias com uma resposta verdadeiramente confessional para as questões teológicas que enfrentamos na cristandade e em nosso Sião luterano hoje. Não estamos de forma alguma interessados em substituir A monumental Dogmática Cristã, de Francis Pieper, como livro texto em nossa Igreja Luterana - Sínodo de Missouri, que tem servido estudantes em nossa igreja e em outras por três gerações. tal empreendimento teria sido desnecessário e improdutivo. Os autores dos diversos volumes nesta série da Dogmática Luterana Confessional chegam aos seus respectivos temas a partir de pontos de vista e origens um pouco diferentes e predileções pessoais na medida em que praticam a dogmática. Foi decidido, portanto, editar uma série de tratados dogmáticos sobre os principais artigos de fé, normalmente abordados nas dogmáticas tradicionais desde o século XVI - a Confissão de Augsburgo, os Loci Communes, de Felipe Melanchthon e os Loci Theologici, de Martin Chemnitz, por exemplo.

Mas por que a abordagem a partir das Confissões Luteranas? Não seriam elas obsoletos credos antigos e símbolos irrelevantes para os nossos dias, e não seria uma série de volumes escritos a partir do ponto de vista da teologia luterana confessional igualmente irrelevantes para as questões teológicas que presentemente confrontam a igreja? é porque

x

xi precisamos responder a tais questões com um enfático não, que queremos publicar os volumes que virão. As Confissões, cuja teologia é tirada diretamente das Escrituras, são de fato relevantes para os nossos dias, assim como o são as próprias Escrituras, que são sempre úteis “para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (2 Tm 3.16). Tem havido um chamamento e necessidade reais para exatamente o tipo de série de dogmática aqui proposta, ou seja, uma dogmática confessional luterana. Primeiramente, nenhum livro de dogmática de qualquer espécie foi publicada por teólogos luteranos confessionais ortodoxos (na linha de Elert, Pieper, Hoenecke e Hove) no espaço da última geração. Durante este mesmo período, entretanto, tem havido um renovado interesse nas Confissões Luteranas, em sua função de dar forma a nossa apresentação luterana da doutrina e em certa medida mesmo em normatizar esta doutrina: observe os excelentes estudos de Edmund Schlink, Holsten Fagerberg, Leif Grane, Peter Brunner, Wilhelm Maurer, Friedrich Mildenberger, Herman Sasse e outros, assim como muitos livros e estudos recentes, escrito sem conexão com as lembranças do aniversário do Livro de Concórdia, da Confissão de Augsburgo, etc. Assim, parece haver a necessidade não apenas de um recurso dogmático em nossos dias, mas um que seja estrita e conscientemente confessional em sua apresentação da doutrina e na sua avaliação e análise de tendências teológicas modernas na igreja cristã. Esta série, da qual este volume é uma parte, está escrita para preencher esta necessidade, e a esperança e oração dos editores é que o presente volume atinja em certa medida este objetivo.

Os volumes que compõem a Dogmática Luterana Confessional não são uma teologia das Confissões Luteranas; são antes uma série na dogmática. eles diferem de outros livros de dogmática no fato de serem moldados estritamente segundo a teologia do Livro de Concórdia, na medida em que abordam as questões atuais. Eles seguem não apenas a teologia do Livro de Concórdia, como os textos de Francis Pieper e Adolf Hoenecke e outros dogmáticos luteranos confessionais têm feito, mas, diferentemente destes dogmáticos, os autores dos presentes volumes seguem o padrão real de pensamento (forma et quase typos, ὑποτύπωσις) das Confissões Luteranas. Tal procedimento está de acordo com o princípio das próprias Confissões; credos e confissões são de fato um modelo e

Há uma outra razão para a concordância doutrinária que será perceptível entre os autores da Dogmática Luterana Confessional. E é esta: todos os autores compartilham do conceito de doutrina, da unidade de doutrina, do consenso na doutrina e da pureza de doutrina consistentemente articulados em nossas Confissões. Todas as Confissões Luteranas veem a doutrina como um todo singular e orgânico. a doutrina cristã é semelhante a um corpo (corpus doctrinae), com partes (partes) ou articulações (articuli), ligamentos e membros (membra). O plural “doutrinas” é raramente usado nas Confissões, assim como na Escritura, mas antes é usado singular “doutrina”. Na igreja se um membro sofre todo o corpo sofre; de acordo com a natureza orgânica, unitária, da doutrina cristã, se um artigo ou membro falha, todo o corpo doutrinário é afetado negativamente. Lutero disse: “um só artigo consiste em todos e todos consistem em um só”.3

Como uma Dogmática Luterana Confessional, o presente volume retirará cuidadosa e conscientemente sua doutrina da Escritura. Todas as Confissões, começando pelos Credos e concluindo com a Fórmula de Concórdia, reivindicam ser e são explicações diretas da Sagrada Escritura. Como tais, seu propósito é nunca nos desviar da Escritura, nem sumarizar as Escrituras de tal forma a tornar seu estudo adicional desnecessário. Elas são escritas para conduzir nos para dentro das Escrituras. Esta é exatamente o que tem sido a sua função na história da igreja, se pensamos sobre os muitos comentários escritos sobre os credos antigos por parte dos pais da igreja ou sobre as exposições de nossas Confissões pelos reformadores e seus sucessores. O leitor, portanto, notará que a presente obra na

1 FC DS – Da Suma 10; LC, 570.

2 Prefácio ao Livro de Concórdia – LC, 28.

3 Comentário aos Gálatas, 1535, WA 40.3:47.32-33; AE 27:38 (OS 10:462).

xii norma de acordo com o que todos outros livros escritos devem ser aceitos e julgados.1 Este fato será responsável pela concordância tanto em doutrina como em formulação, que o leitor observará dentro de toda a presente série de dogmática; os autores se vinculam não apenas de forma geral à teologia do Livro de Concórdia, mas ao seu conteúdo e terminologia (rebus et phrasibus).2

A presente obra é um tipo de loci communes, a recapitulação dos principais temas da Escritura com base no esboço e modelo de pensamento confessional luteranos. As próprias Confissões Luteranas nunca reivindicam serem a obra final sobre o entendimento e exegese das Escrituras; lembramos a declaração de Lutero sobre oratio, meditativo, tentatio4 com sua explosão contra um sabe-tudo teológico e quão frequentemente esta declaração de Lutero foi repetida pelos teólogos após a Reforma em suas obras dogmáticas. As Confissões sempre conduzem mais profundamente para dentro das Escrituras, especialmente na medida em que novas questões surgem em novas culturas em gerações que se sucedem, que precisam ser enfrentadas apenas com a teologia retirada das Escrituras e moldada segundo as Confissões Luteranas.

Os volumes desta série são dedicados a Francis Pieper, um grande dogmático confessional luterano de nossa igreja, na Esperança e na oração de que eles ajudarão a atingir o que ele tanto fez para alcançar em seus dias – isto é, a unidade doutrinária e consenso na doutrina do evangelho em todos os seus artigos entre todos os luteranos e uma firme identidade luterana confessional tão seriamente necessária em nossos dias.

4 Prefácio à Edição de Wittenberg dos escritos de Lutero em alemão – 1539, WA 50:659.4; AE 34:285.

xiii dogmática se engaja em uma exegese muito mais direta e extensiva do que outras obras na teologia dogmática de nossos dias, exceto a imensa Dogmática Eclesiástica, de Karl Barth. Isto é totalmente adequado e exigido em um texto de dogmática confessional luterana.

PREFÁCIO

Profunda gratidão ao meu querido pai em Cristo, Dr. Robert Preus, pelo seu convite ao autor deste volume sobre escatologia é atenuado apenas pelo doloroso reconhecimento de que este imaturo pastor e professor de teologia é terrivelmente carente no entendimento e na sabedoria requeridos para fazer justiça a tarefa que ele foi atribuída. O leitor é solicitado a estar consciente de que quaisquer que sejam as infelicidades escondidas nestas páginas devem ser colocadas na minha conta, não do Dr. Preus.

Com a gentil permissão de sua viúva, Helen, este livro é dedicado à memória de outro querido pai em Cristo, Dr. George Kraus (19241989). As quatro décadas de ministério concedidas a ele podem ser comparadas com justiça a um redemoinho doxológico, a partir de cujo centro o evangelho falado e sacramental irrompeu com vivacidade incomum. Aqueles de nós que tiveram o privilégio de estar do lado receptor do cuidado pastoral incansavelmente dado por George não esquecerão tão cedo alguém em cuja pessoa o santo ofício do ministério foi um ícone de Cristo de forma gloriosa.

O principal agradecimento é alegremente rendido a minha querida esposa Bonnie, que, tendo ela mesma sido treinada em teologia, é sempre a primeira a ler e revisar tudo o que escrevo. À medida em que com gratidão reconheço sua parte neste empreendimento literário, eu também gostaria de registrar sua paciência enquanto ela e nossas três jovens filhas tiveram de compartilhar a mim não apenas como as tarefas no Seminário e paróquia, com as incontáveis horas despendidas no processador de texto em preparação a este volume.

Agradecimentos também são dados com prazer a meu amigo e colega Prof. Kurt Marquardt, que ofereceu úteis comentários à medida em que este volume passava por seus sucessivos rascunhos, eliminando uma carga de joio no processo; ao Rev. Paul McCain e Sra. Jennifer Maxfield, que supervisionarão consecutivamente a colocação do

manuscrito na impressão, ambos indo além do dever, sugerindo reservadamente muitas melhorias necessárias, tanto no estilo como no conteúdo; e, finalmente, ao meu ex-aluno, Rev. Richard Judisch, que generosamente realizou a preparação do índice de assuntos.

John Stephenson St. Catharines, Ontario, Canadá Terça-feira da Quarta Semana de Páscoa, 1993

PARTE UM: INTRODUÇÃO

1

APOSTASIA GERAL

O SINAL DO NOSSO TEMPO

Os sinais de que Jesus fala nos “pequenos apocalipses” dos Sinóticos (Mt 24; Mc 13; Lc 21) têm se cumprido até certo ponto em toda história da cristandade, assim que os pais desde os tempos do Novo Testamento em diante têm aguardado com confiança a consumação iminente de todas as coisas por ocasião da volta de Cristo em glória. Apesar de enfatizar a qualidade “genérica” dos indicadores sobre o fim, um escritor recente neste campo observa uma “acentuada” intensificação dos sinais em nosso tempo.5 Este fenômeno pode ser discernido especialmente na crescente apostasia, dentro da própria cristandade, em relação à “fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Judas 3). Vivemos em meio a uma trágica deserção em relação a Cristo dentro da igreja, que coloca uma forte ameaça à integridade de sua igreja, enquanto ela subsiste em uma multiplicidade de confissões e denominações.

Devemos admitir, obviamente, que o “tropeço” ou “apostasia” preditos por Jesus e seu apóstolo (σκανδαλιθήσονται, Mt 24.10; ἀποστασία, 2 Ts 2.3) já estão em andamento no período do Novo Testamento. O primeiro cumprimento das predições dadas no discurso no monte das Oliveiras aconteceu quando Pedro e a maioria dos seus irmãos abandonaram seu Senhor durante sua paixão e quando um terremoto (Mt 24.7; 27.51) e sinais nos céus (Mt 24.29; 27.45) acompanharam a crucificação. As epístolas não nos deixam em dúvidas que os apóstolos tiveram de lutar não apenas com inimigos de fora da igreja, mas também com adversários dentro dela, à medida em que a pura doutrina era falsificada por todo tipo de ensinamentos falsos. A ruptura feita pelo Gnosticismo entre criação e redenção abalou a igreja do segundo século

5 Samuele Bacchiocchi, The Advent Hope for Human Hopelessness (Berrien Springs, MI: Biblical Perspectives, 1986), 117.

em seus fundamentos. Além disso, os grandes erros trinitários e cristológicos condenados em nossos Credos e Confissões, juntamente com a heresia pelagiana contra a qual toda a Reforma luterana seguiu Santo Agostinho ao levantar a sua voz, provam que o nosso Senhor estava sendo um verdadeiro profeta no Monte das Oliveiras. Sua predição de apostasia foi cumprida horrivelmente no surgimento do falso profeta Maomé, que levou à imposição forçada do Islã em grande parte da cristandade oriental.6 Ela ainda se realizou mais adiante na emergência das pretensões totalitárias que Lutero condenou como o “papado imperial”,7 que precipitou a cisma entre o Oriente ocidente e o abalo da cristandade ocidental em uma confusão de comunhões e seitas.

Em séculos recentes, a apostasia predita por Cristo, nosso Senhor, encontrou uma expressão altamente traiçoeira nos frutos amargos do iluminismo europeu. A era da razão foi uma variação atualizada do paganismo inerente no homem natural, que nasceu na queda. Na sua forma familiar, ela foi preparada pela asa pagã da Renascença do final da idade média, fazendo uma aparição já no pensamento de homens como os racionalistas Erasmo e Zwínglio no século XVI. Os deístas radicais que derramaram o desprezo sobre a fé da cristandade a partir de fora da igreja eram inimigos declarados de Cristo e do seu povo. Bem mais perigosos para a integridade da cristandade foram os deístas moderados da Inglaterra e os neulogistas da Alemanha, que deliberadamente permaneceram dentro das igrejas a fim de modificarem sua publica doctrina na direção do pensamento iluminista. Ao chegar à sua culminação na obra de Lessing e Kant, o iluminismo desfraldou a bandeira da religião “natural”, cujos três artigos de fé era uma crença em “Deus” (ou seja, o

6 OS 8:159 (Prefácio a Apocalipse, 1546), onde “o infame Maomé, com seus asseclas, os sarracenos, que, com doutrinas e com a espada, causaram grande tormento à cristandade” é identificado com o sexto anjo de Ap 9.13; e OS 8:162, onde Gogue e Magogue de Ap 20.8 são comparados com o poder turco. O entendimento de Lutero sobre o Islã como uma ameaça mortal para a cristandade no passado e no presente contrasta grandemente com a recente prontidão de diversas nações da cristandade de fazer uma aliança militar, na busca de objetivos econômicos, com governos islâmicos infames pela sua proibição implacável da fé e igreja cristãs.

7 OS, 8:161.

falso deus da Maçonaria e de outras formas de deísmo), moralidade e imortalidade, declarando guerra contra toda religião “positiva” baseada em uma suposta revelação sobrenatural. Iluministas quinta-coluna tais como J. S. Semler, resolveram a contradição inerente em sua posição ao distinguir entre a religião natural, na qual eles de fato criam, e a religião positiva cuja mitologia ainda precisava ser apresentada às massas sem instrução. No entanto, a hora da apostasia pública e desvelada por parte dos oficiais eclesiásticos logo veio, tornando não mais necessária tal concessão contorcida. Em sua arrogante premissa de autonomia de restrições externas fundadas na revelação divina, o homem iluminista tanto dentro como fora dos limites da cristandade desdenhosamente dispensou a soberania do Deus onipotente em sua palavra, preparando o cenário para a destruição selvagem da civilização cristã, entre cujas tristes ruínas vivemos hoje.

A aparente aceitação de Kant, em seu livro “Religião dentro dos limites da razão somente”, da substância da teologia natural tradicional não deve, de maneira nenhuma, ser tomada pelo seu valor aparente. A filosofia pré-kantiana considerou a existência de Deus, da alma e da vida futura como verdades que poderiam ser apreendidas pela razão natural.

Quando acordou de seu “sono dogmático”, através do estudo do incrédulo filósofo inglês David Hume, Kant foi movido para colocar os três princípios fundamentais da teologia natural junto com muito mais coisas sob o título do intrinsecamente incapaz de ser conhecido noumenon ou Ding an sich. No lugar da submissão da mente à verdade do objeto cognoscível, surgiu a autonomia do objeto humano, cujo processo de cognição tornou-se agora o foco principal do empreendimento filosófico. Os frutos do subjetivismo de Kant são vistos do rebaixamento da existência de Deus e da alma e sua imortalidade de verdades válidas, mesmo à parte da percepção individual do homem a respeito deles, para o nível de meros postulados da razão prática.8 Kant acelerou o triunfo contínuo do relativismo no pensamento ocidental, que tem muito a ver com a mentalidade indiferente e mesmo sincretista que impregna a

8 Ver Dietrich von Hildebrand, „The Dethronement of Truth,” The New Tower of Babel: Manifestations of Man’s Escape from God (Chicago: Franciscan Herald Press, 1977), 57-100, esp. 73-77.

cristandade externa9 e que produziu um vácuo na vida espiritual contemporânea, vácuo este que pode ser preenchido pelo consumismo frenético, pela imoralidade desenfreada, ou pelo ocultismo da Nova Era, e frequentemente por uma mistura dos três.

O iluminismo infiltrou e subjugou as faculdades de teologia por meio da abordagem “histórico-crítica”10 aplicada às Escrituras Sagradas

9 O sociólogo da religião canadense Reginald W. Bibby entendi que a cristandade canadense tem sido remodelada a imagem da filosofia política pluralista, que eleva o culto dos direitos humanos acima da obediência à verdade. Ver seu Fragmented Gods: The Poverty and Potential of Religion in Canada (Toronto: Irwin Publishing, 1987): “Os canadenses não têm sido imbuídos com uma ideologia que valorize ‘a busca pela verdade’, mas com uma que valoriza ‘a busca pela apreciação de pontos de vista diversos.’ Este ideal de pluralismo tem se derramado para dentro da esfera da religião” (57). Bibby fala sobre “a extensão para a qual nossa cultura, para melhor ou pior, tem tido sucesso em infundir o ideal do pluralismo moral. Nada é verdadeiro; tudo é um ponto de vista. O que é verdade para mim não pode ser imposto sobre você” (163). A Escritura Sagrada, por outro lado, abstém-se de incluir a tolerância quanto à moral e a diversidade religiosa entre as virtudes. Além disso, enquanto ela indiretamente corrobora a posição dos direitos do ser humano, a Bíblia os mantém firmemente em seu próprio contexto, nunca permitindo que eles sejam contemplados abstraídos de suas responsabilidades. A “revolução copernicana” na filosofia certamente tem tido consequências de longo alcance.

10 Estamos cientes de que nenhuma clara definição automaticamente se associa à menção do “auto criticismo” método “histórico-crítico”. Na forma como são usados neste texto, estas expressões se referem a um estudo da Escritura Sagrada realizado de acordo com pressupostos tais como os seguintes: o Jesus histórico não tinha autoconsciência divina, nem fez reivindicações messiânicas sobre si mesmo; os Milagres registrados no Antigo e no Novo Testamentos são, seja no todo ou em parte, produto da criação de mitos comunitários ou individuais ou da formação de lendas; a profecia bíblica trata apenas incidentalmente, ou nem mesmo o faz, da predição de eventos futuros. Contra tais preconceitos da infidelidade, confessamos que é Escritura Sagrada lembra a pessoa totalmente divina e totalmente humana de Cristo, ao ser ao mesmo tempo inteiramente o produto de seus autores humanos e totalmente o resultado da inspiração do Espírito Santo. Nossa recusa da procura extra batismal do alto criticismo ou crítica histórica não implica, entretanto, tem desconhecimento do desenvolvimento histórico dos escritos bíblicos ou de uma rejeição refletida de toda e qualquer hipótese sobre fontes, mas simplesmente parte do reconhecimento de que o sentido real de uma declaração da Escritura,

do Antigo e Novo Testamentos, que conferiu respeitabilidade acadêmica para aqueles que faziam guerra contra nosso Senhor Jesus Cristo nos altares e a partir dos próprios púlpitos do Senhor. Não menos importante entre os objetivos de Francis Pieper, dogmático padrão do Sínodo de Missouri, foi contra-atacar a corrosão causada pelo iluminismo na substância da verdade bíblica. Já há duas gerações no passado, Pieper estava completamente ciente da profunda apostasia que estava afligindo a cristandade, sendo movida por uma negação cada vez mais virulenta da expiação vicária, ao ponto dele afirmar que a história de fato havia entrado no “pequeno tempo” predito em Ap. 20.3.11 Pregando com base em Mt 24.15-28, que começa com uma referência ao “abominável da desolação ... situado no lugar santo”, C. F. W. Walther lamentou profundamente o estado da cristandade em seus dias:

Todavia não apenas o papado encheu a igreja cristã com suas abominações. Onde as coisas foram parar entre estes que agora se chamam de protestantes? O evangelho puro fugiu de quase todas as igrejas e escolas. Quase todos os mestres da cristandade estão agora protestando contra a palavra de Deus e não contra a palavra do homem. Nós observamos que mesmo a mais insolente infidelidade é ensinada, assim que os cristãos são levados a não confiar na Bíblia, a divindade de Cristo e a expiação são negados e tudo que é santo é zombado, de fato, que há muitas vezes uma total falta de vergonha e temor ao ponto dos homens não hesitarem em expressar seu completo desprezo pelo altíssimo Deus no céu e em declarar que a lei de Deus e a voz da consciência serem fantasmas vãos – ou, por outro lado, onde a Bíblia ainda é objeto de elevados reconhecimentos, há aqueles que moldam para si mesmos uma nova religião “entusiasta” (schwärmerisch) de acordo com as ideias pervertidas de seus próprios corações. E eles chamam de cristianismo esta miserável bagunça auto-

quando interpretada no seu contexto e de acordo com a regra de fé, é dada pelo Espírito Santo, em que nenhuma criatura pode piedosamente discordar. 11 Christian Dogmatics, 3 volumes (St. Louis: Concordia Publishing House, 1953), 3:534,518.

fabricada! Nestes miseráveis últimos tempos, o cristianismo está tão decaído como estava o judaísmo no período da destruição de Jerusalém; de fato, tão certo como a palavra de Deus é verdadeira, assim certamente a profetizada abominação da desolação agora está dentro e na maioria dos púlpitos da igreja cristã.12

As tendências apóstatas notadas e denunciadas pelos Drs. Walther e Pieper se espreitaram nas gerações seguintes até o topo da engrenagem, assim que a nomenclatura confessional com a qual estes pais fizeram distinção entre os corpos eclesiásticos da cristandade perdeu boa parte de sua força descritiva. A adoção quase universal do método histórico crítico por parte dos estudiosos da Escritura - ou seja, a capitulação ao Iluminismo - nas faculdades teológicas tornou impotentes as antigas marcas confessionais para transmitir muita informação útil a respeito de muitos daqueles que as ostentam. À distinção já de longa data entre os ramos romano, luterano e reformado da cristandade ocidental deve ser acrescida uma diferenciação entre os lados tradicionalista e modernista, que presentemente travam uma luta de vida ou morte pelas almas destas comunhões.

Quando Pieper debatia com os reformados, ele normalmente tinha em mente o presbiterianismo clássico representado por Charles Hodge, de Princeton. Entretanto, tais defensores da teologia reformada clássica têm diminuído muito em número nas duas gerações passadas, assim que o termo geral “reformado” hoje tende a denotar céticos da alta crítica ou entusiastas anabatistas, em lugar dos moderados herdeiros de João Calvino. Para nossos atuais propósitos, no entanto, podemos registrar o triste fato que a fidelidade à verdade da Escritura tem diminuído drasticamente naqueles segmentos da cristandade que reconheceríamos como pertencentes ao Protestantismo Reformado. Por um tempo, na década de 1920, a teologia de Karl Barth parecia reverter a tendência ao niilismo dentro da erudição protestante liberal. Visto mais

12 Licht des Lebens. Ein Jahrgang von Evangelien-Predigten aus dem Nachlass des seligen D. Carl Ferdinand Wilhelm Walther, ed. C. J. Otto Hauser (St. Louis: Concordia Publishing House, 1905), 660s; minha tradução).

de perto, porém, a teologia de Barth provou ser mais forte na forma do que no conteúdo;13 e, além disso, sua hegemonia foi logo desafiada pelo aparecimento da escola de Bultmann, que abriu o caminho para o caos geral que marca a maior parte das Faculdades de Teologia contemporâneas.14 As atitudes dos teólogos profissionais tem ecoado com a aprovação na esfera ecumênica. Na Sua fundação em 1948, o Conselho Mundial de Igrejas foi incapaz de afirmar até mesmo o mistério da bendita Trindade,15 e desde aquele tempo a organização virou as costas para a missão da igreja em favor de um programa de ativismo social que se encaixou de forma muito estranha com os objetivos do poder soviético.16

13 Apesar de severo, o julgamento feito por Wilhelm Oesch contém ao menos uma semente de verdade: “Também o Salvador suíço da caída igreja ‘Luterana’, Karl Barth - apesar de sua cuidadosa adesão à abordagem positiva - era no fundo um completo existencialista ... ele não era meramente um teólogo de origem reformada! Além disso ele era um político que apoiava as modernas guerras de libertação de orientação marxista. Sua imensa produção escrita de incontável número de páginas era completamente guiada pelo finitum non est capax Infiniti calvinista, assim que ao final tornou-se claramente aparente que a genuína humanidade do filho de Deus não era uma completa realidade aqui, assim como não havia audíveis ou tangíveis meios da graça” (An Unexpected Plea since 1977: Addenda to the Formula of Concord, traduzido por J. Valentinus Andreae [Fort Wayne, IN: Concordia Theological Seminary Press, 1985], 34s.).

14 Ver Edward Farley, “The Reform of Theological Education as a Theological Task,” Theological Education 22 (Primavera de 1981), 93-117; ver também os comentários de Kurt Marquardt em A Lively Legacy: Essays in Honor of Robert Preus, Kurt Marquardt, John Stephenson e Bjarne Teigen, eds. (Fort Wayne, IN: Concordia Theological Seminary Press, 1985), xi,xii.

15 Ver Henry Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, 2 ed. (São Paulo: ASTE, 1967). Ausente do primeiro artigo da constituição de 1948 do Conselho Mundial de Igrejas (p. 357), a fórmula trinitária teve um moderado retorno na “Emenda” de 1961 (p. 358).

16 Ver Ernest W. Lefever, Amsterdam to Nairobi: The World Council of Churches and the Third World (Washington, DC: Ethics and Publica Policy Center, 1979) e Nairobi to Vancouver: The World Council of Churches and the World, 1975-1987 (Washington, DC: Ethics and Publica Policy Center, 1987). Na Conclusão este último volume, Lefever expressa pessimismo quanto a se o conselho mundial de igrejas se arrependerá livremente de ter abraçado a teologia da libertação marxista, mas expressa o que pode se tornar uma Esperança profética: “talvez

Desde 1527, Lutero percebeu que a negação reformada da presença real representava uma rejeição de todos os outros artigos da fé,17 assim que o estado geral do protestantismo reformado de hoje é nada mais do que o inevitável produto final do racionalismo ingênuo de Zwínglio. Tendo a presença sacramental do todo poderoso Deus sido banida destes ramos da cristandade já na década de 1520, as muitas virtudes das igrejas reformadas não podem esconder o fato de que elas têm sido desfiguradas pela marca da apostasia massiva desde seu começo. O surgimento do unitarismo dentro das comunhões reformadas não foi um acidente, tendo em vista a opção preferencial de seus antepassados do século XVI pela cristologia nestoriana.

Mas o que dizer do grande ramo da cristandade que, como luteranos o veem, foi apoderado, por assim dizer, pelo poder usurpador do bispo de Roma? O reformador nunca permitiu que seu protesto apaixonado contra a Roma dos seus dias o cegasse para a presença contínua da cristandade dentro daquela jurisdição:

De nossa parte confessamos que existe muita coisa que é cristã e boa sob o papado; de fato, tudo que é cristão e bom pode ser encontrado lá e chegou até nós desta fonte. Por exemplo, confessamos que na igreja papal há as verdadeiras Escrituras Sagradas, o verdadeiro batismo, o verdadeiro sacramento do altar, as verdadeiras chaves para o perdão dos pecados, o verdadeiro ofício do Ministério, o verdadeiro catecismo da forma da oração do Senhor, os dez mandamentos e os artigos do Credo.18

A primeira década do século XX viu o papa Pio X emitir as condenações mais severas ao “modernismo” que ofereceu um equivalente católico romano do protestantismo liberal. Pode-se simpatizar com a algum evento dramático forçará uma reavaliação completa” (89).

17 “Mas nós continuaremos e atacaremos ainda outros artigos de fé, na medida em que ele já declara com olhos brilhantes que o batismo, o pecado original e Cristo não são nada” (AE 37:16 [Que estas palavras de Cristo, “Isto é o meu Corpo”, etc. Permanecem Firmes contra os Fanáticos, 1527], WA 23:69,28-30).

18 AE 40:231s (A Respeito do Rebatismo, 1528); WA 26:147.13-18.

qualificação feita por Pio a respeito do modernismo como sendo a “síntese de todas as heresias”, visto que o método histórico crítico do racionalismo, quando consistentemente aplicado, não deixa nenhum artigo de fé intacto. Apesar das medidas disciplinares do papa, o modernismo não foi extirpado da cristandade romana, mas foi levado para o subsolo, para reemergir com força total no meio e depois do Concílio Vaticano Segundo. Muito da teologia católico romana do presente é indistinguível no método e na substância daquilo que o protestantismo liberal contemporâneo geral oferece.19 Há um século, o teólogo ortodoxo russo Aleksei S. Khomyakov fez a extraordinária predição que, uma vez que a autoridade do Vaticano sobre seus assuntos espirituais declinou, os católicos romanos mostrariam tendências acentuadamente “protestantes”.20 Se protestante é visto aqui como sinônimo de reformado, Khomyakov aparece como um verdadeiro profeta, pois teólogos católicos romanos têm, na última geração, se mostrado ansiosos por associar-se ao movimento histórico crítico e se alinhar com os aspectos mais negativos do pensamento reformado. No fim dos seus dias, Hermann Sasse acreditava que a confissão católica romana sobre a presença real estava ficando cada vez mais instável, afirmando causticamente que o resultado final das mudanças litúrgicas revolucionárias na metade dos anos 60 implicava nada menos do que a “canonização de São Zwínglio”.21

Nem mesmo podem os herdeiros espirituais de Lutero, que pelo

19 A dissenção de inclinação tradicionalista de Dietrich von Hildebrand em relação ao modernismo ressurgente dentro do catolicismo Romano contemporâneo em The Devastated Vineyard (Chicago: Franciscan Heranl Press, 1973) tem importância além das Fronteiras de sua própria comunhão. Ver especialmente um excelente capítulo “The Sacred Humanity of Jesus” (109-126).

20 Citado em Thomas Hopko, ed.., Women and the Priesthood (Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1983), 172.

21 “A nova ordo missae praticamente destruiu antiga missa. mesmo a presença real não mais parece ser auto-evidente” (Corpus Christi. Ein Beitrag zum Problem der Abendmahlskonkordie, ed. Friedrich Wilhelm Hopf [Erlangen: Verlag der Ev.Luth. Mission, 1979], 105, n. 16; minha tradução). As Mudanças litúrgicas radicais promulgadas na igreja romana seguindo o concílio Vaticano segundo levou Sasse “com diário com espanto como São Zwínglio está sendo elevado à honra do altar” (ibid.).

menos formalmente professam sua aderência à Confissão de Augsburgo, se orgulhar de alguma grande fidelidade à fé que uma vez foi entregue aos santos. A Federação Luterana Mundial não se distanciou da teologia da libertação defendida pelo Conselho Mundial de Igrejas. O luteranismo mundial como um todo renunciou sem murmurar o entendimento dos meios da graça em geral e do sacramento do altar em particular, que tornou impensável a comunhão entre luteranos e reformados desde o tempo do Colóquio de Marburgo (1529) até anos recentes. A “diversidade reconciliada" invadiu agora o espaço anteriormente ocupado pela integridade confessional, e a nascente Igreja Evangélica Luterana da América dá pouca indicação de renunciar à “correção no meio do curso” do bispo David Preus na questão da comunhão de púlpito e altar com os reformados.22 Nem mesmo as poucas remanescentes jurisdições luteranas conservadoras são imunes às tendências destrutivas que afligem o resto da cristandade. Ainda está para ser visto se o espírito confessional expresso na doutrina, na liturgia e na vida sacramental triunfará sobre as depredações do protestantismo genérico em geral e do assim chamado movimento do crescimento da igreja, em particular.

Assim, a apostasia predita por Jesus e seu apóstolo está agora mais avançada do que quando Pieper escreveu. Teólogos fiéis têm sido cuidadosos ao longo dos tempos em confessar tanto a transcendência como a imanência do Deus onipotente (Ef 4.6), mantendo em tensão estas verdades complementares, sem cair no Islamismo por um lado, ou no panteísmo por outro; mas recentes desenvolvimentos na forma das assim chamadas teologias da libertação, do processo e feministas são indicativos de uma negação plena da transcendência divina e de um correspondente encarceramento sacrílego de Deus dentro do reino imanente de uma maneira tal que torna estas “teologias” indistinguíveis de absoluta blasfêmia.

Visto que estes três modismos, que tentam se disfarçar como teologia cristã, conseguem, cada um deles à sua maneira, derrubar a essência e fundamento da fé, é apropriado especificar seus respectivos erros em maiores detalhes. Uma teóloga, escrevendo em oposição a

22 Richard John Neuhaus, Forum Letter 15 (Fevereiro 28, 1986); 1.

ordenação feminina, observou:

Após a publicação de sua obra clássica sobre o feminismo, A Mística Feminina, lá no começo dos anos 60, Betty Friedan foi perguntada sobre o que ela pensava que seria a mudança mais radical causada pelo movimento feminista. “Eu não posso lhe dizer agora”, ela respondeu, “De qualquer maneira você não acreditaria ... ela é teológica.”23

A confissão feita por Friedan não é a única indicação de que a batalha do feminismo contra o onipotente Deus se estende muito além dos limites do seu reino da mão esquerda. A rejeição do feminismo à ordem da criação - através da qual a Providência coloca a complementaridade dos sexos em bom uso, fornecendo abundantemente às famílias terrenas um cabeça masculino e um coração feminino - como um “patriarcado” opressivo, é dirigida a muito mais do que à paternidade neste mundo. O objeto último da ira do feminismo é de fato Aquele de quem “toda a família, nos céus e na terra, recebe o nome” (Ef 3.15). Assim a introdução ao livro de Rosemary Radford Ruether, Sexism and God-Talk, intitulado, “A quenose do Pai”, assume a forma de uma blasfêmia premeditada contra a primeira pessoa da Trindade. Deus Pai é descrito como o inferior insubordinado da “Rainha do céu”,24 enquanto que o Jesus terreno é apresentado como inimigo implícito da estruturação “patriarcal” da sociedade humana, cujas intenções foram compreendidas apenas por Maria Madalena e não por todos os seus apóstolos.25 A aparição do Senhor ressuscitado a Maria Madalena é, porém, reformulada por Ruether na renúncia de Jesus e em Maria tomando seu lugar:

O vulto [de nosso Senhor!] desapareceu, mas ela viu atrás

23 Deborah Belonick, “The Spirit of the Female Priesthood,” in Hopko, Women and the Priesthood, 135.

24 “… a Rainha dos céus sorriu e chacoalhou sua cabeça. ‘Não, Sebaoth, meu Filho. Eu sou a Mãe dos deuses e dos homens, criadora de todas as coisas. Eu sou sua mãe também. Mesmo quando você me nega, eu ainda estou aqui. Além dos seus conhecimentos e seus decretos, alguém outro que é antes de você, que é maior do que você e que sobreviverá a morte do seu Reino nos céus’.” (Boston: Beacon Press, 1993, 2).

25 Ibid., 3-6.

dele uma imagem maior e mais majestosa, real e, no entanto, de certa forma familiar, uma mulher como ela mesma. “Tu, Maria”, disse a visão, “és agora a presença contínua de Cristo. Não olhes para ele para trás, mas para frente. Ele foi à frente para o teu novo futuro. Cabe a você continuar a redenção do mundo.26

Assim, a hermenêutica do feminismo “cristão” envolve não fidelidade, mas uma completa rebelião contra o texto sagrado, cuja produção é vista como uma tentativa grosseira para justificar o “patriarcado” terreno, através de sua projeção para dentro da própria divindade. A teologia feminista, portanto, está construída sobre a rejeição à encarnação e à inspiração e deve, assim, ser anatematizada da forma mais contundente. Esta forma de apostasia do fim dos tempos está presentemente preocupando a igreja através das agitações gêmeas de forçar a assim chamada linguagem inclusiva na Escritura e na liturgia e de admitir mulheres no ofício pastoral instituído pelo próprio Cristo no seu chamado dos doze. As campanhas pela ordenação de mulheres e pela linguagem inclusiva querem a substituição da Santíssima e indivisível Trindade, que se chama Pai, Filho e Espírito Santo por uma concepção pagã de “Deus”. Uma irreverência desenfreada que altera ligeiramente os próprios termos da revelação de Deus de Si mesmo em Cristo e através da Escritura é compreensivelmente cega para a qualidade icônica do ofício pastoral, que representa Cristo para a igreja e para o mundo. A fórmula luterana de absolvição nos dá a entender que um pastor administra os meios da graça “em lugar do [seu] Senhor Jesus Cristo.” O afastamento do precedente dominical e a rejeição da proibição apostólica, que resultam na ordenação de mulheres, traz necessariamente com eles o repúdio à autorrevelação do Deus todo-poderoso como Pai, Filho e Espírito Santo.27 A crescente introdução e aceitação da ordenação feminina nos

26 Ibid., 8. Para Uma completa refutação cristã dos erros da teologia feminista, ver, além do já mencionado, Women and the Priesthood, William Oddie, What will Happen to God? Feminism and the Reconstruction of Christian Belief (Londres: Society fo the Propagation of Christian Knowledge, 1984).

27 Ver: William C. Weinrich, “Feminism in the Church: The Issue of Our Day,” Concordia Theological Quarterly 50 (Abril 1986): 139-144.

corpos eclesiásticos da cristandade testemunha um deslize gadareno dos tempos do fim para uma total apostasia, que dificilmente pode descer a um grau maior de depravação do que até aquela em que já despencou.

Não menos vergonhoso do que a irrupção do feminismo pagão é o fenômeno conhecido como a teologia do processo. As características marcantes deste movimento se resumem a um descarte insolente da liberdade soberana e da santa majestade de Deus, que traz como seu efeito a substituição da reverência por uma condescendência como sendo a atitude própria da criatura diante do seu Criador. A teologia do processo está associada com a obra de Alfred North Whitehead e Charles Hartshorne. Um resumo do seu pensamento, escrito por John B. Cobb Jr. e David Ray Griffin, aponta para a rejeição por parte de teólogos do processo de cinco características do teísmo tradicional. É dito que Deus não pode mais ser entendido como (1) o “Moralista cósmico”, (2) o “Absoluto imutável e impassível”, (3) o “Poder controlador”, (4) “Aquele que sanciona o status quo”, ou (5) “Masculino”.28

Com a segunda de suas caracterizações pejorativas do teísmo tradicional, os expoentes da teologia do processo aludem ao uso da terminologia filosófica grega (e, até certo ponto, também do conteúdo do pensamento helenístico) por parte dos antigos pais evangelicais, cuja atitude com respeito ao dogma clássico é um misto de ignorância e desconfiança, e aqueles que se colocam debaixo do encantamento de Karl Barth são mais suscetíveis à bajulação dos teólogos do processo neste ponto. Enquanto a imutabilidade de Deus é uma verdade claramente revelada,29 podemos conceder que a noção de sua impassibilidade não é diretamente ensinada como tal na Escritura Sagrada e que certos mestres da igreja podem ter inadvertidamente projetado atributos platônicos para dentro da descrição bíblica de Deus. Ao mesmo tempo, entretanto, não se deveria esquecer que a teologia patrística frequentemente preencheu a terminologia helenística com conteúdo escriturístico. O ideal estoico da apatia foi realmente levado em conta na conceituação da antropologia

28 Process Theology: An Introductory Exposition (Philadelphia: Westminster Press, 1976), 8-10.

29 Pieper, Christian Dogmatics 1:440s.

cristã do quarto século, mas de maior importância do que o mero empréstimo de uma palavra foi a mudança no seu significado, de um distanciamento do mundo para a libertação do poder do pecado.30 Não se deve, portanto, ignorar que a linguagem patrística a respeito da divina impassibilidade teve a intenção de preservar o genuíno ensino bíblico a respeito da natureza de Deus.

Além disso, o desprezo ruidoso dos teólogos do processo contra a autoridade da Escritura justifica a suspeita de que sua preferência por Jerusalém sobre Atenas neste contexto não deve ser tomada pelo que parece ser à primeira vista. Acontece que o que Cobb e Griffin consideram mais questionável na confissão da divina imutabilidade e impassibilidade é o reconhecimento desta confissão sobre a liberdade e a independência soberanas de Deus em relação ao mundo.31 A teologia do processo está em concordância com a afirmação atrevida de Hegel, de que “sem o mundo, Deus não é Deus,”32 e está em continuidade com sua ideia blasfema de que o conhecimento de Deus de si mesmo acontece apenas em e através do autoconhecimento finito da humanidade.33 A bendita Trindade não é mais reconhecida como a auto-suficiente sociedade de pessoas divinas, que livremente compartilha a si mesmo com o homem

30 Ver: Cheslyn Jones, Geoffey Wainwright e Edward Yarnold, eds., The Study of Spirituality (New York e Oxford: Oxford University Press, 1986), 170s.

31 “A noção de que a divindade é o ‘Absoluto’ significa que Deus não está realmente relacionado ao mundo. O mundo está de fato relacionado com Deus, nisto que a relação com Deus é constitutiva do mundo - uma descrição adequada do mundo requer a referência a sua dependência de Deus - mas mesmo o fato de que existe um mundo não é constitutivo da realidade de Deus. Deus é totalmente independente do mundo: a relação Deus-mundo é puramente externa a Deus. Estes três termos – imutável, impassível e absoluto - enfim dizem a mesma coisa, que o mundo em nada contribui para Deus e que a influência de Deus sobre o mundo não é de forma alguma condicionada pela capacidade de Deus responder às nossas atividades imprevistas e autodeterminadas, nós criaturas deste mundo. A Teologia do Processo nega a existência deste Deus.” (Ibid., 9)

32 Do livro de G. F. W. Hegel, Philosophy of Religion, citado em: Hans Küng, The Incarnation of God: An Introduction to Hegel’s Theological Thought as Prolegomena to a Future Christology, traduzido por J. R. Stephenson (Edinburgh: T.& T. Clark, 1987), 353.

33 Encyclopedia, de C. F. W. Hegel, citado em: Hans Küng, ibid, 354.

na criação e na redenção. Esta última não é mais concebida como produto da graça de Deus e derramamento do seu amor, mas antes como atos limitados por Sua própria necessidade. A divindade da teologia do processo não é um adorável Ser de perfeição infinita, mas um ídolo com pés de barro, moldado à imagem do homem decaído, que convida à piedade, enquanto não evoca um grama de doxologia.

O desrespeito escandaloso ao Deus onipotente, presente no segundo dos pontos de diferença da teologia do processo em relação ao teísmo tradicional é o fator determinante dos outros quatro loci de divergência especificados por Cobb e Griffin. Uma vez que Deus é despojado de sua infinita santidade, a descrição bíblica do doador e aplicador da Lei só pode ser ridicularizado como um “Moralista cósmico”. Com esta rejeição ríspida de sua primeira parte, todo o edifício catequético da igreja cai vergonhosamente sobre o solo e a onipotência divina, afirmada no vocativo de início de muitas orações, é arrogantemente descartada como uma noção antiquada de “Deus como Poder Controlador”. Assim o teólogo do processo sabe mais do que o Verbo encarnado, que nos ensina que nenhum pardal cai no solo a não ser pela vontade do Pai celestial (Mt 10.29). A afinidade da teologia do processo com a teologia da libertação é vista em seu menosprezo à ideia sarcasticamente formulada de que Deus seria “Aquele que sanciona o status quo”, em cujo contexto se aprende que a atenção devida a Rm 13.1 deve ser rotulada como “famigerada”.34 Que esta mentalidade blasfema está de acordo com a teologia feminista ao rejeitar “Deus como masculino”, não é nenhuma surpresa. Cristo e a Escritura são aqui objetos de desprezo, distorção e rejeição.

Uma grande irreverência é também a marca da teologia da libertação, para a qual chama-se a atenção agora como a terceira de nossas mostras da “teologia” apóstata destes últimos tempos. Onde a teologia do processo blasfema contra Deus mesmo e a teologia feminista modifica os termos da autorevelação divina, a teologia da libertação reivindica saber mais do que Deus sobre qual é o propósito da sua missão em Cristo para redimir a humanidade. A análise sociológica e a filosofia política de Karl

34 Jones, Wainwright e Yarnold, Study of Spirituality, 5.

Marx têm um papel na teologia da libertação semelhante ao que o pensamento de Martin Heidegger concedeu ao sistema de Rudolf Bultmann. A redenção da vida eterna para a humanidade caída realizada por Cristo através do seu sacrifício é ou negada ou minimizada pela representação sem fundamento do Jesus terreno como um revolucionário social com a intenção de garantir “justiça” política e econômica no aqui e agora. O serviço de boca para fora feito pela teologia da libertação ao nosso Senhor não consegue camuflar o fato de que ela vê como o paradigma central da religião bíblica o êxodo do Egito e não o mistério Pascal da Sexta-feira Santa e Páscoa. Precisamos notar bem a sua tática de sequestrar o êxodo de seu contexto como uma prefiguração do grande êxodo conquistado através da morte e ressurreição (Lc 9.31) e transformálo em um modelo para revolução marxista nas agitadas sociedades de nossos próprios dias. A teologia da libertação teve sucesso, para usar a linguagem de Dietrich Bonhoeffer, ao ofuscar as últimas coisas ao concentrar toda a atenção nas coisas penúltimas. A ordem especificada pelo nosso Senhor em Mt 6.33 foi realmente invertida. Nem o histórico do marxismo encoraja a esperança de que algo possa ser ganho, mesmo dentro dos limites deste mundo, pela inversão das prioridades cristãs feita pela teologia da libertação. Não é preciso acrescentar nem retirar nada da seguinte crítica à teologia da libertação que, que apesar da sua origem, tem um toque claramente luterano:

As Teologias da libertação de inspiração marxista restringem Jesus ao Antigo Testamento, invertem o relacionamento entre os testamentos e, apesar de ser interpretado como um precursor de Jesus, Moisés como libertador político se torna o modelo de Jesus, que então aparece como uma espécie de Moisés incompleto. Não a cruz, mas o êxodo se torna central na Escritura e a promessa, privada de seu conteúdo espiritual, retorna ao seu sentido terreno, o político. Este progressismo é na verdade uma regressão, um retorno ao passado distante de Jesus e assim ele se torna um cancelamento de Moisés e Elias, que

caminharam em direção ao futuro - em direção à Jesus.35

A realidade sombria do mergulho de cabeça da maior parte da cristandade moderna no turbilhão da apostasia do fim dos tempos tem uma relação direta com o tema das últimas coisas. Muitos teólogos contemporâneos consideram risível a noção de que a alma continue em existência após a morte, que não é mais geralmente entendida como o merecido castigo divino provocado pelo pecado de nossos primeiros pais. Além disso, o fim do mundo é considerado hoje principalmente como um resultado possível de uma guerra termonuclear ou da poluição do meio ambiente e, portanto, um evento evitável pela astúcia humana. As claras predições de nosso Senhor a respeito do seu reaparecimento para vindicar sua igreja e vingar-se contra seus inimigos são, enquanto isto, aptas para serem dispensadas seja como lúgubres figuras de linguagem colocadas em seus lábios por seus seguidores posteriores ou então como delírios lunáticos de um apocalíptico desequilibrado do primeiro século. E a esperança do céu costuma ser desmitologizada, diluída ou relegada ao final da lista de prioridades da teologia, no interesse de conquistar a “justiça social” no aqui e agora. Além disso, teólogos que repudiaram a autoridade vinculante da Escritura Sagrada são conhecidos por levantar questões a respeito da “moralidade” de um Deus que envia algumas de suas criaturas para uma punição eterna.

O semblante devastado da cristandade nestes dias de apostasia geral coloca uma grande responsabilidade para luteranos confessionais em geral e, de forma específica, para seus teólogos. Nossa tarefa de reproduzir fielmente o ensino da Escritura Sagrada sobre as últimas coisas assume assim uma dimensão genuinamente ecumênica. No entanto, não devemos apenas olhar para os que praticam a assim chamada teologia crítica como nossos únicos interlocutores. As décadas recentes têm testemunhado a disseminação das especulações escatológicas que C. I. Scofield popularizou no início do século passado através de sua bem conhecida Bíblia de Referência Scofield. O “dispensacionalismo” promovido por Scofield retira Cristo como centro da Escritura e desvia a esperança cristã

35 Joseph Ratzinger, Journey towards Easter, traduzido por Mary Groves (New York: Crossroad Publishing Company, 1987), 17s.

da humilde espera por sua vinda em glória para um cálculo macabro da ocorrência de uma série de eventos sensacionalistas intermediários, cuja datação se torna o objeto de especulação febril. Os escritos dispensacionais cobrem um amplo espectro, desde as contribuições algumas vezes eruditas de Donald Grey Barnhouse, por um lado, cujo The Invisible War 36 oferece diversas abordagens exegéticas e pastorais úteis, até obras caça-níqueis delirantemente sensacionalistas de Hal Lindsay, por outro lado. As diversas brochuras deste último têm desfrutado de enorme circulação não apenas em inglês, mas também em diversas traduções. O dispensacionalismo tosco de Hal Lindsay está construído sobre uma alegada importância escatológica da refundação do Estado de Israel e aguarda o levantamento iminente da figura do anticristo a partir de países da comunidade europeia, juntamente com um “arrebatamento secreto”, cuja ocorrência, conforme nos é dito em diversos adesivos de parachoque, deixará sem motorista os carros dos cristãos. Os cristãos deveriam estar perturbados não apenas com a falta de habilidade exegética de Lindsay, mas também com a irresponsabilidade pastoral de uma genialidade lucrativa para a fantasia que, uma vez que suas predições infundadas se provam irreais, podem destruir a confiança de milhões não apenas no vulgar esquema dispensacionalista, mas até mesmo na santa palavra de Deus.

Como pode ser observado nos esforços lobistas de muitos dispensacionistas em nome do Estado de Israel, a escatologia de alguém pode ter efeitos diretos também no seu engajamento político. Isto é válido não apenas para os pré-milenaristas da escola de Scofield, mas também para certos pós-milenaristas, como aqueles que pertencem ao âmbito do Reconstrucionismo cristão, que estão revivendo o sonho de impor uma teocracia calvinista como um meio de realizar o reino de Deus. O ativismo político também é prescrito pelos teólogos da libertação com sua oferta de uma transposição secularizada e desmitologizada da escatologia bíblica. A reflexão sobre estes três tipos de teologia política, que tem suas raízes nas convicções escatológicas de seus respectivos proponentes, deixa claro

36 The Invisible War: The Panorama of the Continuing Conflict between Good and Evil (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1965).

que a distinção entre lei e evangelho tem um papel a desempenhar na abordagem das últimas coisas, e que a estrutura dos “dois reinos” da ética luterana está longe de ser ultrapassada.

Entre os cristãos piedosos e até ortodoxos há o perigo de distorcer a escatologia bíblica através da sua privatização. Pastores e outros mestres da igreja estão cientes de como a proclamação firme da ressurreição corporal dos mortos e o estabelecimento dos novos céus e da nova terra provoca muita perplexidade. Os bons paroquianos luteranos são conhecidos por expressarem consternação ao mencionar o “estadomeramente - intermediário”, no qual as almas dos salvos anseiam pelo retorno em glória de nosso Senhor à Terra para a consumação de todas as coisas, o que envolverá seu reencontro com seus corpos perfeitos para a vida do mundo vindouro: “Mas, Pastor, sempre pensei que nos tornamos eternos quando morremos...”. Estamos em perigo de nos concentrarmos na “microescatologia”, em detrimento da “macroescatologia”. Embora a Sagrada Escritura certamente nos obrigue a falar do estado intermediário das almas imortais, não ousamos esquecer que os escritores bíblicos concebem o paraíso em termos corporativos (porque em termos cristológicos) ao invés de em termos individuais, e direcionam a esperança dos crentes para o reaparecimento pessoal e visível de Cristo em glória com o propósito de lidar com o mundo inteiro em juízo e graça. A velha carne que se enfurece até mesmo, e especialmente, no coração dos cristãos é apta a colocar a si própria e seus interesses no centro do universo, cometendo assim a mais insidiosa idolatria ao subordinar o próprio Deus à satisfação dos desejos do homem caído. Na verdade, porém, o Deus Todo-Poderoso é o centro do círculo do universo, com o corolário de que nós mesmos somos apenas pontos sobre a circunferência da atividade divina. O arrependimento não se aplica apenas na área da ética, mas também no âmbito da teologia dogmática, de modo que devemos construir nossa escatologia não em torno dos desejos e perguntas do homem egoísta, mas em torno das respostas e anúncios dados por Deus em sua Palavra. Em vez de se dirigir isoladamente à questão, “O que acontecerá comigo quando eu morrer?”, a Escritura Sagrada revela o futuro do mundo inteiro em Cristo e, especialmente, em seu retorno visível. As últimas coisas devem ser consideradas à luz daquele

que é o Último (Ap 1.8; 22.13), que – o que quer que Scheleiermacher tenha insistido em contrário – é o ponto de partida, substância e objetivo da teologia fiel.

O QUE É ESCATOLOGIA?

Assim como a igreja em sua definição confessional, o termo técnico “escatologia” tem um sentido amplo e um estrito. Pode ser uma certa surpresa saber que a palavra é relativamente recente no vocabulário teológico ocidental, tendo sido, conforme, G. B. Caird, “cunhado em alemão no início do século XIX e subsequentemente importado para o inglês”.37 Inicialmente, apesar do regozijo de Schleiermacher quanto a sua alegada imprecisão, o termo tem um significado claro, ao qual será feita referência aqui ao sentido estrito da palavra, e que foi sucintamente expresso no Oxford English Dictionary de 1891 e 1933: “O departamento da ciência teológica que se preocupa com as quatro últimas coisas: morte, julgamento, céu e inferno.”38 A palavra tem, assim, no sentido estrito, uma correspondência direta ao termo grego de onde deriva, ἔσχατον, tratando de realidades temporalmente finais e irreversíveis.

Um conhecimento mínimo da teologia do século XX deixará claro que teólogos têm sido descuidados quanto às regras dos lexicógrafos. Um exemplo será suficiente. Em seu Cristo e o Tempo, Oscar Cullmann, o estudioso nada descuidado, manifestou sua decisão “em favor da temporalidade concebida como a essência da escatologia”.39 É

37 The Language and Imagery of the Bible (Philadelphia: Westminster Press, 1980), 243. Uma das primeiras ocorrências da palavra escatologia se encontra no final do livro de F. D. E. Schleiermacher, The Christian Faith, ed. e traduzido por H. R. Mackintosh e J. S. Stewart (Edinburgh: T. & T. Clark, 1928). Schleiermacher prefere o termo escatologia em relação ao tradicional “últimas coisas”, visto que este último dá a impressão de eventos que ocorrem também fora do sujeito crente: “A expressão, ‘As últimas coisas’, que tem sido de certa forma geralmente aceita, traz um tom de estranheza que fica mais oculta na palavra ‘Escatologia’; pois o termo ‘coisas’ ameaça nos levar bem longe do domínio da vida interior, com o que apenas estamos preocupados” (703).

38 Editado por James A. H. Murray (Oxford: Clarenton Press, 1891; reedição corrigida 1933), s.v. “eschatology”.

39 Traduzido por Daniel Costa (São Paulo: Fonte Editorial, 2020), 34.

necessário um desvio através das mudanças de certas escolas de exegese, desde Albert Schweitzer até o presente, a fim de explicar como o conceito foi carregado com mais conteúdo do que simplesmente as quatro últimas coisas.

G. B. Caird mostra como o escopo de escatologia foi rapidamente ampliado para incluir o cumprimento dos propósitos salvíficos de Deus deste mundo. A adaptação do significado deste vocábulo tem sido tão vasta que Caird oferece uma lista de não menos do que sete significados diferentes de escatologia nos estudos dos últimos cem anos.40 O primeiro alargamento do conteúdo da palavra na moderna erudição do Novo Testamento ocorreu quando os teólogos alemães Johannes Weiss e Albert Schweitzer descobriram que a teologia dominante de Albrecht Ritschl carecia de fundamentação no registro do evangelho. Ritschl, segundo em importância apenas em relação a Schleiermacher na teologia liberal do século 19, entendeu o tema do reino de Deus nos Sinóticos em termos éticos, deste mundo, fazendo do Jesus terreno um kantiano antes de Kant.41 O equivalente americano do Kulturprotestantismus de Ritschl foi a teologia do evangelho social de Rauschenbusch. Tanto Weiss como Schweitzer detectaram a discrepância entre os dados do Novo Testamento e sua exposição por parte de Ritschl e sua escola. O mérito de Weiss foi demonstrar que o Jesus terreno deve ser visto à luz de seu pano de fundo no judaísmo do primeiro século, que estava saturado com a expectativa apocalíptica da iminente ação sobrenatural de Deus para finalizar o curso deste mundo e realizar o seu reino. De acordo com Weiss, Jesus compartilhava completamente desta expectativa e assim aguardava oiminente fim do mundo. 42

40 Caird distingue entre “escatologia individual”, “escatologia histórica”, “escatologia consistente”, “escatologia realizada”, “escatologia existencial”, a “escatologia da novidade” e a “escatologia de propósito” (Language and Imagery, 243-255).

41 O eclipse da escatologia no sentido estrito na teologia de Ritschl sob a influência do idealismo alemão é descrito por Paul Althaus, Die Letzen Dinge, 5 ed. (Gütersloh: C. Bertelsmann, 1949), 52-56.

42 Johannes Weiss, Jesus1 Proclamation of the Kingdom of God, editado e traduzido por Richard Hyde Hiers e David Larrimore Holland (Philadelphia:

Nas mãos de Schweitzer, a descoberta de Weiss foi enfatizada como a chave para desvendar o mistério até então impenetrável a respeito do “Jesus histórico”. A figura reconstruída com base na análise imaginativa de Schweitzer de perícopes selecionadas dos Evangelhos veio a ser tudo menos o ancestral do Protestantismo Ritschiliano deste mundo: “O propósito de Jesus era deflagrar os sofrimentos finais, confusão e conflitos, a partir do que aconteceria a parusia e assim introduzir a fase supra terrena do drama escatológico.”43

De acordo com Schweitzer, durante o seu ministério público, que teria durado menos de um ano,44 por duas vezes Jesus tentou em vão provocar o fim do mundo. A primeira destas ocasiões teria ocorrido poucas semanas depois do início do ministério público, quando nosso Senhor comissionou os apóstolos e enviou-os para proclamar a iminente chegada do reino (Mateus 10). Mt 9.37,38 é tomado tanto como “uma alusão ao estado atual dos campos”45 quando do envio dos apóstolos e como evidência que “Jesus deve ter esperado a vinda do reino na época da colheita”46 daquele mesmo ano. A confiança de Schweitzer de que Jesus esperava o fim de todas as coisas tão rapidamente é baseada em grande parte sobre o seu entendimento de Mt 10.23:

Ele diz de forma clara (Mt 10.23) que ele não espera vê-los novamente na era atual. A parusia do Filho do homem, que é lógica e temporalmente idêntica ao alvorecer do reino, acontecerá antes deles terem completado uma apressada jornada por todas as cidades de Israel para anunciá-lo. Que as palavras significam isso e nada além, que elas não deveriam de forma nenhuma serem enfraquecidas, deveria ser suficientemente evidente.47

Fortress Press, 1971).

43 Albert Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus: A Critical Study of Its Progress from Reimarus to Wrede, 3. Ed, traduzido por W. Montgomery (London: Adam & Charles Black, 1954), 369.

44 Ibid., 350.

45 Ibid.

46 Ibid., 356.

47 Ibid., 357. A reconstrução proposta por Schweitzer também reivindicou apoio

O fracasso do Reino em se materializar como esperado levou Jesus, depois de um breve período de ausência da atividade pública, a ir para Jerusalém para acelerar a vinda do Reino de Deus. 48 Schweitzer não fez nada para esconder sua incisiva convicção de que a morte de Jesus foi um trágico fracasso:

A partir do conhecimento de que ele é o Filho do Homem que vem, [Jesus] toma a roda do mundo para colocá-la em movimento naquela última revolução que deve encerrar toda a história. Ela se recusa a mudar de direção e ele se joga sobre ela. Então ela se volta e o esmaga. Ao invés de provocar as condições escatológicas, ele as destruiu. As rodas rolam para frente e o corpo deformado de um homem imensamente grande, que era forte suficiente para pensar de si mesmo como sendo o governante espiritual da humanidade e de mudar a história conforme seu propósito, está pendurado sobre ela. Esta é a sua vitória e o seu reino.49

As pesquisas de Schweitzer levaram-no a oferecer a seguinte influente definição de escatologia: “O termo escatologia somente deve ser aplicado quando a referência é feita ao fim do mundo enquanto aguardado para o futuro próximo.”50 Assim nasceu a escola da “escatologia consistente (ou completa)”, que, conforme desenvolvida nos escritos do estudioso suíço, Martin Werner, sustentava que a igreja primitiva esperava que o fim viesse por meio da parusia de Cristo durante o período da primeira geração de cristãos. De acordo com Werner, o assim chamado adiamento da parusia provou ser um constrangimento tão grande que provocou uma remodelação definitiva da religião na direção das instituições e dogmas da das misteriosas palavras de nosso Senhor registradas em Mt 11.12, que ele interpretou assim: “Esta palavra não tem nada a ver com a entrada de indivíduos no Reino; ela simplesmente afirma que desde a vinda de João Batista certo número de pessoas estão empenhados em forçar e compelir a vinda do Reino” (355).

48 Ibid., 357s, 387s.

49 Ibid., 369.

50 Paul and His Interpreters: A Critical History, traduzido por W. Montgomery (New York: Macmillan, 1951), 228.

igreja posterior.51 Um dos principais estudiosos da escola de Bultmann argumentou em seu livro, A Teologia de São Lucas, 52 que o gênio criativo do terceiro evangelista libertou a igreja do impasse trazido pelo adiamento da parusia ao elaborar a noção de que o ministério de Jesus não representou o fim, mas o “centro” do tempo, desta forma nivelando o caminho para uma “era da igreja” para preencher a crescente lacuna temporal entre a primeira e a segunda vindas do Senhor. Conzelmann não esconde sua convicção que, apesar de São Lucas se mostrar como o portavoz de confiança da igreja de todos os tempos, ele desvirtuou grosseiramente o ensino e a intenção do Jesus terreno.

A escola da escatologia consistente obviamente leva seus seguidores a um beco sem saída teológico, visto que ela prevê erros por parte do Senhor encarnado e de seus apóstolos e, desta forma, perde qualquer credencial cristã. O engenhoso relato de Schweitzer a respeito da carreira do Jesus terreno se baseou em seções isoladas dos primeiros dois Evangelhos e somente poderia se sustentar com base em uma reconstrução hipotética da ordem marcana.53 Se o pensamento do Jesus terreno foi de fato marcado por uma tal expectativa iminente do fim, como Weiss e Schweitzer tinham em mente, então o discurso no monte das Oliveiras, registrado pelos três Evangelhos Sinóticos (Mt 24; Mc 13; Lc 21), assim como a predição de nosso Senhor sobre o reino sendo dado aos gentios (Mt 21.33-41 e paralelos), suas indicações de um intervalo temporal considerável entre a sua morte e a sua parusia (Mt 25.5; Lc 12.45), e a sua ordem para continuar a celebração da eucaristia, deveriam todos ser atribuídos à “atividade produtiva de mitos” da igreja primitiva ou à imaginação dos evangelistas.

51 Schweitzer já havia proposto o “adiamento da parusia” como o fator que determinou toda a história cristã subsequente: “Toda a história do cristianismo até o presente dia, ou seja, a verdadeira história interna dele, está baseada do adiamento da parusia, a não ocorrência da parusia, o abandono da escatologia, o progresso e a conclusão da ‘de-escatologização’ da religião que está conectada com isso” (Historical Jesus, 358).

52 Hans Conzelmann, The Theology of St. Luke, traduzido por Geoffrey Buswell (New York: Harper & Row, 1960).

53 Schweitzer, Historical Jesus, 383.

Duas tentativas têm sido feitas na erudição crítica para conter as implicações melancólicas das teorias de Weiss e Schweitzer. Primeiro, Rudolf Bultmann, apesar de aceitar a escatologia consistente como a estrutura real da proclamação do Jesus terreno, propôs que ela deveria ser “desmitologizada” e substituída por uma “escatologia existencialista”, alegadamente relevante para o homem moderno. Em seu ensaio programático de 1941, “Novo Testamento e Mitologia”, Bultmann falou francamente sobre sua infidelidade:

La escatología mítica es insostenible por la simple razón que la parusía nunca sucedió como el Nuevo Testamento esperaba. La historia no llegó a su fin y, como cualquier niño de edad escolar lo sabe, seguirá adelante en su curso. Incluso si creemos que el mundo como lo conocemos llegará a un fin en el tiempo, anticipamos que el fin tomará la forma de alguna catástrofe natural y no de un evento mítico como los que espera el Nuevo Testamento.54

El antídoto de Bultmann para la ingenuidad de los autores bíblicos fue trasponer la médula supuestamente atemporal del “kerigma” dentro del molde de las categorías existencialistas de su contemporáneo colega de Marburgo, el filósofo Martin Heidegger.55

Outra expressiva tentativa de evitar as limitações da escatologia consistente mostrou maior requinte e encontrou mais seguidores. O estudioso inglês C. H. Dodd questionou os pressupostos básicos de Schweitzer e sua escola. No que diz respeito a Schweitzer, o Jesus terreno

54 Rudolf Bultmann, “New Testament and Mythology”, en Kerygma and Myth: A Theological Debate, eds. Hans-Werner Bartsch, trad. Reginald H. Fuller (Londres: Society for the Propagation of Christian Knowledge, 1972), 5.

55 El descuidado uso que Bultmann hace de los términos “escatología” y “escatológico”, en cierto sentido solo ligeramente relacionado al significado raíz del término, es atacado en forma incisiva por Paul Althaus (Letzten Dinge, 2-5). Althaus muestra cómo se preparó el terreno para la hechicería verbal de Bultmann cuando el filósofo-teólogo Ernst Troeltsch por primera vez aplicó la palabra escatología para referirse a la experiencia de las últimas cosas en el aquí y el ahora, en el sentido de “la percepción de lo Absoluto”. Althaus, Letzten Dinge, 18.

esperava o fim cataclísmico em uma questão de semanas ou meses, enquanto os apóstolos o esperavam na forma da parusia do seu Senhor no máximo dentro de uma geração. Ao examinar os dados do Novo Testamento, Dodd chegou à conclusão de que Jesus e os seus apóstolos tinham a convicção de que o fim já havia definitivamente chegado. Dodd tomou como seu ponto de partida o fato abertamente documentado que o Jesus terreno considerou o reino de Deus como uma realidade de fato já presente em sua pessoa e obra. G. B. Caird sumariza a contraproposta de Dodd à escatologia consistente, como segue:

Dodd ressaltou que a nota dominante na fé do Novo Testamento não é a expectativa, mas a celebração da vida, morte e ressurreição de Jesus como a obra completa de Deus (por exemplo, Jo 17.4; 2 Co 6.2; Hb 10.12-14; 1 Pe 1.3); e que o próprio Jesus estabeleceu o fundamento para isto ao proclamar que as profecias do Antigo Testamento haviam sido cumpridas (Lc 10.23,24), que o dia de Deus veio (Mc 1.15), que o reino de Deus havia chegado (Lc 11.20) e estava aberto para todos que estivessem preparados para entrar nele (Mt 21.31).56

Tanto a força como a fraqueza do enfraquecimento da escatologia consistente provocado por Dodd podem ser detectados no seu tratamento da fórmula sinótica ἤ

(Mt 4.17; cf. Mt 10.7; Mc 1.15; Lc 10.9,11). Dodd não estava plenamente satisfeito com a tradução de Mt 4.17 e Mc 1.15 nas traduções da Bíblia em inglês do final do século 20 (o reino está “à mão”, RSV; “próximo”, NIV; “sobre vós”, NEB), insistindo antes que estes versículos atestam diretamente a “chegada”, e não a mera iminência do reino.57 Ele argumentou com habilidade que o uso da LXX de ἐγγίζειν no sentido de cumprimento e não apenas de expectativa, juntamente com o contexto dos versículos sinóticos nos quais o verbo é usado do tempo perfeito a respeito do Reino e o uso sinonímico do aoristo de φθάνειν em Mt 12.28

56 Language and Imagery, 252s.

57 The Parables of the Kingdom, edição revisada (London: Fontana Books, 1961), 37.

e Lc 11.20, combinam para fortalecer sua interpretação.58 A escatologia consistente é desta forma substituída pela “escatologia realizada”:

O que quer que façamos com elas, as afirmações que declaram que o reino de Deus já chegou são explícitas e inequívocas. Elas são, além disso, as mais características e distintivas das afirmações do evangelho sobre o assunto. Elas não têm paralelos nos ensinos judaicos ou orações do período. Se, portanto, estamos buscando a differentia do ensino de Jesus sobre o reino de Deus, é aqui que ele deve ser encontrado. ... O eschaton moveu-se do futuro para o presente, da esfera da expectativa para aquela da experiência realizada. ... Aqui, portanto, está o ponto fixo a partir do qual nossa interpretação do ensino a respeito do Reino de Deus deve iniciar. Ele representa o ministério de Jesus como “escatologia realizada”, ou seja, como o impacto dos “poderes do mundo porvir” sobre este mundo, em uma série de eventos, sem precedentes e irrepetíveis, agora em franco progresso.59

O uso feito por Dodd de sua ideia básica levanta a questão se não pode ter ele corrigido os defeitos gritantes da escatologia consistente, propondo um entendimento igualmente desequilibrado da evidência do Novo Testamento. Um sino de alarme toca na medida em que lembramos que no que se refere a Dodd, a profecia foi totalmente cumprida e a escatologia foi realizada num tal grau que a igreja não teria mais nada para olhar para o futuro. Ele resume a escatologia do quarto evangelista como segue: “tudo o que a igreja esperou para a segunda vinda de Cristo já foi dado na experiência presente de Cristo através do Espírito.”60

A massiva cegueira de Dodd quanto à escatologia futura encontrada no ensino do Jesus terreno tem muito a ver com o fato dele ser tão comprometido com a alta crítica assim como foram Weiss e

58 Ibid., 36s.

59 Ibid., 40s.

60 C. H. Dodd, The Apostolic Preaching and Its Development (New York: Harper & Brothers, 1936), 73.

Schweitzer.61 Assim, apesar de admitir uma certa quantidade de profecia preditiva por parte do Jesus histórico, Dodd se recusou a identificar esta quantidade indefinida com os ditos de Jesus realmente registrados nos evangelhos. Ele atribuiu a parábola das ovelhas e cabritos à imaginação criativa do primeiro evangelista62 e descartou os “pequenos apocalipses” encontrados em Marcos 13 e seus paralelos:

O discurso preditivo mais considerável em Marcos, o “pequeno apocalipse” de Mc 13, fica sob a suspeita de ser uma composição secundária, apesar de que sem dúvida ela incorpora ditos genuínos de Jesus. Nós não podemos usálo da forma como está para a evidência da previsão do próprio Jesus quanto ao futuro.63

Mesmo quando obrigado pelo claro peso da evidência textual de conceder que o Jesus histórico de fato ensinou uma escatologia futurista,64 Dodd teimosamente neutralizou esta evidência suplicando a seus leitores a “terem plena consideração pelo caráter simbólico dos ditos ‘apocalípticos’,”65 absolutizando sua visão válida, não sem a injeção de uma mistura de platonismo para dentro dos Evangelhos.66 A perversidade do esforço de Dodd de podar tudo dos Evangelhos, exceto a escatologia realizada, é vista na sua negação da historicidade da proclamação de João

61 Aceitando a posição da contemporânea crítica literária / das fontes de que Marcos e o documento hipotético “Q” sejam os mais confiáveis portadores de informação a respeito do Jesus terreno, Dodd afirmou: “Ninguém imagina que qualquer deles seja infalível” (Parables of the Kingdom, 34).

62 Ibid., 65.

63 Ibid., 42s.

64 “De fato parece que Jesus falou em termos de um apocalipse atual como um ‘evento divino’ no qual ele próprio apareceria em glória como o Filho do Homem. Com este evento ele parece ter associado a ideia de um julgamento final para os vivos e mortos e de bem aventurança para seus seguidores na nova Jerusalém com um templo ‘não feito por mãos.’ Este claramente não é um evento histórico em qualquer sentido que possamos associar ao termo” (ibid., 77).

65 Ibid., 79.

66 “Mas estes tempos futuros são apenas uma acomodação da linguagem. Não há uma vinda do filho do homem na história ‘após’ sua vinda na Galiléia e em Jerusalém, em breve ou mais tarde, pois não há um antes e um depois na ordem eterna” (ibid., 81).

Batista em Mt 3.2. visto que a qualidade da expectativa iminente não pode ser retirada do ἤγγικεν aqui, claramente (!) “Mateus não pode ser confiado em distinguir entre palavras de João e palavras de Jesus.”67

Com uma crueza unilateral, Dodd e Schweitzer chamaram a atenção para porções relevantes dos dados bíblicos. É comum identificar a escatologia do Novo Testamento em um sentido amplo como uma ênfase combinada nos dois polos do “já” e do “ainda não”. Dodd identificou o primeiro e Schweitzer, o segundo. De forma louvável, Weiss e Schweitzer redescobriram o pano de fundo apocalíptico do Novo Testamento, mas erraram gravemente em sua suposição de ter havido um erro na mente do Senhor encarnado que, apesar de estar ensinando certamente sua própria vinda futura em glória como um claro artigo de fé, absteve-se no entanto de especificar seus detalhes. O erro de Dodd foi arrogantemente assumir que o reconhecimento do “já” deveria necessariamente cauterizar a percepção do “ainda não”.

Assim, a escatologia no sentido amplo tem a ver com a realização do esperado reino de Deus e em particular com o cumprimento da profecia messiânica. O erudito alemão Joachim Jeremias conseguiu reter as ideias válidas de Dodd, ao mesmo tempo evitando sua ênfase exagerada, preferindo falar de “uma escatologia que está em processo de realização” (sich realisierende Eschatologie)68 ao invés de uma escatologia realizada. A designação proposta por Jeremias, que aceita a realidade da assim chamada escatologia inaugurada, enquanto permite que muito da escatologia permaneça ainda por ser realizada, pode ser entusiasticamente aceita, na medida em que nos permite contextualizar as quatro últimas coisas dentro da estrutura de nossa experiência presente da abertura da

67 Ibid., 39, n. 20. Da mesma forma, as descrições nada lisonjeiras de nosso Senhor a respeito dos fariseus em Mateus 23 são atribuídas a João (ibid.)! A prestidigitação de Dodd nos incita a não perder de vista o julgamento erudito a respeito do uso cristão antigo de ἐγγύς e ἐγγίζειν , que “eles expressam a esperança da iminência do mundo por vir e são, portanto, palavras sacras usadas apenas em conexão com a grande Esperança da consumação” (H. Preisker, “ἐγγύς” em TDNT 2:332).

68 The Parables of Jesus, traduzido por S. H. Hooke (London: SCM Press, 1963), 230.

vida de Deus em Cristo para a igreja através dos meios da graça. A parusia e seus concomitantes são assim percebidos como a consumação dos propósitos de Deus e não como uma intrusão estranha sem relação com otodo da história da salvação. Uma leitura sensata do Novo Testamento de fato não pode deixar alguém em dúvida de que sua concepção sobre o reino de Deus é feita de uma combinação da escatologia inaugurada com a escatologia ainda por ser realizada.

Oscar Cullmann é o representante da erudição crítica que da forma mais clara e fiel reconheceu esta qualidade dupla da escatologia bíblica. Em seus escritos, Cullmann mostrou como a tensão entre o “já” e o “ainda não” marca não apenas o entendimento do Jesus histórico sobre o reino, mas também o pensamento de Paulo e João. No esquema de Cullmann, a “era passada”, inaugurada pelo pecado de Adão e marcada pela morte, e a “nova era” do Reino de Deus em Cristo não estão cronologicamente justapostas uma com a outra, mas estão em uma relação temporal e espacial uma com a outra, à medida em que a nova era intercepta a era passada na encarnação, morte e ressurreição de Cristo e na vida da igreja. Assim como Dodd, Cullmann reconheceu que o ato decisivo de Deus em estabelecer o seu reino já aconteceu, mas, muito mais definitivamente que Dodd, ele viu este ato decisivo de Deus como apontando para a sua consumação na parusia. A estrutura interpretativa de Cullmann não causa violência aos dados bíblicos e pode ser aceita, ao proporcionar uma matriz para a escatologia no sentido amplo, dentro do qual podemos desdobrar nosso tópico da escatologia no sentido estrito.69 No entanto, a descoberta da tensão bíblica entre o “já” e o “ainda não” não precisou esperar o advento do método histórico crítico, pois em sua exposição da segunda petição do Pai Nosso, o reformador muito tempo antes acertou em cheio na verdade básica de que “A vinda do Reino de Deus a nós ocorre de duas maneiras: primeiro aqui e agora, mediante a

69 Além da obra Cristo e o Tempo, traduzido por Daniel Costa, 2ª Ed. (São Paulo: Editorial, 2020), ver também a obra posterior de Cullmann, História da Salvação, traduzido por Daniel da Costa (São Paulo: Editorial, 2020), na qual ele defendeu sua estrutura escatológica contra os ataques da escola de Bultmann.

palavra e a fé; em seguida, na eternidade, pela revelação.”70

É apropriado falar de escatologia no sentido estrito, tendo como pano-de-fundo a escatologia no sentido amplo. Isto é ilustrado pelo fato de que a própria Escritura Sagrada discerne uma profunda unidade entre a vinda passada em Belém e a vinda futura entre as nuvens. O Espírito Santo guiou diretamente os escritores sacros para usarem as mesmas expressões tanto para a vinda passada como para a vinda futura de nosso Senhor. Como é bem conhecido, a vinda de Cristo no dia do julgamento é apresentada pelo Novo Testamento a partir de três termos: παρουσία, ἐπιφάνεια e ἀποκάλυψις. Ἀποκάλυψις é normalmente usado neste sentido(1Pe1.7,13; 1 Co 1.7), mas também alude à primeira vinda, na encarnação (Rm 16.25). Ἐπιφάνεια refere-se regularmente ao retorno glorioso de Cristo (1 Tm 6.14; 2 Tm 4.1,8; 2 Ts 2.8), mas em uma ocasião volta à primeira vinda (2 Tm 1.10). No espaço de três versículos, São Paulo usa o substantivo ἐπιφάνεια para expressar a vinda futura do Senhor Jesus (Tt 2.13) e seu verbo cognato, ἐπεφάνη, referindo-se à vinda passada de Jesus, em Sua vida terrena (Tt 2.11). Mesmo o termo παρουσία, que ocorre tão frequentemente no Novo Testamento referindo-se ao reaparecimento glorioso de nosso Senhor, que chega a ser usado como sinônimo dele, ocorre em 2 Pe 1.16 descrevendo Sua primeira vinda. Esta unidade subjacente entre as manifestações passada e futura do Senhor encarnado pode ser vista também no uso apostólico do verbo φανερόω (manifestar). Aquele que foi manifestado na carne (1 Tm 3.16) será a partir de agora manifestado na glória (Cl 3.4; 1 Pe 5.4; 1 Jo 2.28; 3.2). Apesar de que a escatologia, no seu sentido estrito, conclui as questões estudadas pela dogmática, ela também pressupõe, de forma vital, todo o seu conteúdo.

70 CM III, 53, LC, 481.

ESCATOLOGIA REALIZADA E INAUGURADA NA ESCRITURA E NO LIVRO DE CONCÓRDIA

Quanto ao batismo, cada cristão tem o suficiente para aprender e colocar em prática durante toda a vida. O cristão sempre tem o que fazer para crer convictamente aquilo que o batismo promete e traz: vitória sobre o diabo e a morte, a remissão dos pecados, a graça de Deus, o Cristo inteiro e o Espírito Santo com os seus dons. Em resumo: é coisa tão rica que a tímida natureza humana, quando pensa a respeito, facilmente pode duvidar da possibilidade de que seja verdade. (CM, 4ª parte, 41-42, LC, p. 497)

(literalmente, no depois dos dias) é uma expressão que ocorre muitas vezes no Antigo Testamento, frequentemente traduzida por “nos últimos dias”. Nos lábios de Jacó, pouco antes de sua morte, a versão NAA traduz por “nos dias que virão” (Gn 49.1). A expressão também é usada em outros textos do Antigo Testamento para referir-se a futuros eventos que ocorrem dentro do tempo terreno ordinário (ver Dt 31.29; Jr 23.20; 30.24). Para as versões bíblicas modernas esta expressão hebraica tem um sentido que vai além do futuro temporal, como ocorre, por exemplo, em textos como Is 2.2; Mq 4.1 e Os 3.5. Nestes textos a expressão faz referência indiscutível à era messiânica. A expressão

também é empregada no sentido escatológico técnico em passagens como Nm 24.14; Jr 48.17; 49.39; Ez 38.16 e Dn 10.14. Ligada muito proximamente a estas passagens está a profecia de Joel 2.28, sobre o derramamento do Espírito de YHWH, que deve acontecer “naqueles dias” (

; Jl 3:1, no texto hebraico). Não há dúvida que o evento aguardado por Joel já aconteceu há muito tempo, pois São Pedro anunciou sua realização no primeiro Pentecostes cristão (At 2.16). Além disso, Lucas autoritativamente clarifica o sentido do “naqueles dias”, aprofundando o “depois destas coisas” da LXX (μετὰ ταῦτα) dizendo

“nos últimos dias” (ἐν ταῖς ἐσχάταις ἡμέραις - At 2.17). De acordo com o sermão de Pedro no Pentecostes, então, os últimos dias já começaram na terceira década do primeiro século AD.

Nosso ponto de partida em responder ao erro dispensacionalista é a observação simples de que desde que o Messias veio na carne e inaugurou o esperado reino de Deus, os cristãos não podem mais relegar os últimos dias para algum ponto remoto centenas ou milhares de anos distantes do tempo do Novo Testamento. Pelo contrário, uma exegese séria nos obriga a aprender do escritor aos Hebreus que os “últimos dias” efetivamente vieram quando da encarnação (ἐπ’ ἐσχάτου τῶ

τούτων - Hb 1.2). O mesmo autor deseja que seus leitores estejam a par do fato que a história já alcançou “o fim dos tempos” (ἐπ

α

ώνων, Hb 9.26). Os receptores de 1 Coríntios estão entre aqueles “para quem o fim dos tempos tem chegado” (εἰ

κατήντηκεν - 1 Co 10.11). Pedro ensina em sua primeira carta que o Cristo, que foi destinado desde antes da fundação do mundo, foi manifestado agora, “nestes últimos tempos” (ἐπ ’ἐ

- 1 Pe 1.20). A declaração de João, de que é “a última hora” (ἐσχάτη ὥρα ἐστίν - 1 Jo 2.18) toma, assim, lugar dentro de um testemunho apostólico unânime. Que o testemunho pós-pascal dos apóstolos ecoa fielmente a proclamação pré-pascal de Jesus é demonstrado pela declaração clara do Senhor sobre a inauguração do reino de Deus aos emissários do vacilante João Batista, que são dirigidos para o cumprimento da profecia messiânica em Suas palavras e obras (Mt 11.2-6; Lc 7.18-23; cf. Is 35.5s). A mesma mensagem é trazida por Jesus na Sua severa reprimenda aos blasfemos escribas (Mt 12.28; Lc 11.20).

Há bons motivos para a dogmática luterana declinar de seguir C. H.Dodd em atribuir à presente experiência do reino de Deus entre o peregrino povo de Deus sob a rubrica da “escatologia realizada”. A Escritura Sagrada diretamente indica que o reino de Deus está apenas imperfeitamente realizado agora nos membros do corpo místico de Cristo. Rm 5.12-21, uma passagem considerada por Lutero como um

“alegre desvio e passeio”,71 mas por Anders Nygren como “o ponto alto da Epístola”,72 revela em uma escala cósmica a base para o anátema de Paulo para a ideia de que a ressurreição dos cristãos já seja um evento passado (2 Tm 2.18) e para a lembrança do exaltado Senhor à igreja de Laodicéia, de que no seu caso a escatologia, no sentido amplo, foi apenas modestamente inaugurada e que estava longe de ser completamente realizada (Ap 3.17)! O apóstolo aqui retoma e desenvolve o familiar tema apocalíptico dos dois éons, ou eras, contrastantes, na medida em que ele mostra a diferença entre a era de condenação e morte iniciada por Adão e a era de justificação e vida estabelecida por Jesus. O velho éon foi invadido por um éon inundado pela vida sem limites de Deus, que irá durar, conforme a doxologia, “pelos séculos dos séculos” (ε

in saecula saeculorum – expressões anemicamente traduzidas por “mundo sem fim” e pelo mais recente “agora e para sempre”). Os dois éons não mais estão separados um do outro por uma clara quebra cronológica; o futuro fez uma aparição proléptica no presente, de modo que os dois éons ocupam de uma só vez o mesmo tempo e o mesmo espaço. A era vindoura, trazida já para a história por Cristo, entretanto, só pode ser experimentada em, com e sob a experiência do povo de Deus do velho éon de condenação e morte. Trazido para o nível do membro individual do corpo místico, a luta entre os dois éons antitéticos pode ser expressa através da bem conhecida fórmula simul justus et peccator.

O teólogo alemão contemporâneo, Wolfhart Pannenberg, construiu toda uma teologia com base em uma genial, e em grande medida correta, interpretação da proclamação do Jesus terreno sobre o reino de Deus. Pannenberg destaca que o judaísmo do primeiro século esperava o reino de Deus como um evento futuro provocado por Deus cuja ocorrência seria demonstrada irrefutavelmente pela ressurreição geral dos mortos. Visto que a ressurreição indica o fim, Pannenberg - que oferece uma defesa bem-vinda da historicidade do túmulo vazio e das aparições do Senhor ressurreto - interpreta a ressurreição de Jesus como a aparição

71 “[E]inen lustigen Ausbruch und Spaciergang“ (WADB 7:19.3) [Vorrede auf die Epistel S. Pauli an die Römer, 1546]; minha tradução; cf. AE 35:375).

72 Commentary on Romans, traduzido por Carl C. Rasmussen (Philadelphia: Muhlenberg Press, 1949), 20, 209.

proléptica do fim, por assim dizer uma irrupção do futuro de Deus para dentro do presente das criaturas.73 Não precisa haver objeção em princípio em expor a união presente da igreja com Cristo como uma prolepse da “vida do mundo por vir”, cuja completa glória será realizada e manifesta apenas na parusia. Ao mesmo tempo, os elementos genuinamente bíblicos do pensamento de Pannenberg podem ser expressos com menos perigo de um controle filosófico, enfatizando que a encarnação e a vida do Senhor encarnado na igreja inauguraram o Reino que ainda aguarda sua bendita consumação.

A distinção crucial entre escatologia realizada e inaugurada corresponde ao contraste entre a qualidade do reino de Deus na santa humanidade de Cristo, por um lado, e nos membros de Seu corpo místico, por outro. O reinar de Deus foi realizado perfeitamente na santa humanidade de Cristo desde o momento de Sua concepção. A impecaminosidade da divina humanidade leva a igreja a louvar seu Senhor como o local permanente da escatologia realizada. Nem por um simples momento as três primeiras petições do Pai Nosso deixaram de ser cumpridas na alma humana assumida pelo Filho de Deus. Além disso, a subsistência da Santa humanidade de Cristo na sua pessoa divina fez com que o reinar de Deus no homem Jesus fosse marcado por uma perfeição maior do que qualquer criatura desde seu início. A escatologia é realizada na obra de Cristo, de tal forma que o dia de julgamento já ocorreu na cruz (Jo 12.31).

Enquanto a assumida humanidade de Jesus deve ser glorificada como o paradigma adorável da escatologia realizada, os cristãos, como

73 Ver seu livro Theology and the Kingdom of God, ed. Richard John Neuhaus (Philadelphia: Westminster Press, 1969); e Jesus – God and Man, traduzido por Lewis L. Wilkins e Duane A. Priebe (London: SCP Press, 1968), 69: “Apenas no final de todos os eventos pode Deus ser revelado em sua divindade, isto é, como aquele que opera todas as coisas, que tem o poder sobre tudo. Apenas porque na ressurreição de Jesus o fim de todas as coisas, que para nós ainda não aconteceu, já ocorreu, pode ser dito de Jesus que o já definitivo está presente nele, e assim também que Deus mesmo, sua glória, fez sua aparição em Jesus de uma forma que não pode ser superada. apenas porque o fim do mundo já está presente na ressurreição de Jesus, o próprio Deus é revelado nele.”

objetos da justificação, são aptos para serem considerados como o lugar da escatologia inaugurada. Se a ênfase estiver colocada na obra divina que os torna cristãos, então o fato de serem membros do corpo de Cristo pode ser considerado sob a rubrica da escatologia realizada. Nosso Senhor mesmo mostra que os crentes “têm” a vida eterna (Jo 5.24; 6.47). O objeto desta sentença, sendo o dom incriado de um compartilhar na vida de Deus, não pode ser entendido senão como escatologia realizada. Mesmo assim, o sujeito crente desta sentença possui imperfeitamente o dom divino incriado da vida eterna, na medida em que carne e espírito lutam para governá-lo. A vida eterna ainda precisa ser plenamente realizada no cristão peregrino sobre a Terra. As imagens paulinas de estar “em Cristo” e da dádiva do Espírito Santo como garantia ou “pagamento de entrada” (ἀρραβών - 2 Co 1.22; Ef 1.14) devem ser interpretados da mesma forma como a declaração joanina sobre o cristão possuir a vida eterna. Cristo e o Espírito Santo são pessoas divinas insuperáveis, de perfeição infinita, mas a apreensão de Cristo por parte do cristão pode ser vacilante e sua comunhão com o Espírito Santo, irregular e imperfeita. O reinar de Deus no seu povo na terra, apesar de gloriosamente inaugurado no batismo, permanece em constante perigo de um trágico término, através do cair da graça por parte da criatura redimida (1 Co 10.12). O cáustico sarcasmo do apóstolo é necessário para resgatar os cristãos da ilusão presunçosa de já terem alcançado a maturidade perfeita em Cristo (1 Co 4.8-13).

O Livro de Concórdia faz justiça a ambos os temas, da escatologia realizada e inaugurada. Não que os confessores alimentem qualquer ilusão a respeito da tristeza da era do pecado, da condenação e da morte provocados pela queda de Adão.74 Mas eles estão conscientes de ter um evangelho para proclamar para aqueles que estão nas trevas e na sombra da morte, um evangelho solidamente fundamentado na vida histórica e no triunfo do Descendente da mulher. O mistério da pessoa divinohumana de nosso Senhor, em quem a criação alcança sua consumação, é o fundamento da escatologia, tanto no seu sentido amplo como estrito. É o fundamento ontológico de tudo o que é confessado no Livro de Concórdia sobre a restauração da natureza humana caída, através dos atos

74 CA e ApCA II; FC DS I.

divinos de justificação, santificação e glorificação. O artigo terceiro da Confissão de Augsburgo estabelece este fundamento enquanto o artigo oitavo da Fórmula de Concórdia, Declaração Sólida, permanece sendo a melhor declaração já feita sobre a perfeição da natureza humana na união hipostática. O enriquecimento sobrenatural da humanidade de Jesus através da comunhão de suas naturezas e especialmente através da comunicação da majestade divina a sua humanidade testemunha a incomparável realização da vontade e do reinar de Deus em sua criação. E pode haver mais gloriosa confissão sobre o poder da plena completude da obra salvífica de Cristo do que a expressão do reformador sobre o “primeiro e principal artigo” nos Artigos de Esmalcalde II.i? O HomemDeus e sua obra são em si mesmos pura escatologia realizada. O que está super abundantemente presente na pessoa e obra do nosso Senhor é aplicado e compartilhado com pobres pecadores pelo Espírito Santo nos meios da graça. A cristandade poucas vezes testemunhou, se alguma vez de fato, um tal hino de louvor ao doador da bênção batismal como aquele encontrado na quarta parte do Catecismo Maior. O batismo traz ao crente “vitória sobre o diabo e a morte, a remissão dos pecados, a graça de Deus, o Cristo inteiro e o Espírito Santo com os seus dons.”75 Portanto, para o crente batizado a justificação é uma realidade presente, uma dádiva divina mediada de novo por meio da absolvição.76 O batismo é, assim, em si mesmo, pura escatologia realizada enquanto seu uso pelo crente aqui na terra pertence à escatologia inaugurada. Novamente, a confissão da presença real que culmina no artigo sete da Fórmula de Concórdia, Declaração Sólida, revela sem restrições a escatologia realizada no próprio Jesus e a escatologia inaugurada nos comungantes alimentados por ele: o corpo e o sangue de Cristo, presentes no seu altar-trono e dados aos cristãos para a concessão de perdão, vida e salvação.

O ensino confessional sobre a realidade da santificação na vida dos cristãos pertence ao campo da escatologia inaugurada. O reiterado ensino de que a fé justificante e pecado mortal não podem coexistir no mesmo coração77 é o outro lado do fato de que Cristo presentemente

75 CM IV, 41; LC, 497.

76 ApCA XIII.

77 AE III, iii, 43-45 (LC, 353); ApCA IV, 64,109,115,144 (LC, 167, 174, 178).

governa através das vidas renovadas do seu povo. A Fórmula de Concórdia se esforça em enfatizar a “subsequente renovação que o Espírito Santo opera naqueles que são justificados pela fé.”78 Ao justificado “é dado o Espírito Santo, o qual os renova e santifica, e neles opera amor a Deus e ao próximo.”79

Desta forma, o Livro de Concórdia segue a Escritura Sagrada ao falar do volume expressivo de escatologia realizada e inaugurada já presente em nosso Senhor e na sua obra, bem como na fé e vida dos membros do seu corpo místico. No entanto, “na presente vida a renovação começada é imperfeita, e o pecado ainda habita na carne, mesmo no caso dos renascidos.”80 Apesar de que a igreja, no sentido estrito, é o reino de Cristo, este no entanto permanece cruce tectum, “encoberto pela cruz”. 81 Constantemente atacados pelo mundo, pela carne de pelo diabo, os cristãos aguardam pela consumação do batismo na morte e ressurreição.82 Os confessores entendem corretamente a mente do apóstolo em Romanos capítulo 7, onde a contradição da carne do “já” leva o novo homem a clamar pela consumação do “ainda não”. Esta tensão entre o “já” e o “ainda não” marca a proclamação do Jesus terreno a respeito do Reino de Deus. O βασιλεία τοῦ θεοῦ “está próximo” (Mt 4.17; Mc 1.15) no sentido de ter de fato vindo nas ações messiânicas de Jesus (Mt 12.28; Lc 11.20), que são uma prolepse da plenitude do Reino ainda aguardada. O reino já é recebido pelo pobre no espírito (Mt 5.3; Lc 6.20) e pelos pequeninos crentes (Mt 19.14; Mc 10.14; Lc 18.16). O reino fisicamente presente entre os judeus do primeiro século (Lc 17.21) é descrito como uma realidade presente pelo nosso Senhor em suas parábolas do reino (Mt 13.24,31,33,44,45,47; Mc 4.26,30). Ao mesmo tempo, ele descreve o reino como uma realidade futura (Mt 8.11; Lc 13.28; 14.15; Mc 9.1). As parábolas finais sobre o reino (Mateus 25) enfatizam a ligação entre a plena realização do reino e o dia “quando o Filho do Homem virá em Sua glória” (Mt 25.31), isto é, o dia de Sua parusia. Assim,

78 FC DS III, 19; LC, 607.

79 FC DS III, 23; LC, 608.

80 Ibid.

81 ApCA VII e VIII, 18; LC, 209.

82 CM III, 57s.

a igreja que conhece a presença do seu Senhor ainda ora a 2a petição do Pai Nosso e clama “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22.20; 1 Co 16.22). A escatologia, certamente já inaugurada, espera sua plena realização nos membros do corpo místico.

CONTEÚDO

PARTE DOIS:

O FIM DO SER HUMANO – MICROCOSMO

(Escatologia Individual)

A MORTE TEMPORAL

Através das pessoas a corrupção rasteja e as mantém em terrível cativeiro; na culpa elas atraem o fôlego infantil e ceifam seu fruto de aflição e morte.

Lazarus Spengler

“All Mankind Fell in Adam’s Fall” [Toda a humanidade caiu na queda de Adão]

Lutero afirmou que a doutrina é como um anel ou um sino que, sendo danificado em um único lugar, sofre ruína total.83 A ortodoxia em um artigo de fé pressupõe e requer a ortodoxia em todo o resto. A integridade da confissão de alguém a respeito das últimas coisas, portanto, fica de pé ou cai com a retidão da confissão da pessoa a respeito das primeiras coisas. A teologia Moderna tem testemunhado uma fuga em larga escala do reconhecimento da autenticidade das narrativas bíblicas sobre a criação e a queda, com o resultado de que mesmo estudiosos relativamente conservadores e ortodoxos em outros assuntos colocam os capítulos 1 a 11 de Gênesis sob o título de uma história primitiva mítica. Assim, Regin Prenter pode preservar de Genesis 3 apenas um relato mitológico da história do homem comum.84

83 Brief Confession concerning the Holy Sacrament, 1544; WA 54:158.12-13, 159.3-4; AE 38:307s.

84 The Church’s Faith: A Primer of Christian Beliefs, traduzido por Theodore I. Jensen (Philadelphia: Fortress Press, 1968), 50-53. Paul Althaus era da mesma opinião: “Os paleontologistas têm mostrado que a morte estava na Terra antes de existir o ser humano, sendo uma parte do todo da vida já antes e independentemente da queda no pecado. ... O aspecto passado da queda em pecado não é um passado histórico; pelo contrário, ele significa que toda pessoa e o todo da humanidade histórica continua tendo sua origem a partir da queda”

Defensores mais radicais e consistentes do método histórico crítico têm sido rápidos em extrair as conclusões necessariamente implícitas nas concessões feitas pelos seus irmãos de uma posição intermediária ou “positiva”. Aqueles que abertamente rejeitam o cristianismo histórico apontam com contentamento que o argumento de Paulo em Rm 5.12-21 apenas se mantém a partir do pressuposto de um Adão histórico e de uma queda histórica. Na ausência de uma queda real, qual seria a necessidade de um Redentor real?85 O paralelo entre o primeiro e o segundo Adão tem relação direta com a natureza da morte corporal. De acordo com a Escritura Sagrada, a morte corporal é uma punição infligida pela justiça divina sobre o primeiro Adão e sua descendência. Em uma palavra, “o salário do pecado é a morte” (Rm 6.23a). Entretanto, visto que a humanidade concebida super naturalmente do segundo Adão é sem pecado, a morte do Filho de Deus de acordo com a sua natureza humana foi um sacrifício voluntário, o coroamento de sua humilhação, a prova inefável do amor que não retrocedeu de tornar-se não apenas um homem, mas até mesmo alguém que carregou o pecado (Jo 10.18; 2 Co 5.21).

A teologia de muitos renunciou ao primeiro artigo do Credo em favor da evolução darwiniana, uma teoria cujos defensores têm sido invariavelmente motivados mais por considerações ideológicas do que científicas.86 Algumas formas da teologia do processo parecem ser o único tipo de teísmo que pode ser consistentemente extraído dos destroços

(Die Letzen Dinge, 85; minha tradução).

85 Ver, por exemplo, Maurice F. Wiles, The Remaking of Christian Doctrine (Philadelphia: Westminster Press, 1978), 68: “Se a ocasião histórica única do pecado de Adão pudesse implicar no pecado e culpa universais do ser humano, então seria apropriado que o evento histórico único da morte de Cristo tivesse similarmente uma importância redentora universal. Mas o paralelo pode apenas trazer base para o entendimento da redenção como um evento histórico único com efeito universal se a queda for entendida como um evento histórico único com repercussões universais. Agora, é precisamente este elemento de historicidade que é impossível para nós hoje aceitar em relação à história de Adão, qualquer que seja o valor que possamos continuar a atribuir-lhe como um mito.”

86 Ver: Michael Denton, Evolution: A Theory in Crisis (Bethesda, MD: Adler & Adler, 1986), 69-78.

darwinianos do cristianismo histórico: um Deus imperfeito, moldado na imagem e segundo a semelhança do homem caído, presidindo sobre a evolução de uma criatura imperfeita, ou seja, o homem, cuja morte física sempre foi um evento puramente natural, para o que a culpabilidade deve ser atribuída à divindade que estragou a criação, e não às vítimas humanas da inaptidão divina. Uma vez que a criação especial é abandonada e a queda histórica transformada em um mito atemporal, a teodiceia se move para o centro da reflexão teológica, com Deus, e não o homem, ocupando o último lugar. A expiação agora desnecessária se dissolve em uma mera metáfora, assim que a morte de Cristo se torna o assunto de uma retórica vazia.

A teologia contemporânea tem diante de si apenas duas alternativas, que correspondem ao ou/ou da inspiração ou sem inspiração. O teólogo crente recebe com humildade o que o Deus todo poderoso diz a respeito da sua criação de um mundo perfeito a partir do nada, e a respeito da queda deste mundo por meio de uma rebelião consciente de nossos primeiros pais. Zombarias insignificantes provindas da galeria de uma “ciência” profana não podem impedir a confissão da verdade que os males corporais e espirituais desta vida têm o caráter de punição pelo castigo de Adão e de sua descendência. Muito antes dos erros da antiga religião oriental ressurgida na cristandade sob o disfarce da evolução darwiniana, a igreja teve de confrontar a heresia de Pelágio, que, apesar de reconhecer a natureza penal da morte corporal no caso de Adão, recusou-se a fazer qualquer associação com respeito à morte corporal da raça humana em geral. A cristandade luterana conscientemente segue o ensino escriturístico de Agostinho, mantendo sem ambiguidade que “essa epidemia inata e esse pecado hereditário verdadeiramente é pecado e que condena à ira eterna de Deus a quem não renascer pelo batismo e pelo Espírito Santo.”87 O homem caído substituiu a imagem e semelhança de Deus pela semelhança e imagem do sedutor, Satanás, que tem sido um mentiroso e assassino desde o princípio. Nossa orgulhosa incredulidade herdada é uma fonte de sujeira espiritual que torna todas as obras da carne, até mesmo e especialmente aquelas

87 CA II; LC, 48.

consideradas espirituais, merecedoras da punição divina. Desta forma, a morte temporal tem a qualidade de punição pelos pecados original e atual. A severa declaração de Paulo de que “o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei” (1 Co 15.56) é ecoada no testemunho confessional sobre os terrores da consciência carregados pelas almas debaixo da convicção do pecado.88

A Dogmática faz bem em continuar distinguindo entre morte espiritual, temporal e eterna, pois ao falar da morte, a Escritura Sagrada certamente não tem sempre e apenas em mente o fim da existência do ser humano no espaço e tempo deste mundo. A morte com a qual Adão foi alertado enquanto ainda estava no estado de inocência (Gn 2.17) veio a ser um castigo que tomou três formas consecutivas e relacionadas. Primeiro, a punição dada por Deus aconteceu já por ocasião da rebelião de nossos primeiros pais na forma de sua existência agora estar em pecado, ou seja, em estarem eles agora em um estado de morte espiritual. Apesar das multiformes atividades que acontecem na existência no estado pecaminoso, trata-se de uma vida que se extinguiu por alienar-se de Deus, uma condição de morte espiritual (Ef 2.1). A natureza humana gravemente ferida pelo pecado original produz obras que levam a santidade de Deus a reagir com ira (Ef 5.6; Cl 3.6) através da segunda e terceira formas de morte, isto é, corporalmente na morte temporal (Gn 3.19) e na “segunda morte” (Ap 20.14), que é a condenação eterna (2 Ts 1.9). Com respeito à morte em geral e à morte temporal em particular, não estamos dispostos a abandonar a declaração de Francis Pieper, de que “a Escritura não conhece outra morte senão a que é julgamento divino sobre opecado”.89

Não há razão convincente para discordar da definição de Pieper sobre a essência da morte temporal, que ele compartilha com toda a tradição luterana ortodoxa e, de fato, com a cristandade crente de todos os tempos e lugares: “A Escritura ensina que a morte física não é a aniquilação, mas a separação entre a alma e o corpo”.90 Visto que esta

88 Por exemplo, ApCA XII, 31-33; Livro de Concórdia, p. 223.

89 Christian Dogmatics, 3:508; ver também 1:535s.

90 Christian Dogmatics, 3:507.

verdade revelada é hoje fortemente negada por teólogos que ridicularizam oconceito de imortalidade da alma como sendo uma intrusão helenista na fé cristã e que tentam contradizer o testemunho bíblico da contínua existência das almas entre a morte temporal e a ressurreição geral, o próximo capítulo precisará devotar atenção especial a este tópico.

As realizações estéticas feitas em casas funerárias não têm o poder de remover o aguilhão da morte, que é o pecado, que opera e convence através da lei. Nem qualquer quantidade de psicologia pop poderá cobrir com sucesso o caráter penal da morte. Enquanto as elites governantes das sociedades abastadas do assim chamado primeiro mundo tem-se mostrado desejosas de quebrar a conexão entre ações morais e suas consequências, abolindo a pena de morte para até mesmo os mais graves crimes, a consciência popular continua a par da lex talionis (Ex 21.23).

Assim, uma meditação piedosa sobre a morte inicia na dimensão da lei, reconhecendo a certeza do julgamento que virá (2 Co 5.10) e se manifestando em contrição. O fato da morte poder e dever ser considerada também na dimensão do evangelho resulta tão somente do fato bendito que o eterno Filho de Deus assumiu nossa carne e sangue para sofrer a morte por todos, destruir o diabo, que tem o poder da morte, e livrar os seus do temor da morte (Hb 2.9,14,15). Na dimensão do evangelho, João 11.35 traz grande conforto e a morte é personificada não como a expressão da ira de Deus, mas como seu inimigo (1 Co 15.26). A encarnação mediada pelos meios da graça para a fé operada pelo Espírito torna possível a sexta estrofe do “Cântico do Sol”, de Francisco de Assis.91 Do ponto de vista do evangelho, a morte temporal pode ser vista com esperança, como a destruição do velho homem, a consumação do batismo e entrada no paraíso.92

En su intento por esquivar la condena de la ley, la carne usa el humor negro para referirse a la muerte como morder el polvo, estirar la pata, chupar faros, o quedar de abono para los gusanos.93 Por oposición, la confianza

91 “All Creatures of Our God and King,” traduzido por William H. Draper, em Lutheran Worship, Lutheran Church – Missouri Synod (St. Louis: Concordia Publishing House), #436.

92 CM II, 57-59 e IV, 64-73,83.

93 A parte de la expresión de origen bíblico, “morder el polvo” (ver Gn 3:14), con

engendrada por el evangelio habla junto con la Escritura de un dormir (Dt 31:16; 2S 7:12; 1R 2:10; Is 26:19; Dn 12:2; Mt 9:24 y paralelos; Jn 11:11; Hch 13:36; 1Co 11:30; 15:20; 1Ts 4:13), unirse a su pueblo (Gn 25:8, 17; 35:29; 49:29, 33; Dt 32:50), descansar de las labores (Ap 14:13), ir al seno de Abraham (Lc 16:22), estar en casa con el Señor (2Co 5:8), y partir para estar con Cristo (Fil 1:23). Pero si la muerte temporal implicara la extinción de la totalidad de la persona humana, en vez de ser la separación del alma fuera del cuerpo, entonces la Escritura es culpable de un eufemismo vacío y engañoso. La expresión de San Francisco: “dulce y gentil muerte, que… guías a los hijos de Dios hasta el cielo”,94 y la interpretación de Lutero de la Séptima Petición del “Padrenuestro” como pedido de que, cuando llegue la última hora, el Padre celestial “nos conceda un fin bienaventurado, y, por su gracia, nos lleve de este valle de lágrimas al cielo para morar con él”,95 presuponen la verdad de la inmortalidad del alma y la realidad del estado intermedio de los bienaventurados.

connotaciones bélicas de derrota, John Stephenson utiliza aquí una serie de expresiones populares inglesas para referirse al acto de morir: “kicking the bucket” (“patear el balde”, posiblemente relacionado con el acto de quitar el pedestal a uno que muere en la horca), “cashing in one´s chips” (“recuperando el dinero efectivo de las fichitas que quedaron”, expresión referente al acto de retirarse derrotado de un juego de azar), y “popping one´s clogs” (“hacer saltar los zuecos”, expresión de origen incierto, proveniente del mundo fabril y referente al cese de actividad de un obrero por deceso). Preferimos reemplazar estas frases idiomáticas por otras propias del mundo hispanohablante.

94 Himno 436 de Lutheran Worship, “All Creatures of Our God and King”.

95 Cme, “Padrenuestro”, 20.

A IMORTALIDADE DA ALMA

A noção de Adolf Von Harnack de que o evangelho do Jesus palestino foi muito cedo “helenizado” e, portanto, distorcido de forma irreconhecível, continua a influenciar mesmo aqueles estudiosos que não compartilham de seu gritante reducionismo. Os efeitos da tese de Harnack reverberam no sentimento amplamente difundido de que a terminologia helenista é particularmente inapta para expressar o conteúdo da religião bíblica. Assim, muito preconceito é dirigido contra tanto o ὁμοούσιον niceno, como contra a fórmula calcedoniana das duas naturezas de Cristo. Dois fatores levam a dogmática luterana a ser cautelosa com respeito à hipótese de Harnack, que pode se apresentar elogiosamente ao ingênuo como uma piedosa vitória de Jerusalém sobre Atenas. Primeiro, agradou à providência divina que o evangelho fosse expresso através do meio do pensamento helenista: a missão na Grécia resultou, afinal, de uma instrução comunicada de forma supernatural ao apóstolo Paulo (At 16.9). O processo que chegou a uma realização preliminar em Nicéia e Calcedônia teve sua origem no discurso missionário de Paulo no Areópago. Segundo, preservando a distinção entre lei e evangelho precisamos cuidar para não imitar Karl Barth na sua negação de qualquer “ponto de conexão” entre a revelação de Deus e o homem natural. Enquanto o evangelho do favor de Deus pela humanidade em Cristo não pode sem ajuda ser apreendido pelo entendimento do homem caído, a existência de Deus e o conteúdo da sua lei são conhecidos, mesmo que imperfeitamente, por nós, criaturas pecadoras. Não podemos permitir que a retórica arrebatadora de Barth nos cegue em relação à sabedoria da distinção feita pela ortodoxia luterana entre os articuli puri (apreendidos tão somente pela revelação) e os articuli mixti (conhecidos através da revelação e da razão). Tendo em mente que os articuli mixti são acessíveis à pesquisa humana, somente um tolo iria descartar a possibilidade de Platão ter comprovada uma apreensão da verdade, em sua posição sobre a imortalidade da alma.

Tem se tornado popular afirmar que a noção helenista de imortalidade da alma não tem qualquer apoio da Escritura, sendo na verdade um erro antropológico dos antigos gregos, que estaria em contraste com a concepção hebraica do ser humano. De acordo com um crescente consenso entre estudiosos, a crença na imortalidade da alma teria sido inapropriadamente inserida nos artigos de fé da antiguidade cristã, formando um corpo estranho na regra de fé da igreja. Uma defesa exegética da posição tradicional será introduzida com um relato e uma discussão preliminar sobre a opinião modernista discordante. Com o propósito de identificar e entender o mundo de pensamento para o qual todo o conselho de Deus deve ser proclamado, é apropriado dedicar um breve olhar para o uso extravagante do conceito da imortalidade da alma do assim chamado movimento da Nova Era.

G. B. Caird representa um amplo consenso de estudiosos críticos com sua afirmação que “durante a maior parte do longo período coberto pelo Antigo Testamento, o povo hebreu não tinha uma crença na vida após a morte”.96 A alta crítica tem trabalhado com o pressuposto que a mente hebraica era capaz de entender a vida após a morte apenas em termos de ressurreição corporal dos mortos (i.e., como uma reconstituição da pessoa toda) e que esta ideia de fato teria sido introduzida no Judaísmo apenas no final do período canônico, principalmente durante o período intertestamental. Uma datação de Daniel durante o período de perseguição por Antíoco Epifânio IV e a classificação de Isaías 24-27 como um “Apocalipse de Isaías”, que teria sido composto séculos após o tempo do profeta Isaías, tornou possível relegar Dn 12.2 e Is 26.19 à margem da religião do Antigo Testamento. Ao mesmo tempo, expressões de confiança na vida continuada além do túmulo, formuladas sem o recurso explícito da imagem da ressurreição (por ex., Sl 49.15; 73.24-26) apresentam algo enigmático, que não é facilmente integrado no restante da religião do Antigo Testamento.

É preciso dizer que em nenhum lugar do Antigo Testamento (nem mesmo no apócrifo Sabedoria de Salomão) há qualquer indício da

96 Language and Imagery of the Bible, 244.

visão pré-socrática de que o corpo seria a tumba da alma.97 O חַיָּֽהנֶ֥פֶשׁ de Gn 2.7 descreve o ser humano na totalidade do seu ser, o que inclui sua corporeidade como elemento indispensável e que é traduzido apropriadamente por “ser vivente” (NAA) ou “ser vivo” (NTLH), que é melhor do que “alma vivente” (ARC, ARA). Referências à alma ( נֶפֶשׁ ) nas traduções do Antigo Testamento normalmente se referem, portanto, à pessoa inteira e não simplesmente a uma parte dela. Não há razão para discordar da conclusão de Eduard Schweitzer, a partir de uma análise do uso deנֶפֶשׁ , e termos relacionados, que no Antigo Testamento “a unidade da natureza humana não se expressa pelos conceitos antitéticos de corpo e alma, mas pela complementaridade e pelos conceitos inseparáveis de corpo e vida.”98

Ao mesmo tempo, porém, a indicação dada pelo texto sagrado de que נֶפֶשׁ é o produto do sopro divino, que torna o ser humano qualitativamente diferente de plantas e animais (Gn 2.7) combina com a afirmação de Schweitzer, sobre a afinidade entreנֶפֶשׁ e a “imagem divina” – “ambos estão em conexão com Deus e com uma tarefa divina”.99 E isso coloca dúvida no pressuposto de que o Antigo Testamento consideraria

נֶפֶשׁ como sendo extinta com a morte da pessoa. Enquanto a intenção original do Criador é que aנֶפֶשׁ energize e habite o corpo em uma unidade viva dos dois, não está de forma nenhuma claro que a morte do corpo necessariamente resultaria na extinção simultânea daנֶפֶשׁ . Assim, a narrativa em que Elias traz novamente à vida o filho da viúva de Sarepta forma uma exceção à regra geral do Antigo Testamento, onde o uso de

נֶפֶשׁ normalmente denota a pessoa inteira. Nesta narrative, נֶפֶשׁ , é explicitamente distinguida do corpo morto do filho da viúva, cujoנֶפֶשׁ , retorna para despertar seu corpo após a intercessão do profeta (1 Rs 17.21s). Apesar de que este texto não precisaria necessariamente ser entendido como corroborando a antropologia cristã tradicional, e ser interpretado conforme a ideia de uma recriação doנֶפֶשׁ extinto, é muito

97 Ver referências em Eduard Schweitzer, “ψυχή” em TDNT 9:611.

98 Ibid., 631.

99 Ibid.

mais compatível com o conceito de imortalidade da alma.100 O mesmo pode ser dito da narrativa semelhante sobre o evento de Eliseu e a volta à vida do filho da sunamita (2 Rs 4.18-37), apesar de que o termo técnico נֶפֶשׁ não é ali usado com a mesma precisão do que na narrativa anterior (2 Rs 4.18-37).

O capítulo seguinte apresentará evidências de que a imortalidade da alma é atestada também em outras partes do Antigo Testamento e buscará apresentar o restante da evidência escriturística para o estado intermediário entre a morte temporal e a ressurreição corporal. O uso de ψυχή pelo Novo Testamento também será examinado. O peso cumulativo da evidência reunida no decorrer desta investigação fala decisivamente em favor da tese de que reconhecer a imortalidade da alma corresponde aos dados genuinamente bíblicos. Apesar de que ela é apenas ocasionalmente explicitada com clareza pelos escritores sacros, a verdade da imortalidade da alma é pressuposta por toda a Bíblia.

Wolfhart Pannenberg pode ser citado como um porta-voz para a opinião predominante de que a Escritura nos obriga a entender a vida após a morte exclusivamente em termos da ressurreição da pessoa inteira e de maneira nenhuma no sentido da sobrevivência da alma na morte corporal. Pannenberg sumariza os argumentos para a imortalidade da alma promovidos por Platão em seu Phaedo: o conhecimento não é, como Aristóteles e Aquino sustentaram, derivado unicamente da percepção dos sentidos, mas procede da participação da alma antes do nascimento no mundo dos arquétipos ou ideias eternas. A alma pré-existente está atualmente presa ao mundo dos sentidos através do corpo, e depois da dissolução do corpo ela continuará em uma percepção límpida do mundo das ideias. A noção de Platão sobre a imortalidade da alma é assim vista

100 A repetição dentro do espaço de dois versículos da expressão “a alma do menino” está mais de acordo com a noção de um vpn temporariamente separado do corpo voltando a ele, para reviver o menino, do que com a ideia de uma recriação de um vpn extinto. A importância desta narrativa, que fornece uma base escriturística sólida para a definição de Pieper sobre a essência da morte corporal não deveria ser minimizada.

como brotando de uma crença na divindade inerente do homem.101 Pannenberg exala confiança de que a concepção dicotômica do homem como composto de um corpo mortal e de uma alma imortal foi quebrada em pedaços pelas descobertas da antropologia moderna.102 Em sua obra maior de Cristologia, ele argumenta que este conceito da continuação imortal da alma enquanto o corpo perece tornou-se insustentável nos dias de hoje. A separação entre corpo e alma, que forma a base deste conceito, não é mais sustentável, ao menos nesta forma, à luz das perspectivas contemporâneas sobre antropologia. O que uma vez era distinguido como corpo e alma, hoje é considerado como uma unidade da conduta humana.103

A confiança de Pannenberg nas “perspectivas antropológicas” modernas mostra uma curiosa ignorância do papel desempenhado por Hb 11.1 no entendimento cristão dos artigos de fé. Seu racionalismo natural é semelhante ao indizível sacrilégio do bispo anglicano modernista, Barnes, que há meio século atrás se propôs a refutar a presença real do corpo de Cristo no Sacramento, ao sujeitar uma hóstia consagrada a uma análise de laboratório.104

O racionalismo cético de Pannenberg na questão da sobrevivência da alma por ocasião da morte corporal contrasta grandemente com as descobertas de muitos escritores recentes na área da “tanatologia”. A menção sobre o além no estudo bíblico paroquial e na sala de aula se encontra com a observação de que aquilo que uma vez era apenas crido foi agora provado empiricamente por pesquisas clínicas em experiências de quase-morte e pós morte. O desbravador nesta área foi o livro Vida após a vida, publicado pelo médico Raymond A. Moody em 1975. A conclusão de Moody de que a vida após a morte é uma

101 Wolfhart Pannenberg, What is Man? Traduzido por Duane A. Priebe (Philadelphia: Fortress Press, 1972), 46.

102 Ibid., 47.

103 Jesus – God and Man, 87.

104 Adrian Hastings, A History of English Christianity 1920-1990 (London: SCM Press; Philadelphia: Trinity Press International, 1991), 202.

probabilidade empírica pode muito bem chegar aos cristãos como uma mudança bem-vinda do severo materialismo presente até aqui normalmente associado com a comunidade científica. A sabedoria de exercer cautela ao avaliar as pesquisas de Moody e seus colegas é apropriada, devido a sua propensão de juntar tais “autoridades” como Platão, o livro tibetano dos mortos e Emanuel Swedenburg junto com a Bíblia, no capítulo em que ele aponta “paralelos” para suas próprias descobertas.105 Enquanto Platão pode ter tropeçado na verdade de um articulus mixtus por meios legítimos, o mesmo não pode ser dito de outras autoridades referidas por Moody, que chegaram a suas crenças por meio de práticas ocultas ilícitas. A suspeita de haver forças diabólicas atuando em provas “clínicas” recentes da vida após a morte é intensificada por um exame mais próximo desta literatura, que permite uma conexão estreita entre ela e o movimento da Nova Era.106 Assim, encontramos a mãe da crescente escola de tanatologia, Elisabeth Kuebler-Ross, elogiando um volume escrito por um - para dizer o mínimo - excêntrico clérigo reformado fortemente envolvido no espiritismo, que alegou em 1975, ao mesmo tempo em que o movimento da Nova Era estava começando a se mostrar, “que estamos entrando numa nova era na história”.107 A própria

105 (Covington, GA: Mockingbird Books, 1975), capítulo 3.

106 Esta conexão é feita explicitamente em The New Age Catalogue: Access to Information and Sources (New York: Doubleday, 1988), 100-102. Mais surpreendentes são as alegações feitas aqui e em outra literatura sobre “vida após a vida” de que nenhum julgamento divino negativo acompanha as experiências da quase-morte ou pós-morte.

107 Archie Matson, Afterlife: Reports from the Threshold of Death (New York: Harper & Row, 1975), 61. O envolvimento de Kuebler-Ross com o ocultismo da Nova Era é apresentado com detalhes surpreendentes pelo escritor ortodoxo oriental Seraphim Rose, em The Soul After Death (Platina, CA: Saint Hermann of Alaska Monastery Press, 1980), 164-166. Rose relata como a experiência de Kuebler-Ross iniciou com uma visita de um paciente morto em Chicago em 1967 (o“fantasma” aparentemente escreveu com a letra escrita do falecido; 164) e passou a adotar seções de instrução com um “anjo da guarda” que a introduziu em eventos de uma de suas encarnações passadas, que teria ocorrido em conexão com período de vida terrena de Cristo (165). Falando em Bay Area em 1976, Kuebler-Ross relatou: “Na noite passada eu fui visitada por Salem, meu espírito guia, e dois dos seus companheiros, Anka e Willie. eles estiveram conosco até às três horas da madrugada. Nós conversamos, rimos e cantamos

Kuebler-Ross, no prefácio de um livro que oferece uma interpretação distintiva de alegadas experiências de quase-morte e de pós-morte, dá uma clara indicação de seu próprio comprometimento com a Nova Era.108 O volume em questão entende a sobrevivência da alma na morte corporal não em termos cristãos tradicionais, mas em consonância com a noção de Teilhard de Chardin de um desenvolvimento revolucionário do ser humano na direção de um alegado “ponto ômega.” 109 O autor pergunta: “Poderia ser que aqueles [que alegadamente experimentaram uma experiência de quase-morte] ... representam coletivamente um impulso evolucionário na direção de uma mais elevada consciência para a humanidade em geral?”110

Enquanto a evidência apresentada por pesquisadores sobre experiências de quase morte e de pós morte é sujeita a uma variedade de explicações,111 faremos bem em dar ouvidos ao aviso de São Paulo de que juntos. eles falaram e me tocaram com o mais incrível amor e delicadeza que se possa imaginar. este foi o ponto alto da minha vida” (166). Vale ponderar sobre o comentário de Rose: “É bem sabido em círculos do oculto que os ‘espíritos guias’ (que, obviamente, são os espíritos caídos do mundo celeste) não se manifestam tão prontamente a menos que uma pessoa seja bastante avançada na receptividade mediúnica. Mas talvez mesmo mais surpreendente do que o envolvimento da Dr. Kuebler-Ross com ‘espíritos familiares’ seja a resposta entusiástica que seus relatos de seu envolvimento produzem em audiências compostas não por ocultistas e médiuns, mas de pessoas comuns de classe média e profissionais. certamente este é um dos ‘sinais dos tempos’ religiosos: as pessoas se tornaram receptivas a contatos com o ‘mundo espiritual’ estão prontas para aceitar a explicação do ocultismo para estes contatos que contradizem a verdade cristã” (166).

108 Kenneth Ring, Heading toward Omega: In Search of the Meaning of the NearDeath Experience (New York: William Morrow & Company, 1984), 12.

109 Ibid., 252.

110 Ibid., 255.

111 Por exemplo, Hans Küng, Eternal Life? (traduzido por Edward Quinn [London: Collins Fount Paperbacks, 1985], 20-35, especialmente 33s: “O que, então, estas experiências do morrer implicam para a vida após a morte? Em poucas palavras, nada! pois considero como sendo uma obrigação da verdade teológica responder claramente que experiências deste tipo nada provam a respeito de uma possível vida após a morte: trata-se de uma questão aqui dos últimos cinco minutos antes da morte e não de uma vida eterna após a morte. estes minutos finais não estabelecem a questão de para onde a pessoa que morre está indo:

“Satanás se disfarça de anjo de luz” (2 Co 11.14).

A mais importante sessão do volume de Joseph Ratzinger sobre escatologia é formada pelas páginas escritas na defesa da imortalidade da alma.112 Apesar de que os argumentos exegéticos de Ratzinger são dignos de nota, a atenção do leitor é apropriadamente dirigida principalmente para a dramática reabilitação realizada neste estudo do grandemente difamado Platão. Se Ratzinger estiver correto do relato que ele dá do pensamento de Platão, então teólogos como Pannenberg e aqueles que pensam semelhantemente a ele, são culpados não apenas de negligenciar o claro sentido da Escritura, mas também de elaborar uma caricatura maldosa do filósofo pagão, cujo pensamento tem sido um recurso ambivalente para os teólogos da igreja. A Sistemática precisa levar em conta a demolição magistral de Ratzinger do contraste superficial normalmente pintado entre os modelos de pensamento hebraico e helenista, e não pode continuar surda diante das sérias questões que ele faz a respeito do entendimento popular sobre o argumento de Platão para para uma não existência ou para uma nova existência .... Moody e numerosas pessoas com semelhante pensamento merecem o respeito quando, como cristãos, defendem a crença em uma vida eterna. Mas, considerados mais de perto, seus argumentos não são ad rem, eles são inadequados que se referem apenas ao tempo presente e não à eternidade. eles assumem aquilo que esperam, se não estritamente para provar, ao menos para sugerir.”

112 Ver: Eschatology: Death and Eternal Life, traduzido por Michael Waldstein (Washington, D.C.: Catholic University of America Press, 1988), 104-161. O debate entre Ratzinger e seus interlocutores modernistas dentro da igreja romana espelha uma rachadura dentro da cristandade luterana e de outras como comunhões cristãs. Liderando o ataque contra Ratzinger dentro do campo Romano está Hans Küng, que, apesar de privado de sua missio canônica como um teólogo docente da igreja católica romana, permanece como sacerdote daquela jurisdição. Em seu livro, Eternal Life?, Küng teologizar não com base na Escritura e/ou tradição, mas tão somente a partir da perspectiva de sua própria razão “crítica”. A vida após a morte é considerada como uma hipótese provável neste volume, apesar de que tanto a imortalidade da alma como a ressurreição do corpo são rejeitados com sarcasmo. Assim, a teologia de Küng toda a solidez de um sorriso desbotado de um gato Cheshite, e seu ataque contra Ratzinger (171) tem a dignidade de um frenético Chihuahua latindo nos calcanhares de um São Bernardo.

a imortalidade da alma. Ele insiste:

Quão insustentável é aquela caricatura do platonismo sobre a qual muitos estereótipos teológicos modernos dependem. O objetivo real da filosofia de Platão é totalmente mal compreendido quando ele é apresentado como um pensador individualista e dualista, que nega o que é terreno e propõe uma fuga para o além. A verdadeira base de seu pensamento é o terreno novo de possibilidade para a polis, um fundamento novo para a política. Sua filosofia tem seu centro na ideia de justiça. Ela se desenvolveu em uma crise política e deriva da convicção de que a polis não se sustenta onde a justiça é algo diferente do que a realidade e a verdade. O reconhecimento do poder vivo da verdade, que inclui o pensamento da imortalidade, não é parte de uma filosofia de fuga deste mundo, mas é, num sentido eminente, uma filosofia política. ... Se tentarmos apreender o centro da descoberta de Platão, podemos formulá-lo dizendo que o ser humano, para sobreviver biologicamente, precisa ser mais do que bios. Ele precisa ser capaz de morrer para dentro de uma vida mais autêntica do que esta. A certeza de que um autoabandono por causa da verdade é um autoabandono para a realidade, e não um passo na noite do nada, é uma condição necessária para a justiça.113

Tendo efetivamente banido a ideia muito difundida de que uma concepção helenística unificada e universal da imortalidade da alma esteja pronta para ser recrutada pela antiguidade cristã,114 Ratzinger constrói um forte argumento para a tese de que a concepção, encontrada no Novo

113 Eschatology, 78s.

114 “Estas poucas dicas [ou seja, uma revisão do pensamento helenista desde Pitágoras e Empédocles, até Platão, Aristóteles e Plotino] são suficientes para mostrar que a noção frequentemente encontrada a respeito de um dualismo helenista platônico de corpo e alma, com seu corolário na ideia da imortalidade da alma, é algo como uma fantasia de um teólogo” (ibid., 146). Ratzinger cita longamente uma passagem do comentário de Orígines do Cântico dos Cânticos, dando o caleidoscópio de visões sobre a natureza da alma que havia na antiguidade.

Testamento e nos antigos pais, a respeito da continuação da alma após a morte no estado intermediário paradisíaco se mantém firmemente na tradição do judaísmo intertestamental. Qualquer hipótese de um empréstimo cristão diretamente a partir de fontes platônicas é, assim, supérfluo.115

Hay pocas razones para admitir que la expresión “inmortalidad del alma” Não há razão consistente para dizer que a expressão “imortalidade da alma” pode ser mal-entendida, como se indicasse uma divindade inerente no ser humano, visto que a tradição cristã nunca imaginou que a imortalidade da alma criada por Deus seja qualquer coisa mais do que uma dádiva divina. Se a distinção entre Criador e criatura nos devesse encolher horrorizados diante do reconhecimento das declarações bíblicas sobre a imortalidade da alma, então seríamos obrigados a contradizer o testemunho bíblico a respeito da criação dos anjos, também como seres imortais. De fato, a dádiva de Deus de conceder às almas humanas a qualidade de continuidade imortal ameaça a sua divindade tão pouco quanto sua criação dos santos anjos como espíritos imortais. A confissão sobre a imortalidade da alma tem pouquíssimo a ver com o platonismo clássico, e sim, brota totalmente de uma atenção fiel ao testemunho bíblico sobre a criação do ser humano à imagem de Deus e ao seu testemunho sobre o relacionamento em aliança estabelecido livremente pelo Deus de Israel com seu povo. O ser humano foi criado para uma comunhão eterna com Deus, cujas tratativas evangélicas com seu povo a partir de Gn 3.15 em diante busca o retorno e perfeição do relacionamento quebrado pelo pecado. A imortalidade da alma está fundamentada na criação do ser humano para comunhão com seu Criador.

Eduard Schweitzer observa que normalmente com a tradução de

115 “No Novo Testamento e nos pais todas as imagens geradas pelo judaísmo para o estado intermediário se repetem: o seio de Abraão, Paraíso, altar, árvore da vida, água, luz veremos em alguns momentos como a igreja antiga foi conservadora nesta área específica da representação escatológica. Longe da mudança radical do ‘semitismo’ para o ‘helenismo’, a igreja permaneceu completamente dentro Duca nome semítico de imagens, como a arte das catacumbas, a liturgia e a teologia juntas mostram” (ibid., 130).

נֶפֶשׁ por ψυχή, a LXX expressa mais claramente do que o texto hebraico a noção da sobrevivência da alma na morte temporal.116 Um desenvolvimento semelhante pode ser visto no Novo Testamento, apesar de que aqui a maioria dos usos de ψυχή refere-se à pessoa inteira. Assim, as formas no plural de ψυχή em 1 Pe 1.9 e 22 seriam mal interpretadas como se referissem apenas a uma parte da pessoa; pelo contrário, os cristãos aguardam a salvação de sua pessoa inteira, como um resultado de sua fé (1 Pe 1.9), e foram purificados em seu todo por sua obediência à verdade (1 Pe 1.22). A profecia de nosso Senhor de que ele daria sua ψυχή como resgate por muitos (Mc 10.45) fala de uma entrega total, não parcial; e sua declaração de que sua ψυχή está angustiada até a morte (Mc 14.34) igualmente dá testemunho de sua aflição completa diante dos tormentos que deveria suportar pela humanidade ingrata. O gracioso convite em Mt 11.29 não se dirige apenas a uma parte da pessoa, distinta de seu corpo, mas é para a pessoa inteira dos ouvintes de Jesus. Além disso, ψυχή frequentemente significa simplesmente “vida”, como no caso da vida do menino Jesus, procurado por Herodes (Mt 2.20), assim como a vida que o Filho do homem quer salvar mesmo no Sábado (Mc 3.4) e a vida que certamente não será perdida no naufrágio em Malta (At 27.22).

Talvez o uso mais claro no Novo Testamento de ψυχή no sentido de “alma imortal” ocorra em Ap 6.9, onde ao abrir do quinto selo, João vê as ψυχάς dos mártires debaixo do altar celeste. “Aqui ψυχή é o ser humano que sobrevive à morte antes da sua ressurreição.”117 Eduard Schweitzer vê ainda na palavra do Senhor a respeito de alguém achar sua ψυχή ao perdê-la (Mc 8.35; ver também: Mt 10.39; Lc 17.33; Jo 12.35) o sentido de que “ψυχή é uma garantia de que a vida humana não é apenas saúde e bens, mas é a vida que é constantemente concedida por Deus, que não pode ser limitada pela morte, mas é a vida como Deus pretendeu que

116 Um exemplo é que o Salmo 16 [LXX 15].10 “diz simplesmente no hebraico que Deus guardará a vida do salmista e não o entregará ao Reino dos mortos. No grego, a ψυχή não ficará no Hades. É assim pressuposto que a ψυχή se separará do corpo e passará algum tempo no mundo dos mortos. (ψυχή, em TDNT 9:632)

117 Ibid., 654.

fosse.”118

A conclusão tirada a partir desta declaração trazida pelos quatro evangelistas torna ainda mais intrigante o julgamento de Schweitzer de que Mt 10.28 - sobre o qual ele declara que “dificilmente se pode contestar que ideias gregas tenham influenciado a formulação”119 – “a referência ao poder de Deus de destruir a ψυχή e o σῶμα no Hades é contrária à ideia da imortalidade da alma.”120 O único tipo de imortalidade da alma que poderia ser concebível de ser refutada por este texto é aquele no qual a alma por si só é ontologicamente divina, não parte da ordem criada e, portanto, imune ao julgamento de Deus. A declaração de nosso Senhor, em Mt 10.28, de que a ψυχή, diferentemente do σῶμα, não pode ser morta por violência de criaturas, está em consonância com a noção de que a ψυχή, visto não ser destruída na morte temporal, é contemplada pelo seu Criador com a qualidade de uma imortalidade derivada. A fraca objeção de Oscar Cullmann contra o uso de Mt 10.28 como texto de prova para a imortalidade da alma brota de sua própria inabilidade de identificar a diferença entre a morte temporal e a morte eterna e de um biblicismo pueril, que arrogantemente proíbe que palavras de origem filosófica sejam carregadas com conteúdo bíblico pela igreja.121 Se a teologia cristã não pode falar da imortalidade da alma pelo fato deste conceito ser encontrado também no pensamento de Platão, então precisamos também evitar de falar em adiáfora, visto que esta noção chegou ao pensamento ocidental a partir da herança de Aristóteles.

118 Ibid., 644.

119 Ibid., 646.

120 Ibid.

121 Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? The Witness of the New Testament (London: Epworth Press, 1958), 36. O prejuízo incalculável produzido na teologia recente e na vida da igreja pelo texto mal cozido de Cullmann é ainda mais triste em vista do fato de que o seu quarto capítulo (“aqueles que dormem,” 48-60) é um sumário útil do testemunho do Novo Testamento a respeito do estado intermediário. Cullmann assim se coloca como um exemplo do perigo de divorciar estudos da bíblia da teologia histórica. Sola Scriptura não deve se tornar um grito de guerra para praticar exegese no vácuo. [Este texto de O. Cullmann está traduzido em Português na obra Das Origens do Evangelho à Formação da Teologia Cristã (São Paulo: Novo Século, 2000). Nota do Tradutor]

Mesmo admitindo que aנֶפֶשׁ /ψυχή, de acordo com a vontade original do Criador destina-se a ser a vida total da pessoa, que inclui o corpo como componente inseparável, e admitindo também que a morte corporal é uma catástrofe experimentada pela pessoa em sua totalidade, permanece, no entanto, de acordo com o testemunho da Sagrada Escritura, a confissão de que a vida da pessoa continua mesmo quando ela é reduzida na morte a um fragmento de seu ser original. Este ensino bíblico é apropriadamente denominado de imortalidade da alma. Apesar do fato de que a crise da morte temporal deixa os membros do corpo místico de Cristo pateticamente deficientes em si mesmos, eles podem aguardar a plenitude de vida no período entre a morte corporal e a ressurreição na força da plenitude vital que reside na humanidade divina de Cristo. Em si mesmo, o membro do povo de Deus morto fisicamente é tragicamente incompleto, mas “na tua presença há plenitude de alegria” (Sl 16.11). Os pais luteranos estavam bem cientes de que a imortalidade da alma não é afirmada no mesmo sentido para Deus e para o ser humano. Assim, eles apelam para 1 Tm 6.16, onde lemos que somente Deus “tem imortalidade”; a imortalidade da alma é, em contraste, uma dádiva concedida às criaturas feitas à imagem divina.122

122 Ver, por exemplo, locus 26, parágrafos 141 e 142 de Johann Gerhard, Loci Theologici, 9 volumes (1770; reeditado [9 volumes em 3] editado por Eduard Preuss, Berlin: Gustav Schlawitz, 1863), 7:9: Adde quod anima non sit eo modo immortalis, quo Deus, οὐσιώδως scilicet et independenter, eo enim sensu solus Deus dicitur habere immortalitatem, sed per creationis gratiam, quia sic a Deo condita est, ut non habeat in se internum corruptionis principium, sed sit natura incorporea, invisibilis et immortalis, posset tamen Deus, si vellet, animam in nihilum redigere et penitus exstinguere, sed quia immortalem eam esse voluit, ideo per et propter illam creatoris voluntatem immortalis perseverat. Immortale est, vel quod absolute et simpliciter nulla potestate, etiam divina, aboleri nequit, hoc modo solus Deus est immortalis; vel quod ita a Deo conditum, ut non intereat, licet per absolutam Dei potentiam aboleri possit, hoc modo animae hominum et angeli immortalis sunt. Addendum autem huic argumento, quod homo ad imaginem et similitudinem Dei fuerit creatus ... ac proinde etiam ad immortalitatem , quam enim Deus homini inspiravit animam, ea luce divinae sapientiae, justitiae ac laetitiae fuit collustrata et ad vitam aeternam condita. [Acrescente que a alma não é imortal da maneira que Deus é, οὐσιώδως claro e independentemente, pois nesse sentido apenas Deus é dito ter imortalidade -1

Tm 6.16 mas pela graça da criação, porque foi criado por Deus de tal forma que não tivesse em si o princípio interno da corrupção, mas deveria ser uma natureza incorpórea, invisível e imortal, mas Deus poderia, se quisesse, reduzir a alma a nada e extingui-la completamente; mas porque ele quis que fosse imortal, portanto através e por causa dessa vontade do Criador ela continua a ser imortal. Ser imortal, ou seja, não poder ser abolido absoluta e simplesmente por nenhum poder, mesmo divino, desta forma só Deus é imortal; ou que é estabelecido por Deus de tal forma que não perece, embora possa ser abolido pelo poder absoluto de Deus, desta forma as almas dos homens e dos anjos são imortais. E a este argumento devemos acrescentar que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus – Gn 1.27 e, conseqüentemente, também para a imortalidade, pois Deus inspirou a alma no homem, que foi examinada pela luz da sabedoria, justiça e alegria divinas e preparados para a vida eterna.]

O ESTADO INTERMEDIÁRIO DA ALMA

Tu, quando venceste o aguilhão da morte, Abriste a todos os fiéis o reino celeste. “Te Deum laudamus”

O termo “revelação progressiva” pode ter um odor desagradável, visto que, quando aplicado, por exemplo, por estudiosos do Antigo Testamento na linha de Welhausen, a expressão tende a se referir a um suposto avanço da barbárie patriarcal para a elevada ética da profecia clássica e da literatura de sabedoria. Todavia não há nada de intrinsecamente não ortodoxo em identificar um dobramento progressivo das elevadas, profundas e maravilhosas implicações do santo evangelho desde o protoevangelho de Gn 3.15123 até a encarnação e sua exposição nos escritos apostólicos. Assim, somos confrontados com o mistério de que, apesar da morte nunca ser entendida como uma aniquilação total no Antigo Testamento, o Espírito Santo escolheu usar de grande reserva para falar sobre a situação dos que partiram, levantando o véu raramente, mas certamente em lugares tais como os Salmos 49 e 73. A proibição divina contra a curiosidade quanto ao estado dos mortos é documentada pelo rigor contra o culto e o comércio relacionados à invocação dos mortos (Lv 19.31; 20.6,27; Dt 18.11). Talvez a percepção mais profunda sobre a revelação de Deus neste ponto pode ser obtida a partir da reflexão de que a plenitude da bondade de Deus pelos seus santos que partiram não podia ser revelada até que a plenitude do evangelho fosse manifestada em seu

123 Paul Althaus rejeita com sarcasmo o entendimento tradicional de que o Antigo Testamento está repleto de profecias messiânicas diretas, desde Gn 3.15 em diante. De acordo com ele, tal exegese é um triste fruto de um “biblicismo” que procede da teoria de inspiração plenária e que foi suplantada de uma vez por todas pelo advento do método histórico-crítico (Die Letzen Dinge, 260s). A franca admissão de Althaus de que a alta crítica destrói a unidade da Bíblia merece ser notada.

esplendor inigualável.124 Uma vez que o nosso Senhor provou a morte por todos os homens e pela sua ressurreição e ascensão foi preparar um lugar para nós, pode acontecer o que tem sido descrito de forma muito feliz como uma transformação cristológica da crença no Sheol,125 cuja escuridão foi para sempre dissipada, quando o próprio Jesus glorificado reconstituiu o paraíso para os benditos.

Tratando primeiramente com o testemunho do Antigo Testamento, notamos que desde os tempos mais antigos a morte nunca é referida em termos de aniquilação, mas com uma linguagem tal que aponta para uma transição de um plano da existência para outro (ver o último parágrafo do capítulo 4). Assim, a morte dos patriarcas, como Arão e Moisés, são referidas como “ser reunido ao seu povo” (Gn 15.15; 25.8,17; 35.29; 49.29,33; Dt 32.50). Jacó, já cansado da vida, ferido com a tristeza da aparente morte de José, anuncia sua própria morte iminente como uma descida ao Sheol (Gn 37.35). Frequentemente o Antigo Testamento entende o Sheol como o destino comum de todos os mortos, piedosos e ímpios (1 Sm 2.6; 1 Rs 2.6; Jó 7.9). O Sheol é invariavelmente apresentado na perspectiva da lei, assim que mesmo para o crente Ezequias, a ida para o Sheol é uma perspectiva sombria (Is 3.10). O Sheol, que cedo ficou traduzido por ᾅδης, por vezes não pode ser distinguido do inferno (Nm 16.30-33; Is 14.9,11,15; Ez 31.15-17). Ainda assim, Jó pode, mesmo que apenas hipoteticamente, falar da perspectiva de ser resgatado do Sheol (Jó 14.13), uma possibilidade que para o autor do Salmo 49.15 é certeza da fé.126 Libertação do Sheol já está, na verdade, implícita no proto-

124 Ver as sábias observaçõesde C. S. Lewis em Reflections on The Psalm (London: Geoffrey Bles, 1958), 39.

125 Ratzinger, Eschatology, 149.

126 Adolf Hoenecke, proeminente dogmático do Sínodo de Wisconsin, oferece as seguintes esclarecedoras observações sobre o conceito de Sheol no Antigo Testamento: “Apesar do fato que inferno está na raiz da ideia e é o significado próprio da palavra [Sheol], certamente acontece frequentemente que o Antigo Testamento fala do Sheol como o fim de todos os homens, incluindo os crentes (assim como em Jó 10.21; 14.20,21; Sl 6.5; cf. Siraque 17.25,26). Reconhecemos, no entanto, que crentes, como Jó, olham para a morte desta forma, como algo idêntico à entrada no Sheol, precisamente em tempos de tentação, da mesma forma como os crentes, nas tentações ainda hoje, consideram morte e

evangelho de Gn 3.15, que, na ausência deste conteúdo, não teria realmente muito evangelho. Ainda que o Antigo Testamento sem dúvida mostre o resgate do Sheol em conexão com a ressurreição corporal dos mortos (Is 26.19; Dn 12.2; ver também Ez 37.1-14, onde a imagem da ressurreição aplica-se, primeiro, à reconstituição do povo de Israel histórico), não podemos ignorar o fato de que Sl 73.24-26 sem dúvida estabelece uma bendita esperança que vem logo após a morte corporal e que antecede a ressurreição geral, tendo esta mensagem ecoada mais ou menos diretamente em Sl 11.7; 16.11; 17.15; 49.14,15.

O testemunho do Novo Testamento sobre a realidade do estado intermediário é tão evidente que não se pode deixar de registrar um espanto pelo fato que um teólogo como Werner Elert reduza o status medius a nada mais que o ser da pessoa morta estar “preservado na memória eterna de Deus.”127 Tal diluição do conteúdo da revelação divina condenação como estando ligadas uma à outra. Jó se expressa diferente em tempos de fé viva (Jó 19.25-27; cf. Sl 16.9-11; 17.15)” (Evangelish-Lutherische Dogmatik, 4 volumes [Milwaukee: Nortwestern Publishing House, 1909], 4:233; minha tradução).

127 Last Things, traduzido por Martin Bertram (St. Louis: Concordia Publishing House, 1974), 41s. A rejeição ao estado intermediário e imortalidade da alma por tais estudiosos como Elert e Pannenberg indiscutivelmente que tem pouco a ver com fidelidade ao texto da Escritura Sagrada e tudo a ver com a imposição de noções preconcebidas sobre a palavra de Deus. As posições de Elert e Pannenberg aqui não representam nenhuma inovação por parte deles, mas uma tomada do bastão de Paul Althaus, que tornou públicas tais visões anteriormente. O próprio Althaus reconhece que a imortalidade da alma era confessada universalmente além das Fronteiras confessionais até o início do século XX, qundo Adolf Schlatter e Carl Stange supostamente descobrirá sua verdadeira identidade como sendo um corpo estranho helenista injetado para dentro da corrente sanguínea Hebraica do cristianismo primitivo (Die Letzen Dinge, 92s). No entanto, note bem a admissão de Althaus de que a posição tradicional está bem comprovada na Escritura Sagrada. Ele afirma com desdém que apenas um “biblicismo legalista” pode aceitar o texto da Escritura literalmente. Visto que a crença na imortalidade da alma, que a Bíblia compartilha com outras religiões, “está em claro contraste” com o conceito central do Novo Testamento a respeito da ressurreição corporal e com aquilo que ele entende serem implicações do entendimento bíblico sobre a morte como julgamento. A raiz do problema acaba sendo o jogo de gato e rato de Althaus, de mover-se entre as atitudes de “sim” e “não” a respeito da autoridade

representa a forma mais cruel de irresponsabilidade pastoral, visto que nega o conforto que o Espírito Santo alegremente concede, por meio de pelo menos dois claros textos bíblicos, a almas crentes que estão diante do corte de todos os laços terrenos pela morte. Elert declinou de levar em conta a segunda palavra da cruz registrada em Lc 23.43, onde nosso Senhor decreta a justificação do ímpio ao prometer ao ladrão penitente: “hoje estarás comigo no Paraíso”. O erudito de Erlangen da mesma forma ignorou Fp 1.21,23, onde São Paulo contradiz a opinião da carne ao designar a morte como “lucro”, uma condição em que ele estará “com Cristo” e que é “muito melhor” do que a mera existência terrena (Fp 1.23). O livro apócrifo Sabedoria de Salomão concorda completamente com estas e outras passagens do Novo Testamento quando ele ensina que “as almas dos justos estão nas mãos de Deus” (Sabedoria 3.1), que envolve muito mais, por meio do relacionamento ativo com o Deus todo poderoso, do que mera preservação na sua memória. O senhorio de Cristo sobre os mortos crentes seria inconcebível sem sua continuada existência com ele (Rm 14.8,9). A morte envolve um “deixar o corpo e habitar com o Senhor” (2 Co 5.8). Além de “ver” as almas dos mártires no céu (Ap 20.4), São João nos concede uma preciosa visão da vida dos santos que partiram, entre a morte e a ressurreição geral. Eles estão ocupados no culto a Deus (7.9,10,14,15). Além do mais, a morte corporal não envolve serem os mortos catapultados do tempo para uma eternidade divina. O paraíso move-se para a consumação da criação, não sua abolição. Assim as almas dos mártires estão a par da passagem do tempo; de outra forma, seu clamor “até quando?” (6.10) não teria sentido. Os mortos benditos estão “esperando” (6.11) pela reunião de toda a igreja, para a parusia e a consumação das promessas de Deus nos novos céus e nova terra.128

Até aqui relatamos o testemunho do Novo Testamento sobre o estado intermediário dos salvos. Suas poucas referências ao estado intermediário dos perdidos refletem a sombria verdade proferida pelo bíblica. De fato, [para ele] a Escritura Sagrada tem uma autoridade vinculante quando o texto four aprovado pelo intelecto crítico de Althaus, mas não o é quando contradiz sua concepção do que seria genuinamente bíblico (94). 128 Ver as reflexões de Ratzinger sobre a qualidade temporal do estado intermediário: Eschatology, 181-190.

Deus encarnado, de que a ira de Deus permanece sobre os descrentes (Jo 3.36). De acordo com Werner Elert, a interpretação de Lc 16.19-31 se exaure na proposição de que não há uma segunda chance de arrependimento após a morte.129 Todavia, assim como a condição de Lázaro no seio de Abraão corresponde a outras declarações do Novo Testamento sobre o estado intermediário dos salvos, da mesma forma o sofrimento do homem rico dos tormentos combina com a descrição de São Pedro sobre os ímpios antediluvianos como estando “em prisão” (1 Pe 3.19). Assim como antes da ressurreição as almas crentes estão “com Cristo” e desfrutam do amor de Deus, assim também os descrentes experimentam sua ira, que não será consumada até a segunda morte (Ap 20.14,15). Enquanto o lugar dos crentes mortos é denominado “paraíso”130 pelos lábios do próprio Cristo, o lugar das almas perdidas é identificado como “Hades” (Lc 16.23; Ap 20.13,14), um termo que pode também, junto com o equivalente hebraico Sheol, ser usado de forma neutra para a habitação comum de todos os mortos (At 2.27,31).131

O testemunho da Escritura sobre a realidade do estado intermediário dos salvos encontra um eco na liturgia e nas Confissões da Igreja luterana. Preparando-se para receber nosso céu na terra, na Santa Ceia do corpo e sangue do Senhor, unimo-nos na doxologia “com os anjos e arcanjos e toda companhia celeste”. Que os pais luteranos nunca entenderam a expressão “toda a companhia celeste” como limitada a anjos e arcanjos, é deixado claro na declaração da Apologia da Confissão de Augsburgo de admitir que: “os santos oram no céu pela igreja em geral, do mesmo modo que os vivos oram pela igreja universal em geral.”132

No entanto não há como evitar de ser atingido pela reserva e economia mostradas tanto pela Escritura Sagrada como pelas Confissões Luteranas em seu testemunho sobre o estado intermediário. A reticência dos escritores sagrados contrasta drasticamente com as elaborações

129 Last Things, 42.

130 Ver: Joachim Jeremias, “παράδεισος”, em TDNT 5:765-773. A exposição de Jeremias demonstra a verdade da declaração doxológica a Cristo em Luther Worship #126, estrofe 6,1.2: “Tu abriste o paraíso”.

131 Ver: Joachim Jeremias, “ᾅδης”, em TDNT 1:146-149.

132 ApCA XXI, 9; LC, 269.

exageradas sobre o além, que apareceram nos luxuriantes desenvolvimentos da tradição da igreja e, mais recentemente, em escritos de proveniência da Nova Era.

Dentro do movimento referido acima, podemos considerar as especulações extravagantes do filósofo-teólogo John Hick, cujo livro, Morte e Vida Eterna, se aventura a misturar cristianismo e religião oriental, no qual certezas escatológicas são evitadas para favorecer hipóteses “paraescatológicas” alegadamente prováveis. Um clérigo presbiteriano que aceita a continuação da alma após a morte corporal e entende que o estado final é onde a alma perfeita transcende a existência do ego, Hick baseia suas ideias sobre o estado da alma entre a morte e a perfeição final em autoridades tais como supostas comunicações após a morte e no Livro Tibetano dos Mortos.133 Ele rejeita a noção de que o estado final da alma seja determinado pela morte, argumentando que “a nossa vida presente [é] a primeira de uma série de fases limitadas de existência, cada uma delas demarcada pela própria morte.”134 Sendo contrário à teoria da reencarnação neste mundo, Hick especula que a alma do falecido possa renascer em uma série de outros mundos além do presente, pensando ser imaginável, mesmo que não convincente, a ideia de que reprodução sexual continue nesses hipotéticos mundos futuros (cf. Mt 22.30!).135

Não podemos dizer nada a respeito do próximo mundo além do estado bardo, exceto que ele será um ambiente espaço-temporal real, funcionando de acordo com suas próprias leis, dentro do que haverá vida pessoal real - o mundo com sua própria característica, sua própria história, suas próprias preocupações fascinantes e urgentes e seu próprio objetivo, dando forma e significado à existência dentro dele. ... E então, no devido tempo, após um período mais longo ou mais curto do que a nossa presente vida terrena, nós iremos provavelmente “morrer” novamente e seguir para uma outra transição, por meio de outra experiência do tipo-bardo, para dentro de ainda uma outra

133 John Hick, Death and Eternal Life (New York: Harper & Row, 1976), 399-424.

134 Ibid., 408.

135 Ibid., 417s.

vida, em um outro mundo ainda. Não temos como saber quantos destes mundos ou séries de mundos existe; e certamente o número e a natureza de sucessivas encarnações do indivíduo dependerão possivelmente daquilo que é necessário para ele atingir o ponto no qual ele transcenderá o egoísmo e chegará ao estado unificador definitivo, ou nirvana ...136

As fantasias selvagens de Hick servem de um lembrete sóbrio de que a recusa em aceitar a autoridade escriturística conduz não tanto a um empirismo do senso comum, mas a uma aceitação ingênua de todo tipo de absurdo sem fundamento.

A curiosidade incapaz de permanecer fielmente dentro dos limites da revelação bíblica foi capaz de dar uma ajuda ao Espírito Santo, mapeando aquelas áreas que a Escritura deliberadamente cobre em mistério. Assim, a teologia católico romana clássica tentou progredir sobre a revelada dicotomia sobre a salvação, ao colocar diversas subdivisões no além tanto dos salvos como dos condenados. John Gerhard relata que Roma ensina que há cinco possíveis “receptáculos das almas” (animarum receptacula) após a morte. Aqueles “completamente purificados de todos os pecados” entram no céu. Aqueles que morrem em incredulidade, carregados de pecados mortais, vão para o inferno. Crentes que partem desta vida em um estado de pecado venial, sem terem pagado plenamente as “penalidades temporais” por seus pecados, são enviados para o purgatório, de onde eles serão libertados para irem ao céu com a total quitação de seus débitos. O inferno, por sua vez, é entendido como tendo duas câmaras conectadas, cujos habitantes existem (ou, em um caso, existiram) sem alegria, nem desgraça. Em primeiro lugar, as almas das crianças não batizadas são colocadas no “limbo dos infantes” (limbum puerorum). Não tendo ainda atingido a idade da razão, as almas das crianças não batizadas escapam do inferno; mas por não terem sido purificadas da mancha do pecado original nas águas do renascimento, elas também são inelegíveis para o céu. Em segundo lugar existe (ou existia) o “limbo dos pais” (limbus patrum), uma triste prisão na qual estavam confinadas as almas

136 Ibid.

de todos os crentes desde Adão até o tempo da descida ao inferno. Estas almas teriam sido libertadas da prisão e conduzidas à glória celestial a partir do pagamento vicário feito pelo Senhor na cruz para os pecados original e atual.137

A especulação com respeito ao limbo dos infantes brota de uma doutrina do pecado original marcadamente inferior do que aquela da CA II, que entende que o pecado original dos infantes inclui uma culpa digna de morte eterna. A teologia medieval estava muito ocupada com a distinção entre o “poder ordenado” de Deus (potestas Dei ordinata) e seu “poder absoluto” (potestas Dei absoluta). O primeiro é idêntico ao plano e implementação da salvação revelados na Escritura (isto é, a encarnação e os meios da graça). A especulação quanto ao que Deus pode ter feito ou pode de fato ter em mente para realizar à parte de seu poder ordenado é capaz de minar o segundo e o terceiro artigos do Credo. A posição do catolicismo Romano a respeito do limbo dos infantes é um exercício especulativo na área do poder absoluto de Deus. A recusa em aceitar esta noção, no entanto, não obriga a teologia luterana confessional a ter uma insistência correspondente sobre a condenação das crianças não batizadas, uma posição que seria uma invasão da área do poder absoluto de Deus, assim como é a ideia do limbo.

Se os meios da graça do Antigo Testamento forem entendidos como trazendo uma participação proléptica real nos benefícios de Cristo, e assim trazendo certamente a reconciliação com Deus, a noção de que os antigos pais estivessem suportando o desagrado de Deus, mesmo que levemente, em um limbum patrum, seria simplesmente impensável. Entretanto, enquanto o conceito de um limbo dos pais deve ser rejeitado, a verdade de que o Paraíso tenha sido reaberto devido à obra completa do Deus-homem Jesus Cristo sugeriria que os santos dos tempos do Antigo Testamento, repousando no seio de Abraão, receberam de fato um aumento na bem aventurança por ocasião da exaltação do nosso

137 Gerhard, Loci Theologici, 7:114 (locus 26, & 166). Esta passagem é mais facilmente acessível em J. Baier: Compendium theologiae positivae, adjectis notis amplioribus, editado por C. F. W. Walther, 2 volumes (St. Louis: Luth. ConcordiaVerlag, 1879), 1:237.

Senhor (Hb 11.39s; Jo 7.39).

O conceito caracteristicamente Católico Romano sobre o purgatório permanece de pé ou cai com a suposição de que os pecadores justificados são libertados da culpa, mas não da penalidade (poena) do pecado. Tal ideia seria dificilmente reconciliável com a perfeição intensiva do sacrifício vicário de Cristo sobre a cruz, razão pela qual provocou a decidida condenação apresentada pelo reformador nos Artigos de Esmalcalde II.i.12-15. Joseph Ratzinger descreve abertamente o desenvolvimento da doutrina do purgatório, condenada nas Confissões Luteranas, admitindo seu caráter composto feito a partir de elementos pagãos, judaicos e cristãos antigos, e concedendo que este dogma peculiar da igreja romana tem raízes no legalismo de Tertuliano e Cipriano, que aplicaram Mt 5.26 (“Em verdade lhe digo que você não sairá dali enquanto não pagar o último centavo.”) ao estado intermediário.138 De forma notável, Ratzinger está pouco preocupado em sustentar a clássica doutrina católico-romana do purgatório como sendo um lugar de “punições expiatórias e purificatórias”. Antes, em seu desdobramento de “O permanente conteúdo da doutrina do purgatório”, ele foi além do que se esperava, a fim de evitar as noções legalistas que brotam de Tertuliano e Cipriano, preferindo definir o purgatório como sendo a mortificação definitiva da velha carne do cristão e sua conformidade com Cristo.139 A

138 Eschatology, 218-228.

139 “O entendimento cristão básico sobre o purgatório agora ficou claro. O purgatório não é, como pensava Tertuliano, algum tipo de campo de concentração supra terreno onde a pessoa seria forçada a passar por sofrimento de uma forma mais ou menos arbitrária. Antes, ele é o processo necessário de transformação interior no qual uma pessoa se torna capaz de Cristo, capaz de Deus, e assim capaz de ter unidade com toda a comunhão dos santos. Simplesmente olhar para as pessoas com algum grau de realismo é entender a necessidade de tal processo. ele não substitui a graça pelas obras, mas permite que o primeiro atinja sua vitória total precisamente enquanto graça. O que realmente salva é o pleno assentimento da fé. Mas na maior parte de nós esta opção básica está sepultada de baixo de grande quantidade de madeira, feno e palha. Somente com dificuldade é que ela pode nos espreitar por trás da malha de um egoísmo que somos impotentes de derrubar com nossas próprias mãos. O homem é o recipiente da misericórdia divina, no entanto isto não o exonerado da necessidade de ser transformado. O encontro com o Senhor é esta

observação irreverente de Hans Küng, de que “o purgatório é Deus mesmo na ira da sua graça”140 pode levar alguém a suspeitar de uma inabilidade deste escritor para propriamente distinguir entre lei e evangelho, mas o entendimento de Ratzinger sobre o purgatório em termos de uma morte definitiva do velho Adão pelo menos nos aponta para a nossa base comum do batismo. O que o principal teólogo do catolicismo Romano contemporâneo entende que ocorre após a morte, as Confissões entendem acontecer na morte: “quando nos desfizermos em pó”, confessa o reformador, o Espírito Santo “completará sua obra [i.e., nossa santificação] integralmente”.141 Visto que a morte temporal ensaiada no arrependimento batismal de cada dia não é um ponto matemático, mas um processo misterioso, faremos bem em imitar Ratzinger, recusando-nos a oferecer uma medida temporal da morte do velho Adão com um cronômetro na mão.

Uma tarefa não menos importante da dogmática no contexto atual é enfatizar o significado do adjetivo que se encontra na expressão “estado intermediário”. Estar com Cristo após a morte temporal e antes do último dia não deve ser identificado com a completa consumação da salvação, que ocorrerá na ressurreição geral dos mortos e com a consumação do mundo nos novos céus e nova terra. Em outras palavras, o desfrutar da presença de Deus concedido às almas dos crentes mortos será ainda aumentado na visão que terão dele e na comunhão com todo seu povo em seus corpos ressuscitados. Assim, o céu em sua plenitude vem após e não antes da parusia. Uma pressa injustificada de reivindicar transformação. É o fogo que consome nossas impurezas hinos reforma para sermos vasos de eterna alegria. este entendimento somente iria contradizer a doutrina da graça se a penitência fosse a antítese da graça e não a sua forma, a dádiva de uma possibilidade graciosa” (ibid., 230s). O auto distanciamento de Ratzinger da tradição católico romana anterior ao Vaticano II tem, por vezes, um tom surpreendente: “O ‘momento’ transformador deste encontro não pode ser quantificado pelas medidas do tempo terreno. Ele é, de fato, não eterno, mas uma transição, e, portanto, tentar qualificá-lo como sendo de uma duração ‘breve’ ou ‘longa’ com base em medidas temporais derivadas da física seria ingênuo e improdutivo” (230).

140 Eternal life? 172.

141 CM 2ª parte 59; LC, p. 472.

o reino de Deus em sua consumação plena obscurece o perfil e empobrece o conteúdo da esperança cristã e, pior de tudo, torna supérfluas a parusia e a ressurreição corporal. Uma confissão correta sobre a imortalidade da alma e sobre o estado intermediário funciona, entre outras coisas, para preservar o aspecto distintivo da vinda gloriosa do nosso Senhor e da existência corpórea dos santos no futuro, nos novos céus e nova terra.

A título de epílogo, podemos considerar a possibilidade e oportunidade de comemorar os mortos em Cristo, na oração particular e pública da igreja. A cristandade luterana condena sem reservas a prática humana de oferecer o corpo e sangue do Senhor, realmente presentes na eucaristia, como um sacrifício para ajudar as almas que supostamente estejam no purgatório, ou seja, a assim chamada missa das almas.142 Ainda assim, nesta mesma passagem dos Artigos de Esmalcalde, Lutero declarase pronto para discutir “sobre a possibilidade de os mortos serem lembrados no sacramento” (referindo-se à liturgia eucarística e não no uso ou ação do sacramento), desde que o lado romano desistisse de sacrificar a missa para benefício dos mortos. O texto latino da Apologia equilibra o ataque sobre o sacrifício da missa com uma concessão surpreendente para olhos luteranos modernos: “sabemos que os antigos falavam da oração pelos mortos, que nós não proibimos. O que desaprovamos é a aplicação ex opere operato da ceia do senhor a favor dos mortos”.143

A tradução alemã da Apologia por Justus Jonas cautelosamente reduz a concessão feita por Melanchthon para simplesmente dar graças junto com os mortos benditos pelos tesouros eternos dados a eles e a nós.144 O próprio reformador permite alguma medida de oração pelos mortos na esfera da devoção privada:

Quanto aos mortos, como as Escrituras nada dizem a respeito, creio que não é pecado pedir, em livre devoção, mais ou menos da seguinte forma: ‘Nosso bom Deus, se o

142 AE II, ii, 12-15; LC, p. 337.

143 ApCA XXIV, 94; LC, p. 306.

144 BKS, 375.

estado das almas é tal que se lhes possa ajudar, tem misericórdia delas.’ Feito isso uma ou duas vezes, deixa que baste.145

A comemoração litúrgica dos fiéis que partiram desejará expressar o verdadeiro vínculo de amor que une a igreja militante com a igreja triunfante, ao mesmo tempo sendo cuidadosa em evitar a impressão de se tentar orar para que as almas passem a divisão intransponível colocada pelo Onipotente Deus entre salvação e perdição. 146 A tarefa principal da igreja diante da morte física e seus terrores é pastoral e evangélica: a comunicação verbal e sacramental do perdão dos pecados por causa de Cristo, por meio da fé, a justificação do ímpio, que é a única razão que permite qualquer pecador partir em confiança e esperança.147

145 OS 4: 373.

146 Seraphim Rose cita na íntegra um documento intitulado “Vida após a Morte”, composto pelo arcebispo ortodoxo russo, John Maximovitch. Sob o título, “O estado das almas até o último julgamento”, este último escreveu como segue: “Algumas almas se encontram (após os 40 dias) em uma condição de antecipação da Alegria e bem-aventurança eternas, e outros do temor das eternas torturas que virão plenamente após o juízo final. até então mudanças são possíveis na condição das almas, especialmente através da oferta de um sacrifício incruento em favor deles (a comemoração na liturgia) e também por outras orações” (Soul after Death, 195). Rode continua trazendo alguns exemplos da “tradição” de almas que após a morte foram transportadas da perdição para a salvação (195-197). A igreja ortodoxa oriental claramente ainda tem um caminho a percorrer para permitir que a Sagrada Escritura atue como reguladora da tradição.

147 Seraphim Rose transmite a noção ortodoxa oriental de que no terceiro dia após a morte as Almas precisam passar por assim chamadas praças de pedágio celestes (ibid., 73-96). Nas palavras do arcebispo Maximovitch: “Neste tempo (o terceiro dia), [a alma] passa por legiões de espíritos maus, que impedem o seu caminho e a acusam de vários pecados, os quais eles próprios haviam tentado a alma. De acordo com várias revelações, existem vinte destes tais obstáculos, os assim chamados ‘pedágios’, e em cada um deles uma outra forma de pecado é testada; depois de passar por uma delas a alma vem para a próxima, e apenas depois de passar por todas elas com sucesso a alma pode continuar o seu caminho sem ser imediatamente jogada no Geena” (172). Se este itinerário refletir se corretamente a ordem das coisas no além, então a jornada do mal feitor penitente para o paraíso deveria ter sido rudemente interrompida em seu

Pelo que devo eu, homem frágil, implorar? Quem por mim esteja intercedendo Quando os justos precisam de misericórdia?

Rei de majestade tremendo, que de graça a salvação nos envia, fonte de piedade, sê nosso amigo!

Pensa, bom Jesus, minha salvação custou tua maravilhosa encarnação; Não me deixe reprovar!.

Embora fraco e cansado me procuraste, na cruz do sofrimento me compraste; Será que tal graça em vão me é trazida?

Justo juiz, para a impureza do pecado concede teu dom de absolvição Antes daquele dia de retribuição!

Para o resto me preparaste uma Tua cruz; Ó Cristo, sustenta-me! Poupa-me, ó Deus, em misericórdia poupa-me! 148

encontro com os demônios encarregados com a responsabilidade especial de monitorar os pecados de rebelião e roubo.

148 Thomas de Celano, “Dies irae, dies illa,” (“Dia da ira, dia de lamento”) – The Lutheran Hymnal (Concordia Publishing House, 1941), Hino 607, estrofes 711,19. [N.do T.: dois hinos - 535 e 541- do Hinário Luterano (Porto Alegre: Concórdia, 2016) são baseados neste hino latino.]

PARTE TRÊS

O FIM DO MUNDO

(ESCATOLOGIA MACROCÓSMICA)

OS SINAIS DA VINDA DE NOSSO SENHOR

Nestes últimos tempos dos quais as Escrituras profetizam, o mundo está cada vez pior e os homens estão se tornando mais fracos e mais enfermos. A Confissão de Augsburgo XXIII

O principal foco escatológico da Sagrada Escritura não é de forma alguma seu claro testemunho ao estado intermediário dos bemaventurados. Ao contrário, o Evangelho de toda a Escritura é a pessoa divino-humana de Cristo, sua obra teantrópica de reconciliação, e o seu presente e futuro reino, que deve deslocar e suplantar todo o domínio deste mundo. Como Cristo e seu reino são anunciados no Antigo Testamento, a humilde vinda de Jesus (agora no passado) em sua vida terrena e sua vinda (ainda futura) em glória são muitas vezes tratadas como uma unidade. Ao falar do esmagamento da cabeça da serpente por parte de Jesus, o protoevangelho de Genesis 3.15 alude tanto à vitória sobre Satanás no Calvário quanto ao triunfo final sobre o maligno na consumação de todas as coisas. O messiânico Salmo 2 vislumbra a aliança de Herodes e Pilatos contra o Ungido (Sl 2.2; cf. At 4.25ss.), bem como avista firmemente o seu iminente governo visível sobre todas as coisas (Sl 2.8ss.). A profecia do Antigo Testamento está cheia de tensão entre previsões da humilhação do Messias (supremamente no quarto Cântico do Servo, Is 52.13-53.12) e as previsões de seu glorioso reinado (por exemplo, o quarto oráculo de Balaão, Nm 24.15-19; ver também a contemplação de Zacarias à paixão, 12.10, e à parusia, 14.4). Essa tensão foi divinamente resolvida na encarnação, quando a humanidade de Jesus foi concebida e nascida “na forma de Deus” (Fp 2.5), apenas para encobrir a glória inefável comunicada através da união hipostática adotando a “forma de servo” (Fp 2.7) com o propósito de levar vicariamente o pecado do mundo inteiro. Exercendo o seu ofício profético enquanto ainda em seu estado de humilhação, o nosso Senhor previu a sua futura vinda em glória no final dos tempos (Mc 8.38; 14.62). Os anjos lembraram aos onze deste artigo de fé (Atos 1.11). Tampouco os apóstolos foram

negligentes em transmitir a verdade da futura vinda em glória de Jesus para sucessivas gerações da Cristandade (At 3.20; 1 Co 1.7; 15.23; Fil 3.20; 1 Ts 1.10; 2.19; 3.13; 4.15s; 5.23; 2 Ts 1.7,10; 2.1; Ti 2.13; Hb 9.28; Tg 5.7; 1 Pt 1.7,13; 5.4; 2 Pd 3.10; 1 Jn 2.28; 3.2).

O artigo de fé que expressa a parusia foi incluído em todos os três credos católicos e não pode ser posta em dúvida por nenhum cristão sério. Infelizmente, o ceticismo em relação à confiabilidade da Sagrada Escritura, como é encontrado no método histórico-crítico, teve o efeito melancólico de desafiar a autenticidade deste dogma. Onde a crença na inspiração e a encarnação se evapora, a fé na facticidade da parusia é necessariamente prejudicada. Para muitos estudiosos contemporâneos, a forma e conteúdo apocalípticos da mensagem do Jesus terreno simplesmente reflete seu condicionamento cultural e falta força obrigatória para os cristãos do século XX. Outros, como Rudolf Bultmann, não tem escrúpulos em descartar as palavras de Jesus sobre a vinda do Filho do homem como declarações a respeito de uma pessoa distinta dele.149 Irreverência lamentável em direção ao nosso Senhor está subjacente à prática sem cerimônia de selecionar dentre seus ditos registrados, aceitando a autenticidade de alguns enquanto desafia a integridade de outros. Mesmo quando reconhecem a historicidade das declarações dominicais registradas nos Evangelhos, os críticos tendem a tratar o nosso Senhor da maneira mais ofensivamente irreverente. Isso é feito por Henry J. Cadbury, que perguntou grosseiramente:

Como Jesus poderia esperar que um homem vendesse tudo o que tinha e o seguisse, ou se alegrasse na perseguição, ou perdoasse seus devedores, ou escolhesse os lugares mais humildes nas festas? Esta é uma pergunta que muitas vezes me fiz e tantas vezes tenho se perguntado se possivelmente ele nunca pensou nesse assunto profundamente.150

149 Theology of the New Testament, trad. Kenrick Grobel (Londres: SCM Press, 1952), 1:29s.

150 The Peril of Modernizing Jesus (Londres: Society for the Propagation of

A fidelidade ao autor de nossa salvação nos faz resistir a tal apostasia crendo na Palavra de Jesus e confessando com toda a cristandade: “Ele voltará em glória para julgar os vivos e os mortos.”

Nosso objetivo atual não é direcionar a atenção para a parusia como tal, mas sim de expor a grande medida na qual as predições de nosso Senhor sobre os sinais de seu iminente retorno glorioso foram realizadas. O capítulo 24 de Mateus e seus paralelos sinóticos (Marcos 13; Lucas 21) expõem como certas condições no mundo e na igreja apontam para a iminência da parusia. Os sinais especificados pelo Deus encarnado no Monte das Oliveiras estão em um processo de realização contínua desde o momento de sua primeira fala. Este fato não deve ocasionar nenhuma surpresa, já que os últimos tempos iniciaram com a encarnação e não estão esperando se estabelecer em séculos ou mesmo milênios após o período do Novo Testamento. Os sinais listados em Mateus 24 e em passagens paralelas são análogos às insinuações de morte iminente dadas ao indivíduo por meio de doenças corporais; eles indicam a mortalidade e a dissolução iminente do mundo como um todo.151

Os sinais especificados por nosso Senhor no Sermão das Oliveiras e pelos apóstolos em suas cartas caem preponderantemente sob o título de Lei. Nosso relato começará com os sinais atuais do julgamento divino que apontam para o futuro juízo final (guerra, desastres naturais, fome, pestilências). Então iremos esboçar a crescente rebelião contra o Deus Todo-Poderoso através das instituições de sua mão esquerda, que são um prenúncio do fim iminente (transgressão sexual em espiral e destruição familiar, o aumento significativo do aborto induzido, o governo marxista-comunista como a usurpação demoníaca da mão esquerda, e a perseguição governamental da cristandade que tornou o século XX, mais do que qualquer outro, a era dos mártires). Em terceiro lugar iremos registrar a rebelião crescente contra Deus na esfera de sua Christian Knowledge, 1962), 151.

151 “Assim como as irregularidades e doenças no homem, o microcosmo, são mensageiros da aproximação da sua morte, também essas ocorrências anormais e desordens no reino da natureza, o macrocosmo, e na igreja são os mensageiros do grande julgamento que se aproxima e do fim do mundo” (Pieper, Christian Dogmatics 3:517).

mão direita, isto é, na igreja, uma insurreição espiritual que acena ao retorno do Senhor em julgamento (apostasia dentro da igreja, movimentos com pretensões messiânicas, a revelação do Anticristo dentro do templo de Deus). Tampouco podemos deixar de recordar o único sinal da parusia que cai principalmente sob a rubrica do Evangelho: a evangelização de todo o mundo.

Os quatro agrupamentos de sinais escatológicos listados até agora são genuínos indicadores do fim que se aproxima. Da mesma forma que a heresia sombreou a ortodoxia desde quando a verdadeira religião começou com o protoevangelho, mestres heterodoxos apresentaram sinais fictícios da vinda do Senhor ao lado daqueles claramente anunciados na Sagrada Escritura. Seremos obrigados a examinar as alegações feitas pela escola dispensacionalista sobre o suposto papel escatológico do Israel étnico em geral e particularmente do renascimento do Estado judeu, juntamente com outras características de sua expectativa futura, como a afirmação de um iminente arrebatamento secreto dos santos. Por fim, iremos investigar o fundamento biblico dessa vertente da escatologia reformada que insiste que a parusia será precedida por um período milenar de prosperidade para cristandade terrena (pósmilenarismo).

SINAIS BÍBLICOS DE SUA VINDA

O sinal do julgamento de Deus no presente

Enquanto a ira de Deus contra o pecado não arrependido será cumprida em cheio no último dia, Rm 1.18 deixa claro que a ira divina contra a iniquidade da criatura caída está sendo manifestada já no presente. De acordo com Jeremias, as catástrofes que se abateram sobre Judá no tempo do exílio não foram ocorrências aleatórias alheias à conduta do povo; ao contrário, a espada, a fome e a praga afligiram a nação apóstata como digna punição divina de sua rebelião espiritual (Jer 14.12; 21.9; 24.10; 29.17-19; 34.17; 38.2; veja também Lv 26.25-26; Dt 28.21, 25, 38-40, 42, 48). A espada na forma de “guerras e rumores de guerras” é o segundo dos sinais de sua vinda listados por nosso Senhor no discurso das Oliveiras de acordo com Mateus (Mt 24.6). À guerra internacional, Jesus

O que a Sagrada Escritura apresenta como a matéria do presente julgamento divino é visto sob um aspecto totalmente diferente por muitos teólogos filosóficos que refletem sobre o tema da teodiceia. Uma vez que pestes que causam risco de vida, todos os desastres naturais e certas fomes operam à parte da causação proposital humana, os teólogos filosóficos estão aptos a colocar Deus, e não o homem, no banco dos réus e perguntar como tais fenômenos são conciliáveis com a existência de um Deus de amor.152 Os estudiosos que abandonam a autoridade bíblica costumam esquecer que não habitamos "o melhor de todos os mundos possíveis" como supunha Leibniz, mas antes passamos nosso tempo de vida em uma terra amaldiçoada pela culpa de Adão, na qual

152 Os escritos sobre teodicéia vão desde John Hick, Evil and the God of Love (Nova York: Harper & Row, 1978), cuja abordagem é de pólos removidos do cristianismo histórico, através de Austin Farrer, Love Almighty e Ills Unlimited (Londres e Glasgow: William Collins Sons, 1962), que visa mediar entre o teísmo clássico e a teoria evolucionista, para C. S. Lewis, The Problem of Pain (Nova York: Macmillan, 1944), que oferece uma apologética para a posição tradicional. O fato de que a realidade dolorosa desta vida quebrada é totalmente compatível com a queda histórica foi observado por John Henry Newman, que observou a aparente contradição entre a dura realidade do mundo e o amor de Deus: “O que deve ser dito sobre este fato que penetra o coração e confunde a razão? Eu apenas posso responder que ou não há Criador, ou esta sociedade viva de homens está verdadeiramente descartada da presença dele. Se eu ver um menino de boa constituição e mente, com símbolos sobre ele de uma natureza refinada, lançado ao mundo sem provisões, incapaz de dizer de onde ele veio, ou qual é o seu local de nascimento ou ainda quais são suas conexões familiares, devo concluir que há um mistério ligado à sua história, e que ele era um do qual, por uma causa ou outra, seus pais ficavam envergonhados. Apenas assim que eu deveria ser capaz de explicar o contraste entre a promessa e a condição de seu ser. E então assim eu argumento sobre o mundo: se existe um Deus, já que existe um Deus, a raça humana está implicada em alguma calamidade primitiva terrível. A mesma está em desacordo com os propósitos de seu Criador. Isso é um fato, um fato tão verdadeiro quanto o fato de sua existência; assim, a doutrina do que é teologicamente chamado de “pecado original” torna-se quase tão certa quanto a existência do mundo e a existência de Deus” (Apologia Pro Vita Sua [1864; reimprimido, Londres: Fontana Books, 1972], 278s.).

100 acrescenta rapidamente os sinais de “fomes e terremotos” (Mt 24.7), e São Lucas, complementando o primeiro evangelista, conta como Cristo falou de “pestilências” neste contexto também (Lc 21.11).

participamos.153 Ocorrências catastróficas em cujas causas a conduta humana não tem participação devem, portanto, de fato, ser entendidas como juízos divinos, isto é, como antecipações do juízo final. Ao mesmo tempo, devemos qualificar este reconhecimento por referência ao ensinamento do nosso Senhor em Lc 13:1-5 de que as vítimas de desastres não devem ser consideradas piores pecadores do que aqueles que prosperam nesta vida. Há uma inescapável solidariedade universal no pecado, que nos obriga a reconhecer que, através dos desastres que acontecem a alguns, o Deus Todo-Poderoso emite um chamado ao arrependimento a todos, convidando-nos a abandonar a idolatria dos bens transitórios a Ele mesmo, nosso Bem Eterno que é o único digno de adoração.

Através de desastres naturais, fome e pestilência, Deus ensina humildade para nós, cuja natureza caída apodrece com arrogância e rebelião. A arrogância da criatura caída se expressa completamente em atitudes contemporâneas a fim de manifestar a ira de Deus no presente que assume a forma de guerra. A luta armada das nações é patentemente atribuível principalmente à causa humana secundária. Assim, o incrédulo considera que aquilo que o homem fomentou, ele também pode impedir.

A paisagem política do nosso tempo está repleta dos chamados movimentos de paz na América do Norte e na Europa Ocidental, que afirmam que o desarmamento unilateral por parte dos estados livres do Ocidente é uma simpatia capaz de trazer uma condição de paz global. Os secularistas assumem como um artigo de fé que está dentro do poder do homem pôr fim à guerra por ações políticas. O único meio para evitar o castigo divino em forma de guerra é, no entanto, o arrependimento da maldade moral e espiritual; seria bom, portanto, que os movimentos de paz do Ocidente direcionassem suas atividades no sentido de promover o respeito à vida humana criada no momento da concepção no ventre, para a lei de Deus com respeito à vida conjugal e familiar e à boa ordem dos

153 Veja o trecho da Theodicy de Leibniz em John Hick, ed., Classical and Contemporary Readings in the Philosophy of Religion (Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1964), 68-77, especialmente 69. Ver também Frederick Copleston, A History of Philosophy, 9 vols. (Tunbridge Wells, Inglaterra: Search Press, 1958), 4:282-286.

assuntos humanos em geral, e, sobretudo, pela verdadeira religião revelada nas Sagradas Escrituras.

Guerras, desastres naturais, fome e pestilência compõem grande parte da história humana desde a queda até o presente, e como indicadores escatológicos da vinda de Cristo eles são ao mesmo tempo provas melancólicas de uma vida que é quebrada e triste por consequência do pecado. Como efeitos da obra estranha de Deus, esses fenômenos destacam as qualidades completamente antinaturais e anormais do pecado, as quais sem esse estímulo, nós, filhos de Adão, deveríamos estar dispostos a considerá-las perfeitamente comuns e bastante rotineiras. No entanto, elas representam a mais horrível distorção da criação, a qual foi pronunciada por seu Criador como “muito boa,” que devem infligir ao homem terremotos, furacões e tornados. A mais terrível perversão das intenções benevolentes e desígnios amorosos de Deus podem ser vistos no ato de Caim ao levantar sua mão contra Abel, padrão que continua no conflito armado; e somente a rejeição deliberada e culposa do homem da comunhão com Deus pode, em última análise, explicar a recusa, em tempos de fome, da terra que foi feita para o ser humano, de fornecer sustento a ele.

Embora os tempos recentes tenham testemunhado vitórias sensacionais contra doenças transmissíveis e epidêmicas, a última década viu a pestilência levantar sua cabeça mais uma vez em vingança na forma de doenças sexualmente transmissíveis mortais. O devastador colapso e a morte prematura de muitos cuja juventude deveria classificá-los como os mais saudáveis e fortes da sociedade está muitas vezes diretamente ligada a um crescente desrespeito pelo sexto mandamento, o que é um indicador do fim. Este pesadelo médico incorpora concretamente de forma mais intensa quão quebrada e horrível é a existência em pecado, a qual nem a engenhosidade humana em geral e nem a habilidade dos médicos em particular são capazes de consertar. No presente contexto, isso deve ser entendido não apenas como um castigo divino quanto ao erro humano, mas também como um apelo do coração de Deus para o arrependimento, Ele que deseja perdoar todos os pecados e curar todas as doenças (Sl 103.3).

O nosso Senhor indica que os fenômenos antigos descritos aqui são “o princípio das dores” (Mt 24.8), sinais dados em diferente medida a cada geração da cristandade para encorajar os filhos de Deus a esperarem o retorno de Jesus na glória, que por si só porá fim às guerras, desastres naturais, fome e pestes. A designação dessas coisas como “o princípio das dores” sugere que, como no parto de um bebê, as dores do parto dos sinais do presente julgamento de Deus se intensificarão na medida em que o momento crítico da parusia aproxima. Talvez tal processo possa ser discernido no sinal escatológico de guerra, que o nosso século já experimentou duas vezes na forma de conflitos globais. Além disso, um aumento surpreendente no poder destrutivo de armas letais tem inquestionavelmente ocorrido dentro do espaço de apenas algumas décadas.

O sinal da rebelião no mundo

A aceitação generalizada da teoria da evolução na segunda metade do século passado foi acompanhada por uma compreensão da história em termos de uma melhoria imparável da condição humana. A primeira guerra mundial dissipou rudemente as ilusões daqueles que esperavam uma melhoria evolutiva automática do destino da humanidade, tornandoa respeitável até mesmo para teólogos liberais registrarem os efeitos sórdidos do pecado original sobre assuntos humanos. Nem o resto do século ofereceu qualquer contra evidência que nos obrigaria a ter uma visão mais branda da natureza humana. Pelo contrário, as provas da capacidade inata do homem para maldade se multiplicaram em montanhas de transgressões documentadas, ao ponto que muitos estão agora virtualmente anestesiados para o horror da realidade através da sobrecarga de informações desagradáveis. Sem ajuda, a natureza humana não pode suportar as implicações de Alexander Solzhenitsyn em seus três volumes do Arquipélago Gulag, da loucura maoísta na China que culminou na chamada revolução cultural,154 dos horríveis resultados da entrega do

154 Hans Schwarz dedica um capítulo do Locus on Eschatology of the BraatenJenson, Christian Dogmatics para uma examinação de “Opções Seculares” que concorrem com o entendimento cristão das das últimas coisas (Carl Braaten e Robert Jenson, eds., 2 vols [Filadélfia: Fortaleza Press 1984]). A consideração do

Vietnã e Camboja à tirania comunista, ou das grotescas atrocidades perpetuadas ultimamente nos Balcãs.

Porém, o abismo do mal no coração do homem caído não é apenas discernível no Leste. O mesmo prazer estranho na maldade é difundido nos estados ricos do Ocidente, com sua aprovação geral do aborto sob demanda. Quando os candidatos a altos cargos civis podem exultar com o “direito” legal de uma mulher de garantir a matança médica do fruto de seu ventre, aqueles com discernimento estão cientes de que os tempos de multiplicação da maldade dos quais nosso Senhor falou (Mt 24.12) já estão conosco há um tempo. O Espírito Santo caracterizou bem o clima moral no qual o aborto sob demanda pode florescer no adjetivo

ἄστοργοι usado por St. Paulo em 2 Tm 3.3. O sentido do que o apóstolo quer dizer é melhor transmitido na tradução de King James, “sem afeto natural” (“sem afeição natural” - NAA), do que na Revised Standard Version, “desumanos,” ou na New International Version, “sem amor”.

Ἄστοργος rotula a pessoa desprovida de sentimentos e afeições familiares naturais e, portanto, se encaixa em pais simpáticos, que calmamente entregam seus próprios filhos à destruição. Este adjetivo vai ao coração da barbárie pagã ressurgente do século XX.155

“comunismo marxista” (ibid. 2:545-550) começa com uma menção respeitosa ao próprio Marx, e continua em um diálogo admirável com com Ernst Bloch, e culmina em um elogio fulminante ao presidente Mao. A adulação do falecido presidente é equilibrada pela admissão de que a China maoísta talvez ficou aquém da perfeição milenar, e a frase a seguir está entre as mais tolas já escritas: “Já que o novo regime após a morte de Mao é mais aberto ao mundo exterior, nós ouvimos agora que a grande revolução cultural proletária de 1966 foi apenas um sucesso limitado e induziu mais instabilidade do que lucratividade para o progresso social e material” (549). Nossa falha em usar Schwarz como interlocutor nestas páginas tem muito a ver com o fato de seu Locus de Escatologia ser dolorosamente desprovido de conteúdo teológico.

155 “Ἄστοργός ‘sem afeição natural.’ Dentre as várias palavras para amor em grego, στοργή era o que denotava particularmente a afeição familiar. Nesta conexão, Barclay se refere apropriadamente à prática no mundo greco-romano dos dias de Paulo, de expor bebês indesejados e também de infanticídio. O contemporâneo de Paulo, Sêneca, não valoriza o afogamento de bebês fracos ou deformados: [de ira 1.15]” (em Rm 1.31; C. E. B. Cranfield, A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans, 2 vols. [Edimburgo: T. & T.

Junto com a perseguição, a apostasia e a heterodoxia preditas no três versículos anteriores (Mt 24.9-11), a maldade multiplicada prevista em Mt 24.12 há muito tempo está presente no meio da humanidade. O pregador estava certo ao observar que não há nada de novo sob o sol, ponto tomado pelo próprio Cristo quando comparou os dias precedendo a Sua parusia aos dias de Noé e de Ló (M 24.37-39; Lc 17.26-29). A alusão de nosso Senhor ao mundo antes do dilúvio imediatamente nos lembra da frase de Moisés argumentada com um adjetivo e dois advérbios de grande alcance: “todo desígnio do coração delas era apenas continuamente mau” (Gn 6.5; grifo nosso). Conjurar uma era de ouro passada em antítese ao presente carregado de tempestades é um exercício fútil de ignorância romântica, pois as tendências destrutivas do pecado original têm estado em uma quantidade estável desde a queda. O que é notavelmente novo em nossa época, porém, é a aprovação pública e o encorajamento dado ao comportamento intrinsecamente mau por aqueles investidos de autoridade civil e a liderança de instituições educacionais. Em nenhum lugar esse fenômeno é mais perceptível do que na área da vida familiar em geral e da ética sexual em particular. Embora os pecados contra o sexto mandamento não sejam novidade, há, no que diz respeito à civilização cristã, algo totalmente novo na maneira que o governo, a mídia e as instituições de ensino têm conspirado para promover o que é conhecido como revolução sexual. A legislação já não procura promover a herança do matrimônio e desencorajar a tragédia do divórcio. Os educadores dos jovens impressionáveis não pretendem mais promover a castidade entre seus pupilos. O que antes era dividido em certo e errado é hoje reduzido a uma questão de “estilos de vida” igualmente aceitáveis. Até mesmo a terminologia do discurso moral sofreu as depredações da língua fictícia orwelliana, pois a fornicação e o adultério se transformaram ns expressões deliberadamente anêmicas tais como sexo “pré-marital” e sexo “extraconjugal”

O colapso catastrófico de nossa geração no front moral vem mais nitidamente em foco na desavergonhada legalização do aborto em Clark, 1980], 1:132).

demanda. Quando a consciência pode ser cauterizada tão facilmente ao trazer a aceitação do assassinato em massa dos cidadãos de amanhã como um bem público, fica claro que uma geração desprovida até mesmo do desejo natural de gerar e ter filhos sucumbiu a uma escravidão que ama a morte, escravidão aos demônios. Nossa geração considera aceitável a matança em massa de crianças antes de terem nascido, e deve-se ter em mente que os sofrimentos desses seres humanos mais vulneráveis não são aliviados nem com anestesia ou analgésicos. Tampouco nossos contemporâneos consideram repugnantes as práticas concomitantes de recusar um enterro digno aos cadáveres desses bebês assassinados (que são lançados sem cerimônia em incineradores ou então deixados para coleta de lixo) e do uso médico de órgãos desses bebês mortos para fins de transplante (“tecido fetal”!). “Por causa dessas coisas,” sugere o apóstolo, “é que vem a ira de Deus” (Cl 3.6).

Alegrar-se com a queda repentina dos regimes marxistascomunistas na Europa Oriental tanto no ano de 1989 como depois, pode vir a ser um sentimento tragicamente prematuro. Resta saber se o florescimento imprevisto de liberdade na antiga União Soviética e seus satélites não é mais do que um breve interlúdio entre longas temporadas de escravidão cruel. De qualquer forma, apenas o observador mais superficial poderia deixar de discernir, durante o domínio marxistacomunista sobre grande parte da Europa e da Ásia por metade de um século, uma usurpação demoníaca do reino da mão esquerda de Deus. Em seu incisivo Modern Times, Paul Johnson aponta Lenin como aquele que definiu a agenda política para todo o século XX.156 Com sua busca e manejo de um poder absoluto em total desrespeito a quaisquer restrições morais, Lenin tornou-se, em realidade de ferro, a tirania totalitária que havia sido prenunciada na Revolução Francesa, especialmente em sua fase jacobina. Mais notável do que a imposição militar do regime comunista sobre o sofrimento das populações do Império Soviético e da China Vermelha, tem sido a inesgotável fonte de apologistas do marxismo que desde 1917 têm levantado suas vozes entre as elites universitárias,

156 Modern Times: The World from the Twenties to the Eighties (Nova York: Harper & Row, 1983), 49-94.

jornalistas, políticos e até clérigos do Ocidente. O relato escrito por Hewlett Johnson, o notório “Red Dean” de Canterbury, de sua audiência maravilhada com Joseph Stalin, convida à comparação com o elogio de Hans Schwarz ao Presidente Mao, ao qual foi feita referência acima. Ao final de sua longa vida, Johnson lembrou como ele introduziu em sua conversa com o maior assassino em massa e arqui-perseguidor do século XX o delicado assunto da liberdade religiosa na União Soviética:

“Pessoalmente”, eu disse, prosseguindo no assunto, “observo em muitas ações do governo que coisas feitas para a massa da humanidade comum pelas autoridades da União Soviética está mais de acordo com o ensino e a moral cristã do que em qualquer outro lugar. Há algum fundamento, pelo menos, para o exagero banal de que aqueles que professam acreditar em um Deus de justiça e amor agem como se não acreditassem, enquanto aqueles que o negam agem como se o possuíssem.” Stalin e Molotov sorriram.157

É claro que eles fariam isso!

O apelo do comunismo marxista ao homem incrédulo do século

XX não pode ser explicado meramente com base na promessa utópica de Marx de uma era de ouro sem classes. Igor Shafarevich salientou significativamente que “o ódio à religião nos estados socialistas... não pode ser explicado por motivos econômicos ou políticos.”158 O argumento de Marx de que o reconhecimento da esfera sobrenatural pela religião é uma ilusão sonhada para compensar as necessidades sociais, econômicas, e alienação política159 não pode ser visto como apenas o produto de uma investigação acadêmica desapaixonada. Pelo contrário, a questão deve ser se a mentalidade completamente maligna em ação no

157 Hewlett Johnson, Searching for Light: An Autobiography (Londres: Michael Joseph, 1968), 231.

158 “Socialism in Our Past and Future” em From Under The Rubble, ed. Alexandre Soljenitsin e trad. sob a direção de Michael Scammell (Londres: Fontana/Collins, 1979), 29.

159 Ver Karl Marx, Critique of Hegel´s “Philosophy of Right” trad Annete Jolin e Joseph O Malley, ed. Joseph O´Malley (Cambridge: At the University Press, 1970), 131s.

Manifesto Comunista pode ser entendida como uma expressão do mal puramente humano. A cortina de fumaça da “burguesia” ridícula e sem limites com a qual Marx cobre seus apelos pelo fim da propriedade privada e pela abolição da família não pode disfarçar o fato de que os objetos de seu ódio são exatamente a família e propriedade privada, e não apenas algumas supostas distorções burguesas dessas boas dádivas de Deus.160 Há, também, algo completamente antinatural no sarcasmo fulminante acumulado por Marx sobre o patriotismo.161 Tampouco se pode ignorar o fato de que ele não oferece defesa contra a objeção ao comunismo que ele coloca nas bocas de seus oponentes: “Mas o comunismo abole as verdades eternas, abole toda religião e toda moral, em vez de constituí-los sobre uma nova base...”.162

A evidencia apresentada por Richard Wurmbrand para fundamentar a afirmação que Marx era um satanista praticante demonstra conclusivamente que o marxismo não é de forma alguma uma filosofia dedicada ao aperfeiçoamento da humanidade, mas um programa de guerra total contra o Deus Todo-Poderoso e contra as boas dádivas de seu governo da mão esquerda e direita, e que o sufocamento da economia e a vida intelectual sob os sistemas comunistas de governo não é, portanto, o resultado de aplicação defeituosa do princípio marxista, mas sim o inevitável resultado do desejo de morte que é a filosofia marxista.163 Wurmbrand aponta que um poema escrito por Marx logo após sua graduação no ensino médio (“A invocação daquele em desespero”) contém a frase: “Eu desejo vingar-me contra aquele que governa lá em cima.”164 Na peça Oulanem composta durante seus anos de estudante (cujo titulo Wurmbrand argumenta ser um anagrama satânico de Emanuel), Marx se alegra com a perspectiva de arrastar a humanidade para o inferno,

160 Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto Comunista, trad. Samuel Moore (Londres: Penguin Classics, 1985), 96, 100. Cf. Solzhenitsyn, From Under the Rubble, 29-31.

161 Marx e Engels, Manifesto Comunista, 102.

162 Ibid., 103.

163 Ver Solzhenitsyn, From Under The Rubble, 61-66.

164 Richard Wurmbrand, Was Karl Marx A Satanist? ed. rev. (N.p.: Diane Books Publishing Co., 1979), 9.

anunciando sua intenção, “uivarei maldições sobre a humanidade.”165 A peça termina com sentimentos similares:

O mundo que se amontoa entre mim e o abismo

Eu vou quebrar em pedaços com minhas maldições duradouras.166

Em outro poema, “O Jogador”, Marx fala de ter sido vendido como uma espada pelo príncipe das trevas, o que explica o fato de que,

Os vapores infernais sobem e enchem o cérebro, Até eu enlouquecer e meu coração mudar completamente.167

A trágica história das nações do mundo dominadas pelos comunistas foi o cumprimento mais horrível das más intenções expressas no poema de Marx “Orgulho Humano”:

Com desdém vou jogar minha luva

Cheio na face do mundo,

E veja o colapso deste gigante pigmeu

Cuja queda não sufocará meu ardor.

Então eu vagarei como um deus e vitorioso

Através das ruínas do mundo

E, dando às minhas palavras uma força ativa, Vou me sentir igual ao Criador.168

165 Ibid. Nesta página, Wurmbrand observa como, no The 18th Brumaire, Marx citou o palavras de Mefistófeles em Faust: “Tudo o que existe vale a pena ser destruído.”

166 Ibid., 15.

167 Ibid., 12. “A seguinte citação é tirada do poema de Marx On Hegel: palavras que eu ensino todas misturadas em uma confusão diabólica. Assim, qualquer um pode pensar exatamente o que ele escolhe pensar. Em seu poema The Pale Maiden, ele escreve: Assim perdi o céu, sei disso plenamente bem, minha alma, uma vez fiel a Deus, é escolhida para o inferno” (17). Entre outras evidências citadas por Wumbrand em apoio de sua tese esta a atribuição da desordem social de Marx a “nosso bravo amigo, Robin Goodfellow,” este nome próprio aparentemente inócuo foi usado nos escritos de William Tyndale e Wiliam Shakespeare como sinônimos de Satanás (72s).

168 Ibidem, 25.

Hermann Sasse observou amargamente em 1932 que “a teoria marxista foi refutada mil vezes - por rios de tinta de impressora na Alemanha e por rios de sangue na Rússia.”169 Os rios de sangue que a terra vai despejar no Último Dia para condenar Lenin e seus sucessores será em grande parte feita do sangue dos mártires. A perseguição do mundo à igreja, que inclui o derramamento de sangue de mártires, é especificada por nosso Senhor como um sinal de Sua vinda (Mt 24.9). Escrevendo em meados do século XIX, Matthias Joseph Scheeben identificou a raiz do período grave de perseguição que teve início com a Revolução Francesa: Assim, por um século e mais, os agentes do inferno têm gritado seus “écrasez l’infâme!” Uma vez que o Cristo encarnado está além de suas garras, eles perseguem o Seu corpo místico com um frenesi diabólico.170

Devido ao fato de que suas campanhas de perseguição eram de duração esporádica e alcance limitado, os perseguidores antigos como Décio e Diocleciano dificilmente podem ser classificados junto de inimigos modernos da igreja como Lenin, Stalin, Khrushchev, Mao, Castro e seus sucessores, cujas guerras totais contra a cristandade marca uma intensificação radical do sinal escatológico de perseguição. Alexander Solzhenitsyn é, talvez, culpado de uma subavaliação substancial em suas palavras de acusação para o Ocidente, escritas na ocasião de sua aceitação do Prêmio Nobel:

Em uma parte do mundo, não muito tempo atrás, centenas de milhares de cristãos silenciosos deram suas vidas por sua fé em Deus sob perseguição não menos severa do que a da Roma Antiga.171

169 “Vom Sinn des Staates,” em In Statu Confessionis, ed. Friedrich Wilhelm Hopf, 2 vols. (Berlin and Schleswig-Holstein: Verlag die Spur GMBH & Co, 1976), 2.331, minha tradução.

170 The Mysteries of Christianity, trad. Cyril Vollert (St. Louis: Herder Book Co, 1947), 271.

171 Alexander Solzhenitsyn, “One Word of Truth...”: The Nobel Speech on Literature 1970, trad. BBC Russian Service (Londres, Sidney, e Toronto: Bodley Head, 1972), 12.

Enquanto o tempo da tribulação continua desde o Pentecostes até a parusia, pode-se esperar uma perseguição ainda mais intensa contra Cristo nos membros de Seu corpo aqui na terra (Mt 24.21; Mc 13.19; ct, também Ap 19.19; 20.9). A perda da existência temporal do cristão é, no entanto, o ganho da vida eterna (Mt 16.25 e paralelos); a derrota infame aos olhos do mundo é a aquisição de uma participação no reino do Cristo ascendido (Ap 20.4). O exército de mártires vestidos de branco tem causa superabundante para alegria.

O Sinal da Rebelião na Igreja

Cristo não deve ter apenas Caifás entre Seus inimigos, mas também Judas entre Seus amigos. Martin Luther, Ein Brief an die Christen zu Strassburg wider den Schwärmergeist

Nós somos instruídos pela boca do Deus encarnado que “falsos profetas” surgirão quando a cristandade for afligida por perseguição e apostasia (Mt 24.11). Tal como acontece com os outros sinais de Sua vinda, a advertência de nosso Senhor contra os falsos profetas diz respeito não apenas a um futuro distante, mas também a toda a vida de Sua igreja a partir de Pentecostes (Mt 7.15). O apelo de são Paulo à fidelidade pastoral no seu último encontro com os presbíteros efésios tornou-se ainda mais urgente devido a sua consciência profética de que a heresia destruidora de almas estava prestes a abalar a jovem igreja até seus fundamentos (Atos 20.29-30). Assim como a história mundial é, em grande medida, uma história de guerra, assim também a história da igreja é, principalmente, um registro da ascensão e refutação da falsa doutrina dentro da santa cristandade. Já que Satanás ainda não foi lançado ao lago de fogo, o militante da igreja não pode conhecer uma única hora imperturbável pela dissensão doutrinária. A Palavra deve ser contestada bem como confessada (1 Cor 11.19). O doutor Lutero nos lembra sem rodeios que “a discórdia e o desacordo sobre as Escrituras ... é uma briga divina onde Deus luta contra o diabo ... Ef 6.12”.172

O sinal escatológico de falsos profetas vendendo seus erros tem se entrelaçado com a cristandade externa desde os tempos do Novo Testamento em diante, e também não irá diminuir seu domínio no espaço de tempo que resta até a parusia. A virtude urbana da tolerância, embora necessária e útil na esfera da mão esquerda, pode, se praticada sem controle na mão direita, ter o efeito negativo de entorpecer nossa consciência do puro horror da heresia. A guerra de Satanás contra a integridade da Palavra divina levou ao estrangulamento do Evangelho nos sistemas labirínticos do gnosticismo do século II, que são muito mais atraentes para a carne vaidosa do que a verdade direta de Deus. Como seu sucessor, a Nova Era, o gnosticismo oferecia os consolos da religião sem os desconfortos do arrependimento, um projeto para ganhar multidões em todos os momentos. Que blasfêmia Marcião ousou pressionar além da distinção entre Lei e Evangelho para inventar uma separação ontológica do que ele considerava ser o justo Deus da criação e da Lei do bom Deus do Evangelho, dizimando e expurgando a Sagrada Escritura como ele fez! Que rejeição açucarada do Cristo Redentor e de seus benefícios espreitava no rebaixamento filosófico de Ário da segunda pessoa da Trindade para as fileiras (criadas) de divindade meramente honorária! Que desprezo pela encarnação estava por trás da conversão do Evangelho em Lei por Pelágio! Que insolência alimentou a formação de uma quinta coluna por Zwínglio para lançar um ataque de retaguarda à igreja da Reforma! E, no entanto, todos esses fundadores de heresias eram apenas tímidos precursores dos apóstatas que hoje tomaram o controle sobre a maioria dos púlpitos e locais de ensino da cristandade. A forma insidiosa e sutil de heresias clássicas resultou do fato de que hereges de gerações anteriores pelo menos se sentiram obrigados a vestir roupas de ovelha. Enquanto esses falsos professores ainda estão conosco, a característica decisiva da paisagem eclesiástica atual é que a heterodoxia em geral explodiu em apostasia descarada, nua e sem vergonha, sob cujos auspícios os lobos se atrevem a desfilar publicamente em trajes lupinos. O vírus do método histórico crítico envenenou muitos que sustentam chamadas regulares e válidas dentro da igreja que eles negam alegremente o Senhor que os comprou e pisoteiam na Escritura inspirada e na sua mensagem. Em toda a santa cristandade, a apostasia está sendo promovida nas formas de “teologias” feministas, da libertação e do

processo. Em comparação com a devastação atualmente sendo forjada através desses movimentos demoníacos, as lutas dos séculos IV e XVI parecem apenas tempestades em uma xícara de chá.

O primeiro dos sinais de Sua vinda listados por nosso Senhor no Discurso das Oliveiras em Mateus é o fenômeno dos falsos messias: “Porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Eu sou o Cristo’; e enganarão a muitos” (Mt 24.5; veja também vv. 23-24). A cristandade é assim avisada contra toda a gama de impostores que usurpariam a primazia de Jesus e que vão desde Bar-Cochba e avançam além de Sun Myung Moon. No entanto, falsos messias não vem apenas na forma de pessoas individuais, cujos balões de orgulho logo se esvaziam quando compartilham o mesmo destino da mortalidade, mas também, e muito mais insidiosamente, sob a forma de movimentos coletivos. O comunismo marxista é apenas um movimento messiânico falso, uma caricatura demoníaca medonha do verdadeiro Messias e seu bondoso reinado; e enquanto este fenômeno histórico é patentemente e totalmente extra ecclesiam, permanece o fato espantoso de que clérigos se mostraram dispostos a louvar até o comunismo stalinista como uma realização do reino de Deus! A insinuação de Jesus de que falsos messias se apresentarão em seu nome é um aviso de que, seja aparecendo de forma pessoal ou coletiva, eles terão a ousadia de se vangloriar como encarnações do cristianismo genuíno. O gnosticismo, que atormentou a igreja do segundo século, alegou que ele e não a Igreja Católica transmitiu fielmente a revelação de Deus em Cristo.

Valentino, Basílides e seus companheiros reapareceram recentemente em novo disfarce na forma do movimento ocultista da Nova Era, que chegou à vista do público por volta de 1975. Esse movimento parece, de forma geral, ser uma forma atualizada da escola teosófica de pensamento que se originou na atividade e nos escritos da psíquica nascida na Rússia, Helena Petrovna Blavatsky (1851-1891). Quando Blavatsky faleceu, a liderança da Sociedade Teosófica passou para Annie Besant (1847-1933), viúva de um clérigo que se tornou apaixonado pela religião hindu do subcontinente indiano. O termo “nova era” foi aplicado pela primeira vez ao período de bem-aventurança

teosófica por Alice A. Bailey (1880-1949), que como Blavatsky afirmava receber o conteúdo de seus muitos escritos de mestres espirituais elevados, supostamente residentes no Tibete.

Os princípios teosóficos que se expressam na propaganda política do movimento da Nova Era estão em profundo acordo tanto com a ideologia totalitária como com as explicações puramente mundanas das origens do universo em sua rejeição da personalidade de Deus, que é, remotamente, mas verdadeiramente representada na personalidade do homem. Enquanto o pensamento da Nova Era rejeita a obra salvífica de Cristo com claro desprezo, suas blasfêmias começam e se originam de ofensas grosseiras contra o primeiro artigo do Credo. A personalidade de Deus é pisoteada, com o corolário de que a singularidade de cada pessoa humana feita à Sua imagem se funde em um conglomerado monista indistinto.

A compreensão da realidade da Nova Era pode ser compactada sem distorção em três princípios.173 Primeiro, o pensamento da Nova Era reduz o poderoso Deus ao status de um Absoluto impessoal que é

173 A melhor apresentação em volume único do movimento da Nova Era oferecida pelo próprio movimento encontra-se no The New Age Catalog (ver n. 11 no cap.5). Dentre as refutações mais úteis do pensamento da Nova Era estão nos escritos de Douglas Groothuis, Unmasking the New Age (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1986) e de Elliott Miller, A Crash Course on the New Age Movement (Grand Rapids: Baker Book House, 1989). Enquanto Miller reúne as “crenças básicas” dos defensores da Nova Era sob nada menos que nove títulos (16-18), suas categorias tendem a se sobrepor e se misturar, sendo a maioria redutível aos primeiros dois títulos aqui expostos. O mesmo pode ser dito das seis teses distintas da Nova Era apresentadas por Groothuis (18-31). Muito antes dos princípios da teosofia adquirirem ampla publicidade sob o guarda-chuva da propaganda política da Nova Era, a análise de F. E. Mayer sobre o seu ensino foi totalmente congruente com nossas próprias descobertas: “Os teosofistas dizem que suas pesquisas revelaram duas verdades básicas: (1) as forças ocultas na natureza mostram que Deus é imanente, e (2) os poderes latentes no homem mostram que o homem é aperfeiçoável” (Arthur Carl Piepkorn, ed., The Religious Bodies of America, 4ª ed. [St. Louis: Concordia Publishing House, 1961], 555).

Veja também John R. Stephenson, “Giving a Twofold Response to the Ancient Errors of the ‘New Age’” Lutheran Theological Review 3 (Primavera/Verão de 1991): 47-56.

indiscriminadamente identificado com a realidade como um todo e também em todas as suas partes. Enquanto “Deus” continua a ser falado, a Sua transcendência desmorona em pura imanência de tal forma que Ele é identificado com processos deste mundo. A visão de mundo da Nova Era é tanto monista quanto panteísta, e o eclipse resultante do Deus pessoal transcendente abre um vazio que é preenchido pela idolatria do homem, o qual é encorajado a predicar divindade de si mesmo.

Em segundo lugar, o homem supostamente divino é considerado imune à morte no sentido de extinção pessoal. A morte é separada de qualquer associação com penalidade pelo pecado e é interpretada em termos neutros como se fosse apenas uma transição de um plano para outro, se não até mesmo como uma mera ilusão. “Talvez a nossa crença na morte é a maior ilusão de todas”, exorta Shirley MacLaine,174 ecoando Mary Baker Eddy antes dela. Note-se que a concepção da Nova Era quanto à sobrevivência da pessoa humana à morte não tem nada a ver com a aceitação da imortalidade da alma como um dom divino que necessariamente implica responsabilidade para com o Deus TodoPoderoso. Em vez disso, os porta-vozes do movimento francamente têm em mente uma divindade inata do homem, um status de divindade que o homem possui por direito intrínseco e não por um presente criado. O Criador transcendente é reduzido a uma força impessoal assim que o homem é exaltado para tomar o seu lugar. Sendo eles nasua maioria aceitadores da lei do karma como o fator que garante a justiça final do universo, os pensadores da Nova Era fizeram muito para popularizar no Ocidente o conceito relacionado de reencarnação. Tendo renunciado a singularidade soberana do Deus Todo-Poderoso, este movimento se recusa a apreciar a singularidade pessoal e irrepetibilidade de cada criatura humana feita à Sua imagem. Como observa São João, “quem ama aquele que o gerou ama também o que dele é nascido” (1 Jo 5.1). A irmandade do homem não tem subsistência, exceto na paternidade de Deus, e a adoração do infinitamente adorável Deus em três pessoas está intimamente ligada ao respeito pela personalidade única de Suas criaturas humanas. O erro da reencarnação já foi refutado em detalhes por Johann

174 Out on a Limb (Toronto: Bantam, 1983), 351.

Gerhard no tempo da ortodoxia e por Paul Althaus no período entre as guerras mundiais.175 Hb 9:27 permanece o antidoto do Espírito Santo para o erro da reencarnação: “E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disso, o juízo.”

Em terceiro lugar, o homem ilimitado, que usurpou o lugar de Deus, é aquele que “cria sua própria realidade.”176 Não é surpresa, então, que o homem da Nova Era é encorajado a reescrever o roteiro da moralidade tradicional. Nenhum ato pode ser considerado intrinsecamente bom ou mau, e a distinção entre o certo e o errado são superados na decisão soberana da consciência humana. O panteísmo da Nova Era e suas consequências para a ética são apresentados por um exevangélico, adepto do movimento:

O que você escolher não importará para ninguém, muito menos para Deus. Deus permite. Deus não julga, Deus não se machuca, Deus não sai em um canto e bufa e sopra e explode a casa para mostrar quem é o chefe. Deus permite. Deus permite porque Deus é Aquele que inclui tudo. Deus permite porque Deus não é um ser, Deus é Aquilo Que Inclui Tudo. Deus é Tudo isso e o Tudo, e Deus não pode se separar de nada disso de maneira alguma. O que você escolher importará apenas para você, e apenas na medida em que você se importa com quem você é.177

O movimento da Nova Era do final do século 20 é certamente de origem satânica; nem se pode negar seu lugar como um movimento de pretensões entre os sinais dominicalmente certificados a respeito da iminente parusia. No entanto, há um grande desacordo dentro da cristandade sobre o papel real a ser desempenhado pelo movimento no drama do fim dos tempos. Pré-milenaristas reformados costumam ver o movimento da Nova Era como o veículo que em breve conduzirá o

175 Gerhard, Loci Theologici, locus 26, par. 154-158; Althaus, Die Letzten Dinge, 159-171.

176 Veja The New Age Catalogue, 40.

177 Ibid., 44, citando Terry Cole-Whittaker, The Inner Path from Where You Are to Where You Want to Be: A Spiritual Odyssey.

Anticristo ao palco do mundo. Tal cenário é vislumbrado pela autora batista Constance Cumbey, cujos escritos se esmerado muito para alertar os cristãos sobre os perigos do crescente movimento.178 Para os pósmilenaristas reformados, por outro lado, os defensores da Nova Era de hoje são apenas um Golias destinado a ser derrubado pela cristandade ressurgente de amanhã.179

O sinal de rebelião dentro da igreja chega ao seu ápice no mistério do Anticristo. Joseph Ratzinger nota uma certa imprecisão na figura esboçada por São Paulo em 2 Ts 2.3-10, insistindo que o seu caráter composto, como uma mistura de Dn 11.36 e Ez 28.2,

priva-o de qualquer singularidade muito bem definida. Isso situa o anticristo do Fim dentro de uma série onde uma longa linha de antecessores já nutriu o mal que atinge sua suprema intensidade nele.180

Ratzinger compreensivelmente falha em associar o fenômeno do Anticristo com seu superior eclesiástico imediato. Esta associação é feita, no entanto, de qualquer forma com respeito à pessoa do Papa Paulo III, pelas Confissões Luteranas nos AE II.iv.

O reformador apela para 2 Ts 2.4 ao identificar o pontífice então reinante como o verdadeiro Anticristo. Notavelmente, o próprio termo Anticristo é ausente da passagem crucial de Tessalonicenses, aparecendo apenas nas cartas Joaninas. Aqui o Anticristo é tanto um fenômeno plural

178 The Hidden Dangers of the Rainbow (Shreveport, LA: Huntington House, 1983) e A Deception Planned: The Staging of a New Age of Mission (Centerline, MI: Pointe Publishers, 1985).

179 Veja Gary North, Unholy Spirits: Occultism and New Age Humanism (Fort Worth: Dominion Press, 1986), 378-395, esp. 394: “Este não é o fim do mundo. A igreja não está prestes a ser arrebatada. Os humanistas, ocultistas e nova era estão prestes a ver seu mundo se romper. Este processo pode ser atrasado pelo julgamento externo de Deus sobre o Ocidente, mas não pode ser atrasado até o retorno de Cristo no julgamento final. Vai acontecer muito antes da volta de Cristo em glória.”

180 Eschatology, 196.

quanto singular, já presente e ainda por vir (1 Jo 2.18).181 Em todo caso, a marca identificadora do Anticristo Joanino é encontrada em sua adoção do erro cristológico na forma do docetismo gnóstico primitivo (1 Jo 4.23). O Anticristo Joanino não traz imediatamente o papado à mente; de fato, 2 Jo 7, que identifica o Anticristo com aqueles que não reconhecem Jesus Cristo como aquele que continua vindo na carne (ἐρχόμενον ἐν σαρκί), sem dúvida se refere especificamente à negação da presença real e assim aponta o dedo da acusação na direção de Zwῖngliο e de toda a igreja reformada que o segue. A sedes doctrinae para o dogma confessional que o mistério do Anticristo encontrou realização e cumprimento no papado é osegundo capítulo de 2 Tessalonicenses.

Os Artigos de Esmalcalde em II.iv especificam as razões pelas quais o Papa Paulo III é rotulado como “o verdadeiro Anticristo.” Além disso, uma vez que o fundamento alegado neste artigo tem menos a ver com a pessoa de Paulo III Farnese do que com o cargo ocupado e exercido por ele e por seus predecessores e sucessores, o dogma luterano identifica o papado com o fenômeno esboçado pelo apóstolo em 2 Tessalonicenses 2 e com o que é tradicionalmente conhecido como o Anticristo. A questão proposta à dogmática luterana contemporânea é se o ofício papal exercido atualmente pelo Papa João Paulo II merece as censuras proferidas pelo reformador nos AE II.iv contra o papado do seu tempo. Nenhuma resposta pode ser dada a esta pergunta separadamente de um exame das causas subjacentes à identificação confessional do papado com o Anticristo. Lutero põe o dedo na expressão sacrílega das reivindicações papais estabelecidas no Unam Sanctam de Bonifácio VIII de 1302: “Além disso, declaramos, dizemos, definimos e proclamamos a toda criatura humana que eles, por necessidade para a salvação, estão

181 “As passagens em que o termo [Anticristo] ocorre não são decisivas quanto ao ensino de São João em relação à vinda de um grande Anticristo, dos quais os outros eram encarnações preparatórias. No que diz respeito às suas palavras, 'Anticristo' pode ser a personificação do princípio mostrado em diferentes anticristos, ou a pessoa cuja aparência é preparada por essas formas particulares do mal. A primeira, porém, é a interpretação mais natural: v. 22; 2 João 7. O espírito do mal vem naqueles a quem ele inspira. Contraste 2 Tess. ii.3ss.” (em 1 João; Brooke Foss Westcott, The Epistles of St. John: The Greek Text with Notes and Essays, 4ª ed. [Londres: Macmillan & Co., 1905], 70).

inteiramente sujeitos ao Pontífice.”182

Tendo argumentado que o papado é de origem humana e não de origem e instituição divina, o reformador aponta para uma falha fatal no ofício papal e em seu exercício: ele representa uma usurpação demoníaca da liderança sobre a santa cristandade que pertence somente a nosso Senhor Jesus Cristo.

Esta é uma demonstração poderosa de que o papa é o verdadeiro Anticristo que se levantou e se opôs a Cristo, pois o papa não permitirá que os cristãos sejam salvos a não ser por seu próprio poder, o que não significa nada, pois não é estabelecido nem ordenado por Deus.183

A usurpação do lugar do nosso bendito Senhor em Sua igreja, ao invés de qualquer pronunciamento doutrinário em particular, é a conclusão na parte mais séria da acusação feita pela Reforma Luterana contra o papado:

Assim, como não podemos adorar o próprio diabo como nosso senhor ou Deus, então não podemos permitir que seu apóstolo, o papa ou o Anticristo, nos governe como nosso chefe ou senhor, já que a desilusão, o assassinato e a destruição eterna do corpo e da alma são características de seu governo papal, como demonstrei em muitos livros.184

182 Citado de Heinrich Denzinger, The Sources of Catholic Dogma, trad. Roy J. Deferrari (St. Louis: B. Herder Book Co., 1957), 187.

183 AE II.iv.10; Tapper, 300.

184 AE IIiv. 14b; Tappert, 401. Veja o comentário de Arthur Carl Piepkorn, “The Sacred Ministry and Holy Ordination in the Symbolical Books of the Lutheran Church,” Concordia Theological Monthly 40 (setembro de 1969): 560: “Enquanto o papa insistir nas últimas 17 palavras da Unam Sanctam, ele é o anticristo de 2 Tessalonicenses 2.4. A retirada de fato das reivindicações temporais do papado após a tomada de Roma pelo Estado Italiano em 1870 faz pouco para tornar 2Ts 2.4 inaplicável ao papado, no entanto. O tom mais generoso em relação a outros cristãos que tem sido empregado desde o Concílio Vaticano II não pode esconder o fato de que a reivindicação do papado de jurisdição real sobre toda a Igreja permanece muito em vigor.

As Confissões Luteranas oferecem duas abordagens para falar do papado em conexão com o Anticristo. Por um lado, deparamo-nos com o reconhecimento de Melanchthon do primado da honra (em sua assinatura dos AE) e com sua maneira moderada e indireta de associar o papado ao Anticristo (por exemplo, Ap. XV.18: “Do mesmo modo, o papado também será parte do reino do Anticristo, se...” [LC, 256]; em outras palavras, se o sapato servir, use-o). Por outro lado, há a equação contundente de Lutero: “O papa é o verdadeiro Anticristo.”185 Os tons empregados pelos atuais luteranos confessionais devem refletir a natureza precisa das reivindicações feitas pelo e para o ofício papal em nossos dias, juntamente com o exercício efetivo daquele ofício.

A teologia luterana confessional faz certas qualificações com respeito à identificação feita do papado com o Anticristo. Em primeiro lugar, admite-se que o papado não esgota o mistério do Anticristo, mas sim encarna a manifestação mais intensa desse mistério até agora encontrada na história da Igreja. A Apologia. XV.18 associa o “Reino de Maomé” junto com o papado como parte do “reino do Anticristo,” e Lutero viu a predição feita em 2 Ts 2.7 sendo realizada na guerra de Zwínglio contra Cristo em seu Sacramento do Altar.186 Sasse observa que “a Igreja Luterana não ensina nada em suas Confissões sobre como Deus pode fazer com que a profecia do Anticristo se cumpra no futuro oculto, isto é, qual forma o Anticristo pode assumir nos terrores finais do fim dos tempos.”187

Em segundo lugar, o dogma confessional não pretende questionar a piedade de qualquer papa individual.188 Não se pode permitir, no entanto, que estas qualificações obscureçam o fato de que os luteranos confessionais não terão a intenção de reconsiderar a identificação feita

185 AE II.iv.10; LC, 342.

186 AE 37:16; WA 23:69.38-39.

187 “Last Things: Church and Antichrist,” We Confess the Church, trad. Norman Nagel (St. Louis: Concordia Publishing House, 1986), 119.

188 Veja Paul R. Raabe, “Necessary Distinctions Regarding the Papacy,” Concordia Journal 14 (Janeiro de 1988): 3.

pelo Livro de Concórdia do papado com o Anticristo até que o bispo de Roma e o corpo da igreja em comunhão com ele confessem inequivocamente que a justificação por graça por amor de Cristo por meio da fé é, conforme as Escrituras, o ponto principal do único Evangelho (Gl 1.8s.).

O Sinal da Pregação do Evangelho no Mundo Inteiro

A missão mundial da igreja, na qual a profecia do Antigo Testamento é cumprida (Gn 28.14b; Is 2.2-4; 11.9-10; Am 9.11-12; veja também Atos 15.13-18) e o imperativo dominical é obedecido (Mt 28.16-20), na medida em que o Espírito Santo congrega o Israel de Deus através dos meios da graça, desfruta de uma certa primazia entre os sinais da vinda de nosso Senhor. Por um lado, em companhia do principal sinal escatológico de todos - a encarnação, a missão da Igreja em todo o mundo, se enquadra principalmente na categoria de Evangelho. Falar sobre os indicadores do retorno de Cristo em glória tende a evocar imagens apocalípticas lúgubres de calamidade e aflição, que podem ter o efeito não apenas de convocar os pecadores ao arrependimento, mas também de proporcionar entretenimento macabro para a carne. Portanto, é necessário lembrar que o terno apelo do Espírito Santo à humanidade perdida, emitido através do Evangelho anunciado, é em si um sinal seguro da realização iminente de Deus sobre todas as Suas promessas através da parusia. Além disso, a evangelização mundial é o único dos sinais dados no Sermão das Oliveiras ao qual nosso Senhor tem o prazer de anexar qualquer sugestão temporal sobre a data de seu retorno. Os outros sinais revisados até agora são genéricos, por assim dizer: eles se cumprirão em cada geração até o reaparecimento visível de Jesus, e deles não se pode tirar nenhuma conclusão quanto ao momento da parusia. Falsos messias, guerra, fome e terremotos representam apenas “o princípio das dores” (Mt 24.8), enquanto nosso Senhor acrescenta a simples previsão “e então virá o fim” (Mt 24.14) à Sua profecia de que “este evangelho do reino será pregado em todo o mundo, como testemunho a todas as nações”. Uma vez que a condição especificada por Cristo seja satisfeita, o fim dos tempos encontrará sua consumação na parusia.

Estatísticas podem ser coletadas para demonstrar que a pregação

mundial do Evangelho está muito mais próxima da realização no final do século 20 do que em qualquer conjuntura anterior da história.189 Praticamente nem se precisa fazer a observação de que a essência determinante da igreja é de outro mundo e, portanto, não é capaz de medição precisa pela observação do ser humano; somente o Deus TodoPoderoso sabe o tempo em que esta condição da parusia especificada pelo Salvador será cumprida. Três observações podem ser feitas com proveito sobre a relação entre o cumprimento da missão da igreja e a parusia. Em primeiro lugar, a igreja repousa segura na certeza dada pelo Senhor de que sua missão seguirá em frente e prevalecerá, apesar de todos os obstáculos lançados pelo mundo, a carne e o diabo, e apesar da resposta aparentemente escassa ao Evangelho em tempos de apatia espiritual, como o é no Ocidente (Mt 16.18). Em segundo lugar, a decisão do nosso Senhor de conectar apenas este sinal com o tempo do seu retorno em glória é uma indicação da área na qual Ele deseja que os cristãos gastem suas energias escatológicas. Nem um cheiro de encorajamento dominical, mas sim o inverso, é dado para aqueles que dirigem sua preocupação para especulações infundadas que ligam a felicidade do Estado de Israel restaurado com o tempo da parusia. Em vez disso, todo o castelo de areia dispensacionalista é implicitamente nivelado quando Jesus pede aos cristãos que promovam a pregação mundial do Evangelho por seu envolvimento na missão. Em terceiro lugar, a evangelização mundial não deve ser confundida com a utopia da cristianização mundial. O mesmo santo Evangelho que é puro evangelho para aqueles que estão sendo salvos funciona como Lei acusadora para aqueles que recusam a oferecida misericórdia de Cristo, em favor da justiça própria deles (2 Coríntios 2:1516). Nosso Senhor não oferece uma migalha de conforto aos proponentes do universalismo em Mt 24.14, onde Ele rotula o Evangelho pregado em todo o mundo como “um testemunho a todas as nações.” O que se proclama εἰς μαρτύριον absolverá uns enquanto condena outros. Essa observação reforça a ressalva de que as estatísticas de filiação e

189 Veja Bacchiocchi, Human Hopelessness, 133s Este estudioso adventista afirma aqui que sessenta por cento da população mundial havia sido evangelizada em 1980, e que as tendências atuais indicam que essa proporção terá crescido para oitenta por cento até o final do século.

participação da igreja não são o único fator a ser considerado em relação ao cumprimento do sinal da evangelização de todo o mundo. Os ganhos maciços de membros na cristandade em áreas do Terceiro Mundo são contrabalançados pela igualmente maciça apostasia induzida pela perseguição comunista ou pelo secularismo ocidental. Devemos deixar tempos e épocas para o Deus Todo-Poderoso, enquanto confiamos no Evangelho e promovemos o seu anúncio.

SINAIS FICTÍCIOS DE SUA VINDA

Sonhos diversos dos dispensacionalistas

Aqui igualmente se rejeitam algumas doutrinas judaicas atuantes ainda hoje, segundo as quais, antes da ressurreição dos mortos, um grupo constituído integralmente de santos e piedosos terá um reino mundano e aniquilará todos os ímpios

Confissão de Augsburgo XVII

A observação de Walther a seus alunos de que “uma doutrinação adequada é mais necessária para vocês do que para pastores na Alemanha; pois vocês estão vivendo na terra das seitas”190 se aplica com força especial hoje, quando o protestantismo norte-americano está em grande parte sob o feitiço do erro dispensacionalista, destruidor do Evangelho. A escatologia dispensacionalista, que se originou com o inglês J. N. Darby (1800-82), fundador da Irmandade de Plymouth, e foi popularizada pelo americano C.I. Scofield, especialmente através de sua Reference Bible (Bíblia de Referência) de 1917, permanecerá dentro de nosso campo de visão em muito do restante deste capítulo. O dispensacionalismo não apenas inventa um sinal fictício da vinda de nosso Senhor através de suas fantasias sobre os propósitos de Deus com respeito aos judeus étnicos, mas também gera erros quanto à parusia, a ressurreição geral dos mortos, o juízo final e até o próprio céu. O que as Escrituras apresentam como eventos unitários são transformados pelo dispensacionalismo em múltiplos acontecimentos. Assim, ao único retorno de Cristo em glória são adicionadas Suas supostas vindas para “arrebatar” a igreja da grande tribulação final e, a partir daí, para estabelecer um reino terrestre milenar

190 C. F. W. Walther, The Proper Distinction between Law and Gospel, trad. W. H. T.Dau (St. Louis: Concordia Publishing House, 1928), 178.

em Jerusalém. A ressurreição geral é dividida em uma ressurreição de santos mortos que devem desfrutar de um reino milenar e uma subsequente ressurreição dos ímpios para o julgamento final, após o término do reino milenar. O último julgamento (identificado com o julgamento diante do grande trono branco; Ap 20.11ss.) supostamente será precedido por um julgamento dos incrédulos vivos quando nosso Senhor vier para o milênio (identificado com o julgamento descrito em Mt 25.31-46). Nem mesmo o próprio céu escapa ao rearranjo dispensacionalista dos dados bíblicos, uma vez que suas alegrias são divididas nos prazeres terrenos do milênio e no cumprimento espiritual que se seguirá ao juízo final.

A refutação detalhada do dispensacionalismo exigiria um longo volume adicional a este presente estudo.191 O rótulo “dispensacionalismo” deriva da divisão desta escola da história da salvação em sete épocas distintas, ou dispensações (inocência, consciência, governo humano, promessa, lei, graça e reino).192 A sagacidade do julgamento de Theodore Engelder de que “o quiliasmo é uma massa de confusão”193 se destaca quando consideramos que Scofield negligenciou a navalha de Occam (Nunquam ponenda est pluralitas sine necessitate, isto é, o princípio da economia) ao inventar sete estágios cronológicos na história da salvação na qual as duas dispensações simultâneas da Lei e do Evangelho se encaixariam perfeitamente. A dispensação da consciência de Scofield leva a história da humanidade desde a queda até o tempo de Noé, enquanto sua dispensação do governo

191 Os eixos adventistas de Samuele Bacchiocchi dificilmente são fundamentados em seu trabalho de resumo, Hal Lindsey's Prophetic Puzzle: Five Predictions That Failed! (Berrien Springs, Ml: Biblical Perspectives, 1987), um volume digno de ser colocado nas mãos de leigos perplexos pela propaganda dispensacionalista. Vindo de círculos luteranos, o artigo de duas partes de Theodore Engelder “Notes on Chiliam” (Concordia Theological Monthly 6 [Março, Abril de 1935]: 161-173, 241-254) e seu ensaio de acompanhamento “Dispensationalism Disparaging the Gospel” (Concordia Theological Monthly 8 [Setembro 1937]: 646-666) não perderam nada de sua atualidade ao longo de mais de meio século.

192 Veja o comentário de Scofield sobre Gn 1 28 em The Scofield Reference Bible, ed. C.I. Scofield (Nova York: Oxford University Press, 1917), 5.

193 “Notes on Chiliasm,” 173.

humano se estende de Noé a Abraão. Sua dispensação da lei começa com a legislação sinaítica e continua até a primeira vinda de Cristo. Enquanto isso, o Evangelho está dividido em dois períodos temporais, a saber, a dispensação da promessa que começou com Abraão e terminou com Moisés, e a dispensação da graça que começa com a encarnação e continua por toda a era da igreja.

A justiça de Engelder, ao acrescentar à sua observação de que “o quiliasmo é uma massa de confusão” a condenação “e é algo pior”,194 pode ser discernida quando percebemos que a dispensação do reino de Scofield é nitidamente distinta da dispensação da graça de Cristo. De acordo com Scofield e os dispensacionalistas, o Jesus terreno realmente veio para oferecer “o reino” a Israel. O reino em questão não era, porém, a antecipação no tempo terreno do reino que será realizado em sua plenitude apenas na parusia. Muito pelo contrário, o reino que nosso Senhor supostamente ofereceu a seus compatriotas judeus era um reino político, terreno, supostamente prometido a Davi! De acordo com Scofield e seus seguidores, o Messias e o reino messiânico prometidos a Davi não foram realizados no Jesus crucificado e na Sua igreja. Ao contrário, depois de ter esclarecido a constituição, por assim dizer, do reino de Deus no Sermão do Monte, o Jesus terreno teve que encarar o fato de que o povo judeu de seus dias se recusou a aceitar o reino de Deus nesta forma. Assim, ele reduziu suas perdas, decidiu adiar a inauguração do “reino” para um futuro distante, e resolveu acabar com a lacuna fundando uma igreja composta principalmente de crentes gentios! Albert Schweitzer dificilmente está sozinho em sua fantástica reconstrução do registro do Evangelho. Assim, a justificação pela graça por amor de Cristo por meio da fé é relegada ao status de mero parêntese nas obras salvadoras de Deus!

Em seu artigo de 1937 “Dispensationalism Disparaging the Gospel,” Engelder cita o estudioso presbiteriano O. T. Allis, que se concentra no tratamento de Scofield a Ap 14.6, no ponto em que em sua Reference Bible Scofield distingue entre quatro “formas” do Evangelho, duas das quais

194 Ibid.

devem nos ocupar aqui. A segunda forma do Evangelho é assim descrita:

O Evangelho da graça de Deus. Esta é a boa notícia de que Jesus Cristo, o Rei rejeitado, morreu na cruz pelos pecados do mundo, que Ele ressuscitou dos mortos para nossa justificação, e que por Ele todos os que crêem são justificados de todas as coisas.195

Em outras palavras, o mal-entendido do reino vindouro do qual o nosso Senhor se esforçou para impedir, e que Ele repreendeu na forma do equívoco carnal de Pedro (Mt 16.23), é de fato sua essência! As fantasias de Scofield são apropriadamente condenadas pela CA XVII como “opiniões judaicas,” uma declaração cujo adjetivo qualificativo não deve ser restrito aos filhos étnicos de Abraão, mas deve ser entendido como denotando a carne não regenerada de judeus étnicos e gentios étnicos.

Depois de rebaixar o único santo Evangelho, a fonte do erro ou πρῶτον ψεῦδος no sistema de Scofield deve ser localizado em sua preocupação ardente de separar Israel da igreja. Em sua “Introduction to the Four Gospels,” Scofield dá a seguinte advertência:

É especialmente necessário excluir a noção – um legado no pensamento protestante da teologia pós-apostólica e católica romana – que a Igreja é o verdadeiro Israel, e que a previsão do Antigo Testamento do reino se cumpre na Igreja.196

Da mesma forma, de acordo com um dispensacionalista moderno, C. C. Ryrie, “a Igreja não está cumprindo em nenhum sentido as promessas a Israel ... A era da igreja não é vista no programa de Deus para Israel. É uma intercalação.”197

Notavelmente, todo o Novo Testamento se recusa a conduzir a cunha dispensacionalista entre Israel e a igreja; pelo contrário, define

195 Scofield Reference Bible, 1343.

196 Scofield Reference Bible, 989.

197 The Basis of the Premillennial Faith (Nova York: Loizeaux Bros., 1953), 136.

francamente a igreja como a continuação de Israel. Como se sabe, o primeiro evangelista retrata Jesus como o novo Moisés e a igreja como o novo Israel. Nem estaremos errados em ver no Jesus terreno o único israelita sobre o qual recai toda a vocação da nação de Israel. Em Sua tentação, Jesus, o verdadeiro israelita, foi perfeitamente obediente, já o Israel histórico falhou miseravelmente. Como a própria personificação de Israel, o Jesus terreno veio para reunir o remanescente de Israel em torno de Si (Mt 15.24; 10.6). O chamado dos apóstolos seria incompreensível sem a reconstituição de Israel em torno da pessoa de nosso Senhor. Além disso, quando, conforme previsto pelo Jesus terreno (Mt 21.41, 43), o Evangelho foi divulgado aos gentios étnicos, os convertidos desses grupos não foram considerados como uma comunidade paralela aos crentes da etnia Israel, mas como um acréscimo e extensão deste fiel remanescente israelita. A afirmação de São Paulo de que os cristãos gentios são um rebento enxertado na oliveira que é o Israel histórico (Rm 10.17) só faz sentido se a igreja for de fato a continuação de Israel. A alegria do apóstolo por Cristo ter feito judeus e gentios um novo homem em Si mesmo na igreja (Ef 2.14-16) indica que a igreja representa a culminação e não uma “intercalação” nos propósitos salvíficos de Deus. Quando São Paulo escreve aos cristãos gentios de Éfeso que aqueles que antes eram “separados da comunidade de Israel” (Ef 2.12) agora “não são mais estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2.19), não está claro como alguém pode chegar à conclusão de que

através dos tempos Deus está buscando dois propósitos distintos: um relacionado à terra com pessoas terrenas e objetivos terrenos envolvidos, que é o judaísmo; enquanto o outro está relacionado ao céu com pessoas celestiais e objetivos celestiais, que é o cristianismo.198

Essa suposta bifurcação dos propósitos divinos se perderia em São Pedro, que se esforçou para descrever a igreja do Novo Testamento com imagens originalmente usadas para denotar o povo de Deus do

198 Lewis Sperry Chafer, Dispensationalism (Dallas: Dallas Seminary Press, 1951), 107.

Antigo Testamento (1 Pt 2.9-10), como também seria em São Paulo, cuja identificação de Israel com a igreja não poderia ser mais clara do que em sua declaração “nós é que somos a circuncisão” (Fp 3.3).

Com esta demonstração de que a igreja é Israel, todo o castelo de cartas dispensacionalista cai ao chão. Na raiz do lúgubre deleite dispensacionalista pela fantasia - que adora usar seções figurativas e apocalípticas da Bíblia como alimento para algo semelhante à ficção científica - encontra-se uma perversidade hermenêutica de tirar o fôlego. Os luteranos seguiram o reformador interpretando passagens obscuras das Escrituras à luz de textos claros; os dispensacionalistas fazem exatamente o oposto, obscurecendo textos claros ao interpretá-los à luz de exposições excêntricas e improváveis de passagens obscuras. Assim, a reunião do Israel disperso predita pelos profetas do Antigo Testamento não é vista como cumprida tipicamente no retorno do exílio babilônico nem completamente na reunião da igreja. Pelo contrário, a realização dessas profecias é relegada ao fim da “era da igreja,” um período em que os dispensacionalistas imaginam que já chegou. Em Ez 37.1, Scofield observa como os versículos 12-14 deste capítulo ensinam que os judeus se dispersaram após 70 d.C., com vistas ao estabelecimento da era do reino ao final da era da igreja, retornaram da dispersão para a Palestina e lá foram convertidos e cheios com o Espírito Santo.199 Rm 11.26 também se torna um pino no qual Scofield pendura a afirmação de que “de acordo com os profetas, Israel, reunida de todas as nações, restaurada em sua própria terra e convertida, ainda terá a sua maior exaltação e glória terrenas.”200

A Declaração Balfour de 1917 e a Declaração de Independência do Estado de Israel de 1948, junto com a ocupação de militares israelenses em Jerusalém e da Cisjordânia em 1967, contribuíram muito para alimentar as fantasias dispensacionalistas. Os dispensacionalistas contemporâneos se alegram em entender a captura israelense da antiga cidade de Jerusalém em 1967 como um cumprimento de uma profecia, uma vez que eles tomam a predição de nosso Senhor em Lc 21.24 de

199 Scofield Reference Bible, 881.

200 Ibid., 1206.

Jerusalém ser “pisada pelos gentios, até que os tempos dos gentios se completem” como implicando a libertação da cidade do domínio pagão dentro do tempo terreno. A noção de que este versículo encontrou cumprimento concreto em 1967 é fundamental para a escatologia de Hal Lindsey, que identifica arbitrariamente o surgimento do moderno Estado de Israel com o sinal da irrupção da folha da figueira especificado por nosso Senhor em Mt 24.32 (e paralelos). De acordo com Lindsey, a proximidade da vinda do Senhor indicada por este sinal justifica a suposição de que a rodada final de eventos da escatologia dispensacionalista ocorrerá dentro de uma geração, ou seja, aproximadamente quarenta anos, da Declaração de Independência de Israel.201

O erro dispensacionalista de existirem dois povos distintos de Deus (Judeu e Cristão) e o erro de supor que o moderno Estado de Israel está de alguma forma relacionado com a realização providencial de Deus dos eventos finais da história produziram dois frutos particularmente ruins. Primeiro, muitos na comunidade evangélica estão, com sucesso, proclamando apoio incondicional ao Estado de Israel como um mandamento de Deus. Assim, como relata Grace Halsell em sua reportagem jornalística reveladora,202 pregadores dispensacionalistas tendem a dar apoio fanático a todo e qualquer movimento militar e expansionista dirigido contra os árabes pelas autoridades israelenses, e inculcam naqueles sob sua influência uma convicção de que, aconteça o que acontecer, o Estado de Israel deve ser defendido até a última gota de sangue americano. Em segundo lugar, em seu partidarismo cego do lado israelense, pregadores dispensacionalistas bem conhecidos mostram indiferença insensível não apenas aos árabes em geral, mas até mesmo aos árabes cristãos em particular! 203

Contra o culto dispensacionalista do atual Estado de Israel,

201 The Late Great Planet Earth (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1970), 53s.

202 Prophecy and Politics: Militant Evangelists on the Road to Nuclear War (Westport, CT: Lawrence Hill & Company, 1986).

203 Ibid., 51-67, 117-128.

devemos testemunhar que a trágica disputa entre judeus e árabes pela posse da terra da Palestina é uma questão política dentro da mão esquerda de Deus, onde nenhum dos lados possui o monopólio do direito e onde os cristãos certamente não devem ser encontrados derramando óleo em águas turbulentas em benefício de nenhuma das partes na disputa. Além disso, o cerne da preocupação cristã na emaranhada e, ao que parece, humanamente insolúvel confusão do Oriente Médio não é de forma alguma a vitória de um lado sobre o outro, mas sim a reconciliação de inimigos amargos por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu para fazer um novo homem não apenas a partir de judeu e gentio, mas também de árabe e judeu em Sua igreja. A missão, e não o renascimento equivocado das cruzadas medievais, é onde o desafio da escatologia verdadeiramente cristã fica real.

Os dispensacionalistas não se sentem desencorajados considerando nosso Senhor, em Seu estado de humilhação, ignorar a respeito da data de Sua parusia (Mt 24.36 e paralelos), nem suas especulações são atenuadas pelo ensino claro de Jesus de que Seu reaparecimento visível em glória será súbito e inesperado (Lc 12.40).

Donald Gray Barnhouse evita esses claros pronunciamentos divinos ao insistir que, embora não saibamos a hora exata em que os eventos finais esperados pelos dispensacionalistas ocorrerão, sabemos a “ordem dos eventos” que se estabelecerá uma vez que Deus intervenha para fazê-los acontecer:

Todo o rolo de eventos proféticos ainda está no projetor de Deus, e podemos esperar para ver a imagem imóvel e plana da cena final que inevitavelmente começará a se desenrolar.

A única dificuldade - e esta é, sem dúvida, mais uma vantagem do que uma dificuldade - é que não sabemos a hora em que o programa deve começar. Temos o cenário, no entanto, e quando Deus liberar a alavanca, as várias fases da vinda do Senhor se desenrolarão exatamente como foi escrito. Admitindo que não sabemos o tempo de Sua vinda,

sabemos a ordem dos eventos.204

O projeto escatológico de Barnhouse repousa sobre um malentendido fundamental da natureza e propósito do Apocalipse de São João. Ao supor que uma pausa entre a era da igreja e os alegados últimos tempos deve ser encontrada entre o terceiro e o quarto capítulos de Apocalipse, Barnhouse e seus irmãos dispensacionalistas ignoram a íntima conexão entre as cartas às sete igrejas e o restante deste capítulo final. livro da Sagrada Escritura. Se o “depois disto” de Ap 4.1 se referir ao período subsequente ao término da era da igreja, então os últimos dezenove capítulos de Apocalipse não têm nenhum valor prático imediato para o povo de Deus, a quem, no entanto, misteriosamente foram dirigidos desde os dias do vidente de Patmos até o nosso próprio tempo. Barnhouse e aqueles que pensam como ele parecem alheios ao fato de que “guardar” (Ap 1.3; 22.7) as palavras da profecia de João se cumprem muito mais por meio da atenção às exortações dadas nas cartas às sete igrejas e reiteradas sob uma variedade de imagens em todo o corpo do livro, do que produzindo um cronograma elaborado de eventos escatológicos ainda futuros com base nas visões apocalípticas do vidente.205

Assim como os pequenos apocalipses dos Evangelhos sinóticos visam acima de tudo inculcar a prontidão espiritual para o retorno de Cristo em glória (Mt 24.44; Mc 13.37; Lc 21.36), assim também as admoestações dadas nas cartas às sete igrejas ressoam ao longo das visões subsequentes. Cada uma das cartas às sete igrejas culmina em uma promessa lindamente formulada de bem-aventurança futura feita àqueles que, por confessarem pacientemente a Cristo em palavras e obras, “vencem” o mundo e as forças do mal (Ap 2.7, 11, 17, 26; 3.5, 12, 21). Assim como a senhora Sabedoria e a senhora Loucura direcionam os homens para os caminhos diametralmente opostos que levam à salvação

204 The Invisible War, 267.

205 Cf. Comentário de Leon Morris sobre Ap 1.3: “O livro é de Deus. João passa a chamar não apenas para ouvi-lo, mas para observar as coisas nele escritas. Ele não deseja apenas estimular o interesse dos homens, mas influenciar suas ações. A Escritura é um guia para a conduta, bem como a fonte da doutrina” (The Revelation of St. John [Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1980], 47).

ou perdição (Provérbios 9), assim a revelação proclama o forte contraste entre a vida e o destino daqueles que recebem o selo de Deus (Ap 7.3; 14.l) e aqueles que recebem a marca da besta (Ap 13.16s). Aqueles que com grande custo pessoal deixaram a Babilônia (Rm 18.4) são perseguidos pelo dragão vingativo que faz guerra à semente da mulher “que guarda os mandamentos de Deus e dá testemunho de Jesus” (Ap 12.17). A convocação do vidente à fidelidade na aflição (Ap 13.10; 14.12) é anunciada tendo em vista os fins antitéticos dos réprobos (Ap 14.9-11) e dos salvos (Ap 7.9-17; 15.2-4; 20.4-6). Estes últimos são precisamente idênticos aos que “venceram” (Ap 15.2; 21.7). Não menos importante entre os propósitos de João em edificar a igreja com suas visões apocalípticas é apelar para a fidelidade a Cristo em palavras e ações (Ap 16.15; 21.7s.; 22.11-15). É exatamente essa resistência paciente que é a essência de “guardar” as palavras de sua profecia (Ap 22.7), o que não é realizado forjando interpretações grosseiramente literais da porção mais figurativa da Sagrada Escritura. Elaborar um calendário escatológico fantasioso não faria nada para a edificação dos membros do corpo místico de Cristo.

O primeiro dos eventos que Barnhouse supõe que começará assim que “Deus soltar a alavanca” do seu projetor profético será o chamado arrebatamento da igreja terrena do mundo.206 Somente a infidelidade poderia nos levar a negar o “arrebatamento” que é indubitavelmente ensinado em 1Ts 4.17, mas um pouco de atenção ao contexto deste versículo deve ser suficiente para instruir até mesmo o mais ardente dispensacionalista de que a tomada dos crentes terrenos para o encontro com o Senhor ocorrerá no único retorno de Cristo em glória, e será seguido não por uma extensão da história deste mundo, mas sim por estarmos eternamente com o Senhor, o que é, em si, o próprio céu. A fantasia da igreja terrena ser “arrebatada” para a presença imediata de Cristo enquanto a grande tribulação se alastra aqui embaixo não tem nem um pouco a ver com a recusa carnal dos dispensacionalistas em aceitar o fato de que a existência cristã no mundo é uma vida vivida sob a cruz. Os cristãos são chamados a sofrer no mundo, com o mundo e pelo mundo,

206 The Invisible War, 268.

não a dominar o mundo em algum céu provisório hermético de onde possam contemplar a grande tribulação final comendo pipoca assistindo preguiçosamente a um filme de terror.

Uma vez que a igreja é “arrebatada,” de acordo com Barnhouse, a batalha entre o bem e o mal na terra ganha impulso, e Cristo realizará Sua vitória estabelecendo um reino terreno para o benefício dos judeus étnicos. Pode-se suspeitar que, por um lado, Barnhouse ignora o destino do antigo Israel, e, por outro lado, a realidade da Una Sancta do Novo Testamento quando escreve o seguinte: “A primeira das promessas incondicionais foi: “Farei de ti uma grande nação” (Gênesis 12.2). Esta promessa nunca foi cumprida, e ela deve ser cumprida ou o Senhor será considerado falso.”207

Barnhouse insiste que a profecia do Antigo Testamento será cumprida somente quando Cristo governar o reino terreno de Davi em Jerusalém, e ele é ousado em lançar o seguinte desafio com respeito a Is 2.2-5:

É meu ponderado julgamento que qualquer um que diga que esta profecia foi cumprida não é adequado para ser considerado um intérprete da Bíblia. Houve aqueles que tentaram mostrar que a Igreja é o cumprimento, mas dizer que a Igreja trouxe paz à terra é um absurdo lamentável.208

Agora, de fato consideramos Francis Pieper “apto para ser considerado um intérprete da Bíblia,” e não estamos inclinados a nos afastar de sua refutação da exegese milenarista. Ao curvar-se sob as exigências quiliásticas de que textos como Is 2.2-4 e Mq 4.1-4 sejam aceitos em seu “valor total e real,” Pieper interpreta a Sagrada Escritura a partir do seu centro, a saber, Cristo e o Evangelho:

Mas também não esquecemos que o Gloria in excelsis dos

207 Ibid., 273.

208 Ibid., 274. Barnhouse parece ter negligenciado o fato de que a admissão das nações à presença salvadora de Deus é realizada através da palavra do Senhor saindo de Jerusalém (Is 2.3), que ocorreu através da missão dos apóstolos.

anjos soa sua alegre mensagem, “Paz na terra,” não em algum reino milenar futuro, mas no nascimento de Cristo e na pregação do Evangelho naquele evento, e que Cristo fala não sobre cidadãos de um futuro reino milenar, mas sim de todos os que creem no Evangelho: “Deixo com vocês a paz, a minha paz lhes dou” João 14.27), e: “Falei essas coisas para que em mim vocês tenham paz. No mundo, vocês passam por aflições” (João 16.33). O apóstolo Paulo tem a mesma visão sobre o assunto. Ele chama o Evangelho de “o Evangelho da paz” (Ef 6.15) e atribui a todos os que creem no Evangelho “a paz de Deus, que excede todo o entendimento” (Fp 4.7). Em outras palavras, o que esses textos do Antigo Testamento profetizam de uma paz futura no mundo é realizado em seu “valor pleno e real” não em um milênio ainda futuro, mas no aparecimento do Filho de Deus na carne, na reconciliação do mundo a Deus, na proclamação desta notícia no mundo, e no envio do Espírito Santo, que através desta mensagem opera a fé no coração das pessoas, criando assim filhos de paz em todo o mundo e entre todas as nações. Pela fé no Evangelho, a Igreja Cristã na terra possui um estado de paz inigualável.209

A compreensão de Pieper sobre o presente escatológico da paz é inteiramente congruente com a definição memorável de Isaías (Is 26.3).

Enquanto isso, Hb 12.22 habilmente esvazia as noções dispensacionalistas sobre alguma futura realização política terrena das profecias de Sião do Antigo Testamento, apontando que elas são cumpridas na igreja do Novo Testamento, onde “pela fé no Evangelho, os gentios e 'o remanescente' de Israel vêm a Sião sem sair de casa.”210

A expectativa de Barnhouse de um retorno de Cristo, dentro dos limites da história terrena, para estabelecer um reino terreno para o benefício dos judeus étnicos, oferece uma variante dispensacionalista para a esperança milenar/quiliasta que já era acalentada por pais da igreja do século II como Papias de Hierápolis, Justino Mártir e Irineu de Lyon. A

209 Dogmática Cristã 3:521.

210 Ibid, 522.

esperança quiliasta de um cumprimento definitivo do reino de Deus dentro deste tempo e espaço terrenos também é compartilhada por certos evangélicos, a quem o rótulo de “pré-milenarista” é comumente ligado (por exemplo, George Eldon Ladd).211 Três fatores convincentes nos obrigam a ficar do lado da CA XVII em sua completa rejeição do quiliasmo/milenarismo em todas as suas formas. A noção de um cumprimento definitivo e “bem-sucedido” intramundano do reino procede (como será demonstrado em mais detalhes em conexão com a esperança pós-milenarista) de uma teologia carnal da glória,212 repousa em uma interpretação desajeitada e errônea do todo o impulso e propósito da Revelação a São João, o divino, e está, além disso, visivelmente ausente de sua muito elogiada sedes doctrinae, Ap 20.4-6.

Werner Elert chamou a atenção para uma característica marcante do último livro da Sagrada Escritura, a saber, a firme resistência de suas visões apocalípticas a uma interpretação rápida. Agora, o dogma pode ser construído apenas sobre textos claros da Escrituras, e o predicado de clareza deve obviamente ser negado neste escrito que “contém visões que nenhum exegeta até hoje interpretou de forma tão convincente a ponto de incorporar o significado e a mensagem do livro nas Confissões da igreja.”213 Poucos luteranos ortodoxos contemporâneos estariam inclinados a minimizar a autoridade do Apocalipse Joanino, enfatizando seu status como antilegômena, cuja inspiração divina foi questionada

211 Robert G. Clouse, ed., The Meaning of the Millennium: Four Views (Downers Grove, IL: Inter Varsity Press, 1977), 17-40.

212 Ver Ratzinger, Eschatology, 211-213.

213 Elert, Last Things, 8. A advertência de Elert é reforçada pela observação de que exegetas luteranos respeitáveis discordam amplamente sobre a interpretação de certas imagens usadas pelo vidente de Patmos. Para C. H. Little, o primeiro cavaleiro de Ap 6.1 deve ser identificado com o Evangelho proclamado em sua marcha triunfal através da história (Explanation of the Book of Revelation [St. Louis: Concordia Publishing House, 1950], 65). Para Martin H. Franzmann, em contraste, “este cavaleiro ... não é o Cristo, mas o Anticristo, tanto imitador quanto oponente do Cristo” (The Revelation to John [St. Louis: Concordia Publishing House, 1976], 60). Exegetas do campo dispensacionalista também oferecem identificações diametralmente opostas do primeiro cavaleiro de Ap 6.2. Veja William E. Biederwolf, The Second Coming Bible Commentary (1924; reimpressão, Grand Rapids: Baker Book House, 1985), 571s.

tanto por certos pais da igreja primitiva quanto pelo próprio reformador. A aceitação da plena canonicidade deste escrito, no entanto, envolve o reconhecimento explícito de sua natureza como literatura apocalíptica, cujo objetivo é edificar e encorajar, muito mais do que oferecer um cronograma detalhado dos eventos anteriores ao último dia. Albrecht Oepke observa no TDNT que, embora o termo “parusia” esteja ausente de Apocalipse, o artigo de fé do qual ele oferece um resumo abreviado é, no entanto, fortemente atestado em suas páginas. A frase a seguir é aplicável não apenas a Ap 14.14-10 e 19.11-16, que apresentam o retorno do Senhor em glória, mas também ao livro como um todo e ao seu capítulo 20 em particular: “O fator decisivo é o objetivo profético de imprimir a esperança escatológica sobre a atormentada comunidade através de descrições cada vez mais urgentes.”214

Um exame cuidadoso do capítulo 20 de Apocalipse não pode deixar de concluir que a intenção de São João não é retratar uma idade de ouro de cumprimento escatológico (relativamente) definitivo no final da história, mas sim infundir precisamente uma esperança no peito do aflito povo de Deus em cada geração da cristandade. O conteúdo evangélico desta visão nada mais é do que a recompensa graciosa segura dos “vencedores” que “guardam” a mensagem deste Apocalipse Joanino (Ap 20.4). Qualquer noção de que Ap 20.4-6 fala de uma manifestação externa e terrena “bem-sucedida” do reino de Deus deve necessariamente ser importada violentamente para dentro desses versículos a partir de outros lugares, como por exemplo, de passagens da profecia do Antigo Testamento que tratam da era messiânica.215 A ação observada pelo vidente ocorre no céu, onde os fiéis falecidos reinam com Cristo no estado intermediário. A “primeira ressurreição” (Ap 20.5) não é corporal, pois São João diz ver as “almas” dos mártires e outros fiéis que partiram (Ap 20.4). A Sagrada Escritura usa em outros lugares a imagem da ressurreição

214 Albrecht Oepke, “παρουσία,” em TDNT 5:869.

215 Veja C. H. Little, Disputed Doctrines: A Study in Biblical and Dogmatic Theology (Burlington, IA: The Lutheran Literary Board, 1933), 32. Little aponta aqui como São Tiago no Concílio de Jerusalém interpretou passagens entendidas pelos quiliastas como pertencente a um futuro reinado fictício de mil anos terreno de Cristo da conversão dos gentios (ver Atos 15:13ss.).

para descrever a vivificação espiritual que ocorre na transição da incredulidade para a fé (Ef 2.5ss). A primeira ressurreição ocorre na apropriação crente do dom do santo Batismo.

Apocalipse 20 não está preocupado em descrever um único episódio imediatamente antes do juízo final, mas sim em encorajar o povo de Deus, apresentando uma descrição de toda a era do Novo Testamento desde a encarnação até a parusia. Assim como o capítulo 12 de Apocalipse começa com o nascimento do Senhor encarnado e passa a contar o conflito entre a mulher, que tipifica a igreja, e a serpente, que simboliza o diabo, Apocalipse 20 também começa com uma alusão à vitória decisiva sobre Satanás conquistada pelo Jesus terreno (Mt 12.29 e paralelos). O aprisionamento de Satanás realizado na obra de Cristo torna possível os “mil anos” nos quais o Evangelho faz sua marcha triunfal pela história. A interpretação literal dos “mil anos” que é mencionada seis vezes em Ap 20.2-7 exigiria, da mesma forma, uma compreensão literal de todas as outras instâncias em que há simbolismos numéricos, que são abundantes no livro de Apocalipse. Tal exegese falharia miseravelmente em compreender a natureza do apocalíptico em geral e deste Apocalipse em particular. Mil, como o cubo de dez, indica nada mais e nada menos que plenitude. O propósito específico de São João é assegurar não apenas aos cristãos em geral, mas também àqueles que vivem durante o pequeno tempo (Ap 20.3) no qual Satanás estará solto, a respeito da verdadeira situação no conflito do fim dos tempos entre a igreja e as forças do mal. As aflições da igreja terrena devem ser vistas a partir do pano de fundo da igreja triunfante (Ap 20.4-6) e da derrota certa de Satanás em seu ataque final desesperado à Una Sancta (Ap 20.7-10). Deus, não Satanás, tem a última palavra (Ap 20.11-15). A visão de Apocalipse 20 proclama o resgate certo da igreja da inimizade orquestrada por Satanás e dirigida contra ela com crescente ferocidade ao longo da história; nem uma palavra é dita aqui sobre a libertação definitiva dentro dos limites da história. Uma idade de ouro para a cristandade ser concedida dentro deste tempo e espaço terrenos é um sonho sem garantia bíblica, imaginado por aqueles em plena fuga da teologia da cruz.216

216 Veja Little, Book of Revelation, 200-212 e Franzmann, Revelation to John,

A esperança pós-milenar

Além dos pré-milenaristas, dispensacionalistas e outros, há também aqueles que afirmam que a parusia não ocorrerá até que a igreja na terra tenha experimentado o “milênio” de Apocalipse capítulo 20 na forma de uma vitória externa e discernível da santa cristandade sobre as forças do mal. Esta “esperança pós-milenar” que é estimada em certos círculos reformados é baseada não tanto em Apocalipse 20 em si, mas sim na compreensão de outras profecias do Novo Testamento, em particular as previsões de São Paulo sobre o futuro destino de “Israel” em Romanos capítulo 11. Já no século XVII, Philip Jacob Spener popularizou entre os luteranos a visão de que em Romanos 11.26 o apóstolo ensina uma futura conversão em massa de judeus étnicos. O pai do pietismo luterano baseou sua convicção de que uma restaurada idade de ouro, análoga àquela que ele imaginava ter existido no tempo dos apóstolos e dos pais da igreja, se encontra diante da cristandade terrena, na suposição de que as Escrituras aguardam a conversão de judeus étnicos e a queda do papado romano dentro da estrutura deste tempo e espaço mundanos.217

Dois obstáculos insuperáveis estão no caminho de nossa aceitação da esperança pós-milenarista de um glorioso futuro terrestre, que estaria esperando a igreja deste lado da parusia. Primeiro, Mateus capítulo 24, e seus paralelos nos outros Evangelhos sinóticos, não oferece nem um centímetro quadrado de uma tela vazia na qual a fantasia piedosa poderia pintar um quadro de um período da história da igreja isento da sombra universal da cruz. O silêncio divino aqui deve ser entendido como um direcionamento a esperarmos que o tempo desde o Sermão das Oliveiras até a parusia seja ocupado com aqueles acontecimentos realmente ditos por nosso Senhor, em vez de estar parcialmente preocupado com sonhos de uma idade mítica de ouro.

Em segundo lugar, considerações exegéticas nos impedem de supor que São Paulo de fato ensine uma futura conversão em massa de 132f.

217 P.J. Spener, Pia Desideria, ed. e trans. Theodore G. Tappert (Filadélfia: Fortress Press, 1964), 76f.

judeus étnicos em Rm 11.26. Embora essa interpretação não seja de domínio exclusivo dos cristãos pré e pós-milenaristas,218 e possa até relaxar no prestígio de uma autoridade não menos que o próprio Santo Agostinho,219 ela, no entanto, carece de apoio no texto sagrado. De fato, a visão de que o apóstolo prediz tal conversão em massa do Israel étnico é de longe a mais fraca das três interpretações possíveis de Rm 11.26. Não há nada acidental sobre o fato de que um importante defensor erudito da ideia que Rm 11.26 trata de uma conversão em massa do Israel étnico no fim dos tempos220 é um barthiano que, embora com algum cuidado, não descarta encontrar a esperança universalista em Rm 11.32.221

Três razões podem ser oferecidas para recusar entender o πᾶς

Ἰσραήλ de Rm 11.26 como se estivesse se referindo a uma futura conversão em massa de judeus étnicos. Primeiro, “todo Israel” no sentido de todos os judeus étnicos em um determinado período futuro ainda representaria uma pequena minoria de Israel segundo a carne e, portanto, ficaria muito aquém de “todo Israel” no sentido dos descendentes físicos de Abraão. Em segundo lugar, Paulo prevê um endurecimento contínuo de apenas uma “parte de Israel” (Rm 11.25), cujo lado oposto disso é que oapóstolo espera que muitos judeus étnicos sejam salvos pela fé em Cristo durante todo o curso da dispensação do Novo Testamento. A “plenitude dos gentios” (Rm 11.25) não significa todos os gentios, mas todos os gentios crentes. Em terceiro lugar, o adverbio usado no início de Rm 11.26 não é τότε, mas οὕτως. “Todo o Israel será salvo” não após a “plena quantidade dos gentios entrar,” mas precisamente através da incorporação em Cristo de todos os eleitos entre os judeus étnicos e os gentios étnicos. A interpretação de πᾶς Ἰσραήλ depende se este termo é visto em seu contexto imediato ou mais amplo. No primeiro caso, o

218 Que “o ‘tempo dos gentios’ chegará ao fim, e os judeus serão admitidos na Igreja, como São Paulo nos diz,” é ensinado no catecismo ortodoxo oriental The Living God, trad. Olga Dunlop (Crestwood, NY: St. Vladimir's Seminary Press, 1989), 2:348.

219 City of God, ed. e trans. Henry Bettenson (Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books, 1972), 20.29, 21.24; MPL 41:704, 41:740.6.

220 Por exemplo, C. E. B. Cranfield, Commentary on Romans 2:576s.

221 Ibid, 588.

contraste feito em Rm 11.25 entre “parte de Israel” e o “número completo dos gentios” levaria a uma compreensão da frase como indicando os filhos eleitos de Deus entre a etnia Israel.222 O exame de Rm 11.26 dentro do contexto dos capítulos de Romanos 9-11 como um todo abre a possibilidade de que πᾶς Ἰσραήλ signifique “todo o povo de Deus.”223 Já em Rm 9.6s., São Paulo faz a distinção crucial entre Israel de acordo com sua descendência física e Israel que consiste nos “filhos da promessa.” Tomando isso em conjunto com o uso deste nome no sentido da igreja do Novo Testamento em Gl 6.16, Rm 9.6 nos obriga a considerar a possibilidade de que o πᾶς Ἰσραήλ de Rm 11.26 indica todo o povo de Deus, composto de convertidos a Cristo, desde judeus étnicos até gentios étnicos igualmente.

Mesmo que a frase denote todos os filhos eleitos de Deus dentre os judeus étnicos ou todo o povo de Deus entre judeus e gentios, é bom notar dois fatos de Romanos 9-11. Primeiro, o apóstolo não se desespera pela salvação de todos os seus compatriotas, mas vê muito sentido no prosseguimento da missão da igreja para com os judeus. Duas vezes na carta aos Romanos o apóstolo expressa seu desejo ardente pela salvação de seus parentes étnicos (Rm 9.3; 10.1). Além disso, ele retrata explicitamente a conversão futura de um número significativo de judeus étnicos (Rm 11.12, 15). Os cristãos gentios em Roma são gentilmente lembrados de que são apenas brotos de oliveira selvagem enxertados na oliveira de Israel como o povo de Deus (Rm 11.17). Deus tem o poder de enxertar novamente os ramos naturais de oliveira (Rm 11.23), quebrados (Rm 11.17) através da rejeição de Cristo que ocorreu como resultado de seu endurecimento (Rm 11.7; 11.25). Que uma parte de Israel tenha sido endurecida não tem como seu corolário que a igreja não deve proclamar o Evangelho a todos os descendentes físicos de Abraão. Em segundo lugar, o apóstolo não conhece nenhum meio de salvação para seus parentes étnicos que ignore a pessoa e a obra do Filho de Deus que se tornou e permanece um homem judeu por causa de todos os homens.

222 Pieper, Christian Dogmatics 3:528.

223 Martin H. Franzmann, Romans: A Commentarv (St. Louis: Concordia Publishing House, 1968), 210f. Veja também Little, Disputed Doctrines, 42-45.

OS SINAIS DE SUA VINDA - OBSERVAÇÕES FINAIS

Dois erros devem ser evitados ao considerar a relação do cumprimento dos sinais especificados em Mateus 24 e em outros lugares com a parusia, e uma advertência trazida por nosso Senhor e seus apóstolos deve ser lembrada diligentemente.

Primeiro, devemos ter o cuidado de respeitar a qualidade genuinamente profética do ensino do Novo Testamento sobre os sinais da vinda de nosso Senhor; isto é, devemos estar em guarda contra o enfraquecimento do mistério da inspiração envolvido no péssimo esforço de Paul Althaus para reduzir a profecia a uma “narração” (Weissagung) dirigida ao presente, que deve ser mantida distinta de qualquer “previsão” (Wahrsagung) de acontecimentos futuros.224 A Sagrada Escritura em ambos os Testamentos prediz eventos futuros, incluindo os sinais da vinda do Senhor e a própria parusia.

Em segundo lugar, a ênfase deve ser colocada no fato de que os sinais da vinda de Cristo, em geral, já foram cumpridos. Um escritor neste campo aponta que, em grande medida, muitos dos sinais especificados no Sermão das Oliveiras já foram cumpridos na Sexta-feira Santa, ou seja, dentro de uma semana da declaração de nosso Senhor.225 A expectativa da igreja deve ser dirigida ao glorioso reaparecimento de Cristo (Tt 2.13) e não a especulações bem humanas sobre as reviravoltas do futuro terreno.

Em conclusão, enquanto criaturas, a nossa avaliação do cumprimento dos sinais dos tempos deve sempre estar entre parênteses pelo ensino claro de nosso Senhor e seus apóstolos, de que a parusia ocorrerá repentina e inesperadamente em um momento fora do alcance do cálculo humano (Mt 24.45 e paralelos; Lc 17.24; 1Ts 5.2s; 2Pe 3.10).

224 Die Letzten Dinge, 267. Hans Küng é muito mais grosseiro do que Althaus ao afirmar “o fato [!] de que a escatologia bíblica, assim como a protologia bíblica, não é um prognóstico de eventos finais é um relato de eventos no início.” (Eternal Life? 252).

225 Adrio Koenig, The Eclipse of Christ in Escatology: Toward a Christ-Centered Approach (Grand Rapids: William B. Ferdmans, 1989), 3, 190s.

Só o Deus Todo-Poderoso conhece o momento em que, com a incorporação do último dos eleitos no corpo místico de seu Filho, o “Cristo inteiro” será glorificado em Cabeça e membros. O dever pastoral em face da parusia iminente é, portanto, convocar os pecadores em geral - e não menos a carne pecaminosa que permanece nos cristãos - ao arrependimento, uma vez que a fé não vive na especulação, mas na penitência.226

226 Ap. IV. 152.

A PARUSIA E SEUS CONCOMITANTES

A Parusia

Os “pequenos apocalipses” dos Evangelhos sinóticos falam em uma só voz ao expressar o artigo de fé sobre o futuro retorno visível do nosso Senhor em glória: “Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem. Todos os povos da terra se lamentarão e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória” (Mt 24.30; cf. Mc 13.26 e Lc 21.27). A aplicação do nosso Senhor a Si mesmo da profecia de Dn 7.13, feita em particular no Monte das Oliveiras, foi repetida publicamente em seu interrogatório por Caifás: “Mas eu lhes digo que, desde agora, vocês verão o Filho do Homem sentado à direita do TodoPoderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26.64; cf. Mc 14.62).

Aqueles que negam a facticidade da parusia compartilham, ainda que suavemente, da indignação de Caifás pela pessoa e palavra do Senhor. A confissão do Credo Niceno “e Ele virá novamente em glória” é um dogma certificado pelo Senhore, portanto, um objeto inegociável da fé da igreja.

Dentro da sinfonia do testemunho sinótico, cada evangelista soa com sua própria nota distinta. Mateus e Marcos não fazem distinção clara entre a tribulação final que precederá a parusia e aquela que acompanhou a destruição de Jerusalém em 70 d.C. (Mt 24.21,29; Mc 13.19,24), estabelecendo assim a iminência temporal do reaparecimento visível de Jesus em ousado alívio. O primeiro evangelista emprega um advérbio mais comumente associado a São Marcos ao testemunhar que a parusia ocorrerá “imediatamente” ou “de repente” (εὐθέως) na tribulação final (Mt 24.29). São Lucas, entretanto, distingue mais nitidamente entre a queda de Jerusalém e os “ais” finais, indicando que “os tempos dos gentios” ocupam um período intermediário durante o qual a missão da igreja ocorre (Lc 21.24).

São Mateus é o único evangelista a usar o substantivo “parusia”

como uma descrição do retorno do nosso Senhor em glória (Mt 24.3, 27, 37, 39). A palavra no grego helenístico denotava a visita de estado de um governante a uma comunidade de seus súditos, que poderiam temer o privilégio assim concedido a eles por causa da pesada tributação imposta para pagar as honras costumeiras prestadas a um soberano.227 Em contraste com os governantes terrenos, Jesus em sua parusia será o benfeitor do seu povo, que alegremente receberá sua generosidade; assim como no culto divino da Palavra e Sacramento que agora antecipa a parusia, o nosso Senhor virá servir aos seus. A doxologia dos cristãos não será um tributo forçado, pois a parusia chegará aos membros do corpo místico na forma do Evangelho, não da Lei: “... e ele enviará os seus anjos com grande som de trombeta, e estes reunirão os seus eleitos dos quatro ventos, de uma a outra extremidade dos céus” (Mt 24.31; cf. Mc 13.27).

Com sua aplicação a si mesmo de Dn 7.13, o nosso Senhor usou a linguagem misteriosa do apocalíptico para proclamar seu futuro retorno em glória. O respeito pelo gênero literário apocalíptico nos adverte contra uma interpretação literal inadequada dos símbolos empregados por Jesus e os escritores sagrados para transmitir a verdade dogmática da parusia. Portanto, não há necessidade de dogmatizar o sentido literal da “foice afiada” na mão do Filho do homem (Ap 14.14-16), desde que reconheçamos que na colheita Ele reunirá Seu povo na terra. Tampouco serve a nenhum bom propósito insistir que o Senhor que retorna e os exércitos celestiais montarão em cavalos reais (Ap 19.11, 14): esse simbolismo marcial transmite a verdade da marcha triunfal do Filho de Deus para o desconforto dos Seus inimigos. A imagem da nuvem na qual o Senhor exaltado retornará não pode, no entanto, ser entendida simplesmente como símbolo, mas deve ser entendida tanto no seu sentido direto quanto como testemunho da plena divindade do Homem que reaparecerá na terra para vindicar os seus irmãos e vingar os seus inimigos. No êxodo do Egito (Êx 13.21ss.), nas peregrinações no deserto (Êx 16.10; 34.5; Nm 11.25; 14.14), e na transfiguração (Mt 17.5 e paralelos), o fenômeno terrestre da nuvem era uma expressão externa da presença da divina Majestade. Para usar a terminologia da teologia sacramental de

227 Albrecht Oepke, “παρουσία, πάρειμι,” em TDNT 5:860.

Santo Agostinho, a nuvem era um “sinal de uma coisa sagrada” (signum sacrae rei).228 O desenvolvimento de Pedro Lombardo do vocabulário sacramental agostiniano é igualmente apropriado para a nuvem da volta do Senhor, que é tanto signum et res contenta et significata (sinal e coisa tanto contidos quanto significados).229 A proclamação angélica do paralelo entre ascensão e parusia (At 1.11) nos obriga a confessar que nosso Senhor voltará nas nuvens do céu no último dia; o signum não pode ser dissolvido em uma mera figura. Ao mesmo tempo, o modo do seu reaparecimento não é um detalhe insignificante: uma res essencial espreita sob o signum. A nuvem, um sinal bíblico da teofania, atesta a sessão do outrora desprezado Jesus de Nazaré à direita do Pai. A glória de Deus não é externa ou adjunta à sagrada humanidade de Cristo, mas é comunicada à sua natureza humana como sua própria através da união hipostática. A humanidade de Jesus, que subsiste no reino transcendente da Divindade, reaparecerá visivelmente para exibir e exercer o poder e a glória próprios de Deus e verdadeiramente comunicados a si mesmo.

A descrição de abertura do vidente de Patmos a respeito daquele “semelhante a um filho de homem” (Ap 1.13-16) combina com a imagem do seu retorno com as nuvens (Ap 1.7) para demonstrar que a cristologia da FC VIII não é nenhuma invenção da imaginação de Cirilo de Alexandria no século V, nem de Lutero e Chemnitz no século XVI. O comentarista anglicano John Sweet resume a colheita cristológica cirilina/gnesio-luterana de Ap 1.12-20 em poucas palavras:

Aqui [o Filho do homem danilico] é um homem real que morreu e está vivo (v. 18); mas este homem é descrito em termos pertencentes à glória de Deus na visão de Ezequiel [isto é, Ez 1.26-28], ou até mesmo ao próprio Ancião de Dias (cabelo como lã, Dn 7.9) ...230

O Senhor, agora sentado à direita do Pai, que reaparecerá nas

228 Cidade de Deus, 10.5; MPL 24.282.

229 Sententiarum libri quattuor 4.8.4.; MPL 192.857.

230 Revelation (Londres: SCM Press, 1979), 69. Cf. Franzmann, Revelation to John, 36 (em Ap 1.13): “O Cristo exaltado é retratado em cores de divindade derivadas do Antigo Testamento.” Cf. também Pequeno, Book of Revelation, 14s.

nuvens do céu é aquele cuja majestade divina foi comunicada à humanidade. A cristologia gnésio-luterana é de importância decisiva para uma compreensão ortodoxa da parusia e das obras que nosso Senhor realizará no último dia. O Filho do homem que como o Primeiro e o Último (Ap 1.17) é idêntico ao Senhor Deus Todo-Poderoso como Alfa e Ômega (Ap 1.8) é igualado pura e simplesmente com o Ancião de Dias (Ap 1.14) e é retratado como o justo destinatário da adoração divina (Ap 1.5bs.; 5.8-14). A parusia revela as duas naturezas de Jesus (tanto “o Verbo de Deus” quanto o portador de um manto manchado de sangue, Ap 19.13), e especialmente a comunicação da majestade divina à humanidade santa (Ap 19.12, 15, 16). O livro final da Sagrada Escritura assim prenuncia a Cristologia do Reformador:

Temos que pensar que é a natureza humana (ainda que também seja uma criatura), posto que somente ela e nenhuma outra está colada a Deus de modo que forma uma pessoa com a divindade, também tem que estar acima e além de todas as criaturas, tanto pela natureza humana quanto pela divina. Aqui entramos com a natureza humana num mundo diferente do que quando andava pela Terra, isso é, fora e além de todas as criaturas, somente na divindade.231

231 OS IV: 272 (“Da Ceia de Cristo – Confissão”); AE 37:229; WA 26:340.37-341.6.

A recuperação da cristologia de Cirilo por Lutero tem implicações concretas para a escatologia, como pode ser demonstrado por meio de breves citações da FC SD VIII. Por causa da comunicação da majestade à humanidade sagrada, a obra de Cristo é necessariamente um ato teândrico único do qual a humanidade assumida não pode ser excluída: “Assim, há e permanece em Cristo apenas uma única onipotência, poder, majestade, e glória divina, que é propriedade apenas da natureza divina. Mas ela brilha e se manifesta plenamente, embora sempre espontaneamente, em, com e através da natureza humana assumida e exaltada de Cristo” (VIII.66; Tappert, 604). “Pois dar vida, executar todo julgamento, ter todo o poder no céu e na terra, ter todas as coisas entregues em suas mãos, ter todas as coisas debaixo de seus pés, purificar do pecado, e assim por diante, não são dons criados, mas sim são qualidades divinas e infinitas. No entanto, de acordo com a declaração das Escrituras, essas propriedades foram dadas e comunicadas ao homem Cristo” (VIII.55; Tappert, 601). A colheita escatológica da cristologia luterana é descrita sem ambiguidade em VIII.58: “As Escrituras testificam claramente (João 5.21, 27; 6.39, 40) que o poder de dar vida aos

O fato de o destino da humanidade em geral e de cada homem em particular ser determinado por meio do confronto imediato com o Senhor exaltado indica por que a confissão da parusia é um reconhecimento especialmente intenso de que toda teologia verdadeira é cristocêntrica do início ao fim. As grandes declarações cristológicas do Novo Testamento (principalmente em Colossenses 2.9) excluem a rejeição de certas formulações bem conhecidas do reformador como mera retórica superaquecida: “fora de Cristo não há Deus,”232 “fora de Cristo simplesmente não há Deus ou Divindade de maneira alguma,”233 “além desse homem não existe Deus.”234 O Novo Testamento proíbe qualquer adesão ao teísmo vago e sem foco de Zwínglio. Lutero entendeu que o propósito salvífico de Deus para o mundo é realizado em Cristo, e somente Nele, de modo que seria impensável para aquele por quem o mundo foi feito e redimido ser ignorado em sua consumação:

mortos e executar julgamento foi dado a Cristo porque ele é o Filho do Homem e enquanto tem carne e sangue” (Tappert, 602). A comunicação da majestade divina à suposta humanidade de Cristo é uma verdade muito prática, pois é a base da relação real e duradoura de nosso Senhor tanto com seu corpo místico em geral quanto com cada um de seus membros em particular. No pólo oposto da cristologia cirilina/gnésio-luterana encontramos a seguinte declaração em explicação da afirmação “Jesus está vivo hoje” proveniente da pena de G. W. H. Lampe, em cujo pensamento unitário as galinhas nestorianas voltaram para o poleiro: “É, de fato, difícil imaginar como uma pessoa conhecida apenas pelos registros do primeiro século poderia realmente ser comunicada por nós hoje, mesmo que ela estivesse de alguma forma presente para os nossos sentidos; ou tal pessoa teria permanecido de alguma forma inalterada, neste caso ela seria reconhecida, mas pertenceria a um mundo tão distante do nosso que se tornaria um estranho, ou ela teria mudado com o tempo e não seria mais reconhecível. Aqueles que falam de encontrar e falar com Jesus achariam difícil explicar a diferença entre essa experiência e encontrar, ou ser encontrado por, Deus; e, de fato, acho que o último é o que eles realmente querem dizer; eles estão experimentando Deus que estava em Jesus, Deus que é, portanto, reconhecido por referência à experiência reveladora registrada no Novo Testamento e refletida em toda a tradição cristã subsequente” (God as Spirit [Oxford: Clarendon Press, 1977], 2s.).

232 AE37:56 (That These Words of Christ, “This Is My Body,” Still Stand Firm, 1527 (textos de prova, Col 2 9 e Jn 14 9s.]); WA 23:131.20.

233 AE 37:61 (textos de prova como na nota acima); WA 23:139,28-29

234 OS IV: 264 (“Da Ceia de Cristo – Confissão”); AE 37:218; WA 26:332.19-20.

Assim como digo a respeito da mão direita de Deus: embora ela esteja em toda a parte, como não podemos negar, mas porque também não está em lugar nenhum, como foi dito, você não pode realmente agarrá-la em lugar algum, a menos que para seu benefício ela se ligue a você e lhe convoque para um lugar definido. Esta mão direita de Deus faz isso, entretanto, quando entra na humanidade de Cristo e ali habita. Lá você certamente o encontrará, caso contrário, você correrá para frente e para trás por toda a criação, tateando aqui e ali, mas nunca encontrando, mesmo que esteja realmente lá; pois não está lá para você.235

Exclusivamente através do Senhor encarnado e da Sua obra comunicada nos meios da graça, a humanidade caída foi graciosamente arrebatada nas correntes da vida divina, nas correntes do amor que vão e voltam na eternidade entre as pessoas divinas.236 Não seria o mistério da Santíssima Trindade a exaustiva exposição da afirmação joanina de que “Deus é amor” (1 Jo 4.16)? O amor do Pai constitui o Filho coigual no ato inefável de sua eterna geração; este amor é derramado na humanidade

235 AE 37:68f. (That These Words of Christ, “This Is My Body,” Still Stand Firm, 1527); WA 23:151.17-24.

236 Embora ele não faça explicitamente a distinção crucial entre a essência divina e as relações nela subsistentes, a poderosa prosa de August Vilmar oferece uma majestosa proclamação do dom gratuito de Deus que é o nosso chamado e capacitação para sermos seus filhos e filhas em seu Filho: “o mesmo poder do Deus vivo faz com que as correntes de sua revelação surjam da fonte oculta de sua essência, de seu eterno poder e Deidade, entre as raças de homens, para que eles não apenas extraiam dessas fontes e se banhem nestas correntes continuando a pertencer a outro elemento, mas que se mergulhem sem reservas e vivam com todo o seu ser nestas fontes e correntes da vida divina, assim como o peixe tem toda a sua vida e ser na criatura água. ... Neste processo, não nos resta nada de útil a fazer a não ser mergulhar com todo o nosso ser nestas correntes da vida divina, para apreciá-las, medir sua profundidade e largura tanto quanto nossos poderes permitirem, e para guardar e proteger a nós mesmos e aos outros contra o perigo de sermos arrancados dessas correntes da vida, que são as condições de nossa existência, e, portanto, de sermos expostos a morrer de sede na areia seca” (A. F. C. Vilmar, Die Theologie der Thatsachen wide die Theologie der Rhetorik [Marburg: Elwert'sche Universitätsbuchhandlung, 1856], 12; tradução minha).

sagrada do Filho na matriz da união hipostática; e este amor que já foi prometido e comunicado à cristandade nos meios da graça será derramado em sua plenitude sobre todos os incorporados a Cristo em sua parusia. A doxologia da igreja militante e triunfante surge em grande medida de seu conhecimento de que o Deus Todo-Poderoso agiu sem restrições ao criar e redimir a humanidade. A criação e a redenção procedem da livre resolução da Santíssima Trindade de compartilhar o amor desfrutado pelas pessoas divinas com as criaturas feitas e restauradas à sua imagem. A multidão dos salvos nada acrescenta à alegria de Deus, que já se completa no amor das pessoas divinas umas pelas outras. Em contraste, o amor da Santíssima Trindade concedido na encarnação do Filho Eterno tudo acrescenta e faz toda a diferença para aqueles que são chamados, justificados e glorificados. O insuperável dom de Deus no Cordeiro morto e vindicado causa a doxologia da igreja triunfante (Apocalipse 4 e 5; 6.9-12; 11.16-18; 15.2-4; 19.1-8), da qual se dá uma amostra na Eucaristia da Igreja militante.

Seguir o caminho cristocêntrico, confessando e olhando para a parusia, leva-nos a sempre lembrar que as últimas coisas estão estritamente subordinadas àquele que é o Último e não têm subsistência própria fora dele. A consumação do evangelho na vida celestial dos bemaventurados é a realização perfeita de sua união com o Senhor encarnado, a realização plena de sua incorporação batismal nele; a glorificação dos santos e a reconstrução e renovação da velha criação resultam da efusão da glória do Deus-homem para os seus e para o que lhes pertence.

Um escritor evangélico afirma apropriadamente que “não há nada que a segunda vinda traga que a primeira já não tenha trazido em princípio.” 237 A criação já chegou ao cumprimento perfeito no Senhor encarnado. Tampouco podemos imaginar a parusia como uma presença futura de Cristo que contrastaria com uma suposta ausência real de sua parte na atualidade. A segunda metade da terceira estrofe do hino Ember Day, de J. M. Neale, “Christ is Gone Up,” contém um uivo colossal: “E

237 Bruce Milne, What the Bible Teaches about the End of the World (Wheaton, IL: Tyndale House Publishers, 1979), 25.

ainda a santa Igreja está aqui, embora seu Senhor já tenha se ido.”238 Nosso Senhor está totalmente presente com sua igreja em seus meios de graça, embora de maneira velada. A imperfeição da comunhão inerente ao nosso anseio pela parusia reside em parte no velamento contínuo do que é, em princípio, uma presença dominical plena em nosso meio, e principalmente na barreira erguida contra essa presença por nosso pecado. A exclamação (litúrgica?) do apóstolo “Maranatha! Nosso Senhor, vem!" (1 Cor 16.22) captura a igreja em sua postura entre o ‘já’ e o ‘ainda não.’239

A predileção dos escritores sagrados pela palavra ἀποκάλυψις e seus cognatos como sinônimos da parusia indica que o ‘ainda não’ pressupõe o ‘já’ de tal forma que o retorno de nosso Senhor em glória não consiste em Ele ser catapultado de um estado de ausência para um estado de presença, mas sim no desvelamento e revelação completos do que já está inteiramente presente (Lc 17.30; 1 Cor 1.7; 2 Ts 1.7; 1 Pd 1.7).240

A linguagem de nossa confissão eclesiástica pode ir tão longe quanto a Sagrada Escritura ao descrever a parusia, e, no entanto, reconhecemos com reverência que o evento em si ultrapassará em muito seus anúncios verbais. A parusia será repentina (Mt 24.27, 36, 44, 50; 25.13; Mc 13.32s., 36; Lc 21.34; 1 Ts 5.2s.; 2 Pe 3.10). Será uma aparição de nosso Senhor em seu estado de exaltação, no qual sua glória divina não está mais escondida em sua natureza assumida, mas brilha através de seu semblante humano (Mt 24.30 e paralelos; Mt 25.31; 1 Jo 3.2). Além disso, ela será igualmente visível para todos os que vivem na terra naquele tempo (Mt 24.30; Mc 13.26; Lc 21.27; Ap 1.7). A FC SD VII.99 assume como sua própria a confissão de Lutero de que no último dia Cristo empregará o modo de presença local e circunscrito no qual ele se mostrou durante sua vida terrena. Essa posição é sugerida por Atos 1.11, e qualquer medo de que o glorioso reaparecimento de Jesus no modo de presença local

238 The English Hymnal (Londres: Oxford University Press, 1962), #166.

239 “A trombeta da Palavra já está nos convocando, mas ainda está para ser tocada. Toda eucaristia é parusia, a vinda do Senhor, e ainda mais verdadeiramente a eucaristia é o anseio tenso de que ele revelaria sua glória oculta” (Ratzinger, Eschatology, 203).

240 Veja Albrecht Oepke, “ἀποκάλυπτω, ἀποκάλυψις”, em TDNT 3:563-592, especialmente 583: “Na παρουσία o Cristo exaltado, que ainda está escondido em Deus, será revelado em glória, e os crentes com ele.”

possa impedir que ele seja visto simultaneamente em todas as partes do mundo pode ser eliminado pelo testemunho do reformador de que “o poder de Deus é capaz de fazer um corpo estar simultaneamente em muitos lugares, mesmo de forma corpórea e circunscrita.”241

O desdobramento detalhado sobre as consequências finais da parusia para os salvos e os perdidos está reservado para os capítulos finais, sobre o inferno e o céu. Nossa tarefa atual é mostrar a conexão da parusia com a ressurreição corporal de todos os mortos (Jo 5:28s.; 1 Ts 4.16), o juízo final (Mt 25.31) e o fim do mundo (2 Pe 3.10).

A RESSURREIÇÃO CORPORAL DOS MORTOS

Adolf Hoenecke aponta que o Novo Testamento fala tanto literal quanto figurativamente da ressurreição dos cristãos. Um uso metafórico de “ressurreição” deve ser discernido quando a conversão batismal é retratada sob esta imagem em passagens como Ef 5.14 e Cl 2.12; 3.1. Além disso, metonímia, a figura de linguagem na qual a causa representa o efeito, é manifestamente usada em Jo 11.25, onde Jesus proclama ser a ressurreição.242 Em contraste, “no sentido próprio, a Escritura entende por ressurreição a vivificação do corpo anteriormente separado da alma pela morte.”243 Enquanto São Paulo entende o Sacramento do Batismo como a união do cristão com Cristo em Sua morte e ressurreição, o apóstolo tem o cuidado de limitar a participação atual do crente na ressurreição de seu Senhor à vida santificada do homem justificado (Rm 6.4c; cf. Col 3.1s.). Uma consignação da ressurreição dos cristãos ao passado e, portanto, uma redução da ressurreição a nada mais do que a vida renovada dos batizados merece a severa censura de São Paulo (2 Tm 2.17s).244 A plena participação do cristão na ressurreição de seu Senhor,

241 AE 37:224; WA 26:336.32-34.

242 Hoenecke, Evangelisch-Lutherische Dogmatik 4:240.

243 Ibid.; minha tradução.

244 Uma forma particularmente grosseira do erro de Himeneu e Fileto surge em Embodiment, de James B. Nelson, que reduz “o milagre da ressurreição do corpo” a algo que “ocorre por meio de gestos humanos, palavras humanas, toque e carícia humanos, intimidade humana.” (Embodiment: An Approach to Sexuality and Christian Theology [Minneapolis: Augsburg Publishing House,

certamente prometida no Santo Batismo, permanece o objeto de esperança, um evento futuro a ser realizado apenas na parusia no Último Dia (Rm 6.5, 8; Col. 3.4). Enquanto os milagres corporais do Senhor encarnado prefiguram a ressurreição vindoura (cf. o uso de ἐγείρειν em conexão com a cura da sogra de Pedro, Mc 1.31), essas obras temporárias de misericórdia divina são apenas fracamente comparáveis com o grandioso evento escatológico do qual elas oferecem uma prévia parcial.

A ressurreição dos santos mortos é apresentada como a primeira consequência da parusia em 1 Ts 4.16, versículo cujo contexto se concentra apenas no cumprimento do Evangelho segundo o qual “estaremos sempre com o Senhor” (1 Ts 4.17). O ensinamento de São Paulo aqui de que “os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” (1 Ts 4.16) não pretende contrastar os santos que partiram com aqueles entre os mortos que estão perdidos, mas sim com os crentes que permaneceram na terra naquele momento. Nenhuma tensão surge com a passagem de Tessalonicenses, portanto, da declaração de nosso Senhor registrada por São João de que a ressurreição, que será realizada por meio da voz de Cristo, envolverá “todos os que estão nos túmulos” saindo para a salvação e perdição, respectivamente (Jo 5.28s.). Notamos nesta passagem joanina que a retirada dos mortos de seus túmulos, enquanto obra de Deus (Rm 4.17) e, portanto, de todas as três Pessoas divinas, deve ser atribuída especificamente à palavra do Deus-homem. A cristologia de Cirilo e gnésio-luterana, fundamentada na Bíblia, é uma confissão fiel do Senhor, cuja única obra de ressuscitar corporalmente os mortos será realizada na união de suas duas naturezas e, portanto, não apenas pela natureza divina, 1978], 72). Nelson, que escreve sobre “a ressurreição do corpo em autoaceitação” (84), banaliza o ato escatológico da onipotência divina em conformidade com a ideologia secular predominante no aqui e agora: “Assim, além das alienações dualísticas, experimentamos a graciosa ressurreição do eu corporal. Eu realmente sou uma pessoa. Corpo e mente são um; meu corpo sou eu como minha mente é eu. Além do aprisionamento de papéis sexuais rígidos, estou livre para ser uma pessoa. E em tal ressurreição eu descubro que eu pertenço intimamente aos outros e intimamente ao mundo” (79). A abordagem reducionista de Nelson quanto a ressurreição do corpo é um pouco menos grosseiramente adotada por Harry A. Williams’ True Resurrection (Londres: Mitchell Beazley, 1972).

mas por sua divindade agindo, como a FC VIII explica, “em, com e através” da natureza humana assumida. 245 O ensinamento do Jesus joanino sobre a ressurreição dos mortos é totalmente compatível com a proclamação do Antigo Testamento (Jó 19.25ss.; Is 26.19; Dn 12.2; veja também Ez 37.1-14) e com o testemunho unânime do restante do Novo Testamento. Cristo inequivocamente fica do lado dos fariseus que creem na ressurreição, contra os saduceus que negam a ressurreição (Mt 22.2333 e paralelos), assim como São Paulo (Atos 23.6).

Sendo a ressurreição corporal dos mortos um mistério que a Sagrada Escritura põe em paralelo com a criação do mundo a partir do nada e a justificação dos ímpios (Romanos 4), ela pode ser descrita em seus efeitos, embora permaneça inefável em si mesma. Assim como os mistérios da encarnação e ressurreição de nosso Senhor ocorreram fora da esfera de observação da criatura, no esconderijo do ventre de Maria e no sepulcro do jardim, respectivamente, da mesma forma a ressurreição dos mortos será uma maravilha divina insuperável, cuja execução transcenderá ao alcance da imaginação humana. No entanto, embora a operação do divino Logos na ressurreição no último dia seja tão misteriosa quanto a operação da mesma Palavra nos dias da criação, a igreja deve seguir a Sagrada Escritura confessando claramente que todos os mortos serão ressuscitados corporalmente, e que haverá uma continuidade indefinível, mas real, entre os corpos ressuscitados aos quais as almas dos mortos são reunidas e os corpos nos quais eles viveram e morreram na terra. A dialética da identidade e não identidade do mortal com o corpo ressuscitado é apresentada por São Paulo em seu grandioso capítulo sobre a ressurreição, onde a relação do ressuscitado com o corpo mortal é comparada com a da colheita madura ao grão (não-identidade; 1 Cor 15.37), enquanto ao mesmo tempo perecibilidade e imperecibilidade, desonra e glória, fraqueza e poder são predicados de um e o mesmo sujeito (identidade; 1 Cor 15.42-43; 53-54).

A proclamação da ressurreição corporal dos mortos pode ser rejeitada com zombaria não apenas por ateus declarados, mas também por aqueles que não têm dificuldade em aceitar a imortalidade da alma (Atos 17.32).

245 FC DS VIII.66; LC, 675.

Aqueles que imaginam a vida futura como simplesmente as almas desencarnadas desfrutando a presença de Deus sofrem de certas suposições antropológicas a priori que estão em desacordo com a Sagrada Escritura. Nossos primeiros pais, em sua criação, foram constituídos como uma unidade de alma e corpo, e a disjunção catastrófica desses elementos constituintes do homem não representa progresso ou movimento em direção ascendente, mas sim uma operação horripilante da ira de Deus que o pecado traz em seu rastro. A “carne” assumida pelo Senhor encarnado abrange não apenas uma alma racional, mas também um corpo, e neste corpo que sofreu por nós, nosso Senhor também ressuscitou e foi exaltado por nós. Que a salvação de Deus está totalmente presente no Jesus eternamente encarnado tem como corolário que a alegria da salvação do homem, tanto aqui como no futuro, é algo que o corpo deve compartilhar. A negação da ressurreição do corpo anda logicamente de mãos dadas com o erro cristológico, já que nosso Senhor é “as primícias dos que dormem” (1 Cor 15.20). A dogmática costuma apresentar a ressurreição de Jesus, por um lado, e a dos demais mortos, por outro, sob títulos separados, mas a Sagrada Escritura considera a ressurreição como um evento que ocorre em duas etapas, a segunda das quais ocorre na parusia: “Mas cada um por sua vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele vier [ἐν τῇ παρουσίᾳ αὐτοῦ], os que lhe pertencem” (1 Cor 15:23). 1 Cor 15.22b concebe a ressurreição como um todo, não em partes isoladas, isto é, como um ato de Deus que ressuscitará os membros do corpo místico unindo-os à ressurreição de sua Cabeça. A analogia cristológica também é válida quando São Paulo pondera os efeitos do Santo Batismo (1 Cor 6.11) e formula o princípio “o corpo ... para o Senhor, e o Senhor para o corpo” (1 Cor 6.13). Esta verdade encontra sua expressão na tese de que “o corpo de cada um de vocês é membro de Cristo” (1 Cor 6.15). Para o apóstolo, portanto, o corpo não é de forma alguma a mesquinha prisão da alma nobre, mas sim “santuário do Espírito Santo que está em vocês” (1 Cor 6.19). Visto que estas coisas são assim, não há nada de arbitrário na proclamação de que a glorificação corporal concedida a nosso Senhor deve ser seguida pela glorificação corporal dos cristãos, por sua vez: “E Deus ressuscitou o Senhor e também nos ressuscitará por seu poder” (1 Cor 6.14). Cristãos fracos que balançam a cabeça em perplexidade com a ressurreição corporal dos mortos são

provavelmente prejudicados por uma compreensão defeituosa da criação do homem, da encarnação de Deus e do Sacramento do Altar. Que a igreja abra seus ouvidos para o testemunho do reformador de que a Santa Ceia é consumada na ressurreição corporal dos mortos:

Assim, quando comemos a carne de Cristo física e espiritualmente, o alimento é tão poderoso que nos transforma em si mesmo e, de homens carnais, pecadores e mortais, torna-nos homens espirituais, santos e vivos. Isso nós já somos, embora de maneira oculta na fé e na esperança; o fato ainda não é manifesto, mas o experimentaremos no último dia. 246

O ÚLTIMO JULGAMENTO

A declaração final do Segundo Artigo do Credo Apostólico de que nosso Senhor virá novamente “para julgar os vivos e os mortos” é claramente formulada em todos as camadas do testemunho do Novo Testamento, que atestam a conexão entre a parusia e o julgamento. São João Batista já proclamava o julgamento como parte da obra de Cristo, sob a imagem de sua separação do joio da palha (Mt 3.12; Lc 3.17). A profecia de seu parente foi aceita pelo nosso próprio Senhor em sua parábola do trigo e do joio (Mt 13.30) e sua explicação (Mt 13.41). O que Jesus expôs tão claramente nas palavras iniciais da símile das ovelhas e dos cabritos (Mt 25.31) passou para a proclamação apostólica (Atos 10.42; 17.31; Rm 2.5ss., 16; 1 Cor. 4.5; Tg 5.9; Ap 14.14-20; 19.11-21; 20.11-15). Mesmo assim, esta parte integrante da regra de fé é rotineiramente negada por aqueles teólogos que recusam a autoridade das Escrituras enquanto ao mesmo tempo permanecem dentro da cristandade externa. Assim, Hans Küng observa com desdém: “A imagem de uma grande reunião pública de toda a humanidade – de bilhões e bilhões de pessoas – para o julgamento não é mais do que uma imagem”.247 O erro de Küng não está

246 AE 37:101; WA 23:205.20-25. Veja também AE 37:87, 93, 100, 118, 119, 124s., 129s., 132, 134; WA 23:181.7-15; 191.10-28; 205 9-20; 233.21-35; 235 921; 243.24-245.2; 251.20-25.

247 On Being a Christian, trad. Edward Quinn (Glasgow: Collins, 1974), 393.

no fato de que ele detecta uma qualidade figurativa na linguagem da Escritura quanto ao último julgamento, mas sim em ele considerar a expressão pictórica como uma “mera” metáfora. Se o Filho do homem se sentará ou não em um trono real (Mt 25.31) é irrelevante, mas a verdade a respeito disso e, portanto, o destino de todas as pessoas será revelado em um encontro de toda a humanidade com o próprio Jesus em sua parusia.

Hoenecke é especialmente útil em esclarecer a harmonia que existe entre o julgamento particular que estabelece o destino de cada homem na morte (Hb 9.27) e o julgamento universal do último dia. As almas que partiram não existem em um estado de incerteza quanto ao veredito do Juiz entre a morte temporal e a ressurreição corporal, mas começam a experimentar as alegrias do céu ou os terrores do inferno a partir do momento da separação da alma do corpo. O último julgamento declarará publicamente a verdade sobre cada homem que foi determinada em sua morte:

Devemos distinguir entre o julgamento pessoal, que ocorre para cada homem individualmente in agone mortis, e o julgamento universal no Último Dia. O primeiro é oculto, o segundo é público. Devemos distinguir entre o julgamento em si e a revelação do julgamento. O Juízo Final não é organizado para que os homens possam ser julgados naquele momento pela primeira vez, mas sim (Jo 3.18) o julgamento que ocorreu na morte será revelado no último dia (publice manifestatur, Mt 25.32). Além disso, a justiça do julgamento será divulgada publicamente; por isso o julgamento será público e universal.248

A Sagrada Escritura enfatiza que o agente do julgamento final não é simplesmente a Santíssima Trindade ou mesmo a segunda pessoa como um λόγος ἀσαρκός, mas precisamente o Filho Encarnado (Jo 5.27; veja também Atos 17.31; 10.42; Romanos 2.16; 1 Coríntios 4.5; 2 Cor 5.10). A Escritura coloca seu selo de aprovação em Cirilo contra Nestório e em Lutero contra Zwínglio. Nenhum ἀλλοέωσις zwingliano se esconde em Jo

248 Hoenecke, Evangelisch-Lutherische Dogmatik 4:239; minha tradução.

5.27, onde é impossível transformar o título cristológico “Filho do homem” em uma figura de linguagem destinada a denotar a natureza divina do Senhor. O julgamento é confiado a Jesus porque (ὅτι) ele é o Filho do homem. A comunicação da onisciência à humanidade santa de nosso Senhor significa que o conhecimento infalível do Juiz sobre todas as pessoas e circunstâncias (1 Cor 4.5) é exercido pelo único Cristo de acordo com ambas as Suas naturezas.249

A adequação do Senhor encarnado exercendo o cargo de juiz, no qual o Pai e o Espírito Santo estão intimamente unidos a Ele, discerne-se quando se tem em mente que o critério que determina o destino de cada homem é a aceitação ou rejeição da pessoa e obra de Jesus Cristo. Embora o julgamento seja baseado na resposta de um homem à Palavra de Deus como tal – “Bem-aventurados ... os que ouvem a palavra de Deus e a guardam” (Lc 11.28) – o seu resultado depende inteiramente se essa resposta ocorre de acordo com a Lei ou Evangelho.

Os incorporados a Cristo escapam do julgamento segundo a Lei, pois foram libertos da condenação universal da Lei por meio de sua fé na expiação vicária operada no sangue de Jesus (Jo 5.24; Rm 8.1, 31-34). As más ações confessadas e absolvidas dos crentes não figuram em seu julgamento, pois há muito caíram no abismo do esquecimento divino (Sl 103.12). A salvação não é determinada pelo grau de justiça inerente que o crente alcançou no curso de sua luta para viver uma vida santificada, mas por seu apego à justiça externa de Cristo, apreendida pela fé. Isso não quer dizer que a fé que se apega a Cristo pode existir por um momento sem ser a fonte de todo o tipo de boas obras (Mt 25.35s.; Tg 2.18-26), mesmo que essas boas obras, como no caso do ladrão penitente, consistem em nada mais do que a paciente aceitação da punição merecida. O cristão como cristão não teme o juízo particular que sofrerá na morte e que se tornará público no último dia. Embora o volume de boas obras realizadas no estado de graça determinará o grau de glória conferido a cada membro

249 Visando uma confissão reformada dirigida contra a Fórmula de Concórdia, Hoenecke aponta que, em seu entendimento, “a natureza humana de Cristo funciona, por assim dizer, meramente como o porta-voz [Ausrufer] do julgamento passado pela Divindade” (ibid., 259; minha tradução).

do corpo místico, a pessoa do cristão não corre nenhum perigo no julgamento, pois, por meio da graça, a absolvição pronunciada no mundo pelo Pai na ressurreição de Jesus tornou-se efetivamente dele.250

Aqueles que não são incorporados a Cristo enfrentam o julgamento de acordo com a Lei, cujas obras não justificarão homem algum (Sl 143.2; Rm 3.20). A razão pela qual os não crentes serão tratados de acordo com a Lei é que sua descrença torna o Evangelho inoperante no caso deles. A proclamação que perdoa os crentes acusa aqueles que a rejeitam conscientemente (Jo 12.48). O fato de Cristo trazer à luz a verdade oculta sobre cada homem (1 Cor 4.5) revelará a tragédia de que o incrédulo está sob condenação (Jo 3.18), de modo que “sobre ele permanece a ira de Deus” (Jo 3.36). As palavras claras de nosso Senhor não permitem dúvidas com relação ao destino daquelas pessoas que ouvem o Evangelho nesta vida e rejeitam sua oferta da misericórdia de Deus em Cristo: “Mas aquele que me negar diante das pessoas, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus.” (Mt 10.33; ver também Mc 8.38; Lc 9.26; 2 Tm 2.12).251

250 Veja Tom G. A. Hardt, “Justification and Easter: A Study in Subjective and Objective Justification in Lutheran Theology,” em Marquart, Stephenson e Teigen, A Lively Legacy, 52-78, especialmente 61-67.

251 Não apenas na Reforma e nos tempos modernos, mas também na era patrística, questões foram colocadas sobre o destino dos milhões não evangelizados que viveram antes de Cristo ou em territórios não alcançados pelo Evangelho até muitos séculos depois de sua vinda. Justino Mártir pensou em encontrar o conceito estóico λόγος σπερματικός no prólogo joanino e com sua ajuda apressou-se em reivindicar Platão e Sócrates como “cristãos antes de Cristo” que certamente compartilhariam a vida eterna. Nosso tratamento desta questão será limitado a uma revisão das declarações pertinentes de Lutero, que marcam os limites além dos quais a especulação reverente não pode se desviar. Começamos observando a grave inquietação do reformador com a impetuosa associação de Zuingli com diversos santos bíblicos com “Hércules, Teseu, Sócrates, Aristides, Antígono, Numa, Camilo, os Catos e Cipiões” (AE 38:290 [Brief Confession concerning the Holy Sacrament, 1544]; WA 54:143.23-24) ao listar os habitantes do céu em benefício de Francisco I da França, a quem dedicou sua Exposition of Faith. As objeções do reformador à admissão indiferente de Zuínglio de pagãos não evangelizados à bem-aventurança eterna decorrem de sua convicção da necessidade absoluta e indispensável de Cristo e de seus meios

da graça: “Diga-me, qualquer um de vocês que deseja ser um cristão, que necessidade há de batismo, o sacramento, Cristo, o evangelho, ou os profetas e a Sagrada Escritura, se tais pagãos ímpios, Sócrates, Aristides, sim, o cruel Numa, que foi o primeiro a instigar todo tipo de idolatria em Roma pela revelação do diabo, como São Agostinho escreve na Cidade de Deus, e Cipião, o epicurista, são salvos e santificados junto com os patriarcas, profetas e apóstolos no céu, embora nada soubessem sobre Deus, a Escritura, o evangelho, Cristo, o batismo, o sacramento ou a fé cristã” (AE 38:290s.; WA 54:143.27-144.2). Em outras ocasiões, porém, Lutero podia expressar a seguinte aspiração: “Espero que Deus perdoe os pecados de homens como Cícero” (“Ich hoff, Got wirdt Ciceronem et tales homines auch remissionem peccatorum helffen,” WATr 3:698.14-15 [no. 3904]; texto em inglês tradução minha). Três observações cruciais devem ser feitas neste ponto, a terceira nas palavras do próprio reformador. Primeiro, se algum pagão não evangelizado for salvo, isso será realizado apenas por meio de uma união com Cristo e seu mérito divinamente moldado à parte dos meios da graça. Em segundo lugar, a cautelosa expressão de esperança de Lutero por seu amado Cícero está muito distante da ostentação impetuosa e do comércio irreverente de Zuínglio com as coisas sagradas. Em terceiro lugar, se textos como Rm 2.15, 3.25b e At 17.30 de fato permitirem nutrir esperança para os pagãos não evangelizados, nós, de nossa parte, permanecemos absolutamente ligados ao Evangelho revelado como nossa única fonte de esperança. O reformador abstém-se propositalmente de dogmatizar o que para ele é uma especulação circunspecta, como o fez corajosamente na Constituição Dogmática da Igreja, Lumen Gentium, do Vaticano II. Ver Lumen Gentium #16, encontrado em Austin Flannery, gen. ed., Vatican Council II: The Conciliar and Post Conciliar Documents, rev. ed. (Northport, NY: Costello Publishing Company, 1988), 367s. Numa conversa, Lutero vai o mais longe que se pode ir sem cair de cabeça no erro de substituir o Evangelho pela oferta da salvação pela observância da lei natural: “Cícero, homem sábio e diligente, sofreu e realizou muitas coisas. Eu espero que o nosso Senhor Deus seja misericordioso com ele e com seus semelhantes. Ao mesmo tempo, porém, não é nosso dever afirmar isso como certo ou formular definições ou conclusões sobre este assunto. Devemos, ao contrário, nos ater à Palavra que nos foi revelada: quem crer e for batizado será salvo! Mas também não é da nossa conta saber algo sobre quando ou como Deus pode fazer exceções ao Seu governo e discriminar entre outros pagãos e povos. Pois haverá um novo céu e uma nova terra muito maior e mais amplo do que é agora. Deus pode dar a cada um de acordo com a sua vontade” (WATr 2:457.20-27 [no. 2421b|; tradução minha). Ver também WATr 4:14.6-9 (no. 3925), junto com Hermann Sasse, "Heil ausserhalb der Kirche. In piam memoriam Augustin Kardinal Bea", em In Statu Confessionis 2:322.

O FIM DO MUNDO

Os pequenos apocalipses dos Evangelhos sinóticos indicam que a parusia ocorrerá em conexão com o colapso dos corpos celestes (Mt 24.29 e paralelos). A transitoriedade da ordem atual das coisas e, portanto, o fim temporal definitivo do mundo como o conhecemos são claramente articulados pelos lábios de Jesus, que nos assegura que “o céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mt 24.35 e paralelos). O firme ensinamento dominical de que o mundo como o conhecemos “desaparecerá” (παρέρχομαι) prepara o terreno para a fraseologia sensacional encontrada em 2 Pedro 3.10-12, que nos oferece o relato bíblico mais detalhado e explícito do fim do mundo. Aqui, São Pedro vai além dos pequenos apocalipses dos Evangelhos sinóticos, colocando o desaparecimento da presente ordem mundial no contexto do cumprimento da promessa da criação de novos céus e uma nova terra, dada em Is 65.17 e 66.22: “Nós, porém, segundo a promessa de Deus, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça” (2 Pe 3:13).

Mesmo a exploração mais astuta de leituras variantes do texto é impotente para dissuadir o leitor desta passagem da convicção de que o apóstolo concebe a criação dos novos céus e da nova terra como sendo precedida pela aniquilação do que aconteceu antes. Um elemento sem esperança de defesa especial seria anexado a qualquer alegação de que os στοιχεία, que devem ser “dissolvidos com fogo,” não são necessariamente os elementos materiais dos quais o mundo é constituído, mas sim espíritos sobrehumanos. O paralelismo de στοιχεία com οὐρανοί em 2 Pedro 3.10 e 12 dá a impressão inequívoca de que o escritor sagrado tem em mente as coisas deste mundo e não espíritos residentes nos céus. Além disso, pouco se pode avançar a partir do lembrete de que a tradição dos manuscritos é incerta se “a terra e as obras que nela existem” serão “queimadas” (ῥυήσεται) ou simplesmente “expostas” (εὑρεθήσεται) (2 Pe 3.10), pois as frases ao redor falam com clareza insuperável dos elementos sendo dissolvidos e derretidos pelo fogo. A imagem governante de 2 Pedro 3.1012 é a aniquilação da ordem atual, a severidade da linguagem do apóstolo servindo a um propósito de exortação: “Uma vez que tudo será assim desfeito, vocês devem ser pessoas que vivem de maneira santa e piedosa

... !” (2 Pe 3.11).

Nenhum propósito bom é alcançado jogando 2 Pedro 3.10 contra outras passagens do Novo Testamento, em um esforço de decidir entre as alternativas de aniquilação e transformação como modelos para nossa compreensão da relação entre a antiga criação e a nova. Em vez de escolher entre diferentes ênfases presentes no Novo Testamento, no interesse de uma organização sistemática, a dogmática é mais aconselhada a aceitar 2 Pedro 3.10 e outros textos relevantes em sua plena força, sem fazer qualquer tentativa de suavizar as tensões para tornar o mistério compreensível. Será argumentado aqui que o desaparecimento da antiga ordem e o advento da nova envolverão tanto a aniquilação quanto a transformação da antiga criação. A proporção de continuidade e descontinuidade com o que aconteceu antes é conhecida apenas por Deus.

Rm 8.21 e os versículos ao seu redor certamente dão uma impressão diferente de 2 Pe 3.10-12, e deve-se notar que, enquanto a ênfase de São Pedro está na severidade do julgamento divino, São Paulo enfatiza a certeza de esperança cristã e na consumação do que já está dado. O discurso figurativo do apóstolo sobre o ardente anseio da criação pela “revelação” (ἀποκάλυψιν) dos filhos de Deus (Rm 8.19) pode ser entendido apenas em conexão com a “revelação” do próprio Senhor em sua parusia (ver 1 Cor 1.7). Portanto, a revelação da glória de Cristo e daqueles incorporados a ele no último dia está em associação causal com a libertação da criação da escravidão para obter a liberdade gloriosa dos filhos de Deus (Rm 8.21). Seria impossível ler a aniquilação da presente ordem em Romanos 8.21, que sugere a transformação da antiga criação na nova.

Se este mundo terminará em aniquilação ou transformação não é uma questão abordada em Mt 19.28, onde nosso Senhor fala do novo mundo em termos de “renascimento” ou “regeneração” (παλιγγενεσίᾳ). A imagem de “restauração” (ἀποκατάστασις) empregada por São Pedro em Atos 3.21 talvez possa servir em favor da compreensão do fim do mundo em termos de uma transformação. Tal concepção também é compatível com a escolha de palavras do Novo Testamento em conexão com a

ressurreição corporal dos mortos. Se as verdades relativas ao fim do homem, o microcosmo, valem também para o mundo, o macrocosmo, então Fp 3.21 e 1 Cor 15.52 podem servir em favor da proposição de que há algo a ser dito para entender a nova criação como ocorrendo, pelo menos em parte, através da transformação da antiga. Significativamente, a palavra divina vinda do trono em Ap 21.5 fala não da recriação de todas as coisas ex nihilo, mas de serem feitas novas (ἰδοὺ καινὰ ποιῶ πάντα). O vidente de Patmos parece discernir uma certa continuidade da nova criação com a antiga em sua profecia dos reis da terra trazendo sua glória para a cidade santa (Ap 21.24). Tampouco pode ser excluído o motivo da continuidade com o que aconteceu antes de Apocalipse 14.13 e 19.8, que ensinam como as obras dos santos perduram no mundo vindouro. A confissão e a vida dos santos aqui embaixo já são uma manifestação da καινὴ κτίσις (2 Cor 5.17; Gal 6.15), cuja aparência proléptica será preservada, e não aniquilada, na vinda do Senhor. Tudo o que foi feito em Cristo permanecerá inabalável no julgamento final (Hb 12.27).

A tensão humanamente insolúvel entre os motivos genuinamente bíblicos de aniquilação e transformação é apropriadamente refletida na iconografia da cristandade oriental, que evita retratar os santos como pessoas dentro de nossa atual gama de experiência, e se esforçando para apontar para a misteriosa diferença do corpo ressuscitado.252 A descontinuidade total entre o aqui e agora e entre o onde e quando tornaria impossível para nós ou para a Sagrada Escritura falar de forma significativa da nova criação. Ao mesmo tempo, a continuidade total do mundo vindouro com a ordem atual banalizaria a ressurreição de Cristo e seu povo e iria contra 1 Cor 2.8, que soa como uma nota de mistério insondável. A proporção de continuidade e descontinuidade entre a antiga e a nova criação é um mistério agora oculto com Cristo em Deus. A ressurreição do corpo místico para os novos céus e nova terra será experimentada como uma aniquilação e transformação que são completamente congruentes uma com a outra. A recusa de abstrair 2 Pe 3.10 das outras vozes levantadas no testemunho bíblico, concentrando-se

252 Leonid Ouspensky e Vladimir Lossky, The Meaning of Icons (Crestwood, NY: St. Vladimir's Seminary Press, 1989), 38.

exclusivamente no motivo da aniquilação, está ligada a certas considerações cristológicas. Nós discernimos um alicerce de pura continuidade na glorificação do corpo e alma de nosso Senhor que foram separados em sua morte por nós. O elemento maciço de continuidade na humanidade criada de Cristo quando ele passou do estado de humilhação para o estado de exaltação encoraja a esperança de que haverá pelo menos um elemento modesto de continuidade entre este mundo e o próximo.

Há boas razões para acreditar que a nova criação será algo diferente de pura recriação do nada.

A CONSUMAÇÃO DA LEI

NO IMPENITENTE FINAL:

INFERNO E CONDENAÇÃO ETERNA

Rejeita-se, portanto, os anabatistas por ensinarem que os demônios e as pessoas condenadas não sofrerão dor nem tormentos eternos. A Confissão de Augsburgo XVII

O fato de que aqueles que partem desta vida ainda rejeitando a bondade de Deus em Cristo serão banidos para sempre da presença de seu Criador e sofrerão no corpo e na alma tormentos compatíveis com seus erros aqui na terra é uma tragédia a ser ponderada e proclamada com muito peso de coração. Ao apresentar o dogma do castigo eterno, a igreja deve evitar uma satisfação triunfalista sobre o fim dos perdidos e adotar a atitude diferenciada encontrada em Cristo e em seu apóstolo. As consequências da rejeição de Jerusalém à misericórdia oferecida por Deus levaram nosso Senhor a chorar (Lc 18.41), e São Paulo, por sua vez, só podia falar “com lágrimas” daqueles que se encaminhavam para a condenação (Fp 3.18s.; cf. Rm 9.2). Deus “não tem prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se desvie do seu caminho e viva” (Ez 33.11). Resumindo, Deus “deseja que todos sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Tm 2.4). A boa vontade e o propósito de Deus em criar e redimir a humanidade são horrivelmente frustrados pelo fato melancólico de que alguns homens, por causa de sua impenitência endurecida, serão despachados para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25.41). O horror diante do trágico abismo da condenação final não justifica, no entanto, fechar os olhos para uma profusão de textos cristalinos da Escritura na esperança de demonstrar uma ou outra forma de universalismo. As palavras de nosso Senhor a respeito de Judas Iscariotes em sua oração sacerdotal não deixam nenhuma brecha pela qual até o mais hábil universalista possa passar (Jo 17.12).

Uma característica surpreendente da teologia moderna é sua rejeição

quase universal da doutrina tradicional do inferno, que é tão massivamente apresentada na Sagrada Escritura (por exemplo, Mt 5.29 e paralelos; 8.12; 13.42, 50; 18.9 e paralelos; 24.51; 25.46; Lc 12.46; 13.27s.; Jo 3.36; 5.29; Rm 2.8s.; Gl 6.8; Ef 5.6; Fp 3.18fs.; 2 Ts 1.8s.; Tg 5.1-3; 2 Pe 3.7; Rv 20.14ss.; 21.8; 22.15; ver também Mt 22.13; 25.30)253 e que encontrou surpreendentemente pouca divergência pública dentro da cristandade até a era do Iluminismo.254 Assim, em um volume que, de outra forma, oferece uma refutação muito necessária da danosa obra de John Robinson, Honest to God, o teólogo anglicano Austin Farrer descartou a condenação eterna com elegância casual, mergulhando essa verdade revelada no solvente da razão filosófica. Considerando o inferno no contexto da “necessidade abstrata de justiça retributiva,” e admitindo que a conveniência pode tornar a imposição judicial da pena capital uma triste necessidade, Farrer recusou-se a colocar Deus no papel de carrasco eterno:

O enforcamento pode ser útil para um Estado. Como ele pode servir aos propósitos de Deus? Poderia ele precisar da sanção de uma forca, uma forca na qual os infratores se contorcem para sempre e nunca perdem a consciência de

253 “Nenhum subterfúgio ajuda aqui: a ideia da condenação eterna, que tomou forma cada vez mais clara no judaísmo de um ou dois séculos antes de Cristo, tem um lugar firme no ensinamento de Jesus, bem como nos escritos apostólicos. Dogma se firma quando fala da existência do inferno e da eternidade dos castigos” (Ratzinger, Eschatology, 215). Ratzinger segue esse começo direto de sua seção sobre o inferno, exibindo uma ânsia de se afastar da confissão de que existe um estado como a condenação eterna. Sua referência ao esforço dos místicos católicos modernos de suportar as dores do inferno indiretamente por outras pessoas, além de ser irrelevante, serve como uma cortina de fumaça por trás da qual ele pode evitar dar uma resposta direta à pergunta se o inferno realmente tem habitantes.

254 As especulações universalistas de Orígenes, nas quais ele foi seguido por Gregório de Nissa junto com vários outros pais orientais e o ocidental João Escoto Erígena, foram em parte responsáveis por sua condenação póstuma no Segundo Concílio de Constantinopla em 553 d.C. Ver Denzinger, Sources of Catholic Dogma, 85 (nº 211) e 88 (nº 223). A doutrina da condenação eterna mantém seu lugar no depósito de fé da cristandade oriental. Veja o catecismo ortodoxo oriental The Living God 2:371-377, e Timothy Ware, The Orthodox Church (Londres: Penguin Books, 1987), 265s.

sua condição? Aos olhos de quem tal demonstração é exigida, para evitar que a lei criminal do universo caia no desrespeito? Os abençoados não precisam disso, os condenados não podem ter proveito disso, enquanto nós (que estamos sob liberdade condicional) não podemos testemunhar isso.255

O ponto de partida schleiermacheriano de Farrer é óbvio: a Palavra de Deus deve ser aprovada perante o sujeito humano a quem é proferida, Deus e o homem sendo igualmente obrigados a se colocar humildemente diante do tribunal da filosofia utilitarista. O resultado da crítica de Farrer à condenação eterna é sua especulação de que os não salvos nesta vida serão, na próxima, expurgados de seus pecados (e então admitidos no céu) ou então aniquilados. Enquanto, em companhia de seu contemporâneo Karl Barth, Farrer se absteve de dogmatizar firmemente a esperança universalista,256 ele nos apresentou as duas alternativas para o inferno que são mais comumente aceitas pela teologia moderna, ou seja, ouniversalismo e o aniquilacionismo:

Só pode haver duas razões críveis para entregar as almas à chama; seja para disciplina corretiva ou para extermínio. A ideia de disciplina corretiva pode ser facilmente compreendida. Mas nós temos livre-arbítrio. Talvez nenhum sofrimento remediador, nenhuma persuasão do amor divino reconcilie o rebelde. E aí? Ele não pode ser encontrado em um lugar na bem-aventurança eterna. Mas ele não poderia ser eliminado da existência?257

A elegante rejeição do inferno por parte de Austin Farrer foi anteriormente realizada com grande paixão por Nicholas Berdyaev, um escritor russo que se afastou da corrente dominante da cristandade

255 Saving Belief: A Discussion of Essentials (Londres: Hodder and Stoughton, 1964), 153.

256 “O destino da impenitência final é um mistério no qual reluto em olhar. Se ultrapassar algum, rezo para que sejam poucos” (ibid., 154).

257 Ibid., 153. Pieper já estava bem ciente dessas duas alternativas propostas por Farrer; veja seu Christian Dogmatics 3:545.

oriental ao reviver a corrente oculta do universalismo origenista que sempre permaneceu sob a superfície da ortodoxia. “Orígenes,” diz Berdyaev, “é melhor do que Calvino, há mais verdade moral em Orígenes do que em Santo Agostinho.”258 Berdyaev ponderou sobre o testemunho bíblico da condenação sob duas perspectivas, aceitando a realidade do inferno em um cenário, mas não no outro. Considerado do ponto de vista do sujeito humano, ele não tinha problemas com o inferno, pelo menos até certo ponto:

É fácil negar o inferno se alguém negar a liberdade e a personalidade. Não há inferno se a personalidade não é eterna e se o homem não é livre, mas sim pode ser forçado a fazer o bem e a entrar no paraíso. A ideia de inferno está ontologicamente ligada à liberdade e à personalidade, e não à justiça e à retribuição. Por mais paradoxal que pareça, o inferno é o postulado moral da liberdade espiritual do homem.”259

O inferno existe na esfera subjetiva e faz parte da experiência humana. ... A experiência do inferno significa um completo egocentrismo, uma incapacidade de entrar no ser objetivo, uma auto absorção para a qual a eternidade está fechada e resta nada além de um infinito ruim. 260

Como uma condição eterna de almas perdidas determinada por Deus, porém, o inferno suportou o peso do protesto exaltado de Berdyaev.

A crença no inferno transforma os homens em hedonistas e utilitaristas e destrói o amor desinteressado pela verdade.261

A justificação do inferno com base na justiça, como

258 The Destiny of Man, trad. Natalie Duddington (Londres: Geoffrey Bles, 1937), 273.

259 Ibid, 267.

260 Ibid, 268s.

261 Ibid, 266.

encontramos em São Tomás de Aquino e Dante, é particularmente revoltante e carente de profundidade espiritual.262

A ideia de um inferno objetivado como uma esfera especial da vida eterna é totalmente intolerável, impensável e, de fato, incompatível com a fé em Deus. ... O inferno pertence inteiramente à esfera subjetiva e não à esfera objetiva; existe no sujeito e não no objeto, no homem e não em Deus. Não existe inferno como um reino objetivo do ser; tal concepção é totalmente ímpia e é maniqueísta em vez de cristã.263

A esmagadora rejeição da teologia contemporânea ao ensino das Escrituras sobre o inferno é paralela à sua falha em perceber a vileza do pecado como um culpável ataque contra a misericórdia de Deus. Juntamente com todos os outros mistérios da fé, a essência e a extensão do pecado não podem ser compreendidas pela razão natural. A conhecida observação de Lutero indica a causa da recusa da teologia moderna em admitir as consequências finais do pecado não perdoado: “Esse pecado hereditário é corrupção de tal maneira profunda e perniciosa da natureza humana, que razão nenhuma o compreende. Deve, ao contrário, ser crido com base na revelação da Escritura.”264 Uma vez que a Sagrada Escritura é relegada ao nível de qualquer outra produção literária, que logicamente resulta em nosso Senhor Jesus Cristo sendo despojado de sua divindade eterna e humana perfeição, a teologia não pode se submeter a nenhuma autoridade mais alta do que o intelecto “religioso.” Visto que o homem caído continua incansavelmente o processo, que já começou com nossos primeiros pais, de passar adiante a questão da responsabilidade pela transgressão, não podemos nos surpreender com o fracasso da teologia heterodoxa em estremecer diante da misteriosa realidade da escravidão do homem ao pecado. A verdadeira teologia, que envolve pregar o intelecto na cruz, só pode respirar o ar do arrependimento, que não pode nem mesmo começar sem a submissão da mera opinião humana à autoridade

262 Ibid, 267.

263 Ibid, 268.

264 AE III.i.3; LC, 344.

da Palavra de Deus.

Os círculos heterodoxos não são os únicos, no entanto, a ter dificuldade em compreender a mesquinhez absoluta do pecado como uma degradação demoníaca da nobre criatura de Deus, uma percepção cujo corolário é o reconhecimento da justiça intrínseca do castigo divino da maldade não arrependida. O mundo agindo através de uma cultura secularizada encontra um aliado voluntário na carne até mesmo dos cristãos ortodoxos em sua contínua guerra de propaganda contra o arrependimento ordenado pela Lei. Os pastores estão cientes de que um grande problema na catequese contemporânea é a transmissão eficaz de um sentido vivo sobre a santidade de Deus, que é “fogo consumidor” (Dt 4.24; Hb 12.29). O Deus Todo-Poderoso não derramará um grama de sua santidade, mesmo quando sua face for contemplada pelos santos no céu; Deus não é banalizado na visão beatífica, para a qual a resposta da criatura não é amizade com Deus, mas sim uma efusão eterna de doxologia reverente (Ap 4.9ss.; 7.9ss.; 15.3ss.). Já na ordem do pecado, a doxologia é precedida pela contrição como resposta adequada à santidade de Deus. A vergonha da desfiguração em nós causada pelo pecado floresce na contrição e na fé que deixa Deus ser Deus. Expondo a sua alma e a dos outros à condenação impiedosa da Lei específica; restaurando a confissão privada e a absolvição, que quando usadas corretamente levam a um encontro com Jesus comparável ao que é dado na Santa Comunhão; e o testemunho de uma vida penitente pela qual o cristão é purificado na força da segura esperança colocada para o povo de Deus (1 Jo 3.3) estes, e não uma combinação de inteligência acadêmica com engenhosas técnicas de vendas, são as armas seguras do pastor contra a obstinada recusa de dobrar os joelhos diante da santidade de Deus.

No debate inglês do século XIX sobre a punição eterna, o professor de hebraico de Oxford, Edward Bouverie Pusey, colocou o dedo no cerne da questão: “O que pensam aqueles que não acreditam no castigo eterno sobre para que Deus se tornou homem?”265 A réplica de Anselmo a Boso

265 Citado em D. G. Rowell, Hell and the Victorians (Oxford: Clarendon Press, 1974), 145. Ao oferecer um relato erudito e legível de um capítulo significativo na história da teologia, o próprio Rowell parece aceitar a posição

reverbera através dos séculos: “Você não considerou o quão pesado é o fardo do pecado.”266 Embora a igreja certamente possa e deva proclamar que o homem é salvo para fazer coisas como glorificar a Deus, supervisionar sua criação e servir suas criaturas, o seu resgate dos poderes demoníacos que, separados de Cristo, o mantêm escravizado pela condenação da Lei nunca pode ser subestimado. Qualquer rejeição à realidade da punição eterna é equivalente a uma banalização sacrílega da sétima petição do Pai Nosso. O pior destino que um homem pode ter é a separação eterna do Amor que o criou e redimiu. Da mesma maneira, a forma mais elevada de amor ao próximo assume a forma específica de ser alvo da missão da igreja. O amor deseja o melhor para seu objeto, e as obras corporais de misericórdia são o corolário e não o substituto da concessão da misericórdia eterna que justifica o pecador pela graça por causa de Cristo por meio da fé.

Francis Pieper aponta apropriadamente que a declaração de crer em uma abençoada vida após a morte com base nas Escrituras cristãs é incompatível com a rejeição do ensino das mesmas Escrituras (muitas vezes nos mesmos versículos!) de que existe uma condição de punição consciente eterna. 267 Com que consistência se pode considerar certas palavras de Jesus como declarações infalíveis do Deus encarnado, enquanto descarta outras como produto do condicionamento cultural de um professor meramente humano? Tão abundante é o testemunho bíblico da realidade da condenação eterna que uma pessoa fica surpresa com as tentativas feitas por universalistas do passado e do presente de ler sua doutrina da salvação final de todos os homens para dentro das páginas da Sagrada Escritura. O principal problema apresentado pelos mestres do universalismo dentro da cristandade externa, porém, não está de forma alguma localizado no plano acadêmico, uma vez que seus erros exegéticos são tão grosseiros a ponto de serem pacientes de refutação por qualquer schleiermacheriana de que o peso da opinião teológica contemporânea conta mais do que o ensino claro da Sagrada Escritura.

266 Anselmo, Cur Deus Homo? em A Scholastic Miscellany: Anselm to Ockham, vol. 10 da Biblioteca de Clássicos Cristãos, ed. e trad Eugene Rathbone Fairweather (Nova York: Macmillan Co., 1970), 1,21; MPL 158:430.

267 Christian Dogmatics 3:544.

confirmando inteligente. Em vez disso, o universalismo representa a maior das ameaças à piedade e à missão e, especialmente quando defendido por clérigos, representa uma traição pastoral impiedosa em relação às ovelhas de Cristo.268 O amor não pode ser indiferente aos perigos enfrentados pelos amados, mas deve alertar incessantemente contra eles.

Os universalistas costumam se concentrar em duas passagens de São Paulo, ignorando o testemunho do resto do corpus paulino, sem falar sobre o testemunho unânime do restante da Sagrada Escritura. Seu apelo a Romanos 11.32 é equivocado, pois aqui o apóstolo proclama a graça universal, que não é a mesma coisa que a aceitação universal dessa misericórdia oferecida. A leitura do universalismo nesta primeira passagem envolve uma curiosa cegueira quanto ao contexto em que o versículo se encontra, pois esta seção da carta aos Romanos contém o lamento de São Paulo de que um segmento de seu próprio povo não irá, infelizmente, desfrutar do prêmio que o seu Messias venceu por eles. Além disso, a insistência de que o segundo “todos” em 1 Coríntios 15.22 deve significar todos os homens, sem exceção, ignora a auto exposição oferecida pelo apóstolo no versículo seguinte, onde aqueles que desfrutarão da salvação eterna são especificados como “aqueles que pertencem a Cristo” (1 Cor 15.23). Uma interpretação universalista de 1 Coríntios 15.22 tornaria totalmente sem sentido o fato de São Paulo começar seu grandioso capítulo sobre a ressurreição com seu resumo do Evangelho proclamado como um meio de graça “por meio [do qual] vocês também são salvos, se retiverem a palavra assim como a preguei a vocês” (1 Cor 15.2).

Os universalistas não conseguem muito por meio do apelo a Orígenes, um grande, embora não perfeito, mestre da antiguidade cristã. A posição de Orígenes de uma restauração final de todas as criaturas caídas, incluindo Satanás e os demônios – em sua dogmática especulativa On First Principles269 se baseava muito mais na cosmologia distinta desse professor

268 Ver Craig Stanford, The Death of the Lutheran Reformation (Fort Wayne, IN: Stanford Publishing, 1988), 197ss.

269 Trad. G. W. Butterworth (Nova York: Harper & Row, 1966), 3.5; MPG 11:326-

do que em suas descobertas exegéticas. Os universalistas de hoje dificilmente seguiriam Orígenes em sua suposição de que todas as almas criadas, sejam de homens, anjos ou demônios, compartilham uma natureza comum (οἱ λόγικοι), nem defenderiam sua noção de que essas almas, criadas desde a eternidade, estavam todas envolvidas em uma queda pré-cósmica que levou ao seu encarceramento em corpos angelicais, humanos ou demoníacos correspondentes ao seu grau de culpa. Apesar de sua intenção explícita de permanecer fiel à Sagrada Escritura e à regra de fé da igreja de Alexandria, Orígenes foi subliminarmente afetado por erros da religião oriental que reapareceram em nossos cultos contemporâneos e no movimento da Nova Era. Além disso, o medo de Orígenes de que, uma vez que a “restauração de todas as coisas” seja alcançada, e os λόγικοι salvos possam estar saciados com a visão de Deus e cair novamente, revela tanto a marca de um conceito cíclico em oposição a um conceito linear de tempo quanto uma compreensão inadequada das implicações da infinitude de Deus, que certamente nunca poderá entediar os salvos na visão beatífica! Mesmo quando timidamente abraçado por Karl Barth sob o disfarce de reflexões exegéticas,270 o universalismo permanece nada mais do que o produto da

331.

270 Barth expressou a esperança universalista em seu livro Church Dogmatics, ed. G. W. Bromiley e T. F. Torrance, 14 vols. (Edinburgh: T. & T. Clark, 1956-), 2:2, onde expôs a doutrina da eleição no contexto da doutrina de Deus. No prefácio deste volume, Barth insiste que seu afastamento de Calvino resulta exclusivamente a partir de considerações exegéticas: “Eu teria preferido seguir a doutrina da predestinação de Calvino muito mais de perto, em vez de me afastar dela tão radicalmente... mas eu não poderia nem posso fazer isso. Ao deixar a própria Bíblia falar comigo sobre esses assuntos, ao meditar sobre o que eu parecia ouvir, eu fui levado irresistivelmente à reconstrução” (x). A antiga doutrina reformada da reprovação vive na teologia de Barth como uma meditação sobre a rejeição sofrida de Jesus Cristo por Deus no lugar do homem. Um passeio de extensão extraordinária, mesmo para os padrões de Barth, concentra-se em exemplos bíblicos daqueles rejeitados por Deus, incluindo Judas e os judeus que rejeitaram a Cristo nos tempos do Novo Testamento (458506). Barth é incapaz de aceitar a reprovação como a última palavra a respeito até mesmo do pior dos pecadores, de modo que apresenta o destino final daqueles que perecem na impenitência endurecida como uma questão em aberto: “Qual será o resultado está nas mãos de Deus” (506). A inclinação

carne humana instalando-se em uma postura de superioridade sobre a clara Palavra de Deus.271

Se as Escrituras corretamente interpretadas não oferecem um pingo de apoio ao universalismo, poderia a mesma afirmação ser feita com respeito à noção da aniquilação dos ímpios que está ganhando um número crescente de adeptos nos círculos evangélicos contemporâneos? Embora rejeite veementemente o universalismo e confesse a verdade da “condenação eterna,” o estudioso evangélico Edward Fudge ousa falar sobre “o fato de que as Escrituras ensinam de maneira tão consistente e enfática que a natureza desse castigo eterno é a extinção total para um esquecimento para sempre.”272

A revisão exaustiva de Fudge sobre o testemunho da condenação eterna encontrada na literatura bíblica e intertestamentária e na tradição patrística e posterior da igreja pode ser, pelo menos em parte, motivada por sua aguda consciência do papel útil do aniquilacionismo como um recurso evangelístico que torna o Evangelho uma mercadoria mais comercializável, lançando ao mar um lastro desagradável.273 A polêmica de Fudge contra a concepção tradicional do inferno como um estado de punição consciente eterna é acompanhada por uma denúncia indiscriminada da imortalidade da alma e do estado intermediário como erros de proveniência platônica importados para a fé pelos pais da igreja antiga e erroneamente lidos por eles e seus sucessores para dentro do texto sagrado. Este autor evangélico não hesita em aplicar a noção de “morte total,” isto é, a extinção do corpo e da alma, até mesmo ao nosso

pronunciada de Barth na direção do universalismo é criticada como um afastamento do testemunho claro das Escrituras, mesmo por um intérprete tão simpático como Geoffrey W. Bromiley em An Introduction to the Theology of Karl Barth (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1979), 97. Bromiley alude mais uma vez às inclinações universalistas de Barth no final deste volume, onde comenta: “Barth fala bravamente sobre o princípio das escrituras, mas como a maioria dos teólogos, ele consegue fechar os olhos para as escrituras que ele não se importa muito” (248).

271 Veja Ratzinger, Eschatology, 216.

272 The Fire That Consumes: A Biblical and Historical Study of the Doctrine of Final Punishment (Houston: Providential Press, 1982), xiii.

273 Ibid, xiv.

Senhor entre a tarde da Sexta-feira Santa e a manhã do dia de Páscoa.274 Tendo extirpado a continuidade das almas e o estado intermediário da Escritura que os atesta tão claramente, Fudge não perde tempo em declarar a história de Lázaro e Dimas como irrelevante para qualquer investigação sobre a natureza da punição eterna. Parece que até mesmo esse estudioso com raízes fundamentalistas pode tornar sua a posição do exegeta crítico Adolf Juelicher, de que as parábolas podem transmitir apenas um ponto, de modo que todos os detalhes de apoio podem ser descartados como mero preenchimento!275

A arrogante abordagem de Fudge à Sagrada Escritura nessas duas áreas faz com que uma pessoa receba sua declaração de sola scriptura com certo ceticismo. De acordo com a concepção de Fudge, a “condenação eterna” envolve os perdidos sendo levantados da inexistência no último dia para ouvir seu julgamento e se tornarem objetos de uma punição condigna que resultará em sua aniquilação. O “fogo inextinguível” mencionado por Isaías e por João Batista, bem como por nosso Senhor, é considerado ser um fogo consumidor que simplesmente aniquila tudo o que cruza seu caminho.276 Embora tal interpretação possa fazer justiça à proclamação de João Batista se tomada isoladamente, é difícil ver como Fudge pode ler tal explicação da imagem em sua fonte em Isaías. Além disso, o cenário do uso de Is 66.24 por Jesus em seu próprio ensino sobre a condenação milita contra qualquer equação do inferno com a aniquilação. Gehenna/inferno é, por implicação, imensuravelmente pior do que o destino mais suave de mera aniquilação por afogamento no mar (Mc 9.42)! Se o fogo inextinguível do inferno consome totalmente seus objetos, que verdade é então transmitida através da misteriosa imagem de que “o seu verme não morre” (Mc 9.48)? O argumento de Fudge requer a quebra da simetria dominical na famosa passagem onde o nosso Senhor fala da vida eterna e da punição eterna no mesmo versículo (Mt 25.46).

Segundo nosso autor revisionista, Jesus emprega aqui o adjetivo αἰώνιος em dois sentidos diferentes. Enquanto “vida eterna” pode significar vida de duração infinita, “punição eterna” deve ter o sentido de um castigo

274 Ibid, 228-234.

275 Ibid, 203-208.

276 Ibid, 110-114.

aniquilador finito cujo resultado é para sempre irreversível! A retirada de Fudge do adjetivo αἰώνιος da qualidade de duração sem fim é desprovida de toda plausibilidade no caso de Ap 14.11, onde a afirmação de que a fumaça do tormento dos adoradores da besta sobe εἰς αἰῶνας αἰώνων é explicada nitidamente como não terem repouso nem de dia nem de noite (cf. também Ap 20.10). O vidente de Patmos não concebe o fim dos perdidos como sua aniquilação.

Nosso Senhor costuma retratar a realidade futura do inferno sob as duas imagens do fogo inextinguível do gehenna, por um lado, e do choro e lamento dos perdidos nas trevas exteriores, por outro. Embora a noção de aniquilação possa ser lida em algumas das declarações do gehenna tomadas isoladamente, ela está claramente ausente em Mt 13.42 e 50, que fala dos anjos lançando o mal na “fornalha de fogo” onde “os homens chorarão e rangerão os dentes.” A tristeza consciente por ter perdido para sempre a comunhão com o Deus Todo-Poderoso no cumprimento de seu reino caracteriza a mentalidade daqueles que são lançados na escuridão exterior. Esta imagem tipicamente mateana (Mt 8.12; 22.13; 24.51; Mt 25.30), que também ocorre uma vez em Lucas (Lc 13.28), não pode ser conciliada com a hipótese aniquilacionista. Ao construir toda a sua definição de condenação em uma (às vezes possível) interpretação de “fogo inextinguível,” Fudge e seus colegas evangélicos de mentalidade semelhante falharam em proceder do ponto de partida da compreensão bíblica do inferno, isto é, sendo uma eterna separação consciente do Deus que se revelou e ofereceu seu amor em Cristo. O imperativo dominical aos condenados πορεύεσθε ἀπ ’ἐμοῦ κατηραμένοι, Mt 25.41; ἀπόστητε ἀπ ’ἐμοῦ πάντες ἐργάται ἀδικίας, Lc 13.27) repercute no ensinamento de São Paulo, que vê o “castigo” da “destruição eterna” como consistindo na exclusão dos condenados “da face do Senhor” (2 Ts 1.9). Essa penalidade seria muito minimizada se os perdidos não soubessem disso por serem aniquilados. O principal tormento da alma suportado pelos condenados consistirá em sua consciência de serem excluídos da presença doadora de alegria do Senhor.277 A separação consciente e eterna da Fonte

277 Sobre o sentido de ὄλεθτον αἰώνιον em 2 Ts 1.9, veja Alfred Plummer, A Commentary on St. Paul's Second Epistle to the Thessalonians (Londres: Robert

da vida e do amor será a miséria de uma morte eterna.

Não há base para supor que todos os condenados serão atormentados no mesmo grau; a Escritura, na realidade, indica que a proporção dos sofrimentos do corpo e da alma a serem suportados pelos perdidos corresponderá à gravidade das ofensas cometidas por eles no incrédulo estado de inimizade contra Deus. A rejeição deliberada da misericórdia oferecida por Deus no santo Evangelho é a transgressão que exige o maior castigo. Assim, as cidades que se enquadram nessa categoria se sairão pior do que Sodoma e Gomorra (Mt 10.15) ou Tiro e Sidom (Mt 11.22). Graus de punição para os condenados são ensinados explicitamente em Lucas 12.47s.

Embora deva ser confessada sem remorso em obediência à Palavra divina, a doutrina da condenação eterna também funciona para despertar os cristãos da segurança carnal e nos convocar a devotar nossas energias para matar o velho homem condenado, mas ainda não extirpado, em nosso batismo. O fato de que a incredulidade é a causa da condenação não pode ser usado como um sedativo espiritual, promovendo a impressão de que opecado grave não afetará adversamente a alma enquanto a fé continuar como uma mera opinião que consente com a revelação de Deus em Cristo. O testemunho das Confissões Luteranas de que a fé salvadora não pode coexistir com o pecado mortal278 é corroborado e intensificado pelo conselho expressado drasticamente por nosso Senhor de que mortifiquemos nossa carne para evitar o risco da fé ser extinta por uma vida ímpia (Mc 9.43-48). “A fé de qual falamos surge na penitência.”279 Scott, 1918), 25: “‘Ruína’ eterna é preferível à ‘condenação eterna’ (R.V.), que poderia significar a aniquilação dos incrédulos obstinados e dos deliberadamente desobedientes, uma ideia que não pode ser atribuída a São Paulo. Perda desastrosa parece estar implícita em vez de extinção da existência.”

278 ApCA IV.64, 115, 144; DS III.iii.44; FC DS III.26.

279 ApCA IV.142; LC, 177.

A CONSUMAÇÃO DO EVANGELHO NA VIDA

CELESTIAL DOS BEM-AVENTURADOS

Cosas que ojo no vio, ni oído oyó, Ni han subido en corazón de hombre, Son las que Dios ha preparado para los que le aman.

1 Coríntios 2:9

Pois a glória de Deus é um homem vivo; e a vida do homem é a visão de Deus. Irineu, Adversus haereses

Mas, assim como eles verão Deus face a face, também por meio da habitação do Espírito de Deus, eles farão sua vontade espontaneamente, sem coerção, sem impedimentos, perfeitamente, completamente e com pura alegria, e se regozijarão nisso para sempre.

A Fórmula da Concórdia VI

À medida que descansam na justificação e buscam uma vida santificada de crescente conformidade com Jesus, o povo cristão aqui em baixo pode ser comparado a flores perfumadas na videira que é o próprio Cristo. A obra sacerdotal do nosso Senhor será completamente cumprida e a escatologia será realizada sem deixar vestígios quando esta flor amadurecer em fruto maduro na parusia. A analogia da flor que se transforma em fruto rapidamente se desfaz como uma ajuda para compreender a glorificação dos santos, quando se tem em mente que o cumprimento do Evangelho na vida celestial dos bem-aventurados não é um processo natural, mas sim sobrenatural. Um milagre irredutível e insondável acompanha o santo evangelho em todos os estágios de sua realização. Enquanto a ciência física é capaz de compreender o desenvolvimento de um organismo natural, a relação entre Deus e seu povo é acessível apenas aos espiritualmente iluminados (1 Cor 2.14). A esperança dos cristãos transcende infinitamente aspirações mundanas, como a conquista de uma medida até então inatingível de estabilidade política, prosperidade econômica ou bem-estar corporal. Tampouco a mentalidade consumista de nossa época pode penetrar no núcleo

personalístico do céu, pois o Deus Todo-Poderoso está empenhado em esbanjar não meras coisas, mas principalmente ele mesmo nas criaturas feitas e remodeladas à sua imagem.

1 Co 2.8 conspira com a decisão divina de ocultar o paraíso restaurado dos olhos e ouvidos mortais (2 Co 12.4) para evitar que o tratamento do céu compreenda o capítulo mais longo de um volume sobre escatologia. Toda verdade fundamentada nas Escrituras que proferimos sobre a vida futura será ofuscada pelos esplendores do mundo vindouro. A qualidade absolutamente indescritível da realização celestial do homem em seu Criador está, em última análise, enraizada na transcendência do próprio Deus. Assim como o Deus Todo-Poderoso não pode ser reduzido à imanência observável, também as alegrias do céu não podem ser apresentadas nitidamente em forma de brochura. Ao mesmo tempo, porém, o crente mais simples já vislumbra o céu na sua relação com o seu Senhor e na sua experiência do amor divino e humano na comunhão da Igreja. O ato de auto comunicação divina que está no coração do céu não é apenas um evento futuro, mas já começou a ser experimentado aqui na terra na união mística de amor entre Cristo e seus membros e entre os próprios membros. O céu envolve tanto a continuação quanto a consumação inefável do ser em Cristo, que é um privilégio de todo membro do sacerdócio real. Na medida em que a fé se apodera de Cristo no presente, o Dr. Lutero ensina que o crente já está verdadeiramente no céu:

Mas o que acontece quando eu trago Cristo para o coração? Por acaso acontece, como imaginam os fanáticos, que Cristo desce por uma escada e sobe novamente? Cristo ainda está sentado à direita do Pai, e também no seu coração, o único Cristo que enche o céu e a terra. Eu prego que ele está sentado à direita de Deus e governa todas as criaturas, pecado, morte, vida, mundo, demônios e anjos; se você acredita nisso, você já o tem em seu coração. Portanto, seu coração está no céu, não em uma aparição ou sonho, mas

verdadeiramente. Pois onde ele está, aí está você também.280

O estado final dos bem-aventurados é comumente referido como “céu” por cristãos leigos e dogmáticos, embora esse uso não seja explicitamente ordenado pela Sagrada Escritura. Considerável complexidade, de fato, está ligada ao uso deשָׁמַיִם / οὐρανός(οί) pelos escritores sagrados. “Céu” é o nome dado divinamente ao firmamento espacial contendo céu e estrelas (Gn 1.8; cf. Gn 14.9; 15.5; 1 Rs 8.12; Jó 9.8; Sl 8.3; 19.1; 89.11). Este céu está destinado a passar na consumação da história (Mt 24.35 e paralelos). Ao mesmo tempo, a insinuação da frase inicial do Pai Nosso de que o céu é a morada de Deus é atestada no Antigo Testamento (Dt 26.15; 1 Rs 8.30; 2 Cr 7.14). Deus e a sagrada humanidade glorificada de Cristo, no entanto, transcendem infinitamente a sua morada celestial (1 Rs 8.27; Ef 4.10). Como o locus do trono de Deus (Sl 11.4; Is 66.1), o céu é a esfera do seu governo perfeito, que se aproximou na pessoa e na proclamação do Jesus terreno. A preferência de São Mateus pelo “reino dos céus” em vez do “reino de Deus” pode, portanto, refletir mais do que apenas uma inclinação para perífrase reverente. O discurso de Deus ao homem (Dt 4.36; Hb 12.25) procede do céu. Jesus é o “segundo Homem do céu” (1 Cor. 15.47), de onde ele é esperado em seu retorno glorioso (At 3.21; Fp 3.20; 1 Ts 1.10; 4.16). Mais significativamente, o céu é aberto no batismo de nosso Senhor (Mt 3.16 e paralelos; cf. Jo 1.51). O céu como morada e trono de Deus é o habitat apropriado dos anjos bons (1 Rs 22.19; Mt 18.10; 22.30 e paralelos; 24.36 e paralelos; Lc 1.19; 2.13, 15) , enquanto a presença dos anjos maus nos “lugares celestiais” (ἐν τοῖς ἐπουρανίοις) é mais provável de ser entendida como sua ocupação do firmamento (Ef 3.10; 6.12; mas cf. Lc 10.18 e Rv 12.7).

Uma série de passagens do Novo Testamento deixa claro o significado da linguagem eclesiástica do “céu” como o destino final dos bem-aventurados. Nosso Senhor declara bem-aventurados os perseguidos por causa da grande recompensa que os espera “no céu” (Mt 5.12), e aconselha seus discípulos a acumular tesouros para si mesmos “no

280 AE 36:340 (The Sacrament of the Body and Blood of Christ Against Fanatics, 1526); WA 19:489.24-490.2

céu” (Mt 6.20). A principal causa de alegria dos cristãos não é que lhes seja permitido realizar milagres, mas sim que seus nomes estão escritos “no céu” (Lc 10.20). São Paulo fala do desejo dos cristãos de se vestir da “morada celestial” (2 Cor 5.2), insistindo que nossa cidadania está “no céu” (Fil. 3.20), e lembrando a igreja da esperança depositada para ela “no céu” (Cl 1.5). A herança imortal, imaculada e inalterável dos cristãos é, de acordo com São Pedro, reservada para eles “no céu” (1 Pe 1.4). Embora a Escritura nunca rotule diretamente o estado final do povo de Deus como “céu,” o fato de que o céu é o trono de Deus e a morada onde os seus anjos o adoram e onde a plenitude da salvação é armazenada, torna a palavra uma expressão abreviada apropriada para o prazer pleno dos santos em Deus e em seu reino.281 O uso de “céu” pela igreja deve ser entendido, portanto, como a morada imediata de Deus entre os homens (Ap 21.3). O sagrado termo eclesiástico corresponde ao conteúdo bíblico.

Adolf von Harnack pensou em embaraçar os ortodoxos de sua época, zombando deles com o fato de que, enquanto os cristãos centralizam sua devoção na pessoa de Jesus, o nosso próprio Senhor concentrou sua atenção e proclamação no Pai.282 Em sua pressa de dispensar o trinitarianismo, Harnack ignorou a singularidade do relacionamento de Jesus com o Pai (Mt 11.27 e paralelos), que talvez seja o principal dado da cristologia do Novo Testamento, e fez vista grossa para o convite de Jesus para que viéssemos precisamente a ele para que ele, por sua vez, nos leve ao Pai como só ele pode fazer. Devemos, como membros incorporados ao corpo místico de Cristo, ser purificados do pecado e conformados à semelhança de Jesus, para que nele, por ele e com ele possamos contemplar a face de seu Pai. Não há contradição entre a centralização atual da igreja em Cristo e a orientação futura da igreja,

281 “Como o trono de Deus, o destino da ascensão e o ponto de partida para o retorno de Cristo, οὐρανός é um foco integrador para as bênçãos presentes e futuras da salvação no novo aeon” (Helmut Traub, “οὐρανός,” em TDNT 5:532).

282 “O Evangelho, como Jesus o proclamou, tem a ver apenas com o Pai e não com o Filho” (What is Christianity? trad. Thomas Bailey Saunders, introdução de Rudolf Bultmann [1957; reimpressão, Philadephia: Fortress Press, 1986], 144).

Veja também 145: “A frase ‘Eu sou o Filho de Deus’ não foi inserida no Evangelho pelo próprio Jesus, e colocar essa frase ali lado a lado com as outras é fazer um acréscimo ao Evangelho.”

A definição de céu, portanto, inclui legitimamente grande ênfase em seu fundamento cristológico.283 O Novo Testamento incansavelmente apresenta a futura glorificação dos santos como sendo totalmente conformados ao seu Senhor, que compartilha com eles tudo o que ele é e tem. A conformidade com o Filho é o objetivo da eleição e justificação (Rm 8.29). Os adotados na filiação de Jesus são co-herdeiros com Ele (Rm 8.17). Participar da plenitude do reino de Deus como seus súditos honrados já seria uma bênção além de nossos merecimentos, mas aqueles que ainda nesta vida são elevados além da categoria de servos para serem amigos do Senhor (Jn 15.15) serão na próxima vida verdadeiros cosoberanos com o Jesus exaltado (2 Tm 2.12; Ap 22.5). Os santos glorificados não se encolherão como servos ou vilões diante de um soberano distante, mas comparecerão à corte celestial como aqueles enobrecidos pelo Rei para permanecerem em sua presença. Os vinte e quatro anciãos são, portanto, apropriadamente retratados usando coroas de ouro (Ap 4.4). Preparado para segurar sua noiva na plenitude do abraço conjugal, Jesus concede a ela a glória de Deus retratada sob a imagem de uma pedra preciosa (Ap 21.11, 2). A plena união com Cristo implica tornar-se perfeitamente semelhante a ele: “Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é.” (1 Jo 3. 2). “E, assim como trouxemos a imagem do homem terreno, traremos também a imagem do homem celestial.” (1 Cor 15.49). “[Ele] transformará o nosso corpo humilde para ser como o seu corpo glorioso, pelo poder que o capacita a até sujeitar todas as coisas a si mesmo” (Fp 3.21). Significativamente, algumas das principais imagens através das quais o vidente de Patmos mantém a vida eterna diante de sua audiência são de natureza ou procedência cristológica. Outros estratos dos escritos do Novo Testamento conhecem o próprio Jesus como a água da vida (Ap 21.6; 22.1), o templo da presença de Deus (Ap 21.22) e a luz do mundo (Ap 21.23). A promessa divina dada ao crente foi falada

283 “O céu, portanto, deve antes de tudo ser determinado cristologicamente. Não é um lugar extra-histórico para onde alguém vai. A existência do céu depende do fato de que Jesus Cristo, como Deus, é homem e abre espaço para a existência humana na existência do próprio Deus” (Ratzinger, Eschatology, 234).

184 com ele, para o Pai.

originalmente ao próprio Messias (Ap 21.7).

Porque Jesus é orientado para o Pai, aqueles totalmente unidos a Ele também se centrarão na primeira pessoa da Santíssima Trindade. Joaquim de Fiore interpretou completamente mal a ordem da economia divina quando concebeu o Antigo Testamento como vindo do tempo do Pai, o Novo Testamento como a iniciação e documentação do tempo do Filho, e o tempo do cumprimento da escatologia (quiliástica) como a era do Espírito. Na verdade, a obra do Espírito e do Filho corresponde aos traços característicos de personalidade divina deles. O Espírito Santo que procede do Pai e do Filho deseja conduzir os homens ao Filho e, através do Filho, ao Pai. Da mesma forma, o Filho moldaria nossas almas na pura abertura e adoração ao Pai que constitui o núcleo de sua própria personalidade. O Filho e o Espírito, sendo co-iguais, compartilharão conosco a orientação primordial deles para o Pai, a Fonte da Divindade. Esta tese talvez seja útil para compreender corretamente os versículos difíceis de 1 Coríntios 15.24-28, o último dos quais é especialmente frutífero para a definição de Adolf Hoenecke sobre a vida eterna.284 A entrega do reino por Jesus ao Pai está ligada à cessação de Sua obra sacerdotal.285 Uma vez que o pecado não esteja mais à espreita em qualquer filho de Deus, todo o Cristo se concentrará sem reservas no Pai na Cabeça e nos membros.

Ao falarmos do céu cristologicamente, o próprio Jesus apresenta o mesmo assunto divinamente, por assim dizer. O que é a expressão “vida eterna” se não um título divino ou uma descrição do próprio Deus? O apóstolo João proclama Jesus como “a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada” (1 Jo 1.2) e como “o verdadeiro Deus e a vida

284 “Por vida eterna, a Escritura entende que Deus, o maior Bem, é, sem interrupção ou cessação e da maneira mais completa, tudo em todos para aqueles que no Juízo Final são reconhecidos por Cristo como dele e que aderiram a ele na fé até o fim” (Hoenecke, Evangelisch-Lutherische Dogmatik 4:316; tradução minha).

285 “[A liberdade do pecado na vida futura] também está enraizada na entrega do reino de Jesus ao Pai (1 Cor 15 24-28) e, portanto, no término da posição dele como mediador da maneira em que ele está agora exercendo-o para todos os que estão sendo conduzidos à salvação” (ibid., 320; tradução minha).

eterna” (1 Jo 5.20). A definição de Nosso Senhor de “vida eterna” como conhecimento de “tu, o único Deus verdadeiro, e de Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3) pressupõe uma habitação dos salvos no Pai e no Filho que corresponde e é incorporada na habitação mútua (περιχώρησις) das pessoas divinas. A vida eterna transcende todas as categorias de dom criado. O céu é a plena realização da oração sacerdotal de Jesus em uma condição onde o pecado e seus efeitos estão ausentes: “e como tu, ó Pai, estás em mim e eu em ti, também eles estejam em nós” (Jo 17. 21).

Os capítulos finais do Apocalipse de São João podem ser entendidos como um desdobramento da definição de São Paulo da vida futura em termos de Deus ser “tudo em todos” (1 Cor 15.28). Ap 21.3 é provavelmente a primeira ocasião em que o vidente de Patmos ouve a voz do próprio Pai dentro da visão. A voz divina anuncia a queda de todos os obstáculos entre Deus e suas criaturas. Se detalhes como a eliminação da luz criada (Ap 21.23; 22.5) e do mar (Ap 21.1) devem ser interpretados literalmente ou não, eles certamente transmitem a presença imediata do Pai, pois Deus é “tudo em todos”. Vendo todas as coisas no reflexo da luz não criada, os cidadãos do céu contemplam a face do Pai e do Filho (Ap 22.4). Tal é o fruto da obra sumo sacerdotal de Jesus.

Em sua exposição da visão de Deus, Francis Pieper confessa que “esta contemplação de Deus é a causa da bem-aventurança celestial, uma vez que tal visão transfigurará os crentes tanto na alma quanto no corpo, a glória de Deus sendo refletida neles.”286 Jó 19.26 nos inclina especialmente a concordar com Pieper ao definir a visão beatífica não apenas como uma visão mental, mas também corporal.287 A alusão de Pieper a 1 Cor 13.12288 onde a vida futura é descrita como um conhecimento perfeito de Deus encoraja a seguinte definição: a visão de Deus envolverá o bem-aventurado conhecer a Deus como Deus conhece a Deus. Quanto ao que está envolvido nesse conhecimento, Hoenecke insiste que as ênfases distintas de tomistas e escotistas em suas definições da essência de vida eterna são igualmente justificadas, complementando-

286 Christian Dogmatics 3:550.

287 Ibid., 551.

288 Ibid.

se adequadamente em vez de excluírem-se mutuamente. Os tomistas estavam certos ao enfatizar que a visão de Deus satisfará o intelecto do homem, enquanto os escotistas estavam corretos ao ensinar que a alegria do Bem Supremo satisfará a vontade dele.289 Não há tensão entre Deus como Verdade e Deus como Amor.

Uma das principais razões para nossa incapacidade de formar uma imagem adequada da glória vindoura é nossa grande dificuldade em imaginar uma vida humana sem pecado. A conformidade dos santos purificados com seu Senhor consistirá, antes de tudo, em uma semelhança moral com ele que só é possível através da total extirpação do pecado da natureza humana. Uma pessoa pode se concentrar na libertação celestial dos efeitos do pecado (Ap 21.4) a ponto de ignorar a libertação verdadeiramente maravilhosa de seu próprio poder (Rm 7.24s.), que é parte integrante da habitação de Deus em seu povo (Ap 21.3). Mesmo sendo boas em si mesmas, as coisas desta vida são pervertidas pela carne em ídolos, usurpando o devido lugar de Deus (1 Jo 2.16). Quando a morte do Velho Adão nos libertar da auto-obsessão míope do pecado de nos deixar, na feliz frase de Austin Farrer, “refletido em lugar algum, exceto nas pupilas dos olhos de Deus,”290 a realidade externa não será mais uma barreira entre Deus e homem nem será um objeto que tende a distrair o homem de seu Criador. A criação libertada e renovada (Rm 8.21) não será mais um instrumento de idolatria, mas daqui em diante será apenas a ocasião de doxologia. Quão lindamente apropriada é a definição preferida de Hoenecke da visão de Deus como “consciência [Innewerden] de Deus como Aquele que é tudo em todos”!291

A transfiguração operada nas almas dos bem-aventurados se estenderá também a seus corpos, pois em sua parusia o nosso Senhor “transformará nosso corpo humilde para ser como seu corpo glorioso, pelo poder que o capacita a sujeitar todas as coisas a si mesmo” (Fp 3.21). Em contraste com nosso corpo atual desfigurado pela maldição, o corpo ressuscitado dos santos é descrito como um “corpo espiritual” (1 Cor

289 Hoenecke, Evangelisch-Lutherische Dogmatik 4:325.

290 A Celebration of Faith (Londres: Hodder & Stoughton, 1970), 122.

291 Evangelisch-Lutherische Dogmatik 4:324; minha tradução.

15.44). Esta frase coloca em aposição um substantivo e um adjetivo que a razão caída destinaria a diferentes significados. O uso de linguagem paradoxal pela Sagrada Escritura ao descrever os corpos ressuscitados dos santos é mais um lembrete das restrições impostas a nós por 1 Cor 2.8. Embora “espiritual” certamente não possa ser equiparado a etéreo, isto certamente nos direciona além do alcance de nossa experiência atual. Em todo o caso, o termo indica a glória da morada divina, apontando para o fato de que, embora os corpos ressuscitados dos glorificados sejam de fato compostos de matéria, devemos nos preparar para registrar a perfeição ainda inimaginável do corpo ressurreto em comparação com a corporeidade deste mundo. A matéria também será glorificada. Espiritualidade, imperecibilidade e imortalidade são predicadas por São Paulo sobre os corpos ressurretos: participando da imutabilidade de Deus, eles se livrarão da grosseria que pertence a suas contrapartes terrenas. Hoenecke, apelando para 1 Cor 15.44, segue Lutero ao ensinar que os corpos ressuscitados dos santos compartilharão o uso do “modo definitivo de presença” usado agora por anjos e demônios e pelo próprio Senhor na Santa Ceia.292 Essa expectativa não carece de apoio bíblico. Uma vez que o que é verdade sobre Jesus, a Cabeça, vale também para os membros de seu corpo místico; a condição corporal de seus irmãos e irmãs será em todos os aspectos como a dele (Fp 3.21).

Enquanto todos os santos, ao contemplarem o Senhor Jesus em Sua glória divino-humana, serão totalmente conformados à sua semelhança, haverá uma variedade entre o povo de Deus que exclui a igualdade monótona. Como Melanchthon indica na Apologia, “Haverá distinções na glória dos santos.”293 Os glorificados desfrutarão de uma igualdade de bemaventurança em que cada um dos salvos se alegrará igualmente em Deus, na vontade e nas obras dele, mas essa igualdade não será prejudicada de forma alguma por uma desigualdade de recompensa correspondente às

292 Ibid., 328, 330. “Pois o segundo modo [natureza essencial definitiva], em que o corpo de Cristo existiu na pedra, também será comum a todos os santos no céu; eles passarão com seus corpos por todos os objetos da criação, uma propriedade que é comum até agora a todos os anjos e demônios” (AE 37:222; WA 26:335.13-16).

293 Ap. IV.355; [tradução da edição de] Tappert, 161.

diferentes obras realizadas pelos santos no tempo e estado de graça.

A expectativa confiante de Pieper e Hoenecke de diferentes graus de glória no céu294 repousa sobre um sólido fundamento confessional. Enquanto as Confissões Luteranas excluem rigorosamente o mérito humano da aquisição da justificação, elas explicitamente permitem que os justificados de fato mereçam recompensa pela generosidade de Deus na ordem da santificação.

Concedemos que as obras verdadeiramente são meritórias, mas não do perdão dos pecados nem da justificação. ... são meritórias de outros prêmios corporais que espirituais, que são entregues ora nesta vida ora após esta vida. ... O evangelho exibe gratuitamente a promessa da justificação e da vivificação por causa de Cristo. Na lei, porém, a recompensa não é gratuita, mas é oferecida e devida pelas obras. Portanto, como as obras são certo cumprimento da lei, são corretamente chamadas de meritórias, corretamente se diz que uma recompensa é devida por elas. E essa recompensa gera o grau de prêmios, segundo esta passagem de Paulo: “Cada um receberá a sua recompensa de acordo com o seu trabalho” [1 Coríntios 3.8]. seus graus são a recompensa pelas obras e pelas aflições. 295

Concedemos que as esmolas merecem muitos benefícios da parte de Deus.296

Vamos acrescentar aqui uma palavra sobre recompensa e mérito. Ensinamos que recompensas foram oferecidas e prometidas às obras dos fiéis. Ensinamos que as boas obras são meritórias não para o perdão dos pecados, graça ou justificação (pois obtemos estas coisas somente pela fé), mas para outras recompensas físicas e espirituais nesta vida e na que está por vir, como Paulo diz (1 Cor 3.8), “cada um receberá a sua recompensa de acordo com o seu próprio

294 Pieper, Christian Dogmatics 3:552s.; Hoenecke, Evangelisch-Lutherische Dogmatik 4:335s.

295 ApCA IV.366, 367, 368; LC, 203,204.

296 ApCA IV 278; LC, 196.

trabalho.” Portanto, haverá diferentes recompensas para diferentes trabalhos.297

O testemunho confessional dos graus de glória no céu é fundamentado nos textos especificados por Melanchthon nas citações da Ap. IV acima. De crucial importância no estabelecimento desta doutrina é 1 Cor 15.42, onde a ressurreição dos mortos é explicitamente comparada com o esplendor variável das estrelas. Pieper também aponta para Dn 12.3, onde um grau especial de glória futura é atribuído aos “sábios” e “os que conduzirem muitos à justiça.” Hoenecke, baseando-se em Quenstedt, invoca também Mt 19.28 e 25.21, seguindo a mesma autoridade ao insistir que os graus de glória não se relacionam com a “recompensa essencial,” que é a própria salvação, mas com as chamadas recompensas acessórias.298 Enquanto isso, um autor evangélico contemporâneo tem a intenção de encontrar a noção dos graus de glória em textos como Mt 5.12; 6.1-6, 21; 10.41; Mc 9.41; Lc 6.23; 2 Jo 8; Ap 11.18.299 Hoenecke insiste com razão que não podemos afirmar nem o “o que” nem o “como” as diferentes recompensas serão dadas com base nas obras dos fiéis.300 Os graus de glória estão enraizados, em última análise, na boa vontade de Deus, e são inseparáveis da liberdade dele de distribuir diversos dons a suas criaturas. Assim como um jardineiro pode se encantar com as flores que adornam o seu jardim enquanto aprecia as diferenças entre rosas, lírios e cravos, da mesma forma o Deus Todo-Poderoso tem a liberdade de criar pessoas de diferentes capacidades que alcançarão diferentes níveis de realização na ordem de graça (ver 1 Cor 15.38s.). Todos os santos glorificados serão igualmente realizados quando conformados à semelhança de Cristo, assim como um dedal e um copo podem ser igualmente enchidos com água. Nenhuma criatura pode negar o direito do Criador de distribuir diferentes capacidades aos vasos feitos e restaurados à sua imagem. A utilidade prática da doutrina dos graus de glória é vista em sua oferta de uma exposição do encorajamento apostólico para que aqueles que ouvem o Evangelho da ressurreição saibam “que, no Senhor, o trabalho de vocês

297 ApCA IV.193-194; [tradução da edição de] Tappert, 133.

298 Evangelisch-Lutherische Dogmatik 4:335.

299 Milne, What the Bible Teaches, 120.

300 Evangelisch-Lutherische Dogmatik 4:335.

não é vão.” (1 Cor 15.58). O fato desta doutrina também serve para sublinhar a verdade de que, assim como cada pessoa é chamada a glorificar a Deus de maneira única para si mesma, assim também o dom da vida eterna é concedido de maneira própria a cada um dos salvos, que desfrutarão individualmente de uma comunhão pessoal irrepetível com Deus no contexto de sua experiência corporativa de salvação (cf. Ap 2.17).

Estando para sempre livres do poder do pecado, os santos glorificados se ocuparão sem impedimentos com a realização da vocação que já possuem. Os cristãos aqui embaixo sofrem muitas distrações em seu chamado para glorificar ao Deus Todo-Poderoso. Quando Deus for tudo em todos, ele será o objeto de incessante adoração espontânea (Ap 22.3), em cujo ambiente o sacerdócio real reinará com Cristo sobre um novo céu e uma nova terra (Mt 19.28; Rm 5.17; 2 Tm 2.12; Ap 3.21; 5.10; 22.5). O modo deste reinado já foi experimentado no reino de Cristo, que governa no amor. O amor, que permanece quando as línguas e a profecia não existem mais e que desfruta da primazia sobre a fé e a esperança (1 Cor 13.8, 13), abrange o amor divino pelo homem, o amor das criaturas por Deus e o amor dos homens e anjos uns pelos outros. A Sagrada Escritura fala do céu como um banquete (Is 25.6; Mt 8.11), apontando assim para a comunhão perfeita que marcará o relacionamento dos bemaventurados uns com os outros. O céu, diz Hoenecke, 301 inclui a consumação do amor ao próximo, e Joseph Ratzinger fala prazerosamente da “sociedade aberta da comunhão dos santos.”302

A discussão dogmática da escatologia termina apropriadamente encorajando e louvando os trabalhos dos pastores da igreja que são chamados para revigorar o povo peregrino de Deus frequentemente cansado, proclamando a esperança segura do eterno descanso sabático prometido por nosso gracioso Deus doador, que concede nada menos do que Ele próprio. O testemunho de Santo Agostinho há quinze séculos e meio vem da caneta de um teólogo que nem por um momento se afastou das rigorosas exigências da vida pastoral. As quatro atividades da inumerável companhia dos salvos, destacadas nas célebres palavras finais

301 Ibid., 332; ver também 331.

302 Eschatology, 235.

de A Cidade de Deus, recapitulam temas centrais da escatologia bíblica. “Quietude” descreve o repouso perfeito em Deus daqueles que no tempo terreno foram justificados pela graça, por amor de Cristo, por meio da fé. “Visão” denota a realização do intelecto humano em contemplar a Verdade que é o próprio Deus. O “amor” que brota de Deus para saturar oseu povo e fluir de volta para ele satisfaz o coração e a vontade de homens e mulheres feitos para a comunhão pessoal com seu Criador e uns com os outros. “Louvor” é tanto a resposta da criatura à misericórdia divina que alegremente dá a Deus o que lhe é devido, como também a voz de Cristo em nós chamando o Pai. Diante da militante igreja de Cristo na terra está a esperança segura do fim inacabável de desfrutar o Deus Todo-Poderoso para sempre. O antigo testemunho do bispo de Hipona, do século V, permanece intacto até hoje, pois o mistério de Deus em Cristo é e continuará sendo uma fonte sempre fresca de vida:

Lá nós teremos paz e veremos; veremos e amaremos; amaremos e louvaremos. Eis o que haverá no fim, que não tem fim! Pois qual é o nosso fim, senão alcançar àquele reino que não tem fim? 303

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