A Dogmática Luterana Confessional: A Trindade Santa (Portuguese) The Holy Trinity

DOGMÁTICA LUTERANA CONFESSIONAL - TOMO III

A TRINDADE SANTA Carl L. Beckwith Tradução por Clóvis Jair Prunzel

Publicado por Projeto VDMA Missões para a América Latina e o Caribe da LCMS

Versão em português: A Trindade Santa 2025 © Luther Academy 6600 N Clinton St, Fort Wayne, IN 46825 USA Versão em espanhol: La Santa Trinidad 2023 © Luther Academy Versão em inglês: The Holy Trinity 2022 © Luther Academy Todos os direitos reservados. Exceto quando citado para revisão ou análise, nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada em um sistema de recuperação ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outro, sem a permissão prévia da Luther Academy.

As citações do Livro de Concórdia, traduzidas e editadas por Theodore G. Tappert, são usadas com a permissão da Augsburg Fortress Press. As citações de Luther's Works: The American Edition são usadas com a permissão da Concordia Publishing House (CPH) e da Augsburg Fortress Press.

ISBN: 9798282168860 Kindle Direct Publishing

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CONTEÚDO Abreviaturas Prefácio à Introdução geral Introdução geral Prefácio

iv ix x xiv

Parte Um: Deus 1 1. O Problema da Modernidade 2. Refletindo Superficialmente Através de Um Espelho: Os Pais e o Conhecimento de Deus 3. Provando Deus: Ambições Medievais e o Conhecimento de Deus 4. A Centralidade de Cristo: a Abordagem Luterana da Trindade 5. Falar Apropriadamente Sobre Deus Parte Dois: A Trindade 161 6. A Trindade e a Biblia 7. A Trindade e o Antigo Testamento: YHWH Nosso Elohim 8. Pai e Fihlo: A linguagem Comun do Novo Testamento 9. Pai e Fihlo: Os Compromissos Dogmáticos do Novo Testamento 10. O Espírito Santo 11. A Emanação do Espírito Santo Parte Três: Reflexão Dogmática Da Igreja 373 12. Distinguindo as Pessoas: Percepções Patrísticas 13. Distinguindo as Pessoas: Reflexões Medievais e da Reforma 14. Unidade na Trindade: Opera ad Extra 15. Unidade na Trindade: Apropriação, Atributos e Simplicidade Divina Conclusão: Trinitarismo Moderno

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Bibliografia Selecionada

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ABREVIATURAS Referências a versões da Bíblia LXX NAA RV NVI RSV

Septuaginta Versão bíblica - Nova Almeida Atualizada New English Bible New International Version Revised Standard Version

Documentos do Livro de Concórdia CA ApCa AE Cm CM FC Ep FC DS

Confissão de Augsburgo Apologia da Confissão de Augsburgo Artigos de Esmalcalde Catecismo Menor de Lutero Catecismo Maior de Lutero Fórmula de Concórdia (Epítome) Fórmula de Concórdia (Declaração Sólida)

Edições do Livro de Concórdia Bente

Concordia Triglotta. Os livros simbólicos da Igreja Luterana Ev. Lutheran Church. Editado por F. Bente. St. Louis: Concordia Publishing House (CPH), 1921.

BKS Die Bekenntnisschriften der evangelisch-lutherischen Kirche. Editado pela la Deutscher Evangelischer Kirchenausschuss. 10a edição. Göttingen: Vanderhoeck & Ruprecht, 1996.

LC Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana, editado por Yedo Brandenburg, traduzido por Arnaldo Schüler, São Leopoldo, Porto Alegre; Sinodal, Concórdia, 2021.

Tappert The Book of Concord: The Confessions of the Evangelical Lutheran Church. Traduzido e editado por Theodore G. Tappert. Philadelphia: Fortress Press, 1959.

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Referências às obras de Lutero WA WABr WADB WATr AE OS

D. Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe. 58 vols. Weimar: Hermann Böhlau und Nachfolger, 18831948.

D. Martin Luthers Werke. Briefwechsel. 15 vols.

Weimar: Hermann Böhlau und Nachfolger, 1930-1978.

D. Martin Luthers Werke. Die Deutsche Bibel. 12 vols.

Weimar: Hermann Böhlau und Nachfolger, 1906-1961.

D. Martin Luthers Werke. Tischreden. 6 vols. Weimar: Hermann Böhlau und Nachfolger, 1912-1921.

Luther´s Works: The American Edition. 55 vols. Editado por Jaroslav Pelikan e Helmut T. Lehmann. St. Louis: Concordia; Philadelphia: Fortress, 1958-1967.

Martinho Lutero – Obras Selecionadas. Editado pela Comissão Interluterana de Literatura. Traduzido por Luis M. Sander et. al. Porto Alegre: Concórdia, São Leopoldo: Sinodal, canoas: editora da Ulbra. 19872023.

Outras referências ACW Ancient Christian Writers series. Mahwah, NJ: Paulist Press.

ANF Ante-Nicene Fathers. Grand Rapids: Eerdmans, reprint.

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CR Corpus Reformatorum. Halle and Brunswick: C. A. Schwetschke and Sons.

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GNO Gregorii Nysseni Opera, ed. Werner Jaeger. Leiden: Brill.

LCL Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press.

NPNF Nicene and Post-Nicene Fathers. Grand Rapids, MI: Eerdmans, reprint. v

PG Migne, J. P., ed. Patrologia Cursus Completus. Series graeca.

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SC Sources chrétiennes. Paris: Éditions du Cerf.

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Latin/English edition, 8 vols. Lander, WY: The Aquinas Institute for the Study of Sacred Doctrine, 2012.

TLH The Lutheran Hymnal. Evangelical Lutheran Synodical Conference of North America. St. Louis: CPH, 1941.

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ANF Ante-Nicene Fathers [Pais Ante-Nicenos]. Grand Rapids: Eerdmans, reimpressão.

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ELH Hinário Evangélico Luterano. Mankato, MN: Sínodo Evangélico Luterano, 1996.

Fathers of the Church (Pais da Igreja) Série Fathers of the Church, Washington, D.C.: Universidade Católica da América Imprensa.

GNO Ópera de Gregorii Nysseni, ed. Werner Jaeger. Leiden: Brill.

LCL Loeb Classical Library (Biblioteca Clássica Loeb).

Cambridge, MA: Harvard University Press.

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221 vols. Paris: Garnier Fraher, 1844-. vi

PPS

Popular Patristics Series [Série Patrística Popular].

Crestwood, NY: St. Vladimir's Seminary Press.

SC Sources chrétiennes (Fontes cristãs). Paris: Éditions du Cerf.

ST Tomás de Aquino. Summa Theologiae. Traduzido por Laurence Shapcote. Edição em latim/inglês, 8 vols. Lander, WY: Instituto Aquino para o Estudo da Doutrina Sagrada, 2012.

TLH Hinário Luterano. Conferência Sinodal Evangélica Luterana da América do Norte. St. Louis: CPH, 1941.

WSA Works of Saint Augustine [Obras de Santo Agostinho].

Hyde Park, NY: New City Press.

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CONTEÚDO

PREFÁCIO À INTRODUÇÃO GERAL por Robert H. Bennett Diretor Executivo The Luther Academy

Este livro é o sétimo a ser produzido pela série Confessional Lutheran Dogmatics, de um total de treze volumes. Cada volume é escrito com o objetivo de apresentar fielmente a doutrina luterana e de uma maneira nova. O volume de Carl Beckwith sobre A Santíssima Trindade continua a atender ao alto padrão estabelecido nos volumes anteriores da série. Esse volume oferece um tratamento sistemático, histórico e exegético completo da Santíssima Trindade. Beckwith atinge esse objetivo demonstrando primeiramente a identidade da Santíssima Trindade por meio de uma extensa exegese do Antigo e do Novo Testamento. Em seguida, ele avança para os pais da Igreja e, finalmente, para os Reformadores.

Esse acréscimo à série Confessional Lutheran Dogmatics certamente ocupará seu lugar ao lado dos volumes anteriores como um apreciado acréscimo às bibliotecas de muitos pastores e aos currículos de seminários. A Luther Academy continua comprometida com a conclusão de toda a série.

CONTEÚDO

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INTRODUÇÃO GERAL por Robert D. Preus, Editor geral, 1984-95 Dogmática Luterana confessional

Já faz algum tempo que aqueles de nós na Igreja Luterana que tem se interessado nas Confissões Luteranas, ensinado a partir delas e conduzindo pesquisas a partir destes grandes escritos simbólicos, reconhecemos a necessidade de um recurso dogmático baseado no esboço e na forma de pensamento das Confissões Luteranas. Tal recurso, até a presente data disponível apenas do pequeno Compendium Locorum Theologicorum, de Leonard Hutter, se dirigiria a teólogos de nossos dias com uma resposta verdadeiramente confessional para as questões teológicas que enfrentamos na cristandade e em nosso Sião luterano hoje. Não estamos de forma alguma interessados em substituir a monumental Dogmática Cristã, de Francis Pieper, como livro texto em nossa Igreja Luterana - Sínodo de Missouri, que tem servido estudantes em nossa igreja e em outras por três gerações. tal empreendimento teria sido desnecessário e improdutivo. Os autores dos diversos volumes nesta série da Dogmática Luterana Confessional chegam aos seus respectivos temas a partir de pontos de vista e origens um pouco diferentes e predileções pessoais na medida em que praticam a dogmática. Foi decidido, portanto, editar uma série de tratados dogmáticos sobre os principais artigos de fé, normalmente abordados nas dogmáticas tradicionais desde o século XVI - a Confissão de Augsburgo, os Loci Communes, de Felipe Melanchthon e os Loci Theologici, de Martin Chemnitz, por exemplo.

Mas por que a abordagem a partir das Confissões Luteranas? Não seriam elas obsoletos credos antigos e símbolos irrelevantes para os nossos dias, e não seria uma série de volumes escritos a partir do ponto de vista da teologia luterana confessional igualmente irrelevantes para as questões teológicas que presentemente confrontam a igreja? é porque precisamos responder a tais questões com um enfático não, que queremos x

publicar os volumes que virão. As Confissões, cuja teologia é tirada diretamente das Escrituras, são de fato relevantes para os nossos dias, assim como o são as próprias Escrituras, que são sempre úteis “para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (2 Tm 3.16). Tem havido um chamamento e necessidade reais para exatamente o tipo de série de dogmática aqui proposta, ou seja, uma dogmática confessional luterana. Primeiramente, nenhum livro de dogmática de qualquer espécie foi publicada por teólogos luteranos confessionais ortodoxos (na linha de Elert, Pieper, Hoenecke e Hove) no espaço da última geração. Durante este mesmo período, entretanto, tem havido um renovado interesse nas Confissões Luteranas, em sua função de dar forma a nossa apresentação luterana da doutrina e em certa medida mesmo em normatizar esta doutrina: observe os excelentes estudos de Edmund Schlink, Holsten Fagerberg, Leif Grane, Peter Brunner, Wilhelm Maurer, Friedrich Mildenberger, Herman Sasse e outros, assim como muitos livros e estudos recentes, escrito sem conexão com as lembranças do aniversário do Livro de Concórdia, da Confissão de Augsburgo, etc.

Assim, parece haver a necessidade não apenas de um recurso dogmático em nossos dias, mas um que seja estrita e conscientemente confessional em sua apresentação da doutrina e na sua avaliação e análise de tendências teológicas modernas na igreja cristã. Esta série, da qual este volume é uma parte, está escrita para preencher esta necessidade, e a esperança e oração dos editores é que o presente volume atinja em certa medida este objetivo.

Os volumes que compõem a Dogmática Luterana Confessional não são uma teologia das Confissões Luteranas; são antes uma série na dogmática. eles diferem de outros livros de dogmática no fato de serem moldados estritamente segundo a teologia do Livro de Concórdia, na medida em que abordam as questões atuais. Eles seguem não apenas a teologia do Livro de Concórdia, como os textos de Francis Pieper e Adolf Hoenecke e outros dogmáticos luteranos confessionais têm feito, mas, diferentemente destes dogmáticos, os autores dos presentes volumes seguem o padrão real de pensamento (forma et quase typos, ὑποτύπωσις) das Confissões Luteranas. Tal procedimento está de acordo com o princípio das próprias Confissões; credos e confissões são de fato um modelo e norma de acordo com o que todos outros livros escritos devem ser aceitos xi

e julgados.1 Este fato será responsável pela concordância tanto em doutrina como em formulação, que o leitor observará dentro de toda a presente série de dogmática; os autores se vinculam não apenas de forma geral à teologia do Livro de Concórdia, mas ao seu conteúdo e terminologia (rebus et phrasibus).2 Há uma outra razão para a concordância doutrinária que será perceptível entre os autores da Dogmática Luterana Confessional. E é esta: todos os autores compartilham do conceito de doutrina, da unidade de doutrina, do consenso na doutrina e da pureza de doutrina consistentemente articulados em nossas Confissões. Todas as Confissões Luteranas veem a doutrina como um todo singular e orgânico. a doutrina cristã é semelhante a um corpo (corpus doctrinae), com partes (partes) ou articulações (articuli), ligamentos e membros (membra). O plural “doutrinas” é raramente usado nas Confissões, assim como na Escritura, mas antes é usado singular “doutrina”. Na igreja se um membro sofre todo o corpo sofre; de acordo com a natureza orgânica, unitária, da doutrina cristã, se um artigo ou membro falha, todo o corpo doutrinário é afetado negativamente. Lutero disse: “um só artigo consiste em todos e todos consistem em um só”.3 Como uma Dogmática Luterana Confessional, o presente volume retirará cuidadosa e conscientemente sua doutrina da Escritura. Todas as Confissões, começando pelos Credos e concluindo com a Fórmula de Concórdia, reivindicam ser e são explicações diretas da Sagrada Escritura.

Como tais, seu propósito é nunca nos desviar da Escritura, nem sumarizar as Escrituras de tal forma a tornar seu estudo adicional desnecessário. Elas são escritas para conduzir-nos para dentro das Escrituras. Esta é exatamente o que tem sido a sua função na história da igreja, se pensamos sobre os muitos comentários escritos sobre os credos antigos por parte dos pais da igreja ou sobre as exposições de nossas Confissões pelos reformadores e seus sucessores. O leitor, portanto, notará que a presente obra na dogmática se engaja em uma exegese muito mais direta e extensiva 1

FC DS – Da Suma 10; LC, 570.

Prefácio ao Livro de Concórdia – LC, 28.

3 Comentário aos Gálatas, 1535, WA 40.3:47.32-33; AE 27:38 (OS 10:462).

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do que outras obras na teologia dogmática de nossos dias, exceto a imensa Dogmática Eclesiástica, de Karl Barth. Isto é totalmente adequado e exigido em um texto de dogmática confessional luterana.

A presente obra é um tipo de loci communes, a recapitulação dos principais temas da Escritura com base no esboço e modelo de pensamento confessional luterano. As próprias Confissões Luteranas nunca reivindicam serem a obra final sobre o entendimento e exegese das Escrituras; lembramos a declaração de Lutero sobre oratio, meditatio, tentatio4 com sua explosão contra um sabe-tudo teológico e quão frequentemente esta declaração de Lutero foi repetida pelos teólogos após a Reforma em suas obras dogmáticas. As Confissões sempre conduzem mais profundamente para dentro das Escrituras, especialmente na medida em que novas questões surgem em novas culturas em gerações que se sucedem, que precisam ser enfrentadas apenas com a teologia retirada das Escrituras e moldada segundo as Confissões Luteranas.

Os volumes desta série são dedicados a Francis Pieper, um grande dogmático confessional luterano de nossa igreja, na Esperança e na oração de que eles ajudarão a atingir o que ele tanto fez para alcançar em seus dias – isto é, a unidade doutrinária e consenso na doutrina do evangelho em todos os seus artigos entre todos os luteranos e uma firme identidade luterana confessional tão seriamente necessária em nossos dias.

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Prefácio à Edição de Wittenberg dos escritos de Lutero em alemão – 1539, WA 50:659.4; AE 34:285.

CONTEÚDO

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PREFÁCIO Certa vez, Hermann Sasse observou: "Não há, graças a Deus, nenhuma doutrina luterana específica sobre a Trindade..."5 Em mais de uma ocasião, Martinho Lutero fez a mesma observação.6 Embora Lutero tenha criticado os interesses especulativos dos escolásticos medievais sobre a Trindade, ele nunca questionou a ortodoxia da doutrina entre eles ou entre seus contemporâneos romanos. Na época de Lutero, as ameaças à doutrina da Trindade vinham do lado protestante. Lutero respondeu a esses desafios enfatizando a importância da linguagem trinitária da igreja para proteger o ensino das Escrituras sobre a coigualdade e a coeternidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Seus ensinamentos em sala de aula, livros publicados e traduções de hinos a partir de 1530 mostram sua crescente preocupação com a Trindade.7 Um dos desafios mais sutis e perigosos enfrentados por Lutero

5

Hermann Sasse, "Tradition and Confession: A Response to Jaroslav Pelikan", Lutheran World 4:1 (June 1957): 78.

6 AE I.4: "Esses artigos [isto é, Trindade e Encarnação conforme expressos nos credos] não são assuntos de disputa ou contenda, pois ambas as partes os confessam" (Tappert, 292). Em seu tratado On the Last Words of David, (1543) Lutero escreve: "E esse artigo de fé [i.e., Trindade] permaneceu puro no papado e entre os teólogos escolásticos, e não temos nenhuma discordância com eles a esse respeito" (AE 15:310; WA 54:64.19-21).

7 Em 1531, Lutero escreveu um prefácio para a edição de Johann Bugenhagen das obras trinitárias de Atanásio. Bugenhagen publicou essa edição devido à preocupação de Lutero com os ensinamentos antitrinitários dos radicais. Carolyn Schneider, "Luther's Preface to Bugenhagen's Edition of Athanasius", Lutheran Quarterly 17 (2003): 226-30. Estudos recentes chamaram a atenção especialmente para a ênfase trinitária nas disputas doutorais de 1543-45.

Faremos uso dessas disputas na parte 3. Cf. Dennis Bielfeldt, Mickey L. Mattox e Paul R. Hinlicky, The Substance of the Faith: Luther's Doctrinal Theology for Today (Minneapolis: Fortress Press, 2008). Finalmente, o último hino de Lutero foi uma tradução de um hino sobre a Trindade de Ambrósio O lux beata Trinitas (WA 35:473; AE 53:308). Para a tradução de Lutero desse hino, veja "Thou Who Art Three in Unity" no Evangelical Lutheran Hymn-Book (St. Louis: Concordia Publishing House (CPH), 1931), nº 266. xiv

dizia respeito à leitura feita pela igreja da Cristológica e da Trindade do Antigo Testamento. A volta ao estudo cuidadoso do hebraico durante o século XVI levou alguns, inclusive Lutero, por um certo período, a ler o Antigo Testamento de forma muito limitada à maneira dos rabinos, excluindo a leitura cristã do Antigo Testamento. Lutero reagiu a essa tendência mostrando como o Novo Testamento nos permite olhar para o Antigo Testamento "diretamente nos olhos" (recht unter die Augen) e ver Cristo e a Trindade.8 Os novos hebraístas, como Lutero os apelidou, minaram a leitura cristã do Antigo Testamento deixando Cristo de lado.

Lutero os lembrou de que Jesus nos aponta para o Antigo Testamento para a Lei, os Profetas e os Salmos - porque eles tratam sobre Ele (Lc 24.25-27, 44-45). Moisés escreveu sobre Jesus (Jo 5.46), mas os novos hebraístas não tinham tanta certeza. Esse tipo de exegeta precisa ficar longe da Bíblia. Lutero escreve: "Quem não tem ou não quer conhecer esse Homem correta e verdadeiramente chamado Jesus Cristo, o Filho de Deus, que nós cristãos proclamamos, deve manter as mãos longe da Bíblia - isso eu aconselho."9 Lutero sabia que muitos em sua época não concordavam com a ênfase cristológica e trinitária do Antigo Testamento. A eles, simplesmente respondeu: "Se ela [minha exegese] não agrada a mais ninguém, basta que me agrade."10 Os instintos exegéticos e as percepções dogmáticas de Lutero guiaram as robustas obras sobre a Trindade de nossos dogmáticos luteranos. Johann Gerhard demonstra longamente a identidade bíblica da Trindade no Antigo e no Novo Testamento e, além disso, mostra como a igreja, tanto antiga quanto medieval, expressou e guardou esse testemunho bíblico - testemunho com terminologia técnica e padrões adequados de fala.11 Gerhard não está sozinho. Abraham Calov 8

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:287; WA 54:45.13-14).

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:268; WA 54:29.10-12).

10 On the Last Words of David, 1543 (AE 15:320; WA 54:73.2-3).

11 As três obras de Gerhard sobre a Trindade estão disponíveis apenas em latim: De Tribus Elohim (Locus 4/1, ed. Cotta, 185-223), De Deo Patre et Aeterno Eius Filio (Locus 4/2, ed. Cotta, 223-96) e De Spiritu Sancto (Locus 4/3, ed. Cotta, 296342). Não encontrei nenhuma apresentação mais clara da Trindade entre os dogmáticos do que essas três obras de Gerhard. Estas obras oferecem uma interpretação extensiva do Antigo e do Novo Testamento e apresentam as 9

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e Johann Andreas Quenstedt, o guardador de livros da ortodoxia luterana, oferecem tratamentos dogmáticos igualmente robustos da Trindade.12 Embora a Trindade tenha se saído bem durante o período da Reforma e entre as gerações subsequentes de dogmáticos ortodoxos luteranos, algo mudou ao longo dos séculos XVII e XVIII, o que tornou a confissão da Trindade pela igreja cada vez mais difícil. Essa mudança nos afeta de forma significativa hoje.

Os principais pensadores do Iluminismo tinham pouco interesse em qualquer coisa inacessível à razão. A teologia natural fazia sentido para esses pensadores, e surgiram filosofias elaboradas sobre Deus e ética.

Entre essas figuras, um entendimento ortodoxo da Trindade foi deixado de lado, mesmo que o nome Trindade e uma racionalização de algo denominado Trindade tenham sido adotados. Nos séculos seguintes, os filósofos e teólogos lidaram com essa marginalização da Trindade de diferentes maneiras. Alguns simplesmente ignoraram o fato, mas muitos outros buscaram recuperar algum aspecto da Trindade. O século XX é reconhecido como um período de interesse renovado no pensamento trinitário. No entanto, não devemos confundir esse interesse renovado com ortodoxia. Muitos escritores do século XX, apesar de seu forte interesse na Trindade, continuam a sofrer influencias do maior problema da modernidade: a perda da fé na confiabilidade histórica das Escrituras, na verdade da Bíblia como a Palavra de Deus e na linguagem previamente ordenada da fé. Os luteranos não desconhecem esse problema.

Gotthold Lessing (1729-81) declarou que "as verdades contingentes da história nunca podem se tornar a prova das verdades necessárias da razão".13 Lessing afirma quando discute os milagres de Jesus e Sua ressurreição. Os relatos históricos sobre esses eventos não têm melhores percepções dos Pais e dos teólogos medievais sobre a Trindade.

12 Isaac Dorner deu esse apelido muitas vezes repetido a Quenstedt. Dorner, Geschichte der protestantischen Theologie (Munique: J. G. Cotta, 1867), 530; Dorner, History of Protestant Theology, trans. George Robson e Sophia Taylor (Edimburgo: T & T Clark, 1871), 2:109.

13 Gotthold Lessing, "On the Proof of the Spirit and of Power", Philosophical and Theological Writings, ed. Hugh Barr Nisbet (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 85. xvi

a segurança necessária para que se possa confessar que esse Jesus é o Filho de Deus, da mesma essência que o Pai. Para Lessing e os outros racionalistas de sua época, todos os relatos históricos, seja sobre Jesus ou Alexandre o Grande, nunca poderiam ser mais do que prováveis. Para Lessing, não será suficiente ouvir que esses escritores bíblicos foram inspirados, conduzidos pelo Espírito Santo e que não podem errar. Saltar dos diversos relatos do Jesus histórico nas Escrituras para a fé da igreja na Trindade e nas duas naturezas de Cristo é demais para Lessing: " Este é o abismo amplo e desconexo que não consigo atravessar, não importa quantas vezes e de boa fé eu tenha tentado dar o salto."14 Quando a modernidade perdeu a fé nas Escrituras, criou um abismo intransponível entre os relatos históricos de Jesus e a confissão de Sua divindade pelos crentes. O problema de Lessing permanece para muitas pessoas que escreveram sobre a Trindade no século XX. O pai de Gotthold Lessing era um devoto pastor luterano. Seu pai o enviou para as universidades de Leipzig e Wittenberg. Lessing conhecia bem seu catecismo e, ao longo de sua vida, especialmente no final, se envolveu em controvérsias com pastores luteranos conservadores. Como acontece com todos aqueles que abandonam o luteranismo pela sedução de algo mais livre e tolerante, Lessing reivindicou Lutero como seu: "Você [Lutero] nos redimiu do jugo da tradição; mas quem nos redimirá do jugo mais intolerável da letra? Quem finalmente nos trará um cristianismo como o senhor o ensinaria agora, como o próprio Cristo o ensinaria?"15 Lessing pode ter reivindicado o nome de cristão, talvez até mesmo o nome de luterano, mas sua religião não tinha nada a ver com a Bíblia, o jugo intolerável da letra ou os grandes credos da igreja. Não tinha nada a ver com o luteranismo pregado por seu pai e ensinado em seu catecismo.

E, no entanto, Lessing continuou convencido de que se ao menos Lutero, ou mesmo Jesus, pudesse estar por perto em sua época, eles estariam do lado de suas opiniões sobre as Escrituras e abraçariam o relativismo e o 14

Lessing, "On the Proof of the Spirit and of Power", 87.

Lessing, "A Parable", Philosophical and Theological Writings (Escritos Filosóficos e Teológicos), 118. Lutero antecipou essa falsa alegação de Lessing (e outros) na Confession concerning Christ’s Supper, 1528 (AE 37:360-61; WA 26:499.15-26). (OS 4, 223-375).

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pluralismo religioso que faziam sentido para ele.16 Lessing não conseguia acreditar na Bíblia. Ele estava convencido de que quase todos os cristãos compartilhavam de suas dúvidas e incertezas em relação às Escrituras. Aqueles que são verdadeiros cristãos compartilhavam essas dúvidas, mas não, Lessing insiste, aqueles "cristãos luteranos de Wittenberg, ou cristãos pela graça de Calov..."17 Abraham Calov insistia na inerrância das Escrituras. Como Gerhard antes dele, ele demonstrou exaustivamente a identidade bíblica da Trindade. Lessing defendia algo radicalmente oposto a Calov e se diferenciava de teólogos como ele. Temos muitos Lessings em nossos dias, mas muito poucos Calovs, e isso é visto especialmente quando se trata da Trindade.

Hoje, a Trindade tem pouca importância na identidade dos cristãos. Embora os cristãos afirmem a doutrina da Trindade, confessam o Credo Niceno ou Atanasiano e cantem a doxologia comum sem muita dificuldade, eles lutam para explicar como a Trindade dá forma à sua vida cristã. Essa luta geralmente tem menos a ver com a suposta dificuldade em falar sobre a Trindade do que com o lugar das Escrituras em nossos dias. Quando a modernidade marginalizou as Escrituras e rotulou os trabalhos exegéticos dos Pais da igreja e dos Reformadores como "prémodernos" ou "pré-críticos", eles também marginalizaram a história da exegese que confessava a Trindade. A voz da igreja, a maneira pela qual os fiéis sempre leram as Escrituras, foi silenciada, e tudo o que restou foram os credos. Vivemos em uma época peculiar. Abraçamos a tradição de uma doutrina, mas não a tradição de exegese da doutrina.

Não existe uma doutrina luterana específica da Trindade, mas certamente há uma abordagem luterana da doutrina de Deus e da Trindade. Essa abordagem luterana não faz distinções fáceis entre doutrina, liturgia e o que Lutero chamou de vita passiva, a vida recebida a partir da obra e do sofrimento de Deus. O Culto Divino, a ação de Deus, está decisivamente no centro de uma forma luterana de fazer teologia.

Deus serve, nós recebemos; o Deus condescende quem vem até nós; a 16 17

Lessing, "Introduction", Philosophical and Theological Writings, 5.

Lessing, "Axioms", Philosophical and Theological Writings, 125. xviii

Palavra de Deus cria e determina a fé. Para os Reformadores, assim como para os Pais antes deles, a doutrina e a vida, a teologia e a fé sempre permanecem juntas. A ideia de que elas poderiam ser separadas foi uma invenção da modernidade.18 Este livro reflete essa abordagem luterana.

Além disso, não separaremos nossos esforços daqueles que nos antecederam. Ao longo de todo o livro, apresentaremos o ensino da igreja observando atentamente os Pais e os Reformadores, seus conhecimentos bíblicos e seu raciocínio fiel, mas sempre sob a perspectiva das dificuldades que nos foram legadas pela modernidade. Nossas perguntas derivam dos desafios da modernidade e nossas respostas são informadas pelos grandes teólogos da igreja. Juntamos nossas vozes às deles ao respondermos às difíceis perguntas de nossos dias sobre o conhecimento de Deus (parte 1), o testemunho bíblico da Trindade (parte 2) e os padrões adequados de discurso para confessar e proteger esse testemunho bíblico de forma responsável (parte 3).

NOTA PARA O LEITOR A tradução da Bíblia usada em todo o texto é a English Standard Version (ESV). Quando me afasto da ESV, indico na citação do texto a tradução utilizada. Em algumas ocasiões, uso minha própria tradução e indico isso na nota de rodapé. Também tomei duas liberdades com minhas citações da ESV. Deixei YHWH e Elohim sem tradução na maioria das citações do Antigo Testamento. Meus motivos para fazer isso ficarão evidentes nos capítulos sobre o testemunho bíblico da Trindade.

Também alterei a capitalização de certas palavras. A maneira como colocamos as palavras em maiúsculas indica como as entendemos. A maioria dos leitores sabe que há uma diferença entre escrever Deus ou deus. Embora o contexto determine o que queremos dizer em ambos os casos, o uso de maiúsculas em Deus normalmente indica que estamos discutindo aquele que nos foi dado a conhecer nas Escrituras. Os vários títulos usados para Cristo no Antigo Testamento geralmente não são escritos com letra maiúscula na ESV. Em minha discussão sobre esses 18

Oswald Bayer, Theology the Lutheran Way, trans. Jeffrey Silcock e Mark Mattes (Grand Rapids: Eerdmans, 2007), p. 83. Bayer afirma em outro lugar, como temos aqui, "A teologia começa e termina com o culto de Deus”(xxiv, 88-96). xix

títulos, eu os coloco em letra maiúscula para indicar melhor que estou falando sobre a Segunda Pessoa da Trindade. O mesmo se aplica ao Espírito Santo e aos diferentes títulos usados para o Espírito de Deus nas Escrituras.

Carl L. Beckwith Birmingham, Alabama Maio de 2016 Festa de Santo Atanásio de Alexandria

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CONTEÚDO

PARTE UM SOBRE DEUS As afirmações sobre Deus são abundantes em nosso mundo. O filósofo procura demonstrar a necessidade da existência de Deus. O teólogo discorre longamente sobre a essência e os atributos de Deus.

O político invoca a bênção de Deus sobre nossa nação. Eventos interreligiosos envolvendo judeus, cristãos e muçulmanos afirmam adorar o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Outros ainda profanam o nome de Deus e, quando a desgraça se abate sobre nosso mundo, perguntam onde está Deus. Será que essas várias figuras se referem ao mesmo Deus ou simplesmente usam a mesma palavra, Deus, para designar alguém ou alguma coisa? Como eles sabem o que afirmam saber sobre esse Deus? A Parte 1 examina detalhadamente como conhecemos e tratamos sobre Deus de forma correta.

Começamos com um capítulo sobre o problema da modernidade a fim de nos orientarmos quanto aos desafios que enfrentamos ao confessar a Trindade. Em seguida, voltamos para a história da igreja. Duas maneiras diferentes de pensar sobre Deus chegaram até nós na tradição da igreja. Há aqueles que pensam que podemos começar com a natureza, com o conhecimento natural de Deus, e chegar a um entendimento parcial, mas verdadeiro de Deus.

Para esses pensadores, as Escrituras complementam e aperfeiçoam o conhecimento que adquirimos por meio de uma consideração razoável da natureza. As Escrituras acrescentam a Trindade a esse entendimento inicial de Deus. Essa abordagem pode ser vista na igreja primitiva com figuras como Justino Mártir e Tertuliano, e durante o período medieval com Tomás de Aquino e John Duns Scotus. É uma abordagem que agrada a muitos hoje em dia. Um segundo grupo concorda que Deus revela Sua existência por meio da natureza, mas 1

que esse conhecimento nunca é suficiente e é sempre suscetível à idolatria. Nossa natureza pecaminosa, nosso intelecto decaído, não pode evitar de postular um "Deus" que responda aos nossos maiores medos e ansiedades e sustente nossos desejos mais básicos. O conhecimento natural deixado por conta de suas melhores ideias leva à idolatria. Em vez de construir sobre esse conhecimento inicial, nós nos arrependemos dele. Essa é a visão dos teólogos gregos do século IV, de Lutero e do Livro de Concórdia.

Por fim, a forma como pensamos sobre Deus afeta nossa linguagem para definir Deus. A Parte 1 termina com uma análise detalhada da linguagem e quais as palavras utilizamos para nos referir a Deus. Embora essa discussão seja técnica, é necessário entender o que nossas palavras significam quando falamos sobre Deus. Nossas conclusões servirão de base para a leitura das Escrituras na Parte 2.

Também, veremos na Parte 3 que essas preocupações semânticas faziam parte do próprio ensino de Lutero sobre a Trindade na Universidade de Wittenberg e continuaram sendo uma questão importante para os dogmáticos luteranos.

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CONTEÚDO

1 O PROBLEMA DA MODERNIDADE A doutrina da Trindade apresenta problemas para a igreja de hoje. Para muitos, a Trindade é conhecida apenas através de formulações abstratas e que sua abordagem não é adequada e que estão distantes da vida espiritual da igreja. Essa maneira de pensar sobre a Trindade faz dela um simples artigo de fé, uma doutrina difícil e sobrecarregada com terminologia técnica. Por medo de que pensemos algo errado sobre a Trindade, nós a declaramos um mistério que escapa à razão e às palavras humanas. Essa atitude, aparentemente piedosa, nos libera para nos concentrarmos nas preocupações mais práticas da vida da igreja. Infelizmente, esse tipo de abordagem piedosa também coloca a Trindade à margem da identidade cristã. Mantemos a doutrina da Trindade porque sabemos que devemos mantê-la, mas, na realidade, temos pouco a dizer sobre ela.

Apesar das dificuldades acima descritas, ninguém que reivindique o cristianismo ortodoxo negaria a generalizada linguagem trinitária de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo na liturgia, nos lecionários e nas orações feitas pela igreja. Poucos estão dispostos a admitir que Deus nos deixou incapazes de falar sobre Ele; confessamos apropriadamente que a autocomunicação de Deus é trinitária. Esse discurso divino, preservado para nós nas Escrituras canônicas, declara inequivocamente a identidade Triúna de Deus e como devemos confessá-Lo e adorá-Lo. Aqui reside o problema: de acordo com as Escrituras, a identidade Triúna e a existência de Deus são fundamentais para a autocompreensão cristã e, ainda assim, atualmente, está muito além do alcance da maioria dos cristãos terem condições de explicar como nossa confissão trinitária identifica o Deus que adoramos e confessamos, e em quem vivemos.

Alguns podem argumentar que é suficiente nomear o Deus da Bíblia como Pai, Filho e Espírito Santo. Será que devemos nos aprofundar nas questões trinitárias difíceis discutidas pelos Pais e Reformadores? Se 3

mudássemos a questão da Trindade para o evangelho, a maioria dos luteranos concluiria que há urgência em esclarecer o que significa a palavra evangelho. O evangelho sempre foi e continuará sendo suscetível a malentendidos e distorções. A ambiguidade na expressão não nos livrará de nossos pecados nem confortará nossas consciências. A pureza do evangelho deve sempre ser guardada com diligência e claramente proclamada pelos que a confessam; isso também se aplica à Trindade.

Nomear Deus como Pai, Filho e Espírito Santo não livrará uma pessoa do modalismo, do subordinacionismo ou do tri-teísmo. Não podemos confessar apenas a identidade de Deus de forma narrativa, mas também devemos explicar a identidade de Deus de forma dogmática; devemos mostrar como nossa confissão é biblicamente e nicena, e como ela rejeita todas as outras possibilidades.

A confissão requer doutrina; a doutrina produz confissão. As antigas heresias trinitárias e suas correspondentes modernas nos mostram a necessidade de marcar o que queremos dizer quando confessamos o Deus Triúno. A mera existência de credos e regras de fé pressupõe a presença de mal-entendidos e distorções. Fazer confissão é tanto afirmar quanto negar. Os Pais estabeleceram padrões normativos do discurso teológico para transmitir o que eles queriam transmitir com essa confissão e para anatematizar o que não queriam afirmar. É esse discurso normativo que os cristãos ortodoxos continuam a receber e a torná-los seus. No entanto, para que essa doutrina patrística seja a nossa confissão, ela deve proceder de uma vida de oração (oratio) e meditação bíblica (meditatio), e deve ressoar em nossas vidas cristãs (tentatio) a tal ponto de que a explicação seja bem clara.1 Para colocar isso de forma mais objetiva, os luteranos precisam ser capazes de confessar a Trindade de forma tão clara e persuasiva quanto fazem com a justificação através da fé.

A dissonância entre confissão e doutrina em nossos dias aparece quando um membro da igreja pergunta a seu pastor como o Pai, o Filho e o Espírito Santo são todos três Deuses e, ainda assim, um só Deus.

1

Para um exemplo de como a oratio, meditatio e tentatio de Lutero estruturam a dogmática luterana, veja Matthias Hafenreffer, Loci Theologici (Tübingen, 1603), 1-23 (Prolegômenos).

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Qualquer explicação que comece com fórmulas de credo e que retrocede para uma explicação matemática contraditória ou desvie a conversa para analogias inventivas permanecerá insatisfatória especialmente se o membro da igreja quando levar a questão ao que a Bíblia tem a dizer sobre isso.2 A questão é acentuada pela peculiaridade litúrgica de haver um Domingo da Trindade que ocasiona um sermão sobre a Trindade - algo desconhecido para a igreja primitiva.3 E quanto a todos os outros domingos e sermões? Eles eram menos trinitários? Seriam eles atrinitários no sentido de que a identidade bíblica de Deus era obscurecida ou até mesmo ignorada no próprio ato de pregar sobre a obra criadora e redentora do Pai, do Filho e do Espírito Santo?

Se a Trindade serve apenas como uma doutrina para nós, é necessário perguntar que efeito isso tem sobre a constituição de nossa vida cristã. Se a conversão cristã é, em um nível básico, a mudança de um amor centrado em si mesmo para um amor centrado em Deus, e o Deus que nos salva do pecado, que nos leva a centrarmos a nossa vida em nós mesmos, é o Pai, o Filho e o Espírito Santo, então esse amor centrado em Deus deve ser um amor centrado na Trindade. Se não for assim, corremos o risco de confessar um Deus e amar outro.4 Corremos o risco de sermos trinitários na doutrina, mas outra coisa na vida.5 É exatamente nesse ponto que se vê a grande diferença entre a tradição da igreja e nossos dias com relação à Trindade. Com algum esforço, podemos confessar corretamente a Trindade e expô-la de maneira dogmaticamente satisfatória. Mas será que podemos, sem o máximo esforço, viver uma vida centrada em Cristo que seja trinitária e não apenas retórica?

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Basil of Caesarea On the Holy Spirit 18.44 (PPS, 71): "Quando o Senhor nos ensinou a doutrina do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Ele não fez da aritmética uma parte desse dom!"

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O Domingo da Trindade foi introduzido, com controvérsias, durante o século XIV.

4

Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and on the Trinity, trans. Richard J. Dinda (St. Louis: Concordia Publishing House (CPH), 2007), Exegesis III, §7, 269: "Se negarmos o mistério da Trindade, estaremos ignorando ou negando toda a economia da salvação."

5 Karl Rahner, The Trinity, trans. Joseph Donceel (Nova York: Crossroad, 1997), 10: "Apesar de sua confissão ortodoxa da Trindade, os cristãos são, em sua vida prática, quase meros 'monoteístas'."

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Considere os dois exemplos a seguir. No Catecismo Menor, Lutero oferece uma breve descrição do que um cristão deve fazer a cada dia de sua vida: "Pela manhã, ao se levantar, faça o sinal da cruz e diga: 'Em nome de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Amém.'" Da mesma forma, Lutero continua: "À noite, ao se recolher, faça o sinal da cruz e diga: 'Em nome de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Amém'" (Cm VII.1, 4). O mesmo sinal da cruz e a mesma confissão da Trindade feita em favor de você no batismo são representados e repetidos por você ao se levantar para começar o dia e ao se deitar no final do dia. Ao descrever a vida cristã dessa maneira, Lutero coloca diante do crente uma lembrança diária do batismo e de seus benefícios e, além disso, interpreta a vida diária de acordo com a obra salvadora da Trindade.6 Não se trata de mera lembrança, mas de participação diária no evento salvador do batismo.7 Ambos os aspectos do crente estão unidos na confissão trinitária do batismo e da vida batismal: "Sou batizado, instruído somente com a Palavra, absolvido e participo da Ceia do Senhor. Mas, com a Palavra e por meio da Palavra, o Espírito Santo está presente, e toda a Trindade opera a salvação, como declaram as palavras do batismo."8 Em outra obra, Lutero prevê o dia cristão como um dia contínuo de oração em que os crentes cumprem fielmente suas vocações divinamente designadas. Fazer isso, explica Lutero, é glorificar nosso Deus Triúno.9 Para Lutero, a salvação, a identidade e a ética cristãs encontram sua coerência e identidade na Trindade e em nossa confissão trinitária. Vivemos em Cristo pelo Espírito Santo para o deleite do Pai. Basílio, o Grande, bispo de Cesaréia do século IV, e seu irmão, Gregório de Nissa, oferecem visões semelhantes da vida cristã. Para Basílio e Gregório e, de fato, para todos os escritores normativos do 6

Palestras sobre Gênesis, 1535-45 (AE 8:145; WA 44:685.32): "No batismo, a voz da Trindade é ouvida".

7 Cf. Gerhard von Rad, Old Testament Theology, trans. D. M. G. Stalker (Nova York: Harper, 1965), 2:104: "Quando Israel comeu a Páscoa ... ela estava manifestamente fazendo mais do que meramente se lembrando do Êxodo: ela estava entrando no evento salvador do próprio Êxodo e participando dele de uma maneira bastante 'real'".

8 Lectures on Genesis, 1535-45 (AE 8:264; WA 44:773.4-6).

9 A Simple Way to Pray, 1535 (AE 43:193-94; WA 38:358.11-17).

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período patrístico, a Trindade é o mistério central da fé cristã que ilumina a totalidade da vida cristã. Basílio escreve: Assim como somos batizados, assim também cremos; assim como cremos, assim também damos glória. Visto, pois, que o batismo nos foi dado por nosso Salvador em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, oferecemos a confissão de nossa fé de acordo com nosso batismo, e a doxologia de acordo com nossa fé, glorificando o Espírito Santo com o Pai e o Filho.10

Gregório de Nissa também interpreta a fé que ele confessa e a adoração que ele oferece com o batismo. Gregório escreve: Portanto, somos batizados como nos foi transmitido, no Pai e no Filho e no Espírito Santo, e cremos como somos batizados - pois convém que nossa confissão seja feita a uma só voz com nossa fé - e damos glória como cremos, pois não é natural que a adoração faça guerra contra a fé, mas como cremos, assim também damos glória. Ora, como nossa fé está no Pai, no Filho e no Espírito Santo, a fé, a adoração e o batismo estão de acordo entre si.11

Podemos nos unir a Gregório, Basílio e Lutero para confessar o caráter trinitário e a gramática de nossa vida cristã? Nossa vida cristã cotidiana, nossa fé e nossa adoração, de acordo com nosso batismo?

Nosso batismo, nossa fé, estão em guerra com nossa adoração? Será que nossa confissão dogmática da Trindade está separada de nossa vida prática como cristãos? Se esse for o caso, somente com muita imaginação essa vida poderia ser considerada cristã de acordo com as Escrituras.

NOMEANDO DEUS

Alguns podem argumentar que o uso persistente da palavra "Deus" em nossas orações, adoração e vida devocional nos protege das 10

Basil of Caesarea Letter 159 (LCL 2:395-97), tradução ligeiramente alterada.

Para uma linguagem semelhante, veja também Basil Letters 91, 125 e 210.

11 Gregory of Nyssa Letter 24.8 em Gregory of Nyssa: The Letters, trans. Anna M. Silvas (Leiden: Brill, 2007), 194.

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preocupações mencionadas acima. É suficiente mencionar o nome de Deus e isso é o suficiente para conhecermos o que a Bíblia ensina sobre o Deus Triúno? A resposta depende, em grande parte, do contexto em que a palavra é usada. Falar de Deus em praça pública ou em um evento cívico é presumivelmente diferente de falar de Deus em um sermão sobre o Nascimento de nosso Senhor. Da mesma forma, falar de Deus em uma sinagoga é totalmente diferente de falar de Deus em uma mesquita.

Ambos são diferentes de um sermão sobre o Nascimento. Em uma sociedade religiosamente indiferente e pluralista, o conteúdo proposicional do termo Deus é sempre contestado e necessariamente ambíguo. O termo é equívoco.12 Lutero advertiu sobre isso: "Portanto, todo aquele que não quiser ser enganado deve aprender e observar com toda diligência para não ouvir e concordar quando Deus é meramente nomeado ou mencionado, mesmo que os homens exaltem e louvem seu nome o máximo possível e ajam de forma tão gloriosa e majestosa."13 O contexto deve ser usado para restringir o significado da palavra. A palavra sozinha não pode fazer isso.

Ao longo da história da igreja, os teólogos fizeram questão de esclarecer termos cruciais para que a ambiguidade não prevalecesse. O acréscimo de allein por Lutero a Rm 3.28 é um exemplo bem conhecido.14 No Concílio de Nicéia (325), hypostasis e ousia eram sinônimos. Dizer que a hipóstase do Filho era eternamente distinta da hipóstase do Pai era anátema; após o Concílio de Constantinopla (381), não dizer isso era anátema. Os teólogos do século IV esclareceram o significado dessas 12

Thomas Aquinas ST I.13.10c: "Ninguém pode significar o que não conhece. Mas o pagão não conhece a natureza divina. Portanto, quando ele diz que um ídolo é Deus, ele não significa a verdadeira Deidade. Por outro lado, um católico significa a verdadeira Deidade quando diz que há um só Deus. Portanto, esse nome Deus não é aplicado univocamente, mas equivocadamente ao Deus verdadeiro e a Deus de acordo com a opinião."

13 Sermons on the Gospel of St. John, 1537-38 (AE 24:71; WA 45:526.1-4).

Também Sermons on the Gospel of St. John, 1530-32 (AE 23:288; WA 33:460a.3137): "O termo 'deus', por exemplo, recebe os mais variados significados.

Suponho que existam mil deuses diferentes. Todo mundo tem seu próprio deus particular. Portanto, você deve ser cauteloso".

14 On Translating: An Open Letter, 1530 (AE 35:188; WA 30/2:636.31-34).

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palavras para refletir de forma mais apropriada o testemunho das Escrituras. Algo semelhante ocorre nas Escrituras. O que significa "amor" para um cristão? Como devemos entender o amor fraternal? João limita o alcance desse termo ao localizar um entendimento adequado dele na obra salvadora de Cristo (1Jo 3.16) e no próprio Deus (1Jo 3.1). O amor obviamente significa algo diferente para um cristão do que para um não cristão (2Tm 3.2). Também vale para o termo "paz" (1Ts 5.3, 2Ts 3.16).

A paz vem do alto, do Senhor da paz, e é encontrada entre os justificados pela fé (Rm 5.1), aqueles que estão em Cristo (1Ts 5.23; 2Ts 3.16; 1Pe 5.14; et passim). Somos "chamados" a essa paz por Deus (1 Co 7.15), que é muito diferente daquela paz enganosamente prometida pelo mundo (Jr 6.14, 8.11, et passim). Jesus declara: "Deixo-vos a paz, a minha paz lhes dou. Não dou como o mundo a dá" (Jo 14.27). Tanto o amor quanto a paz são frutos do Espírito, dons de Deus (Gl 5.22). Essas palavras recebem seu significado adequado não da cultura predominante, onde reina a ambiguidade, mas das Escrituras, onde o Espírito determina seu significado adequado para nós.

O método exposto no parágrafo anterior e usado pelos dogmáticos luteranos é que a Escritura é sua própria intérprete (Scriptura sacra sui ipsius interpres).15 Paz significa coisas diferentes com base no contexto cultural ou sociopolítico do discurso. De acordo com as Escrituras, até mesmo os religiosos que estão por dentro da palavra têm definições diferentes (Jr 9.8). Quando os políticos e especialistas elaboram planos para a paz no Oriente Médio, eles não estão pedindo a paz de Cristo que excede todo o entendimento, mas sim o cessar da violência e da hostilidade que perturbam a estabilidade da região. Os cristãos não se confundem com o uso do termo dessa forma e são capazes de traduzi-lo de acordo com o contexto político em que é falado. E quanto ao termo Deus? Quando um político termina um discurso com as palavras "Deus 15

Chemnitz, Examen (Frankfurt, 1596), 3:31; Abraham Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1655), 1:318, 425, 639. Calov vincula explicitamente esse axioma a 2Pe 1.21. Veja também Assertio omnium articulorum M. Lutheri per bullam Leonis X. novissimam damnatorum, 1520 (WA 7:97). Para uma discussão ampliada, veja Quenstedt, Systema Theologicum I, 4 (Wittenberg, 1691), 137-48.

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abençoe a América", temos alguma ideia do que significa o termo Deus?

Não somos capazes de considerar o que é essa bênção e o que ela representa até que possamos determinar quem ou o que está fornecendo a bênção. Isso se aplica aos eventos "inter-religiosos" que se disfarçam de adoração conjunta ao mesmo Deus. Adoração de qual Deus, devemos perguntar. O conteúdo do termo não é claro em nossos dias. De forma alguma o termo assegura um entendimento cristão do Deus Triúno. Por quê? Porque o termo é equívoco. Ele é usado por várias pessoas com entendimentos até contraditórios. Novamente, as Escrituras nos alertam sobre isso. YHWH é um nome próprio, exclusivo do Deus de Israel; Elohim é genérico e usado por outras nações. Essas nações têm seus Elohim, mas o Elohim de Israel é YHWH. Por essa razão, Deus começa o Decálogo declarando: "Eu sou YHWH, teu Elohim" (Êx 20.2; Dt 6.1).

Da mesma forma, o termo Theos foi apropriado pelo judaísmo e pelo cristianismo a partir dos gregos. Platão pode falar de deus (ὁ θεος), mas não do Deus de Israel (ὁ θεος τοῦ Ισραηλ), nem de Jesus Cristo, o Filho de Deus (ὁ τοῦ θεοῦς). Os atenienses tinham um altar com a inscrição: "Ao deus desconhecido" (Atos 17.23). Paulo usou o termo comum, theos, e deu-lhe um significado cristão. O "deus" que eles chamavam de desconhecido é o Deus que fez os céus e a terra e que é o Senhor de tudo.

O predicado especifica ou marca o sujeito. De qual "deus" estamos falando? A resposta de Paulo é o Deus que cria, o Deus do qual temos a respiração e pelo qual somos chamados para nos arrependermos. Essas atividades servem como marcadores narrativos para identificar dogmaticamente o Deus verdadeiro.

Abraham Calov escreve: "Aqueles que deixam de mencionar as três pessoas em sua descrição de Deus não transmitem de forma alguma uma descrição genuína ou completa, que, na ausência dessas três pessoas, não corresponde de forma alguma quem é o verdadeiro Deus."16 Como cristãos falando em um contexto cristão, podemos nomear o Deus Triúno como Deus? Certamente podemos, pois as Escrituras também modelaram a forma de nosso discurso.17 Mas as Escrituras restringiram o 16 17

Calov, Systema Locorum Theologicorum 2:182.

Cf. Gregório de Nazianzo Or. 38.8 em Festal Orations (PPS, 66): "Quando digo 10

alcance semântico do termo Deus e o distinguiram de todos os outros usos concorrentes, antigos e modernos. O Deus encontrado nas Escrituras, o único e verdadeiro Deus de Israel, YHWH, é Triúno e é chamado de Pai, Filho e Espírito Santo. Somos ensinados a orar "Pai nosso, que estás nos céus", e não "Deus nosso, que estás nos céus".

Oramos ao nosso Pai, por meio do Filho, pelo Espírito Santo. Nós batizamos não em nome de Deus, mas em nome de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.18 Esses nomes não são apenas garantidos pelas Escrituras, mas estabelecidos pelas Escrituras. Não nos cabe alterar o nome de Deus e, portanto, não nos cabe falar de forma equivocada sobre o Deus que adoramos e que passamos a conhecer apenas como Pai, Filho e Espírito Santo.19 A TRINDADE COMO TAREFA

Robert Jenson descreve a doutrina da Trindade mais como uma tarefa do que como um corpo homogêneo de proposições atemporais.20 A tarefa envolvida é o esforço contínuo da igreja para reconhecer e aderir à identidade bíblica de Deus. O argumento de Jenson é bastante simples, mas facilmente ignorado. A doutrina da Trindade, expressa como "três pessoas irredutíveis e inseparavelmente unidas em uma única natureza indivisível", é uma proposição dogmática elaborada e implantada pelos Pais durante o curso histórico específico da reflexão bíblica e em meio à controvérsia eclesiástica. Esse contexto histórico moldou decisivamente as proposições dogmáticas apresentadas pelos Pais. Por essa razão, observa Jenson, falar sobre a Trindade, confessar a Trindade, não pode ser simplesmente reduzido à reafirmação de proposições.21 De fato, a 'Deus', quero dizer Pai, Filho e Espírito Santo".

18 Cf. Athanasius Orations Against the Arians 1.34 and De Decretis 31; Basil of Caesarea Against Eunomius 1.5.

19 Johann Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis III, §2, 268: "Para a fé católica, que é necessária para todos os que serão salvos, não deve haver um conhecimento e confissão confusos e implícitos, mas distintos e explícitos das três pessoas da Divindade."

20 Robert Jenson, Systematic Theology (Oxford: Oxford University Press, 1997), 1:90.

21 O contexto histórico ou filosófico no qual esses pronunciamentos patrísticos foram feitos é chamado por Jenson de teologia da antiguidade mediterrânea. Ele 11

confissão apropriada da Trindade de qualquer artigo de fé, é sempre uma tarefa exegética que cabe a cada geração da igreja. A Escritura normatiza nossa fé; a tradição nos mostra padrões apropriados de discurso para expressar e proteger essa fé. Se desalojarmos os padrões de discurso usados pela igreja da fonte desses padrões de discurso, não apenas perseguiremos uma tarefa estranha à dos melhores teólogos da igreja, mas também uma tarefa contrária às nossas convicções bíblicas.

O comentário de Jenson é crucial para qualquer discussão sobre a Trindade, pois nos impede de reduzir reflexivamente a doutrina central de nossa fé a uma questão metafísica de proposições incorporadas em uma cultura distante da nossa. Com muita frequência, optamos por ensinar e pregar a doutrina da Trindade recorrendo ao vocabulário técnico dos debates patrísticos e às fórmulas conclusivas adotadas pelas decisões dos concílios dos séculos IV e V. Há alguns problemas com isso. Um deles é a falha em reconhecer que as questões abordadas na igreja antiga não são necessariamente as mesmas questões que estão sendo feitas hoje.

Se as perguntas não forem exatamente as mesmas, então o recurso às suas respostas confundirá ou permanecerá insatisfatório; isso não quer dizer que as respostas não sejam úteis ou não sejam verdadeiras, mas apenas que elas podem não abordar o ponto em questão. As questões filosóficas enfrentadas pelos Pais na igreja primitiva tendiam a ser sobre metafísica e o relacionamento entre o criador e a criação. Por exemplo, um problema real para pensadores tão diversos quanto os neoplatônicos, os gnósticos e os arianos eram a necessidade de proteger o transcendente, Bythos, ou o verdadeiro Deus (ho theos em oposição ao theos anartro) do contato com a criação. Todos assumiram a necessidade de ter um mediador ou mediadores da ação criadora de Deus.22 Os Pais rejeitaram a relação de tem em mente especificamente a interpretação da divindade pelo paganismo grego como atemporalidade e impassibilidade. Minha simpatia pelo comentário de Jenson não está nessas questões contestadas, mas em sua observação de que falar sobre a Trindade não é simplesmente reafirmar proposições. Veja também Robert Jenson, "Ipse Pater Non Est Impassiblis", Divine Impassibility and the Mystery of Human Suffering, ed., James F. Keating e Thomas Joseph Joseph.

James F. Keating e Thomas Joseph White (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), 117-126.

22 Atanásio confunde o pensamento dos gnósticos, gregos e arianos nesse mesmo ponto em Orations Against the Arians 2.21–24.

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seres intervenientes encontrada no neoplatonismo e no gnosticismo e a mediação subordinada do Filho no arianismo, apontando para a confissão bíblica da condescendência do Filho. A explicação de como o Filho se relacionava com o Pai e com o Espírito Santo é o que chamamos hoje de doutrina da Trindade. Os termos que eles usaram para sua explicação derivaram do debate do contexto da época. Esses termos metafísicos continuam sendo um recurso indispensável para a igreja de hoje ao responder a perguntas metafísicas sobre a Trindade. Com muita frequência, os Pais são acusados de atormentar a fé cristã porque operavam dentro do idioma filosófico de sua época. Essa tese perdeu sua utilidade. Um caminho natural seria a cristianização do helenismo.23 Os Pais abordaram as questões de sua época usando o idioma filosófico disponível para eles. Não é verdade que os Pais se deleitavam com a especulação metafísica e desejavam interpretar o ser de Deus de acordo com as normas ontológicas e racionais de sua época.24 De fato, em sua maior parte, eles evitavam tais argumentos e normalmente acusavam seus oponentes de se envolverem em tal comportamento (por exemplo, Ário, Aécio, Eunômio). Ao mesmo tempo, falar sobre a essência, o ser ou a natureza de Deus não era fazer nada além de expressar sua fé bíblica na linguagem da época e usar as melhores palavras possíveis e que estavam disponíveis para esclarecer e proteger o testemunho das Escrituras. E, no entanto, ao usar esse idioma filosófico compartilhado, os Pais o criticaram e o revisaram de acordo com as exigências das Escrituras.25 Sua fé nas Escrituras os obrigava a falar de maneiras que seus contemporâneos consideravam contraditórias.

Outro problema em abordar a Trindade recorrendo ao vocabulário técnico dos debates patrísticos e suas fórmulas conclusivas é que começamos com a tradição e as conclusões teológicas, enquanto os Pais começaram com as Escrituras e a exegese. Em outras palavras, 23

Robert Louis Wilken, The Spirit of Early Christianity (New Haven, CT: Yale University Press, 2003), xvi.

24 Agostinho é famoso por observar que ele usa essa linguagem técnica apenas para evitar não dizer nada. Ver Augustine The Trinity 5.10 (WSA I/5, 196).

25 R. P. C. Hanson, The Search for the Christian Doctrine of God (Grand Rapids: Baker Academic, 2005), 870-871.

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começamos onde eles terminaram. Suas proposições buscavam dar sentido à narrativa da Escritura sobre a Trindade de Deus, uma lógica trinitária confessada em toda a Escritura, mas que carecia de uma linguagem dogmática precisa. A tarefa que coube aos primeiros teólogos da igreja foi fornecer um nível de coerência e inteligibilidade ao trinitarismo da Bíblia em resposta às pressuposições filosóficas da antiguidade sobre o que significava ser divino. Nossa tarefa não é de uma simples repetição, de repetir nomes e conclusões aprovadas, achando que isso nos garante uma confissão correta da Trindade; nossa tarefa é reaprender a exegese deles a fim de compreender a inteligibilidade de suas conclusões, como visto, por exemplo, na gramática técnica usada para expressar suas convicções bíblicas e nos resumos de credos dessas convicções.

Se optarmos por não começar com a tarefa mais difícil da exegese e, em vez disso, tomarmos o caminho aparentemente mais fácil, ou seja, a história da doutrina na reflexão teológica da igreja, inverteremos a ordem de nossas convicções como luteranos. Esse curso significaria que começaríamos com a argumentação teológica sobre o ser e as pessoas da Trindade, em vez de começarmos com o fundamento bíblico desses argumentos teológicos. As armadilhas são muitas. Retiramos nossa confissão da Trindade da principal fonte de nosso conhecimento sobre quem é Deus, as Escrituras (norma normans), e erroneamente a atribuímos à história do credo da igreja (norma normata). Também acabamos complicando nossa confissão da Trindade, pois a vinculamos a uma terminologia formal que escapa ao cristão e ao pastor comuns e que provavelmente responde a perguntas que não estão sendo feitas. As consequências são desastrosas: a Trindade é abordada e discutida apenas como "a doutrina" da Trindade, em vez de ser confessada como o horizonte de nossa realidade e a fonte de nossa vida, alegria e esperança.

Quando a Trindade é reduzida a proposições de credo, a exegese trinitária da igreja é deixada de lado e, por fim, esquecida. A dificuldade da doutrina da Trindade em nossos dias tem menos a ver com o assunto e mais com a abordagem que adotamos. Agora somos forçados a dominar um tremendo conjunto de informações: a história e a teologia dos debates sobre a Trindade desde a igreja primitiva até nossos dias. O que 14

esquecemos é exatamente o que os membros da igreja buscam: a exegese trinitária da igreja. Quando recuperarmos essa exegese, a voz da igreja, alcançaremos mais do que apenas uma compreensão trinitária das Escrituras. De fato, começaremos a vislumbrar, como Lutero, Basílio, e Gregório, a forma e o significado trinitários da vida cristã.

UMA BREVE HISTÓRIA DO PROBLEMA DA MODERNIDADE

A narrativa padrão do problema herdado pelo século XX normalmente começa com a marginalização da Trindade no século XVIII por Immanuel Kant (1724-1804) e a resposta no século XIX por Friedrich Schleiermacher (1768-1834).26 Kant achava que a doutrina da Trindade era um mistério ininteligível sem valor prático ou moral. Não só a doutrina era irrelevante para o cristianismo, mas até mesmo potencialmente prejudicial para uma disposição verdadeiramente religiosa.27 Por essas razões, Kant marginalizou a doutrina e deu a ela o status de adiaphora.28 O pensamento de Kant estava muito em sintonia com a atitude mais ampla e ambivalente em relação à Trindade no século XVIII. Sua rejeição da Trindade baseava-se na relevância da doutrina para a vida prática e moral do indivíduo. O julgamento procede do sujeito pensante; a Trindade é vista aqui como objeto. Kant declarou que esse objeto é ininteligível e, portanto, desnecessário para nós em nossa própria construção da realidade.

A resposta neoprotestante do século XIX deve ser vista como uma reação contra o século XVIII e as grandes reivindicações do Iluminismo. Embora tanto Schleiermacher quanto Hegel (1770-1831) tenham tentado recuperar o "símbolo" da Trindade, suas propostas trinitárias estavam muito distantes do cristianismo ortodoxo.

Schleiermacher considerava a doutrina ortodoxa da Trindade conceitualmente incoerente e sempre sobrecarregada com a dificuldade de relacionar a unidade da essência com a Trindade das pessoas. A 26

Cf. Robert Jenson, The Triune Identity (Filadélfia: Fortress Press, 1982), 131-38.

Immanuel Kant, Religion and Rational Theology (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), 167, 264.

28 Cyril O'Regan, "The Trinity in Kant, Hegel, and Schelling", The Oxford Handbook of the Trinity (Oxford: Oxford University Press, 2011), 254.

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doutrina era simplesmente desnecessária para a autoconsciência cristã.

Schleiermacher e Hegel rejeitaram a noção de uma distinção eterna de pessoas em Deus como essencial para o ensino cristão e apresentaram uma visão da Trindade mais parecida com um modalismo escatologicamente realizado.29 A marginalização da Trindade não significava uma rejeição de Deus por esses pensadores. A visão de Deus de Schleiermacher se concentrava na união da essência divina com a natureza humana, "tanto na personalidade de Cristo quanto no Espírito encontrado na vida da igreja".30 Nesse sentido, a igreja estava correta ao enfatizar a redenção por meio de Cristo e a comunicação dessa redenção ao mundo por meio da igreja. Essas ênfases ocorrem somente se o próprio ser de Deus estiver genuinamente presente tanto em Cristo quanto no Espírito comum da igreja.31 Esses são os "elementos essenciais" na doutrina da Trindade.32 Embora Schleiermacher entenda que a doutrina da Trindade visa predicar algo do ser de Deus, ele esvazia a doutrina de qualquer referência ao ser intrínseco de Deus, o que acaba separando "o significado da doutrina da própria doutrina."33 Schleiermacher escreve: "Por isso, é importante ressaltar que os principais pivôs da doutrina eclesiástica - o ser de Deus em Cristo e na igreja cristã - são independentes da doutrina da Trindade."34 Em outras palavras, o que ocupa o centro da doutrina eclesiástica, o ensinamento ortodoxo da Trindade, é independente do que Schleiermacher e a autoconsciência cristã, como ele gostaria que fosse, sabem sobre Deus. Não podemos oferecer uma doutrina viável da 29

Friedrich Schleiermacher, The Christian Faith (Edimburgo: T & T Clark, 1986), 738-51 (§170-72). Schleiermacher chega a perguntar se a linguagem conceitual do sabelianismo não seria tão útil para expressar a consciência de Deus da igreja quanto a "hipótese atanasiana" (750, §172.3). Para um breve resumo do pensamento trinitário de Hegel, consulte Cyril O'Regan, "The Trinity in Kant, Hegel, and Schelling", 257-262.

30 Schleiermacher, The Christian Faith, 738 (§170.1).

31 Bruce Marshall, "Trinity", The Blackwell Companion to Theology, ed. Gareth Jones (Oxford: Blackwell, 2004), 183. Gareth Jones (Oxford: Blackwell, 2004), 183.

32 Schleiermacher, The Christian Faith, 738-39 (§170.1).

33 Khaled Anatolios, Retrieving Nicaea (Grand Rapids: Baker Academic, 2011), 3.

34 Schleiermacher, The Christian Faith, 741 (§170.3).

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Trindade que seja especulativa e distante da história: Deus é conhecido, para Schleiermacher, por meio de Sua atividade redentora na história e de minha experiência com Ele.35 Embora seja declarada de forma bem diferente, a proposta de Schleiermacher permanece na órbita subjetiva de Kant. Ambas as construções de Deus procedem de minha interpretação da realidade e do espaço que crio para aquilo que é chamado de "Deus".

O termo é ambíguo.

Como Kant e Schleiermacher poderiam desprezar tanto a doutrina tradicional da Trindade? As perguntas mudaram e, portanto, as respostas antigas nem sempre funcionam. No caso de Schleiermacher, se as respostas antigas não puderem ser "conhecidas" pela consciência religiosa do cristão, não pode ser uma doutrina cristã genuína.36 De fato, postula Schleiermacher, se não fosse pela igreja nos contar sobre as distinções hipostáticas eternas na doutrina da Trindade, ela teria permanecido desconhecida para nós.37 A preocupação de Schleiermacher é o que é e como "conhecemos" Deus. Se as questões filosóficas que confrontaram os Pais no século IV diziam respeito ao "ser" (metafísica) e as questões debatidas entre os nicenos e os anti-nicenos eram sobre que tipo de ser o Filho é em relação ao Pai, as questões filosóficas que confrontaram Schleiermacher e a modernidade diziam respeito ao "conhecimento" (epistemologia) e como este conhecimento universal de Deus poderia ser alcançado por meio da razão humana ou da experiência cristã.38 A importância de Kant está em seu esforço para resolver as dificuldades apresentadas pelos racionalistas e empiristas dos séculos 35

Samuel M. Powell, "Nineteenth-Century Protestant Doctrines of the Trinity", The Oxford Handbook of the Trinity (Oxford: Oxford University Press, 2011), 271.

36 Bruce Marshall resume a objeção de Schleiermacher da seguinte forma: "Conhecemos Deus apenas como estamos experiencialmente relacionados a ele de várias maneiras, e essas relações não nos dão base para especulação sobre o ser de Deus em si mesmo, independentemente das variedades de sua presença para nós no tempo (ver §172, 1; também 170, pós-escrito)."Marshall, "Trinity", 184.

37 Schleiermacher, The Christian Faith, 739-42 (§170.2-postscript).

38 Essa mudança das questões antigas para as modernas deve ser vista como uma mudança de ênfase. As questões sobre o ser (metafísica) sempre envolvem estruturas de conhecimento (epistemologia).

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XVII e XVIII. Tanto os racionalistas quanto os empiristas buscavam obter o conhecimento da realidade tal como ela é. O problema, na visão de Kant, era que eles creditavam o conhecimento da realidade ao fato de que a realidade era a mesma. O problema, na visão de Kant, era que eles atribuíam à mente humana muito mais do que ela poderia alcançar. Ele argumentou que a razão tem seus limites. Não podemos conhecer a realidade em si (noumena), mas podemos conhecer nossa experiência do mundo (phenomena). Ao colocar nossas experiências dos objetos ao nosso redor em suas devidas categorias, nossas mentes produzem significado.

Quando chegamos a Schleiermacher, a fonte da verdade está localizada na autoconsciência e nas experiências cristãs. A mudança de questões metafísicas para epistemológicas também moveu os seres humanos de objetos da criação de Deus para o centro da discussão como sujeitos pensantes. Tanto Kant quanto Schleiermacher construíram suas visões da realidade e de Deus em resposta às várias propostas modernas produzidas desde o início do século XVII. A modernidade não apenas buscou questões diferentes; ela mudou a forma como fazemos perguntas e as respondemos. Em suas aulas sobre a história da filosofia, Hegel escreveu que a filosofia do período moderno começa com Descartes (1596-1650): "Agora chegamos pela primeira vez ao que é propriamente a filosofia do mundo moderno...

Aqui, podemos dizer, estamos em casa e, como o marinheiro depois de uma longa viagem, podemos finalmente gritar: 'Terra a vista'".39 O que parecia tão em casa para Hegel, em Descartes foi, ao mesmo tempo, uma ruptura decisiva de seu lar espiritual no luteranismo de Lutero (apesar das repetidas declarações de Hegel sobre seu luteranismo).40 O julgamento de 39

G. W. F. Hegel, Lectures on the History of Philosophy, trans. R. F. Brown et al.

(Berkeley: University of California Press, 1990), 3:108. Citado em William Placher, The Triune God: An Essay in Postliberal Theology (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2007), 3.

40 Cyril O'Regan, "The Trinity in Kant, Hegel, and Schelling", p. 258. O'Regan mostra como a versão de Hegel do luteranismo estava em dívida com Jacob Boehme (1575-1624). Hegel menciona Boehme em suas Palestras de 1827 Lectures on the Philosophy of Religion e afirma que Boehme é o modelo para o trinitarismo dinâmico que ele defende. O'Regan comenta: "Como precursor [do pensamento de Hegel], Boehme não está apenas em uma companhia seleta, ele 18

Hegel sobre Descartes está correto: com seu famoso "Penso, logo existo" (cogito, ergo sum), a teologia passa do período pré-moderno para o moderno, de Deus no centro da realidade para o eu no centro da realidade. Se Deus deve ter um lugar em minha construção da realidade, serei eu quem o dará a Ele. Além disso, qualquer construção da realidade, qualquer senso de verdade, procederá de minha própria realidade interior e da reflexão sobre mim mesmo.

DESCARTES E SEU DEUS

Embora Descartes tenha se afastado das autoridades tradicionais para chegar ao conhecimento de Deus e de Suas obras salvadoras, ele não queria, como argumenta, se distanciar das posições dogmáticas tradicionais da igreja; ele apenas desejava chegar a elas de forma diferente.41 Se as Escrituras não pudessem resolver as reivindicações de verdade concorrentes apresentadas pelos vários grupos que afirmam a autoridade das Escrituras, a razão humana poderia ser útil? A razão humana já havia demonstrado uma promessa notável nas descobertas científicas de Copérnico (1473-1543), Kepler (1571-1630) e Galileu (15641642), entre outros. A razão também gerou muita angústia. Embora o heliocentrismo seja uma verdade com a qual convivemos há muitos séculos, não devemos subestimar o impacto emocional e intelectual que

está em uma companhia estranha. As outras duas figuras que Hegel menciona rotineiramente como precedentes para o símbolo Trindade são o platonista judeu Filo de Alexandria e o gnóstico Valentinus" (260).

41 William Placher pergunta se a reverência de Descartes à autoridade da revelação foi menos por convicção e mais por uma preocupação em evitar o destino de Galileu. Placher, The Triune God, 4. Gottfried Leibnitz não foi tão hesitante em seu julgamento. Ele achava que a descrição de Deus feita por Descartes levava apenas ao ateísmo. Leibnitz, Philosophical Works of Leibnitz, ed., George Martin Duncan (Haven, EUA). George Martin Duncan (New Haven, CT: The Tuttle, Morehouse, and Taylor Company, 1890), 1. Cf. Michael Buckley, At the Origins of Modern Atheism (New Haven, CT: Yale University Press, 1987), 37-38: "Seria falso taxar o Iluminismo de indiferença à religião. Seria mais perspicaz dizer que ele era obcecado por isso... Quaisquer que sejam as histórias individuais de Diderot e d'Holbach, de modo geral, o Iluminismo não apoiou o ateísmo; ele o rejeitou. Mas, nesse repúdio, suas principais figuras contaram a Igreja e a religião confessional não como aliadas, mas como adversárias."

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essa descoberta teve no mundo do século XVII. Os seres humanos não estavam mais no centro do universo, com tudo girando ao redor deles. Se não estamos no centro, talvez o universo não exista para nós. Talvez não sejamos a razão de sua existência. Essas preocupações levaram a todos os tipos de direções. Nosso foco será o surgimento da razão sem ajuda como o meio pelo qual a verdade e a realidade poderiam ser construídas e o meio pelo qual poderíamos assegurar nossa precária posição de estarmos no centro da realidade - uma posição que levou à marginalização da Trindade.

A busca de Descartes por um fundamento indubitável no qual basear a verdade e a realidade o levou à descoberta de sua própria existência inegável: cogito, ergo sum. Sua ênfase no sujeito pensante (o ego e a res cogitans) estabeleceu a subjetividade como a abordagem moderna da verdade. Esse movimento marcou a entrada na modernidade e significou que o conhecimento de Deus seria alcançado por meio da subjetividade humana. Em suas Meditações sobre a Primeira Filosofia, Descartes argumentou que devemos questionar e duvidar de tudo para chegar às ideias que são tão claras e distintas que não podem ser duvidadas. Essas ideias que não podem ser duvidadas servem como base de sua filosofia e compreensão da realidade. Para Descartes, tudo pode ser duvidado, exceto o eu como uma coisa pensante, um sujeito que põe em dúvida todas as coisas. Depois de um longo exercício de duvidar do mundo, do céu, da terra, da mente e até mesmo de seu próprio corpo, Descartes se aventura a perguntar se ele mesmo existe. E é nessa pergunta que ele encontra sua descoberta: "Finalmente eu a descobri - o pensamento; somente ele é inseparável de mim. Eu sou, eu existo - isso é certo."42 Descartes poderia duvidar de tudo o que deriva dos sentidos, mas não poderia duvidar de que ele é uma coisa pensante.

A partir da certeza de sua própria existência como ser pensante, Descartes prosseguiu em suas Meditações para apresentar dois argumentos para a existência de Deus: um argumento da causalidade e um argumento

42

René Descartes, "Meditations on First Philosophy", Philosophical Writings, trans. John Cottingham (Cambridge: Cambridge University Press, 1984), 2:18.

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do ser de Deus (o que Kant chamou de argumento ontológico).43 O argumento causal de Descartes para a existência de Deus começa com sua ideia inata de que existe um ser que é eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador de todas as coisas que existem além Dele. Descartes então declara um axioma crucial de causa e efeito: "Agora é manifesto pela luz natural que deve haver pelo menos uma parte - realmente - na causa eficiente e totalmente no efeito dessa causa. Pois de onde, eu pergunto, o efeito poderia obter sua realidade, se não da causa? E como poderia a causa dar a realidade ao efeito a menos que a possuísse?"44 Disso se segue, argumenta Descartes, que algo não pode surgir do nada (todo efeito deve ter uma causa anterior), e o que é mais perfeito, ou seja, o que contém mais realidade em si mesmo, não pode surgir do que é menos perfeito (um efeito não pode desfrutar de um estado de ser maior do que sua causa). Descartes dá o exemplo de uma pedra. Uma pedra (efeito) deve ser produzida por algo (causa) que contenha formal ou eminentemente tudo o que pode ser encontrado na pedra. Possuir características de pedra significa ela existir literalmente; possuir características de pedra eminentemente significa possuí-la em alguma forma superior. Além disso, continua Descartes, mesmo que a pedra não exista, a ideia de pedra só poderia existir na mente humana se alguma causa que possua pelo menos tanta realidade quanto a concebida na pedra a colocasse lá.45 Depois de uma extensa consideração da realidade corpórea e finita, Descartes conclui que todas as suas ideias de objetos como a pedra ou quaisquer outras substâncias finitas estão contidas nele acima de tudo, o que significa dizer que, na ordem do ser, Descartes está acima da pedra e de qualquer outra ideia que ele tenha de uma substância finita.46 Nesse ponto, Descartes se volta para a ideia de Deus.

43

Os argumentos Meditations III e V também são encontrados no Discourse, parte IV, e nos Principles, parte 1, §§14-21. Nessa última obra, Descartes inverte a ordem dos argumentos, começando com o argumento ontológico.

44 Descartes "Meditações" 2:28. Descartes acrescentou o texto entre colchetes em edições posteriores de sua obra.

45 Descartes "Meditações" 2:28.

46 Descartes "Meditações" 2:31.

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Portanto, resta apenas a ideia de Deus; e devo considerar se há algo na ideia que não poderia ter se originado em mim mesmo. Com a palavra "Deus", entendo uma substância que é infinita, “eterno, imutável,” independente, supremamente inteligente, supremamente poderoso e que criou tanto a mim mesmo quanto a tudo o mais (se é que existe algo mais) que existe. Todos esses atributos são tais que, quanto mais cuidadosamente me concentro, menos possível parece que possam ter se originado apenas de mim.

Portanto, a partir do que foi dito, deve-se concluir que Deus existe necessariamente.47

Deus deve existir porque não há como Descartes, como uma substância finita, explicar a existência de uma substância infinita, cuja realidade é formal e eminentemente maior do que ele. Para Descartes, o argumento causal, quando corretamente considerado, demonstra a existência necessária de um ser infinito, eterno, imutável, independente, supremamente inteligente e supremamente poderoso que criou todas as coisas. Ele chama esse ser não pessoal de Deus.

O segundo argumento de Descartes para a existência de Deus é o conhecido argumento ontológico. Ele começa ensaiando as várias ideias produzidas por sua mente. Se ele tem em sua mente a ideia de forma e número, entre outras coisas, e pode provar coisas sobre elas, não pode, da mesma forma, demonstrar a existência necessária de Deus pelo simples fato de ter a ideia de Deus em sua mente? Por exemplo, Descartes não apenas tem a ideia de um triângulo em sua mente, mas também sabe coisas claras e distintas sobre o triângulo: seus três ângulos são iguais a dois ângulos retos; sua hipotenusa subtende seu maior ângulo. Certamente, afirma ele, por meio de um esforço semelhante, a existência de Deus pode ser conhecida com “o mesmo nível de certeza que até agora atribuí às verdades da matemática".48 A medida da verdade e da certeza é a

47

Descartes "Meditações" 2:31. Descartes acrescentou o texto entre colchetes em edições posteriores de sua obra.

48 Descartes "Meditations" (Meditações) 2:45.

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matemática, e Descartes pretende alcançar um argumento para a existência de Deus pelo menos no mesmo nível de certeza.49 Ele prossegue com seu argumento considerando o que é próprio da essência ou do ser de Deus. Ele escreve: É bastante evidente que a existência não pode ser separada da essência de Deus mais do que o fato de que seus três ângulos são iguais a dois ângulos retos pode ser separado da essência de um triângulo, ou do que a ideia de uma montanha pode ser separada da ideia de um vale. Portanto, é uma contradição pensar em Deus (ou seja, um ser supremamente perfeito) sem existência (ou seja, sem perfeição), assim como é pensar em uma montanha sem um vale.50

Descartes reconhece que seus pensamentos não podem impor a necessidade às coisas. Em outras palavras, só porque ele tem esses pensamentos sobre a essência e a existência de Deus, isso por si só não explica a existência necessária de Deus. O mesmo se aplica a uma montanha e a um vale. Descartes revisa sua afirmação à luz disso e conclui que seus pensamentos revelam a inseparabilidade da essência e da existência de Deus e a inseparabilidade de uma montanha e de um vale.

O que explica essa inseparabilidade não é a necessidade imposta por seus pensamentos, mas sim a necessidade da própria coisa. A montanha, como uma massa de terra projetada, é definida apenas em relação a um vale, de modo que, se não houvesse um vale, não haveria montanha, per definitionem. O mesmo se aplica à essência e à existência de Deus. Portanto, não somos livres, argumenta Descartes, para pensar em Deus sem existência. Se Deus é um "ser supremamente perfeito", Ele não pode ser 49

Agostinho diz algo semelhante nas Confissões. Ele escreve: "Eu queria ter tanta certeza sobre coisas que não podia ver quanto tenho certeza de que sete e três são dez" (VI.6). Agostinho tem esse pensamento antes de sua conversão ao cristianismo. Ele continua criticando essa ideia de conhecer a verdade com certeza matemática e, em vez disso, enfatiza a necessidade de fé nas Escrituras.

Agostinho, Confessions, trans. Henry Chadwick (Oxford: Oxford University Press, 1992), 95-96.

50 Descartes "Meditações" 2:46.

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concebido sem uma "perfeição suprema". E, para Descartes, a existência é uma das perfeições.51 Portanto, Deus necessariamente existe.

O significado do que foi dito acima tem muito pouco a ver com o sucesso dos argumentos de Descartes para a existência de Deus e tudo a ver com maneira como ele aborda esses argumentos e por que ele os apresenta em primeiro lugar. Devemos nos preocupar com o papel desempenhado por Deus na construção da realidade de Descartes. Ele adota um dualismo entre mente e corpo - ao qual se refere como a "distinção real".52 Para Descartes, a característica mais básica da "matéria" é a extensão. Para ele, existem duas substâncias: a mente, a faculdade de pensar, que não se estende fisicamente, e a matéria não pensante, que estende. O corpo é matéria, ele se estende fisicamente e, portanto, existe uma distinção real entre mente e corpo. Descartes explica, Assim, simplesmente por saber que existo e ver, ao mesmo tempo, que absolutamente nada mais pertence à minha natureza ou essência, exceto o fato de eu ser uma coisa pensante, posso inferir corretamente que minha essência consiste apenas no fato de eu ser uma coisa pensante. É verdade que posso ter (ou, para antecipar, que certamente tenho) um corpo que está intimamente ligado a mim. Mas, ainda assim, por um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou simplesmente uma coisa pensante e não estendida; e, por outro lado, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que ele é simplesmente uma coisa estendida e não pensante. E,

51

Esse é o ponto criticado por Kant. Ele argumentou que a existência não é um predicado e, portanto, não é uma das perfeições. Um predicado é um atributo de algo, e todo atributo pressupõe a "existência" desse algo. Cancele a existência e você cancelará a própria coisa com todos os seus predicados. De acordo com Kant, quando Descartes postula a "existência" como um predicado e uma das perfeições, ele não faz nada mais do que uma tautologia. Kant, Critique of Pure Reason, 563-69.

52 Descartes "Meditações" 2:50. A frase vem do título da Sexta Meditação de Descartes e é usada em todo o seu tratado para se referir à distinção entre a mente e o corpo.

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portanto, é certo que sou realmente distinto de meu corpo e posso existir sem ele.53

Aqui começamos a entender a função da doutrina de Deus de Descartes e o tipo de "Deus" que ele é. Descartes começou seu tratado com a dúvida, questionando tudo para chegar ao que é claro e distinto.

Ele concluiu que a única coisa que com certeza sabia era sua própria existência como pensante. A partir daí, sua busca continuou questionando a existência de todas as outras ideias que ele tinha. Ele não podia ter certeza da existência do mundo externo ou mesmo da existência de seu próprio corpo. Algo precisava conciliar essas duas coisas: o sujeito pensante e a possibilidade do mundo externo. Para Descartes, essa coisa era Deus. Sua atenção se voltou para a ideia de Deus e prosseguiu com um argumento causal e ontológico para demonstrar a existência necessária de Deus. O Deus de Descartes é um ser supremamente perfeito, possuindo todas as perfeições, o que significa, principalmente, que Ele é um Deus que não pode mentir. Portanto, essas ideias do mundo externo, incluindo o corpo de Descartes, são verdadeiras e existem, porque o Deus não enganador e supremamente perfeito não o teria dado essas ideias inatas se elas não fossem verdadeiras.54 O movimento final de Descartes é significativo. Michael Buckley comenta: "Este é um momento revolucionário na filosofia ocidental. Não é o universo sensível que é a evidência de Deus, mas a natureza de Deus que é a garantia do universo sensível."55 Para Descartes, a natureza de Deus atende às suas necessidades filosóficas: Deus é o que é para que o mundo de Descartes possa ser o que ele pensa que é. Deus é um meio para um fim - a marca registrada de todos os argumentos modernos a favor de Deus. Embora Descartes não rejeite formalmente a Trindade, sua visão sobre Deus se mostrou insatisfatória para muitos no século XVII. Leibnitz achava que seu conceito de Deus se aproximava muito do conceito de Deus de Spinoza, e que ninguém deveria desejar um Deus como esse.56 Para Leibnitz, o Deus de Descartes desempenha um papel tão insignificante 53

Descartes "Meditations" (Meditações) 2:54.

Descartes "Meditações" 2:48-49.

55 Buckley, At the Origins of Modern Atheism, 92.

56 Leibnitz, Philosophical Works of Leibnitz, 8-10.

54

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em sua construção da realidade que leva apenas ao ateísmo. Leibnitz está certo. O ser divino construído por Descartes é um produto de seu próprio raciocínio. Cada perfeição adequada é atribuída a esse Deus, mas o que essas perfeições significam? Esse teísmo filosófico não pessoal está muito distante da confissão do Cristo crucificado de Paulo, cujo poder é aperfeiçoado na fraqueza e em quem os fiéis confessam, pelo Espírito Santo, o poder e a sabedoria de Deus. A construção filosófica da onipotência de Descartes é o poder maior e que se estende muito além de nossa força e poder; não é o tipo de poder que abrange a condescendência, o sofrimento e a cruz.

Ao ver o ser divino de Descartes - e a lista poderia incluir várias outras figuras da modernidade - é difícil não concordar com a estimativa de Ludwig Feuerbach de que "o homem faz um deus daquilo que ele não é, mas gostaria de ser".57 O tipo de teologia apresentada por Descartes e outros ao longo do período moderno é a projeção e a objetivação das necessidades do próprio homem para garantir a verdade da realidade construída pela mente humana. Deus se torna a resposta para nossas ansiedades e deficiências. Quando atingimos o limite de nosso controle, de nosso poder sobre a realidade autoconstruída, quando não podemos ir além, quando o medo e a impotência convergem, aí colocamos Deus. Por exemplo, o sistema de Descartes precisa de um Deus que não engana, mas, como vimos, isso tem menos a ver com Deus e mais com as exigências epistemológicas de Descartes. Da mesma forma, Kant precisa de Deus como base da moralidade humana para evitar a anarquia moral ou o relativismo. O sistema de ética de Kant, em consonância com o subjetivismo do período moderno e sua preocupação com a liberdade, se distancia da tradição cristã clássica, que argumenta que nosso comportamento ético é bem-sucedido quando nossas vontades são conformadas pela graça à vontade de Deus. Kant vê isso como coerção externa e, em vez disso, enfatiza a autonomia do agente moral. Para que ele fundamentasse sua ética em um princípio absoluto e universal (o imperativo categórico), mantivesse a liberdade do agente moral agindo de 57

Feuerbach, Lectures on the Essence of Religion, trans. R. Manheim (Nova York: Harper and Row, 1967), 234.

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acordo com seu próprio dever autoimposto e insistisse em um telos para a comunidade ética, ele precisou colocar Deus.58 Tanto para Descartes quanto para Kant, Deus é uma ferramenta intelectual necessária para dar coerência a seus respectivos projetos. Novamente, é difícil ver como esses usos modernos de Deus não são suscetíveis à crítica de Feuerbach: "Deus é a natureza interior manifestada, o eu expresso de um homem - a religião - o solene desvelamento dos tesouros ocultos de um homem, a revelação de seus pensamentos íntimos, a confissão aberta de seus segredos de amor."59 Quando Deus é o mero produto do pensamento humano, quando a revelação é substituída pela arrogância do racionalismo, que outro Deus poderia surgir senão "o espelho do homem"? 60 As Escrituras advertem sobre isso: "Os que fazem [ídolos] tornam-se como eles, assim como todos os que neles confiam" (Sl 115.8). O Deus de Descartes consegue o que Descartes, o homem, não conseguia, mas que ele desejava desesperadamente: um certo fundamento de verdade e realidade. Mas como seu Deus conseguiu isso? Será que essa conquista tem algo a ver com esse Deus? Não. A conquista vem de Descartes, que atribui perfeições a esse ser não pessoal e conclui que, como esse ser possui tais perfeições, ele garante o restante da realidade.

Descartes está no início da virada para a modernidade. Ele é um representante do racionalismo, mas de forma alguma único. Embora admirado pela trajetória que traçou, suas conclusões se mostraram insatisfatórias para muitos em sua época. Blaise Pascal, conhecido por sua sagacidade, declarou que ele era "inútil e incerto".61 Leibniz, que preferia misturar elogios e críticas ao discutir Descartes, rotulou sua filosofia como

58

Para um conciso resumo de ética de Kant veja James M. Byrne, Religion and the Enlightenment (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 1996), 214-226.

59 Feuerbach, The Essence of Christianity, trans. George Eliot (Nova York: Torchbook, 1967), 12-13. Para uma discussão mais aprofundada sobre Feuerbach, consulte Walter Kasper, The God of Jesus Christ (Nova York: Crossroad, 1986), pp. 28-30, e Kevin J. Vanhoozer, Remythologizing Theology: Divine Action, Passion, and Authorship (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), 18-21.

60 Feuerbach, Essence of Christianity, 63.

61 Pascal, Pensées, 887; Blaise Pascal, Pensées (Nova York: Penguin Books, 1995), 275.

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a "antessala" da verdadeira filosofia.62 Isso significava que era preciso "passar" por Descartes para chegar à verdade, mas também que não se deveria demorar muito se o objetivo fosse a verdade.63 Locke zombou do exercício de Descartes de duvidar de sua própria existência e de seu corpo: "Se alguém fingir ser tão cético a ponto de negar sua própria existência (pois realmente duvidar é manifestamente impossível), deixe-o, por mim, desfrutar de sua amada felicidade de não ser nada, até que a fome ou alguma outra dor o convença do contrário."64 Nada disso deve nos surpreender. O mundo estava se movendo rapidamente. A modernidade veio para ficar, e o nome de Descartes assumiria um lugar icônico na narrativa da ascensão da modernidade.

CONCLUSÃO: CONHECER E FALAR SOBRE DEUS HOJE

Se quisermos falar corretamente sobre nosso Deus Triúno no século XXI, precisamos entender os problemas herdados da modernidade. A busca de Descartes por ideias claras e distintas sobre as quais construir a verdade e a realidade tornou-se uma marca registrada do período moderno. Todos os pensadores sérios da época participaram do esforço, mesmo que tenham se afastado uns dos outros, muitas vezes de forma significativa, para alcançar essas ideias "claras e distintas". Para muitos, essa busca implicou o abandono do Deus da Bíblia. Quando chegamos a Kant, a doutrina da Trindade é declarada irrelevante e potencialmente prejudicial. Quando figuras como Schleiermacher e Hegel tentam resgatar a Trindade, o símbolo da Trindade é sempre o mesmo. O resíduo da modernidade permanece com o lugar equívoco da conversa sobre Deus em nossos dias e as construções subjetivistas da realidade que passaram do subjetivismo da modernidade (universalista do ponto de vista) para a subjetividade (particularista do ponto de vista). A mistura dessas duas perspectivas produz espiritualidades pessoais ou teologias 62

Leibnitz, Philosophical Works of Leibnitz, 1-2, 108.

Leibnitz, Philosophical Works of Leibnitz, 7-8, 107. Em sua época, Leibnitz foi acusado de tentar arruinar a reputação de Descartes em um esforço para estabelecer sua própria importância. Consulte Leibnitz, Philosophical Works of Leibnitz, 107-11.

64 Locke, An Essay Concerning Human Understanding, IV.X.2 (Oxford: Oxford University Press, 1979), 619-20.

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construídas ao acaso a partir de iconografia emprestada e impulsos espirituais pagãos.

Devemos pensar na modernidade como uma revolução cultural e não apenas como um período caracterizado pelo surgimento da razão e por descobertas científicas notáveis. A pessoa como um todo foi reconcebida durante o Iluminismo. Os problemas descritos no início deste capítulo são nossos porque somos todos filhos da modernidade. É claro que isso não significa que abraçamos os cânones da modernidade ou todas as críticas da pós-modernidade, mas nos enganamos se achamos que nossas suposições não examinadas são as de Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa ou Martinho Lutero. Não são. O mesmo se aplica aos que estão nos bancos da igreja. As pessoas que visitam nossas igrejas trazem consigo uma bagagem intelectual. Falar de Deus de forma equívoca em nossas pregações, cânticos e orações aumentará sua confusão doutrinária e espiritual. A linguagem que cede demais à cultura facilmente se desvincula da narrativa normativa do Espírito sobre a identidade trina de Deus, a paz de Cristo ou o amor cristão, e sucumbe a ídolos intelectuais e culturais. A liberdade para os americanos do século XXI significa liberdade de restrições morais, "liberdade como uma oportunidade para a carne" (Gl 5.13); porém, verdadeira liberdade, como Paulo nos diz, é ser libertado "em Cristo" para amar e servir o próximo que Deus nos deu em nossas vocações. Nossa linguagem e nossa doutrina precisam estar fundamentadas nas Escrituras; nossa confissão precisa falar dessa doutrina no local histórico e cultural em que vivemos. Só poderemos evitar grandes frustrações ao fazer isso se tivermos uma noção da desilusão e das suposições equivocadas dos lugares em que vivemos.

Nos próximos capítulos, retomaremos a questão brevemente esboçada acima com Descartes: como podemos conhecer e falar sobre Deus? Hoje em dia as discussões sobre Deus geralmente prosseguem com a distinção tradicional entre o conhecimento natural e o revelado de Deus.

Em que sentido, porém, essa distinção é tradicional? Em que sentido ela é bíblica? Quase todos os teólogos ao longo da história da igreja reconheceram a legitimidade do conhecimento natural de Deus. A questão mais significativa, e a que será abordada nos próximos quatro capítulos, é o que esse conhecimento significa e como ele está relacionado 29

- se é que está relacionado - ao conhecimento revelado. Em outras palavras, qual é a utilidade, o propósito do conhecimento natural de Deus?

Ele nos ajuda a conhecer e falar sobre Deus? Além disso, qual é a relação entre nossa fé e a faculdade da razão? A virada da modernidade para o assunto distorceu a fé de duas maneiras. Os racionalistas colocaram a fé na razão; os pietistas colocaram a fé na fé. Ambas as alternativas são traiçoeiras: ambas colocam em risco a identidade bíblica de Deus e uma compreensão correta de nós mesmos.

Intimamente relacionado à questão de como conhecemos Deus está o modo como falamos sobre Ele. Quando dizemos que Deus é sábio e Sócrates é sábio, como entendemos o termo sábio? Nesse exemplo, temos dois sujeitos distintos, Deus e Sócrates, mas um predicado, sábio.

No domínio do conhecimento natural de Deus, sem ajuda da razão, é justo perguntar o que uma pessoa quer dizer quando declara que Deus é sábio, bom, amoroso e assim por diante. Ou essas palavras, que são comumente usadas tanto para Deus quanto para o homem, significam algo ou não. Se elas não têm significado, então não há sentido em falar sobre Deus. Se elas significam algo, o que todos os envolvidos em tais discussões reconhecem que significam, então a pergunta é: o que elas significam? Elas são usadas de forma unívoca ou analógica? O Capítulo 5 aborda essa questão em detalhes. Embora a discussão seja técnica, ela é necessária para uma compreensão adequada do que nossas palavras podem ou não significar quando usadas para falar sobre Deus.

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CONTEÚDO

2 REFLETINDO SUPERFICIALMENTE ATRAVÉS DE UM ESPELHO: OS PAIS E O CONHECIMENTO DE DEUS

Os teólogos distinguem entre o conhecimento natural e o conhecimento revelado de Deus. A questão subjacente a essa distinção é se a razão humana possui a capacidade de conhecer, além das Escrituras, a existência de Deus e algo sobre Sua essência. Ao longo da história da igreja, duas estratégias básicas foram utilizadas para responder afirmativamente a essa pergunta. Os teólogos apresentam argumentos para a existência necessária de Deus, seja observando as obras e a ordem da criação para deduzir a existência de um criador, arquiteto e designer inteligente, seja olhando para dentro de sua própria alma perturbada e sua consciência inata de virtude, vício e mortalidade. Ambas as abordagens encontram sua justificativa na epístola de Paulo aos Romanos. No primeiro capítulo, Paulo afirma que os atributos invisíveis e o poder divino de Deus foram revelados aos gentios desde a criação do mundo através das coisas que foram feitas (Rm 1.19-20). Paulo argumenta ainda, no segundo capítulo, que os gentios têm a lei escrita em seus corações e, portanto, são acusados por suas consciências e pensamentos (Rm 2.15).

Muito mais está em jogo nessa discussão sobre o conhecimento natural do que o fato de Deus ter ou não se dado a conhecer a nós por meio da natureza e da consciência. Todos os autores analisados nos próximos capítulos compartilham essa convicção básica. A questão mais urgente, aquela que define nossa visão teológica e, portanto, afeta nossa compreensão de assuntos como o evangelho e a vida cristã, a questão que está por trás de muitos de nossos julgamentos teológicos hoje, diz respeito ao que esse conhecimento representa e seu papel na reflexão dogmática.1 1

Robert Preus chama isso de problema apologético com o conhecimento 31

Em outras palavras, como usamos o conhecimento natural? O que nossas conclusões sobre o conhecimento natural nos dizem sobre nós mesmos e sobre a necessidade da revelação de Deus? Quando privilegiamos essas perguntas, a discussão sobre o conhecimento natural tem menos a ver com a afirmação de alguma consciência do divino pela razão sem a revelação e mais com a visão teológica, estruturas de pensamentos e compromissos sobre tópicos como as Escrituras, a fé, a razão e o evangelho, entre outras coisas.

A igreja não tem sido unânime nessas questões. Os Pais do século IV e os teólogos medievais pensam de forma diferente sobre o conhecimento natural de Deus. Os Pais do século IV, escrevendo em uma época de debates acalorados sobre a identidade bíblica de Deus, usam a afirmação de Paulo sobre o conhecimento natural de Deus para mostrar as deficiências desse conhecimento à parte de Cristo. Para esses escritores, a encarnação torna possível nosso conhecimento apropriado de Deus. O conhecimento natural e o revelado não são complementares no sentido de que um prepara para o outro: a Trindade nunca complementa uma noção genérica e impessoal de divindade obtida pela razão. O conhecimento natural nos prepara para uma discussão adequada sobre a identidade bíblica de Deus apenas no sentido de expor nossas limitações de criaturas para chegar a qualquer conhecimento de Deus, além da própria descida de Deus até nós na encarnação. Para esses Pais do século IV, o conhecimento natural serve ao importante propósito de humilhar nossa opinião exaltada da razão sem ajuda da revelação. Os teólogos medievais, por outro lado, buscam algo bem diferente. A questão sobre o conhecimento natural de Deus: esses teólogos perguntam se a existência de Deus pode ser demonstrada por meio de provas racionais além das Escrituras. Essas provas a priori e a posteriori visam estabelecer a natural; a segunda questão identificada abaixo ele chama de problema semântico (The Theology of Post-Reformation Lutheranism [St. Louis: CPH, 1972], 2:34-45). Preus também afirma um terceiro problema com o conhecimento natural, o problema conceitual, que pergunta se a essência de Deus pode ser definida (45-51), e responde: "A teologia luterana não faz nenhuma tentativa de definir Deus e Sua essência" (45). Não abordarei esse terceiro problema separadamente, mas o incluirei na discussão ao longo do texto.

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necessidade lógica da existência de Deus ou, no mínimo, a existência necessária de algo a que as pessoas normalmente atribuem o nome "Deus". Posteriormente, as Escrituras complementam esse conhecimento natural com a Trindade. Essa visão teológica medieval estabelece um ponto de encontro entre Deus e o homem na aquisição do conhecimento legítimo sobre Deus. Nós nos tornamos colaboradores de Deus para conhecê-Lo. Os próximos capítulos respondem às perguntas acima, examinando atentamente os Pais, os teólogos medievais e os reformadores luteranos. Existem duas trajetórias na história da igreja. Um grupo exalta a razão humana separada da fé e o outro localiza a razão como serva da fé. Quando a fé e a razão se separam, ambas sofrem; quando a fé não mais ordena e dirige a razão, seguem-se a irracionalidade e a anarquia. A separação da fé e da razão pertence à modernidade e, especialmente, aos nossos dias. Para os Pais do século IV, especialmente Atanásio e Gregório de Nazianzo, e para nossos reformadores luteranos, dependemos da fé para conhecer Deus. Gregório escreve: "A fé, mais do que a razão, nos guiará, se, isto é, você tiver aprendido a fraqueza da razão para lidar com assuntos bem próximos e tiver adquirido conhecimento suficiente da razão para reconhecer coisas que ultrapassam a razão."2 Nos próximos capítulos, vamos nos concentrar na questão do conhecimento natural e revelado. Somente depois de estabelecer como conhecemos e confessamos Deus corretamente é que poderemos nos voltar de uma maneira mais proveitosa para a identidade bíblica da Trindade no Antigo e no Novo Testamento.

O ARGUMENTO DAS ESCRITURAS

No primeiro capítulo de sua carta aos Romanos, Paulo discute brevemente o conhecimento de Deus como criador. Essa discussão ocorre em meio a uma reflexão mais ampla de Paulo sobre a universalidade do pecado (1.18-3.20). Todos pecaram, tanto judeus quanto gentios. Não há distinção. Todos carecem da justiça de Deus.

Ambos são indesculpáveis e sua condenação é justa. Nenhuma queixa 2

Gregório de Nazianzo Or. 28.28 (PPS, 60).

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pode ser feita contra Deus. Ninguém, especialmente os gentios, podem alegar que Deus era desconhecido para eles por que, como Paulo enfatiza, o que pode ser conhecido sobre Deus foi mostrado a eles pelo próprio Deus (1.19). Eles não podem negar essa revelação natural e, portanto, não podem reclamar contra Deus pela ira que veio sobre eles (1.18).

O que Deus revelou aos gentios? Paulo escreve: "Porque os seus atributos invisíveis, a saber, o seu eterno poder e a sua natureza divina, claramente se percebem, desde a criação do mundo, nas coisas que foram feitas. Portanto, eles não têm desculpa" (1.20). As coisas invisíveis de Deus (τὰ ἀόρατα αὐτου), que Paulo identifica como o poder, os atos e os atributos eternos de Deus (ἥ τε ἀίδιος αὐτοῦ δύναμις καὶς),3 tornaram-se visíveis desde a criação do mundo "nas coisas que foram feitas" (τοῐς).

Esse fato, insiste Paulo, os deixa sem desculpa. Deus graciosamente tornou conhecidos Seu poder e atributos invisíveis por meio de Sua criação visível, na chamada ποιήματα. Com base na abundância de evidências visíveis e temporais que cercavam os gentios, no mínimo, eles deveriam ter concluído, que existe um Deus, diferente de todos os chamados deuses pagãos, que não é visível, mas que fez o visível e, portanto, que se destaca da criação como aquele que criou todas as coisas.

Eles deveriam ter deduzido que esse Deus era muito diferente de suas noções e idolatrias pagãs.4 Essa revelação, no entanto, foi rejeitada pelos gentios (1.21). Sua rejeição a esses raios de luz os deixou em trevas (1.21).

Embora reivindicassem sabedoria, eram insensatos (1.22) e trocaram a glória de Deus por uma idolatria criada por eles mesmos (1.23). Eles rejeitaram o Criador e adoraram a criação; trocaram a verdade por uma mentira. O falso conhecimento de Deus sempre leva à falsa adoração e a uma ética pervertida (1.24-32).

Vale a pena enfatizar aqui o que é e o que não é revelado por Deus 3

Paulo usa θειότης em vez de θεότης que ele usa em Colossenses 2.9, "Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade." θειότῆ refere-se mais especificamente aos atos e atributos de Deus (cf. τὰ θεῖα). August Graebner, "Doctrinal Theology: Theology", Theological Quarterly 2/1 (1898).

4 Roland Ziegler, "Natural Knowledge of God and the Trinity", Concordia Theological Quarterly 69/2 (2005): 145-46.

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aos gentios, que estão perdidos em suas próprias idolatrias construídas, rejeitando a verdade e se apegando à escuridão de sua própria falsidade.

Para colocar isso em categorias dogmáticas tradicionais, podemos fazer três perguntas sobre Deus: An sit Deus? Quid sit Deus? Qualis sit Deus? A primeira pergunta (Existe um Deus?) diz respeito à existência de Deus; a segunda (O que é Deus?), à Sua natureza; e a terceira (Que tipo de Deus é esse?), aos Seus atributos. Confessamos a coeternidade e a coigualdade do Pai, do Filho e do Espírito Santo como um só Deus ao responder à segunda pergunta. Somente conhecendo nosso Deus Triúno dessa forma é que passamos a conhecer Sua justiça e a salvação disponibilizada para nós em Jesus Cristo e entregue pelo Espírito Santo. Esse tipo de conhecimento é um conhecimento salvador porque é centralizado na pessoa e na obra de Cristo. Esse conhecimento é trinitário, pois é a revelação do Pai no Filho pelo Espírito Santo, que foi enviado, por sua vez, pelo Pai e pelo Filho para nos apontar sempre para o Filho, o único que torna o Pai e o Espírito conhecidos para nós.

O conhecimento descrito por Paulo em Romanos 1 não está respondendo à pergunta Quid sit Deus? e, por essa razão, é um conhecimento não trinitário de Deus. Mas que tipo de conhecimento é esse? Não é de forma alguma um conhecimento salvador. De fato, não é a justiça de Deus que é revelada aos pagãos, mas sim a ira de Deus (ὀργὴ θεοῦ): "Porque do céu se manifesta (ἀποκαλύπτεται) a ira de Deus sobre toda impiedade e injustiça dos homens que, pela sua injustiça, detêm a verdade" (Rm 1.18). O que Deus revela aqui é um conhecimento que mata, que condena e esmaga. Essa revelação deixa absolutamente claro que Deus existe (An sit Deus?) e que esse é um Deus cujo poder é eterno, que dá vida e a sustenta e, de fato, cuja ira se levanta contra toda injustiça (Qualis sit Deus?). Ver Deus fora de Cristo, o que só acontece quando se conhece o Quid sit Deus, é ver a ira. Uma vez que esse conhecimento é adquirido, segue-se o desespero. Não há escapatória daquele cujo poder eterno fez todas as coisas e cuja ira se levanta contra a injustiça. Para tal pessoa, as palavras do salmista tornam-se intensamente insuportáveis: Para onde fugirei da Tua presença?

Embora os teólogos se refiram ao conhecimento de Deus descrito 35

por Paulo em Romanos 1, como conhecimento natural de Deus, seria mais correto chamá-lo de revelação natural. Esse conhecimento de Deus não vem de dentro do homem - não é inato - mas de fora do homem, do próprio Deus. É Ele quem faz a revelação (1.18) e a divulgação (1.19) por meio das coisas que Ele mesmo fez e nenhum outro (1.20). Por essa razão, a ignorância e a impiedade dos gentios não têm desculpa. Eles não sabem o que os céus declaram e o céu acima proclama (Sl 19.1); eles permanecem ignorantes quanto ao que revelam os animais do campo, as aves do céu, os peixes do mar e até mesmo os arbustos da terra (Jo 12.7-10). Se esse conhecimento dependesse de nós, apresentaríamos todo tipo de desculpas para nossa ignorância. O argumento de Deus, no entanto, é que todos são indesculpáveis, tanto judeus quanto gregos, porque Deus se deu a conhecer por meio da natureza e da lei. Em ambos os casos, Ele é o revelador, e aqui Ele nos declara a suficiência de Sua revelação natural para nos dar a conhecer a Si mesmo. Neste ponto, buscar uma desculpa é acusar Deus de engano - trocar a verdade por uma mentira (1.25).

A revelação de Deus sobre si mesmo por meio da criação confronta o indivíduo em todos os lugares e a cada momento. Como seres criados, não podemos fugir da criação; ela é tão próxima e inevitável quanto o ar criado que respiramos (Jó 12.10; Dn 5.23; Sl 150.6). O testemunho de Deus nunca pode ser evitado. E se, no entanto, fechássemos os olhos? E se pudéssemos, de alguma forma, nos isolar desse conhecimento natural e revelado? Será que aqueles que nascem cegos não sabem da existência de Deus? Quase como se estivesse antecipando esse estratagema diabólico, em Romanos 2 Paulo direciona sua atenção para o nosso conhecimento inato da lei de Deus. Os gentios não possuíam as tábuas da lei, mas, mesmo assim, faziam "por natureza" (ϕύσει) as coisas exigidas pela lei (2.14). Eles eram uma lei para si mesmos.

Para os gentios, essa consciência da lei ou moralidade está "escrita em seus corações" e sua "consciência dá testemunho" disso (2.15).

Isso significa que existem ou existiram pagãos virtuosos que seguiram seus corações servindo e amando a Deus e ao próximo? Isso poderia significar, como Zwínglio supôs, que tais pagãos virtuosos eram

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salvos?5 Não. Tal conclusão não tem nenhuma semelhança com o argumento de Paulo (especialmente 1.24-32) ou como as Escrituras se expressam (Gn 6.5; Jr 17.9; Rm 14.23). O tipo de obras realizadas pelos gentios, que têm a lei escrita em seus corações, pertence à justiça civil e ao primeiro uso da lei. Amar a Deus e ao próximo pertence ao terceiro uso da lei, pois esse tipo de amor procede somente da fé. A Apologia assegura isso claramente: "é impossível cumprir a lei sem Cristo, e obras civis, caso feitas sem Cristo, não agradam a Deus”.6 O argumento de Paulo em Romanos 2 é que os gentios possuem uma consciência da lei escrita em seus corações. Esse conhecimento não vem de fora, mas de dentro. Ele continua enfatizando que eles possuem não apenas essa lei em seus corações, mas também uma consciência que julga as coisas que fazem conforme o conhecimento de seus corações. Esses julgamentos são os "pensamentos" que acusam ou procuram desculpas (2.15). Eles acusam quando a consciência julga contra as obras imorais praticadas; buscam por desculpas quando os êxitos morais são exagerados para tentar diminuir a consciência dos fracassos.

Como analisamos acima, Paulo usa os dois argumentos para mostrar a abrangência da presença de Deus na vida de todos. Os gentios, que não estão familiarizados com as Escrituras, confrontam o conhecimento de Deus externamente, na revelação que Deus fez de Si 5

Martin Chemnitz, Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:63, 67; Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and On the Trinity, trans. Richard Dinda (St. Louis: CPH, 2007), Exegesis II, §81-87, 8290; Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:376 n. 7. Gerhard cita a piada de Veit Winsheim: "Meus ouvintes, tomem cuidado com o céu dos zwinglianos. Eu não gostaria de viver lá, pois teria medo do porrete de Hércules" (83).

6 Ap. IV.184 (Tappert, 132). Cf. George Stoeckhardt, Commentary on the Epistle to the Romans, trans. Erwin W. Koehlinger (Ft. Wayne: Concordia Theological Seminary Press, n.d.), 26: "Mas mesmo que a consciência uma vez desculpe o homem, mesmo que os pagãos uma vez façam o que é exigido pela lei, essa justiça civil não permite nenhuma exceção à regra geral: por causa da queda de Adão, a natureza e a essência humanas são totalmente corruptas. A justiça civil não é o verdadeiro cumprimento da lei, não é a obediência do coração, mas apenas uma obra exterior, que também é encontrada onde o homem é desprovido de todo temor e amor a Deus. De forma alguma a justiça civil torna o indivíduo agradável diante de Deus."

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mesmo por meio das coisas que Ele criou, e internamente, por meio do testemunho de suas próprias consciências.7 Eles não têm desculpa. Não há para onde ir, não há para onde fugir das obras criadas por Deus e da voz de sua própria consciência. Eles podem fechar os olhos para a abundância do testemunho de Deus ao seu redor, mas não podem fugir das acusações da consciência. Como diz Agostinho, "Você [Deus] está mais perto de mim do que o meu eu mais íntimo".8 Somente a pessoa mais pervertida pode negar a existência de Deus. Somente o "tolo" pode dizer em seu coração: "Não há Deus" (Sl 14.1). O tolo, a pessoa desprovida de toda a sabedoria, profere uma mentira e habita na escuridão dessa mentira, acreditando o tempo todo que a escuridão é luz (Is 5.20).

Seguem-se atos abomináveis (Sl 14.1; Rm 1.24-32).

E, no entanto, Paulo deseja enfatizar que os gentios não conheciam Deus por meio dessa revelação externa e do testemunho interno. Roland Ziegler explica: O homem não conheceu Deus efetivamente por meio dessa revelação, não por causa das deficiências da revelação, mas por causa de sua natureza pecaminosa e distorcida. Nas mãos do homem, a revelação natural do verdadeiro Deus é transformada em um conceito idólatra de deus e deuses.

Portanto, o problema do homem não é simplesmente intelectual, mas é o pecado. O remédio para isso não é o retorno a uma teologia natural mais pura e melhor, mas a proclamação de Cristo.9

Os luteranos nunca perdem de vista a presença destrutiva do pecado. August Graebner enfatiza exatamente esse ponto: O mesmo Apóstolo que diz que as coisas invisíveis de Deus são vistas pela visão da mente (Rm 1.20) também ensina que a mente do homem natural é vã (Ef 4.17), seu entendimento 7

Gerhard se refere a esses dois tipos de conhecimento como o livro da natureza (conhecimento adquirido) e o livro da consciência (conhecimento inerente).

Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis II, §88, 91.

8 Augustine Confessions, III.6.11.

9 Ziegler, "Natural Knowledge of God", 156.

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se obscureceu (Ef 4.18), seu coração se endureceu, insensível às impressões (Ef 4.18), que o deus deste mundo cegou as mentes daqueles que não creem (2Co 4.4). A escrita de Deus ainda cobre cada centímetro do universo, mas a visão mental defeituosa do homem o impede de ver, mesmo com seus telescópios e microscópios, o que os céus e os grãos de mostarda declaram.10

Quando se pensa que a revelação natural de Deus é considerada mais do que é, o resultado é a teologia natural. O surgimento de tal disciplina, incorretamente excedida a partir do que Paulo descreve nestes dois capítulos, levou a demonstrações racionais ambiciosas da existência de Deus que preparam o caminho para uma descrição mais completa de Deus através das Escrituras. Os relatos modernos de Deus preferiram começar com um conceito não trinitário de ser absoluto ou sujeito absoluto - teísmo filosófico - que se acredita antecipar construtivamente a revelação bíblica do Deus Triúno ou talvez até mesmo encobrir essa revelação por completo, tornando supérfluo o ensino ortodoxo e bíblico da Trindade.

Há dois pontos que devem ser salientados. Primeiro, a garantia da revelação natural de Deus é a Escritura. O entendimento bíblico desse conhecimento equivale a pouco mais do que uma apreensão de Deus por meio da revelação da natureza ou do julgamento da consciência. Essa apreensão é apenas isso - um sentimento, uma suspeita, uma ideia nebulosa de que há algo mais neste mundo do que nós mesmos, que há alguém ou algo maior do que nós. Essa apreensão impede que muitos acreditem com certeza em seu ateísmo autoconstruído, mas raramente os leva além do agnosticismo expresso de forma grosseira. Isso me parece estar de acordo com as Escrituras. A Bíblia nunca sugere que esse conhecimento natural prepara o caminho para o evangelho ou que a 10

Graebner, "Doctrinal Theology". Graebner continua enfatizando que todo o nosso conhecimento sobre Deus, mesmo que disponível por meio da natureza, deve vir das Escrituras. Ele escreve: "Consideramos a Escritura como a única fonte da teologia cristã, também no artigo de Deo, e definimos a teologia propriamente dita como a doutrina da Sagrada Escritura a respeito do Deus verdadeiro".

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revelação bíblica do Deus Triúno complementa e completa o trabalho realizado por nossos dons racionais. Paulo argumenta enfaticamente que o conhecimento natural resulta em idolatria.

E aqui chegamos ao nosso segundo ponto. Apesar do que Paulo diz, alguns na história da igreja tentaram colocar o conhecimento natural em uma base mais segura. O uso ambicioso da razão humana pelos vários teólogos medievais, a declaração de Descartes de acreditar que apenas através de seu intelecto ele alcança a verdade - esses julgamentos teológicos, tão atraentes em nossos dias, precisam de um fundamento não escriturístico para a verdade, e isso eles conseguem colocando Deus como um objeto passivo do sujeito pensante. Quando o conhecimento natural de Deus é pensado nesses termos, Deus se torna nada mais do que os limites imaginativos do raciocínio humano. O conhecimento revelado de Deus labora exatamente na direção oposta: Deus permanece sujeito e revelador de Sua própria identidade, e nós somos os receptores da revelação graciosa e amorosa de Deus para nós. Por essa razão, Lutero, à sua própria forma, declarou que aqueles que se deleitam com o conhecimento natural sonham devaneios ociosos e são "os pássaros zombeteiros do diabo".11 Essas duas abordagens muito diferentes já estão presentes na igreja primitiva.

OS PAIS

Já no século II, os Pais apelaram, com diferentes níveis de entusiasmo, para a distinção entre o conhecimento natural e o revelado de Deus. Justino Mártir e Tertuliano exploraram avidamente as ideias compartilhadas ou noções comuns (communes sensus) entre os poetas e filósofos da antiguidade e as Escrituras canônicas.12 Poucos cristãos hoje se sentiriam confortáveis com seus esforços ambiciosos para localizar todos os ensinamentos centrais do cristianismo e, particularmente, a obra de Cristo na literatura pagã do mundo antigo. E ainda há muitos que não 11

The Gospel for the Festival of the Epiphany, Matthew 2:1-12,1522 (AE 52:162; WA 10/1:563.9).

12 Johann Gerhard oferece uma breve discussão sobre a semelhança entre a doutrina cristã e as ideias pagãs sobre a Trindade em Theological Commonplaces, Exegesis III, §30, 287-89.

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resistiriam ao argumento igualmente problemático de Tertuliano de que conhecemos Deus primeiro por meio do conhecimento natural, por meio da criação e de Suas obras criadas, e depois por meio das Escrituras: "Defendemos que Deus deve ser conhecido primeiro pela natureza (natura) e depois pela doutrina (doctrina), da natureza pelas obras, da doutrina pelo ensino oficial."13 Nem todos na igreja primitiva concordavam com a prioridade atribuída por Tertuliano à natureza em nosso conhecimento de Deus. O autor da Epístola a Diogneto, sobre o qual não sabemos nada além do fato de ter sido contemporâneo de Tertuliano, declara de forma apropriada que fora de Cristo não podemos conhecer Deus.14 A ênfase do autor na prioridade de Cristo para o conhecimento de Deus aparece em uma discussão sobre as reivindicações gregas e judaicas sobre Deus.15 Em outras palavras, ele faz essa declaração contra aqueles que afirmam conhecer Deus sem Cristo. Conhecer a Deus é conhecê-Lo como Pai, e isso nós conhecemos somente por meio do 13

Tertullian Against Marcion 1.18, ed., Ernest Evans (Oxford Oxford Press, 1972), 46. Ernest Evans (Oxford: Oxford University Press, 1972), 46.

14 A Epistle to Diognetus sobreviveu contra grandes probabilidades. O manuscrito que contém a Epístola estava sendo usado em 1436 para embrulhar peixes em um mercado em Constantinopla. Um jovem clérigo da Itália, felizmente, percebeu o valor do manuscrito e o comprou sem o peixe. A Epístola fazia parte de um códice maior que continha vinte e um outros escritos cristãos primitivos e estava agrupada com obras do pseudo-Justino Martir. O cardeal Johannes de Ragusa adquiriu o manuscrito e o levou para a Basiléia. Após a morte do cardeal, em 1442, Johannes Reuchlin, tio de Philipp Melanchthon, ficou de posse do manuscrito. Por fim, o manuscrito foi parar na biblioteca nacional de Estrasburgo e foi destruído durante o cerco prussiano em 1870. Embora o manuscrito original não exista mais, foram feitas cópias cuidadosas dele. Sobre a história do manuscrito, consulte Anders Klostergaard Petersen, "Heaven-borne in the World: A Study of the Letter to Diognetus", em In Defence of Christianity: Early Christian Apologists, ed. Jakob Engberg, Anders Klostergaard Petersen.

Jakob Engberg, Anders-Christian Jabobsen e Jörg Ulrich (Frankfurt am Main: Peter Lang, 2014), pp. 125- 138.

15 Um exemplo semelhante é encontrado na Vida de Antônio, do século IV, uma das obras mais lidas na igreja primitiva. Atanásio nos descreve a visita de filósofos gregos a Antônio no deserto. Os filósofos querem de Antônio "provas" e demonstrações racionais de Deus. Ele rejeita essa busca. A fé em Cristo é suficiente em si mesma e não busca provas por meio de argumentos. Athanasius, Life of Antony, trans. Robert Gregg (Nova York: Paulist Press, 1979), 89.

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Filho, pelo Espírito Santo.

Os caminhos divergentes tomados por Justino e Tertuliano, por um lado, e pelo autor da Epístola de Diogneto, por outro, percorrem toda a história do pensamento cristão. O que explica essa diferença? Por que respostas tão radicalmente diferentes à questão de como conhecemos Deus? Mais, é importante qual caminho escolhemos seguir? Duas questões se destacam e informam uma à outra. Para um luterano, a diferença mais notável entre Justino e Tertuliano e o autor da Epístola a Diogneto não são seus pensamentos diferentes sobre o conhecimento de Deus, mas sim seus pensamentos sobre o evangelho. O autor da Epístola a Diogneto atribui prioridade ao evangelho em nossas reflexões teológicas.

Ele destaca a grande troca entre Cristo e o pecador, e enfatiza que somente Cristo realiza nossa salvação por meio de Sua expiação substitutiva.16 Para esse autor, não há nenhum terreno comum a ser explorado, nenhuma continuidade entre o evangelho e o paganismo.

Quaisquer coisas salutares que possam ter sido conhecidas por meio da natureza foram todas corrompidas e enredadas na idolatria. O papel da natureza é secundário, nunca primário; para os fiéis, a natureza revela a atividade criadora e a misericórdia de Deus. São os fiéis que se maravilham com essa criação e cantam: "Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e os que nele habitam" (Sl 24.1). Justino e Tertuliano, por outro lado, não conseguem apreciar o evangelho. O céu de Justino não é muito diferente do de Zwínglio: ambos têm um lugar para Sócrates. Justino e

16

Epistle to Diognetus in The Apostolic Fathers, 2d ed., ed. Michael Holmes (Grand Rapids: Baker Academic, 1989), 302: "Em sua misericórdia, ele tomou sobre si os nossos pecados; ele mesmo entregou seu próprio Filho como resgate por nós, o santo pelos iníquos, o inocente pelos culpados, 'o justo pelos injustos' (1Pe 3.18), o incorruptível pelo corruptível, o imortal pelo mortal. Pois o que mais, a não ser a Sua justiça, poderia ter coberto nossos pecados? Em quem seria possível que nós, os iníquos e ímpios, fôssemos justificados, a não ser no Filho de Deus somente? Ó doce troca, ó obra incompreensível de Deus, ó bênçãos inesperadas, que a pecaminosidade de muitos seja escondida em um só homem justo, enquanto a justiça de um só justifique muitos pecadores!" Esse texto é citado com frequência pelos dogmáticos. Cf. Johann Gerhard, De Justificatione, Locus 19, §8 (Jena, 1613), 3:439 e §213, 3:696; Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1677), 6:503.

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Tertuliano localizam a salvação cristã na vida virtuosa, nas boas obras, em nosso esforço moral. Eles compartilham com os filósofos não apenas ideias sobre Deus extraídas da natureza, mas também um compromisso com a recompensa pela vida virtuosa. Para Justino, em particular, o cristianismo se torna a expressão mais clara e melhor da filosofia buscada por todos aqueles que se preocupam com a sabedoria e a virtude. O conhecimento de Deus e o evangelho sempre envolvem e informam um ao outro.

A segunda questão é o lugar da filosofia na teologia cristã. A busca por um senso comum entre e a filosofia e a teologia cristã para Justino e Tertuliano deriva dos epicureus e estoicos. Ela não é garantida pelas Escrituras, mas procede das melhores ideias da cultura circundante.

Compartilhamos aqui não apenas ideias semelhantes, mas também compromissos semelhantes sobre como o conhecimento é facilitado, justificado e aplicado. Os filósofos do mundo antigo discutiram longamente sobre os pontos de partida inatacáveis do conhecimento e da crença?17 Platão e Aristóteles rotularam esses primeiros princípios de hipóteses.18 Aristóteles argumentou ainda que não era possível demonstrar um primeiro princípio.19 Se isso pudesse ser demonstrado, dependeria de algo anterior, algo mais fundamental, e, portanto, não seria um primeiro princípio. O estabelecimento de primeiros princípios tornou-se necessário para qualquer apresentação corretamente ordenada da filosofia de uma pessoa. Para Epicuro e os epicuristas, esses primeiros

17

Para uma discussão mais completa do que se segue, consulte os vários artigos reunidos em Doubt and Dogmatism: Studies in Hellenistic Epistemology, ed. M. Schofield, M. Burnyeat, and J. Barnes (Oxford: Oxford University Press, 1980), especially Malcolm Schofield, “Preconception, Argument, and God,” 283– 308; Epistemology, ed. Stephen Everson (Cambridge: Cambridge University Press, 1990), capítulo 7-9; e John Behr, The Way to Nicaea (Crestwood, NY: St. Vladimir's Seminary Press, 2001), 30-35.

18 Cf. Platão Republic VI (510-11), trans. G. M. A. Graube (Indianápolis: Hackett Publishing, 1992), 183-85.

19 Aristotle Metaphysics 5.1.2 (1013a) e 4.4.2 (1006a). Para Platão, as hipóteses são confirmadas não pela demonstração prévia, mas pela persuasão de seu poder explicativo. Gail Fine, "Knowledge and Belief in Republic V- VII", em Everson, Epistemology, 109.

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princípios, essas hipóteses, tornaram-se os "critérios" ou "conceitos" necessários para estabelecer e examinar a verdade.20 Os estoicos adotaram essa teoria epicurista e distinguiram entre "conceitos" e "preconceitos".

Os primeiros são formados por meio de instrução; os últimos vêm a nós naturalmente.21 Sem esses preconceitos fundamentais, essas ideias inatas ou noções comuns, impressas em nós pela natureza, o conhecimento não poderia ser buscado. Relacionado a esse compromisso estava o apelo estoico ao consensus omnium. Devemos esperar encontrar essas noções comuns, expressas de forma desigual, é claro, entre todas as pessoas. Para os estoicos, esse consenso serve como garantia da verdade desses preconceitos.

Céticos à parte, a verdade para esses filósofos antigos era razoável.

O dogmatismo filosófico surgiu quando essas verdades razoáveis foram consideradas inatas. Rejeitar uma verdade inata violava a natureza. Isso significava que você abraçava o antinatural e o irracional. Nenhum exemplo melhor disso pode ser visto do que o método estoico para demonstrar a existência e a natureza dos deuses. Sextus Empiricus, ele próprio um cético, descreve o método estoico como procedendo de quatro maneiras: "argumentando primeiro a partir da concordância entre todos os homens, segundo a partir do arranjo ordenado do universo, terceiro a partir das consequências absurdas de rejeitar o divino, quarto e último minando os argumentos contrários."22 A descrição de Sextus dos estoicos se encaixa em Justino e Tertuliano. Sexto, é claro, não concordava com os estoicos. Ele não foi persuadido nem por seu apelo ao consensus omnium nem por seu apelo ao communes sensus. Embora os grandes debates filosóficos do mundo antigo buscassem assegurar os primeiros princípios ou hipóteses inatacáveis que facilitariam o conhecimento e justificariam as alegações de verdade, eles não conseguiam chegar a um acordo sobre o que era inato, natural e razoável.

20

Diogenes Laertius Lives of Eminent Philosophers X.33; Schofield, "Preconception, Argument, and God", 291- 93, 296.

21 H. von Arnim, Stoicorum Veterum Fragmenta (Leipzig, 1903-24), II, 28:19-22, citado em Schofield, "Preconception, Argument, and God", 294.

22 Sextus Empiricus Adversus Mathematicos IX.60, citado em Schofield, “Preconception, Argument, and God,” 299.

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O problema adicional com esses argumentos e seu apelo aos cristãos, tanto antigos quanto modernos, é o lugar que eles atribuem às nossas próprias realizações intelectuais na determinação de quem é Deus e o que isso significa para a vida humana. O alto preço pago pelos cristãos que adotam essa abordagem filosófica quase sempre envolve a corrupção do evangelho. Os primeiros princípios, ao que parece, sempre respondem por duas coisas: uma explicação para o início de todas as coisas e o propósito da vida humana. Se pudermos responder à primeira sem Deus, também poderemos responder à segunda sem Ele. Muitos dos teólogos dos séculos II e III participaram dos grandes debates da antiguidade, destacando os pontos de continuidade e descontinuidade entre o cristianismo e os filósofos. Os apologistas exploraram especialmente o communes sensus. O caminho percorrido pelos epicuristas e estoicos é muito semelhante ao caminho percorrido por Justino e Tertuliano, e é um caminho que atraiu especialmente os teólogos posteriores do Ocidente.23 Hilário de Poitiers, por exemplo, relata sua jornada intelectual em termos que lembram Justino, mas rejeita a abordagem de ideias compartilhadas. Ele relembra como superou a confusão filosófica entre as escolas, confiando nas Escrituras e na revelação de Deus sobre si mesmo. A esse respeito, Hilário prova ser a exceção entre os teólogos latinos.24 Agostinho está mais próximo de Tertuliano do que Hilário nessa questão. Nas Confissões, ele relata de forma mais apropriada sua jornada do platonismo ao cristianismo, destacando os pontos de concordância e discordância. Agostinho continuaria a manter a complementaridade entre a natureza e a Escritura para o

23

Por exemplo, para os epicuristas, Deus era eterno, abençoado, imortal e imperecível. Para os estóicos, Deus era imanente, providencial, racional e ativo.

Eles conheciam esses atributos pela razão e pela natureza. Muitos teólogos cristãos posteriores concordariam com isso. Para uma longa lista de fontes epicuristas e estóicas sobre esse ponto, consulte Basílio de Cesaréia Against Eunomius. (Fathers of the Church, 108 n. 77). A obra de Basílio Against Eunomius oferece um bom exemplo de como os cristãos devem pensar sobre as noções comuns mantidas por muitos e como elas se relacionam com as Escrituras.

24 Carl Beckwith, Hilary of Poitiers on the Trinity (Oxford: Oxford University Press, 2008), 151-70.

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conhecimento de Deus em suas obras posteriores.25 Tomás de Aquino, uma figura explorada detalhadamente no próximo capítulo, percorre este mesmo caminho, mas sob a bandeira de uma nova terminologia: preâmbulos aos artigos de fé (natureza) e artigos de fé (Escritura). Para Tomás, tal como para Tertuliano, a Escritura completa e aperfeiçoa o que aprendemos da natureza.

Os teólogos gregos do século IV seguiram um caminho diferente.

O debate entre os nicenos e os vários partidos que se opunham à Nicéia dizia respeito à identidade de Deus. Os teólogos nicenos usaram argumentos sobre o conhecimento natural de Deus para defender um ponto epistemológico crucial: o conhecimento de Deus fora das Escrituras e fora de Cristo era necessariamente insuficiente e problemático. Embora declarações escrituristicamente corretas pudessem ser feitas por não cristãos sobre Deus, elas sempre estavam misturadas com sentimentos falsos e idólatras. Por esse motivo, eles não consideravam o conhecimento natural de Deus como um ponto de partida neutro sobre o qual a doutrina de Deus poderia ser construída.

Esse conhecimento superficial e distorcido precisava ser substituído, e não aumentado, pelo conhecimento correto da Trindade, conhecido no e pelo Filho de Deus encarnado. Atanásio e Gregório de Nazianzo explicam bem esse ponto. Em meio a grandes dificuldades, esses dois Pais transmitiram aos fiéis um entendimento bíblico adequado dos dois primeiros concílios ecumênicos, o Concílio de Nicéia (325) e o Concílio de Constantinopla (381). Além disso, Atanásio e Gregório nos oferecem uma visão teológica alternativa àquela adotada por Justino e Tertuliano e pelos escolásticos medievais posteriores. A questão maior, é claro, é, se é importante qual visão teológica adotamos. Este capítulo e os próximos argumentam que sim.

Gregório de Nazianzo

No ano de 380, Gregório de Nazianzo (c. 330-90) proferiu uma série de sermões para sua pequena congregação pró-Nicéia em 25

Augustine On the City of God 8.10, trans. R. W. Dyson (Cambridge: Cambridge University Press, 1998), 325-27.

46

Constantinopla. Mais tarde, ele revisou e aprimorou esses sermões, publicando-os como Orações 27-31 em seu corpus literário. Essas cinco orações são conhecidas hoje mais simplesmente como Orações Teológicas de Gregório. Os oponentes de Gregório são os arianos de segunda geração, os chamados novos arianos, os arianos radicais. A polêmica de Gregório tem como alvo especial Eunômio de Cyzicus, um racionalista cínico que sucumbe à idolatria intelectual. Para o horror e o choque dos capadócios, Eunômio insistia que a mente humana podia compreender e expressar com precisão e completamente a própria essência de Deus. Eunômio escreve: "Deus não sabe nada mais sobre sua própria essência que nós, nem essa essência é mais conhecida por ele e menos por nós. Em vez disso, o que quer que saibamos sobre ela é exatamente o que ele sabe e, inversamente, o que ele sabe é o que você encontrará sem mudança em nós."26 Eunômio definiu a essência de Deus com o termo "não gerado" e declarou ainda que, como o Filho é "gerado", Ele não deve ser Deus per definitionem. Eunômio apresentou uma série de quebra-cabeças racionais que buscavam minar a confissão ortodoxa da Trindade; essas provocações mentais atraíam as massas e eram repetidas em debates casuais nos banhos públicos, no mercado e em outras reuniões populares. Como Gregório descreve, esses "trapaceiros verbais" e "jogadores de palavras" transformaram uma discussão sobre Deus em um jogo intelectual irreverente de um contra o outro.27 Em suas duas primeiras orações teológicas, Gregório articula uma visão teológica que abrange a humildade e a reverência ao falar sobre a Trindade, que enfatiza a necessidade de Deus vir até nós para se tornar conhecido e que mostra a prioridade da fé na apreensão e na expressão das verdades de Deus. Gregório adverte sua congregação de que o assunto da Trindade não é para todas as ocasiões ou para todos os públicos. Não devemos discutir a geração eterna do Filho a partir do Pai em uma casa de banhos ou com aqueles que buscam apenas zombar do cristianismo.

Gregório escreve: "Não vamos 'cantar a canção do Senhor em uma terra estrangeira', ou seja, diante de todo e qualquer público, pagão ou cristão, 26

Richard Vaggione, Eunomius: The Extant Works (Oxford: Oxford University Press, 1987), 178.

27 Gregory of Nazianzus Or. 27.1 (PPS, 25).

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amigo ou inimigo, simpático ou hostil."28 Gregório exorta seus ouvintes a entender os limites de tais discussões. Há aspectos da Trindade que não estão abertos à investigação.29 Aqueles que procuram investigar as coisas ocultas de Deus e elevar às alturas além do que Deus tornou conhecido são ignorantes de sua própria ignorância. Eles são como aqueles que olham para o sol, cegos por sua própria tolice.

Argumentar que a teologia não é para todos ou pedir cautela em nossas discussões (público, ocasião, conteúdo) não implica limitar nossos pensamentos sobre Deus. Gregório escreve: "É mais importante que nos lembremos de Deus do que de respirar: de fato, se é que podemos dizer isso, não devemos fazer outra coisa além disso."30 Toda a nossa vida deve ser dedicada à contemplação e à consciência de Deus. As Escrituras nos orientam a "meditar dia e noite", a invocar o Senhor "à tarde, pela manhã e ao meio-dia". Devemos "bendizer ao Senhor em todo o tempo", e isso deve ser feito "quando nos levantamos e quando andamos pelo caminho.”31 A pessoa que medita na Palavra de Deus dia e noite e que invoca e bendiz o Senhor em todos os momentos é uma pessoa devidamente livre das distrações e do turbilhão da vida. Deus declara nos salmos: "Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus" (Sl 46.10).32 Gregório aproveita esse versículo. A pessoa corretamente preparada para falar sobre Deus possui "quietude interior".33 Não mais ansiosa para vencer uma disputa verbal ou prevalecer sobre um oponente com uma provocação mental, essa pessoa contempla reverentemente o Deus Triúno como um amante da verdade e procura compartilhar esse Deus com os outros. Tal pessoa, conclui Gregório, entende corretamente que Deus deve inspirar se quisermos conhecer e adorar o Pai, o Filho e o Espírito Santo, como três pessoas irredutíveis em uma única divindade indivisível.34 28

Gregory of Nazianzus Or. 27.5 (PPS, 28); Sl 137.4.

Gregory of Nazianzus Or. 27.3 (PPS, 27).

30 Gregory of Nazianzus Or. 27.4 (PPS, 27-28).

31 Gregory of Nazianzus Or. 27.4 (PPS, 28); Sl 1.2, Sl 55.17, Sl 34.1, Dt 6.7.

32 Gregory of Nazianzus Or. 27.3 (PPS, 27).

33 Gregory of Nazianzus Or. 28.1 (PPS, 37).

34 Gregory of Nazianzus Or. 28.1 (PPS, 37); Or. 31.28 (PPS, 139).

29

48

Em seguida, Gregório se volta para uma extensa e demorada consideração sobre as obras criadas por Deus. Tal movimento não era novidade na igreja primitiva e pode ser encontrado em quase todas as discussões sobre Deus na história da igreja.35 E, no entanto, Gregório faz algo bastante inesperado: ele usa essa reflexão sobre a natureza para nos impressionar não apenas com a incompreensibilidade de Deus fora das Escrituras, mas também com nossa própria compreensão limitada das realidades da criatura ao nosso redor e dentro de nós. É na própria consciência de nosso desconhecimento que somos tomados de admiração e temor por aquele que sabe, pelo único e verdadeiro Conhecedor que criou e governa tudo o que é desconhecido para nós. Essa consciência nos dispõe humildemente a confessar corretamente, a falar corretamente e a adorar corretamente o Deus verdadeiro. O notável hino da criação de Gregório nos deixa reverentemente silenciosos e na posição de quietude necessária para conhecer Deus. Nossas bocas ficam boquiabertas de admiração e nossas almas têm sede de mais: "Se o nosso hino foi digno de seu tema, é a graça da Trindade, da Divindade uma em três; se o desejo permanece incompletamente satisfeito, também dessa forma meu argumento pode ser bem-sucedido."36 Quando olhamos para as coisas criadas por Deus, somos como Moisés na fenda da rocha, vendo apenas, como Gregório descreve, a "figura desviada", as partes de trás de Deus.37 Devemos ser como Moisés.

Na Oração, é Gregório quem está na fenda da rocha. Ele vê a figura oculta de Deus porque está na fenda da rocha, que, como Paulo nos diz, é Cristo, "Deus, o Verbo encarnado para nós".38 A exegese intertextual de Gregório o leva a um ponto fundamental: só vemos quando estamos em Cristo. Gregório defenderá esse ponto com seriedade em suas orações posteriores. Por enquanto, ele está mais interessado em discutir como Deus faz a mediação do conhecimento de Si mesmo por meio das 35

Veja, por exemplo, Cyril of Jerusalem Catechetical Lectures IX; Basil of Caesarea Homilies on the Hexaemeron 7 (sobre peixes), 8 (sobre pássaros) e 9 (sobre animais terrestres); Augustine On Christian Teaching Book 1.

36 Gregory of Nazianzus Or. 28.3 (PPS, 63); 37 Gregory of Nazianzus Or. 28.3 (PPS, 39). Êx 33.21-23.

38 Gregory of Nazianzus Or. 28.3 (PPS, 39).

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realidades das criaturas. O esplendor e a majestade de Deus nos foram revelados "nas coisas criadas que Ele criou e governa".39 Esses vestígios de Deus que Ele deixou para nós são a figura desviada de Deus. Eles são como reflexos sombrios do sol na água, acomodados a olhos fracos e impotentes demais para olhar diretamente para o sol. Se buscarmos mais do que nossos olhos corporais são capazes de perceber olhando diretamente para o sol, o que não é diferente de buscar as coisas ocultas de Deus por meio de nossa razão corporal, ficamos cegos, física e espiritualmente. Assim como o sol demonstra seu brilho por meio do reflexo no lago, Deus também demonstra Sua presença por meio de realidades criadas, figuras invertidas. Isso Deus fez para nós e para nosso benefício.

Gregório, como muitos dos Pais, enfatiza a incompreensibilidade de Deus.40 Como somos corpóreos e até mesmo nossa linguagem mais exaltada é condicionada por elementos da corporeidade, pelo tempo e pelo espaço, é impossível conhecer plenamente a realidade ou a essência de Deus no pensamento ou comunicá-la na fala. Não somos mais capazes de ter um conhecimento exato da essência de Deus do que somos da criação de Deus.41 Aqui surge uma analogia para Gregório. Nosso conhecimento da natureza é apenas um esboço de sua realidade. No entanto, chegará um momento em que conheceremos essas coisas de forma mais completa. E, no entanto, mesmo com esse entendimento parcial, sabemos que a criação existe. Deve-se fazer uma distinção entre existência e essência: "[saber] a existência de uma coisa é bem diferente de saber o que ela é."42 O mesmo se aplica a Deus: "Que Deus, a causa criadora e sustentadora de tudo, existe, a visão e a lei escrita em nossos corações nos informam - a visão, que ilumina as coisas vistas como fixas em seus cursos, levadas, por assim dizer, em movimento imóvel; a lei instintiva, que infere seu autor por meio das coisas vistas em sua ordem."43 Saber a existência de Deus pela visão e pela lei instintiva está muito longe 39

Gregory of Nazianzus Or. 28.3 (PPS, 39).

Gregory of Nazianzus Or. 28.4 (PPS, 39).

41 Gregory of Nazianzus Or. 28.4-5 (PPS, 39-40).

42 Gregory of Nazianzus Or. 28.5 (PPS, 40).

43 Gregory of Nazianzus Or. 28.6 (PPS, 40-41).

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de conhecer a "realidade" de Deus em Sua plenitude.

Gregório se volta para uma reflexão sobre a linguagem. Quando dizemos que Deus é incorpóreo, dizemos muito menos do que pensamos.

Quando usamos termos como incorpóreo, não gerado, imutável, imortal, não estamos falando sobre o que é o ser essencial de Deus. Em vez disso, por perífrase, afirmamos o que Deus não é. E, no entanto, a compreensão de qualquer objeto de conhecimento exige mais do que negação. A afirmação positiva de "o que uma coisa é" é muito mais fácil de ser feita do que inúmeras afirmações de "o que uma coisa não é". Gregório explica: Uma pessoa que lhe diz o que Deus não é, mas deixa de lhe dizer o que ele é, é como alguém que, quando lhe perguntam qual é o dobro de cinco, responde "nem dois, nem três, nem quatro, nem cinco, nem vinte, nem trinta, nenhum número, em suma, menos de dez ou mais de dez". Ele não nega que seja dez, mas também não está resolvendo a mente do questionador com uma resposta firme. É muito mais simples, muito mais breve, indicar tudo o que algo não é, indicando o que é, do que revelar o que é, negando o que não é.44

Quando usamos termos apo-fáticos para descrever Deus, dizemos apenas o que Ele não é, não o que Ele é. A rigor, esses termos revelam mais sobre nossa relação com Deus do que sobre Sua essência.

Dizer que Deus é imortal é dizer que Ele não é mortal como nós. Dizer que Deus é incorpóreo é dizer que Ele não é corpóreo como nós. Nós somos o ponto de referência para esses termos; tudo o que eles afirmam é que Deus não é como nós. Quando nos enganamos pensando que estamos falando sobre a realidade e a essência de Deus ao usar esses termos, sucumbimos às grandes afirmações racionalistas feitas por Descartes e às acusações de auto projeção feitas por Feuerbach: "o homem faz um deus daquilo que ele não é, mas gostaria de ser".45 44

Gregory of Nazianzus Or. 28.10 (PPS, 43-44).

Ludwig Feuerbach, Essence of Religion, trans. R. Manheim (Nova York: Harper and Row, 1967), 234. Essa questão da linguagem é abordada novamente no capítulo 5 abaixo.

45

51

A digressão de Gregório sobre a linguagem enfraquece o argumento risível de seus oponentes que afirmam conhecer a essência de Deus pela razão humana. Mas, mais do que isso, ele explica: "Eu queria deixar claro o ponto inicial do meu sermão, que era este: a incompreensibilidade da divindade para a mente humana e sua grandeza totalmente inimaginável." 46 Essas duas coisas operam juntas para Gregório. Esta é, como eu disse acima, a virada inesperada no argumento de Gregório. Ao confessar a incompreensibilidade de Deus e da criação, chegamos a uma quietude adequada e a um lugar humilde de conhecimento. O interesse de Gregório aqui não é o apofatismo radical, não é argumentar que não sabemos nada sobre Deus. Seu interesse é eliminar as idolatrias intelectuais que afirmam conhecer a realidade plena de quem é Deus. Sua conclusão, como veremos, é que Deus é sempre maior do que nosso entendimento.47 Antes de voltar ao seu hino sobre a beleza da criação, Gregório enfatiza mais uma vez a limitação da linguagem e seu caráter metafórico ao falar de Deus.48 Como somos corpóreos, nossas mentes, nossos pensamentos, sempre se expressam por meio da corporeidade. Gregório explica: Que aqueles cujo negócio é discutir o assunto, que levem sua investigação filosófica o mais alto que puderem. No entanto, nós, "prisioneiros da terra", na frase do divino Jeremias (Lm 3.34), presos nesta porção grosseira de carne, sabemos isso: você não pode atravessar sua própria sombra, por mais que nos apressemos - ela está sempre exatamente à sua frente. A visão não pode se aproximar de seus objetos sem o meio da luz e da atmosfera; os peixes não podem nadar fora da água; e os seres encarnados não podem mais 46

Gregory of Nazianzus Or. 28.11 (PPS, 45).

Cf. Christopher Beeley, Gregory of Nazianzus on the Trinity and the Knowledge of God (Oxford: Oxford University Press, 2008), 99: "Para Gregório, Deus é inefável não porque não podemos dizer nada sobre ele ou expressar sua natureza com certeza, mas porque nunca poderíamos expressar tudo o que Deus é".

48 Sobre esse ponto, veja especialmente Or. 31.7 (PPS, 121-22) e Or. 30.17-21 (PPS, 107-12).

47

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manter a companhia incorpórea das coisas ideais. Algum fator corpóreo nosso sempre se intrometerá, mesmo que a mente esteja mais completamente desligada do mundo visível e mais recolhida quando tenta se envolver com seus parentes invisíveis.49

A mente se cansa de transcender essas condições corporais; ela olha com impotência. Embora o sujeito pensante anseie por Deus, é incapaz de compreendê-Lo.50 Frustrada por esses esforços, a mente tenta outro caminho. Ela olha para a criação, observando o visível e declarando que essas coisas são divinas, sucumbindo à idolatria grosseira, ou descobrindo aqui a beleza e a ordem, "usando a visão como uma guia para o que transcende a visão sem perder Deus por meio da grandeza do que se vê.”51 Essa última abordagem, conduzida pela beleza e ordem das coisas criadas, chega ao "seu projetista".52 Tal beleza e ordem não poderiam ser atribuídas ao mero acaso, mas sim a algo mais, a um projetista, a Deus. Dessa forma, a razão, embora sobrecarregada com pensamentos que são corpóreos - "nossos grilhões terrestres", como Gregório descreve em outro lugar - descobre, por meio de coisas corpóreas, o criador e preservador de tais coisas, Deus.53 Gregório termina seu discurso com um longo hino da criação.54 Aqui, sua eloquência e arte retórica atingem o auge. Ele se maravilha com a alma e o corpo, porque os filhos se assemelham aos pais em sua aparência, como as partes de nosso corpo funcionam tão harmoniosamente juntas. A fala e a audição fascinam Gregório. Como os sons são produzidos por nossos órgãos vocais e recebidos pelos ouvidos?

Como o som viaja pelo ar? Ele se pergunta sobre a velocidade com que nossos olhos unem o que veem aos pensamentos em nossa mente.

Voltando-se para os animais, ele se pergunta sobre sua diversidade de habitats, comportamentos e dietas. Alguns animais são rápidos, fortes e 49

Gregory of Nazianzus Or. 28.12 (PPS, 46).

Gregory of Nazianzus Or. 28.13 (PPS, 47).

51 Gregory of Nazianzus Or. 28.13 (PPS, 47).

52 Gregory of Nazianzus Or. 28.16 (PPS, 49).

53 Gregory of Nazianzus Or. 30.17 (PPS, 107).

54 Gregory of Nazianzus Or. 28.22-31 (PPS, 53-64).

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bonitos; outros são lentos, fracos e horríveis. Por que alguns se orgulham de sua aparência e outros não? Por que alguns rastejam e outros andam de cabeça para baixo? Os peixes são uma fonte constante de espanto. Eles deslizam pela água como se estivessem no ar. Respiram na água. Sua diversidade de tamanho e cor é pura maravilha. Da mesma forma, os pássaros do ar possuem uma variedade de desenhos e cores. Seus cantos e sons são lindos e impressionantes. De onde eles tiraram essa música?

Nada captura mais a imaginação do que a diligência das abelhas, aranhas e formigas. O trabalho delas é engenhoso; a teia de aranha não tem explicação. E quanto às plantas? Seus aromas e qualidades medicinais as tornam mais caras do que pedras preciosas. Quem pode explicar a geografia da Terra, os movimentos dos mares, a origem e o destino dos ventos? E quanto à rotação e ao movimento dos corpos celestes? Quem colocou as estrelas em ordem? Gregório se maravilha com o curso ininterrupto do sol e suas gentilezas consistentes. O desequilíbrio uniforme da noite e do dia, a chegada ordenada e a partida disciplinada das estações são todos necessários para nós, mas quem pode explicar esses mistérios?

Gregório passa da contemplação da criação para os seres celestiais acima. As Escrituras nos encorajam a fixar nosso olhar nas coisas sagradas. Mas mesmo aqui, observa Gregório, não vemos de uma maneira livre de descrições corporais. Sabemos que os anjos são incorpóreos ou muito próximos disso e, no entanto, as Escrituras dizem: "Ele faz de seus anjos ventos, e de seus ministros uma chama de fogo" (Hb 1.7).55 Ficamos tontos com nossa contemplação de anjos, arcanjos, tronos, domínios, principados e poderes. Sabemos que eles existem, mas não podemos ir além disso. Neste ponto, Gregório encerra seu hino: "Se nosso hino foi digno de seu tema, é a graça da Trindade, da Divindade um em três; se o desejo permanece incompletamente satisfeito, também dessa forma meu argumento pode ser bem-sucedido".56 O hino de Gregório tem um duplo propósito. Por um lado, ele cria um fardo intelectual intransponível para seus leitores. Se não somos 55 56

Gregory of Nazianzus Or. 28.31 (PPS, 63).

Gregory of Nazianzus Or. 28.31 (PPS, 63).

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capazes de responder a todas as perguntas que podemos fazer sobre a criação, quanto mais incapazes somos de definir a própria natureza de Deus. O hino de Gregório explica bem esse ponto. Não podemos nos gabar de nosso conhecimento de Deus quando sabemos tão pouco sobre nós mesmos, nosso próprio corpo e alma. Não podemos nos vangloriar das coisas espirituais quando ainda restam dúvidas sobre os peixes no mar e a teia de uma aranha. A pessoa que faz isso, argumenta Gregório, é ignorante de sua própria ignorância. Passa o dia tentando atravessar a própria sombra ou tateando atrás da névoa.57 O hino de Gregório também leva a pessoa a se maravilhar e admirar a beleza, a ordem e a grandeza da criação. Se o orgulho era a marca da pessoa que termina em idolatria intelectual, a humildade é a marca dessa pessoa. É na própria consciência de nosso desconhecimento que somos levados a uma posição de quietude.

Nossa fala cessa, pois agora estamos humildemente dispostos a receber a fala de Deus, Sua Palavra por meio de Seu Espírito. Deus concede iluminação, guia e protege nosso pensamento correto, nossa fala e nossa adoração. Nosso conhecimento procede de Seu dom da fé e essa fé dá plenitude à nossa razão.

CONCLUSÃO

Os Pais não eram unânimes quanto à questão do conhecimento natural de Deus. Em sua maioria, os teólogos latinos ou ocidentais demonstram maior simpatia pelos argumentos do conhecimento natural do que seus colegas gregos. A questão não é se existe algo como o conhecimento natural de Deus; todos os autores discutidos acima compartilham essa convicção. A questão é o que um teólogo faz com esse conhecimento. Que papel ele atribui a esse conhecimento para que possamos conhecer Deus? Justino e Tertuliano acham que nosso conhecimento de Deus começa com a natureza e depois nos voltamos para as Escrituras. A revelação de Deus complementa o que a razão descobre por meio da natureza. Atanásio e Gregório de Nazianzo, as grandes vozes dos Concílios de Nicéia e Constantinopla, ambos intransigentes em sua confissão da Trindade, atribuem um papel modesto 57

Gregory of Nazianzus De rebus suis, II/I/I.92 (Padres da Igreja, 28); cf. De vita sua II/I/XI.1774-75 (Padres da Igreja, 126).

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e humilde ao conhecimento natural. Para eles, conhecer o Deus da Bíblia sempre começa com a encarnação, a Palavra feita carne, Deus vindo até nós. Quando repousamos na Palavra pela fé, ordenamos corretamente nossa razão. Como veremos no capítulo 4, Lutero e as Confissões Luteranas estão muito próximos da visão teológica expressa por Atanásio e Gregório.

Talvez seja muito simples colocar as coisas dessa forma, mas para os teólogos que enfatizam a obra radical do evangelho, da surpreendente salvação alcançada para nós na pessoa de Jesus Cristo, o próprio Filho de Deus, há também uma grande ênfase colocada na revelação de Deus sobre Si mesmo em Cristo - "Todo outro terreno é areia que afunda" (TLH 370). Para aqueles que buscam um papel maior para o esforço e a realização humana em nossa salvação, há, por outro lado, uma ênfase maior na razão natural e nas ideias compartilhadas do mundo em nossa chegada ao conhecimento de Deus. Os primeiros acham que a chave ou a hipótese correta para conhecer a identidade de Deus deve começar com Cristo e Sua cruz; os últimos acham que podemos começar primeiro com a natureza e depois seguir para as Escrituras. Os primeiros suspeitam profundamente da razão sem a orientação da fé; os últimos falam com otimismo sobre uma razão suplementada pela fé. A diferença entre essas abordagens não pode ser reduzida a uma questão de ênfase; elas são qualitativamente diferentes, de uma ordem completamente diferente, pois cada uma delas prevê um evangelho e uma doutrina de Deus radicalmente diferentes.

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CONTEÚDO

3 PROVANDO DEUS: AMBIÇÕES MEDIEVAIS E O CONHECIMENTO DE DEUS Não é mera coincidência histórica o fato de o triunfo da arquitetura gótica ter coincidido com a ascensão do escolasticismo.1 O mesmo mundo, os mesmos sonhos e aspirações humanas, produziram os dois. Encontrar uma das grandes summas medievais não era nem um pouco diferente de encontrar a catedral gótica. Algo extraordinário estava diante de você, algo novo e inimaginável para as gerações anteriores. Uma pessoa tanto se encanta como se cansa ao observar a verticalidade da catedral, suas torres e pináculos intermináveis, arcos dinâmicos, arcobotantes e delicadas rosáceas. A complexidade, a grandeza e o rigor mental do escolasticismo encontram seu análogo na catedral gótica.2 Ambas visavam ao ideal; ambas eram consideradas o auge da realização humana; ambas deixavam seu público maravilhado.

A teologia, assim como a arquitetura, nunca ocorre em um vácuo.

Essas duas maravilhas da Idade Média coincidiram com notáveis avanços demográficos, agrícolas e comerciais.3 O mundo estava mudando. Para usar as designações poéticas dos antigos livros didáticos, a Idade das Trevas havia terminado e um futuro de infinitas possibilidades estava à frente. As pessoas viviam mais e eram mais numerosas. A população da Europa cresceu de quarenta e dois milhões para setenta e três milhões 1

Sobre a relação entre a arquitetura medieval e o escolasticismo, ver Erwin Panofsky, Gothic Architecture and Scholasticism (Nova York: Meridian Books, 1957). Para uma interpretação menos ambiciosa da arquitetura e da teologia, consulte Charles Radding e William W. Clark, Medieval Architecture, Medieval Learning: Builders and Masters in the Age of Romanesque and Gothic (New Haven, CT: Yale University Press, 1992).

2 James Snyder, Medieval Art (Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1989), 343-49.

3 Para uma discussão mais completa sobre esses diferentes aspectos da cultura medieval, consulte John Baldwin, The Scholastic Culture of the Middle Ages, 1000-1300 (Project Heights, IL: Waveland Press, 1997).

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entre os anos 1000 e 1300. O rápido aumento da população alterou significativamente o cenário social, econômico e intelectual da Europa. O aprendizado também mudou: não era mais um assunto privado a ser perseguido pelo monge recluso. O aprendizado tornou-se público e encontrou um lar nas novas universidades. O ensino era oferecido em teologia, filosofia, direito e medicina. Nesse mundo de centros urbanos em crescimento, realizações notáveis na arquitetura e horizontes em expansão do aprendizado humano, surgiram estudiosos e acadêmicos.4 Nenhuma pessoa influenciou mais o aprendizado no período medieval do que Aristóteles. Seus textos sobre lógica, ética, metafísica e ciências físicas transformaram a maneira como as pessoas pensavam sobre Deus, ética e o mundo natural. Quando a influência de Aristóteles ultrapassou a de Platão, a questão de como o conhecimento é mediado mudou da lembrança e da iluminação divina para o mundo dos sentidos, de argumentos a priori para argumentos a posteriori. O movimento epistemológico de Anselmo a Aquino reflete essa mudança. Para Anselmo, a questão da existência de Deus é um exercício mental, "pensar" naquilo que nada maior pode ser concebido. Para Tomás, a questão da existência de Deus começa com os sentidos, a experiência do mundo físico, e segue daí para a mente. Aristóteles abriu novas formas (viae) de pensar para estudiosos tão diferentes quanto Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham.

O período entre Tomás e Lutero é marcado pela luta sobre qual Aristóteles foi privilegiado - o Aristóteles cristão de Tomás ou o Aristóteles pagão favorecido pelos nominalistas - e suas consequências para a teologia e a filosofia. Todas as partes estavam convencidas da importância de Aristóteles. O encanto que ele exercia chegou a tal ponto que Lambertus de Monte Domini, um professor tomista do século XV em Colônia, propôs a beatificação do filósofo pagão.5 O bispo de Erfurt, 4

O entusiasmo pelo conhecimento e pela descoberta durante o século XIII é visto na ambiciosa produção de enciclopédias. Mary Franklin-Brown, Reading the World: Encylopedic Writing in the Scholastic Age (Chicago: University of Chicago Press, 2012).

5 Heiko Oberman, "Via Antiqua and Via Moderna: Late Medieval Prolegomena to Early Reformation Thought", Journal of the History of Ideas 48:1 (1987): 27.

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John Bonemilch von Lasphe, que provavelmente ordenou Lutero ao sacerdócio em 1507, ecoou um sentimento comum da época quando disse a Lutero e seus colegas que "sem Aristóteles ninguém poderia ser um teólogo".6 Desse contexto surge a famosa declaração de Lutero, em 1517, de que Aristóteles está para a teologia assim como as trevas estão para a luz.7 Uma parte decisiva da descoberta de Lutero foi o abandono desse modo de pensar: "É um erro dizer que ninguém pode se tornar um teólogo sem Aristóteles. Isso está em oposição à opinião comum."8 O problema exposto por Lutero tinha menos a ver com o filósofo do que com a forma como sua filosofia foi usada pelos estudantes, que não conseguiram compreender "o significado correto de Aristóteles."9 As declarações de Lutero contra Aristóteles, impensáveis não apenas para uma figura como Tomás de Aquino, mas também para muitos na própria época de Lutero, chegam ao cerne da luta intelectual herdada pelos reformadores entre uma forma mais antiga (via antiqua) e uma forma mais nova de pensar (via moderna).

Geralmente, os livros didáticos descrevem essas duas vias medievais de acordo com a luta epistemológica sobre universais e particulares. Realistas como Tomás de Aquino tiveram a oposição de Guilherme de Ockham e dos nominalistas ou terministas do final do período medieval. Seria difícil imaginar uma questão mais espinhosa do que a que ocupou esses pensadores medievais sobre a aquisição de conhecimento. Embora essa questão dos universais expunha um importante ponto de partida para esses pensadores, restringir sua discordância a esse ponto mais delicado da epistemologia obscurece 6

Nachwort zur Epistola Theologorum Parisiensium, 1534 (WA 60:125.40): "Absque Aristotele nemo potest theologus fieri". Texto referenciado em Bernard Lohse, Martin Luther's Theology, trans. Roy A. Harrisville (Minneapolis: Fortress Press, 1999), 26.

7 Disputation against Scholastic Theology, 1517 (AE 31:12, tese 50; WA 1:226.26).

(OS 1) Para um resumo das objeções de Lutero ao uso contínuo de Aristóteles no currículo de Wittenberg de 1517 a 1520, consulte Steven Ozment, The Age of Reform 1250-1550 (New Haven, CT: Yale University Press, 1980), pp. 310-311.

8 Disputation against Scholastic Theology, 1517 (AE 31:12, tese 43; WA 1:226.14).

(OS 1).

9 Ibidem, 1517 (AE 31:12, tese 51; WA 1:226.28). (OS 1).

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diferenças maiores sobre as questões substantivas de como Deus é conhecido e a relação predominante entre a verdade de Deus e o mundo natural. Suas diferentes epistemologias são importantes não por causa do que eles dizem ou pensam sobre a relação entre universais e particulares, mas porque suas respectivas teorias sobre o conhecimento necessariamente informam suas respectivas visões da realidade. A forma como pensamos informa como falamos sobre a realidade e como a entendemos.

Na parte 1 deste livro, abordamos a questão da epistemologia (teoria) sob o tópico do conhecimento natural e revelado de Deus (prática). A razão, como acabamos de sugerir, é que quaisquer conclusões a que cheguemos sobre a questão teológica do conhecimento natural procedem de nossos compromissos epistemológicos. Devemos nos perguntar por que Tomás de Aquino inicia seu tratado sobre Deus com uma demonstração do conhecimento natural da existência necessária de Deus (ST I.2). Por que Tomás discute primeiro o que Deus é como Deus (ST I.3-26) antes de falar sobre quem Deus é como Trindade (ST 1.2743)? Será que essa distinção é importante?10 Se dissermos que sim, então como ela é importante? A ordem deveria ser invertida? Deveria mesmo haver tal distinção? Da mesma forma, devemos nos perguntar por que Lutero mostra pouco interesse em demonstrações de conhecimento natural da existência de Deus. Não é o caso dele rejeitar o conhecimento natural - de fato, pode-se argumentar que seu Catecismo Maior fornece o argumento mais radical para isso. Por que, então, a grande diferença entre a abordagem de Tomás e a de Lutero? Por que Lutero opta por abordar a Trindade por meio da pessoa e da obra de Cristo e da entrega dessa obra salvadora pelo Espírito Santo por meio da Palavra e do sacramento? Isso não parece desordenado e desnecessariamente confuso com os outros 10

A resposta mais antiga a essa pergunta foi: sim, isso é muito importante e mostra a preferência latina ou ocidental por falar sobre a essência antes das pessoas. Isso foi entendido como uma crítica e uma apologia à abordagem grega ou oriental que quase sempre segue essa crítica. Mais recentemente, tem sido moda aliviar as preocupações do leitor com a abordagem de Tomé, apontando que qualquer apresentação bíblica da identidade de Deus deve mostrar tanto a unidade quanto a diversidade. É muito pouco importante, está implícito, o que fazemos primeiro. Meu interesse por essa questão está em outro lugar.

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artigos de fé?11 Esses diferentes julgamentos teológicos procedem de diferentes compromissos epistemológicos e têm consequências significativas para nossa interpretação da realidade, nossa compreensão de Deus, nossa confissão do evangelho e nossa novidade de vida vivida de acordo com o evangelho.

Para apreciar a visão teológica alternativa dada pelos escritores medievais, uma visão não seguida pelo luteranismo, examinaremos três figuras significativas sobre a questão do conhecimento de Deus no período medieval: João de Damasco, Anselmo de Canterbury e Tomás de Aquino. Tomás ocupará a maior parte da discussão, pois ele deixou uma influência maior para as gerações posteriores e continua sendo a figura medieval mais amplamente estudada pelos teólogos de hoje. Antes de falar sobre Tomás, traçaremos o surgimento do conhecimento natural como uma busca distinta da razão humana em João de Damasco. João faz a ponte entre o período patrístico e o medieval e exerce uma influência considerável no pensamento trinitário ocidental. Tanto Melanchthon quanto Chemnitz censuram João por se afastar da visão teológica dos Pais, desviando-se das Escrituras para o reino da teologia especulativa e introduzindo novas formas de falar (novimodi loquendi).12 Depois de João, examinaremos dois dos esforços mais ambiciosos e aventureiros para demonstrar a existência necessária de Deus. O Proslogion de Anselmo será discutido por causa de sua prevalência hoje em dia em reflexões filosóficas e apologéticas sobre a existência de Deus. A distinção de Tomás de Aquino entre fé e artigos de fé e suas cinco maneiras de provar a existência de Deus serão então consideradas. A distinção e as provas de Tomás fornecem duas maneiras distintas de 11

Se você achar que não pode falar sobre a Trindade sem falar também sobre o batismo, então você estará em casa no mundo do pensamento dos Pais e dos reformadores luteranos. Se você descobrir que pode falar sobre a Trindade sem nunca mencionar seu batismo, então estará em casa no mundo do pensamento dos escolásticos.

12 Philipp Melanchthon, Loci Communes (1521), CR 21:82-84; Martin Chemnitz, "On the Use and Value of Theological Topics", em Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:42- 43; Chemnitz, Loci Theologici (Wittenberg, 1653), 11.

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conhecer Deus que se complementam. A primeira forma começa com nossos julgamentos racionais sobre quem Deus deve ser, e a segunda forma acrescenta a revelação de Deus sobre Si mesmo como Trindade aos nossos esforços racionais. Argumentarei abaixo que esse movimento de Tomás equivale a um facere quod epistemológico.13 O capítulo termina com uma breve descrição da alternativa nominalista à síntese de revelação e razão de Tomás, uma alternativa conhecida por Lutero e, em parte, adotada por ele.

João de Damasco

João de Damasco (falecido em 749), vivendo na periferia de um mundo romano em desintegração, escreveu um epítome da teologia patrística, Sobre a Fé Ortodoxa (De Orthodoxa Fide), que tornaria seu nome e sua obra conhecidos entre todos grandes centros de aprendizado do Ocidente cristão. Seu resumo serviu como o principal recurso para o pensamento trinitário e cristológico da patrística para os educadores medievais, os reformadores e os dogmáticos do século XVII.14 João não era um pensador original e, de acordo com sua cultura bizantina, rejeitava a própria ideia de originalidade. Ele forneceu resumos cuidadosos das melhores percepções dos Pais sobre diversas questões e assuntos teológicos. Sua contribuição está menos na substância e mais no estilo. O que há de novo em João é a maneira como ele organiza e apresenta seu material, e como ele o enquadra com seus próprios instintos exegéticos e terminologia técnica. Por essas razões, ele é melhor visto, como argumentam Melanchthon e Chemnitz, não no final do período patrístico, 13

Facere quod é a forma abreviada do axioma medieval tardio facientibus quod in se est, Deus non denegat gratiam (Deus não negará a graça àqueles que fazem o que está neles). Figuras como Ockham e Gabriel Biel ensinaram que Deus responderia graciosamente ao nosso ato inicial e mínimo de bondade para com ele. Lutero corretamente ataca essa posição como pelagianismo e frequentemente a atribui de forma ampla a todo o escolasticismo. Veja Disputation against Scholastic Theology 1517 (AE 31:9, teses 5-7, 33; WA 1:224.15-19, 225.35-36). Cf. Heidelberg Disputation, 1518 (AE 31:40, tese 16; WA 1.354.11-12); Preface to the Epistle of St. Paul to the Romans, 1522/1546 (AE 35:367-68; WADB 7:6.7-11). (OS 8).

14 Andrew Louth, St. John Damascene: Tradition and Originality (Oxford: Oxford University Press, 2005), 3.

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mas no início de uma época decididamente diferente na história do pensamento cristão, o período medieval.

A primeira parte do tratado de João, "Sobre Deus e a Trindade", enfatiza a necessidade de Deus para o conhecimento de Deus: "Ninguém jamais conheceu Deus a não ser que o próprio Deus o tenha revelado não apenas nenhum homem, mas também nem mesmo qualquer um dos poderes supramundanos: os próprios Querubins e Serafins, quero dizer."15 E ainda assim, ele observa, Deus não nos deixou em completa ignorância, pois "por meio da natureza" o conhecimento da existência de Deus "foi revelado por Ele a todos os homens."16 A harmonia e a ordem da criação proclamam a existência de Deus. João não diz nada mais do que isso sobre o conhecimento natural. Em seguida, ele se volta para a revelação adequada de Deus e para o conhecimento que temos por meio das Escrituras e por meio de Jesus Cristo. No segundo capítulo, ele introduz a distinção patrística grega entre a teologia propriamente dita e a economia divina, reflete sobre as limitações da linguagem humana e oferece uma breve exposição do Credo. João termina esse capítulo de maneira semelhante ao primeiro. Como há muitas coisas que não podemos entender (a essência de Deus, a encarnação, o nascimento virginal, Cristo andando sobre as águas), devemos permanecer nas Escrituras: "É impossível dizer ou entender completamente qualquer coisa sobre Deus além do que nos foi divinamente dito ou revelado, pelas declarações sagradas do Antigo e do Novo Testamento."17 Os dois primeiros capítulos de João fornecem um bom resumo da apresentação patrística feita no capítulo anterior. O próprio Melanchthon segue o espírito dos dois primeiros capítulos em seu Loci Communes (1521).18 Se João tivesse parado por aqui, tudo estaria bem. O 15

John of Damascus, An Exact Exposition of the Orthodox Faith, em Writings, trans. Frederic H. Chase, Jr. (Washington, D.C.: Catholic University of America Press, 1958), I.1 (Fathers of the Church, 165).

16 John of Damascus, An Exact Exposition of the Orthodox Faith I.1 (Fathers of the Church, 166).

17 John of Damascus, An Exact Exposition of the Orthodox Faith I.2 (Fathers of the Church, 168).

18 Philipp Melanchthon, Loci Communes (1521), preface (CR 21:83-85).

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problema aparece no terceiro capítulo, onde ele pretende demonstrar a existência de Deus. Embora o que ele diz nesse capítulo tenha apoio patrístico, a maneira como ele apresenta esse material o leva decididamente na direção de Anselmo e Aquino. Para João, a existência de Deus não é posta em dúvida por aqueles que aceitam as Escrituras nem pela maioria dos gregos, já que o conhecimento da existência de Deus foi revelado por meio da natureza. Entretanto, a maldade do demônio levou alguns a dizer que Deus não existe. As Escrituras registram, observa João, que "o insensato disse em seu coração: 'Não há Deus'" (Sl 14.1). Os apóstolos realizaram milagres pelo poder do Espírito Santo para mostrar às pessoas a existência de Deus. Da mesma forma, os pastores e mestres que seguiram os apóstolos realizaram milagres e procuraram, pela graça do Espírito, iluminar os que estavam nas trevas. Já que, por sua própria admissão, João não tem esse dom de milagres ou de ensino, ele se propõe passar adiante dois argumentos que foram transmitidos na história da igreja para demonstrar a existência de Deus.

O primeiro argumento de João começa com a premissa de que todas as coisas são criadas ou não criadas. Tudo o que é criado está sujeito a mudanças por corrupção ou vontade; tudo o que é incriado não está sujeito a mudanças. Tudo o que está dentro de nosso alcance de experiência está sujeito a mudanças e a ser movido de várias maneiras. Os seres intelectuais (anjos, almas e demônios) mudam por livre escolha; o resto muda pela corrupção. João argumenta ainda que todos os seres mutáveis devem ter sido criados por algo. Mesmo que admitamos que algo foi criado por outro que também foi criado, eventualmente chegaremos a algo ou alguém que não foi criado. Portanto, "o criador é um ser incriado e totalmente imutável. E o que mais poderia ser isso senão Deus?"19 O segundo argumento de João enfoca a harmonia da criação e sua preservação. Quando observamos essas coisas, aprendemos que existe um ser que juntou todas as coisas e as preserva. João prossegue com uma série de perguntas. O que foi que ordenou as coisas do céu e da terra? O que 19

John of Damascus, An Exact Exposition of the Orthodox Faith I.3 (Fathers of the Church, 169).

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foi que organizou todas as coisas? O que foi que as colocou em movimento e continua a colocá-las em movimento? Será que não existe um arquiteto por trás de tudo isso? Essas coisas poderiam ser atribuídas à espontaneidade? O mero acaso poderia organizar essas coisas de forma tão perfeita? Não, conclui João, deve haver um arquiteto para dar conta de tudo isso. O que mais é isso se não Deus?20 Um problema persistente com esses tipos de demonstrações tem a ver com seu objetivo e público. Os cristãos certamente apreciam a força lógica dos argumentos de João porque já acreditam que Deus criou os céus e a terra e nunca se cansam de meditar em Suas obras maravilhosas (Salmos 8, 104, 111). As Escrituras tornam isso certo para eles. Os crentes raramente se perguntam sobre a lógica de tais argumentos e o que deve ser verdade para que esses argumentos sejam verdadeiros. Aqui encontramos questões espinhosas sobre a previsibilidade da existência e das ações necessárias de Deus. João dificilmente poderia ter previsto essas questões medievais impetuosamente disputadas. Deixando essas questões de lado, podemos no mínimo nos perguntar, o que foi provado por esses argumentos. Embora o tolo possa dizer em seu coração que Deus não existe, João acredita que seus dois argumentos lógicos deixam claro para qualquer pessoa razoável a existência necessária de algo que deve ser "Deus". De fato, como ele diz timidamente, se essa coisa não é Deus, o que mais poderia ser? Seja o que for, podemos dizer que nem o grego nem o muçulmano, o principal público de João, achariam isso tolo ou uma pedra de tropeço. O termo é ambíguo.

Os argumentos de João declaradamente oferecem muito pouco aos crentes. E quanto ao tolo? As Escrituras nos dizem que o tolo não apenas nega Deus (Sl 14.1; 53.1), mas também não consegue entender as obras de Deus (Sl 92.6). Pode-se argumentar que o incrédulo ouve esses argumentos e fica mais perplexo do que quando começou: ele começou dizendo que não há deus e agora precisa admitir o quão irracional é sua fé na inexistência do divino. O uso apologético de tais argumentos pode silenciar ou frustrar os incrédulos, mas isso dificilmente os levará a algo remotamente semelhante ao que João quer dizer quando conclui: "Que 20

Ibidem, (Fathers of the Church, 170).

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mais é isto, se não é Deus?" O que João quer dizer com Deus? Ele parece estar se referindo ao Deus que nos foi dado a conhecer nas Escrituras.

Ele dificilmente poderia querer dizer outra coisa (cf. Sl 96.5). E esse é exatamente o problema. Assim que atribuímos um papel construtivo ou complementar a esse tipo de conhecimento natural, é difícil ver como evitamos os ídolos intelectuais contra os quais Gregório de Nazianzo argumentou. Em tal cenário, o fundamento de qualquer alegação de crença em Deus sempre terá começado com os argumentos racionais do indivíduo. A existência de Deus não será mais um objeto de fé, mas pertencerá à razão e à natureza. É certo que essa pode ser uma leitura dura e injusta da modesta tentativa de João de demonstrar a existência de Deus.

Seu argumento, no entanto, informa diretamente as provas de Tomás e leva Tomás a afirmar que a existência de Deus não é um artigo de fé, mas sim um preâmbulo dos artigos de fé. As Escrituras, é claro, dizem o contrário. A existência de Deus pertence à fé, não à razão: "Quem quiser se aproximar de Deus deve crer que ele existe (ὅτι ἔστιν)" (Hb 11.6). Os dogmáticos luteranos citam repetidamente esse versículo contra Tomás e seus contemporâneos. Não precisamos decidir se João pretendia descrever as terríveis consequências sugeridas aqui. Melanchthon e Chemnitz corretamente detectaram em João uma nova maneira de falar sobre Deus e uma nova visão teológica.

Anselmo de Canterbury

Anselmo (1033-1109), monge beneditino e abade do famoso mosteiro de Bec, passou trinta anos de sua vida ensinando os monges que lhe foram confiados (1063-93). Mais tarde, ele serviria como arcebispo de Canterbury (1093-1109). Anselmo tentou mostrar em suas obras que não havia contradição entre a verdade das Escrituras e a razão. Sua suposta prova da existência de Deus, chamada desde Kant de argumento ontológico, é frequentemente vista como uma das tentativas mais ousadas na história da igreja de demonstrar a existência necessária de Deus apelando apenas para a razão.21 Essa caracterização, conforme 21

Anselmo segue esse método detalhadamente em seu Monologion, uma exposição do ser divino. No prólogo, ele explica como os monges de Bec lhe pediram que procedesse a essa meditação: "Eles especificaram... a seguinte 66

demonstrado por Jean-Luc Marion, não é apenas enganosa, mas obscurece o argumento apresentado por Anselmo.22 Nos capítulos 2 e 3 de seu Proslogion, Anselmo argumenta que Deus é "algo" (aliquid) do qual nada maior pode ser pensado.23 Esse "algo" é o que se quer dizer quando usamos o nome Deus - um fato que seria admitido prontamente até mesmo pelo tolo que disse em seu coração que não há Deus. Se o tolo admite a existência desse "algo" é a questão; o fato de que o tolo entende o significado das palavras e, portanto, que esse "algo" existe no entendimento é indiscutível para Anselmo. Poderíamos questionar esse ponto observando uma série de possíveis razões para o mal-entendido do tolo, desde falha semiótica (o lexema ou signo linguístico é desconhecido) até falha semântica (o significado do enunciado é equívoco ou obscuro). De certa forma, Anselmo antecipa esse tipo de preocupação. Como as Escrituras declaram que o tolo "disse em seu coração" (Sl 14.1), surgiria uma contradição se concluíssemos que o tolo não poderia pensar algo que ele já "disse em seu coração". Para Anselmo essas são expressões sinônimas. Portanto, ele pode afirmar com segurança que o tolo entende o significado das palavras.24 Outro problema, certamente mais relevante para nossa investigação, tem a ver com a epistemologia de Anselmo.25 A maioria de nós não adota mais as suposições platônicas que ele defendia em relação forma para esta meditação escrita: nada a ser argumentado com base na autoridade das Escrituras, mas as restrições da razão concisamente para provar, e a clareza da verdade claramente para mostrar, no estilo simples, com argumentos cotidianos e dialética realista, as conclusões de investigações distintas." Anselmo de Canterbury: The Major Works, ed. Brian Davies e G. R. Evans (Oxford: Oxford University Press, 1998), 5.

22 Jean-Luc Marion, "Is the Ontological Argument Ontological? The Argument According to Anselm and Its Metaphysical Interpretation According to Kant", em Flight of the Gods: Philosophical Perspectives on Negative Theology, ed. Ilse Bulhof e Laurens ten Kate (Nova York: Fordham University Press, 2000), 78-99.

23 Anselm Proslogion II; St. Anselm's Proslogion, ed. e trans. M. J. Charlesworth (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1979), 116.

24 Anselm Proslogion IV; Charlesworth, 119-21.

25 Etienne Gilson, "The Meaning and Nature of St. Anselm's Argument", Medieval Essays, trans. James Colbert (Eugene, OR: Cascade Books, 2011), 39-41.

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ao intelecto, às ideias e à realidade. Nessa tradição, mediada como foi por séculos de reflexão cristã, o que está no intelecto, na ideia, é mais real do que o que é mensurável pelos sentidos.26 O fato de uma ideia inata, por assim dizer, corresponder à realidade é muito diferente da forma como geralmente articulamos esse tipo de posição platônica. Sugerimos que qualquer ideia "melhor possível" ou "maior que" que possamos ter deve corresponder à realidade. Essa foi a abordagem adotada por Gaunilo de Marmoutiers e sua ilha perfeita.27 Como isso é obviamente absurdo, descartamos o modo de pensar de Anselmo e presumimos que descobrimos sua fraqueza. Não o fizemos; apenas entendemos mal seu argumento e impusemos a ele uma posição extrema que pareceria tão estranha para ele quanto para nós.

No Proslogion, Anselmo expõe uma contradição iminente para o tolo. Todos devem reconhecer que "algo" que existe na realidade e no entendimento é maior (maius) do que "algo" que existe apenas na mente.

Mas esse "algo", do qual não se pode pensar nada maior, não pode existir apenas na mente e não existir também na realidade e continuar sendo aquilo do qual não se pode pensar nada maior: tal fato seria uma contradição. Portanto, conclui Anselmo, esse "algo" existe tanto na mente quanto na realidade, e a esse "algo" chamamos Deus. Além disso, não se pode sequer pensar que esse "algo" não existe. Esse "algo" que necessariamente existe é Deus: "E Tu, Senhor nosso Deus, és isto (hoc)".

Anselmo identifica três graus de existência em seu breve argumento.28 Antes de concluir que o "algo" no intelecto também deve estar na realidade, ele dá o exemplo de um pintor. Quando o pintor planeja criar algo, ele tem essa coisa em sua mente, mas ela ainda não existe porque está apenas em sua mente. Esse é o grau mais baixo: o item está no entendimento, mas não na realidade. O segundo grau é o movimento feito para evitar a contradição mencionada acima: o "algo" deve estar tanto no entendimento quanto na realidade (in intellectu et in re).

O grau final de existência é o que Anselmo sugere no capítulo 3 e afirma 26

Davies e Evans, "Introduction", Anselm of Canterbury, xii.

Anselm Pro Insipiente 6; Charlesworth, 162-65.

28 Marion, "Ontological Argument", 91.

27

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claramente no curto capítulo 15 do Proslogion, que se intitula "Como Ele é maior do que se pode pensar". Ele escreve: "Portanto, Senhor, não apenas Você é aquilo que não pode ser pensado como algo maior, mas Você também é algo maior do que pode ser pensado."29 Anselmo convida o leitor que viajou com ele pelo Proslogion a confessar que este Deus existe precisamente porque Ele permanece além de nossa compreensão. JeanLuc Marion escreve: "Portanto, Deus existe na realidade de uma maneira muito especial - não porque Ele está no entendimento, mas apesar do fato de que Ele não está. Além disso, Ele está na realidade porque não está no entendimento."30 Esse é o terceiro e mais alto grau de existência para Anselmo.

Se não reconhecermos os três graus de existência de Anselmo, corremos o risco de confundir seus esforços com os de Descartes, que postulou a existência necessária de Deus no segundo grau listado acima.

Deus não transcende nossos pensamentos e concepções humanas.

Embora a linguagem de Descartes seja exaltada (Deus é o Ser Supremo que possui todas as perfeições supremas), Deus é, no entanto, um ser determinado ao alcance do sujeito pensante. Esse não é o caso de Anselmo. De fato, reconhecer que Deus em Sua plenitude não pode ser compreendido pela mente humana, o que significa, como Anselmo conclui corretamente, que este Deus é o aliquid, é uma humilde reverência às Escrituras. Depois de estabelecer esse terceiro grau de ser, Anselmo se volta imediatamente para as Escrituras: "Em verdade, Senhor, esta é a luz inacessível em que habitas" (1Tm 6.16), e, no entanto, é somente por meio dessa Luz que vemos a luz (Sl 36.9).31 Deve ficar claro, como ficou com Atanásio, que o que Anselmo está fazendo com essa "prova" está longe de ser uma demonstração filosófica da existência de Deus. Esse tipo de demonstração pertence a Descartes e seus sucessores. Anselmo está buscando algo de ordem superior, algo que transcende o conhecimento humano, algo que só pode ser conhecido quando esse algo se revela a nós e nos leva à compreensão por meio da fé. O argumento de Anselmo não 29

Anselm Proslogion XV; Charlesworth, 137: "Ergo domine, non solum es quo maius cogitari nequit, sed es quiddam maius quam cogitari possit."

30 Marion, "Ontological Argument", 92.

31 Anselm Proslogion XVI; Charlesworth, 137.

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leva à vitória da razão humana, mas à sua derrota à parte da fé.

O sintagma que Anselmo usa ao longo de sua argumentação às vezes é traduzido como "um ser do qual nada maior pode ser pensado/concebido". Anselmo, entretanto, usa palavras como aliquid, id, quiddam - todas palavras indefinidas - para se referir à "coisa" ou ao "que" em consideração. É significativo que ele comece com algo que é indeterminado. Ele não começa com um conceito determinado de ser, como Descartes faz, e prossegue para demonstrar a existência necessária do conceito. Em vez disso, para Anselmo, o "isso" que está sendo concebido não pode ser concebido; não pode ser apreendido, conceitualizado ou determinado pelo sujeito pensante. Jean-Luc Marion se refere a isso como o ponto de partida não conceitual de Anselmo. O aliquid, se tal coisa existe, não podemos conceber; se podemos concebêlo, então não é Deus, porque Deus transcende todas as definições e habita em uma luz inacessível. E, no entanto, para Anselmo, isso não significa que Deus escape de nossos pensamentos. Como explica Marion, Deus é encontrado pelo pensamento sob duas condições: primeiro, o pensamento experimenta o máximo do concebível; segundo esse mesmo pensamento reconhece que não pode superar, conquistar ou governar o aliquid por causa de sua finitude. Em outras palavras, Deus começa onde esgotamos nossas tentativas de determiná-Lo e onde nos rendemos com humildade à fé. Ele começa quando chegamos, como Gregório colocou, à quietude (Sl 46.10). Marion conclui: [O sintagma de Anselmo] não pretende definir Deus por meio de um conceito, nem mesmo de forma negativa, nem dar acesso a qualquer item ou ser transcendental. Ele apenas indica os limites sentidos por todos os esforços possíveis em direção a qualquer concepção de Deus, ou seja, todos os esforços para pensar além dos limites de nosso poder de pensar. Esse sintagma lida mais com nossa finitude do que com a concepção de Deus, pois revela a finitude essencial de nossos pensamentos, independentemente do progresso que possam alcançar indefinidamente.32 32

Marion, "Ontological Argument", 88.

70

O argumento de Anselmo, qualquer que seja o sucesso que atribuímos a ele pelos seus argumentos, resulta com muito mais restrição e humildade do que o oferecido por Descartes.33 Vemos isso especialmente na maneira pela qual Anselmo começa e termina seu Proslogion.

No Prefácio do Proslogion, Anselmo nos diz que escreverá do ponto de vista "de alguém que procura entender o que acredita".34 Por essa razão, ele anexou um subtítulo à sua obra: fides quaerens intellectum, a fé buscando o entendimento.35 Vemos a seriedade desse subtítulo na maneira como Anselmo começa sua alocução: Venha agora, homem insignificante (homuncio), deixe de lado seus assuntos, abandone-se e descanse em Deus. Em seguida, Anselmo se volta para a oração, implorando a Deus que o ensine e lhe mostre o caminho, "pois nada podemos fazer de útil sem Ti".36 Ele continua: "Ensina-me a buscar-Te e revela-Te a mim enquanto busco, pois não posso buscar-Te se não me ensinares como, nem encontrar-Te a menos que Tu te revelares".37 O ponto de partida para Anselmo é a fé e a oração; é essa fé que lhe permite buscar o entendimento. Mais especificamente, uma vez que a fé é o início, é o próprio Deus que deve vir a Anselmo, que deve se revelar, elevandoo, se quiser ser conhecido. Anselmo continua:

33

Cf. Kevin Vanhoozer, Remythologizing Theology: Divine Action, Passion, and Authorship (Cambridge: Cambridge University Press, 2012), 93-94: "Pois a chamada teologia do 'ser perfeito' associada a Anselmo teve uma segunda vinda, por assim dizer, com Descartes, com uma diferença importante: a abordagem anselmiana empregou o conceito de forma ministerial e com um objetivo intratextual, com a intenção de expor a lógica do relato bíblico de Deus.

Portanto, pode ser útil distinguir o teísmo bíblico-teológico das eras patrística, medieval e da Reforma do teísmo mais propriamente filosófico da era moderna, durante a qual o conceito de um ser "do qual nada maior pode ser pensado" inicia uma carreira própria, independente da narrativa bíblica e do Deus de três pessoas do evangelho. O teísmo filosófico moderno recebe suas ordens de marcha não do cânone, mas do conceito de um ser de perfeição infinita."

34 Prefácio do Proslogion de Anselmo; Charlesworth, 102.

35 Prefácio do Proslogion de Anselmo; Charlesworth, 104.

36 Anselm Proslogion I; Charlesworth, 115.

37 Anselm Proslogion I; Charlesworth, 115.

71

Não tento, Senhor, alcançar Tuas alturas elevadas, pois meu entendimento não está à altura delas. Mas desejo entender um pouco a Tua verdade, aquela verdade que meu coração acredita e ama. Pois não busco entender para poder crer, mas eu creio para poder entender. Porque também creio nisto, que "a menos que eu creia, eu não entenderei" (Is. 7.9).38

Quando temos em mente que Anselmo inicia o Proslogion com uma oração, que ele constantemente busca a ajuda do Senhor para compreender e que essa compreensão procede da fé que ele confessa, o início de sua prova da existência de Deus assume um caráter totalmente diferente. Por essa razão, seria um erro apressar demais a maneira pela qual ele começa sua prova no capítulo 2: "Pois bem, Senhor, Tu que dás entendimento à fé, concede-me que eu possa entender, tanto quanto Tu achas conveniente, que Tu existes como nós acreditamos".39 Quando você lê a obra em sua totalidade, não poderá deixar de ver que ela é uma obra de devoção, repleta de oração, sempre começando com a fé, buscando o rigor e a clareza filosófica, para que o "dom gratuito" da fé possa ser compreendido por meio da "iluminação" de Deus.40 Quando lido dessa maneira, o leitor termina o trabalho como Anselmo: Eu oro, ó Deus, para que eu possa conhecer e amar a Ti, para que eu possa me alegrar em Ti. E se eu não puder fazer isso plenamente nesta vida, que eu possa gradualmente progredir até que ela chegue à plenitude... Até lá, que minha mente medite sobre [Sua verdade], deixe que minha língua fale dela, deixe que meu coração a ame, deixe que minha boca a pregue. Deixe que a minha alma tenha fome dela, deixe que minha carne tenha sede dela, que todo meu ser a deseje, até que eu entre na "alegria do Senhor" [Mateus 25.21], que é Deus, Três em Um, "abençoado para sempre".

Amém" [Rm 1.25].41 38

Anselm Proslogion I; Charlesworth, 115.

Anselm Proslogion II; Charlesworth, 117.

40 Anselm Proslogion IV; Charlesworth, 121.

41 Anselm Proslogion XXVI; Charlesworth, 153, 155.

39

72

Dois pontos básicos devem ser observados com relação a Anselmo. Por um lado, ele ainda opera muito dentro do modelo patrístico da fé que busca o entendimento (Agostinho) ou da fé que dá plenitude à razão (Gregório de Nazianzo). Suas prioridades estão corretas; seu instinto de começar e terminar com a humildade da oração é digno de ser imitado. Ao mesmo tempo, sua tarefa, seu propósito e sua confiança na razão humana, embora em última análise, sejam considerados insuficientes e empregados em sua hermenêutica da piedade, são claramente algo novo, algo decididamente medieval e não patrístico. Esse ponto não passou despercebido pelos dogmáticos luteranos. É raro qualquer interesse no projeto anselmiano. Em vez disso, eles passam em silêncio por esses argumentos e provas em suas próprias considerações sobre o conhecimento natural. Seu silêncio é seu julgamento, não sobre o método teológico de Anselmo, mas certamente sobre esse tipo de empreendimento teológico.

Tomás de Aquino

O teólogo mais importante do período medieval foi Tomás de Aquino (1224 a 1274). Ele realizou suas tarefas principalmente no contexto da universidade medieval, fato que o diferencia dos Pais cujas vidas e trabalhos teológicos foram despendidos, em sua maior parte, na igreja como bispos. Não apenas o cenário para o intercâmbio e a reflexão teológica mudou, mas também, e talvez de forma mais significativa, surgiu um novo método para expressar as verdades teológicas. O método escolástico que viria a dominar o período medieval encontrou seu melhor representante na mente rigorosamente precisa de Tomás de Aquino. Sua obra mais significativa, Summa Theologiae, é uma tentativa de apresentar as verdades da fé cristã da forma mais ordenada e lógica possível. Tomás escreveu essa obra no final de sua vida. Ele começou a escrever em 1266 e parou abruptamente após uma experiência mística enquanto rezava a missa em 6 de dezembro de 1273. Ele morreu três meses depois.

No início da Summa Theologiae, Tomás estabelece uma importante distinção entre artigos de fé (articuli fidei) e preâmbulos aos artigos

73

(praeambula ad articulos).42 Os artigos de fé transcendem a razão humana e são revelados por Deus por meio das Escrituras.43 Os preâmbulos aos artigos de fé são conhecidos pela razão à parte das Escrituras. A doutrina da Trindade é um artigo de fé que requer revelação; a existência de Deus é um preâmbulo dos artigos porque pode ser conhecida pela razão humana à parte da revelação. Embora os dogmáticos luteranos exibam uma grande dívida para com a teologia trinitária de Tomás, algo que mostraremos detalhadamente na parte 3, eles o criticaram por atribuir a existência de Deus aos preâmbulos da fé.44 Como observado acima, a Escritura diz o contrário: "Quem quiser se aproximar de Deus deve crer que ele existe (ὅτι ἔστιν) e que recompensa aqueles que o buscam" (Hb 11.6). Embora os dogmáticos tenham criticado corretamente Tomás nesse ponto, devemos observar seu conservadorismo. Durante o período medieval, muitos também pensavam que a razão poderia conhecer a trindade das pessoas. Abelardo argumentou que Platão ensinou tudo o que é essencial para se conhecer a Trindade.45 Raymond Lully declarou que o mistério da Trindade pode ser demonstrado "somente pelo poder natural do intelecto, sem revelação".46 Tomás trabalhou contra essas 42

Thomas Aquinas ST I.2.2 ad 1.

Thomas Aquinas ST I.1.1c.

44 Veja, por exemplo, Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and on the Trinity, trans. Louis: CPH, 2007), Exegesis II, §58, 57; e Abraham Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1655), 2:140.

Calov faz a mesma observação em Systema 2:110 e 130. Embora Gerhard tenha levantado a questão, até onde posso determinar, Calov é o primeiro teólogo luterano a discutir a distinção de Tomás entre artigos de fé e preâmbulos dos artigos.

45 Abelardo Theologia Summi Boni 1.36, em Petri Abaelardi opera theological, Corpus christianorum continuation mediaevalis, vol. 13 (Turnhout: Brepols, 1987), 98-99. Abelardo termina sua obra sobre a Trindade declarando que todas as pessoas - cristãos, judeus e gentios - podem conhecer Deus como poder, sabedoria e bondade por meio da razão. Abelardo Theologia Summi Boni 3.100, 200-201. Da mesma forma, Hugh of St. Victor escreve: "Dizemos que a razão, por meio da luz <da verdade> naturalmente implantada nela, poderia primeiro saber que Deus existe, depois que Deus é uno e, em seguida, que Deus é Triúno ". Ver Hugh of St. Victor, Sentences on Divinity, parte 3 em Trinity and Creation: A Selection of Works of Hugh, Richard, and Adam of St. Victor, ed. Boyd Taylor Coolman e Dale M. Coulter (Hyde Park, NY: New City Press, 2011), 157.

46 Para o comentário de Lully e outros semelhantes, veja Gerhard, Theological 43

74

ambiciosas buscas em sua Summa, rejeitando explicitamente a posição de Abelardo.47 Depois de estabelecer a distinção entre artigos de fé e preâmbulos de fé, Tomás explora longamente "a unidade da essência divina" (I.2-26) e "a Trindade das pessoas em Deus" (I.27-43).48 Seguem-se duas discussões sobre Deus. A primeira, de deo uno, aborda Deus de forma abstrata e filosófica por meio dos preâmbulos da fé. A segunda, de deo trino, discute Deus como Trindade como um artigo de fé. As provas de Tomás para a existência de Deus pertencem a essa primeira divisão. Embora não seja evidente que Deus existe, a existência de Deus pode ser demonstrada.49 Tomás cita Romanos 1 como sua garantia. Dois tipos de demonstração podem ser usados: a demonstração a priori, que foi buscada por Anselmo, e a demonstração a posteriori. Tomás favorece o segundo tipo de demonstração, que deduz causas preexistentes de efeitos observáveis. É nesse ponto que Tomás prossegue com suas "cinco maneiras" de "provar" a existência de Deus.50 A primeira maneira usa o argumento do movimento. Tudo o que está em movimento é colocado em movimento por outro. Como tudo o que se move, seja de fato ou potencialmente, é movido por outro e essa troca de motor movido não pode continuar até o infinito, é necessário chegar a um primeiro motor, colocado em movimento por nenhum outro.

"Isso", conclui Tomás, "todo mundo entende que é Deus".

Commonplaces: On the Trinity, Exegesis III, §27, 283. Da mesma forma, Gerhard cita o teólogo reformado Bartholomew Keckerman, que coloca a razão acima das Escrituras. Keckerman escreve: "Deixaremos claro para os antitrinitarianos que a trindade de pessoas flui da própria essência de Deus e que Deus não pode ser Deus sem ter três modos diferentes de existir, como pessoas. Quando tivermos demonstrado isso, também apresentaremos testemunhos da Sagrada Escritura" (Gerhard, §27, 283-84). Francis Pieper cita a rejeição de Quenstedt a Keckerman.

Veja Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:400.

47 Thomas Aquinas ST I.32.1.

48 Tomás usa essas frases para a divisão que ele fez no prefácio da ST I.27.

49 Thomas Aquinas ST I.2.1-2.

50 O resumo a seguir, expresso em grande parte nas próprias palavras de Tomás, foi extraído de Thomas Aquinas ST I.2.3c.

75

A segunda maneira é baseada na ordem das causas eficientes. No mundo dos sentidos, há uma ordem de causas e não há exemplo de algo que seja a causa eficiente de si mesmo (causa efficiens sui ipsius). Se tal coisa existisse, ela seria necessariamente anterior a si mesma, o que é impossível.

Como todo efeito tem uma causa anterior e não é razoável continuar até o infinito, deve haver uma primeira causa eficiente. A essa primeira causa, conclui Tomás, "todos dão o nome de Deus".

O terceiro caminho é baseado na possibilidade e na necessidade.

Quando consideramos as coisas que existem ao nosso redor, descobrimos que foram criadas e que se corromperam. Portanto, elas têm a possibilidade de ser ou não ser. Se tudo tem a possibilidade de não ser, então poderia ter havido um tempo em que nada existia. Mas isso apresenta um problema: se houve um tempo em que nada existia, não poderia haver agora um tempo em que as coisas existem, já que tudo o que existe só começa a existir por algo já existente. Isso significa que deve existir "algo" cuja existência é necessária. Agora, toda coisa necessária ou tem sua necessidade causada por outra ou não. Como não podemos ir até o infinito, devemos postular a existência de algum ser que possua sua própria necessidade e que cause em outros a necessidade deles. "Isso", conclui Tomás, "todos os homens chamam de Deus".

A quarta maneira é tirada da gradação das coisas. Entre as coisas, algumas são mais ou menos boas, verdadeiras, nobres etc. Mais ou menos é predicado de coisas diferentes de acordo com a maneira pela qual elas se relacionam com um máximo. Diz-se que algo é mais ou menos quente quanto mais se assemelha ao que é mais quente. O argumento funciona de forma semelhante para o que é mais verdadeiro, melhor, mais nobre e o que é o ser máximo (maxime ens). Além disso, o máximo em qualquer gênero é a causa de tudo naquele gênero. O fogo, que é o máximo do calor, é a causa de todas as coisas quentes. O mesmo argumento vale para o ser: deve haver algo que seja para todos os seres a causa de seu ser. E isso, conclui Tomás, "chamamos de Deus".

A quinta maneira é extraída do governo do mundo. Podemos observar que as coisas desprovidas de inteligência, como os objetos materiais na natureza, agem para um fim. Isso fica claro no fato de que 76

eles "geralmente" agem da mesma forma e atingem seu objetivo por propósito, não por acaso. Algo sem inteligência pode atingir seu objetivo somente se for dirigido por algo com inteligência, como a flecha que atinge seu alvo por causa de um arqueiro. Portanto, conclui Tomás, há um ser com inteligência que direciona todas as coisas naturais para seus fins. E a isso "chamamos Deus".

Depois de apresentar essas provas da existência de Deus, Tomás as coloca em prática. Ele se volta para uma longa discussão sobre a simplicidade e os atributos de Deus, a fim de mostrar a dificuldade de falar corretamente sobre Deus. Aqui vemos com clareza sua própria compreensão do que a razão natural realiza e sua relação com o conhecimento revelado de Deus. Tomás apela a todas as cinco maneiras de mostrar a simplicidade absoluta de Deus.51 Tomás retorna regularmente a esses cinco caminhos em sua discussão sobre Deus. Em um determinado momento, ele faz uma pausa para esclarecer a relação entre o conhecimento obtido pela razão e aquele recebido pela fé nas Escrituras. Ele começa, como faz com frequência, com Romanos 1. Deus pode ser conhecido por nós por meio de Seus efeitos criados.52 Embora a razão possa não conhecer a essência completa de Deus, a essência de Deus, algo que também escapa à fé, ela pode saber se Deus existe e o que necessariamente pertence a Ele por causa dessa existência.53 Por exemplo, ao refletir sobre os efeitos da realidade criada, a mente passa a considerar as causas e conclui que Deus é a primeira causa de todas as coisas. Além disso, essa primeira causa deve exceder todas as coisas causadas por Ele.54 Nesse ponto, Tomás pergunta se um conhecimento mais elevado de Deus está disponível por meio da graça. A resposta é sim. A graça produz um conhecimento mais perfeito (perfectior) de Deus.55 Quando nos voltamos para as Escrituras, passamos a ter um conhecimento mais pleno ou mais completo (plenior) do Deus que é "Três 51

Thomas Aquinas ST I.3.7c.

Thomas Aquinas ST I.12.12.

53 Thomas Aquinas ST I.12.13 ad 1.

54 Thomas Aquinas ST I.12.12c.

55 Thomas Aquinas ST I.12.13c.

52

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e Um".56 O uso de comparativos por Tomás para descrever a relação entre o conhecimento natural e o revelado, entre a razão e a fé, ressalta sua complementaridade. Aqui nos deparamos com outro problema. Michael Buckley explica: "O método problemático e os princípios reflexivos de Aquino distinguem dois caminhos para a consciência e convicção religiosa."57 O primeiro é filosófico (preâmbulos) e concorda com o segundo, que é teológico e baseado na revelação (artigos). Seja o que for que queiramos dizer sobre o conhecimento natural, suas limitações e inadequações, para Tomás, no entanto, ele contribui para nossa compreensão de Deus. Em vez de ver uma disjunção entre o teísmo filosófico e o trinitarismo bíblico, ele vê uma complementaridade. Esse primeiro tipo de conhecimento, que começa conosco e com nossos esforços racionais, que pertence aos preâmbulos da fé, é construído pela fé e pela revelação de Deus. Deus se dá a conhecer primeiro pela natureza, por meio da razão, e depois pelas Escrituras, por meio da fé. Deus pega nosso esforço inicial por meio da razão e o aperfeiçoa, o completa, acrescentando a ele Sua identidade eterna como três pessoas irredutíveis em uma essência indivisível. Podemos chamar isso de facere quod epistemológico.58 Talvez a distinção entre essência e existência ocasione algum alívio. Tomás não concede simplesmente o conhecimento da existência de Deus? A resposta sobre quem é Deus e que tipo de Deus é que pertence aos artigos de fé e, portanto, às Escrituras, certo?

Diferentemente dos Pais gregos do capítulo anterior, Tomás, assim como Tertuliano, atribui um valor positivo ao conhecimento natural de Deus e à existência de Deus. Esses argumentos não nos levam à humildade, mas contribuem para nossa doutrina de Deus. Compreender a existência de uma coisa é saber algo sobre essa coisa. Não importa o quão indefinido 56

Thomas Aquinas ST I.12.13 ad 1.

Michael Buckley, At the Origen of Modern Atheism (New Haven, CT: Yale University Press, 1987), 55.

58 Hermann Sasse descreve os cinco caminhos de Tomé como "a teologia da glória das provas através do paganismo para provar a existência de Deus".

Hermann Sasse, We Confess Anthology (St. Louis: CPH, 1999), 1:45.

57

78

ou abstrato uma pessoa queira tornar essa "coisa" em consideração, ela ainda é uma coisa e não outra. Atribuir existência a algo significa que você tem, no mínimo, uma compreensão rudimentar de como a coisa que existe, e isso lhe diz que tipo de coisa ela é. Simplificando, ser é ser alguma coisa ou outra.59 Tomás afirma isso claramente: "A existência de Deus é a própria essência Dele, o que não pode ser dito de nenhum outro."60 Os defensores e comentaristas de Tomás enfatizam esse ponto. Etienne Gilson explica: Postular Deus dessa forma é afirmar um ato de existir que não precisa de nenhuma causa para sua própria existência. Esse não seria o caso se Sua essência fosse distinta, na medida em que é, de Sua existência. Como tudo o que existe, Deus é por Seu próprio ato de ser; mas, somente em Seu caso, temos de dizer que o Seu ser não é senão aquilo pelo qual Ele existe, ou seja, o puro ato de existir, a saber, o puro ato de existir.

Qualquer uma das provas da existência de Deus levaria à mesma conclusão, precisamente porque todas elas partem de existências contingentes para chegar ao primeiro esse que as causa. Como o próprio Santo Tomás diz sobre essa tese: ela pode ser demonstrada de muitas maneiras. Deus é a causa primeira; não tem, portanto, nenhuma causa; ora, Deus teria uma causa se a sua essência fosse distinta da sua existência, porque então não bastaria, para existir, ser o que é. Portanto, é impossível que a essência de Deus seja algo diferente de Seu ato de ser. Esse é o Deus que as cinco provas de St. Tomás busca e finalmente alcança por cinco caminhos diferentes.61

Como nossa existência é contingente, devemos concluir que o que um homem é (quod quid est homo) e que um homem é (esse hominem) são diferentes.62 Esse é o caso de todos os seres contingentes porque eles 59

Ralph McInerny, Praeambula fidei: Thomism and the God of the Philosophers (Washington, D.C.: Catholic University of America Press, 2006), 296.

60 Thomas Aquinas ST I.13.11.c.

61 Etienne Gilson, The Christian Philosophy of St. Thomas Aquinas (Notre Dame, IN: Notre Dame University Press, 1956), 91-92.

62 Essa célebre observação de Aristóteles distinguindo essência e existência deu origem a inúmeros comentários na Idade Média (Posterior Analytics, II, 7, 92b, 79

possuem o ser por participação. Como diz Tomás, a existência (esse) e a essência (quidditas entis) diferem para nós. Esse não é o caso de Deus, que é essencialmente ser.63 Somente para Deus "existência e essência são uma e a mesma coisa".64 Tomás entende que provar a existência de Deus é necessariamente dizer algo mínimo sobre a quididade ou essência de Deus. Não há meras demonstrações da existência necessária à parte da essência. Em algum momento, atingimos o limite de nossa razão humana e devemos dar lugar à fé e à revelação de Deus. Etienne Gilson explica o processo: “Provar Deus é reescalar pela razão desde qualquer ato finito do ser, até ao puro ato do ser que o causa. É aqui que o conhecimento do homem atinge o seu termo final. Quando Deus tiver sido estabelecido como o supremo Ato-de-Ser, a filosofia termina e a teologia mística começa.” 65 O que começa conosco, Deus completa. A combinação de nossos esforços naturais por meio da razão humana e a conclusão desses esforços por Deus com a dádiva da fé em Sua revelação produz um entendimento de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo. O movimento é de Deus como objeto de nossos pensamentos e expectativas racionais em relação a Deus como sujeito. Para Tomás, essa mudança precisa acontecer: Deus deve assumir Seu lugar de direito como revelador de Sua identidade trina. A razão deve ser aperfeiçoada e completada pela revelação. Caso contrário, a síntese entra em colapso. Essa abordagem parece muito diferente quando a modernidade insiste em manter Deus como objeto e nós mesmos como sujeito. Nesse sentido, como observa Steven Ozment, "o próprio Aquino pode ter semeado involuntariamente as sementes para a dissolução de sua própria síntese de razão e revelação e preparado o caminho para o racionalismo do mundo moderno".66

10-11). Para uma discussão sobre o texto e sua recepção, consulte Gilson, St. Thomas Aquinas, 89-95.

63 Thomas Aquinas, ST I.3.4c.

64 Thomas Aquinas, Expositio Posteriorum Analyticorum, II, lectio 6 n. 3: "Ipsum esse et quidditas eius est unum et idem." Texto citado em McInerny, Praeambula fidei, 297.

65 Gilson, São Tomás de Aquino, 372.

66 Ozment, Age of Reform, 52.

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Guilherme de Ockham

A abordagem de Tomás ao conhecimento e sua compreensão da relação entre Deus e o mundo encontraram seu crítico mais severo em Guilherme de Ockham (c. 1287- 1347) e seus herdeiros intelectuais, os chamados nominalistas ou terministas. A lógica de Ockham tem poucos rivais na história da igreja. Para Ockham, tentativas de demostrar e provar a existência de Deus eram irremediavelmente falhas e nunca foram além da primeira causa de um argumento cosmológico. Na melhor das hipóteses, a razão pode mostrar a probabilidade da existência de Deus, mas o Deus da razão, insiste Ockham, nunca é o Deus da Bíblia.

Os compromissos epistemológicos de Tomás e Ockham são completamente opostos um ao outro. Vemos isso especialmente na questão do conhecimento de Deus. Para Tomás, a verdade poderia ser encontrada tanto na revelação quanto no mundo. Algumas coisas foram dadas a conhecer pela fé (artigos de fé) e outras coisas foram dadas a conhecer pela razão (preâmbulos dos artigos de fé). Nenhuma delas poderia contradizer a outra, pois ambas encontravam sua fonte, seu fundamento, no próprio ser de Deus. Dessa forma, Tomás e seus contemporâneos tinham grande apreço pela interconexão de toda a realidade. Tudo o que Deus havia feito na criação e na redenção estava diante deles para ser explicado. A complementaridade do conhecimento natural e revelado de Deus fazia sentido. Ambos tinham como objetivo a mesma coisa. Tomás explica: "Uma vez que a razão natural ascende ao conhecimento de Deus por meio das criaturas e, inversamente, o conhecimento da fé desce de Deus até nós por meio de uma revelação divina - uma vez que o caminho da ascensão e da descida ainda é o mesmo (eadem) - devemos proceder da mesma forma nas coisas acima da razão que são acreditadas, como procedemos ... com a investigação de Deus pela razão".67 Durante o período medieval, os teólogos faziam distinção entre o poder absoluto de Deus (potentia absoluta) e o poder ordenado (potentia 67

Thomas Aquinas, Summa Contra Gentiles IV.1.11, trans. Charles J. O'Neill (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1975), 39.

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ordinata).68 O que Deus é capaz de fazer? Por que Ele fez as coisas que fez? Para Tomás, as coisas são como são porque era mais adequado que fossem desta forma. Deus, que é a fonte e a causa de toda a realidade criada, faz todas as coisas de acordo com a Sua sabedoria. Portanto, o modo como as coisas são reflete a sabedoria de Deus, e a isso nos referimos como a lei eterna de Deus. Como vimos acima com as cinco maneiras de Tomás, nosso conhecimento das coisas começa com os efeitos criados por Deus. A partir da consideração desses efeitos, podemos chegar a um entendimento de um primeiro motor, primeira causa, ser necessário, que é puro ato. Nosso acesso à lei eterna de Deus, essa ordem abrangente das coisas, começa com a lei natural e a razão natural, que é comum a todas as pessoas e compartilhada por toda a humanidade. A partir desse compromisso, a síntese entre a revelação e a razão encontra força e começa o trabalho de demonstrar a razoabilidade das coisas como as conhecemos. A lei natural, assim como a razão natural, tem um início promissor, mas por si só é insuficiente. A lei natural deve ser aperfeiçoada e completada pela lei divina, sendo que ambas são aspectos da lei eterna de Deus.69 Tomás traça sua discussão sobre a lei natural e a lei divina ao longo de coordenadas semelhantes às discutidas acima: assim como a graça "aperfeiçoa" a natureza e a revelação "aperfeiçoa" o conhecimento natural, a lei divina também "aperfeiçoa" a lei natural. Aqui, novamente, vemos a ênfase de Tomás sobre a interconexão de toda a realidade. Quer viajemos pela razão ou pela fé, percorremos o mesmo caminho.

Guilherme de Ockham procurou minar a previsibilidade da construção da realidade de Tomás argumentando que Deus poderia ter feito as coisas de forma diferente. Não havia necessidade inerente no que Deus fez. As coisas são como são não porque isso é o que Deus desejou.

Embora possamos achar adequado e razoável que Deus realize nossa salvação por meio da encarnação, do sofrimento, da morte e da ressurreição de Seu Filho, Ele poderia ter feito as coisas de forma 68

Heiko Oberman, The Harvest of Medieval Theology (Grand Rapids: Baker Academic, 2000), 36.

69 Joseph Wawrykow, The Westminster Handbook to Thomas Aquinas (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2005), pp. 85-90.

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diferente de acordo com Sua potentia absoluta. Ockham oferece exemplos extremos para mostrar isso. Seus oponentes o acusaram de propor um Deus incerto e arbitrário, mas não entenderam o ponto de vista de Ockham. A força de sua dialética entre o que Deus fez (potentia ordinata) e o que Ele poderia ter feito (potentia absoluta) libertou o Deus da revelação da previsibilidade da razão humana. Lutero ecoa esse sentimento em suas obras ao declarar: "Que Deus seja Deus".70 Heiko Oberman argumenta que a crítica de Ockham tem um duplo resultado. Deus não está mais ligado à criação por causalidade, mas relacionado a ela por vontade. Portanto, todos os argumentos metafísicos baseados em "vínculos causais necessários" perdem sua persuasão e credibilidade.71 Além disso, a metafísica se torna pura especulação quando se separa da autorrevelação de Deus. Não há possibilidade de raciocinar de volta a Deus por meio de fenômenos naturais porque não há ligação causal. A forma de ascensão e descida de Tomás não funcionará. As coisas são como são porque Deus quis que fossem assim e não de outro jeito possível. Se quisermos entender a vontade de Deus, devemos nos direcionar à Sua revelação. Para Ockham, os escolásticos atribuem muito à razão humana e ao conhecimento natural e muito pouco à fé e à revelação. Eles domesticam Deus e forçam a fé a se submeter à razão natural.72 CONCLUSÃO

Há duas trajetórias distintas na história da igreja sobre a relação entre o conhecimento natural de Deus e o conhecimento revelado de Deus. Uma trajetória, traçada no capítulo anterior com Atanásio e Gregório de Nazianzo, enfatiza a disjunção entre o conhecimento natural e o revelado. Não começamos primeiro com nós mesmos, nossa razão natural, e buscamos Deus. Em vez disso, olhamos para o Verbo feito carne, para a encarnação e para o nosso batismo para conhecermos a 70

Cf. Sermons on the Gospel of John,1537/38 (AE 24:72; WA 45:526.26) (OS 11); Sermon on Preparing to Die, 1519 (AE 42:105; WA 2:690.16-17) (OS 1); Disputation against Scholastic Theology, 1517 (AE 31:10, tese 17; WA 1:225.1). (OS 1).

71 Oberman, "Via Antiqua and Via Moderna", 28.

72 Oberman, "Via Antiqua and Via Moderna", 31.

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Deus. Para esses escritores, a consideração da natureza traz o conhecimento de um arquiteto divino, mas essa consciência não deve se tornar o fundamento de nosso conhecimento do Deus Triúno. Em vez disso, a consideração da natureza deve nos levar à humildade à medida que percebemos tudo o que não sabemos sobre a realidade criada, uma humildade destinada a examinar nossa arrogância intelectual e idolatrias.

Nossa consideração da natureza não constrói uma escada de Jacó, subindo do efeito para a causa, do ser inferior para o ser superior, a fim de chegar a Deus.73 Uma segunda trajetória, que remonta ao segundo século, mas que floresceu com escolásticos, deposita grande confiança na capacidade da razão natural de construir argumentos para a existência necessária de Deus. Isso foi feito de forma desigual durante o período medieval.

Embora muitos pensem que Anselmo tenha oferecido o uso mais ambicioso da razão para "provar" a existência de Deus, uma leitura mais completa de seu Proslogion cria um certo desconforto com essa caracterização. O verdadeiro problema é a complementaridade entre o conhecimento natural e o revelado, conforme sugerido por João de Damasco e insistido por Tomás de Aquino. É Tomás quem afirma ter "provado" a existência de Deus, e é ele quem afirma que esse conhecimento é "pressuposto" pela fé, preparando o caminho para um conhecimento mais perfeito e completo de Deus, conforme revelado nas Escrituras. Sua síntese encontrou seu mais forte oponente em Guilherme de Ockham. A distinção entre a potentia absoluta e a potentia ordinata de Deus libertou Deus da previsibilidade da razão humana e de nossos argumentos adequados para Seu ser e Sua vontade. Lutero e os dogmáticos luteranos, guiados pelas Escrituras, fizeram uso das melhores percepções dos Pais gregos e das melhores ideias daqueles que criticavam a síntese tomista para argumentar que o conhecimento de Deus e nossa salvação são encontrados no mesmo lugar: em Cristo Jesus, crucificado e ressuscitado por nós.

73

Cf. Lectures on Hebrews, 1517–18 (AE 29:111; WA 57:99.3-4): "Pois a humanidade [de Cristo] é aquela nossa escada sagrada, mencionada em Gênesis 28.12, pela qual ascendemos ao conhecimento de Deus."

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CONTEÚDO

4 A CENTRALIDADE DE CRISTO A ABORDAGEM LUTERANA DA TRINDADE

A Confissão de Augsburgo começa: "Ensina-se e mantém-se, unanimemente, de acordo com o decreto do Concílio de Nicéia, que há uma só essência divina, que é chamada Deus e verdadeiramente é Deus e que há três pessoas nesta única essência divina, igualmente poderosas, igualmente eternas, Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo...”1 As palavras finais da Fórmula de Concórdia são dirigidas contra os "novos arianos" e os "novos antitrinitarianos."2 Nossas Confissões Luteranas começam e terminam com uma afirmação da doutrina central da fé cristã, a doutrina da Trindade. Não há nenhuma parte de nossa fé, nenhum aspecto de nossa adoração, nenhuma expressão de nossa piedade fora da confissão de nosso Deus Triúno.

A questão que norteia toda a parte 1 deste livro é como conhecemos e falamos corretamente sobre nosso Deus Triúno, e como esse entendimento expressa nossa visão teológica, direciona nossos julgamentos doutrinários e estrutura nossa liturgia e orações. O Livro de Concórdia responde a essa pergunta desde o início, tanto estrutural quanto dogmaticamente. Antes de chegarmos à Confissão de Augsburgo, encontramos os três credos ecumênicos da igreja católica: o Credo Apostólico, o Credo Niceno e o Credo Atanasiano. Ao começar com esses três credos, nossos pais luteranos privilegiaram tanto a confissão normativa e católica da doutrina da Trindade como o primeiro artigo da teologia cristã, quanto a vida litúrgica da igreja como o local apropriado para conhecer e confessar a Trindade. Esses três credos tratam da salvação da humanidade pecadora por nosso Deus Triúno. O contexto

1 2

CA I.1-3.

FC DS XII 36-38.

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para conhecer, confessar, adorar e glorificar a Trindade é a salvação operada pelo Filho por meio da cruz e entregue a nós pelo Espírito Santo por meio da Palavra e do sacramento. Visto dessa forma, esses três credos são as palavras dos fiéis cristãos. Eles são nossa resposta à Palavra de Deus, nossa resposta ao que as Escrituras dizem sobre Pai, o Filho e o Espírito Santo. Essas palavras procedem da fé e se preocupam principalmente com a expressão correta dessa fé. Os luteranos enfatizam que Deus e a fé sempre andam juntos; eles não permitem nenhuma abstração escolástica de Deus e da fé. Isso significa que a doutrina de Deus nunca pode estar separada da justificação pela fé.

Tanto o Credo Apostólico quanto o Credo Niceno começam com a afirmação batismal "Eu creio". O Credo Atanasiano começa de forma mais explícita: "Quem quiser ser salvo deve, acima de tudo, manter a verdadeira fé cristã (católica). Quem não a mantiver íntegra e imaculada, sem dúvida, perecerá por toda a eternidade."3 Qual é a fé que deve ser mantida imaculada? O credo continua: "Esta é a verdadeira fé cristã, que adoramos um Deus em três pessoas e três pessoas em um Deus, sem confundir as pessoas ou dividir a substância divina". A fé que deve ser mantida imaculada é a Trindade, que abrange todos os artigos de fé, e essa fé trinitária é conhecida e confessada na adoração. O Credo Apostólico provou ser útil na igreja primitiva, argumenta Martin Chemnitz, porque aqueles que o conheciam eram capazes de reconhecer "aqueles que verdadeiramente pregam Cristo" de acordo com as Escrituras.4 Para Chemnitz, pregar Cristo crucificado é necessário para uma confissão correta da Trindade. Remova Cristo do centro das Escrituras ou do centro de sua adoração e sua confissão da Trindade será prejudicada.

Como luteranos, estamos acostumados a dizer que a igreja se mantém ou cai com base no artigo da justificação somente pela fé.

Embora certamente seja verdade, esse artigo procede de nossa confissão 3

Credo Atanasiano, 1-2.

Martin Chemnitz, Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:39. A declaração de Chemnitz vem do comentário de Rufino sobre o Credo dos Apóstolos (Expositio Fidei). Ele continua a oferecer um comentário semelhante de Irineu.

4

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da coigualdade e coeternidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Nesse sentido, explica Robert Preus, "a doutrina da Trindade é a base de toda a doutrina cristã". A Trindade governa todo o ensino cristão. Preus continua: "A doutrina cristã não pode ser corretamente compreendida ou ensinada, nem a Lei e o Evangelho podem ser corretamente separados à parte da doutrina da Trindade."5 Pregar o evangelho é pregar a Trindade.

O inverso é necessariamente verdadeiro: deixar de pregar a Trindade é deixar de pregar o evangelho. Não podemos pregar sobre a salvação sem as pessoas divinas que realizam essa salvação para nós. Nenhum deus genérico, nenhuma divindade filosoficamente segura funcionará aqui.

Como Lutero sucintamente nos lembra, “Toda a Trindade opera a salvação.”6 Tal afirmação significa não apenas que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são o ponto de partida e de chegada de cada artigo de fé, mas também que um entendimento correto de Deus como Trindade e de nós mesmos como pecadores dá conteúdo e peso a tudo o que dizemos sobre nossa fé cristã. Ensinar ou pregar a doutrina cristã sem a devida compreensão e referência ao autor da doutrina é fazer algo diferente da teologia cristã. Por essa razão, a doutrina da Trindade é a base de toda a teologia cristã e informa nosso falar, cantar e orar como cristãos.7 Hermann Sasse disse certa vez: "Graças a Deus, não existe uma doutrina luterana específica sobre a Trindade."8 Em mais de uma ocasião, 5

Robert Preus, The Theology of Post-Reformation Lutheranism (St. Louis: CPH, 1972), 2:15. Cf. Holsten Fagerberg, A New Look at the Lutheran Confessions 1529-1537, trans. Gene J. Lund (St. Louis: CPH, 1972), 114: "Confessar o Deus Triúno é a base comum de toda a fé cristã. Aqueles que não o fazem se colocaram fora da igreja de Cristo (CA I, 2). Nunca é demais enfatizar que a doutrina da Trindade é o fundamento da teologia da Reforma".

6 Lectures on Genesis, 1535-45 (AE 8:264; WA 44:773.4-6).

7 Edmund Schlink escreve: "A doutrina da Trindade é a base para todas as declarações das Confissões Luteranas. Isso deve ser dito com toda a definição contra as múltiplas tentativas do neoprotestantismo de dar uma nova interpretação da doutrina da Trindade da igreja antiga, conforme contida nas Confissões, ou de explicá-la fora das Confissões. Nenhum artigo das Confissões pode ser compreendido à parte da doutrina da Trindade." Theology of the Lutheran Confessions [Teologia das Confissões Luteranas], trans. Paul F. Koehneke e Herbert J. A. Bouman (St. Louis: CPH, 1961), 62 (ênfase original).

8 Hermann Sasse, "Tradition and Confession: A Response to Jaroslav Pelikan", 87

Lutero fez a mesma observação.9 Embora os luteranos não tenham, como Sasse observa e Lutero insiste, uma doutrina própria da Trindade, o mesmo não pode ser dito sobre a maneira pela qual os luteranos pensam e discutem a doutrina de Deus. Isso pode ser visto de várias maneiras.

Lutero, por exemplo, em nenhum lugar oferece uma doutrina de Deus à parte da Trindade; em nenhum lugar ele propõe um conhecimento natural de Deus que antecipe construtivamente nosso conhecimento revelado de Deus. Embora o conhecimento natural saiba o que o conhecimento revelado sabe, esses dois tipos de conhecimento são de um caráter totalmente diferente, qualitativamente diferentes. Não há complementaridade entre eles, conforme argumentado por figuras tão diversas quanto Tertuliano e Tomás. Atribuir valor positivo a um conhecimento de Deus à parte de Cristo e de Sua cruz pertence ao escolasticismo, não ao luteranismo.10 Dois pontos importantes decorrem disso para Lutero. Primeiro, se você quiser conhecer Deus corretamente, deve conhecer a si mesmo como pecador e a vontade de Deus para o pecador. A questão nunca é se uma pessoa pode chegar, pela natureza ou pela razão, a uma consciência de Deus: Lutero acredita firmemente que o filósofo consegue isso. O problema para Lutero é o que o filósofo não consegue saber: a atitude de Deus em relação a ele, a vontade de Deus em relação a ele. Se você não consegue conhecer a vontade de Deus para você, Suas promessas para você, você não está melhor do que uma vaca

Lutheran World 4:1 (June 1957): 78.

9 AE I.4: "Esses artigos [isto é, Trindade e Encarnação conforme expressos nos credos] não são assuntos de disputa ou contenda, pois ambas as partes os confessam". Em seu tratado On the Last Words of David Lutero escreve: "E esse artigo de fé [isto é, a Trindade] permaneceu puro no papado e entre os teólogos escolásticos e não temos nenhuma disputa com eles por esse motivo" (AE 15:310; WA 54:64.19-21).

10 Lectures on Hebrews, 1517-18 (AE 29:111; WA 57:99.5-11): "Portanto, aquele que deseja ascender vantajosamente ao amor e ao conhecimento de Deus deve abandonar as regras metafísicas humanas relativas ao conhecimento da divindade e aplicar-se primeiramente à humanidade de Cristo. Pois é uma temeridade extremamente ímpia que, onde Deus se humilhou para se tornar reconhecível, o homem busque para si outro caminho, seguindo os conselhos de sua própria capacidade natural."

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que olha para uma nova porteira11 O verdadeiro conhecimento sempre envolve a atitude de Deus em relação a mim. Lutero escreve: "Este, então, é o verdadeiro conhecimento de Deus: conhecer Sua natureza e vontade, que Ele revela na Palavra, onde Ele promete que será meu Senhor e Deus e ordena que eu me apegue a essa vontade pela fé."12 Quando Deus se torna sujeito, eu me torno objeto, e minha preocupação muda de pensamentos especulativos sobre Deus para as promessas concretas de Deus para mim (por mim). Embora Lutero acreditasse que os escolásticos endossavam um entendimento ortodoxo da Trindade, ele também achava que eles eram maus teólogos porque não conseguiam conhecer a vontade de Deus para eles.13 Ele escreve: "Por sua própria razão natural, eles especulam sobre atributos e distinções que são extra deum e separados da Palavra. Eles não sabem o que Deus deseja para eles."14 Para usar as distinções escolásticas introduzidas nos capítulos anteriores, os luteranos, assim como os Pais gregos, se recusam a abordar a questão An sit Deus? separada de Quid sit Deus? O Deus Triúno das Escrituras, o único e verdadeiro Deus, não é corretamente conhecido em abstrato, em teoria, no espaço neutro do esforço escolástico, mas sempre e somente por meio de uma pessoa, Jesus Cristo, o crucificado e ressuscitado, e isso pela ação do Espírito Santo por meio da Palavra e do sacramento. Para os luteranos, não existe uma mera doutrina de Deus, mas apenas a confissão fiel da salvação de um pecador pelo Pai, Filho e Espírito Santo. Bernard Lohse escreve: O que é único no discurso [de Lutero] sobre Deus é que ele nunca é teórico. É sempre claro que, no que diz respeito a Deus, temos a ver com o Senhor do mundo e da história e, portanto, de nossa própria vida. Há, portanto, uma incomparável concretude e franqueza no discurso de 11

Lectures on Genesis,1535-45 (AE 8:17; WA 44:591.38-39).

Lectures on Genesis, 1535-45 (AE 8:17; WA 44:592.6-8).

13 “Psalm 122” em Vorlesungen über die Stufenpsalmen, 1532-33 (WA 40/3:79.3). Lutero usa o adágio de Erasmo asinus ad lyram para descrever tais teólogos.

14 “Psalm 122” em Vorlesungen über die Stufenpsalmen, 1532-33 (WA 40/3:78.14-16).

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Lutero sobre Deus. Não há uma mera doutrina de Deus, mas uma declaração de fé em variações sempre novas no sentido de que Deus chama à vida, que ele julga e perdoa suas criaturas, e as leva novamente para si. Esse fato tem um significado extraordinário para a maneira pela qual Lutero adotou o dogma trinitário.15

Lutero e o Livro de Concórdia à parte da visão escolástica descrita no capítulo anterior é traçada no capítulo seguinte com John Duns Scotus.

CONHECER E FALAR SOBRE A TRINDADE

Como um luterano discute a Trindade? A abordagem luterana retorna aos compromissos bíblicos e pastorais dos Pais. Os luteranos conhecem a Trindade, como Atanásio e Gregório de Nazianzo conheciam, por meio da relação economia da Trindade para a obra da salvação. Seguimos o padrão estabelecido pelas Escrituras. Em sua explicação do Credo Apostólico, Lutero explica: “Nem você nem eu poderíamos saber nada sobre Cristo, ou acreditar nele e tomá-lo como nosso Senhor, a menos que isso fosse primeiro oferecido a nós e concedido aos nossos corações por meio da abordagem do Evangelho pelo Espírito Santo.”16 Mais uma vez Lutero afirma: "jamais poderíamos chegar a conhecer o favor e a graça do Pai, a não ser por meio de Cristo Senhor, que é espelho do coração paterno. Sem ele, nada vemos senão um juiz encolerizado e terrível. Mas também de Cristo nada poderíamos saber se não tivesse sido revelado pelo Espírito Santo."17 É o Segundo Artigo do Credo que abre e possibilita nosso entendimento correto do Primeiro Artigo; é por meio do Terceiro Artigo que conhecemos e confessamos o Segundo. No centro está o evangelho - sem evangelho, não há Trindade; sem Trindade, não há evangelho.

A abordagem conservadora de Lutero segue a ordem das Escrituras, privilegiando Cristo, o verdadeiro Filho de Deus, como o 15

Bernhard Lohse, Martin Luther's Theology (Minneapolis: Fortress Press, 1999), 209.

16 CM II.38.

17 CM II.65.

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centro das Escrituras e aquele por meio do qual somente conhecemos Deus Pai. Da mesma forma, ninguém conhece o Filho, confessando-o como Senhor, exceto pelo Espírito Santo, a quem o Pai e o Filho enviam para operar a fé por meio dos meios da graça. Pessoa e obra andam juntas.

Conhecer o Filho, ou o Pai e o Espírito, é conhecer tanto a pessoa quanto a obra. Assim, conhecer o Filho sempre envolve Sua identidade - Ele é o Cristo, o Filho do Deus vivo, Emanuel, o filho e Senhor de Davi - e Sua obra - Ele é o Redentor, o Propiciador e o Justificador do mundo, especialmente daqueles que creem (1Tm 4.10). A abordagem de Lutero à revelação de Deus a nós como Pai, Filho e Espírito Santo reflete a dos pais gregos, que entendiam e confessavam a Trindade de acordo com a economia divina. Gregório de Nissa, antecipando os pontos levantados por Lutero, escreve: Não devemos pensar no Pai como se estivesse separado do Filho, nem procurar o Filho como separado do Espírito Santo. Como é impossível ir ao Pai, a menos que nossos pensamentos sejam elevados até lá por meio do Filho, assim também é impossível dizer que Jesus é Senhor, exceto pelo Espírito Santo. Portanto, o Pai, o Filho e o Espírito Santo devem ser conhecidos somente em uma Trindade perfeita, na mais estreita consequência e união um com o outro, antes de toda a criação, antes de todas as eras, antes de qualquer coisa da qual possamos ter uma ideia. O Pai é sempre Pai, e nEle o Filho, e com o Filho o Espírito Santo.18

De acordo com as Escrituras, nosso conhecimento e discurso corretos sobre o Pai só podem ocorrer por meio do Filho, pelo Espírito Santo. O centro de nosso pensamento trinitário é sempre e necessariamente cristológico e evangélico. Conhecer o Filho é conhecer o Pai e o Espírito Santo; sem o Filho, não há conhecimento da Trindade.

O Pai não será conhecido sem Seu Filho; o Filho não será conhecido sem o Espírito Santo, que fala somente do Filho, pegando o que pertence ao Filho e declarando-o a nós. Lutero escreve: "Onde esse Deus, Jesus Cristo, está, ali está a o Deus inteiro ou a divindade inteira. Ali o Pai e o 18

Gregório de Nissa, On the Holy Spirit, NPNF, segunda série, 5:319.

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Espírito Santo devem ser encontrados. Além desse Cristo, Deus não pode ser encontrado em lugar algum."19 Ao buscarmos a identidade de nosso Deus Triúno por meio de Cristo, começamos na cruz, onde isso se torna possível. Nesse lugar inesperado, não apenas passamos a conhecer o Filho de forma mais clara e correta, mas também o Pai e o Espírito (cf. Mt 16.16-23; Lc 18.31-34), e esse conhecimento nunca está separado de uma compreensão de quem eu sou e da obra da cruz para mim. Aqui o Filho carrega meus pecados e o Pai remove de mim Sua condenação. Essa reconciliação realizada e perfeita se torna nossa por meio do trabalho sacramental do Espírito Santo, que convence o mundo do pecado e da justiça, e por cujo poder nós, como filhos adotivos e, portanto, herdeiros, confessamos Cristo como Senhor e oramos a Deus como nosso Pai. É a cruz que revela de forma mais vívida e marcante o amor de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Por essa razão, David Scaer declara que "a crucificação ... é a maior manifestação da essência de Deus".20 Abordar a questão de como conhecemos o Deus Triúno dessa maneira é enfatizar a prioridade do evangelho e da justificação pela fé para conhecer e confessar corretamente a Trindade. O conhecimento adequado de nosso Deus Triúno é, portanto, pela graça por meio da fé, e esse tipo de fé, a fé salvadora, não pode ser conhecida à parte da justiça de Cristo, pela qual somos reconciliados com o Pai. O oposto dessa verdade necessariamente se segue: conhecer Deus sem a justiça de Cristo é conhecer um Deus mentiroso e, em última análise, inventado. É por meio da fé justificadora que conhecemos corretamente o Filho, o único que nos revela o Pai, tornando-se, como Lutero coloca, "um espelho do coração do Pai", e tudo isso pela graça e pela ação do Espírito Santo.

Como esse é o caso, conhecer Deus exige corretamente que Ele se dê a conhecer a nós. E isso Ele faz em lugares surpreendentes. O criador dos céus e da terra é adorado como rei por homens sábios em um pequeno 19

“Psalm 130” in Vorlesungen über die Stufenpsalmen, 1532-33 (WA 40/3:338.35-339.14).

20 David Scaer, Christology, Confessional Lutheran Dogmatics, vol. 6 (St. Louis: Luther Academy, 1989), 75.

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canto da criação enquanto Ele dorme como bebê em uma manjedoura; o mesmo criador que sustenta toda a criação pela palavra de Seu poder envia um grito de abandono da cruz do Calvário. Na estimativa da razão humana, a manjedoura e a cruz são lugares improváveis para se encontrar o Senhor da glória e, no entanto, é nesses lugares que a fé corretamente contempla Deus. Lutero escreve: "Vamos até a criança deitada no colo de Sua mãe Maria e até a vítima sacrificial suspensa na cruz; lá realmente contemplaremos Deus, e lá olharemos para o Seu próprio coração."21 As Escrituras não permitem nenhuma distinção entre conhecer o Deus Triúno e ser revestido da justiça de Cristo. Se conhecer o Pai é conhecer a Sua glória, e a Sua glória é conhecida somente por meio da paz trazida pela obra salvadora do Filho e entregue pelo Espírito Santo pelos meios da graça, então conhecer o Pai corretamente sempre implica conhecer a salvação realizada por Cristo por meio de Sua encarnação, sofrimento, morte e ressurreição. O teólogo que busca conhecer o Deus Triúno das Escrituras deve se encontrar em lugares humildes.

O AVANÇO DA REFORMA DE LUTERO

Por que Lutero aborda a Trindade começando com Cristo e a cruz? Por que não começar com provas da existência de Deus, como fez Tomás de Aquino? Por que não estabelecer primeiro o que sabemos pela razão e pela natureza e depois passar para as Escrituras? A resposta simples para isso é que Lutero não acredita que seja possível dizer algo sobre Deus através da razão que não se leve inevitavelmente à idolatria.

Embora a razão possa dizer alguma verdade sobre Deus (Ele cria os céus e a terra), a razão não consegue saber muitas outras coisas. Em vez de repousar em humildade, a razão insiste e afirma todos os tipos de coisas razoáveis sobre Deus. Nesse processo, a razão modela para si mesma um deus e um mundo que se conformam às suas melhores ideias e suposições razoáveis. Essas percepções estão no coração do avanço da Reforma de Lutero e informam toda a sua teologia.

Em 1545, Lutero olhou para trás, para a sua descoberta, e lembrou de como ele havia chegado a distinguir entre justiça ativa e 21

Lectures on Genesis, 1535-45 (AE 3:276-77; WA 43:73.4-6).

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passiva, entre a justiça imperfeita que temos em nós mesmos, que nunca é suficiente para a salvação, e a justiça perfeita de Cristo, que está fora de nós e é nossa somente pela fé.22 Lutero admite, como é sabido, que estava "zangado" com Deus e "odiava" o Deus justo. É muito fácil descartar os comentários de Lutero como uma luta piedosa com Deus. O Deus que irritava Lutero não era o Deus da Bíblia. Lutero, o monge irrepreensível, procurou aplacar esse "Deus" com suas obras e, ainda assim, o aguilhão da lei continuou acusando Lutero, tornando seus pecados cada vez mais evidentes para ele. Duas coisas estavam em guerra: o "Deus" da imaginação de Lutero, que exigia perfeição e satisfação, e a Palavra de Deus, particularmente a lei, que esmagava a consciência de Lutero ao expor seu pecado a ele. Quanto mais Lutero tentava aplacar esse "Deus" imaginário com boas obras, mais a lei expunha seu pecado e mais furioso ele ficava. O avanço de Lutero veio quando ele permitiu que a Palavra de Deus lhe mostrasse o verdadeiro Deus, o Deus que imputa Sua justiça a nós e que misericordiosamente nos justifica pela fé, independentemente de nossas obras. Lutero parou de pensar em Deus como havia sido ensinado a fazer, como um objeto de especulação humana à parte de Sua Palavra e promessas.

O avanço da Reforma de Lutero libertou Deus de nossas melhores ideias sobre Ele. Ela permitiu que Deus fosse Deus. Além disso, ela nos libertou de nós mesmos, permitindo que repousássemos pela fé nas promessas certas de Deus, na salvação completa de Jesus Cristo, e vivêssemos alegre e livremente amando e servindo ao nosso próximo. No centro da descoberta de Lutero estava a liberdade - liberdade para Deus das restrições da razão humana e liberdade para nós das piedades autoconstruídas. Em 1517, dois meses antes de publicar as noventa e cinco teses, Lutero escreveu: "O homem é, por natureza, incapaz de querer que Deus seja Deus. De fato, ele mesmo quer ser Deus e não quer que Deus seja Deus."23 Essa tese programática informa toda a sua teologia. Lutero descreve todos nós como sendo, por natureza, incapazes de libertar Deus de nós mesmos, de nossas melhores ideias e da luz

22 23

Preface to Latin Writings, 1545 (AE 34:336-38; WA 54:185.12-186.13).

Disputation on Scholastic Theology, 1517 (AE 31:10, tese 17; WA 1:225.1-2). (OS 1).

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brilhante da razão humana. Portanto, também somos incapazes de nos libertarmos de nós mesmos. Nossas piedades autoconstruídas procedem de nossa visão autoconstruída de Deus.

Em 1532, durante suas Lectures on Psalm 51, Lutero novamente refletiu sobre sua descoberta e destacou especificamente a estreita relação entre o evangelho e a doutrina de Deus. Quando jovem, ele estremecia quando ouvia alguém mencionar "o Deus justo" e "odiava" esse nome para Deus.24 Lutero foi ensinado que Deus é justo de tal forma que Ele pune com justiça de acordo com nossos atos. Como somos todos pecadores, esse tipo de Deus nos devora. Nossas ações nunca serão boas o suficiente. Quando a Palavra da lei de Deus expõe nossos pecados (Rm 3.20; 7.7) e pesa em nossa consciência, não podemos fazer nada além de odiar esse tipo de Deus que pune de acordo com nossas ações. Essa maneira de pensar a respeito da justiça de Deus representa um falso deus e nos força a criar um falso entendimento da vida cristã. Ela mantém Deus preso às nossas ideias de quem deve ser o Deus justo e nos mantém presos a uma ideia inventada de como apaziguar esse Deus. A única maneira de suportar essa ideia de Deus é diminuir a realidade do pecado, dizer que algo que não é pecado é pecado, chamar o mal de bem e o bem de mal.

Além disso, boas obras precisam ser criadas que estarão acima e além do que Deus pede - obras de super-rogação, como eram chamadas. Novas instituições e novas regras se seguirão: monasticismo em vez de casamento, celibato em vez de filhos. Em outras palavras, para sustentar

24

Lectures on Psalm 51, 1532 (AE 12:313-14; WA 40/2:331.26-34): "Assim, quando eu era jovem, passei a odiar esse nome para Deus e, por causa desse hábito profundo, ainda hoje estremeço quando ouço alguém dizer: 'o Deus justo'. É tão grande o poder dos ensinamentos iníquos se a mente estiver imbuída desde a infância. No entanto, quase todos os primeiros teólogos expõem a questão dessa forma. Mas se Deus é justo de tal forma que Ele pune com justiça de acordo com os merecimentos, quem pode se apresentar diante desse Deus justo? Pois todos nós somos pecadores e apresentamos a Deus uma razão justa para que Ele nos castigue. Fora daqui com tamanha justiça e com um Deus tão justo! Ele nos devorará a todos como um fogo consumidor (Dt 4.24).

Pelo fato de Deus ter enviado Cristo como Salvador, Ele certamente não quer ser justo ao punir de acordo com os merecimentos. Ele quer ser justo e ser chamado de justo ao justificar e ter misericórdia daqueles que reconhecem seus pecados."

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essa falsa visão de Deus, precisamos recriar o mundo, sua ordem e nosso lugar nele. Tudo isso acontece ao contrário do mundo e da ordem estabelecidos por Deus e declarados a nós em Sua Palavra.

Lutero culpa a esperteza da razão humana pecaminosa por essa falsa visão de Deus e da vida cristã, que, em sua opinião, provém do escolasticismo. Para Lutero, o escolasticismo é tanto um método teológico quanto uma atitude teológica que valoriza muito a capacidade da razão humana de organizar e harmonizar as questões de fé, de entender as coisas e de trazer ordem a Deus e ao nosso mundo caótico. O escolasticismo não pode deixar Deus ser Deus, mas deve determinar o que é apropriado para o ser e a obra de Deus. O escolasticismo é a tentação que se esconde nas sombras para todos os que assumem a tarefa da teologia, para todos os que pensam que a teologia é algo que fazemos. É a tentação de remover Deus do mundo, de abstraí-Lo como um conceito e de nos ocuparmos com coisas além ou à parte de Cristo e Sua cruz. O escolasticismo se baseia em argumentos razoáveis e adequados sobre como as coisas devem ser de uma forma e não de outra.25 As consequências são desastrosas.

O escolasticismo produz uma teologia isolada da realidade vivida pelo crente. Para Lutero, a fé ocupa um mundo repleto de sofrimento, angústia, injustiça e morte. A fé não busca a razão para dar sentido ao mal da vida. A fé permanece firme nas promessas de Deus mesmo quando o mundo é de um jeito e as promessas de Deus são de outro. A fé confia e se apega às promessas de Deus, não a argumentos adequados e razoáveis.

Lutero escreve: "A fé é a verdadeira substância do coração, ou seja, a confiança firme e certa na promessa de misericórdia e ajuda de Deus."26 Independentemente do que o mundo nos apresente, confiamos nas promessas certas de Deus. Lutero dá os seguintes exemplos: apesar da trama perversa para matá-la, Susana "confiou no Senhor" (Dn 13.35 25

A atitude de Lutero em relação a argumentos razoáveis e adequados é mais bem vista em suas obras sobre a Ceia do Senhor. Veja, por exemplo, The Sacrament of the Body and Blood of Christ,1526 (AE 36:338, 343-45; WA 19:500, 494-97).

26 Contra Satanam et Synagogam ipsius,1542 (WA 59:722.15-16).

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Vulg.). Embora Daniel tenha sido lançado na cova dos leões, ele "confiou em seu Deus" (Dn 6.23).27 Deus nos promete vida e ainda assim estamos cercados pela morte. A fé vive nas contradições do mundo. A razão suaviza isso. A fé confia nas promessas de Deus apesar das tentações. A razão deve dar sentido ao sofrimento a fim de tornar o insuportável suportável. Como Oswald Bayer coloca, a tentatio não confirma a fé: a tentatio mostra que a Palavra de Deus é confiável e poderosa em meio à luta.28 O avanço da Reforma de Lutero, permitindo que Deus fosse Deus, libertando Deus de nossas idolatrias, implicava não apenas rejeitar uma atitude escolástica, mas buscar um caminho totalmente diferente para conhecer Deus. O jovem Lutero, é claro, pertencia mentalmente ao mundo escolástico. Ele estudou suas obras; escreveu um comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombardo, assim como Tomás de Aquino, Boaventura e todos os outros grandes teólogos do período medieval.

Lutero sabia o que estava rejeitando e por que o estava rejeitando.

Correndo o risco de simplificar demais, a principal coisa que Lutero rejeitava era a tentativa de pensar e falar sobre Deus fora da cruz. Quando pensamos em Deus em termos da cruz, só podemos fazê-lo com relação a nós mesmos e à razão pela qual o criador dos céus e da terra estaria naquela cruz. Para Lutero, isso significa que qualquer discussão sobre Deus envolve criação e redenção, pecado e graça, homem e justificação.

O avanço da Reforma de Lutero nunca foi só sobre a justificação pela fé.

Seu avanço exigiu uma ruptura decisiva com a maneira como a teologia era feita, a maneira como as Escrituras eram lidas e a maneira como a vida cristã era vivida. A justificação pela fé está no centro e pertence tanto ao entendimento de Lutero sobre Deus quanto à nossa salvação.

LUTERO SOBRE O CONHECIMENTO DE DEUS

Lutero não era um teólogo sistemático. Ele não organizou sua 27

Contra Satanam et Synagogam ipsius,1542 (WA 59:722.9-12). Para Daniel 13, veja The Apocrypha: The Lutheran Edition with Notes (St. Louis: CPH, 2012), 244.

28 Oswald Bayer, Martin Luther's Theology: A Contemporary Interpretation, trans. Thomas Trapp (Grand Rapids: Eerdmans, 2008), 37. Sobre esse tópico, veja a discussão completa de Bayer (1-43).

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teologia de acordo com as normas de sua época. Ele não oferece nenhuma doutrina de Deus além da Trindade. Ele não começa com o conhecimento natural e progride para o conhecimento revelado. Não adianta uma pessoa "reconhecer Deus em sua glória e majestade, a menos que também o reconheça na humildade e vergonha da cruz".29 Falar do poder e da glória de Deus requer falar da fraqueza de Deus na cruz. Essa conversa só faz sentido para a pessoa de fé, para aquela que é justificada por Deus e revestida da justiça de Cristo. Para Lutero, Deus e a fé estão sempre juntos.30 No comentário de Lutero sobre o Salmo 51, ele escreve: "O assunto apropriado da teologia é o homem culpado de pecado e condenado, e Deus, o Justificador e Salvador do homem pecador."31 A abordagem de Lutero para conhecer Deus gira em torno da relação entre essas duas coisas. Não podemos conhecer Deus corretamente se não conhecermos a nós mesmos; não podemos conhecer a nós mesmos corretamente se não conhecermos Deus. Ambos fundamentam um ao outro e ambos são revelados a nós. Deus declara que somos pecadores e que Ele justifica o pecador. Recebemos essa declaração pela fé e, em oração e confissão, a devolvemos a Ele, reconhecendo-nos como pecadores e Deus como o justificador dos pecadores. Davi confessa: "Contra ti, só contra ti, pequei e fiz o que é mau aos teus olhos, para que sejas justificado nas tuas palavras e irrepreensível no teu juízo" (Sl 51.4).

A confissão de Davi é a confissão de todos os crentes. Quando confessamos isso, reconhecemos que somos pecadores e que nosso pecado é contra Deus. Quando fazemos essa confissão com fé, justificamos Deus em Suas palavras, reconhecendo que Ele está certo no que Ele declarou a nosso respeito.

Lutero afirma provocativamente que "a fé faz Deus" e que nós,

29

Heidelberg Disputation, 1520 (AE 31:52-53; WA 1:362.11-13). (OS 1).

Lectures on Hebrews, 1517-18 (AE 29:110-11; WA 57:99.2). Para Lutero, Hb 1.2 estabelece "a regra bem conhecida de que se aprende a conhecer a Deus na fé".

31 Lectures on Psalm 51, 1532 (AE 12:311; WA 40/2:328.17-18): "Nam Theologiae proprium subiectum est homo peccati reus ac perditus et Deus iustificans ac salvator hominis peccatoris."

30

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como crentes devemos justificar Deus.32 Com isso, ele quer dizer que Deus é conhecido corretamente em Sua Palavra e promessas como aquele que me criou e me justificou "sem qualquer mérito ou dignidade de minha parte."33 A fé faz Deus, e os crentes justificam Deus reconhecendo que Suas palavras são verdadeiras. Quando Davi diz: "Deus é justificado em Suas palavras" (Sl 51.4), isso acontece para nós quando cremos e aceitamos as palavras de Deus como verdadeiras e justas.34 A descrença não justifica Deus em Suas palavras, mas O condena e O julga. O descrente ainda considera seu próprio entendimento, que é contrário às palavras de Deus, como verdadeiro e justo. Para essa pessoa, Deus não é justificado, mas considerado e declarado mentiroso. É claro que isso não significa que Deus seja um mentiroso, apenas que o descrente o considera como tal. Lutero explica: "Essa justificação e julgamento de Deus [mencionados por Davi] estão fora de Deus e de Sua Palavra, ou seja, nos homens. Pois, intrinsecamente, tanto Deus quanto Suas palavras são justos e verdadeiros. Mas eles ainda não se tornaram assim em nós até que nossa sabedoria se renda a eles e, pela fé, lhes dê um lugar e os aceite."35 Quando a crente confessa "Contra Ti pequei", ele abandona sua própria sabedoria e justiças humanas. Ele "liberta Deus" e a si mesmo, confessando que é pecador e injusto e que Deus é o justificador dos pecadores. O crente torna as palavras de Deus, que são verdadeiras em si mesmas, verdadeiras para ele. Para Lutero, essa é a fé que justifica. Ou seja, a fé que justifica Deus em Suas palavras é a fé que Deus imputa com a justiça de Cristo. Lutero explica: "Quando [Deus] é justificado, Ele justifica, e quando Ele justifica, Ele é justificado."36 Essas duas coisas ocorrem simultaneamente, pois é uma e a mesma fé. O argumento de Lutero ressalta o aspecto relacional da justificação: não somos justos formalmente ou de acordo com a substância, mas de acordo com a relação, nossa relação para com Deus em Cristo. Deus está justificado em 32

Lectures on Galatians,1535 (AE 26:227; WA 40/1:360.24-25): "Ea consummat divinitatem et, ut ita dicam, creatrix est divinitatis, non in substantia Dei, sed in nobis." (OS 10).

33 Cm II.2 (BSLK, 511, "Sine ullis meis meritis aut ulla dignitate").

34 Lectures on Romans,1515-16 (AE 25:210; WA 56:225.15-226.6). (OS 8).

35 Lectures on Romans,1515-16 (AE 25:210-11; WA 56:226.12-16). (OS 8).

36 Lectures on Romans,1515-16 (AE 25:211; WA 56:227.7-8). (OS 8).

99

Suas palavras em relação a nós, e nós estamos justificados perante o Pai, imputados com a justiça de Cristo e o livre perdão de nossos pecados pela obra do Espírito Santo por meio do dom da fé.37 Embora possamos entender sem muita dificuldade o que Lutero quer dizer quando ele diz que a fé justifica Deus ao crer que Suas palavras são verdadeiras, o que ele quer dizer quando diz que a fé faz Deus? Aqui devemos ter cuidado para não entender mal o ponto de vista de Lutero.

Ele usa esse tipo de expressão em todos os seus escritos. Em seu comentário sobre o Salmo 90.1 ("Senhor, Tu tens sido a nossa habitação em todas as gerações”), Lutero escreve: “Se você acredita que Deus é a sua habitação, Ele é verdadeiramente uma habitação para você. Se você não acredita nisso, Ele não é.”38 Assim como as palavras de Deus são verdadeiras e justas em si mesmas, mas só se tornam verdadeiras e justas para nós quando, pela fé, as reconhecemos como verdadeiras e justas, da mesma forma, Deus é a nossa habitação à parte da fé, mas só é conhecido como tal pela fé. Da mesma forma, quando oramos "Santificado seja o Teu nome" na Oração do Senhor, oramos para que o nome de Deus, que é santo em si mesmo (per se), seja santo também entre nós.39 Lutero discute a distinção entre o que Deus é em Si mesmo e o que Ele é para nós pela fé ou pela incredulidade em seu grande comentário sobre Gálatas. A fé é a adoração suprema de Deus porque a fé e não a razão apropriadamente atribui glória a Deus, considerando-o verdadeiro, sábio, justo, misericordioso e todo-poderoso.40 Os atributos de Deus pertencem a uma discussão sobre a Trindade, não a uma doutrina abstrata

37

Lectures on Psalm 51,1532 (AE 12:329; WA 40/2:353.36-354.19): "Portanto, o cristão não é formalmente justo, ele não é justo de acordo com a substância ou qualidade - eu uso essas palavras para fins de instrução. Ele é justo de acordo com sua relação com alguma coisa: a saber, somente em relação à graça divina e ao perdão gratuito dos pecados, que vem àqueles que reconhecem seus pecados e creem que Deus é gracioso e perdoador por causa de Cristo, que foi entregue por nossos pecados (Rm 4.25) e é acreditado por nós."

38 Lectures on Psalm 90,1534 (AE 13:88; WA 40/3:503.26-27).

39 Cm III.4 (BSLK, 512): "Nomen Dei per se quidem sanctum est, verum nos oramus hac petitione, ut apud nos quoque sanctificetur."

40 Lectures on Galatians, 1535 (AE 26:227; WA 40/1:360.21-23). (OS 10).

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de Deus. Lutero continua de forma provocativa: "[A fé] consuma a Divindade; e, se posso colocar dessa forma, é a criadora da Divindade, não na substância de Deus, mas em nós.”41 O aspecto relacional de conhecer Deus de acordo com as Escrituras torna-se mais evidente aqui.

Embora Deus seja Deus à parte de mim, em Sua substância, Ele só é meu Deus e meu Senhor quando eu O reconheço como tal pela fé.42 Sem a fé, não posso conhecê-Lo nem confiar Nele. A fé "atribui" a Deus Sua glória, sabedoria, retidão, veracidade, misericórdia etc., quando acredita que a Palavra de Deus é verdadeira e justa. Sem a fé ou sem a Palavra de Deus, nada disso pode ser dito de Deus. Lutero escreve: "A fé justifica porque rende a Deus o que Lhe é devido."43 Quando a pessoa de fé atribui tais coisas a Deus, ela o faz somente porque chegou a conhecer a si mesma como pecadora e a Deus como aquele que justifica o pecador. Ela sabe disso porque revestiu Deus com Sua Palavra e Suas promessas.

Mais uma vez, vemos que a fé e Deus andam juntos. A pessoa de fé justifica Deus em Suas palavras e permite que Deus seja Deus para si mesma como um crente. A pessoa sem fé não consegue justificar Deus e cria outro "deus" de seu próprio gosto. É por isso que a incredulidade é um pecado tão grande: ela nega a Deus quem Ele é e cria um deus diferente, um ídolo, e o chama de deus verdadeiro.44 O verdadeiro conhecimento sempre envolve a atitude de Deus em relação a mim e minha fé aceitando que as palavras de Deus sobre Ele mesmo e sobre mim como pecador são verdadeiras e justas. Justifico Deus em Suas palavras quando liberto Deus de minhas próprias ideias razoáveis. Lutero escreve: "E esta é a razão pela qual nossa teologia é certa: ela nos arranca 41

Ibidem, (AE 26:227; WA 40/1:360.24-25): "Ea consummat divinitatem et, ut ita dicam, creatrix est divinitatis, non in substantia Dei, sed in nobis." (OS 10).

42 Cf. Commentary on Psalm 68, 1521 (AE 13:26; WA 8:25.18-23): "Ninguém pode dizer 'Meu Deus e meu Rei' a menos que considere Deus com os olhos da fé, não apenas como um Deus, não apenas como um Rei, mas como seu Deus e seu Rei, como o Deus e Rei de sua salvação. Tampouco é possível reconhecer os caminhos e as obras de Deus na ausência dessa fé. A fé O torna meu Deus e meu Rei, e me leva a perceber que todas as minhas obras, afinal, não são minhas, mas de Deus."

43 Lectures on Galatians,1535 (AE 26:227; WA 40/1:361.12). (OS 10).

44 Lectures on Galatians, 1535 (AE 26:228; WA 40/1:361.28-362.14). (OS 10).

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de nós mesmos e nos coloca fora de nós mesmos, de modo que não dependemos de nossa própria força, consciência, experiência, pessoa ou obras, mas dependemos daquilo que está fora de nós mesmos, ou seja, da promessa e verdade de Deus, que não pode enganar.”45 Liberdade para Deus significa liberdade de nós mesmos. O escolasticismo, na opinião de Lutero, domestica Deus e Sua Palavra por meio de afirmações razoáveis e adequadas sobre como as coisas devem ser de uma forma e não de outra.

O escolasticismo não justifica Deus em Suas palavras, mas justifica a si mesmo em sua tentativa de conceituar Deus de acordo com suas melhores ideias.

Conhecimento natural e idolatria

Lutero insiste que todas as pessoas possuem um conhecimento natural de Deus. E, no entanto, assim como o entendimento de Lutero sobre como conhecemos a Deus é diferente do que era para os escolásticos, também o seu entendimento do conhecimento natural o leva para bem longe do que foi para os escolásticos. Para Lutero, o conhecimento natural - porque se baseia na razão - leva necessariamente a falsos entendimentos de Deus, falsa adoração e falsas formas de vida cristã. Isso ocorre porque a razão nunca pode justificar Deus em Suas palavras e, portanto, busca desesperadamente estabelecer sua própria ordem para Deus e o mundo.

Lutero faz distinção entre o conhecimento geral e particular de Deus em suas Palestras sobre Gálatas, de 1535. Todos os homens têm um conhecimento geral de que existe um "deus".46 As inúmeras religiões e formas de adoração que têm povoado a civilização humana ao longo de sua história evidenciam essa verdade. O conhecimento geral tem, no entanto, uma limitação grave: só conhece a existência de Deus, “que Deus existe”, respondendo afirmativamente à pergunta An sit Deus? Para Lutero, esse conhecimento geral revela a uma pessoa que o Deus que existe criou todas as coisas, é justo e pune o ímpio.47 Esse tipo de 45

Lectures on Galatians,1535 (AE 26:387; WA 40/1:589.25-28). (OS 10).

Lectures on Galatians, 1535 (AE 26:399; WA 40/1:607.19-20). (OS 10).

47 Lutero faz uma observação semelhante em suas primeiras Lectures on 46

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conhecimento não nos diz o que Deus pensa de nós, o que Ele quer nos dar ou fazer por nós. A razão não alcança mais do que o Deus absoluto ou o Deus nu sem Sua Palavra e promessas.48 Se Lutero tivesse parado por aqui, ele simplesmente teria repetido o que tantos defensores do Romans: "Todos aqueles que erguem ídolos e os adoram e os chamam de 'deuses', ou mesmo de 'Deus', acreditando que Deus é imortal, isto é, eterno, poderoso e capaz de prestar ajuda, indicam claramente que têm um conhecimento da divindade em seus corações. ... Este foi o erro deles, que eles não adoraram essa divindade intocada, mas a mudaram e ajustaram a seus desejos e necessidades. Todos queriam ver a divindade naquele que apelava a eles, e assim transformaram a verdade de Deus em uma mentira" (AE 25:157; WA 56:176.29-177.11). (OS 8).

48 Lectures on Psalm 51, 1532 (AE 12:312; WA 40/2:329.17-330.21): "Davi menciona Deus [no primeiro versículo do Salmo 51] e não faz nenhuma referência a Cristo. Aqui, logo no início, você deve ser lembrado de algo para que não pense que Davi está falando de Deus como um islâmico ou como algum outro gentio. Davi está falando com o Deus de seus pais, com o Deus que fez promessas. O povo de Israel não tinha um Deus que fosse visto “absolutamente”, para usar a expressão, da mesma forma que os monges inexperientes sobem ao céu com suas especulações e pensam em Deus como Ele é em Si mesmo. Desse Deus absoluto deve fugir todo aquele que não quiser perecer, porque a natureza humana e o Deus absoluto – para fins de ensino, usamos esse termo familiar são os mais amargos dos inimigos. A fraqueza humana não pode deixar de ser esmagada por tal majestade, como as Escrituras nos lembram repetidas vezes.

Portanto, que ninguém interprete Davi como se estivesse falando com o Deus absoluto. Ele está falando com Deus como Ele está vestido e revestido em Sua Palavra e promessas, de modo que do nome "Deus" não podemos excluir Cristo, a quem Deus prometeu a Adão e aos outros patriarcas. Devemos nos apossar desse Deus, não nu, mas vestido e revelado em Sua Palavra; caso contrário, o desespero nos esmagará. Essa distinção deve sempre ser feita entre os profetas que falam com Deus e os gentios. Os gentios falam com Deus fora de Sua Palavra e promessas, de acordo com os pensamentos de seus próprios corações; mas os profetas falam com Deus como Ele está revestido e revelado em Suas promessas e Palavra. Esse Deus, vestido com uma aparência tão amável e, por assim dizer, com uma máscara tão agradável, ou seja, vestido com Suas promessas - esse Deus podemos compreender e olhar para ele com alegria e confiança. O Deus absoluto, por outro lado, é como uma parede de ferro, contra a qual não podemos nos bater sem nos destruir. Portanto, Satanás está ocupado dia e noite, fazendo-nos correr para o Deus nu, de modo que nos esqueçamos de Suas promessas e bênçãos demonstradas em Cristo e pensemos em Deus e no julgamento de Deus. Quando isso acontece, perecemos completamente e caímos em desespero."

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conhecimento natural disseram ao longo da história da igreja. Lutero prossegue. Embora possamos discernir a existência de Deus por meio da razão, não podemos saber que algo existe sem também saber algo sobre essa coisa. A existência pressupõe a essência. Lutero vai ainda um passo além: a essência ou o ser de Deus nunca pode ser abstraído de Sua vontade. Lutero pergunta: "De que adianta você saber que Deus existe se você não sabe qual é a vontade Dele em relação a você?"49 Desaparecem todas as distinções escolásticas que tornaram possível uma noção ou conceito abstrato de Deus que a Escritura poderia complementar e aperfeiçoar. E com essa mudança problemas espreitam. Como todas as pessoas têm um conhecimento geral de Deus, mas não conhecem a vontade de Deus e o que Ele quer, elas necessariamente recorrem à razão para compensar a carência. O resultado é a idolatria. Essas pessoas "tornam-se fúteis em seus pensamentos" (Rm 1.21). Lutero explica: "Não sabendo o que agrada a Deus e o que desagrada a Ele, eles adoram as imaginações de seu próprio coração como se fossem Deus verdadeiro por natureza, quando por natureza não são."50 Não conhecer a vontade de Deus leva necessariamente à falsa adoração e a falsas construções de "seres que por natureza não são deuses."51 A razão promove uma ideia de Deus que não é Deus por natureza, justificando sua ideia de Deus como Deus e rejeitando o Deus verdadeiro. Lutero explica: A partir da aceitação dessa premissa principal, "Há um Deus", surgiu toda a idolatria dos homens, que teria sido desconhecida no mundo sem o conhecimento da Divindade. Mas pelo fato de os homens terem esse conhecimento natural sobre Deus, eles conceberam pensamentos vãos e perversos sobre Deus, à parte e contrários à Palavra; eles os abraçaram como a própria verdade e com base neles imaginaram Deus diferente do que Ele é por natureza.52

Lutero dá o exemplo de um monge em sua época, um exemplo 49

Lectures on Galatians, 1535 (AE 26:400; WA 40/1:608.15-16). (OS 10).

Lectures on Galatians, 1535 (AE 26:400; WA 40/1:608.19-21). (OS 10).

51 Lectures on Galatians, 1535 (AE 26:400; WA 40/1:608.23). (OS 10).

52 Lectures on Galatians, 1535 (AE 26:400; WA 40/1:608.25-30). (OS 10).

50

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que se repete em todos os seus escritos e que nos faz lembrar de Lutero, o monge, antes de seu avanço na Reforma. Esse monge "imagina" um Deus que perdoa pecados e concede vida eterna em troca de nossas boas obras. Essa é a ordem que o monge impôs a Deus e ao mundo por meio de sua razão, e essa é a ordem que ele justifica, segundo ele, como Deus e de Deus. Lutero afirma claramente: "Esse Deus não existe em lugar algum". O monge serve e adora "alguém que por natureza não é deus", mas sim uma "invenção e ídolo de seu próprio coração, sua própria noção falsa e vazia sobre Deus, que ele supõe ser a verdade mais segura".53 Lutero não conhece nenhum território neutro entre graça e ira; da mesma forma, ele não conhece nenhuma ideia neutra de Deus que exista para a razão. Ninguém tem uma noção estática de Deus à qual não ofereça, ao mesmo tempo, adoração e busque recompensa. Um compromisso com Deus - seja o Pai revelado por meio do Filho pelo Espírito Santo, um conhecimento geral derivado da natureza ou o Deus absoluto e nu do monge - sempre implica fé. Além disso, a fé justifica as palavras de Deus e recebe justificação de Deus. Se o Deus em que acreditamos é derivado de nossa razão, então a justificação que buscamos e a adoração que oferecemos serão de acordo com nossa razão. E, em todos os casos, essa é uma ideia de Deus e de justificação contrária ao evangelho.

Jonas e os marinheiros

O livro de Jonas ilustra bem o entendimento de Lutero sobre o conhecimento natural de Deus. Depois que Jonas embarcou no navio para Társis, uma forte tempestade surgiu, ameaçando o navio e sua tripulação. Nesse momento, os marinheiros ficaram com medo e "cada um clamou ao seu deus" (Jonas 1.5).54 Aqui encontramos a demonstração 53

Lectures on Galatians, 1535 (AE 26:400; WA 40/1:608.30-609.11). Cf. Ap. IV.203-5 (Tappert, 135). Veja também Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:430: "Um deus que justifica os pecadores não pela graça, mas com base em Sua justiça que remunera não existe. Todos os que negam a expiação vicária de Cristo pintaram uma caricatura de Deus e, como os pagãos, que não conhecem a Deus, adoram um ídolo." (OS 10).

54 A discussão a seguir segue de perto a exposição de Lutero (AE 19:53-57). Cf. 105

bíblica do argumento de Paulo em Romanos 1. Embora os marinheiros não tenham uma fé verdadeira e um entendimento adequado de Deus, eles sustentam, no mínimo, que existe um Deus que ajuda em momentos de necessidade.55 Se esse Deus pode ajudar em momentos de necessidade, então a razão conclui que tudo o que é bom vem desse Deus. Assim, o Deus que salva do infortúnio também concede tudo o que é bom.56 Nesse ponto, a razão chega ao seu limite: ela não sabe mais nada sobre Deus além do fato de que Ele existe e que é bondoso, gracioso, misericordioso e benevolente. Embora uma "luz brilhante", como Lutero coloca, essa visão da razão nunca se contenta com essa limitação e sucumbe a dois defeitos graves. O primeiro defeito é a falta de certeza da razão. Como Lutero coloca, você pode saber pela razão que Deus é capaz de ajudar, mas não se Ele está disposto a ajudá-lo. O segundo defeito é que a razão não consegue identificar Deus adequadamente. A razão sabe que existe um deus, mas não sabe quem ou qual é o verdadeiro Deus. Novamente, há problemas à espreita. A razão abomina a incerteza e se recusa a permitir que essas perguntas fiquem sem resposta. Quando a razão se afirma, ela vai além de sua capacidade, além das possibilidades atribuídas a essa faculdade, e fabrica ídolos e idolatria. Lutero explica: Assim, a razão também brinca de ser cega com Deus; ela sempre tateia no escuro e erra o alvo. Ela chama de Deus o que não é Deus e deixa de chamar de Deus Aquele que realmente é Deus. A razão não faria nem uma coisa nem outra se não estivesse consciente da existência de Deus ou se realmente soubesse quem e o que é Deus. Portanto, ela se

Lohse, Martin Luther's Theology, 210-12; e Roland Ziegler, "Natural Knowledge of God and the Trinity," Concordia Theological Quarterly 69:2 (2005): 153-54.

55 Gregório de Nazianzo conta que certa vez foi pego em uma terrível tempestade no mar. O navio parecia perdido e naquele momento todos a bordo clamaram a Cristo, mesmo aqueles, observa Gregório, que antes não conheciam Deus. Gregório de Nazianzo De vita sua II/I/XI.139-43 (Fathers of the Church, 81).

Gregório observa que o medo é um professor oportuno.

56 Oswald Bayer mostra corretamente como a visão de Lutero é provocativa.

Tanto a razão quanto a fé sabem as mesmas coisas sobre Deus, mas sabem essas coisas de maneiras radicalmente diferentes. Bayer, Martin Luther's Theology, 130-35.

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apressa desajeitadamente e atribui o nome Deus e honra divina à sua própria ideia de Deus. Assim, a razão nunca encontra o verdadeiro Deus, mas encontra o diabo ou seu próprio conceito de Deus, governado pelo diabo. Portanto, há uma grande diferença entre saber que existe um Deus e saber quem ou o que é Deus. A natureza conhece o primeiro - ele está inscrito no coração de todos; o segundo é ensinado somente pelo Espírito Santo.57

Lutero demonstra isso com alguns exemplos. Os papistas trabalham sob a ilusão de que Deus é um ser "movido e satisfeito pelas boas obras".58 Portanto, eles ordenam todo o seu modo de vida em torno da ideia de servir e agradar a Deus a fim de merecer Sua benevolência.

Lutero escreve: Agora me diga, o que essas pessoas estão adorando como Deus se não há um Deus cuja mente e vontade se conformam às delas? Não é verdade que elas estão honrando como Deus a sua própria ilusão e a sua própria fantasia? Porque, na verdade, não há nenhum Deus que esteja em sintonia com eles. Por isso, a sua ilusão é desastrosa. Perdem o verdadeiro Deus, e nada mais resta do que a sua própria falsa noção. Esse é o seu deus. A ele atribuem o nome e a honra de Deus. É claro que ninguém além do diabo pode estar por trás dessa ilusão, pois ele inspira e governa esses pensamentos. Portanto, a ilusão é o ídolo delas; é a imagem do diabo que elas têm no coração.

Pois o Deus real e verdadeiro é Aquele que é devidamente servido não com obras, mas com a verdadeira fé e com sinceridade de coração, que dá e concede misericórdia e benefícios inteiramente gratuitos e sem nossas obras e méritos. Que elas não acreditam e, portanto, não conhecem a Deus, mas estão fadados a cometer erros e errar o alvo.59

57

Lectures on Jonah, 1525 (AE 19:55; WA 19:207.3-13), ênfase adicionada. (OS 13).

Lectures on Jonah, 1525 (AE 19:55; WA 19:207.16). (OS 13).

59 Lectures on Jonah, 1525 (AE 19:55-56; WA 19:207.18-30). (OS 13).

58

107

O mesmo padrão é visto nas Escrituras. O rei Acabe sabia que havia um deus e imaginou que esse deus se agradava do tipo de adoração prestada a Baal: "Assim chamava a Deus Baal, e a Baal Deus, como se vê em Oséias 2.16."60 O rei Jeroboão afirmou que seu deus estava satisfeito com a adoração de bezerros de ouro: "E, portanto, os bezerros tinham que ser chamados de Deus de Israel, e, novamente, Deus tinha que ser chamado de bezerro (1 Reis 12.28).”61 Esse padrão também é visto com os marinheiros no navio com Jonas. Todos eles sabem que existe um deus, mas não têm um deus definido. Jonas nos diz que cada pessoa invocou seu próprio conceito de Deus e, quando isso não funcionou, pediram a Jonas que invocasse seu Deus. Portanto, conclui Lutero, cada um dos marinheiros invoca um ídolo e honra esse ídolo com sua idolatria, e essa é a evidência e o fruto do conhecimento natural de Deus (Rm 1.19-23).

E quanto a São João?

A maioria das discussões sobre o conhecimento natural de Deus se concentra no argumento de Paulo em Romanos. Lutero também se pergunta sobre João. Lutero escreve: "Por um lado, São Paulo diz que o homem pode conhecer Deus; por outro lado, São João afirma claramente que ninguém viu Deus, por mais sábio e inteligente, exceto o Filho de Deus, que O revelou a nós."62 Antes de tentar uma resposta, Lutero aumenta ainda mais as apostas, parafraseando as palavras de Jesus aos fariseus em João 8: "Vocês afirmam conhecer a Deus, mas não O conhecem; vocês O chamam de Pai, mas não sabem quem Ele é."63 Como Lutero coloca, Cristo não estava repreendendo os epicureus ou pessoas sem Deus, que não têm interesse em Deus, mas sim com os fariseus, que estavam preocupados com Deus e O buscavam. Lutero declara profeticamente: "Algum dia essa questão vai causar problemas".64

60

Lectures on Jonah, 1525 (AE 19:56; WA 19:208.7-8). Ver OS 13, 345.

Lectures on Jonah, 1525 (AE 19:56; WA 19:208.10-11). (OS 13).

62 Sermons on the Gospel of John,1537/38 (AE 22:150; WA 46:666.32-35).

Poderíamos estender a pergunta de Lutero a Mateus (11.27) e Lucas (10.22). (OS 11).

63 Ibidem, (AE 22:150; WA 46:666.35-37). (OS 11).

64 Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:150; WA 46:667.7). (OS 11).

61

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A reconciliação de Paulo e João feita por Lutero procede da relação com lei e evangelho e esclarece especialmente bem suas afirmações sobre o conhecimento natural de Deus. Há dois tipos de conhecimento de Deus: "Um é o conhecimento da Lei; o outro é o conhecimento do Evangelho.”65 O conhecimento de Deus pela razão é baseado na lei, e essa lei está escrita em nossos corações (Rm 2.15). Todos os seres racionais conhecem a lei natural declarada por Moisés nos Dez Mandamentos. Embora haja um grau de entendimento aqui, embora a razão tenha, como Lutero diz, "cheirado Deus", esse "conhecimento legal de Deus ... derivado da Lei não é o verdadeiro conhecimento Dele seja a Lei de Moisés ou a Lei incutida em nossos corações."66 Aqui está o ponto de partida que distingue Lutero em relação aos escolásticos. O conhecimento nunca é passivo. Nós agimos de acordo com o que sabemos. Não há conhecimento abstrato de Deus que esteja separado de nosso coração e de nossas ações. Lutero ilustra esse ponto, como fez acima, apelando para o monge e sua compreensão de Deus. O monge imagina um Deus à sua própria imagem. Ao se conformar com essa imagem de Deus, o monge afirma merecer a salvação para si e para os outros. Lutero exclama: "Esta é a cegueira maior de toda cegueira, como deve ser manifesta para todos".67 Esse conhecimento distorcido de Deus fica aquém do que imaginam até mesmo os pagãos que conformam suas vidas à lei natural. Em qualquer dos casos, porém, ambos os grupos estão apenas a cheirar a existência de Deus.68 O outro tipo de conhecimento de Deus provém do evangelho.

Com esse conhecimento aprendemos que somos, por natureza, uma abominação diante de Deus, sujeitos à Sua ira e condenados eternamente.

Nosso único remédio está no Filho, que repousa no seio do Pai, que se tornou homem, morreu e ressuscitou dos mortos, vencendo o pecado, a morte e o diabo.69 Lutero escreve:

65

Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:150; WA 46:667.8-9). (OS 11).

Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:151; WA 46:668.9-13). (OS 11).

67 Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:152; WA 46:668.25-26). (OS 11).

68 Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:152; WA 46:668.33-34). (OS 11).

69 Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:152; WA 46:669.1-6). (OS 11).

66

109

Esse é o conhecimento e a maneira verdadeiros e completos de pensar sobre Deus; é chamado de conhecimento da graça e da verdade, o conhecimento evangélico de Deus. Mas esse conhecimento não cresce em nosso jardim e a natureza não sabe absolutamente nada sobre ele. A razão tem apenas um conhecimento parcial e distorcido de Deus, baseado na lei da natureza e de Moisés, pois a Lei está inscrita em nossos corações. Mas a profundidade da sabedoria divina e do propósito divino, a profundidade da graça e da misericórdia de Deus e como é a vida eterna - desses assuntos a razão é totalmente ignorante. Isso está oculto para a visão da razão.70

O conhecimento adequado de Deus requer o conhecimento da vontade de Deus, de Sua Palavra e promessas, e fé que justifica Deus em Suas palavras e recebe a imputação da justiça de Cristo.

O que explica a grande diferença entre as duas formas de conhecer Deus? A resposta de Lutero é: pecado. O conhecimento cristão de Deus requer uma compreensão do pecado e da Salvação exclusiva adquirida para nós pelo Filho.71 Lutero explica: "Para resumir, fomos tão abominavelmente corrompidos pelo pecado que não apenas não sabemos mais nada sobre nosso primeiro e natural conhecimento de Deus, mas também nos desviamos da justiça da Lei e caímos em mentiras."72 O pecado apagou qualquer conhecimento natural que pudesse estar disponível por meio da lei. Lutero explica: De fato, é verdade (...) que há algumas coisas fora de Cristo que são verdadeiras e agradáveis, como a luz natural, que ensina que três e dois são cinco, que Deus deve ser honrado e coisas do tipo. Mas essa luz nunca atinge seu objetivo; pois assim que a razão age, faz uso de sua luz e a exercita, ela confunde tudo, chama o que é bom de mau e o que é mau de bom; chama de honra a Deus o que é sua desonra e vice70

Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:152-53; WA 46:669.7-15). (OS 11).

Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:153; WA 46:669.33-39). (OS 11).

72 Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:155; WA 46:671.22-25). (OS 11).

71

110

versa. Portanto, o homem é apenas um mentiroso (Sl 116.11) e orgulhoso (Sl 39.5), e incapaz de fazer uso dessa luz natural, exceto contra Deus, como já dissemos.73

Nos Artigos de Esmalcalde, Lutero afirma que o pecado original é uma corrupção tão profunda da natureza que a razão não pode entendêlo. Deve-se acreditar nele de acordo com a revelação das Escrituras.74 Aqui chegamos ao cerne da discordância entre Lutero e a Igreja. Aqui chegamos ao cerne do desacordo entre Lutero e os escolásticos. É inútil que os escolásticos magnifiquem a luz da natureza e a considerem comparável à luz da graça.75 Por natureza, somos curvados para dentro de nós mesmos.76 Nossas faculdades naturais estão corrompidas pelo pecado. Não há luz, mas sim trevas. Lutero conclui: "Portanto, essa sabedoria não é uma luz, mas pode muito melhor ser chamada de escuridão. Como ela volta todo o conhecimento sobre si mesma, é a mais completa escuridão."77 Como conciliamos Paulo e João? Reconhecemos que Deus se revelou a todos os homens por meio da natureza e da lei, mas todos os homens corromperam essa revelação natural. Fora de Cristo, não há conhecimento adequado de Deus. Mais direto ao ponto, a revelação nunca complementa nosso conhecimento natural de Deus, porque não existe conhecimento estático ou passivo de Deus.78 O homem natural age de acordo com o conhecimento que obtém e, em todos os casos, a partir de Cristo, isso resulta em idolatria. Como Lutero coloca, "Tudo isso deve morrer, requer ser dedicado ao túmulo e enterrado".79 Nós não construímos sobre a idolatria, nós nos arrependemos dela. O grande 73

Sermons on the Gospel of John, trans. John Nicholas Lenker (Grand Rapids: Baker Books, 2000), 1.1:223. (OS 11).

74 AE III.i.3. Cf. Augustine Confessions 10, 7.

75 Lectures on Romans, 1515–16 (AE 25:345-46; WA 56.356.18-19). (OS 8).

76 Lectures on Romans, 1515–16 (AE 25:345; WA 56:356.7). (OS 8).

77 Lectures on Romans, 1515–16 (AE 25:346; WA 56:357.13-16). (OS 8).

78 Cf. Bernhard Lohse, "Reason and Revelation in Luther", Scottish Journal of Theology 13:4 (1960): 347-48: "A revelação, portanto, significa o fim de qualquer tentativa humana de obter um conhecimento de Deus. A razão e a revelação diferem não apenas quantitativamente, mas qualitativamente."

79 Sermons on the Gospel of John, 1537/38 (AE 22:158; WA 46:673.17-18). (OS 11).

111

esforço de Tomás para coordenar razão e revelação é completamente rejeitado por Lutero, e com ele os grandes esforços para demonstrar o conhecimento natural de Deus.

O Livro de Concórdia

O Livro de Concórdia não dedica nenhuma seção exclusivamente ao conhecimento natural de Deus. Em vez disso, ele oferece comentários sobre o tópico em conexão com outros ensinamentos. Embora a distinção de Lutero entre o conhecimento geral e particular de Deus não seja encontrada nas Confissões, o esboço básico do argumento acima é encontrado. As Confissões enfatizam dois pontos. Primeiro, o conhecimento natural de Deus existe e é derivado da criação (Romanos 1) e da lei escrita nos corações humanos (Romanos 2). Em segundo lugar, o pecado maculou de tal forma esse conhecimento que ele leva apenas a uma compreensão perversa de Deus e da adoração devida a Ele. Embora a tradição, como vimos, afirme consistentemente que esse tipo de conhecimento existe e não é um conhecimento salvador, nossas Confissões reforçam esse ponto ao unir conhecimento e adoração. Ao refletir consistentemente sobre o conhecimento de Deus como algo não apenas possuído na cabeça, mas também usado pelo coração, ou seja, como algo que guia, direciona e informa o comportamento humano, o Livro de Concórdia resiste a conceber o conhecimento de Deus como algo estático e abstrato acessado e analisado pela razão humana. O conhecimento age da mesma forma que a fé.

Quando consideramos o conhecimento natural de Deus nesse contexto mais amplo, descobrimos muito mais no Livro de Concórdia sobre essa questão. O que é Deus? Lutero é famoso por responder a essa pergunta no Catecismo Maior: Deus designa aquilo de que se deve esperar todo o bem e em que devemos nos refugiar em todos os apertos. Ter um Deus, portanto, não é outra coisa senão confiar e crer nele de coração. Como já afirmei repetidas vezes, apenas o confiar e o crer de coração faz ambos: Deus e ídolo. Se sua fé e a confiança estão corretas, então também o seu Deus é 112

o Deus verdadeiro. Por outro lado, onde a confiança é falsa e errônea, aí também não está o Deus verdadeiro. Esses dois, fé e Deus, sempre andam de mãos dadas. Aquilo, portanto, a que você prende e a que entrega o seu coração, isso, digo eu, é de fato o seu Deus.80

A abstração filosófica ou escolástica é de pouco interesse aqui.

Lutero não começa com o intelecto, mas com o coração. Um deus não é uma definição ou um conceito cuidadosamente construído ao qual damos assentimento intelectual; um deus é aquilo a que nosso coração se apega, aquilo que tememos e amamos, aquilo em que confiamos e acreditamos, aquilo que justificamos como "nosso" deus.

O fato de que existe um conhecimento natural de Deus entre todas as pessoas é visto no fato de que todas mantêm algum tipo de adoração. Essa falsa adoração, essa idolatria, é a expressão do coração.

Lutero escreve: "Nunca houve um povo tão perverso que não tenha estabelecido e mantido algum tipo de adoração. Cada um criou seu próprio deus, para o qual buscou bênçãos, ajuda e conforto."81 Lutero insiste que a idolatria não é apenas uma questão de erigir uma imagem e orar a ela. Ela diz respeito principalmente ao coração. Em todos os casos, em vez de se apegar ao Deus verdadeiro, ela se apega a "criaturas, santos ou demônios".82 Até mesmo os pagãos concordam que ter um deus significa confiar e acreditar. Todas as pessoas têm algo a dizer sobre Deus, e todas as pessoas confiam e acreditam em qualquer "deus" que seja e adoram esse mesmo "deus" ou "deuses". Os cristãos conhecem e adoram o verdadeiro Deus - Pai, Filho e Espírito Santo - e os demais, que possuem apenas uma “centelha obscura” (obscuram scintillulam) do conhecimento natural de Deus, têm um entendimento que é "tão ignorante, cego e perverso" que sua adoração é pervertida e sua confiança é falsa e errada.83

80

CM I.2-3.

CM I.17.

82 CM I.21.

83 FC DS II.9l CM I.18-23.

81

113

Lei e Evangelho

Ao seguir de perto a interpretação de Paulo do conhecimento natural de Deus com falsa adoração (Rm 1.21), o Livro de Concórdia apresenta sua discussão sobre o conhecimento de Deus de acordo com a lei e o evangelho. No Catecismo Maior, a contrapartida da reflexão de Lutero sobre os Dez Mandamentos "que estão inscritos no coração de todos os homens" é o Credo dos Apóstolos, no qual temos "toda a essência de Deus, sua vontade e obra primorosamente retratadas em palavras muito curtas, mas ricas".84 O evangelho, conforme apresentado no credo, ultrapassa toda a sabedoria, entendimento e razão dos homens.

Qualquer que seja o conhecimento de Deus que o homem natural tenha, ele nunca poderá ser a base para a verdadeira fé e adoração: "Embora o mundo inteiro tenha arduamente procurado aprender o que Deus é e o que Ele pensa e faz, ainda assim nunca teve o menor sucesso."85 O mundo não sabe nada sobre o profundo e indescritível amor de Deus por nós.

Não sabe que Ele deseja nos redimir e santificar. É somente por meio do Cristo Senhor que conhecemos o favor e a graça do Pai, e é somente pelo Espírito Santo que conhecemos e invocamos Cristo como nosso Senhor.

Afirmar que conhecemos Deus sem Cristo é não conhecer nada além de "um Juiz irado e terrível".86 O mundo não sabe nada sobre a graça e o amor de Deus porque o conhecimento do mundo é baseado inteiramente na lei. Lutero explica: "Agora você vê que o Credo é um ensinamento muito diferente dos Dez Mandamentos. Estes últimos nos ensinam o que devemos fazer; o Credo diz o que Deus faz por nós e dá para nós."87 O conhecimento natural de Deus, que leva à falsa confiança e à falsa adoração, também leva à autojustificação. Essa última forma de falsa adoração, de acordo com Lutero, é "a maior idolatria", pois coloca Deus em dívida conosco e nos

84

CM II.63-69.

CM II.63.

86 CM II.65.

87 CM II.67. Uma distinção semelhante pode ser vista em Augustine On the Spirit and the Letter 22 (WSA I/23), 164.

85

114

torna Seus senhores soberanos.88 Somente o evangelho revela o verdadeiro conhecimento de Deus, Sua graça e amor, Sua obra de criação, redenção e santificação para nós. A Trindade e a justificação pela fé estão intimamente ligadas. Holsten Fagerberg explica: Uma vez que a doutrina da Trindade está conectada à justificação pela fé, ela também está em uma orgânica relação íntima com a distinção entre Lei e Evangelho. A razão, separada do Evangelho, não pode trazer ao homem o verdadeiro conhecimento de Deus. Lei e razão andam juntas, mas por meio delas vemos apenas uma caricatura de Deus. Aprendemos o que Deus realmente pensa de nós por meio do Evangelho, e o Evangelho tem a ver com o Pai, o Filho e o Espírito.89

O evangelho concede tanto um conhecimento adequado da Trindade quanto seus dons para nós.90 Ao insistir nesse ponto, nossas Confissões apresentam o conhecimento de Deus de acordo com a lei e o evangelho. A lei, que para Lutero é vista nos Dez Mandamentos, nos ensina o que devemos fazer; o evangelho, expresso no Credo dos Apóstolos, nos diz o que Deus faz por nós e nos dá. Lutero explica: Os Dez Mandamentos estão inscritos no coração de todos os seres humanos; quanto ao Credo, nenhuma inteligência humana o pode compreender, devendo ser ensinado unicamente pelo Espírito Santo. Por isso a doutrina dos Dez Mandamentos ainda não faz de ninguém um cristão, pois sempre ainda permanecem sobre nós a ira e a indignação de Deus, visto que não podemos cumprir o que Deus exige de nós. Mas o Credo traz puramente graça e nos torna justos e aceitáveis diante de Deus. Por meio desse conhecimento chegamos a amar e nos deleitar em respeito a todos os mandamentos de Deus, pois aqui vemos como Deus se 88

CM I.22-23.

Fagerberg, A New Look at the Lutheran Confessions, 1529-1537, 115.

90 Cf. Schlink, Theology of the Lutheran Confessions, 62: "O Deus triúno se revela no Evangelho, por meio do qual ele nos concede o mérito de Cristo e nos dá o Espírito Santo que, em nós, assume a obra de Cristo."

89

115

entrega completamente a nós, com todas suas dádivas e poder para nos ajudar a guardar os Dez Mandamentos: o Pai nos dá toda a criação, Cristo todas as suas obras, o Espírito Santo todos os seus dons.91

O conhecimento natural de Deus e a lei natural não apenas não nos tornam cristãos, mas, mais ainda, não podem nos tornar cristãos.

Deus não pode ser conhecido corretamente à parte dos dons de salvação que Ele concede. O conhecimento de Deus que existe à parte do dom da salvação é corretamente caracterizado por nossas Confissões como ignorante, cego e perverso.92 O conhecimento natural de Deus, seja ele o que for, nunca é conhecimento cristão de Deus.

Quando conhecemos a dádiva da salvação - o ato de justificação do Pai, realizado por meio da vida, morte e ressurreição do Filho, e entregue pela criação da fé em Cristo pelo Espírito Santo por meio da graça - conhecemos corretamente a nós mesmos e ao nosso Deus. Não há conhecimento parcial, nenhuma percepção sombria sobre a qual o homem natural se baseia, tornando-a mais completa e perfeita (perfectior e plenior de Tomás). Por quê? Porque não existe um conceito estático e abstrato de Deus possuído pelas pessoas.93 A Fórmula de Concórdia declara isso claramente: A palavra de Deus testifica que em coisas divinas o entendimento, o coração e a vontade do ser humano natural, não regenerado, não somente estão inteiramente desviados de Deus, mas também estão corrompidos e voltados contra Deus e para todo o mal. Novamente, esse homem não é apenas fraco, impotente, incapaz e morto para o bem, mas também que pelo pecado original ele é tão miseravelmente pervertido, envenenado e corrompido que 91

CM II.67-69.

FC DS II.9.

93 Lohse, Martin Luther's Theology, p. 211: "O conhecimento de Deus por meio da razão, bem como por meio da revelação, não pode ser ligado de forma meramente suplementar. Entre os dois há a questão do Deus verdadeiro. Nos termos de Lutero, devemos dizer que a razão sabe algo de Deus, bem como que não sabe nada de Deus. Ela não possui um conhecimento 'neutro' de Deus."

92

116

por disposição natureza ele é completamente perverso, oposto e hostil a Deus e também todo poderoso, vivo e ativo para tudo aquilo que é desagradável a Deus e contrário a sua vontade.94

O conhecimento natural nunca permanece apenas na cabeça, mas sempre informa o coração. Ele sempre se expressa em atos e na adoração, em paixões desonrosas (Rm 1.26) e idolatria (Rm 1.23). Essas coisas são obras da carne (Gl 5.19-20) e as obras da carne são contra o Espírito Santo (Gl 5.17) e hostis a Deus (Rm 8.7). Embora o homem natural saiba que existe um deus, ele é um estranho ao verdadeiro amor, temor e confiança em Deus. Novamente, não existe uma posição neutra por causa do conhecimento natural de que existe um deus. Essa sombra de conhecimento para o homem natural resulta em idolatria e hostilidade.

Como diz a Apologia, as principais falhas da natureza humana por causa do pecado original são "a ignorância de Deus, o desprezo de Deus, a falta de temor de Deus e de confiança nele, a incapacidade de amá-lo."95 Uma compreensão adequada do pecado significa que o homem natural não tem conhecimento verdadeiro de Deus - nenhuma confiança, nenhum temor, nenhum amor a Deus.96 Por essa razão, o homem natural deve se desesperar de sua própria centelha obscura ou natural "ignorância de Deus" (ignoratio Dei) e ser iluminado, convertido e regenerado pelo Espírito por meio da Palavra.97 Ao se recusar a abstrair o conhecimento de Deus do culto a Deus, ou seja, a teoria da prática, Lutero e nossas Confissões Luteranas apresentam o tema do conhecimento natural e revelado de Deus de acordo com dois tipos de conhecimento sobre Deus. Nesse sentido, 94

FC DS II.17.

ApCA II.14.

96 ApCA II.23. A Apologia relaciona consistentemente o conhecimento de Deus com o temor de Deus, o amor de Deus e a esperança. Todos eles pertencem ao nosso renascimento pelo Espírito Santo no batismo. O verdadeiro conhecimento de Deus nos permite realmente temer, amar e confiar em Deus. Veja ApCA. IV.351 e ApCA II.17-18, 23. Cf. FC DS II.16.

97 Sobre a relação entre a "centelha obscura" da Fórmula e a ignoratio Dei da Apologia, veja Schlink, Theology of the Lutheran Confessions, 49-52.

95

117

nossos pais luteranos captaram melhor a verdade de que todas as pessoas são teólogas, pois todas as pessoas têm algo a dizer sobre Deus e a adoração a Ele prestada. Como Lutero insiste, todas as pessoas, até mesmo os gentios, ensinam que ter um deus significa confiar, acreditar e adorar esse deus. Essa distinção também é feita na Fórmula de Concórdia: “O Dr. Lutero enfatizou essa distinção com especial diligência em quase todos os seus escritos e mostrou de maneira apropriada que o conhecimento de Deus proveniente do evangelho é bem diferente do conhecimento ensinado e aprendido por meio da lei. Porque também os gentios tiveram, em certa medida, um conhecimento de Deus proveniente da lei natural, embora não o tenham conhecido corretamente nem o tenham honrado de modo correto (Rm 1.21).”98 A falsa adoração a Deus é evidência do conhecimento geral de Deus possuído por todas as pessoas e, ao mesmo tempo, a perversão dessa fraca centelha. O verdadeiro conhecimento de Deus vem somente do evangelho. É por isso que nossas Confissões insistem que "a principal adoração a Deus é a abordagem do Evangelho."99 O problema do pecado

O pecado é o principal problema do conhecimento natural de Deus. As noções escolásticas de conhecimento natural surgem com base no fato de que o pecado afetou a vontade humana e nossa capacidade de conhecer Deus apenas marginalmente. Adão e Eva perderam o donum superadditum, mas suas faculdades naturais permaneceram desimpedidas.100 As Confissões se afastam de Roma nesse ponto crucial.101 Tanto os 98

FC DS V.22.

ApCA XV.42. A Triglota acrescenta: "Agora, se essa adoração for omitida, como pode haver conhecimento de Deus, da doutrina de Cristo ou do Evangelho?"

(Bente, 327).

100 Os teólogos discordaram sobre se o donum superadditum poderia ser recuperado (ou seja, merecido) após a queda em pecado. Tomás disse que não.

Adão e Eva receberam esse dom pela graça e, portanto, ele não poderia ser merecido. John Duns Scotus e William de Ockham achavam que poderíamos merecer essa dádiva por meio de nossas habilidades naturais (ex puris naturalibus). Os reformadores luteranos rejeitaram a antropologia teológica que está por trás desses dois pontos de vista.

101 Cf. Johann Andreas Quenstedt, Systema Theologicum, I, 6 (Wittenberg, 1691), 99

118

crentes quanto os descrentes sofrem os efeitos do pecado original, um pecado que obscurece a mente e a vontade. No artigo sobre o livrearbítrio da Fórmula de Concórdia, esses dois itens são reunidos. A principal questão abordada no artigo sobre o livre-arbítrio é o estado do intelecto e da vontade do homem não regenerado, e se ele pode fazer alguma coisa para provocar sua conversão. Visto que a conversão requer tanto o intelecto como a vontade na medida em que o homem natural deve “saber” o que ele consente por sua vontade, a questão envolvida diz respeito tanto ao conhecimento de Deus quanto às Suas obras salvadoras em nosso favor. Essas duas questões, a teologia propriamente dita e a soteriologia, Trindade e evangelho, devem permanecer juntas, como o padrão das Escrituras nos mostra, para que o "conhecimento de Deus" não seja abstraído da revelação de Deus sobre Si mesmo e Suas obras.

De acordo com a Fórmula de Concórdia, o homem, por natureza, não apenas não pode entender a Palavra de Deus, mas a considera loucura.102 A Fórmula declara sua posição claramente: "Cremos que, nas coisas espirituais e divinas, o intelecto, o coração e a vontade do homem não regenerado não podem, por nenhum poder nativo ou natural, de forma alguma entender, crer, aceitar, imaginar, querer, começar, realizar, fazer, efetivar ou cooperar, mas que o homem está inteira e completamente morto e corrompido no que diz respeito a qualquer coisa boa."103 Depois da queda e anterior à nossa conversão, "nem uma centelha de poderes espirituais subsistiu ou existe", por meio da qual uma pessoa poderia, de alguma forma, requerer à conversão, nem mesmo "no

254. Quenstedt mostra que o conhecimento natural de Deus deve ser considerado a partir de duas perspectivas. Por um lado, podemos considerá-lo a partir da perspectiva de sua integridade original antes da queda em pecado. Esse era um conhecimento perfeito concedido a Adão e Eva pela graça de Deus.

Depois da queda em pecado, entretanto, esse conhecimento foi significativamente corrompido. Embora permaneça, ele nunca é mais do que "uma pequena centelha daquela luz original, uma pequena gota de água do vasto oceano ou um pequeno pedaço de cinza das ruínas de uma casa esplêndida".

102 FC DS II.5.

103 FC DS II.7.

119

mais ínfimo ou menor grau."104 Tudo o que é feito por nosso livre-arbítrio natural em coisas espirituais e divinas é sem qualificação, sempre "na direção daquilo que é desagradável e contrário a Deus."105 Tudo isso é dito especialmente contra João Duns Scotus e aqueles que simpatizam com sua teologia.

Nesse ponto, a Fórmula de Concórdia levanta a questão do conhecimento natural de Deus. Não há "nem uma centelha de poderes espirituais em nós, mas há uma "centelha obscura” de conhecimento de que "um" deus existe (Romanos 1). A que se refere essa centelha obscura?

A Fórmula parece deixar a pergunta sem resposta. Em vez de abordar a questão do conhecimento de Deus (teologia propriamente dita), a Fórmula qualifica o comentário sobre a "centelha obscura" voltando-se para o evangelho (soteriologia).

Em primeiro lugar, ainda que a razão ou intelecto natural do ser humano ainda tenha uma centelha obscura do conhecimento de que existe um Deus, bem como o ensino da lei (Rm 1.19-21,28,32),no entanto é verdade que essa razão é tão ignorante, cega e distorcida que mesmo as pessoas mais habilidosas e instruídas do mundo, quando leem ou ouvem o evangelho do Filho de Deus e a promessa da salvação eterna, não podem, com suas próprias forças perceber, apreender, compreender, ou crer nisso e aceitar como a verdade.106 O "embora" que qualifica a "centelha obscura” não aborda o conhecimento de Deus, mas sim ao conhecimento do que Deus fez, Suas obras de salvação, o evangelho. Isso o homem natural não pode aceitar mais do que pode compreender. A Fórmula inverte o entendimento de Lutero. Lutero sabe com certeza que existe um conhecimento natural de Deus (Romanos 1) por causa da presença da idolatria entre todos os povos do mundo. Sua falsa adoração procede de seu conhecimento natural de que existe um deus. Quando agem com base em seu conhecimento natural de acordo com o intelecto e a vontades naturais, 104

FC DS II.7.

FC DS II.7.

106 FC DS II.9.

105

120

eles constroem falsas religiões que se opõem ao Deus verdadeiro e ao evangelho verdadeiro. Quando a Fórmula aborda a questão da “centelha obscura” do conhecimento natural, ela a caracteriza como "escuridão".107 Embora ainda exista uma centelha obscura de que existe um deus, ela está totalmente no escuro com relação à verdadeira Luz que ilumina a todos.

Somente a graça do Espírito Santo, por meio da Palavra e do sacramento, pode trazer essa Luz à nossa escuridão. A Fórmula termina essa seção direcionando o leitor para o batismo.

Devemos agradecer a Deus de coração por nos haver libertado, mediante seu Filho, da escuridão da ignorância e do cativeiro do pecado e da morte, e por nos haver regenerado e iluminado pelo batismo e pelo Espírito Santo. E depois que Deus, por meio do Espírito Santo, no batismo, acendeu e operou o começo do verdadeiro conhecimento de Deus e fé, devemos pedir sem cessar que pelo mesmo Espírito e por sua graça, por meio do exercício diário de ler e praticar a palavra de Deus, ele preserve em nós a fé e seus dons celestiais em nós, nos fortaleça diariamente e nos conserve até o nosso fim. A menos que o próprio Deus seja nosso mestre, nada se pode estudar e aprender que seja agradável a ele é benéfico para nós e para outros.108 A Fórmula mostra inequivocamente os efeitos perniciosos do pecado sobre o intelecto, o coração e a vontade não regenerados. Mais significativamente, a Fórmula nos lembra da relação entre o conhecimento de Deus e o batismo. A Bíblia descreve consistentemente o estado não regenerado como escuridão e o regenerado como luz. Os crentes são aqueles que foram "iluminados" (Hb 6.4 e 10.32). Antes disso eles estavam nas trevas. Deus nos encontra não em um lugar neutro onde de alguma forma possuímos conhecimento natural de Deus por meio de nossas habilidades naturais, mas ainda tem que agir sobre tal conhecimento com nossos corações e vontade. Pedro nos diz que Deus nos chamou "das trevas para a sua maravilhosa luz" (1Pe 2.9). Essa luz é Jesus (Jo 8.12). Ele é a "luz verdadeira, que ilumina a todos" (Jo 1.9). Essa Luz veio ao mundo, mas "as pessoas amaram mais as trevas do que a luz, 107 108

FC DS II.10.

FC DS II.15-16.

121

porque as suas obras eram más" (Jo 3.19). Os que estão perecendo não conhecem essa Luz porque "o deus deste mundo cegou o entendimento dos descrentes, para impedi-los de ver a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus" (2Co 4.4). Essa iluminação, essa mudança das trevas para a luz, pertence ao nosso novo nascimento, nossa regeneração e renovação, que é a obra do Espírito Santo por meio do batismo (Tt 3.5-7). Por essa razão, Jesus diz a Nicodemos que ele precisa renascer pela água e pelo Espírito (Jo 3.5). Antes da obra do Espírito Santo no batismo não somos iluminados, vivemos em trevas, e nossas mentes estão cegas, assim como nossas ações. Embora possamos ter um conhecimento geral de um deus, permanece-se nas trevas porque não se conhece a Jesus Cristo, a verdadeira Luz, o único que nos dá a conhecer o Pai e que se dá a conhecer pelo envio do Espírito Santo. Como Paulo pergunta: "Que comunhão tem a luz com as trevas? Que acordo tem Cristo com o Maligno?" (2Co 6.14-15). Seja qual for o conhecimento de Deus que precede os meios da graça, ele nunca é mais do que "trevas" que não têm comunhão com o Deus verdadeiro. Isso é o que as Confissões chamam de ignoratio dei.

CONCLUSÃO

Em sua palestra sobre o Salmo 121, Lutero enfatiza onde Deus deve ser encontrado e onde não deve ser encontrado. A resposta é Cristo e sempre Cristo: "Assim, em Cristo você encontrará Deus, mas fora dele você não encontrará Deus, nem mesmo no céu."109 Se desejamos ter um conhecimento correto da Trindade, devemos colocar nosso olhar em Cristo, o único que nos revela o Pai pelo Espírito Santo. Isso significa que Deus deve vir a nós se quisermos conhecê-Lo; não podemos ascender a Ele por meio da razão, de boas obras ou de exercícios espirituais. O evento decisivo em nosso vir a conhecer Deus é a encarnação.110 O Filho

109

"Salmo 121" em Vorlesungen über die Stufenpsalmen, 1532-33 (WA 40/3:56.11-12): "Sic in Christo invenies deum, extra eum ne in coelo eum invenies."

110 Lectures on Hebrews, 1517-18 (AE 29:111; WA 57:99.3-4): "Pois a humanidade [de Cristo] é aquela nossa escada sagrada, mencionada em Gênesis 28.12, pela qual ascendemos ao conhecimento de Deus".

122

veio a nós para que pudéssemos conhecer o Pai. Ninguém jamais viu o Pai, mas todos os que veem o Filho viram o Pai (Jo 12.45, 14.9). Aqui está a chave para conhecer e falar sobre Deus corretamente. Se buscarmos o Pai sem o homem Jesus Cristo, quaisquer que sejam nossas motivações ou zelo por essa busca, isso "não é segundo o conhecimento", mas ignorância (Rm 10.2; cf. Jo 16.2-3). Lutero escreve: "Assim como depois que Deus se revelou em Cristo, o homem, dizemos e acreditamos corretamente que todos aqueles que não compreendem esse homem nascido de Maria simplesmente não podem compreender Deus. Mesmo que digam que acreditam em Deus, o criador do céu e da terra, ainda assim acreditam em um ídolo moldado por seus próprios corações, porque fora de Cristo não há Deus verdadeiro."111 Buscar Deus fora de Cristo é buscar Deus em nossos próprios termos e de acordo com nossas próprias construções e analogias filosóficas. Aqueles que procedem dessa forma são teólogos da glória, buscando ascender a Deus por meio da sabedoria e da astúcia humana. Um verdadeiro teólogo é aquele que busca Deus onde Ele se revestiu e prometeu estar.

A questão do conhecimento natural de Deus é uma das mais preocupantes para a igreja atualmente. Se qualquer espaço construtivo é dado à revelação natural, ela se torna teologia natural e as consequências são terríveis para a doutrina bíblica da Trindade e para nossa confissão do puro evangelho. Deus não precisa mais de nossa ajuda para construir Sua identidade triúna eterna do que para realizar nossa criação ou salvação.

Devemos ficar atentos não apenas contra a invasão do teísmo filosófico, não importa o disfarce piedoso com o qual ele é apresentado ou perseguido, mas também contra o uso ambicioso da apologética que visa construir um ponto de partida positivo, o chamado terreno comum, no qual falar das Escrituras e do evangelho. Como insiste Roland Ziegler, não podemos pensar no conhecimento natural de Deus "como um ponto de contato bem-vindo para a proclamação do evangelho".112 A apologética 111

"Salmo 121" em Vorlesungen über die Stufenpsalmen, 1532-33 (WA 40/3:56.31-57.21). Citado em Robert Kolb, "Luther's Theology of the Cross Fifteen Years after Heidelberg: Lectures on the Psalms of Ascent", Journal of Ecclesiastical History 61 no. 1 (2010): 76. Tradução modificada.

112 Ziegler, "Natural Knowledge of God", 146.

123

derruba declarações e caracterizações falsas do cristianismo; expõe a fé tola do descrente; não produz argumentos persuasivos sobre os quais a fé possa repousar mais tarde. Novamente, como Roland Ziegler coloca, "A fé na qual alguém pode ser raciocinado não é, todavia, fé no Deus Triúno".113 A ideia de que existe um espaço neutro ocupado por pessoas que possuem conhecimento natural de Deus deve ser sempre combatida. Não existe tal espaço ou pessoas neutras. Paulo certamente não imaginou tais pessoas. Seu conhecimento geral de Deus por meio da criação ou da acusação de sua consciência só foi suficiente para condená-las por causa das ideias falsas e idólatras que acrescentaram à luz natural de sua razão.

Quando somos levados à fé pelo Espírito Santo por meio dos meios da graça, Deus não nos pede que nos apoiemos em nossos próprios esforços para obter um conhecimento parcial Dele e de Sua vontade. Somos chamados a nos arrepender e esse arrependimento inclui não apenas nossos pecados, mas também nossos pensamentos pecaminosos, nossas idolatrias intelectuais e nossa falsa adoração. As escrituras nos ensinam a confessar que, sem Cristo e Suas promessas, não há conhecimento da bem-aventurada Trindade. É somente por meio do Filho que o Pai nos é dado a conhecer e é pelo envio correspondente ao Seu Espírito que conhecemos o Filho, o homem Jesus, nascido da virgem, crucificado e ressuscitado por nós e por nossa salvação.

113

Ziegler, "Natural Knowledge of God", 158.

124

CONTEÚDO

5 FALAR APROPRIADAMENTE SOBRE DEUS Os mestres franciscanos começavam suas disputas públicas, seus quodlibets, com um versículo de Eclesiastes: "Todas as coisas são difíceis porque a linguagem do homem é inadequada para explicá-las" (Ec 1.8, Vulg.).1 Se isso é verdade para os assuntos comuns da vida, quanto mais deve ser para a teologia? Devemos perguntar até que ponto nossas palavras são suficientes para falar apropriadamente sobre Deus? Todas as nossas palavras são condicionadas pelo espaço e pelo tempo. Elas refletem preocupação: Deus não é. Além disso, a maneira como pensamos o mundo ao nosso redor necessariamente define as palavras que usamos para falar sobre Deus, quer usemos termos positivos (catafáticos) ou negativos (apofáticos). Embora exista uma distinção entre o conhecimento natural e o revelado de Deus, as mesmas palavras são usadas para ambos os conhecimentos. Razão e fé compartilham um vocabulário. Há, porém, uma diferença. A questão que orienta o conhecimento natural de Deus é se podemos falar de forma responsável e correta sobre Deus sem o auxílio da razão. A questão que orienta o conhecimento revelado é se Deus falou de forma responsável e correta sobre Si mesmo.

A revelação que Deus fez de Si mesmo ocorreu historicamente.

Ele falou por meio dos profetas da antiguidade pelo Seu Espírito (2Pe 1.20-21) e nestes últimos dias por meio de Seu Filho, Jesus Cristo (Hb 1.1-2). Os profetas, guiados pelo Espírito de Cristo, apontaram para o sofrimento e a glória de Cristo por nós (1Pe 1.10-12). O mesmo Espírito que moveu os profetas e apóstolos a registrar a revelação de Deus continua a guiar o leitor das Escrituras hoje. O Espírito Santo, o Espírito da Verdade, enviado pelo Pai e pelo Filho a nós, toma as palavras de Cristo e as declara a nós (Jo 16.12-15). Por esse mesmo Espírito Santo, confessamos Cristo como Senhor (1Co 12.3) e pregamos as boas novas 1

John Duns Scotus, God and Creatures: The Quodlibetal Questions, trans. Felix Alluntis e Allan B. Wolter (Princeton: Princeton University Press, 2015), 3.

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aos outros (1Pe 1.12). Por essas razões a linguagem da fé, em oposição à linguagem da razão, é sempre extremamente cristológica, tanto na doutrina quanto na adoração. Isso é especialmente verdadeiro quando se discute a Trindade. Conhecemos o Pai somente por meio do Filho, pelo Espírito Santo. Qualquer discurso ou adoração a Deus em que seja possível para a pessoa indicar o que significa Deus e especificar coisas conhecidas de Deus, sem referência a Jesus, é contrário ao padrão das Escrituras e inevitavelmente suscetível à idolatria. Aqui a doutrina e a confissão se unem. A doutrina, conforme argumentado no capítulo 1, protege nosso direito de falar e adorar a Deus; ela disciplina, conforme Nicholas Lash, "nossa propensão à idolatria". Lash continua: "A idolatria é uma questão de errar a referência: tomar como Deus aquilo que não é Deus."2 Isso acontece quando tentamos falar de Deus à parte do homem Jesus e, portanto, à parte da maneira pela qual Deus falou conosco.3 Na Disputa de Heidelberg, Lutero identifica dois tipos de teólogos, o teólogo da cruz (theologus crucis) e o teólogo da glória (theologus gloriae). Por trás dessa distinção está a questão de como uma pessoa chega ao conhecimento autêntico de Deus. O theologus crucis fala de acordo com a autocomunicação de Deus em Jesus Cristo, o que significa que a revelação de Deus estabelece os termos para a discussão - tanto sua possibilidade quanto seus limites. O theologus gloriae, por outro lado, fala de acordo com o conhecimento natural e os efeitos criados de Deus. Os problemas surgem para o theologus gloriae quando se trata da cruz e do sofrimento, e isso, de acordo com Lutero, implica ainda mais a justiça das obras e a idolatria. Nossos capítulos anteriores estabeleceram o fato de que não existe uma doutrina neutra de Deus além da adoração e da ética. A questão que precisamos abordar aqui é como conhecemos Deus corretamente e falamos sobre Ele. 2

Nicholas Lash, "When Did the Theologians Lose Interest in Theology?" The Beginning and End of 'Religion,' (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), 133.

3 A liturgia serve como nosso corretivo. Na liturgia, respondemos a Deus com Suas palavras e promessas. Quando o discurso teológico se afasta do padrão de som das palavras encontradas na liturgia, da doxologia dos fiéis, do batismo, sempre há problemas à espreita.

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Como o theologus gloriae chega ao conhecimento de Deus? De acordo com Lutero, esse teólogo se baseia na razão humana para chegar a conclusões razoáveis sobre Deus e homem. O theologus gloriae observa que o homem possui atributos como ser, amor, bondade e justiça, entre outras coisas, e que pessoas tão razoáveis atribuem atributos semelhantes a Deus (por exemplo, Deus é, Deus ama, Deus é bom e justo etc.). Como essas coisas são características de Deus e do homem? Há duas questões em jogo aqui. Primeiro, como conhecemos e nomeamos as coisas (termo, definição, instância)? Por exemplo, o que significa "amor"? Como o definimos? Por que o definimos da maneira que o fazemos? Segundo, em que sentido Deus e o homem compartilham esses atributos? Quando dizemos que Deus ama ou que eu amo, estamos usando o termo da mesma forma? O theologus gloriae pressupõe razoavelmente que os seres humanos se assemelham a Deus. Afinal de contas, fomos feitos à imagem e semelhança de Deus.4 Portanto, conclui o theologus gloriae, toda perfeição que encontra sua fonte e causa em Deus, em quem todas as nossas perfeições existem de forma mais eminente (via eminentiae). A tarefa de um tal teólogo é ascender do que é conhecido da criação até Deus. Isso é feito por meio do uso da analogia, que afirma que prevalece uma semelhança entre o "amor" que Deus é e o nosso "amor", ou entre o "ser" que Deus é e o nosso "ser". A piedade obriga esse teólogo a falar dessa semelhança em termos de uma dissimilaridade sempre maior (maior dissimilitudo), mantendo a distinção entre Deus e a criação, entre o infinito e o finito.5

4

As antropologias teológicas alternativas subjacentes à teologia medieval e à teologia luterana divergem significativamente sobre como entender os termos "imagem e semelhança" e os efeitos debilitantes do pecado sobre nossa "imagem e semelhança". Essas antropologias alternativas levam a entendimentos divergentes da graça e da justificação. Apesar dos esforços de muitos, não é possível conciliar o luteranismo e o escolasticismo sem causar danos a ambos.

5 Quarto Concílio de Latrão, 1215, cânone 2: "Quia inter creatorem et creaturam non potest tanta similitudo notari, quin inter eos maior sit dissimilitudo notanda" ("Pois entre criador e criatura não se pode notar nenhuma semelhança tão grande que uma maior dissimilaridade não possa ser vista entre eles"). Decrees of the Ecumenical Councils, ed., Norman P. Tanner (Washington, EUA). Norman P. Tanner (Washington, D.C.: Georgetown University Press, 1990), 1:232.34-35.

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A maioria dos teólogos reconhece a necessidade da analogia para falar e pensar sobre Deus. Além disso, as Escrituras afirmam claramente que Deus e o homem possuem atributos sob o mesmo nome.6 O problema com o theologus gloriae não está em seu apelo à analogia, mas na maneira ruim com que ele a utiliza. O uso adequado de analogia está por trás da descrição de Lutero de um theologus gloriae que olha para a invisibilidade da criação para deduzir uma compreensão de Deus. Lutero apenas sugere como isso acontece na Disputa de Heidelberg. Na Tese 19, ele afirma: "Não merece ser teólogo aquele que olha para as coisas invisíveis de Deus como se elas fossem claramente perceptíveis por meio das coisas que foram feitas" (per ea, quae facta sunt).7 O latim no final da Tese 19 indica que Lutero tem em mente Rm 1.20 e o conhecimento natural de Deus.8 Aqueles que concentram seus esforços nas coisas invisíveis de Deus, que Lutero identifica como poder, piedade, sabedoria e bondade, não merecem o nome de teólogo. Esses indivíduos não são sábios, mas tolos, porque afirmam ver o invisível.

A loucura daqueles que olham para a invisibilidade é vista em como eles constroem uma doutrina de Deus. Eles olham para a criação visível e afirmam, por analogia, todos os tipos de coisas que devem ser adequadas ao Deus invisível. Essas analogias sempre começam conosco como sujeito e vão até Deus como objeto. A fórmula é sempre a mesma: qualquer qualidade ou virtude que identificamos entre as criaturas racionais e que achamos bom ter, atribuímos a Deus com uma qualificação importante - Deus deve ter isso mais eminentemente que nós.

Deus se torna igual a nós, só que maior: somos sábios, Deus é 6

Francis Pieper dá a seguinte lista: "Ser (Deus é, Is 48.12; os homens são, Atos 17.28); vida (Deus vive, Ez 14.16; o homem vive, Gn 3.20); amor (Deus ama, Jo 3.16; o homem ama, 1Rs 5.1); justiça (Deus é justo, Rm 3.26; o homem é justo, Mt 1.19); visão (Deus vê, Gn 1.31; o homem vê, Dt 32.52); etc." Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:431.

7 Heidelberg Disputation, 1520 (WA 1:354.17; cf. AE 31:40); minha tradução. (OS 1) 8 A Tese 19 diz: "Non ille digne Theologus dicitur, qui invisibilia Dei per ea, quae facta sunt, intellecta conspicit" (WA 1:354.17). Romanos 1.20 (Vulg.) diz: "Invisibilia enim ipsius a creatura mundi per ea, quae facta sunt intellecta conspiciuntur" ("Pois as coisas invisíveis de [Deus] são vistas desde a criação do mundo, compreendidas através das coisas que foram feitas"). (OS 1) 128

eminentemente sábio (onisciente); somos poderosos, Deus é eminentemente poderoso (onipotente), etc. Deus se torna a maior coisa que existe. O problema com essa forma de pensar não é a afirmação de que Deus é supremamente sábio ou poderoso, mas que nossa sabedoria e poder são a medida da sabedoria e do poder de Deus.9 Nossa sabedoria não sabe nada sobre o Senhor da Glória ter sido crucificado (1Co 2.8); nossa compreensão de poder não tem nada a ver com fraqueza e sofrimento (2Co 12.9). A razão não pode olhar para o Cristo crucificado e ver a sabedoria e o poder de Deus (1Co 1.18, 24, 30). Embora a sabedoria humana do theologus gloriae possa parecer bastante razoável para o filósofo, o teólogo bíblico não pode atuar dessa forma. De acordo com as Escrituras, é esse tipo de sabedoria humana que Deus "destrói" e "frustra" com Seus atos inesperados de salvação (1Co 1.19).

Como os escolásticos medievais entendiam nossa linguagem para Deus? Essa é a pergunta que faremos no restante do capítulo.

Começaremos com Tomás e sua descrição formal da analogia e, em seguida, examinaremos em detalhes o entendimento alternativo da linguagem humana de João Duns Scotus. Não é errôneo dizer que essas duas visões distintas da linguagem explicam as diferenças radicais na forma como as pessoas falam sobre Deus em nossos dias. Após a nossa discussão sobre analogia, a parte 1 conclui retornando aos Pais para mostrar a abordagem luterana sobre conhecimento de Deus, como discutimos de forma responsável a identidade bíblica da Trindade e o local adequado para essas discussões. No que se segue, concordaremos principalmente com Tomás de Aquino. Considerando nossa crítica a ele no capítulo 3, esse momento de concordância pode confundir o leitor.

Concordamos com ele porque nem tudo o que ele escreveu se opõe às Escrituras. Nossos dogmáticos luteranos se apoiaram fortemente em Tomás em suas discussões sobre a Trindade; eles não o seguiram 9

Cf. Irenaeus of Lyons, Against Heresies, 2.13.4 (ACW, 43): "Ele pode muito bem e corretamente ser chamado de uma Mente que compreende todas as coisas; mas sua Mente não é como a mente dos homens e das mulheres. Ele pode muito bem ser chamado de Luz, mas não é nada parecido com a nossa luz. Da mesma forma, em relação a todos os outros pontos, o Pai de todas as coisas não é de forma alguma semelhante à pequenez da humanidade".

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cegamente. Às vezes, eles o criticavam; mais frequentemente, eles o elogiavam. Seria muito mais fácil para nós se tudo o que Tomás dissesse estivesse errado: poderíamos descartá-lo e seguir em frente - mas esse não é o caso. Os dogmáticos não pensavam assim e nós não deveríamos.

Tomás fascina porque diz muitas coisas que estão de acordo com as Escrituras; ele frustra porque se afasta das Escrituras em pontos críticos.

Esse fato deveria ser uma lição para todos nós: as maiores mentes humanas ainda são mentes caídas e pecaminosas - um ponto que o próprio Tomás enfatiza.10 TIPOS DE ABORDAGEM

Há três maneiras de explicar nossa linguagem compartilhada sobre Deus e o homem. Quando usamos termos como "ser", "amor", "justiça", etc. para Deus e para o homem, nossa linguagem é unívoca, equívoca ou analógica.11 A abordagem unívoca significa que quando o mesmo termo é usado para Deus e para o homem, esse termo é usado de uma maneira comum. Quando dizemos que o prédio é alto e que o homem é alto, usamos "alto" para nos referirmos à mesma coisa, mesmo que o prédio e o homem sejam, em aspectos óbvios, bastante diferentes.

Da mesma forma, quando dizemos que Deus ama e o homem ama, ou que Deus é e o homem é, estaríamos usando "amor" e "ser" para nos referirmos à mesma coisa ou conceito, mesmo que os sujeitos desses predicados sejam significativamente diferentes. A linguagem da altura, assim como a do amor e do ser, é usada univocamente. A principal dificuldade com a univocidade, uma dificuldade que exigirá explicação por parte de qualquer pessoa que mantenha essa posição, é como evitar a redução de Deus à Sua criação. A abordagem unívoca sempre ameaça a transcendência e a imanência de Deus.12 10

Thomas Aquinas ST I.1.8 ad 2.

Aristóteles foi o primeiro a oferecer uma discussão técnica sobre analogia em sua Metaphysics. Essa discussão foi retomada durante o período medieval. O comentário de Tomás de Aquino sobre a Metafísica e sua discussão sobre analogia em sua Summa Theologiae (I.12-13) têm sido as principais declarações sobre analogia feitas por amigos e inimigos desde então.

12 Cf. John Theodore Mueller, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1934), p. 162: "Se atribuirmos a essência e os atributos a Deus e às criaturas univocamente 11

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A abordagem equívoca afirma a desigualdade e a dissimilaridade entre Deus e Sua criação. Deus "é", mas de uma maneira totalmente diferente do homem; Deus "ama", mas de uma maneira totalmente diferente do homem. O significado é equívoco, mesmo que o mesmo termo seja usado. A palavra “bark” pode descrever o som que um cachorro faz ou aquilo que cobre a parte externa de uma árvore. A palavra tem dois significados não relacionados, referindo-se ao cachorro ou à árvore. E, no entanto, nenhuma das referências capta o que queremos dizer quando cantamos: "Tu és minha âncora quando por aflição/ Meu barco é impelido para lá e para cá / Nas ondas crescentes do problema": Original diz: “Thou art my Anchor when by woe / My bark is driven to and fro / On trouble’s surging billows” (TLH 142:5). Em todos os três casos, o contexto determina o significado de barco. Sabemos que um cachorro, uma árvore e um pequeno barco não são a mesma coisa e não confundem o uso da palavra "bark" em referência a eles. Embora na aparência essa maneira de falar sobre Deus possa parecer atraente para um theologus crucis, na verdade é exatamente o oposto. A abordagem equívoca recua para um apofatismo radical autoconstruído, uma forma perversa de uma theologia gloriae, minando e negligenciando o fato de que Deus se revelou a nós por meio de certas palavras da Escritura.13 Deus fez uso da linguagem humana para nos comunicar quem Ele é como Pai, Filho e Espírito Santo e o que Ele fez por nós. O padrão aqui não é tão diferente do fato de Deus usar água, pão e vinho para transmitir o perdão dos pecados e a vida eterna. A abordagem equívoca, apesar de sua postura piedosa, acusa Deus de engano ao tornar Sua revelação bíblica insuficiente

(Duns Scotus, d. 1308), a diferença essencial entre Deus e as criaturas é negada, e as criaturas são coordenadas com Deus e tornadas divinas (panteísmo)."

13 Thomas Aquinas ST I.13.5c: "Nem, por outro lado, os nomes são aplicados a Deus e às criaturas em um sentido puramente equívoco, como alguns têm dito.

Porque se fosse assim, segue-se que das criaturas nada poderia ser conhecido ou demonstrado sobre Deus; pois o raciocínio estaria sempre exposto à falácia do equívoco." Nossos dogmáticos luteranos frequentemente citam essa declaração de Tomás. Veja, por exemplo, Abraham Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1655), 2:196-97; Johann Andreas Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 295; David Hollaz, Examen Theologicum Acroamaticum, I, 1, Q. 18 (Leipzig, 1763), 231.

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e, portanto, sem sentido.14 Ela espiritualiza tudo e se retira para seu próprio gnosticismo feito por si mesmo.

A opção final, a abordagem analógica, busca uma maneira alternativa de falar que não colapsa o significado dos termos (univocidade) nem os torna sem sentido (equivocidade). Além disso, a abordagem analógica não reduz Deus ao nível da criação (univocidade) nem o remove completamente dela (equivocidade).15 A maneira como entendemos e usamos a linguagem em referência a Deus tem importantes consequências teológicas. Durante o período medieval, Tomás de Aquino apresentou um argumento claro para a abordagem analógica, e João Duns Scotus para a abordagem unívoca.16 14

Cf. Mueller, Christian Dogmatics, 162: "Se atribuirmos a essência e os atributos a Deus e às criaturas de forma equívoca (Pedro Aureolos, d. 1321; os franciscanos), é impossível conhecermos Deus (agnosticismo), pois então não podemos dizer o que realmente significam os atributos de Deus."

15 Cf. Mueller, Christian Dogmatics, 162: "Se atribuirmos a essência e os atributos a Deus por meio de analogia ou semelhança, então em nossa contemplação de Deus nos elevamos da imperfeição dos atributos humanos à perfeição absoluta dos divinos, Is 49.15."

16 A discussão mais clara sobre essa questão entre os dogmáticos luteranos pode ser encontrada em Abraham Calov, Johann Andreas Quenstedt e David Hollaz.

Veja Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1655), 2:195-98; Johann Andreas Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 29396; David Hollaz, Examen Theologicum Acroamaticum, I, 1, Q. 18 (Leipzig, 1763), 231-32. Os dogmáticos luteranos expressam sua concordância com Tomás de Aquino e se distanciam da univocidade de Scotus e da equivocidade reformada (por exemplo, Polanus, Syntagmatis Theologiae Christianiae, II, 3 [Hanoviae, 1610], col. 859). Quenstedt afirma a questão claramente: "Se a essência, a substância, o espírito e qualquer outro atributo [compartilhado] de Deus e das criaturas racionais devem ser pregados univocamente, equivocadamente ou analogicamente" (293). Quenstedt declara sua posição: "Essência, substância, espírito e os demais atributos atribuídos a Deus e às criaturas igualmente não são pregados univocamente nem equivocadamente, mas analogicamente, de modo que são aplicados a Deus primariamente e absolutamente e às criaturas secundariamente e dependentemente" (293). Nesse ponto, Quenstedt e os outros dogmáticos se envolvem na história da interpretação de Tomás de Aquino, mostrando uma consciência particular do trabalho de Thomas de Vio (Cardeal Cajetan) e Francisco Suárez. Imediatamente após a citação acima de Quenstedt, ele escreve: "Assim, a analogia (analogia) é propriamente dita como 132

Tomás de Aquino

Tomás de Aquino (1225-74) explica a mecânica da analogia no início de sua Summa Theologiae. No tratado sobre Deus, ele pergunta como Deus é conhecido por nós (ST I.12) e como Ele é nomeado por nós (ST I.13).17 Os nomes predicados tanto de Deus quanto de Suas criaturas devem ser entendidos analogicamente.18 Tomás usa o exemplo aristotélico de "saudável" (sanus) para demonstrar o que é e o que não é analogia. Saudável é dito de uma pessoa como o sujeito da saúde, da medicina como causa e da urina como sinal. Embora o termo não tenha

sendo de atribuição intrínseca (attributionis intrinsecae)" (293). Quenstedt oferece um breve resumo dos três tipos de analogias de Cajetan: a analogia inaequalitatis, a analogia proportionalitatis e a analogia attributionis (294).

Cajetano rejeitou a analogia inaequalitatis como nada mais do que equivocidade, e a analogia attributionis como não sendo de fato uma analogia.

O exemplo que ele dá para demonstrar a analogia attributionis é o exemplo abaixo, de Aristóteles, que Tomás de Aquino usa para mostrar o que é analogia e como ela funciona. Nesse sentido, Cajetano rejeita o entendimento de Tomás sobre analogia e adota analogia proportionalitatis. Quenstedt afirma apenas analogia attributionis, que pode ser intrínseca ou extrínseca (294). Diz-se que ela é intrínseca quando a analogia se aplica tanto a Deus quanto à criatura, interna ou intrinsecamente. Diz-se de Deus propriamente dito, mas da criatura secundária e derivativamente, no sentido de que a criatura é totalmente dependente de Deus (294). A distinção de Quenstedt entre atribuição intrínseca e extrínseca vem de Suárez e dos jesuítas da Universidade de Coimbra, os Conimbricenses, como ele os chama.

Os dogmáticos luteranos se alinharam com o entendimento de Tomás sobre a analogia contra a univocidade de Scotus e a equivocidade reformada. Se eles se afastaram involuntariamente de Tomás ao se envolverem nas discussões sobre analogia de Cajetano e Suárez, algo que todos no século XVII faziam, está fora de nosso propósito aqui. Nosso objetivo neste capítulo é retornar a Tomás e Scotus para entender o que eles estavam dizendo e como eles entendiam a referência de nossas palavras ao falar sobre Deus e Sua criação. Para uma discussão útil de Quenstedt e Hollaz sobre analogia, veja Robert Preus, The Theology of PostReformation Lutheranism (St. Louis: CPH, 1972), 2:39-45.

17 Para uma discussão mais detalhada sobre Tomás e a analogia, consulte Bruce Marshall, "Christ the End of Analogy", The Analogy of Being, ed., Thomas Joseph White (Grand Rapids: Eerdmans, 2011), pp. 280-313. Thomas Joseph White (Grand Rapids: Eerdmans, 2011), pp. 280-313.

18 Tomás de Aquino ST I.13.5c.

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o mesmo significado para todos os três (portanto, não é unívoco), ele mantém "uma dependência ordenada" em seus vários usos e, portanto, é análogo (portanto, não é equívoco).19 Em cada caso, o referente do termo é a pessoa e a saúde dessa pessoa. Portanto, saudável é predicado de medicamento e urina "em relação e proporção" com a pessoa.20 O que dá conteúdo conceitual ao termo? É a saúde da pessoa. Se a pessoa for retirada da discussão, o leitor não terá ideia "para que ou para quem" o medicamento é saudável como causa e a urina é saudável como sinal.

Tomás explica: "Em nomes predicados de muitos em um sentido analógico, todos são predicados porque têm referência a alguma coisa; e essa coisa deve ser colocada na definição de todos eles."21 Remova a "coisa", o ponto de referência, e os termos perderão o significado.

As analogias têm três partes: a razão ou conteúdo conceitual, um sujeito que possui a razão primariamente ou "de forma anterior" (per prius) e um objeto que possui a razão secundariamente ou "de forma posterior" (per posterius).22 No exemplo anterior, saudável é a razão dita primariamente da pessoa e secundariamente do medicamento e da urina.

O ponto que deve ser enfatizado aqui é que a relação de um termo análogo aplicado per posterius depende do per prius para seu significado específico.

O motivo é que a saúde "existe" somente na pessoa, não no medicamento ou na urina. Além disso, como o presente exemplo deixa claro, nem todas as analogias envolvem uma relação causal ou ontológica. A pessoa não é a causa da saúde para a medicina e a medicina não possui saúde como parte de seu ser.

Além disso, a ordem da nomeação não corresponde necessariamente a ordem do ser. Bruce Marshall explica: "Como causa da saúde, a medicina é ontologicamente anterior ao seu efeito, ou seja, a saúde em um animal. Mas colocamos 'saúde animal' na definição de 19

Marshall, "Christ the End of Analogy", 286.

Tomás de Aquino ST I.13.5c.

21 Tomás de Aquino ST I.13.6c.

22 Thomas Aquinas ST I.13.6c: "Et quia ratio quam significat nomen, est definitio, ut dicitur in IV Metaphys, necesse est quod illud nomen per prius dicatur de eo quod ponitur in definitione aliorum, et per posterius de aliis, secundum ordinem quo appropinquant ad illud primum vel magis vel minus."

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'medicina', nesse caso nomeando a causa a partir do efeito."23 A razão para essa nomeação da causa a partir do efeito é que "nomeamos" conforme "sabemos". Tomás explica: "Podemos dar um nome a qualquer coisa na medida em que podemos entendê-la."24 Isso significa que "a coisa conhecida está no conhecedor de acordo com o modo do conhecedor."25 Segue-se que o conhecimento de cada conhecedor está de acordo com a natureza do conhecedor. Por essa razão, explica Marshall, conhecemos e nomeamos as coisas (tanto materiais quanto divinas) "de uma maneira diferente daquela em que elas realmente existem".26 Esse padrão é visto com a medicina. Na ordem do ser, como causa da saúde, a medicina é anterior; na ordem de nomear e conhecer, a ordem é inversa: a causa segue seu efeito. Por exemplo, é provável que exista hoje uma planta medicinal que ainda é desconhecida para nós e, portanto, ainda não foi nomeada por nós como causa da saúde. É simplesmente uma planta que não tem significado medicinal para mim. No entanto, o fato de eu não a conhecer e nomear não muda o caráter dessa planta como causa da saúde. Até que o efeito seja conhecido, a causa não será conhecida e nomeada.

Nesse ponto, estamos mais aptos a avaliar o que um theologus gloriae significa quando busca correlacionar atributos entre Deus e o homem.

Dizer que Deus é bom ou que Deus é sábio é dizer algo sobre a bondade e a sabedoria de Deus e, portanto, afirmar algo sobre a essência ou a realidade de Deus. Os atributos atribuídos a Deus pertencem a Ele por natureza e a nós por Sua graciosa dádiva deles.27 Marshall explica: Na ordem do ser, ou seja, essas perfeições pertencem primeiramente a Deus, e somente de forma derivada às criaturas. Mas podemos nomear Deus somente a partir das criaturas.

Quando buscamos conhecer Deus analogicamente, os termos que usamos inevitavelmente se aplicam, na ordem de nomeação, primeiramente às criaturas e, derivativamente, a Deus. No vocabulário de Tomás para 23

Marshall, "Christ the End of Analogy", 291.

Thomas Aquinas ST I.13.1c.

25 Thomas Aquinas ST I.12.4c.

26 Marshall, "Christ the End of Analogy", 291.

27 Thomas Aquinas ST I.13.5c.

24

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analogia, aplicamos termos de perfeição às criaturas per prius e a Deus per posterius, embora as perfeições a que estamos nos referindo existam primeiramente em Deus, e apenas derivativamente nas criaturas.28

As limitações da criatura de nosso conhecimento e nomeação significam que, quando falamos de Deus sem a ajuda da razão humana, ou seja, à parte das Escrituras, os atributos de Deus só podem ser compreendidos em termos de nossa própria posse e experiência de tais atributos. Podemos afirmar piedosamente que Deus possui esses atributos "verdadeiramente" ou "mais eminentemente", mas essa manobra linguística apenas mascara a verdade de que nosso ponto de referência para quem Deus é em Sua essência somos nós mesmos. O termo técnico usado por Tomás para descrever esse ponto de referência para a analogia é "modo de significação" (modus significandi). Toda "razão" tem um modo de significação. Quando usamos "bom" e "sábio" para descrever analogicamente Deus e o homem, dizemos que as "razões" são diversas (não unívocas), mas ordenadas a uma (analógicas e não equívocas).29 Isso significa que quando nomeamos algo em Deus (sábio, bom, poderoso etc.), só podemos fazê-lo a partir de um modo que faça sentido para a criação. A única maneira pela qual um theologus gloriae pode dizer que Deus é sábio ou poderoso é a partir do ponto de vista de sua própria sabedoria ou poder criado. A sabedoria de Deus só pode ser visualizada em termos de sabedoria criada; o poder de Deus só pode ser visualizado em termos de poder criado. Tomás afirma isso claramente: "Nenhum nome pode ser aplicado a Deus de acordo com seu modo de significação".30 Marshall explica: O modo de significar de qualquer uso per posterius de um termo análogo consiste em alguma relação específica com a razão ou significado primário. Então, quando dizemos "Deus é bom" per posterius - a única maneira que podemos temos que incluir no que queremos dizer com "bom" uma

28

Marshall, "Christ the End of Analogy", 295.

Thomas Aquinas ST I.13.5c; Marshall, "Christ the End of Analogy", 296.

30 Thomas Aquinas ST I.13.12, ad 1.

29

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referência a algum tipo de bondade criada, como causada, exemplificada ou aperfeiçoada por Deus. Mesmo quando pretendemos deixar as criaturas e sua bondade derivada para trás e falar apenas da bondade de Deus, não podemos.

Qualquer "bom" significado que tenha para nós quando aplicado a Deus depende de sua referência a um per prius específico: a bondade criada. Isso vale para todos os outros termos de perfeição, ou seja, para qualquer termo que possamos aplicar a Deus propriamente dito, em vez de, simplesmente de forma metafórica.31

Tudo isso significa que quando o homem natural, o theologus gloriae, tenta ascender a Deus por meio da invisibilia, ele só pode fazê-lo conhecendo e nomeando Deus de acordo com sua própria realidade criada. Deus se torna maior do que aquilo que pensamos e conhecemos de nós mesmos. O resultado é uma idolatria construída. O theologus gloriae, é claro, negaria tal acusação e que ele está falando sobre o amor de Deus ou a justiça de Deus. Por mais desejável que tal movimento possa ser, ele não pode ser feito por meio de uma analogia. Quando o ponto de referência, o modo de significação, é o homem ou qualquer outra realidade criada, não estamos falando propriamente de Deus, mas de nós mesmos e de nosso mundo.

A compreensão de Tomás sobre a linguagem e a incompreensibilidade da essência de Deus foi contestada e alterada tanto por amigos quanto por inimigos. John Duns Scotus, que oferece uma visão teológica diferente da de Tomás e do tomismo subsequente, é mais conhecido por sua compreensão unívoca do ser. É com Scotus que uma trajetória alternativa para falar sobre Deus encontra uma base sólida - o que não significa que Scotus seja o primeiro a afirmar que as palavras usadas por Deus e pelo homem sejam unívocas. Como vimos no capítulo 2, Eunomius de Cyzicus afirmou que sabemos tanto sobre a essência de Deus quanto Ele, algo que só poderia ser verdade se as mesmas palavras

31

Marshall, "Christ the End of Analogy", p. 297. Uma observação semelhante é feita em Ralph McInerny, Aquinas and Analogy (Washington, D.C.: Catholic University of America Press, 1996), 160-61.

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usadas para Deus e para o homem fossem unívocas. Deve-se dizer também que o caminho traçado por Scotus foi percorrido por uma variedade de pensadores, muitos dos quais não se considerariam devotos do estoicismo de forma alguma. Para nossos propósitos aqui, será suficiente mostrar o que é essa visão teológica alternativa e como ela eleva a importância da fala e do pensamento humanos sobre Deus de uma forma que torna possível o teísmo filosófico da modernidade.

John Duns Scotus

John Duns Scotus (c. 1265-1308) foi um frade franciscano que estudou em Oxford. Posteriormente, lecionou em Oxford e em Paris. Ler Scotus não é fácil. Seus contemporâneos o apelidaram de doctor subtilis, doutor sutil, devido à complexidade de seu pensamento. Richard Cross observa que compreender Scotus é sempre uma questão provisória.32 Essas passagens opacas e obscuras que permeiam seus escritos podem, de repente, após uma análise mais aprofundada, produzir significados que forçam o intérprete a revisar conclusões anteriores. Isso também é o que torna uma figura como Scotus uma pessoa tão fascinante de se ler, apesar das dificuldades e sutilezas. Scotus é, sem dúvida, o teólogo medieval mais importante depois de Tomás de Aquino. Embora tenha muito em comum com Tomás, ele também desenvolve sua própria visão teológica particular, que segue em uma direção totalmente oposta.33 Os pontos de discordância são os que despertam mais interesse.

Vemos a sutileza e a complexidade de Scotus especialmente em sua discussão sobre Deus. Que Deus e a Trindade não pode ser conhecido pela razão humana. 34 Podemos entender, entretanto, a existência de Deus 32

Richard Cross, Duns Scotus (Oxford: Oxford University Press, 1999), xi.

Embora o pensamento de Scotus seja frequentemente colocado em distinção com seus predecessores mais importantes (Anselmo, Boaventura e Tomás de Aquino), sua obra se preocupa principalmente com um contemporâneo menos conhecido, Henrique de Ghent. Veja Stephen Dumont, "Henry of Ghent and Duns Scotus", em Medieval Philosophy: Routledge History of Philosophy, ed., John Merenbon (Londres: Routledge History of Philosophy). John Merenbon (Londres: Routledge, 1998), 3:291-328.

34 Outros na época de Scotus pensavam que a Trindade poderia ser conhecida pela razão natural. Sua negação não é mera formalidade, mas uma repreensão 33

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e algo sobre a sua essência pela razão natural. É em sua explicação de como sabemos isso ou por que sabemos isso que começamos a apreciar a distinção de seu pensamento. A existência de Deus não é conhecida da maneira a priori adotada por Anselmo. Scotus favoreceu o método de Tomás, que é em si um compromisso compartilhado com o empirismo aristotélico, de que a existência de Deus pode ser conhecida por meio de argumentos a posteriori. A dificuldade enfrentada por todos esses pensadores medievais e, de fato, por qualquer pessoa que se dedique a essas questões de como conhecemos Deus, é como as criaturas finitas, limitadas por suas próprias realidades, alcançam o conhecimento de um Deus transcendente por meio de seus próprios padrões de pensamento e fala. Tomás resolveu essa dificuldade argumentando que a razão natural conhece a existência de Deus como um preâmbulo dos artigos de fé, mas não o que Deus é positivamente, apenas o que Ele não é. Scotus, por outro lado, queria dizer mais do que isso: ele queria argumentar que algum conhecimento positivo da essência de Deus poderia ser conhecido pela razão natural.35 Scotus estava mais em dívida com Aristóteles no que diz respeito à aquisição do conhecimento humano do que Tomás. Para Scotus, todas as pessoas adquirem conhecimento por meio da experiência sensorial, formando conceitos das substâncias ou essências materiais ao nosso redor (quiddities). O problema que enfrentamos é como nossos conceitos humanos podem chegar ao conhecimento de um ser sobrenatural ou transcendente. Scotus argumentou que a única maneira de fazermos isso é ter um conceito que não se restrinja ao mundo material da criação, mas que seja comum ao infinito e ao finito, ao imaterial e ao material. E nós temos o conceito é "ser", e é unívoco quando usado para Deus e para o homem. Sem esse conceito, argumenta Scotus, seríamos incapazes de alcançar qualquer conhecimento de Deus nesta vida.

Scotus chega a essa conclusão depois de muita reflexão. Ele pergunta “se nesta vida o intelecto do homem é capaz de conhecer Deus

severa aos esforços ambiciosos deles.

35 Dumont, "Henry of Ghent", 298.

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naturalmente”.36 Antes de responder a essa pergunta, ele faz uma série de observações preliminares. Não há necessidade de fazer a distinção de que não podemos saber o que Deus é, apenas o que Ele não é. Scotus explica: "Toda negação é compreensível apenas em termos de alguma afirmação".

Para negar algo de Deus, devemos primeiro conhecer algo Dele. Ele continua: "Se negamos algo de Deus, é porque queremos eliminar algo inconsistente com o que já afirmamos."37 Da mesma forma, não há razão para distinguir entre o conhecimento da essência de Deus e o conhecimento de Sua existência. Scotus segue uma lógica semelhante à anterior. Da mesma forma que a negação de algo pressupõe alguma afirmação prévia dessa coisa, a existência pressupõe a essência. Ele explica: "Pretendo buscar um conceito simples (conceptum simplicem) do qual a existência possa ser afirmada ou negada por um julgamento do intelecto. Pois eu nunca sei que algo existe a menos que eu primeiro tenha algum conceito (aliquem conceptum) daquilo cuja existência é afirmada."38 Existência deve ser predicada de um sujeito, portanto, distinguir entre existência e essência é enganoso. Saber da existência de algo requer algum conhecimento positivo do sujeito do qual a existência é predicada. Depois de fazer essas duas observações, Scotus restringe sua pergunta inicial sobre o conhecimento natural de Deus. Ele escreve: "O significado da pergunta, então, é o seguinte: é possível, por meios naturais, que na vida presente o intelecto do homem tenha um conceito simples no qual o conceito Deus seja apanhado?"39 O estreitamento da pergunta inicial aumenta consideravelmente o esforço para Scotus.40 Uma vez que ele já estabeleceu que a negação (dizer o que Deus não é) depende da afirmação prévia (o que Deus é), ele deve agora encontrar algo para afirmar sobre Deus que seja um conceito positivo. Se ele não conseguir fazer isso, então, 36

Opus oxnoniense, I, d. 3, pars I, q. I, trans. Allan Wolter, Duns Scotus: Philosophical Writings (Indianápolis: Hackett, 1987), 14. Wolter fornece tanto o inglês quanto o latim; todas as referências em latim são ao mesmo livro.

37 Wolter, Duns Scotus, 15.

38 Wolter, Duns Scotus, 16.

39 Wolter, Duns Scotus, 17 40 William Mann, "Duns Scotus on Natural and Supernatural Knowledge of God", em Cambridge Companion to Duns Scotus (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), 240.

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de acordo com as exigências de seu próprio argumento, ele tornaria impossível qualquer conhecimento natural de Deus.41 A seguir, Scotus se volta para a questão da linguagem e da predicação. Para começar, Scotus sustenta que é possível ter um conceito no qual Deus é conhecido não apenas acidentalmente (por exemplo, sob o aspecto de um atributo), mas também essencialmente (per se et quidditative).42 Ele usa o exemplo de "sábio" para defender seu ponto de vista. Quando dizemos que Deus é sábio, devemos ter alguma noção prévia do sujeito ao qual predicamos sábio. É essa noção prévia, esse conceito quididativo, ao qual "sábio" é atribuído que devemos buscar.43 Quando usamos a palavra "sábio", nós a retiramos do mundo ao nosso redor. Observamos a sabedoria em algumas pessoas e declaramos que essa pessoa é sábia. Além disso, consideramos esse atributo desejável. É melhor ser sábio do que tolo. Observamos ainda que há graus de sabedoria. Algumas pessoas são mais sábias do que outras, da mesma forma que algumas são mais tolas do que outras. A partir disso, concluímos que Deus também é sábio, mas de uma maneira que é, em parte, tanto diferente quanto semelhante. É diferente pelo fato de as pessoas sábias chegarem à sabedoria por meio de deliberação. É um processo temporal. A sabedoria de Deus funciona de forma diferente. Ele sabe sem deliberação, sem tempo. Além disso, embora observemos graus de sabedoria entre diferentes pessoas e, de fato, uma pessoa sábia, mesmo teoricamente, pode se tornar mais sábia, a sabedoria de Deus é perfeita.

Como enfatizado acima, Tomás resolveu essa forma de falar apelando para a analogia. Quando atribuímos "sábio" a Deus, extraído de nossas experiências da criatura, o fazemos apenas analogicamente. Scotus achou confusa essa forma de pensar e falar. Ele prossegue argumentando que um conceito é unívoco ou equívoco. Quando identificamos uma pessoa como sábia e Deus como sábio, estamos usando "sábio" unívoca 41

Cf. Wolter, Duns Scotus, 20.

Wolter, Duns Scotus, 19.

43 Nessa seção, Scotus distingue ainda mais entre atributo e quase-atributo. A distinção é sutil e, embora seja muito importante para apreciar tudo o que Scotus tem a dizer aqui, está além do nosso propósito atual buscá-la. Veja Mann, "Duns Scotus," 243-45.

42

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ou equívoca. Por que não também analógica? Aqui temos que ter cuidado ou perderemos a nuance de Scotus. Termos podem ser usados analogicamente para se referir a Deus, mas não em um sentido que exclua a univocidade. Scotus escreve: "Eu digo que Deus é concebido não apenas em um conceito análogo ao conceito de uma criatura, ou seja, um que é totalmente diferente do que é predicado das criaturas, mas mesmo em algum conceito unívoco para si mesmo e para uma criatura (in conceptu aliquo univoco sibi et creaturae)."44 Scotus não nega a predicação analógica, mas antes nega que a predicação analógica funcione sem algum conceito unívoco anterior. Se excluirmos o conceito unívoco anterior, então a predicação analógica é simplesmente um equívoco.45 O exemplo usado por Scotus é o "ser". Ele explica, Todo intelecto que está certo sobre um conceito, mas duvidoso sobre outros, tem, além dos conceitos sobre os quais está em dúvida, outro conceito do qual está certo. (O sujeito inclui o predicado). Agora, já nesta vida, um homem pode estar certo em sua mente de que Deus é um ser e ainda estar em dúvida se ele é um ser finito ou infinito, um ser criado ou incriado. Consequentemente, o conceito de "ser", conforme afirmado sobre Deus, é diferente dos outros dois conceitos, mas está incluído em ambos e, portanto, é unívoco.46

As duas alternativas dadas por Scotus, ser e ser infinito/finito, representam duas coisas distintas: ser e o grau em que esse ser é infinito.

A certeza está no conceito de ser, a incerteza está no fato de Deus ser infinito ou finito. Nesse exemplo, o conceito "ser" fundamenta o modo intrínseco desse ser como infinito ou finito. Scotus aqui se esforça para evitar a ideia de que o ser infinito corresponde à substância e ao acidente.

O infinito não é um atributo ou propriedade do ser ou daquilo que é predicado. Scotus explica: "Em vez disso, significa um modo intrínseco dessa entidade, de modo que quando digo 'Ser infinito', não tenho um

44

Wolter, Duns Scotus, 19.

Mann, "Duns Scotus", 246-47.

46 Wolter, Duns Scotus, 20.

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conceito composto acidentalmente, por assim dizer, de um sujeito e seu atributo. O que eu tenho é um conceito do que é essencialmente um, ou seja, de um sujeito com um certo grau de perfeição (in certo gradu perfectionis) - infinito."47 A ideia de graus de perfeição informa a maneira como Scotus pensa sobre a outra "perfeição pura" atribuída a Deus. Ele segue Anselmo nesse ponto e escreve: "No que diz respeito a tudo, exceto as relações, seja o que for incondicionalmente melhor do que algo que não é, deve ser atribuído a Deus, assim como tudo o que não é desse tipo deve ser negado a ele. De acordo com Anselmo, então, primeiro sabemos que algo é uma perfeição pura e, em segundo lugar, atribuímos essa perfeição a Deus."48 Quando a razão natural pensa em Deus, ela procede primeiro com a noção formal de algo, como sabedoria ou poder. Todas as imperfeições da criatura são removidas da noção e o grau máximo de perfeição é atribuído a ela. Nós então atribuímos a noção a Deus. Richard Cross chama isso de "modificação divina" de Scotus.49 Esse movimento depende de o intelecto ter "o mesmo conceito unívoco que obteve das criaturas".50 Através do exercício da razão natural, tomamos o conceito de "sábio", removemos todas as imperfeições da criatura, damos a ele o mais alto grau de perfeição, que chamamos de onisciência, e então atribuímos a Deus. O mesmo procedimento se aplica a todas as outras perfeições, todas as outras coisas que identificamos como sendo melhor ter do que não ter. Cross conclui: "A diferença entre Deus e as criaturas, pelo menos no que diz respeito à posse das perfeições puras por Deus, é, em última análise, uma questão de grau. Especificamente, as perfeições existem em um grau infinito em Deus e em um grau finito nas criaturas."51 Há uma consequência adicional a ser observada na teoria da univocidade de Scotus. Em um de seus últimos escritos, ele aborda a 47

Wolter, Duns Scotus, 27.

Wolter, Duns Scotus, 24. Anselmo, Monoslogion, 15 em Davies e Evans, Anselm of Canterbury, 28. Sobre o uso um tanto ambivalente que Scotus faz de Anselmo nesse ponto em todo o seu corpus, veja Richard Cross, Duns Scotus on God (Burlington, VT: Ashgate, 2005), 50-51.

49 Cross, Duns Scotus (1999), 32.

50 Wolter, Duns Scotus, 25.

51 Cross, Duns Scotus (1999), 39.

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questão "se é o essencial ou a definição que é mais imediato à essência divina".52 Quando aplicado a Deus, o essencial inclui as coisas comuns a todas as três pessoas por causa da essência divina compartilhada; os significativos (ou nocionais) são aquelas características apenas de uma ou duas das pessoas, como geração ou procissão.53 Após essa distinção, Scotus levanta a questão das perfeições puras, como observado acima. Ele novamente apela a Anselmo para afirmar que Deus deve ser, absolutamente falando, o que é melhor ser do que não ser.54 Então ele apela para a distinção entre características essenciais e nocionais em Deus a fim de limitar as perfeições puras àquelas coisas que não envolvem relação.55 Depois de fazer esse movimento, ele conclui que as características essenciais são anteriores às nocionais em um sentido lógico.

Ele escreve: "Agora o primeiro elemento nocional (pelo menos aquele que inclui a primeira relação positiva com uma pessoa) é o de falar [a Palavra]."

A fala da Palavra, a geração da Palavra, é um elemento nocional que se refere apenas ao Filho. A questão que Scotus está buscando é se há algo mais imediato à essência divina do que esse primeiro elemento nocional.

Ele acredita que sim, e continua: "Portanto, algo essencial... é mais imediato à essência do que o primeiro elemento nocional e, portanto, é mais imediato do que elemento nocional."56 A conclusão de Scotus procede de uma distinção lógica entre o que pertence a todas as três pessoas e o que é particular a uma ou duas das pessoas. Essa distinção permite que ele fale de forma muito mais positiva sobre as características essenciais da essência divina, independentemente das relações pessoais que existem entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ao abstrair as perfeições puras das relações, excluindo explicitamente qualquer coisa que envolva relação, e ao insistir em uma teoria da univocidade, Scotus tornou possível o teísmo filosófico que florescerá plenamente durante o século XVII e que continua a atormentar nossas discussões sobre Deus hoje. Ele 52

Scotus, God and Creatures, 5-30.

Scotus, God and Creatures, 9-10. Essa é uma distinção útil com garantia bíblica e usada em toda a tradição. Falaremos mais sobre essa distinção na parte 3.

54 Scotus, God and Creatures, 12.

55 Esse movimento segue a lógica apresentada por Anselmo, Monoslogion, 15, em Davies e Evans, Anselm of Canterbury, 26-28.

56 Scotus, God and Creatures, 22.

53

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deu credibilidade filosófica e garantia ao theologus gloriae de Lutero.

Embora Scotus lembre constantemente seus leitores de que há coisas que a razão humana não pode saber sobre Deus (que Ele é Trindade), mas a razão natural é capaz de saber que Deus é um ser maximamente excelente, perfeito e que quando atribuímos características como sábio, verdadeiro, bom, poderoso e assim por diante a Deus e ao homem, o fazemos univocamente. Stephen Dumont descreve o efeito do argumento de Scotus: "Ao admitir um conceito simples e unívoco de ser, Scotus forneceu uma verdadeira comunidade conceitual entre Deus e a criatura e colocou o projeto de conhecimento natural da natureza divina em uma base epistemológica firme."57 Essa base firme era a capacidade de Scotus de "conceituar" Deus. Apesar das sutis qualificações de seu argumento, Scotus trouxe o Deus transcendente para dentro dos limites da criação. Como diz Robert Barron, o modo de pensar de Scotus permitiu que Deus fosse "mapeável" ao longo das mesmas coordenadas que as criaturas.58 CONSEQUÊNCIAS DA UNIVOCIDADE

A insistência de Scotus na univocidade moldou a discussão moderna sobre Deus de duas maneiras significativas. Em primeiro lugar, uma vez que algo positivo poderia ser dito da essência de Deus pela razão sem ajuda, surgiu para Scotus uma maneira de falar sobre Deus que foi apelidada de "teologia do ser perfeito".59 Essa maneira de falar procede da distinção observada acima entre as características essenciais e nocionais de Deus. Como as características essenciais são logicamente anteriores às nocionais, uma pessoa é capaz de falar sobre o que pertence à essência de Deus sem fazer referência às pessoas. Embora para Scotus essa seja apenas uma distinção lógica e, em sua visão teológica, uma maneira útil de falar sobre o que diz respeito a Deus como Deus e Deus como Trindade (Deus qua Deus e Deus qua Trinity), essa distinção, em mãos menos

57

Dumont, "Henry of Ghent", p. 313.

Robert Barron, Priority of Christ: Toward a Postliberal Catholicism (Grand Rapids: Brazos, 1997), 193.

59 Cross, Duns Scotus (1999), pp. 31-32; Cross, Duns Scotus on God (2005), 49-54.

58

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capazes, torna-se a marca registrada do teísmo filosófico moderno - a abstração de "Deus" da revelação bíblica de Deus como três pessoas coiguais e coeternas, Pai, Filho e Espírito Santo. Essa maneira de falar sugere que a essência divina é anterior às pessoas. O essencial e o nocional, entretanto, não devem ser distinguidos como primário e secundário. As pessoas divinas não são um acréscimo sabeliano à essência divina, mas a realidade irredutível dessa essência. William Weinrich elabora esse ponto com grande clareza: "Não há realidade que possamos chamar de 'Deus' que seja anterior a Deus como Deus Pai; não há realidade que possamos chamar de 'Deus' que seja anterior a Deus como Deus Filho."60 As pessoas são inseparáveis da essência indivisível, e a essência é inseparável das pessoas irredutíveis. Agostinho expressa esse ponto com precisão gramatical: "Pater et filius et spiritus sanctus unus deus est" ("Pai e Filho e Espírito Santo é o único Deus").61 A segunda grande consequência da univocidade do ser de Scotus diz respeito ao nosso pensamento sobre Deus e onde O situamos em nossos julgamentos teológicos formais. Essa consequência, levantada no início do capítulo 2 e decisiva para a compreensão das dificuldades soteriológicas presente em grande parte do cristianismo contemporâneo, é vista com o exemplo da criação. Seguindo a corrente dos Pais, Tomás de Aquino enfatizou tanto a diferença quanto a similaridade entre Deus como criador e Sua criação. Ele rejeitou qualquer tentativa de atribuir o criador e a criação univocamente à mesma categoria filosófica de ser.

Deus não é comparativamente diferente, mas absolutamente diferente. E, ainda, em meio a essa diferença radical, há semelhança entre Deus e as criaturas. Como devemos expressar essa diferença e semelhança? Tomás, assim como os Pais, expressa esse conceito em termos de existência emprestada. Deus é ipsum esse, a própria existência, e esse subsistens, Sua existência e essência necessariamente coincidem.62 Somente para Deus, 60

William Weinrich, "Trinitarian Reality as Christian Truth: Reflections on Greek Patristic Discussion", Concordia Theological Quarterly 67 no. 3/4 (2003): 338.

61 Augustine The Trinity I.12 (WSA I/5), 72.

62 Thomas Aquinas ST I.44.1c: "Deus est ipsum esse per se subsistens". Cf. Augustine Confessions 1, vi.10, trans. Henry Chadwick (Oxford: Oxford University Press, 1992), 8: "Em ti (Deus) não é uma coisa ser e outra viver: o grau supremo 146

escreve Tomás, "a existência e a quididade são uma e a mesma coisa".63 As criaturas não são seres que existem por direito próprio. Para nós, a essência e a existência não coincidem. Não somos, como diz David Bentley Hart, essências atemporais que exigem existência.64 Não possuímos nenhuma realidade própria. A síntese de nossa essência e existência é pura gratuidade de Deus. Isso significa que não temos nenhuma reivindicação natural de existência; existimos de acordo com a relação (secundum relationem).65 Essa relação é com Deus, nosso criador, que é o princípio e a causa de todas as coisas.66 Somente Nele vivemos, nos movemos e temos nosso ser. Para Tomás, isso significa que Deus não apenas cria todas as coisas, mas também as mantém existindo. Como criaturas de Deus, nossa própria existência, nosso ser, depende de nossa relação com Deus.67 Não existimos por nós mesmos; não temos nenhuma base independente sobre a qual reivindicar a existência. Toda existência é uma existência concedida, pois tudo o que existe o faz somente em relação ao doador da vida, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.68 Nossa própria de ser e o grau supremo de vida são uma e a mesma coisa."

63 Thomas Aquinas ST I.44.1c: "Deus est ipsum esse per se subsistens."

64 David Bentley Hart, "The Destiny of Christian Metaphysics: Reflections on the Analogia Entis", em The Analogy of Being: Invention of the Antichrist or the Wisdom of God? Thomas Joseph White (Grand Rapids: Eerdmans, 2011), 397-99.

65 Thomas Aquinas ST I.45.3c. Agostinho é famoso por iniciar suas Confissões com esse mesmo tema. Veja Confissões de Agostinho 1, ii.2.

66 Thomas Aquinas ST I.44.1c; ST I.13.6c.

67 Thomas Aquinas ST I.45.3 ad 1 e ST I.46.1.

68 Cf. Martinho Lutero, comentando Jo 1.4 ("Nele estava a vida"), diz: "Não há nada aqui sobre uma interpretação filosófica da vida das criaturas em Deus; ao contrário, essas palavras falam apenas de como Deus vive em nós e nos torna participantes de sua vida, e como vivemos por meio dele. Pois não se pode negar que, por meio dele, existe a vida natural, que até mesmo os incrédulos têm, como diz São Paulo em Atos 17[.28]: 'Nele vivemos e nos movemos e temos nosso ser e somos de sua espécie'. De fato, a vida natural é uma parte da vida eterna e seu início, mas termina com a morte porque não reconhece nem honra aquele de quem provém. O pecado a , de modo que ela deve morrer eternamente. Por outro lado, aqueles que creem nele e reconhecem aquele de quem provêm seu ser nunca morrem. Sua vida natural será estendida para a vida eterna, de modo que eles nunca provarão a morte, como ele diz em João 8[.52]: 'Aquele que guarda as minhas palavras nunca provará a morte', e em João 11[.25]: 'Aquele que crê em mim, mesmo que morra, viverá'". Sermon on the 147

existência serve como um lembrete constante da contínua graça, misericórdia e atividade de Deus em nossa vida; de fato, serve como um lembrete constante da dependência generalizada de toda a criação sobre a Trindade.69 Apesar da preferência de Tomás por pensar em Deus em termos de causalidade, o que o envolve em outras dificuldades, como vimos, isso tem a virtude de distanciá-lo da onto-teologia que atormenta Scotus e seus herdeiros intelectuais.70 A insistência de Scotus de que o termo "ser" se aplica univocamente a Deus e às criaturas permitiu que as pessoas falassem de forma diferente sobre Deus e nossa existência concedida ou nossa dependência Dele. O rebaixamento da categoria de "ser" por Scotus para incluir tanto Deus quanto o homem significava que o ser do homem não precisava mais de Deus para sua definição. A insistência na univocidade efetivamente rompe a dependência da ordem criada em relação a Deus. Torna-se possível dizer que a ordem criada existe por mérito próprio, tanto quanto Deus existe. Esse tipo de pensamento leva à ruptura entre Deus e a natureza e ao surgimento das ciências naturais como um campo independente de investigação. O resultado é uma ordem autônoma e secular divorciada de Deus e de Sua ação criadora.

A representação de Deus pela modernidade como um objeto de nossa atividade intelectual funciona porque Deus e o homem pertencem à mesma categoria de ser. Um recuo piedoso nesse ponto para a afirmação de que Deus é eminentemente mais do que nós na grande cadeia do ser oferece muito pouco. Nosso ser, nossa personalidade e nossa liberdade não são mais compreendidos apenas em relação à Trindade e ao compartilhamento gratuito da vida de Deus conosco em Cristo pelo Espírito Santo, mas agora a essência e a existência de Deus são mapeadas de acordo com a maneira como compreendemos a nós mesmos. O Gospel for the Main Christmas Service, 1522 (AE 52:55; WA 10/1.199.24-200.10).

69 Para uma discussão mais aprofundada sobre esse ponto, consulte David Burrell, "Analogy, Creation, and Theological Language", Proceedings of the American Catholic Philosophical Association 74 (2000): 35-52.

70 Para uma discussão completa dessa questão, consulte Jean-Luc Marion, "Thomas Aquinas and Onto-Theo-Logy", em God Without Being, 2d ed., trans.

Thomas Carlson (Chicago: University of Chicago Press, 2012), 199-236.

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resultado é um Deus à nossa imagem, de acordo com nossa sensibilidade e em nossos termos. Deus se torna a maior coisa ao redor. Um retorno ao tomismo não resolverá o problema; de fato, os problemas do tomismo deram origem à crítica de Scotus. A resposta repousa em Lutero e em nossos dogmáticos luteranos, o que, por si só, é um retorno às melhores percepções dos Pais.

A NECESSIDADE DE DESAPRENDER

As grandes alegações sobre o que sabemos de Deus não surgiram com Scotus ou com aqueles que explorariam o fundamento epistemológico que ele envolveu. Esse problema surgiu especialmente durante a controvérsia ariana do século IV. Eunomius de Cyzicus insistiu que a mente humana poderia compreender e expressar com precisão e completude a própria essência de Deus. Eunomius notoriamente defendeu: "Deus não sabe nada mais sobre sua própria essência do que nós, nem essa essência é mais conhecida por ele e menos por nós. Em vez disso, o que quer que saibamos sobre ela é exatamente o que ele sabe e, inversamente, o que ele sabe é o que você encontrará sem mudança em nós."71 Basílio de Cesareia discordou: "A compreensão da substância de Deus transcende não apenas os seres humanos, mas também toda natureza racional."72 Basílio se pergunta como Eunômio pode se vangloriar de conhecer a essência de Deus quando as Escrituras nos dizem que "a paz de Deus excede todo o entendimento" (Fp 4.7). Como é possível que a paz de Deus ultrapasse o entendimento, mas não a Sua essência? Basílio retorna às Escrituras e declara: "Ninguém conhece o Pai senão o Filho" (Mt 11.27) e "O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundezas de Deus. Pois ninguém sabe o que é do homem, senão o espírito que nele está, e ninguém sabe o que é de Deus, senão o Espírito que vem de Deus" (1Co 2.10-11).73 De acordo com as Escrituras, o Pai é

71

Richard Vaggione, Eunomius: The Extant Works (Oxford: Oxford University Press, 1987), 178.

72 Basil of Caesarea Against Eunomius 1.14 (Fathers of the Church, 112).

73 Basil of Caesarea Against Eunomius 1.14 (Fathers of the Church, 112). Basílio confunde 1 Co 2.12 e 1 Co 2.10. Em vez de dizer "exceto o Espírito de Deus", ele diz "exceto o Espírito que vem de Deus".

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conhecido por meio do Filho pelo Espírito Santo. Não complementamos nossas melhores ideias sobre Deus com Sua revelação para nós. Seja o que for que pensemos que sabemos, devemos desaprender, arrependernos, para que possamos confessar corretamente, de acordo com nosso batismo, a Santíssima Trindade.74 Para Basílio, devemos abandonar o conhecimento derivado do ensino humano para receber a instrução divina. Ele explica: "E preparar o coração para isso significa desaprender os ensinamentos que já o possuem, derivados de maus hábitos. Pois não é mais possível escrever em cera sem primeiro suavizar as letras previamente escritas nela, do que fornecer à alma ensinamentos divinos sem primeiro remover seus preconceitos derivados do hábito."75 Devemos conhecer tanto o limite de nosso conhecimento quanto a necessidade das Escrituras, da revelação de Deus sobre Si mesmo, para pensar, falar e orar corretamente.

Não podemos nos apegar a conceitos de Deus derivados da razão e construir sobre eles. É por isso que os Pais insistiam que Deus estava além do ser, o que significava simplesmente além da definição, além dos limites de nossos conceitos humanos, transcendendo todas as categorias disponíveis para nós. Gregório de Nissa considera uma especulação inútil atribuir qualquer concepção discreta ao que está acima de toda concepção.76 Agostinho defende o mesmo ponto: "Estamos falando de 74

Basil of Caesarea Letter 91 (LCC, 2:131).

Basil of Caesarea Letter 2 (LCC, 1:11). Cf. Gregory of Nazianzus Or. 2.43 (NPNF, ii, 7, 443): "Assim, imprimir a verdade em uma alma quando ela ainda está fresca, como cera ainda não submetida ao selo, é uma tarefa mais fácil do que inscrever uma doutrina piedosa em cima de inscrições - quero dizer, doutrinas e dogmas errados - com o resultado de que as primeiras são confundidas e desordenadas pelas últimas. É melhor, de fato, trilhar uma estrada lisa e bem pavimentada do que uma estrada inexplorada e, ou arar uma terra que tenha sido frequentemente fendida e quebrada pelo arado: mas uma alma sobre a qual se deve escrever deve estar livre da inscrição de doutrinas prejudiciais ou das marcas profundas do vício; caso contrário, o piedoso escritor teria uma dupla tarefa: apagar as impressões anteriores e substituí-las outras mais excelentes e mais dignas de permanecer".

76 Gregory of Nyssa Letter 35.3 e em Gregory of Nyssa: The Letters, trans. Anna M. Silvas (Leiden: Brill, 2007), 252. Cf. Carta 24.5: "Mas a sua substância, seja ela qual for - pois é inexprimível em palavras e não pode ser apreendida em 75

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Deus; então, por que se surpreender se você não consegue compreendêlo? Quero dizer, se você pode compreendê-lo, ele não é Deus. Preferimos fazer uma confissão sincera de ignorância, em vez de uma profissão impetuosa de conhecimento."77 Novamente Agostinho escreve: "Então, o que devemos dizer, irmãos, sobre Deus? Pois se você compreendeu por inteiro que quer dizer, não é Deus. Se você foi capaz de compreendê-lo, você compreendeu outra coisa em vez de Deus. Se você acha que foi capaz de compreender, seus pensamentos o enganaram."78 Gregório de Nazianzo segue uma linha de argumentação semelhante. Ele declara: "Falar de Deus não é possível" e "conhecê-lo é ainda menos possível".79 Sugerir o contrário, para Gregório, é "vangloriar-se do sempiterno”.80 Para Gregório, não somos mais capazes de ter conhecimento exato da essência de Deus do que somos da criação de Deus. Ecoando Basílio, Gregório escreve: "De nossa parte, não apenas a paz de Deus ultrapassa todo pensamento e entendimento com todas as coisas guardadas em promessa para os justos - coisas invisíveis aos olhos, inaudíveis aos ouvidos (1Co 2.9), impensadas ou, pelo menos, apenas vislumbradas pela mente - mas também o conhecimento exato da criação."81 Sabemos que a natureza existe, mas possuímos apenas um esboço de sua realidade.

Quando se trata de saber quem é Deus, duas questões devem ser corretamente compreendidas. Precisamos ter uma compreensão adequada da fé e da razão, e uma compreensão adequada da linguagem humana. Por sermos criaturas corpóreas, até mesmo nossa linguagem mais elevada permanece condicionada por elementos de tempo e espaço.

A própria natureza de nossa capacidade racional exclui a possibilidade de conhecer ou falar a plena realidade ou essência de Deus. É por isso que nenhuma noção ou conceito comum derivado da razão jamais alcançará o conhecimento da própria natureza de Deus ou da plenitude de Sua realidade. Gregório enfatiza dois pontos ao longo de sua discussão: “O pensamento". (193).

77 Augustine Sermon 117.5 (WSA III/4, 211).

78 Augustine Sermon 52.6 (WSA III/3, 57).

79 Gregory of Nazianzus Or. 28.4 (PPS, 39).

80 Gregory of Nazianzus Or. 28.7 (PPS, 41).

81 Gregory of Nazianzus Or. 28.5 (PPS, 40).

151

Divino não pode ser apreendido pela compreensão humana e a totalidade de sua grandeza não pode nem mesmo ser imaginada".82 Deus excede a compreensão de nosso intelecto porque Ele ultrapassa nosso nível de existência.83 Como Tomás enfatizou acima, o conhecimento de cada conhecedor corresponde à natureza do conhecedor. Como criaturas finitas, medimos e pensamos em categorias finitas; Deus não é finito. Ele excede nossas habilidades de criatura, nossa existência de criatura. Ele está além da categoria. Por essa razão, a linguagem que usamos para falar de Deus, linguagem extraída de nossa realidade como criatura, é sempre provisória, sempre analógica. Esse ponto já foi suficientemente esclarecido acima com Tomás e Scotus. Neste ponto precisamos dizer algo mais sobre a fé e a razão e o local apropriado para o conhecimento autêntico da Trindade. Como o pensamento de Gregório foi amplamente discutido no capítulo 2 e o leitor já tem alguma familiaridade com ele, faremos uso dele aqui também.

A discussão de Gregório sobre fé e razão está inserida em uma reflexão mais ampla sobre a magnitude e a grandeza de Deus. Christopher Beeley explica: "Para Gregório, a incompreensibilidade de Deus é o resultado necessário da infinitude do ser de Deus e da finitude da existência da criatura, incluindo o pensamento humano."84 A incompreensibilidade resulta de quem Deus é e de quem nós somos. Ele é o criador e nós somos a criação. Ele necessariamente supera todas as coisas em magnitude e grandeza. E, no entanto, como continua Beeley, "Deus não é meramente maior do que todas as coisas em grau, Ele é infinitamente grande, transcendendo inteiramente a criação."85 O argumento de Gregório seria mal interpretado se pensássemos que isso significa que Deus é conhecido apenas vagamente por causa de Sua alteridade metafísica. Deus se fez conhecido por nós em Cristo por meio 82

Gregory of Nazianzus Or. 28.11; tradução de Christopher Beeley, Gregory of Nazianzus on the Trinity and the Knowledge of God (Oxford: Oxford University Press, 2008), p. 94.

83 Gregory of Nazianzus Or. 18.16.

84 Beeley, Gregory of Nazianzus, 94.

85 Beeley, Gregory of Nazianzus, 95; cf. Gregory of Nazianzus Or. 6.12 (Fathers of the Church, 12).

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das palavras das Escrituras. Embora essas palavras procedam de nossa existência como criatura, embora correspondam ao nosso mundo como criatura, o Espírito Santo reatribui o conteúdo desses termos pela fé. O significado procede de Deus. As Escrituras declaram, por exemplo, que nada pode nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus (Rm 8.39), e esse amor, que conhecemos pelo Espírito Santo (Rm 5.5), foi revelado no fato de Cristo ter dado Sua vida por nós (1Jo 3.16). Esse amor "excede todo o conhecimento" (Ef 3.19). Esse amor tem uma profundidade conhecida somente pelo Espírito de Deus (1Co 2.10-11). Para ter certeza, conhecemos esse amor que excede o conhecimento pela fé, mas pela fé apenas em parte, em um como um espelho sem reflexo.86 Esses dois pontos devem permanecer juntos. Primeiro, conhecemos esse amor com certeza e, ainda assim, apenas em parte. Segundo nosso conhecimento procede da revelação de Deus, as Escrituras possibilitam nosso conhecimento e nossa fala e normatizam esse mesmo conhecimento e fala.

Para Gregório, aprendemos nas Escrituras o que pertence à natureza de Deus ouvindo e vendo o que Deus declara e faz. Gregório escreve: "Usamos fatos relacionados a ele para delinear qualidades que correspondem a ele, coletando uma imagem mental débil e fraca de vários quadrantes. Nosso mais nobre teólogo não é aquele que descobriu o todo - nossos grilhões terrenos não nos permitem o todo - mas alguém cuja imagem mental é, por comparação, mais completa, que reuniu em sua 86

Francis Pieper faz uma observação muito semelhante. Ele escreve: "De fato, é um empreendimento tolo e blasfemo quando nós, homens, com base a priori (ou seja, independente da autorrevelação de Deus em Sua Palavra), presumimos determinar o que Deus, de acordo com Seu amor ou justiça, pode ou deve, ou o que ou não compatível com o amor ou a justiça de Deus. Essa tentativa se baseia na falsa premissa de que o homem finito pode compreender o Deus infinito. O fato é que, assim como Deus é infinito, Seus atributos também são infinitos e, portanto, estão além de nossa compreensão" (Christian Dogmatics 1:430-31).

Pieper ressalta a incompreensibilidade de Deus e a necessidade da linguagem analógica. Mais uma vez, Pieper explica: "Todo teólogo das Escrituras deseja permanecer de acordo com São Paulo, que descreve expressamente o conhecimento de Deus nas Escrituras como parcial, fragmentário, fragmentado (1 Co 13.9: 'Sabemos em parte, e profetizamos em parte')" (Christian Dogmatics 1:430).

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mente uma imagem mais rica, um esboço, ou como quer que chamemos, da verdade."87 Da mesma forma que não podemos respirar todo o ar que há para respirar, uma pessoa não pode compreender inteiramente na mente ou expressar completamente na fala o ser de Deus. O nobre teólogo não busca o impossível, mas o possível. Ele recebe das Escrituras a verdade sobre Deus e essa verdade é mais completa e mais rica do que qualquer outra coisa que possa ser conhecida. E ainda assim essa verdade, apreendida pela fé, transmitindo o que é real por meio da linguagem da criatura, ainda é apenas parcial. Ainda resta uma profundidade maior.

Quando confessamos que conhecemos em parte, em um espelho sem reflexo ou através de um vidro escuro, não importa como quisermos expressar, não estamos confessando incerteza. Nem estamos confessando que “o mais” que aguarda a nossa compreensão quando nos livramos das nossas algemas terrenas de qualquer forma contradiz ou mina “a parte” que conhecemos com certeza pela fé. Essa é a verdade que cantamos, nas palavras de Paul Gerhardt, "Pois Deus te mostrará as coisas do alto / Que aqui só é dado ouvir e ver obscuramente" (ELH 405:5; ELHB 264:5).

Que há coisas que não podemos suportar saber por completo quando desejamos saber fica claro através de Cristo. Há coisas que os discípulos precisavam saber, mas não podiam suportar antes da crucificação e da ressurreição. Eles sabiam em parte, mas saberiam mais quando o Espírito viesse sobre eles (Jo 16.12-13). Isso se aplica a nós, peregrinos cuja cidadania está no céu. Aqui conhecemos em parte, mas lá conheceremos plenamente. Paulo experimentou isso de uma forma que ninguém mais experimentou: "Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado até o terceiro céu - se no corpo ou fora do corpo, não; Deus o sabe. E sei que esse homem foi arrebatado ao paraíso - quer no corpo, quer fora do corpo, não sei; Deus o sabe - e ouviu coisas que não se podem contar, nem proferir" (2Co 12.2-4). Paulo experimentou algo verdadeiro e real, mas além da descrição. Ele ouviu coisas que não podia expressar em palavras. Paulo foi levado a um lugar seja no corpo ou fora, seja um lugar definido pela corporeidade ou não, um lugar de espaço e dimensão como o conhecemos - ele não conhecia.

87

Gregory of Nazianzus Or. 30.17 (PPS, 107-8).

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Aqui Paulo não está lutando apenas para saber se ele foi levado corporalmente para esse "lugar" ou levado apenas por visão. Há uma verdadeira confusão e incerteza por parte de Paulo. O que quer que tenha sido, foi real em um sentido além do que ele conhece aqui e, portanto, as palavras falham. Ele ouviu coisas que eram inexprimíveis, indizíveis, sagradas demais para serem ditas (ἢκουσεν ἄρρητα ῥήματα). Essas coisas não podem ser ditas, não podem ser proferidas, não porque não nos é permitido conhecê-las, tal que Paulo sabia algo contrário ao que as Escrituras declaram em outros lugares. Não, ele não era capaz de falar essas palavras, de dizer essas coisas, porque "não era possível" (οὐκ ἐξὸν) que elas fossem proferidas pelo homem.88 Estava além de sua capacidade de criatura, além da natureza do conhecedor e do falante.

A falta de compreensão de quem somos como criaturas e, portanto, das limitações de nossas faculdades resulta em idolatria.

Eunomius falha em entender as limitações da natureza humana e, especificamente, a capacidade da razão humana. A razão em si é uma dádiva de Deus, uma tremenda bênção que nos diferencia como criaturas racionais do restante da criação de Deus. É essa capacidade que nos permite meditar sobre as Escrituras, proclamar as maravilhas de nosso Deus e compartilhar com os outros as alegrias da vida. Essa dádiva da razão vem de Deus, e Ele a adaptou adequadamente a nós, seres humanos finitos. Isso significa que nossa razão funciona em termos espaciais e temporais - em termos que correspondem à nossa existência finita. Sugerir que a razão poderia compreender a essência de Deus é afirmar algo totalmente impossível. Nossa razão finita não pode compreender perfeitamente a essência infinita de Deus.89 Gregório faz uma analogia útil. Como somos capazes de ver o 88

Cf. Paul Kretzmann, Popular Commentary of the Bible (St. Louis: CPH, n.d.), New Testament, 2:219: "Paulo teve um gostinho dessa bem-aventurança e glória nessa visão. E ele tinha ouvido palavras que eram indizíveis para qualquer língua humana".

89

Gregory of Nazianzus Or. 38.7-8. Novamente Pieper, Christian Dogmatics 1:431, "Essa tentativa [de determinar os atributos de Deus pela razão] repousa na falsa premissa de que o homem finito pode compreender o Deus infinito. O fato é que, assim como Deus é infinito, Seus atributos também são infinitos e, portanto, estão além de nossa compreensão."

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sol? A resposta é nossa capacidade de visão. É isso que torna possível nossa visão. O que acontece quando usamos essa capacidade de visão para olhar diretamente para o brilho do sol? Abusamos de nossa capacidade, buscando fazer mais com ela do que é possível e o resultado é que cegamos nós mesmos. Ao abusar da capacidade da visão para ver coisas além de nossa habilidade de ver, ficamos sem visão. Eunomius abusa de sua capacidade da razão ao buscar algo que está além da natureza da razão.

Ao fazer isso, ele abusa de sua capacidade e sucumbe à ignorância. Ele não é diferente da pessoa que está diante da imensidão do oceano, com a água que se estende até onde os olhos podem ver e que declara ter absorvido toda a água diante de si. Para ele, o horizonte é o fim, o limite, e não apenas o começo de uma vastidão ainda desconhecida. Ele acha que compreendeu o todo; sabemos que ele vê apenas uma parte.90 CONCLUSÃO DA PRIMEIRA PARTE

Um tema recorrente na teologia católica conservadora de hoje é que a desintegração da síntese tomista de John Duns Scotus, Guilherme de Ockham e os nominalistas medievais tardios secularizou o mundo, separando-o do ser de Deus, e esse caminho, a via moderna, deu origem a todos os males da modernidade que observamos em nossos dias.91 Essa interpretação tomista da história acredita ainda que o nominalismo é anticatólico, ou pelo menos não-católico.92 Uma vez que Lutero recebeu seu treinamento teológico formativo na tradição nominalista em Erfurt, da perspectiva dessa narrativa tomista, a Reforma foi involuntariamente condenada desde o início. Para os católicos romanos, isso explica a natureza equivocada e herética dos esforços de Lutero;93 para os 90

Gregory of Nazianzus Or. 28.3; cf. Gregório de Nazianzeno De rebus suis, II/I/I.92 (Padres da Igreja, 28); cf. De vita sua, II/I/XI.1774-75 (Fathers of the Church, 126); Basil of Caesarea Against Eunomiu 1.16 (Padres da Igreja, 115).

91 Para um exemplo recente, consulte Brian Gregory, The Unintended Reformation: How a Religious Revolution Secularized Society (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012).

92 Heiko Oberman, The Harvest of Medieval Theology (Grand Rapids: Baker Academic, 2000), 1-3.

93 Joseph Lortz, The Reformation in Germany, 2 vols. (Nova York: Herder and Herder, 1968).

156

protestantes defendendo essa narrativa tomista, dos quais não são poucos, a Reforma é motivo de lamentação.94 Para chegar ao cerne dessa questão do conhecimento de Deus e da maneira como falamos sobre Ele, precisamos reconhecer que julgamentos simplistas provenientes de grandes narrativas históricas nunca serão suficientes. Por esse motivo, na parte 1, nos concentramos o máximo possível em textos reais de teólogos reais. Nossas conclusões foram tiradas a partir desses textos. Embora nossa abordagem tenha sido necessariamente seletiva em relação aos teólogos e aos textos utilizados, pelo menos evitamos apresentar percepções teológicas em termos ambíguos e reduzir os teólogos a categorias generalizadas de pensamento.

Todos os teólogos são ecléticos. Lutero é um exemplo clássico. Ele era um monge agostiniano que recebeu seu treinamento teológico formativo de um corpo docente comprometido com um certo tipo de nominalismo.

Independentemente de como queiramos pensar no nominalismo de Lutero e nos diversos pensadores que o influenciaram, perderemos a importância de suas percepções bíblicas se procurarmos apenas rotulá-lo.

Temos que lutar ao longo de suas obras, sua dialética afiada e, às vezes, sua retórica confusa. Isso vale para Tomás de Aquino, John Duns Scotus e todos outros escritores que exploramos.

Os capítulos anteriores traçaram duas abordagens distintas sobre como conhecemos e falamos corretamente sobre Deus. Por um lado, vários pensadores deram grande ênfase ao conhecimento de Deus obtido pela razão humana sem ajuda, que foi então aperfeiçoado e completado pelas Escrituras. Apesar de suas diferenças consideráveis em outros assuntos, Tertuliano e Tomás de Aquino, o primeiro guiado pelo estoicismo e o segundo pelo aristotelismo, ambos pensavam que o conhecimento de Deus começava com a natureza, com os preâmbulos dos artigos de fé. Exemplos extremos dessa abordagem filosófica foram vistos de diferentes maneiras com Eunômio, Scotus e Descartes. Essas 94

Hans Boursma, Heavenly Participation: The Weaving of a Sacramental Tapestry (Grand Rapids: Eerdmans, 2011). Boursma escreve: "Nós, como evangélicos, só fazemos justiça ao nosso passado se considerarmos a Reforma não como algo a ser celebrado, mas como algo a ser lamentado"(85).

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figuras e seus herdeiros intelectuais valorizaram muito o intelecto ao pensar sobre Deus e ao expressá-Lo na linguagem humana. Suas diferentes abordagens reduziram Deus a um objeto de atividade intelectual humana determinando qual atributo divino define Deus de forma adequada e, a partir daí, construir um conceito de Deus. Deus fica à parte de nós enquanto analisamos e construímos o tipo de ser ontológico e moral que Ele mais apropriadamente deveria ser.

Aproximar-se de Deus dessa forma é ser guiado pela arrogância, construindo idolatrias intelectuais nas quais a fé pode se apoiar. Na maioria das vezes, Deus se torna a resposta para nossas ansiedades e deficiências humanas. Esse é o caminho do theologus gloriae.

Atanásio, Gregório de Nazianzo e os reformadores luteranos abraçam uma visão teológica alternativa, caracterizada pela humildade, persistentemente interessada no centro cristológico e soteriológico do pensamento trinitário. Para essas figuras, as Escrituras e, especificamente, a obra salvadora de Cristo ocupam o lugar central para o autêntico conhecimento de Deus, não por causa de qualquer grande percepção da parte deles, mas porque foi assim que o Deus triúno determinou as coisas para nós. Por essa razão, qualquer conhecimento de Deus que possamos ter antes da fé e à parte de Cristo deve ser desaprendido e afastado. Para os Pais e reformadores, o conhecimento correto da Trindade nunca ocorre nos lugares elevados do esforço escolástico, mas nas ações humildes da liturgia da igreja. Não é nenhum atributo específico que revela Deus a nós, mas sim o evento da cruz. A mudança do atributo para o evento é significativo e esclarece nossa liturgia. Aqui passamos a conhecer, adorar e glorificar nosso Deus Triúno, não apenas falando sobre Ele, mas também falando com Ele. Não foi por coincidência que no Catecismo Menor Lutero estruturou o dia do cristão em torno do batismo. Não foi por coincidência que Basílio de Cesaréia escreveu um tratado sobre o Espírito Santo, concentrando- se na liturgia e na oração.

Não foi coincidência o fato de os credos trinitários do século IV terem sido extraídos das liturgias batismais da igreja. Os debates patrísticos sobre a Trindade tinham a ver com nossa salvação em Cristo e o louvor e a glória dados ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo na liturgia divina. O que estava em jogo para eles não era apenas o coração da fé cristã, mas a 158

essência de quem eles entendiam ser como filhos batizados de Deus.

Defender a Trindade era defender seu batismo; salvaguardar sua confissão da Trindade era salvaguardar sua liturgia. Quando o batismo perde o significado, quando a liturgia cede lugar às tendências do dia, a base sobre a qual a Trindade é conhecida e confessada desaparece.

Os Pais e os reformadores luteranos confessaram a identidade triúna de Deus por causa de seu compromisso somente com as Escrituras.

A Parte 2 deste livro seguirá com esse mesmo compromisso.

Apresentaremos a identidade bíblica de Deus conforme revelada por Deus no Antigo e no Novo Testamento. Após esses capítulos, nos voltaremos para as reflexões dogmáticas da igreja na parte 3. Aqui encontraremos a terminologia técnica e a gramática usadas pelos fiéis para confessar, esclarecer e proteger a doutrina bíblica da Santíssima Trindade.

CONTEÚDO

159

160

PARTE DOIS: A TRINDADE

Quando as pessoas que frequentam a igreja pedem ao pastor para explicar a Trindade, elas não querem analogias inteligentes ou credos cuidadosamente redigidos. Elas querem saber o que as Escrituras dizem sobre a Trindade. A Parte 2 demonstra a identidade bíblica da Trindade.

Começamos com um breve capítulo sobre a Trindade e a Bíblia.

Atualmente, muitos estudiosos acham que a Trindade pertence à história da igreja e não aos autores das Escrituras. Depois de abordar o status da interpretação das Escrituras em nossos dias e as falsas suposições adotadas por muitos estudiosos da Bíblia, examinamos detalhadamente a apresentação bíblica do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Novo Testamento nos direciona consistentemente para a Lei e os Profetas, para o Antigo Testamento, para entendermos corretamente a identidade de Jesus Cristo, o verdadeiro Filho de Deus. Ele é o enviado do Pai, que, por sua vez, com o Pai, envia o Espírito Santo, conforme prometido pelos profetas. A convicção dos apóstolos é de que a identidade triúna de Deus é conhecida de acordo com o Antigo Testamento. Portanto, começamos com a Trindade no Antigo Testamento.

YHWH, nosso Elohim, é Triúno. O Antigo Testamento deixa claro que somente YHWH cria todas as coisas, governa Sua criação, redime Seu povo e somente Ele pode ser adorado. Essas prerrogativas divinas pertencem somente a YHWH e a nenhum outro. Por isso, o Antigo Testamento atribui essas prerrogativas, esses marcadores de identidade, ao Pai, aquele que profere Sua Palavra no princípio, ao Filho, que é a Palavra de YHWH, proferida no princípio, que cria todas as coisas, e ao Espírito de YHWH, o sopro do Todo-Poderoso, que também criou todas as coisas. O Antigo Testamento deixa claro que o Pai, a Palavra e o Espírito são intrínsecos à identidade, à realidade, ao ser e à essência de 161

YHWH. Uma leitura fiel e cuidadosa das Escrituras exige a confissão de que YHWH, nosso Elohim, é Triúno: Ele é Pai, Verbo e Espírito, três que são um, coiguais e coeternos, inseparavelmente unidos como um ainda eternamente distintos como três.

O restante da parte 2 mira na identidade divina do Pai, do Filho e do Espírito Santo apresentada no Novo Testamento. Ele delimita a identidade divina do Filho e do Espírito Santo por meio de uma exegese cuidadosa do Antigo Testamento. O nome divino e as características exclusivas pertencentes a YHWH são atribuídos tanto ao Filho quanto ao Espírito Santo. Terminamos a parte 2 com uma discussão sobre a origem eterna do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho (filioque). Os luteranos ensinam e confessam o filioque por causa da Escritura, não por causa dos Credos, e, portanto, nossos compromissos exigem que assumamos essa questão.

O tema da Trindade é abordado nos capítulos sobre a identidade bíblica da Trindade. A exegese oferecida ao longo desses capítulos segue as percepções dos Pais e dos Reformadores e tem como objetivo recuperar a voz da igreja em nossa leitura das Escrituras e na prática teológica.

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CONTEÚDO

6 A TRINDADE E A BÍBLIA A Trindade tem um lugar na exegese responsável e autêntica da Bíblia?

Que uma pergunta tão estranha possa ser feita indica algo terrível sobre os tempos em que vivemos.1 Os estudiosos críticos da Bíblia alegam que a Trindade pertence à história da igreja e aos teólogos interessados nessa história, mas não tem lugar no Novo Testamento, muito menos nas Escrituras "hebraicas", como o Antigo Testamento é agora designado na academia.2 A dificuldade enfrentada pela igreja hoje é como manter nossa confissão na identidade bíblica de Deus quando muitos exegetas, tanto liberais quanto evangélicos, não mais consideram isso como uma exegese adequada. O contraste teológico entre nossos dias e aqueles Pais e Reformadores pode ser explicado quase que inteiramente por nossas visões surpreendentemente diferentes das Escrituras - o que elas são e como devem ser interpretadas. Os capítulos seguintes têm como objetivo recuperar a Bíblia para nossa compreensão da Trindade. Eles têm como objetivo nos levar de volta às inspirações exegéticas e aos compromissos bíblicos dos Pais e Reformadores.

1

Robert Jenson, "The Bible and the Trinity", Pro Ecclesia 11/3 (2002): 329: "A suposição usual é que a doutrina da Trindade e a cristologia calcedoniana que se segue a ela não estão na Bíblia, e certamente não na maior parte da Bíblia que chamamos de Antigo Testamento." Cf. Donald Juel, "The Trinity in the New Testament", Theology Today 54 (1997): 313: "O Novo Testamento não contém nenhuma doutrina da Trindade."

2 Há ainda o problema de que alguns dos teólogos mais influentes do século XX também negaram que as Escrituras ensinassem a Trindade. Veja, por exemplo, Emil Brunner, The Christian Doctrine of God: Dogmatics, trans. Olive Wyon (Filadélfia: The Westminster Press, 1950), 1:205: "Devemos admitir honestamente que a doutrina da Trindade não fazia parte da mensagem cristã primitiva do Novo Testamento, nem jamais foi um artigo central de fé na vida religiosa da igreja cristã como um todo, em qualquer período de sua história".

Novamente, Brunner, 236: "A doutrina da Trindade em si, no entanto, não é uma doutrina bíblica, e isso, de fato, não por acidente, mas por necessidade."

163

Uma vez que a questão da Trindade e da Bíblia ocupa um terreno tão contestado, este capítulo abordará as ênfases da interpretação das Escrituras em nossos dias, particularmente com referência à Trindade, antes de passar aos capítulos sobre a identidade bíblica de nosso Deus Triúno. Começaremos mostrando brevemente a diferença entre os Pais e nós mesmos em termos de onde localizamos a Trindade em nossa literatura acadêmica. Forçada a mudar ao longo dos anos, a realocação da Trindade em nossos dias indica o desafio que enfrentamos ao demonstrar a identidade bíblica de Deus. Em seguida, abordamos os pressupostos modernos para a interpretação das Escrituras e como esses pressupostos levam à rejeição da Trindade ou à sua marginalização. A leitura acadêmica das Escrituras em nossos dias, tanto entre os liberais quanto entre os evangélicos, se enredou em pressupostos modernos sobre história e significado que não derivam das Escrituras, mas, como a teologia natural, das melhores ideias da época. Essas melhores ideias se tornaram as regras estabelecidas para a construção de um significado autêntico. Embora os estudiosos acadêmicos comprometidos com essa forma de ler a Bíblia discordem significativamente em termos de compromissos teológicos, especialmente sobre a historicidade da Bíblia, eles compartilham uma abordagem comum das Escrituras, uma abordagem muito distante da exegese tradicional dos Pais e dos Reformadores. Embora essa maneira moderna de ler a Bíblia geralmente se apresente como mais crítica, mais avançada ou mais sofisticada do que as leituras pré-modernas, ela procede de julgamentos teológicos. A exegese dos Pais e dos Reformadores também procedia de julgamentos teológicos. A questão não é se podemos ler as Escrituras à parte dos julgamentos teológicos; em vez disso, a questão é quais julgamentos teológicos procedem das Escrituras e quais se destacam delas. Rejeitar os compromissos exegéticos modernos é rejeitar seus julgamentos teológicos falhos e equivocados.

A TRINDADE NO SEU DEVIDO LUGAR

Antes de Agostinho escrever sua obra influente sobre a Trindade, ele começou, como todos os escritores devem fazer, com uma pesquisa.

Agostinho explica: O objetivo de todos os comentaristas católicos que fui capaz 164

de ler sobre os livros divinos de ambos os testamentos, que escreveram antes de mim sobre a Trindade que Deus é (trinitatis qui est Deus), foi ensinar que, de acordo com as Escrituras, Pai, Filho e Espírito Santo, na igualdade inseparável de uma substância, apresentam uma unidade divina e, portanto, não há três deuses, mas um só Deus...3

Quando Agostinho queria ler o que os teólogos anteriores haviam escrito sobre a Trindade, ele consultava seus comentários sobre o Antigo e o Novo Testamento. No mundo de Agostinho, escrever um comentário sobre qualquer um dos testamentos significava escrever sobre a identidade daquele que agiu nesses livros e foi o autor deles. Agostinho e seus contemporâneos se dedicaram às Escrituras, a Palavra de Deus, para entender a identidade do Deus único que é Pai, Filho e Espírito Santo, eternamente distintos em pessoa, mas indivisivelmente uno em essência.

Hilário de Poitiers, escrevendo durante o auge da controvérsia trinitária do século IV, enfatizou repetidamente em seu tratado sobre a Trindade que Deus é uma testemunha adequada de Si mesmo e, portanto, nós O conhecemos corretamente por meio de Sua própria revelação perfeita.4 Lutero ecoa esse sentimento: "Deus quer ser reconhecido quando se revela".5 Da mesma forma, Martin Chemnitz afirma: "Devemos pensar em Deus como Ele se revelou."6 De acordo com os Pais e os Reformadores, se quisermos conhecer Deus, falar corretamente sobre Ele e Sua obra em nosso favor, devemos olhar para as Escrituras e expô-las fielmente. O instinto demonstrado por Agostinho - ler os comentários disponíveis em sua época - é um instinto compartilhado por todos os escritores ortodoxos sobre a Trindade da igreja primitiva e por nossos pais luteranos.7 3

Augustine The Trinity 1.7 (WSA I/5, 69).

Hilary of Poitiers De Trinitate 1.18; veja também De Trinitate 2.6-7, 3.9, 4.1, 4.14, 5.20, 8.43, 9.40, 9.69.

5 On the Last Words of David,1543 (AE 15:338; WA 54:88.9): "Sondern wil erkand sein, wie er sich uns offenbart".

6 Martin Chemnitz, Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:87.

7 Já no século XVI, os protestantes estavam removendo a Trindade de suas leituras do Antigo Testamento. A obra de Lutero, On the Last Words of David, (1543), responde a essa tendência entre os "novos hebraístas" de sua época. A 4

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A questão urgente para nós é até que ponto compartilhamos o instinto de Agostinho. Será que começaríamos com os inúmeros comentários produzidos em nossos dias para aprender sobre a Trindade?

Mesmo que estivéssemos inclinados a fazer isso, nossos esforços seriam frustrados rapidamente. Do jeito que as coisas estão em nossos dias, a doutrina da Trindade encontra um refúgio seguro não em comentários das Escrituras, mas em teologias sistemáticas. Nesse tipo de literatura, aprendemos sobre as várias fórmulas usadas para expressar a doutrina da Trindade, a linguagem teológica adequada empregada para defender as afirmações do que cremos e, na maioria das vezes, ideias criativas sobre como integrar a doutrina em nossas experiências cotidianas, relacionamentos e comunidades. Se queremos saber por que diferentes decisões teológicas foram tomadas ao longo da história da igreja, encontramos um livro sobre história da igreja para preencher os detalhes.

O contraste é impressionante: Agostinho buscou a exegese, o comentário das Escrituras, a Palavra de Deus; nós buscamos o resumo teológico e história da igreja. Buscamos isso, em parte, porque é o que os estudiosos disponibilizam para nós. Por que isso acontece? Por que o lugar dessa doutrina passou dos comentários para as teologias sistemáticas?

INTERPRETAÇÃO MODERNA DAS ESCRITURAS

Atualmente, muitos estudiosos bíblicos associam a exegese responsável ao significado desejado pelo autor e pelo público originário de um texto. O significado emerge da atenta intenção autoral moldada, como se supõe, pelos fatores históricos e sociais imediatos do mundo do autor e determinada pelo horizonte conceitual do público. O exame minucioso das palavras do autor, com o contexto histórico adequado em vista, particularmente suas limitações, produz um significado saneado, livre de preconceitos dogmáticos e subjetividade teológica.8 A vantagem

partir dessa perspectiva, Lutero pode afirmar que "não damos atenção aos comentários" (AE 15:319; WA 54:71.26). Os comentários que ele tem em mente são aqueles que leem as Escrituras à parte da Trindade.

8 Cf. o uso de Benjamin Jowett por R. R. Reno em sua série de prefácios para o Brazos Theological Commentary on the Bible. Ephraim Radner, Leviticus, Brazos Theological Commentary on the Bible (Grand Rapids: Brazos, 2008), 10-11.

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dessa abordagem para alguns é que ela contorna as questões imediatas da historicidade da Bíblia, seus detalhes, além da fé do leitor. Dois exemplos de dois estudiosos muito diferentes mostram essa abordagem do significado da Bíblia. Elaine Wainwright, uma estudiosa crítica, discutindo sua abordagem do Novo Testamento, escreve: "O intérprete tenta se colocar ao lado dos leitores/ouvintes do primeiro século por trás do texto, por assim dizer, ou em relação ao texto para o ouvir, inicialmente, o texto em seu contexto original e não através das lentes da teologia posterior."9 Ben Witherington, um proeminente acadêmico evangélico, escreve: "O que o texto não poderia ter significado para o inspirado autor bíblico original, ele não pode possivelmente significar hoje."10 A posição de Witherington é ecoada por um livro popular sobre interpretação bíblica usado em seminários evangélicos: "A igreja primitiva tinha a tendência - continuada pelos protestantes após a Reforma - de ler conceitos teológicos do Novo Testamento em passagens do Antigo Testamento. Devemos evitar esse erro; nossa primeira tarefa é sempre entender cada texto em seus próprios termos - como seu escritor e leitores o teriam entendido."11 Wainwright enfatiza o público e Witherington o autor por causa de suas diferentes posições na historicidade da Bíblia. A Bíblia só se torna a Palavra de Deus para Wainwright em sua recepção. A questão que ela deve buscar, entretanto, é qual poderia ser esse significado, dado o contexto histórico de tal audição/leitura. Em outras palavras, o que está disponível além do texto - seja por trás dele ou em relação a ele - para construir o significado?

A visão mais elevada de Witherington sobre o que a Bíblia é como a Palavra de Deus permite que ele enfatize o autor, e não o público, na determinação do significado autêntico. Entretanto, ele vai longe demais ao limitar o significado ao que o autor humano quis dizer. Esses livros demonstram apenas duas preocupações, a do escritor e a do leitor.

9

Elaine Wainwright, "Exploring the Trinity in/and the New Testament", The Cambridge Companion to the Trinity, ed., Cambridge, p. 35. Peter Phan (Cambridge: Cambridge University Press, 2011), 35.

10 Ben Witherington, The Problem with Evangelical Theology (Waco, TX: Baylor University Press, 2005), x.

11 William W. Klein, Craig L. Blomberg e Robert L. Hubbard Jr., eds., Introduction to Biblical Interpretation (Dallas, TX: Word Publishing, 1993), 171.

167

Para os estudiosos acima, o contexto histórico ou o contexto de origem compartilhado pelo autor humano e o público original é decisivo para determinar o significado autêntico e aceito do texto. Apesar de suas ênfases e compromissos teológicos diferentes, todos os três adotam uma compreensão superficial do significado por causa de sua visão limitada pelo contexto. Ao enfatizar o autor humano, suas intenções e os limites conceituais do público, eles removem o texto de sua história sagrada, de seu lugar na vida espiritual da comunidade crente, e de sua origem dentro da liturgia. Eles marginalizam ainda mais a recepção posterior dessas Escrituras na história da igreja, a reflexão teológica sobre elas feita pelos fiéis, pelos Pais e pelos Reformadores. Esses tipos de estudiosos veem essa teologia posterior como enganosa e, em vez disso, a substituem por sua própria releitura do significado autêntico do texto - uma tradição por outra. Eles conseguem isso adotando uma visão mais restritiva do contexto do que aquela mantida pelos Pais e Reformadores, privilegiando noções modernas do eu como sujeito. Ambos os movimentos procedem de julgamentos teológicos desenvolvidos ao longo do período moderno da história.12 Há boas razões para lamentar as condições dos estudantes bíblicos na academia. Francis Watson, um notável estudioso do Novo Testamento, também se preocupa com o fato de que o estudioso bíblico médio de hoje não permita nenhum lugar para a Trindade na Bíblia. Em sua estimativa, esses estudiosos acham que "a doutrina da Trindade deve ser deixada para os historiadores da igreja e teólogos sistemáticos; ela não tem lugar no 'nosso' campo de pesquisa."13 Watson continua: Apresentar uma pesquisa, mesmo sobre um tópico tão útil como "a doutrina da Trindade e o Antigo Testamento", seria considerado um ultraje e uma provocação na maioria das reuniões de estudiosos da chamada "Bíblia Hebraica".

12

Cf. Robert Jenson, "The Trinity in the Bible", Concordia Theological Quarterly 68 (2004): 195-206.

13 Francis Watson, "Trinity and Community: A Reading of John 17", International Journal of Systematic Theology (1999): 168. Watson está criticando a atitude dos acadêmicos de sua área sobre a Trindade; ele não compartilha dessas convicções.

168

No campo de estudos do Novo Testamento, espera-se que se faça uma distinção nítida entre a definição não trinitária ou, na melhor das hipóteses, prototrinitária dos escritos do Novo Testamento e uma teologia patrística posterior, cujas tendências platonizantes supostamente levam a uma leitura sistematicamente equivocada dos textos bíblicos.14

A visão descrita por Watson prejudica a exegese dos Pais e Reformadores, questiona a perfeição e a unidade das Escrituras e divide explicitamente Deus contra si mesmo. Nossos dogmáticos luteranos observaram esse problema em sua própria época. Johann Gerhard indica aos seus leitores o Salmo 81: “Não haverá nenhum deus estranho (Vulg., 'deus atual') entre vocês; não vos prostrareis diante de um deus estranho".

Gerhard explica: "Se o mistério da Trindade fosse completamente desconhecido no Antigo Testamento, certamente um 'deus atual' seria introduzido no Novo Testamento por meio da adoração do Filho e do Espírito Santo". Da mesma forma, lemos em Isaías: "Antes de mim deus 14

Watson, "Trinity and Community", p. 168. A designação do Antigo Testamento como Bíblia Hebraica decorre de preocupações protestantes liberais com o supersessionismo. Os estudiosos judeus desconfiam, com razão, do termo. Para o estudioso liberal, a "Bíblia Hebraica" pertence aos judeus, não aos cristãos.

Joseph Webb, um desses acadêmicos liberais, argumenta ainda que qualquer leitura cristológica do Antigo Testamento é ilegítima. Amy-Jill Levine, uma estudiosa judia do Novo Testamento, argumenta, por outro lado, que "termos como Bíblia Hebraica e Escrituras Judaicas servem, em última análise, para apagar o judaísmo (já que 'judeus' não são 'hebreus' e a sinagoga não lê a 'Bíblia Hebraica', mas o Tanakh) ou para negar aos cristãos seu próprio cânone". Joseph M. Webb, "A Revolution in Christian Preaching: From the 'Old Testament' to the 'Hebrew Bible'", Quarterly Review 20 (2000): 256-57; A.-J. Levine, "JewishChristian Relations from the 'Other Side'", Quarterly Review 20 (2000): 298. Para uma discussão de ambos os ensaios, consulte Richard Hays, "Can the Gospels Teach Us How to Read the Old Testament?" Pro Ecclesia 11 (2002): 403-4. O argumento mais vigoroso contra o supersessionismo cristão pode ser encontrado nas obras de R. Kendall Soulen. Ele identifica três tipos de supersessionismo: econômico, estrutural e punitivo. O trinitarianismo clássico, conforme confessado nos Credos Ecumênicos e defendido pelos Padres e reformadores, argumenta Soulen, deve ser rejeitado. Ver R. Kendall Soulen, The God of Israel and Christian Theology (Minneapolis: Fortress Press, 1996), 25-56; Soulen, "YHWH the Triune God", Modern Theology 15:1 (1999): 25-54.

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nenhum se formou, depois de mim nenhum haverá" (Is 43.10).15 Gerhard escreve: "Se o Filho de Deus se tornou Deus no Novo Testamento . . . e se Ele começou a receber adoração divina no Novo Testamento, então certamente outro deus foi formado depois de Deus Pai."16 Se a Trindade não pode ser encontrada no Antigo Testamento, então, para Gerhard, a Escritura se contradiz e nos apresenta múltiplos deuses.

Considere o seguinte contraste. Por um lado, a maioria dos estudiosos da Bíblia de hoje evita discutir a Trindade em seus comentários porque essa "doutrina" pertence à história da igreja, não ao significado autêntico da Bíblia. Podemos realmente demonstrar, por exemplo, que Isaías e seu público histórico professavam a Trindade? Se não, então oferecer uma leitura trinitária de Isaías, iluminada pelo restante da Escritura, produz uma exegese irresponsável, guiada mais pela teologia posterior do que pelas normas aceitas para o significado em nossos dias.

Por outro lado, Agostinho pesquisou o que a igreja tinha a dizer sobre a Trindade, lendo comentários sobre o Antigo e o Novo Testamento. O que explica a diferença? Obviamente, os estudiosos modernos e os Pais leem as Escrituras de maneiras metodológicas e, portanto, teologicamente opostas. Raymond Brown, um dos mais ilustres estudiosos bíblicos do século XX, reconheceu esse fato e concluiu: "Acho que devemos reconhecer que o método exegético dos Pais é irrelevante para o estudo da Bíblia hoje."17 E com essa mudança a Trindade perde. A troca de um método por outro necessariamente afeta a doutrina. Como Gerhard observa acima, exegeses diferentes resultam em teologias diferentes. Os Pais não conseguiam ler a Bíblia sem a Trindade; os estudiosos modernos não conseguem ler a Bíblia com a Trindade.18 15

Gregório de Nissa faz uma observação muito semelhante com esse mesmo texto. Gregório de Nissa Contra Eunomium 3.3 (GNO 1:110-11).

16 Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and On the Trinity, trans. Richard Dinda (St. Louis: CPH, 2007), Exegesis III, §20, 279.

17 R. E. Brown, "The Problems with the Sensus Plenior", Ephemerides Theologica Lovanienses 43 (1967): 463.

18 Frances Young, depois de citar o tropário para a Epifania usado pelos ortodoxos orientais, que enfatiza a revelação da Trindade no batismo de Jesus, escreve: "Mas nos círculos acadêmicos ninguém imaginou, por muito tempo, que tal revelação pudesse ter estado na mente de qualquer um dos escritores 170

O verdadeiro problema, por mais estranho que pareça, tem a ver com o lugar de Deus em nosso mundo. A maioria dos acadêmicos, incluindo uma grande parte dos estudiosos bíblicos, exclui Deus completamente de sua compreensão da história. As forças econômicas, políticas e sociais, entre outras coisas, afetam a história e explicam o que acontece. Deus não o faz. Essa visão teísta da história, que é contrária às Escrituras e à convicção cristã, infecta a exegese bíblica moderna. Brian Daley, um estudioso jesuíta da patrística, discutindo as diferenças exegéticas entre os Pais e o que prevalece em nossos dias, explica: A crítica histórica moderna - incluindo a crítica de textos bíblicos - é metodologicamente ateísta, mesmo que o que ela estude seja alguma forma ou faceta de crença religiosa e mesmo que seja praticada por crentes. Somente explicações "naturais", no seu próprio mundo, de porque ou como as coisas acontecem, explicações que poderiam ser aceitáveis para crentes e para descrentes, são consideradas historicamente admissíveis. Portanto, Deus não é normalmente entendido como um ator no palco da história; a providência de Deus na história, a inspiração divina dos autores e textos das Escrituras, até mesmo os milagres narrados na Bíblia, são considerados interpretações humanas particulares de eventos, interiores e não demonstráveis, em vez de eventos ou forças históricas em si.19

Essa tendência ateísta, tanto entre os crentes quanto entre os incrédulos, torna as Escrituras um artefato histórico, moldado pelos caprichos da história e limitado em significado ao que autores e públicos específicos pretendem e conhecem. A remoção de Deus da história do Evangelho ao contar a história do batismo. A consciência moderna da diferença histórica excluiu tais leituras dogmáticas". Frances Young, "The Trinity and the New Testament" (A Trindade e o Novo Testamento), The Nature of New Testament Theology, ed., Christopher Rowland e Christopher Tuckett.

Christopher Rowland e Christopher Tuckett (Oxford: Blackwell, 2006), 286.

19 Brian Daley, "Is Patristic Exegesis Still Usable? Reflections on Early Christian Interpretation of the Psalms", Communio 29 (2002): 191.

171

também exige Sua remoção como autor das Escrituras. Ao rejeitar ou marginalizar a autoria divina das Escrituras, os estudiosos bíblicos modernos rejeitam a unidade e a perfeição das Escrituras, tanto na teoria quanto na prática.20 Uma vez que o significado autêntico depende de autores e públicos humanos, o contexto histórico de livros distintos e, ainda mais, de seções de livros, exige a atenção do exegeta responsável.

No máximo, a forma canônica da Bíblia desempenha apenas um papel secundário na interpretação. Isso significa que a Bíblia não será lida como a Bíblia, de Gênesis a Apocalipse, de autoria do Deus Triúno. Essa leitura seria historicamente irresponsável, informada pela fé, não pela razão, pela igreja, não pela academia. A Escritura não interpretará a Escritura; a história interpretará a Escritura. Portanto, a Bíblia deve ser dividida em seções literárias discretas (Mateus separado de Marcos; Primeiro Isaías de Segundo Isaías; Gênesis 1 de Gênesis 2) e o significado deve ser construído por meio da descoberta dos contextos sociais e históricos em que essas partes foram escritas, ouvidas e lidas. Quando a divisão literária não convence, os estudiosos postulam documentos históricos que não existem, não têm história e se baseiam puramente na fé racional do pesquisador.21 Tais movimentos, no entanto, não são vistos como fideístas, mas como as melhores ideias da época. Para o estudioso bíblico moderno, o significado construído de um texto torna-se não apenas o 20

Cf. Hays, "Can the Gospels Teach Us", p. 404: "Proponho que uma das razões pelas quais perdemos o controle sobre a leitura da Bíblia é que perdemos nossa compreensão dela como uma única história coerente - uma história na qual o Antigo Testamento e o Novo Testamento juntos dão testemunho complementar da ação salvadora do único Deus, uma história verdadeira na qual nos encontramos envolvidos."

21 O escândalo de Q, um texto derivado da fé de acadêmicos, é a total ausência da crucificação e ressurreição de Cristo. Sugerir que tal documento proposto poderia informar os Evangelhos mostra uma total incompreensão do evangelho, daquilo que é primeiro e mais importante (ἐν πρώτοις). As palavras de Paulo aos coríntios se opõem diretamente a esse Q acadêmico: "Quero lembrar-vos, irmãos, do evangelho que vos anunciei, o qual recebestes, no qual estais firmes e pelo qual sois salvos, se vos à palavra que vos anunciei, a não ser que tenhais crido em vão. Porque vos entreguei como primícias o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, que foi sepultado, que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras" (1 Co 15.1-4). Acreditar em Q é acreditar em vão.

172

chamado sentido literal ou histórico das Escrituras, mas também o limite e a extensão do significado aceitável.22 Qualquer coisa além disso pertence ao preconceito dogmático.

Pelas razões acima a Trindade em nossos dias se tornou uma doutrina à parte das Escrituras e foi atribuída ao teólogo sistemático e ao historiador da igreja. Surge uma infinidade de problemas. Os Pais confessaram a Trindade por causa de seu compromisso com as Escrituras.

Para eles, a doutrina se baseava na exegese e encontrava expressão em suas orações e liturgia. Quando os estudiosos bíblicos modernos rejeitam a exegese dos Pais, eles ameaçam a confissão da Trindade que procede dessa exegese. Muitos estudiosos da Bíblia reconhecem essa realidade e, por essa razão, entregam a "doutrina" aos historiadores e teólogos. O resultado hoje é uma doutrina que todos os cristãos ortodoxos reconhecem, mas não têm a menor ideia de como ela coopera na sua leitura das Escrituras ou na prática de sua fé. Nós abraçamos a tradição de uma doutrina, mas não a tradição de exegese da doutrina e, portanto, não faz sentido de como ela define a identidade cristã.

Os Pais e os Reformadores faziam uma leitura diferente. Embora cientes de que os diferentes livros da Bíblia foram escritos em uma época diferente da deles, e que essa história fornecia importantes percepções, apesar disso para eles a história era apenas um ponto de partida, nunca o limite do significado das Escrituras. Como diz Robert Wilken, o estudo histórico era propedêutico, um primeiro passo necessário, mas que o levava apenas até certo ponto.23 Decisivo para os Pais e Reformadores era a autoria divina das Escrituras. As implicações dessa autoria divina variavam desde a afirmação da unidade e da inerrância das Escrituras até a postura de humildade e oração para o leitor das Escrituras.24 Embora os métodos divergentes usados para interpretar as Escrituras se destaquem 22

Cf. Jenson, "Trinity in the Bible", p. 196: "Historicismo é a crença de que entender a história a partir de algo e entender a coisa em si são a mesma coisa."

23 Robert Louis Wilken, "Wilken's Response to Hays", Communio 25 (1998): 529.

24 Frances Young, Biblical Exegesis and the Formation of Christian Culture (Grand Rapids: Baker Academic, 2002), p. 10: "Assim, a unidade e a inerrância da Bíblia, por mais problemáticas que sejam para os estudiosos modernos, foram consideradas, para a Igreja primitiva, dogmas sem surpresas."

173

quando se olha para os exegetas modernos e pré-modernos, outra diferença significativa, e provavelmente o que explica seus métodos opostos, tem a ver com o local de seus esforços interpretativos. O acadêmico moderno trabalha na sala de aula da universidade; os Pais e os Reformadores trabalhavam na igreja e para a igreja, cercados pela pia batismal, púlpito e altar. A questão é simples: se você remover a igreja de sua exegese, uma nova gramática surgirá, uma nova teologia prevalecerá.25 Robert Wilken, respondendo às preocupações históricas do estudioso bíblico moderno, descreve a abordagem adotada pelos Pais. O mesmo poderia ser dito sobre os Reformadores luteranos. Ele escreve: A interpretação requer contexto, uma estrutura de significado criada pelos eventos, pessoas, ideias e experiências com as quais se relaciona o texto. Em que contexto a Bíblia deve ser interpretada? Os comentaristas cristãos clássicos acreditavam que o contexto era fornecido pela igreja, seus credos e decretos conciliares, sua adoração e sacramentos, pela história e experiência cristãs. Eles sabiam tão bem quanto nós que os livros da Bíblia foram escritos em uma época diferente da deles e que essa história tinha de ser compreendida e respeitada. Mas nunca foi definitiva para a interpretação. A história que era a chave para as Escrituras era a história de Cristo.26

Quando você lê e interpreta as Escrituras dentro da igreja, seus hábitos de leitura são moldados pelas liturgias, lecionários, credos, hinos e vida de oração da igreja. A pessoa e a obra de Cristo, Sua história, conforme reveladas na Lei, nos Profetas e nos Escritos, servem como chave para a exegese responsável dos Pais e Reformadores. Ninguém entendeu esse ponto melhor do que Lutero. Para ele, "toda a Escritura é somente sobre Cristo" e encontra seu "significado" em Cristo.27 Em outro texto, Lutero insiste que toda a Escritura, o Antigo e o Novo Testamento, 25

Cf. Jenson, "The Trinity in the Bible", p. 197: "A igreja tem sua própria maneira de ler as Escrituras".

26 Wilken, "Wilken's Response to Hays", p. 529-30.

27 Lectures on Romans, 1515-16 (AE 25:405; WA 57:207.22, 208.1), minha tradução; (OS 8) cf. On the Last Words of David, 1543 (AE 15:268; WA 54:29.3-6).

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tudo isso, aponta para o Filho.28 Os estudiosos hoje descartam a enérgica leitura cristológica de Lutero das Escrituras como algo não "originalmente" pretendido pelo texto.29 Isso é verdade tanto para os estudiosos liberais quanto para os evangélicos. E ainda, pergunta Lutero, se você remover Cristo das Escrituras, o que mais encontrará nelas?30 Devemos nos juntar a Lutero ao fazer essa pergunta. Qual é o "mais" alcançado pela moderna erudição bíblica - liberal ou evangélica? O "mais" sempre resulta em menos - menos Trindade, menos evangelho, menos sacramentos. O "mais" se torna uma divindade ambígua, muitas vezes do nosso próprio agrado, e uma confusão entre lei e evangelho, novamente do nosso próprio agrado.

Lutero leu as Escrituras cristologicamente e com pressupostos voltados para a vida da igreja e para a vida de culto. Ele prosseguiu com a convicção de que Deus é o autor das Escrituras e é ativo na história humana. Para Lutero, existia uma unidade entre o Antigo e o Novo Testamento porque era a Palavra de Deus, uma unidade que exigia que ele lesse o Antigo Testamento à luz de Cristo. A leitura "à luz de" era, para Lutero, uma leitura histórico-gramatical fundamentada na Encarnação e proclamada nas orações, hinos e credos da igreja. Dela procediam claras declarações do próprio Cristo, que claramente confirmou e ensinou que Moisés, os Profetas e os Salmos - todos da Escritura - falavam dEle (Lc 24.25-27, 44-47; Jo 5.39-40, 46). Além disso, de acordo com Cristo, ninguém conhece o Pai nem vem ao Pai sem o Filho (Mt 11.27; Jo 14.67; 8.19, 55). Aquele que prossegue com uma leitura cristocêntrica das Escrituras conhecerá tanto o Pai quanto o Filho, através do Espírito Santo; aquele que troca uma leitura cristocêntrica por uma teocêntrica deixa de lado Cristo e "não tem Deus" (2Jo 9). Novamente, para Lutero, a Escritura exigia essa leitura cristocêntrica.31 28

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:338; WA 54:88.10-11).

Raymond Surburg, "The Presuppositions of the Historical-Grammatical Method as Employed by Historic Lutheranism", Springfielder 38:4 (1974): 285.

30 The Bondage of the Will, 1525 (AE 33:26; WA 18:606.29): "Tolle Christum e scripturis, quid amplius in illis invenies?" (OS 4).

31 Para uma discussão útil sobre a leitura teocêntrica feita por exegetas modernos, liberais e evangélicos, consulte Charles Gieschen, "The Real Presence of the Son Before Christ: Revisiting an Old Approach to Old Testament 29

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O Antigo Testamento deu abundante testemunho de profecias sobre Cristo e para numerosas aparições de Cristo. Ele apareceu a Abraão, trazendo-lhe grande alegria (Jo 8.56-59); Isaías viu Sua glória e falou dEle (Jo 12.41); Ele esteve com Israel no deserto (1Co 10.1-10) e os conduziu para fora do Egito (Judas 5). Remover Cristo, focar no caráter teocêntrico do Antigo Testamento em oposição ao seu caráter cristocêntrico, confunde o testemunho das Escrituras e revela a si mesmo, nas palavras de Lutero, como o homem "não espiritual" ou natural descrito por Paulo (1Co 2.11-14).32 Lutero reúne os textos acima com sua habitual confiança retórica. Ele escreve: Segue-se de forma convincente e incontestável que o Deus que conduziu os filhos de Israel do Egito e através do Mar Vermelho, que os guiou no deserto por meio da nuvem e da coluna de fogo, que os alimentou com pão do céu, que realizou todos os milagres registrados por Moisés em seus livros, novamente, que os trouxe à terra de Canaã e lá lhes deu reis, sacerdotes e tudo o mais, é o mesmo Deus, e não é outro senão Jesus de Nazaré, o Filho da Virgem Maria, a quem nós, cristãos, chamamos de nosso Senhor e Deus . . .

Da mesma forma, foi Ele quem deu a Moisés os Dez Mandamentos no Monte Sinai, dizendo (Êxodo 20.2,3): "Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito. Não terás outros deuses diante de mim". Sim, Jesus de Nazaré, que morreu por nós na cruz, é o Deus que diz no Primeiro Mandamento: "Eu sou o Senhor teu Deus". Como os judeus e Maomé ficariam furiosos se ouvissem isso! No entanto, isso é verdade e permanecerá eternamente verdadeiro. E aquele que não acreditar nisso tremerá diante dessa verdade e arderá para sempre.33

Lutero lia as Escrituras dessa maneira não porque fosse préChristology", Concordia Theological Quarterly 68 (2004): 110-14.

32 On the Last Words of David, 1543 (AE 15:337; WA 54:87.3-5); veja também AE 15:277 (WA 54:37.3) e AE 15:279 (WA 54:38.8) para outros exemplos disso para Lutero.

33 On the Last Words of David, 1543 (AE 15:313-14; WA 54:67.1-16).

176

moderno, mas porque era fiel ao padrão de ensino sólido dado nas Escrituras. Sua leitura procedia de sua fé na Trindade que é Deus. Lutero escreve: "Assim, toda a Escritura, como já foi dito, é puro Cristo, o Filho de Deus e de Maria. Tudo se concentra nesse Filho, para que possamos conhecê-lo distintamente e, dessa forma, ver o Pai e o Espírito Santo eternamente como um só Deus. Para aquele que tem o Filho, a Escritura é um livro aberto; e quanto mais forte for sua fé em Cristo, mais brilhante será a luz da Escritura para ele."34 Para Lutero, toda a Escritura, o Antigo e o Novo Testamento, aponta para Cristo; de fato, a Escritura é puro Cristo, ao compreender isso compreendemos o significado da Escritura, vendo o único Deus verdadeiro, Pai, Filho e Espírito Santo. Uma confissão correta da Trindade começa com Cristo. Lutero estava bem ciente de que muitos, em sua época, não concordavam com sua interpretação das Escrituras. A eles, ele simplesmente respondeu: "Se ela [minha exegese] não agrada a mais ninguém, basta que agrade a mim."35 Essa também deve ser nossa resposta hoje àqueles que desejam rejeitar a unidade e a perfeição das Escrituras, de Gênesis a Apocalipse, em um esforço para remover Cristo do centro das Escrituras, marginalizando assim, se não rejeitando completamente, a Santíssima Trindade.

Os luteranos de hoje que fazem uma assinatura quia do Livro de Concórdia evitam muitas das armadilhas que assolam a exegese bíblica moderna. Fazemos isso porque permanecemos comprometidos com os trabalhos teológicos de Lutero e dos concordistas, confessando com eles a autoridade das Escrituras e o centro cristológico da revelação de Deus para nós. Que nos saímos melhor do que os outros não é uma oportunidade para nos vangloriarmos, mas para gratidão e diligência contínua. Até certo ponto, fomos poupados dessas armadilhas por uma feliz coincidência da história. Nossos compromissos confessionais nos ligam a uma coleção de escritos teológicos do século XVI, fielmente escritos pelos chamados exegetas pré-modernos. Compartilhar suas convicções teológicas é compartilhar seus compromissos exegéticos. Uma história posterior decidirá isso para nós, mas uma das principais bênçãos

34 35

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:339; WA 54:88.38-89.4).

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:320; WA 54:73.2-3).

177

do Livro de Concórdia para os luteranos confessionais de hoje pode provar ser sua resistência às tendências teologicamente destrutivas da modernidade.

DUAS IDEIAS ENGANOSAS

As convicções modernas discutidas acima produziram duas ideias errôneas que embasam grande parte dos estudos exegéticos e teológicos sobre a Trindade de nossos dias. A primeira ideia errônea diz respeito aos Pais e seus esforços teológicos em favor da Trindade. Hoje, muitos estudiosos acusam os Pais de helenizar a fé cristã, importando categorias metafísicas para a fé e assegurando a doutrina da Trindade com formas gregas de pensar. Essa acusação de helenização ou platonização, tão popular em nossos dias, tem menos a ver com os Pais e mais com os interesses teológicos do século XIX. A frase depreciativa "a helenização do cristianismo" realiza duas coisas ao mesmo tempo: julga a reflexão teológica cristã primitiva como uma deserção grega das Escrituras e, por essa razão, permite que uma pessoa descarte os Pais sem se envolver com seus comentários e obras teológicas.

A segunda ideia enganosa alega que o Novo Testamento mostra pouco interesse no status ontológico de Jesus e se concentra principalmente nas coisas que Ele faz. Os estudiosos do Novo Testamento fazem uma distinção entre uma cristologia ontológica - o interesse dos Pais e o produto de suas tendências helenísticas - e uma cristologia funcional - o interesse dos escritores do Novo Testamento.

Assim como a acusação de helenização, a distinção entre ontologia e função, entre quem, alguém é em termos de substância, natureza, essência, identidade, ou qualquer outra forma que possamos colocar, e que tipo de coisas essa pessoa faz, realiza duas coisas ao mesmo tempo: apresenta toda a discussão sobre a identidade ontológica de Cristo como estranha aos interesses dos escritores do Novo Testamento e, por essa razão, libera o exegeta de abordar questões relativas ao relacionamento eterno entre o Pai e o Filho ou o Filho e o Espírito. Em outras palavras, um exegeta pode se concentrar no que Cristo faz sem nunca perguntar se "o quê" Ele fez tem a ver com quem Ele é. Essa distinção não é apenas filosoficamente suspeita, mas também contrária às Escrituras. Eu me refiro 178

deliberadamente a essas ideias como enganosas. Há alguma verdade em ambas as observações, mas não da maneira suposta por muitos estudiosos atualmente.

Os Pais e a Trindade: A Primeira Ideia Enganosa

A identidade triúna de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo foi revelada pelo próprio Deus nas Escrituras, esclarecida pela exegese e pelo raciocínio piedoso dos Pais e guardada para os fiéis pelas declarações de credo e pela terminologia eclesiástica da igreja. O fundamento de nossa fé na Trindade é a revelação de Deus sobre Si mesmo; sobre esse fundamento está a exegese dos Pais que defenderam a identidade bíblica de Deus contra os falsos mestres; e, finalmente, no topo desse edifício estão os credos trinitários concisos e técnicos da igreja. Com muita frequência, aqueles que discutem a fé trinitária dos Pais reduzem suas percepções e preocupações aos credos formais produzidos durante a chamada controvérsia ariana. Esses credos eram declarações teológicas cuidadosamente elaboradas, moldadas pelas preocupações apologéticas e polêmicas dos Pais, empregando o idioma conceitual da época para marcar a identidade do Deus Triúno a quem eles adoravam e em quem somente sua salvação era encontrada. Privilegiar os credos torna a tarefa de uma pessoa mais fácil com certeza, pois ela pode evitar as longas obras exegéticas dos Pais e, em vez disso, concentrar-se no resumo. Mas isso dá a impressão errada do que os Pais estavam fazendo nesses debates, o que, por sua vez, facilita a acusação enganosa de helenização.

O credo mais conhecido pelos cristãos atualmente é o Credo Niceno. Essa declaração de fé, iniciada em Nicéia em 325 e concluída, com uma pequena revisão, em Constantinopla em 381, não foi escrita pelos Pais reunidos no concílio. Eles modificaram um credo já existente, acrescentando as frases polêmicas de que o Filho era "da ousia" do Pai e homoousios ou consubstancial ao Pai. Os grandes credos da igreja primitiva eram confissões batismais. Sua origem era a liturgia e a maioria das igrejas tinha seu próprio credo batismal. A controvérsia do século IV sobre a Trindade envolveu tanto a exegese adequada das Escrituras sobre a identidade de Deus quanto a legitimidade da liturgia e da fé batismal da igreja. Uma objeção expressada com frequência pelos teólogos nicenos 179

diz respeito ao batismo deles e à nova vida recebida no sacramento da salvação. Se os arianos estiverem certos de que Cristo é um ser exaltado, mas ainda assim criado e não Deus no mesmo sentido em que o Pai é Deus, então o que isso significa para o batismo e para a salvação? Como a salvação pode ser encontrada em uma criatura? Como a nova vida recebida no batismo pode significar alguma coisa se Deus está misturado com criaturas na fórmula batismal?36 O "o quê" e o "quem" ou a obra e a ação sempre andavam juntos para os Pais.

Apesar do resumo comum dos debates trinitários do século IV, os Pai demonstram uma notável hesitação em apelar para a autoridade de Nicéia, seu credo e sua linguagem técnica (homoousios). Os instintos dos Pais devem ser os nossos instintos. Se começarmos nossa reflexão com os credos da igreja primitiva ou com o vocabulário teológico técnico usado para garantir e esclarecer o julgamento da igreja sobre a identidade bíblica da Trindade, começaremos onde os Pais terminaram e não onde eles começaram. Essa mesma questão surgiu durante a Reforma. Lutero acusou Johann Eck e Johann Cochlaeus de adotarem essa abordagem.37 Na opinião de Lutero, os teólogos romanos estabelecem a doutrina da Trindade com base na autoridade dos Pais e do papa, e não nas Escrituras.

Essa abordagem era contrária às convicções dos luteranos e, por extensão, à prática dos Pais.

Embora os teólogos de hoje possam querer localizar a doutrina da Trindade nas declarações autorizadas dos Pais e em suas percepções teológicas, os Pais apelaram para as Escrituras em seus argumentos contra os arianos. Por exemplo, Atanásio, que se posicionou resolutamente, como diz a história, contra mundum em sua defesa da coigualdade e da coeternidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, escreveu três orações contra os arianos no início da década de 340 sem uma única menção ao 36

Veja Hilário de Poitiers De Trinitate 2.1-2; Athanasius Letters to Serapion 1.2930, 2.6-8; Gregory of Nazianzus Or. 31.4 (salvação) e 31.6 (batismo).

37 Die Promotionsdisputation von Georg Major und Johannes Faber, 1544 (WA 39/2:305.24-26). Johann Gerhard fornece várias citações de teólogos romanos declarando que a Trindade não pode ser acreditada somente a partir das Escrituras, mas requer tradição. Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis III, §19, 278.

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credo de Nicéia e apenas referências passageiras à linguagem do homoousios.

Foi somente na década de 350, vinte e cinco anos após o concílio, que Atanásio invocou a autoridade de Nicéia e sua terminologia, e isso só depois de um esforço considerável da parte dele para demonstrar a identidade bíblica da Trindade. O fundamento da confissão da igreja não era um credo de Nicéia, mas o testemunho do próprio Deus nas Escrituras. Os Pais entenderam isso e dedicaram seus esforços à exegese.

Nós também devemos seguir o exemplo deles e estabelecer a identidade eterna do Pai, do Filho e do Espírito Santo com base na revelação de Deus e não em credos e nos julgamentos teológicos da igreja contra aqueles que minam esse testemunho das Escrituras. Esses credos são indispensáveis com certeza, mas eles se baseiam na exegese, nas Escrituras, e é isso que precisamos reaprender.38 Mais será dito abaixo sobre a acusação de helenização. Neste ponto, o fato de que os Pais se concentraram na interpretação das Escrituras para estabelecer a identidade Triúna de Deus deve ser suficiente para criar sérias dúvidas sobre como muitos caracterizam seus esforços hoje.

Identidade e atividade: A segunda ideia enganosa

Muitos estudiosos do Novo Testamento fazem uma distinção entre a cristologia funcional e a cristologia ontológica. A primeira se concentra nas atividades ou funções desempenhadas por Cristo e a segunda atribui categorias metafísicas à pessoa e à natureza de Cristo. Essa última abordagem foi adotada, como é argumentado, pelos Pais. De acordo com Oscar Cullmann, os Pais estavam preocupados "quase exclusivamente" com a relação entre a natureza do Filho e do Pai ou com a relação existente entre as naturezas divina e humana de Cristo. Seu interesse na natureza divina de Cristo pertence à "helenização da fé cristã".39 Essas preocupações, argumenta Cullmann, devem ser evitadas 38

Para uma discussão mais completa de nosso compromisso com as Escrituras no estabelecimento da Trindade e como esse compromisso se relaciona com os trabalhos fiéis dos Padres, consulte Chemnitz, Loci Theologici 1:88-117; Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis III, §15-18, 274-77.

39 Oscar Cullmann, The Christology of the New Testament (Filadélfia: Westminster, 1963), p. 3. Para uma resposta correta à acusação de Adolf von Harnack sobre a helenização do cristianismo, que Cullmann ecoa aqui, veja 181

em nossa leitura do Novo Testamento.

Problemas não faltam com essa distinção. O primeiro diz respeito à caracterização da exegese patrística. Um dos principais argumentos usados pelos Pais para mostrar a coigualdade do Pai, do Filho e do Espírito Santo centrava-se na relação entre natureza e atividade. Para eles, entendemos corretamente "quem" alguém ou algo é quando compreendemos “o quê” eles fazem. A atividade revela a identidade de quem a realiza. Além disso, para os Pais, obras comuns indicam natureza comum. Esse insight está no centro do pensamento trinitário patrístico e é um insight devido às Escrituras, não à filosofia. Em termos simples, as Escrituras exigiam a correlação de atividade e identidade ou função e ontologia. Os Pais observaram como as questões de identidade surgiam rotineiramente quando Jesus fazia coisas que pertenciam somente a Deus ou, no mínimo, a algum ser maior do que um mero homem. Quando Ele perdoou os pecados da mulher com o jarro de alabastro, aqueles que testemunharam isso começaram a dizer entre si: "Quem é este, que até perdoa pecados" (Lc 7.49)? Quando Ele perdoou os pecados do paralítico, os escribas declararam em seus corações: "Ele está blasfemando! Quem pode perdoar pecados senão somente Deus?" (Mc 2.7). Quando Ele repreendeu o vento e acalmou o mar, os discípulos, cheios de medo, disseram uns aos outros: "Quem é este, que até o vento e o mar lhe obedecem" (Mc 4.41)? As ações de Jesus, Suas atividades, levantaram questões de identidade para aqueles ao Seu redor. Os Pais buscaram esse insight, a partir das Escrituras, para argumentar que se Jesus faz coisas que pertencem somente a Deus, como perdoar pecados ou exercer poder sobre a natureza, então Ele deve ser Deus. Atividade e identidade informam uma à outra.

Os Pais também viram as Escrituras alinhando atividade a Robert Louis Wilken, The Spirit of Early Christianity (New Haven, CT: Yale University Press, 2003), xvi et passim. Wilken argumenta que a melhor frase seria "a cristianização do helenismo". Da mesma forma, Robert Jenson sugere "Gospelização do helenismo". Robert Jenson, "Ipse Pater Non Est Impassibilis", em Divine Impassibility and the Mystery of Human Suffering , ed. James F. Keating e Thomas Joseph Joseph. James F. Keating e Thomas Joseph White, O.P. (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), 118 n. 1.

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identidade na entrega de Deus e de Suas dádivas a nós. Por exemplo, São Paulo termina sua segunda carta aos Coríntios recomendando "o amor de Deus" aos cristãos de Corinto (2Co 13.14). O amor que Paulo recomenda a eles, a Trindade concede e sustenta. Jesus explica: "Quem tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama. E aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele" (Jo 14.21).

O amor de Jesus com o qual Ele ama não é diferente do amor do Pai, que ama a fim de nos salvar: "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3.16). O amor com que amamos é fruto do Espírito Santo (Gl 5.22), e esse amor é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo (Rm 5.5). Esse padrão trinitário é recorrente em todas as Escrituras. O Pai dá vida a todas as coisas (1Tm 6.13), Cristo, nosso Bom Pastor, dá vida eterna (Jo 10.27-28), e essa vida vem a nós por meio do Espírito Santo (Rm 8.11). Mais uma vez, Deus é o "único sábio" (Rm 16.27), o Filho "a sabedoria de Deus" (1Co 1.24), e o Espírito Santo, o "Espírito de Sabedoria" (Dt 34.9). Novamente, Deus é santo (Lv 11.44; 1Pe 1.16), Cristo Jesus é nossa santificação, nossa santidade (1Co 1.30) e o Espírito Santo é quem nos santifica (1Co 6.11) porque Ele é o "Espírito de santidade" (Rm 1.4). Os Pais usaram as atividades compartilhadas do Pai, do Filho e do Espírito Santo para demonstrar sua coigualdade e trabalho inseparável em nosso favor. A correlação bíblica de atividade e identidade levou os Pais a formularem o relacionamento entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo nos termos de sua época - essência, substância, natureza, pessoa etc. O platonismo não exigiu isso deles. As Escrituras o exigiam.

Embora os estudiosos do Novo Testamento reconheçam as atividades acima, muitos resistem em correlacionar atividade e identidade ou atividade e natureza. Eles citam a distinção entre uma cristologia funcional e ontológica para argumentar que o Novo Testamento, em seu contexto original e de acordo com a intenção do autor humano, mostra interesse apenas no tipo de atividades ou funções realizadas por Cristo, não nas implicações ontológicas dessa ação. Essa distinção é enganosa.

Como as várias figuras do Novo Testamento entenderam, se Jesus cria todas as coisas, exerce poder sobre as forças da natureza, perdoa o pecado, 183

ressuscita os mortos por Seu próprio poder e assim por diante, Ele deve ser Deus. A confusão dos discípulos, a raiva dos escribas e as ações violentas dos fariseus evidenciam a conexão entre atividade e identidade observada pelos Pais. A questão é simples: funções nunca são meras funções, mas revelam a identidade e, sim, o próprio ser, a essência ou a natureza daquele que realiza a atividade.40 Para muitos estudiosos do Novo Testamento, o Evangelho de João e seu famoso prólogo não estão preocupados com especulações metafísicas sobre o relacionamento eterno entre o Palavra e Deus ou mesmo sobre "como" o Palavra era no princípio. Francis Watson explica: "Mesmo no caso do Evangelho de João, uma leitura não encarnacional e não trinitária desse texto está disponível para os estudiosos do Novo Testamento pelo menos desde Schleiermacher. De acordo com essa leitura, o conceito joanino do 'envio' de Jesus pelo Pai implica um entendimento puramente 'funcional', e não 'ontológico', de sua filiação."41 Qual é, então, o objetivo do prólogo de João? De acordo com Raymond Brown, o que é importante transmitir é o que a Palavra faz.42 A Palavra cria e redime. Aqui chegamos ao problema da distinção entre função e ontologia. O que a Palavra faz pode ser discutido à parte de quem a Palavra é. No entanto, o argumento de João no prólogo é exatamente o oposto: o que a Palavra faz (criação e redenção) está fundamentado na afirmação ontológica feita sobre Ele (a Palavra estava com Deus e era Deus). A Palavra não é uma modalidade de ação divina. As funções nunca são meras funções. As Escrituras declaram repetidamente que a atividade de criar e redimir pertence à identidade única de Deus. Somente Ele cria e somente Ele salva. Ambas as atividades ou funções são atribuídas à Palavra porque a Palavra é essencialmente Deus, ou seja, o que quer que signifique ser Deus, isso a Palavra é. Em vez de começar com o que Palavra faz para mostrar quem Ele é, João inicia o prólogo com uma afirmação ontológica sobre o Palavra e depois prossegue com o que o Palavra faz. É a confissão de João sobre a coeternidade e a coigualdade da Palavra com Deus Pai que dá 40

Cf. Richard Bauckham, "The Divinity of Jesus in the Letter to the Hebrews", em Jesus and the God of Israel (Grand Rapids: Eerdmans, 2008), 235.

41 Watson, "Trinity and Community", 168.

42 Raymond Brown, The Gospel According to John I-XII, The Anchor Bible (Nova York: Doubleday, 1966), 24.

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sentido à obra do Palavra como criador e redentor. De fato, uma vez que o propósito do prólogo de João é enfatizar que a salvação chegou até nós e é encontrada na Palavra, Jesus Cristo, que se fez carne e habitou entre nós, é de grande importância que ele comece com a identidade e a principal atividade que mostra essa identidade (criação) antes de passar para o propósito do prólogo e restante do Evangelho (redenção em Cristo). Em termos simples, as condições ontológicas estão ligadas a essas funções divinas específicas das Escrituras.43 Se Jesus cria e se Jesus redime, Jesus é Deus. É assim que a Bíblia molda nosso discurso.

CONCLUSÃO

Os próximos capítulos examinam a identidade bíblica de Deus. A questão perseguida é direta: como Deus apresenta Sua própria identidade eterna para nós nas Escrituras? Prosseguimos com a convicção de que Deus é o autor das Escrituras e o melhor intérprete de Sua própria Palavra. A visão interpretativa praticada pelos Pais e Reformadores, e aquela que nos guiará, é que a Escritura interpreta a Escritura. Ao abordar as Escrituras dessa forma, aprenderemos com a Palavra de Deus como Ele se revela a nós como Pai, Filho e Espírito Santo. Fazemos isso levando a sério a revelação que nos foi dada no Antigo Testamento e observando como o Novo Testamento esclarece e determina essa revelação para nós.

Além de mostrar a identidade bíblica da Trindade, os próximos capítulos também têm o objetivo de ajudar o leitor a ensinar e pregar a Trindade. Com isso em mente, apresento o material das Escrituras examinando tanto as apresentações narrativas comuns da Trindade quanto as que são frequentemente consideradas como apresentações dogmáticas mais precisas. A distinção é minha; as Escrituras colocam os dois tipos de material lado a lado. Meu objetivo ao usar essa distinção é mostrar como a Trindade pode ser pregada de forma proveitosa ao se prestar atenção aos dois tipos de material. Com esse objetivo, incorporei muitas leituras do lecionário para ajudar tanto pastores quanto leigos.

43

Bauckham, "The Divinity of Jesus", p. 235, e "God Crucified", p. 30, em Jesus and the God of Israel.

CONTEÚDO

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7 A TRINDADE E O ANTIGO TESTAMENTO: YHWH, NOSSO ELOHIM

Dado o estado da interpretação bíblica em nossos dias, o encanto da teologia natural e as várias opiniões culturais sobre quem Deus apropriadamente deveria ser, é justo perguntar como uma pessoa pode demostrar a identidade de nosso Deus Triúno a partir das Escrituras.

Desde o princípio, devemos evitar instintos inúteis e falsas suposições.

Não podemos reduzir a Trindade a algumas passagens bíblicas ou versículos isolados das Escrituras. Tampouco devemos começar com textos que exibem um caráter triplo de referência (por exemplo, Gn 18.115; Is 6.3; Rm 11.36) ou textos que empregam verbos plurais com um único referente (por exemplo, Gn 1.26). Embora significativo do outro lado da tarefa exegética, a pesquisa exegética necessária para processar essas expressões difíceis reveladoras e instrutivas para descrevermos a identidade Triúna de Deus, e embora esses textos iluminem e adornem perfeitamente nossa confissão da Trindade, eles não estabelecem nosso entendimento bíblico de Pai, Filho e Espírito Santo.1 Também, em primeiro lugar, não podemos nos preocupar com expressões de credo ou fórmulas litúrgicas (1Co 8.6; 2Co 13.14; Mt 28.19). Essas breves declarações, profundamente significativas para qualquer discussão bíblica sobre a Trindade, pertencem mais apropriadamente ao final da discussão.

Elas se assemelham, em seu propósito, aos credos da igreja primitiva; são 1

Lectures on Genesis, 1535-45 (AE 3:190-91; WA 43:11.18-12.11); Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and On the Trinity, trans. Richard Dinda (St. Louis: CPH, 2007), Exegesis III, §29, 287. Os Pais fizeram grande uso de textos como esses e ofereceram alegorias intrigantes que adornavam e ensinavam ainda mais sua fé trinitária. O comentário de Lutero sobre essas alegorias exala generosidade. Gerhard, por outro lado, acha-as divertidas e tem grande prazer em contar alguns dos exemplos mais extravagantes dos Pais.

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resumos conclusivos, elementos litúrgicos que se apoiam na revelação mais completa do Pai, do Filho e do Espírito Santo nas Escrituras.

Em um nível muito básico, precisamos reconhecer que a autorrevelação de Deus é trinitária porque YHWH, nosso Elohim, é Triúno, eternamente distinto como Pai, Filho e Espírito Santo e, ainda assim, inseparável e indivisivelmente um só Deus. Não há justificativa bíblica para ler o Antigo Testamento como se o Filho e o Espírito não estivessem lá. Da mesma forma, não podemos ler o Novo Testamento como se algo radical tivesse acontecido com o monoteísmo bíblico. A identidade plural do Deus único e verdadeiro como Pai, Filho e Espírito Santo não é uma corrupção pagã e gentílica do monoteísmo bíblico nem o resultado de anos de desenvolvimento longe dos compromissos judaicos primitivos com o monoteísmo.2 Os apóstolos eram judeus devotos que abraçavam um monoteísmo rigoroso que incluía Jesus e o Espírito Santo na identidade única do único Deus de Israel. O Novo Testamento consistentemente nos aponta para a Lei e os Profetas, para o Antigo Testamento, para entender corretamente a identidade de Cristo como o Filho de Deus, o enviado pelo Pai, que por Sua vez, com o Pai, envia o Espírito Santo conforme prometido pelos profetas. A convicção dos apóstolos é que a identidade Triúna de Deus é conhecida de acordo com as Escrituras, o Antigo Testamento.

A abordagem adotada nos próximos capítulos segue os instintos dos próprios escritores do Novo Testamento. Eles confessaram a identidade Triúna de Deus com base em sua aceitação e interpretação do Antigo Testamento. Os Pais e os reformadores luteranos compartilhavam esse instinto. A exegese dos Pais se concentra longamente no Antigo Testamento. Johann Gerhard insiste: "O mistério da Trindade pode e deve ser confirmado não apenas pelo Novo Testamento, mas também 2

Para uma pesquisa das várias questões envolvidas com o monoteísmo judaico e os principais trabalhos acadêmicos sobre esse tópico, consulte Richard Bauckham, "Biblical Theology and the Problems of Monotheism", em Jesus and the God of Israel (Grand Rapids: Eerdmans, 2008), 60-106; Nathan MacDonald, Deuteronomy and the Meaning of 'Monotheism' (Tübingen: Mohr Siebeck, 2003). MacDonald mostra a difusão de uma compreensão iluminista do monoteísmo nos estudos bíblicos.

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pelo Antigo."3 Brevard Childs, comentando sobre os trabalhos da igreja primitiva, escreve: "A luta da igreja com a Trindade não foi uma batalha contra o Antigo Testamento, mas sim uma batalha pelo Antigo Testamento."4 O testemunho dos apóstolos procede de seu compromisso com o Antigo Testamento como a única testemunha autorizada da obra e da identidade de Deus. Eles acreditavam, sem hesitar, que suas Escrituras, as Escrituras de Israel, descreviam Deus como Ele é e que não havia outra fonte disponível para tratar apropriadamente sobre Deus.5 Por essa razão, escreve Christopher Seitz: "YHWH, o Santo de Israel, é o Pai o Filho e o Espírito Santo, não porque isso fosse necessário para uma declaração adequada de Jesus Cristo como Deus ou do Espírito como Deus, mas porque isso era guardar o que o sentido literal do Antigo Testamento exigia quando suas passagens eram devidamente compreendidas, à luz de Cristo, conforme transmitidas pelo Espírito Santo."6 Não há adversário para a autorrevelação de Deus, a autoapresentação de Sua identidade divina. Se quisermos conhecer, confessar e adorar o YHWH Triúno, nosso Elohim, precisamos de Deus e de Sua revelação de quem Ele é. Não importa quão surpreendente e peculiar essa identidade revelada possa ser, não importa o quanto ela possa ofender nossos compromissos filosóficos, lealdades culturais ou expectativas morais (1Co 1.18-2.16), fé recebe esse testemunho do único Deus verdadeiro.

Ao permitir que Deus revele Sua identidade Triúna em Seus próprios termos, concluiremos duas coisas importantes. Primeiro, entraremos na narrativa histórica que Deus nos apresenta por meio dos patriarcas e profetas. Em segundo lugar, chegaremos a uma descrição do monoteísmo bíblico e de suas características essenciais com base apenas em uma leitura do Antigo Testamento. O que quer que constitua o 3

Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis III, §20, 279. Para a extensa demonstração de Gerhard sobre esse ponto, consulte De Tribus Elohim, Locus 4/1, §3 (ed. Cotta, 185-223).

4 Brevard Childs, Biblical Theology of the Old and New Testaments: Theological Reflection on the Christian Bible (Minneapolis: Fortress Press, 1992), 376.

5 Christopher Seitz, "The Trinity in the Old Testament", The Oxford Handbook of the Trinity (Oxford: Oxford University Press, 2011), 31.

6 Seitz, "Trinity in the Old Testament", 38.

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monoteísmo bíblico deve ser decorrente do testemunho da própria Escritura e não das suposições persistentes do que achamos que ele deve significar. O termo deve servir apenas como um espaço reservado para marcar a identidade única de Deus de acordo com as Escrituras. Christopher Seitz explica: A pressão para explicar a vida eterna como "trinitária" surge devido ao caráter das declarações feitas sobre Deus nas escrituras de Israel, às quais frequentemente se atribui o termo "monoteísta". O problema aqui é que o termo "monoteísmo", quando usado em referência ao Antigo Testamento, não é nada além de um espaço reservado que serve para excluir algumas alternativas óbvias (Israel não adorava vários deuses em um panteão), mas em si mesmo é impreciso. Em questão está o tipo de monoteísmo disso para marcar a vida de Deus com seu povo Israel.7 Quando voltamos para o Novo Testamento, observamos um esforço deliberado por parte dos apóstolos para situar Jesus e o Espírito Santo nesta descrição do Antigo Testamento da identidade única de Deus, do monoteísmo de Israel. A cristologia do Novo Testamento não acomoda lentamente Jesus em um novo entendimento do monoteísmo mais do que sua pneumatologia que não incorpora apropriadamente o Espírito Santo. Larry Hurtado e Richard Bauckham demonstraram, cada um a seu modo, como o Novo Testamento apresenta o Filho e o Espírito Santo como intrínsecos à identidade de Deus desde o início.8 Essas pessoas divinas pertencem eternamente àquilo que marca a identidade de Deus - e isso de acordo com as Escrituras.

DESCRIÇÃO NARRATIVA DE DEUS

Os judeus piedosos recitavam o Shema duas vezes por dia, de manhã e à noite: "Ouve, ó Israel: O Senhor [YHWH/κύριος] nosso Deus, o Senhor [YHWH/κύριος] é um só" (Dt 6.4). Esse Deus da oração da 7

Seitz, "Trinity in the Old Testament", 30.

Larry Hurtado, One God, One Lord: Early Christian Devotion and Ancient Jewish Monotheism, 2d ed. (Edimburgo: T&T Clark, 1998); Bauckham, Jesus and the God of Israel.

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manhã e da noite tinha um nome e um relacionamento com Seu povo. O Deus cujo nome é YHWH (κύριος na LXX) é o Deus de Abraão, Isaque e Jacó (Êx 3). Ele é o Deus que libertou Seu povo do Egito; Ele é o único Deus: "Eu sou o Senhor [YHWH/κύριος], teu Deus [Elohim/θεός], que te tirei da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim" (Êx 20.2-3). A singularidade absoluta de Deus, Sua unicidade, envolvia tanto a confissão quanto a adoração: "Não adorarás nenhum outro deus, pois o Senhor, cujo nome é Zeloso, é um Deus zeloso" (Êx 34.14; 20.5; cf. Dt 6.13-15). Confessar o único Deus verdadeiro significava adorar o único Deus verdadeiro. Adorar qualquer coisa ou pessoa que não seja o Senhor [YHWH/ κύριος] significava idolatria. O Primeiro Mandamento do Decálogo enfatiza a necessidade e a importância desses dois pontos (Êx 20.2-5; Dt 5.6-9). Os profetas dão continuidade a essa ênfase: "Eu sou o Senhor [YHWH]; este é o meu nome; a minha glória não dou a nenhum outro, nem o meu louvor aos ídolos esculpidos" (Is 42.8).

O único Senhor Deus encontrado no Antigo Testamento tem uma identidade distinta e reconhecível. Nós O conhecemos pelas coisas que Ele faz, pelos relacionamentos que Ele estabelece e pelas promessas que Ele faz. O versículo inicial da Bíblia declara: "No princípio criou Deus os céus e a terra" (Gn 1.1). Ele é o Deus que criou todas as coisas (Is 40.26, 28; Salmo 104) e governa todas as coisas (Dn 4.34-35; Salmo 105).

Ele é o Deus que libertou Israel da escravidão no Egito e o tornou Seu povo. Moisés deve declarar ao Faraó: "Assim diz o Senhor, 'Deixa o meu povo ir'" (Êx 5.1). Moisés deve dizer ao povo que o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o Deus que estabeleceu uma aliança com seus pais, o Deus Todo-Poderoso, os libertará do Egito. Ele deve dizer a eles: "Eu os tomarei como meu povo e serei o seu Deus, e vocês saberão que eu sou YHWH, o seu Elohim, que os tirou de debaixo das cargas dos egípcios" (Êx 6.7). É no Sinai que Deus revela Suas características mais marcantes a Moisés, características que se repetem em todo o Antigo Testamento. O Deus que cria e governa Sua criação, o Deus que elege um povo para Si mesmo e põe Seu amor sobre ele, o Deus que protege e liberta, o Deus que multiplica e abençoa tanto o fruto do ventre como o fruto do campo, este Deus e nenhum outro deve ser adorado e glorificado, este Senhor 191

Deus de Israel é “misericordioso, lento em irar-se e grande em amor e fidelidade” (Êx 34.6; cf. Nm 14.18; Ne 9.17; Sl 103.8, Jl 2.13; Jo 4.2). A graça e a misericórdia de Deus estabelecem o contexto no qual Ele é conhecido, confessado e adorado por Seu povo.

Os murmúrios começaram assim que o povo saiu do Sinai. Eles não se lembraram da libertação de Deus do Egito, mas sim dos peixes que não custavam nada, dos pepinos, dos melões, dos alhos-porós, das cebolas e dos alhos (Nm 11.4-5). Israel buscou sua satisfação em outro lugar que não Deus: "Eu sou o Senhor, o seu Deus, que o tirou da terra do Egito. Abra bem a sua boca, e eu a encherei" (Sl 81.10). Deus prometeu multiplicar Seu povo e protegê-lo contra seus inimigos, por mais numerosos e poderosos que fossem (Dt 7.1). O povo deveria ser uma bênção para as nações idólatras e que se desviaram do caminho do Senhor; em vez disso, eles desejavam ser como as outras nações. Eles não deveriam se casar entre si, mas o fizeram (Dt 7.3; Jó 23.12-13). Eles não deveriam buscar deuses estranhos e estrangeiros, mas o fizeram. YHWH nunca era suficiente; o povo também queria os Baals e Astarotes (Js 2.13).

As nações tinham reis; o povo tinha apenas um Rei no céu (1Sm 8.5-9).

O povo queria ser como as nações; queria crescer como elas e tornar-se poderoso como elas. Eles abandonaram Deus, pecaram contra Ele e seguiram as melhores ideias daqueles dias, os caminhos das nações: "Não creram em Deus e não confiaram em seu poder salvador" (Sl 78.22).

Quando Israel se rebelou, eles "entristeceram o seu Espírito Santo" (Is 63.10).

O Deus que criou todas as coisas e governa todas as coisas é o Deus que redime e recria. O Deus que libertou Israel dos egípcios, que os guiou pelo deserto, que falou a verdade a Moisés é também o mesmo Deus que é o único que traz a salvação. O Antigo Testamento dá testemunho de quem Deus é, não em termos do Sinai e da Lei, mas principalmente em termos de Seu amor e misericórdia. YHWH, nosso Elohim, é conhecido principalmente não por Seu poder contra as nações e contra o Faraó, mas por Sua salvação e redenção das nações por meio de um povo que Ele elegeu, um povo que Ele protegeu e cuidou, um povo que escolheu deuses estranhos em vez dEle e o caminho das nações em 192

vez do Seu caminho, a verdade delas em vez da Sua verdade. O remanescente fiel que vive em meio a um povo infiel e impuro testemunha essa verdade por meio de seu clamor de fé: "Restaura-nos, ó Deus da nossa salvação, e retira a tua indignação para conosco" (Sl 85.4); "Não me rejeites, não me desampares, ó Deus da minha salvação" (Sl 27.9); "Venha a mim o teu amor inabalável, ó YHWH, a tua salvação segundo a tua promessa" (Sl 119.41); "Quero trazer à memória o que pode me dar esperança: o amor constante de YHWH nunca cessa; as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã; grande é a sua fidelidade” (Lm 3.21-23).

Nosso Elohim YHWH é a verdade e Seu caminho é vida. Os Salmos não cansam de confessar isso: "Faze-me conhecer os teus caminhos, Senhor; ensina-me as tuas veredas. Guia-me na tua verdade e ensina-me, pois tu és o Deus da minha salvação; por ti espero o dia todo" (Sl 25.4-5). Mais uma vez, "Ensina-me, Senhor, o teu caminho, para que eu ande na tua verdade" (Sl 86.11). Andar na verdade de Deus é refugiarse, encontrar libertação em Sua justiça (Sl 31.1), pois somente Ele é o caminho, a verdade e a vida, e essa vida é a "luz eterna" dos homens (Is 60.19). A oração de Davi (Salmo 51) e a oração de Daniel (Daniel 9) buscam a salvação, o perdão dos pecados, por Deus, porque pecamos contra Ele e por Ele somos libertados desse pecado (Is 43.25). Somente a Deus pertence a justiça, a nós a vergonha (Dn 9.7); somente a Deus "misericórdia e perdão", a nós a transgressão e "a maldição" escrita na Lei de Moisés (Dn 9.9-11). Aquele que é perdoado, cujo pecado não é contado, é abençoado (Sl 32.1) e se regozija no Senhor, gritando de alegria e levando o nome de "justo" (Sl 32.11; 33.1). A justiça aqui é uma justiça emprestada. Assim como confessamos que "na tua luz veremos a luz" (Sl 36.9) e que YHWH será a nossa "luz eterna" (Is 60.19), uma luz que não é nossa por natureza, mas pela fé, uma luz emprestada, para que assim também levamos o nome "justo" não por natureza, mas pela fé: "Somente em YHWH se dirá de mim que há justiça e força" (Is 45.24), pois "YHWH é a nossa justiça" (Jr 23.6). Os fiéis confessam seus pecados a YHWH porque somente de YHWH vem o perdão: "Confessei-te o meu pecado, e não encobri a minha iniquidade; eu disse: 'Confessarei a YHWH as minhas transgressões', e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado" (Sl 32.5). Novamente lemos: "Das profundezas clamo a ti, ó YHWH! Senhor, 193

ouve a minha voz! Que teus ouvidos estejam atentos à voz de minhas súplicas por misericórdia! Se tu, ó YHWH, marcasses as iniquidades, ó Senhor, quem poderia permanecer? Mas contigo há perdão, para que sejas temido" (Sl 130,1-4). Os fiéis de todas as gerações têm clamado a Deus das profundezas do sofrimento, confessando e cantando: "Somente o Teu amor e a Tua graça podem apagar a minha transgressão". Nossa esperança não está em nós mesmos e em nosso mérito (Jó 15.14; Is 64.6), mas no Senhor, em Sua fiel Palavra e Promessa: "Converte-nos a ti, SENHOR, e seremos convertidos" (Lm 5.21 KJV). A estrofe final do conhecido hino de Lutero capta a confissão do Salmo 130, as súplicas de Davi e Daniel, e aquele fiel remanescente de Israel.

Embora sejam grandes os nossos pecados e dolorosos os nossos sofrimentos, Sua graça é muito mais abundante; Seu amor que nos ajuda não conhece limites, e nossa maior necessidade é atendida.

Nosso Pastor, bom e verdadeiro, é Aquele que finalmente libertará Seu Israel De todos os seus pecados e tristezas. (TLH 329:5)

Como YHWH realizará essa salvação? Como Ele nos concederá o perdão de nossos pecados? A questão levantada e então respondida ao longo dos profetas é como essa salvação acontecerá e quando ela ocorrerá.

Daniel confessa seus pecados e os pecados do povo a Deus, buscando perdão não por causa de qualquer presunção de justiça da parte deles, mas somente por causa da grande misericórdia de Deus (Dn 9.18).

Ao fazer essa confissão, o anjo Gabriel aparece a Daniel e lhe revela quando Deus realizará Sua salvação. Chegará um tempo ("setenta semanas estão determinadas") em que a transgressão será concluída, o pecado terminará, a iniquidade será expiada e a justiça eterna será introduzida (Dn 9.24). Essas setenta semanas correspondem ao tempo em que "o Deus do céu estabelecerá um reino que nunca será destruído, nem o reino será deixado a outro povo" (Dn 2.44). Esse reino que permanecerá para sempre será inaugurado pela "pedra" cortada de uma montanha "sem mão humana" (Dn 2.45). Essa pedra é mais tarde identificada como o Filho do Homem que é apresentado diante do Ancião de Dias: "E foi-lhe 194

dado o domínio, e a glória, e o reino, para que todos os povos, nações e línguas servissem; o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino, um reino que não será destruído" (Dn 7.14). Esse Filho do Homem é o Messias (KJV), o Cristo (LXX), que será cortado, ou seja, sofrerá a morte (Dn 9.26). Este é o Filho prometido a Davi, a quem YHWH suscitará, cujo reino será estabelecido e cujo trono será para sempre (1Cr 17.11-12). De fato, declara YHWH, "Eu serei seu pai, e ele meu filho" (2Sm 7.14; 1Cr 17.13 KJV).

Tudo isso acontecerá "nos últimos dias" (Is 2.2; Mq 4.1; Os 3.5; cf. Atos 2). Conforme observado acima, o perdão vem somente de YHWH. Sua "salvação será para sempre" e Sua "justiça será para sempre" (Is 51.6,8). De acordo com o profeta Daniel, essa salvação, perdão e justiça eterna serão realizados pelo Messias, o Filho do Homem, cujo domínio é eterno, cujo reino não será destruído e cujo trono será para sempre. O Antigo Testamento afirma enfaticamente que a salvação e a justiça pertencem somente a YHWH e a alguém em especial, mas inseparável de YHWH, como um pai é especial e inseparável de seu filho.

Por essa razão, YHWH diz não apenas que "minha salvação" e "minha justiça" são eternas, mas que "minha salvação saiu" e "minha justiça se aproxima" (Is 51.5-8). Aquele que saiu, aquele que se aproxima, é o Filho do Homem, o Messias, o Cristo.

A profecia do Cristo dada a Daniel é encontrada em todos os profetas. Para Isaías, a pedra cortada da montanha sem mão humana é o Filho nascido da virgem e chamado Emanuel, Deus conosco (Is 7.14). O momento em que a salvação será realizada e a justiça eterna será introduzida é o dia em que o Senhor levantará um rebento do tronco de Jessé, um Renovo, sobre o qual repousará o Espírito de YHWH (Is 11.12; cf. 61.1). Da mesma forma, em Jeremias, lemos que YHWH levantará para Davi "um Renovo justo" que reinará como Rei e executará justiça e retidão na terra (Jr 23.5). De fato, esse Messias, esse Cristo (Sl 2.2 LXX), declara YHWH, será "meu Rei" (Sl 2.6) e "meu Filho" (Sl 2.7). Essa descendência prometida, esse Ramo, esse Filho, é a prometida "semente" da mulher (Gn 3.15), a "semente" de Abraão (Gn 22.18), a "semente" de Davi (1Cr 17.11), cujo Nome é "YHWH nossa Justiça" (Jr 23.5). Oramos 195

com Davi: "Ouve, ó YHWH, a minha oração, dá ouvidos às minhas súplicas; responde-me na tua fidelidade e na tua justiça. E não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista nenhum vivente será justificado" (Sl 143.2 KJV). E nos regozijamos com Jeremias: "YHWH é a nossa justiça!"9 Zacarias também nos diz que esse Renovo é o Servo de Deus que trará a redenção do mundo (Zc 3.8), que tanto Rei quanto Sacerdote (Zc 6.13; Salmo 110) e que construirá o templo do Senhor (Zc 6.12).

Esse Renovo Justo, esse Servo, esse Filho, esse Cristo, não apenas construirá o templo, mas será Ele mesmo o templo/tabernáculo que habita no meio de Seu povo. O Senhor declara por meio de Zacarias: "Canta e regozija-te, ó filha de Sião, porque eis que venho, e habitarei no meio de ti (κατασκηνώσω ἐν μέσῳ), e saberás que YHWH Sabaoth me enviou a ti". (Zc 2.10-11). A vinda do tabernáculo para estar no meio do povo sinaliza a "aliança de paz" e a "aliança eterna" entre Deus e Seu povo (Ez 37.26). Deus declara por meio de Ezequiel: "O meu tabernáculo com eles; de fato, eu serei o seu Elohim, e eles serão o meu povo. Então as nações saberão que eu, YHWH, santifico Israel, quando o meu santuário estiver no meio deles para sempre" (Ez 37.27-28 KJA).

Esse Renovo Justo, esse Servo, esse Salvador e Redentor, que habitará com o povo de Deus para sempre, cujo reino e trono serão estabelecidos para sempre, virá nos últimos dias. Quando Ele vier, trará conforto e perdoará a iniquidade (Is 40.1-2). O seu caminho será preparado por um mensageiro que clama no deserto: “Preparai o caminho de YHWH; endireitai no deserto uma estrada para o nosso Elohim” (Is 40.3). Quando esse dia chegar, “a Glória de YHWH será revelada, e toda a carne a verá, porque a boca de YHWH falou” (Is 40.5). A Glória de YHWH revelar-se-á, todos a verão, porque “o Senhor que procurais virá de repente ao seu templo” (Ml 3.1). O “dia de YHWH” (Ml 4.1; Is 13.6,9; Jr 46.10; Jl 1.15; 2.1; 2.11; Ob 15) é um dia de julgamento, um dia de separação, porque aquele que virá é “como o fogo do refinador e o sabão dos lavandeiros” (Ml 3.2). Quando esse dia chegar, “vereis a diferença entre o justo e o ímpio, entre o que serve a Deus e o que não o serve” (Ml 9

Para uma reflexão útil sobre esse nome divino, veja Theodore Laetsch, Jeremiah (St. Louis: CPH, 1952), 189-90.

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3.18). Os filhos de Sião, os fiéis, não temerão este dia, mas alegrar-se-ão e exultarão, porque YHWH, nosso Elohim, enviará “o Mestre da Justiça” (Jl 2.23), que é a nossa abundância e o nosso tesouro (Jl 2.24-26). 10 Depois disso, o Espírito será derramado (Jl 2.28; Ez 39.29) e “todo aquele que invocar o nome de YHWH será salvo” (Jl 2.32).

Os profetas esclarecem ainda mais a identidade desse Renovo Justo e o papel do Espírito na obra de salvação de YHWH. O Renovo Justo é aquele que nasceu da virgem, chamado Emanuel (Is 7.9), sobre quem repousará o Espírito do Senhor (Is 11.2; 42.1; 61.1; cf. Lc 4.18). Ele, que é a Justiça (Jr 23.6), julgará com justiça (Is 11. 4), imputando aos outros a justiça (Is 53.11) e introduzindo a paz (Is 11.5-9). Naquele dia, os fiéis declararão: "Eis que Deus é a minha salvação; confiarei e não temerei, porque o Senhor Deus é a minha força e o meu cântico, e ele se tornou a minha salvação" (Is 12.2). Esses temas do Servo e de somente YHWH como salvador se entrelaçam à medida que lemos mais profundamente na profecia de Isaías. Aquele sobre quem o Espírito de YHWH repousará, o mesmo Espírito que será derramado após o trabalho do Servo, será "meu Servo" e trará justiça às nações (Is 42.1; 62.1). Aquele que criou é aquele que irá redimir: Mas agora, assim diz o Senhor, que o criou, ó Jacó, e que o formou, ó Israel: “Não tenha medo, porque eu o remi; eu o chamei pelo seu nome; você é meu. Quando você passar pelas águas, eu estarei com você; quando passar pelos rios, eles não o submergirão; quando passar pelo fogo, você não se queimará; as chamas não o atingirão. Porque eu sou o Senhor, seu Deus, o Santo de Israel, o seu Salvador; dei o Egito em resgate por você, e a Etiópia e Sebá para que você fosse meu. Visto que você é precioso aos meus olhos e digno de honra, e porque eu o amo, darei homens por você e povos em troca de sua vida. Não tenha medo, porque eu estarei com você.” “Trarei a sua descendência desde o Oriente e a ajuntarei desde o Ocidente. Direi ao Norte: ‘Entregue!’ E ao Sul: ‘Não os impeça de sair!’ Tragam os meus filhos de longe e as minhas filhas dos confins da terra, todos os que são chamados pelo meu nome, e os que criei para minha glória, sim, aqueles que formei e fiz.” “Traga o povo que é cego, ainda 10

Para uma discussão sobre "Teacher of Righteousness", consulte Theodore Laetsch, The Minor Prophets (St. Louis: CPH, 1956), 125-126.

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que tenha olhos, e que é surdo, ainda que tenha ouvidos. Todas as nações se congreguem, e os povos se reúnam. Quem dentre eles pode anunciar isto e mostrar-nos as predições antigas?

Que apresentem as suas testemunhas, para que se justifiquem, e para que se ouça e se diga: ‘É verdade!’” “Vocês são as minhas testemunhas”, diz o Senhor. “Vocês são o meu servo a quem escolhi, para que vocês saibam, creiam em mim e entendam que eu sou, e que antes de mim deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá. Eu, eu sou o Senhor, e fora de mim não há salvador. Eu anunciei salvação, eu a realizei e a fiz ouvir; deus estranho não houve entre vocês, pois vocês são as minhas testemunhas”, diz o Senhor. “Eu sou Deus. Ainda antes que houvesse dia, eu sou; e não há quem possa livrar alguém das minhas mãos; agindo eu, quem o impedirá?” Assim diz o Senhor, o seu Redentor, o Santo de Israel. (Is 43.1-14)

O refrão continua em Isaías, dizendo que esse YHWH que salva, esse Santo, é diferente de qualquer outro. Somente Ele criou Seu povo e o redimirá. Somente Ele declara o que está por vir e o que acontecerá. Ele é o primeiro e o último. Ele é a Rocha.

Assim diz o Senhor, o Rei e Redentor de Israel, o Senhor dos Exércitos: “Eu sou o primeiro e eu sou o último, e além de mim não há Deus. Quem, assim como eu, fez predições desde que estabeleci o mais antigo povo? Que o declare e o exponha diante de mim! Que esse anuncie as coisas futuras, as coisas que hão de vir! Não fiquem apavorados, nem tenham medo.

Por acaso não revelei e anunciei isso a vocês muito tempo atrás? Vocês são as minhas testemunhas. Será que há outro Deus além de mim? Não, não há outra Rocha que eu conheça.”

(Is 44.6-8).

Para que o ponto não seja esquecido, YHWH declara novamente: "Porque assim diz YHWH, que criou os céus (ele é Elohim!), que formou a terra e a fez (ele a estabeleceu; ele não a criou vazia, ele a formou para ser habitada!): Eu sou YHWH, e não há outro" (Is 45.18). O Senhor que salva é o Senhor que criou os céus e a terra. Somente Ele é o Deus que fala "a verdade" e declara o que é certo (Is 45.19). Novamente, YHWH declara: "Não há outro deus além de mim, um Deus justo e um Salvador; não há ninguém além de mim ... Somente em YHWH, dir-se-á de mim, que sou justiça e força; a ele virão e se envergonharão todos os que se 198

enfureceram contra ele. Em YHWH, toda a descendência de Israel será justificada e se gloriará" (Is 45.21-25).

Nesse ponto, Isaías retorna ao Servo sobre o qual o Espírito repousará. Esse Servo "será elevado e levantado, e será exaltado" (Is 52.13; cf. Jo 8.28, 12.32). Isaías usa para esse Servo a mesma linguagem que usou para descrever YHWH Sabaoth, a quem ele contemplou no alto de um trono elevado e esplendoroso: "Vi o Senhor assentado sobre um trono alto e elevado, e a orla do seu manto enchia o templo" (Is 6.1; Jo 12.41). O Servo "alto e exaltado" compartilha o trono de Deus. Mais tarde, Isaías descreve o Servo "alto e elevado" como aquele "que habita a eternidade, cujo nome é Santo" (Is 57.15; cf. Lc 1.35). O Servo descrito por Isaías é o Senhor eterno que será elevado e exaltado à mão direita de Deus (Sl 110.1; cf. Atos 2.33; Ap 5.13-14). Isto é, aquele que eternamente compartilha o trono de Deus será exaltado. Mas como pode ser exaltado aquele que compartilha eternamente o trono? Essa é a pergunta que São Paulo responde em Filipenses 2. A exaltação assume a humilhação, a encarnação do Servo chamado Santo (Lc 1.35,49).11 Isaías dirige sua atenção para a humilhação do Servo. O Servo desprezado e rejeitado pelos homens, um homem de dores, que tomou sobre si nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si as nossas tristezas (Is 53.2-3). Ele será ferido por causa das nossas transgressões, esmagado por causa das nossas iniquidades, pois "YHWH fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós" (Is 53.5-6). Aquele que carrega as nossas iniquidades é o Justo que nos justificará (Is 53.11). Quando isso ocorrer, YHWH declara, derramarei o Espírito de graça e misericórdia e as pessoas "olharão para mim, a quem traspassaram, e o prantearão, como quem pranteia pelo filho único, e se amargurarão por ele, como quem se amargura pelo primogênito" (Zc 12.10 KJV; Jo 19.37; Ap 1.7). YHWH diz que eles olharão para "mim", a quem traspassaram, e ao mesmo tempo se lamentarão "por ele". Aquele que foi traspassado será "uma fonte aberta para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém, para purificá-los do pecado e da impureza" (Zc 13.1). O que foi ferido por nossas transgressões, o que foi traspassado por nós, corresponde ao Cristo 11

Bauckham, "God Crucified", em Jesus and the God of Israel, 35-36.

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descrito a Daniel, que expiará os pecados, introduzirá a justiça eterna e será cortado (Dn 9.24,26), o Renovo Justo, Emanuel, chamado por Jeremias de YHWH, nossa Justiça.

Esse Servo elevado e exaltado, sobre o qual repousa o Espírito de Deus, levará boas novas aos pobres, curará os quebrantados de coração, proclamará liberdade aos cativos e consolará a todos os que choram (Is 61.1-2). Ele abrirá os olhos dos cegos, desentupirá os ouvidos dos surdos e soltará a voz dos mudos (Is 35.4-6). Esse Servo, que é Rei e Pastor (Ez 34.23-24), entrará triunfante em Jerusalém (Zc 9.9), carregará nossas iniquidades e trará paz eterna (Mq 5.2-5) e salvação para todos (Is 55-56).

Tudo isso será feito por aquele que YHWH Sabaoth chama de "meu Companheiro" (Zc 13.7 KJA), "o Homem que está ao meu lado" (Zc 13.7 ESV). Após a obra do Servo, o Cristo, aquele que é o Filho eterno à direita do Pai eterno (Sl 110.1), o Espírito será derramado (Jl 2.28; Ez 39.29) e "todo aquele que invocar o nome de YHWH será salvo" (Jl 2.32). E, finalmente, quando os tempos se cumprirem, os livros serão abertos, e "os que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno" (Dn 12.1-2; Ap 20.12-13).

O YHWH VISÍVEL E INVISÍVEL

YHWH declarou a Moisés: "Você não pode ver a minha face, porque ninguém que verá a minha face viverá" (Êx 33.20). No entanto, YHWH tem sido visto por alguns, que inicialmente expressam surpresa com o fato de isso poder estar acontecendo, mas depois são tomados pelo medo de que isso esteja acontecendo. Hagar viu Deus e ficou surpresa por viver (Gn 16.13). Jacó declarou: "Porque tenho visto a Deus face a face, e ainda assim a minha vida foi libertada" (Gn 32.30). Gideão viu o Anjo de YHWH face a face e temeu por sua vida: "'Ai de mim, Senhor Deus! Porque agora vi o Anjo de YHWH face a face. Mas YHWH lhe disse: 'Paz seja com você. Não tema; você não morrerá'" (Jz 6.22-23). Da mesma forma, Manoá, o pai de Sansão, disse à sua esposa, após o encontro com o Anjo de YHWH: "Certamente morreremos, porque vimos a Elohim" (Jz 13.22). Isaías entra em pânico quando vê YHWH: "No ano em que morreu o rei Uzias, vi o Senhor assentado sobre um trono alto e erguido, e a orla do seu manto enchia o templo... E eu disse: 200

'Ai de mim! Porque estou perdido; porque sou homem de lábios impuros e hábito no meio de um povo de impuros lábios; porque os meus olhos viram o Rei, YHWH dos Exércitos! (Is 6.1,5).

Charles Gieschen escreveu extensivamente sobre essas teofanias do Antigo Testamento. Ele pergunta: "Se não se pode ver YHWH e viver, mas as pessoas estão vendo YHWH e não estão morrendo, então quem é essa imagem visível de YHWH que está sendo vista?"12 O Antigo Testamento identifica esse YHWH visível como o Anjo de YHWH, o Nome de YHWH, a Glória de YHWH ou a Palavra de YHWH. A Escritura também faz uso alternadamente de Elohim e YHWH falando também do Anjo de Elohim ou designando a Glória de YHWH como o Elohim de Israel, o Deus de Israel. Gideão, por exemplo, vê o "Anjo de YHWH", mas quem fala com ele é YHWH. Manoá vê o Anjo de YHWH e diz que ele e sua esposa morrerão porque viram Elohim. Como as Escrituras declaram apenas que aqueles que veem YHWH morrerão, vemos aqui, com Gideão e Manoá, o alcance semântico disponível para eles designarem YHWH. Se Manoá tivesse pensado que o Elohim ou o Anjo de YHWH que ele viu não era o próprio YHWH, ele nunca teria declarado que certamente morreria. Sua resposta é uma variação do padrão de atividade/identidade das Escrituras discutido no capítulo anterior. Conhecemos a pessoa que ele vê (seja qual for a designação que ele dê a essa pessoa) com base na atividade ou consequência atribuída por ele ao ver tal pessoa.

A dificuldade com essas teofanias não está em determinar a identidade daquele que foi visto ou encontrado por Agar, Abraão, Jacó, Moisés e os demais. Esse ponto se torna evidente com base em suas reações e em uma leitura cuidadosa do texto. A dificuldade tem mais a ver com o fato de que esses textos fazem uma distinção entre a forma visível de YHWH, que, de certa forma, está separada do YHWH invisível, mas, 12

Gieschen, "The Real Presence of the Son Before Christ: Revisiting an Old Approach to Old Testament Christology", Concordia Theological Quarterly 68 (2004): 115. A discussão a seguir se apóia muito nesse artigo e no tratamento mais extenso de Gieschen em Angelomorphic Christology: Antecedents and Early Evidence (Leiden: Brill, 1998).

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ao mesmo tempo, ambos pertencem à identidade única de YHWH. Eles são distintos, mas inseparáveis, dois e ainda assim um. O Antigo Testamento não demonstra interesse em resolver como devemos entender essa pluralidade dentro da identidade única de YHWH, o único e verdadeiro Deus de Israel. Em vez de expressar angústia com relação a essa questão, o Novo Testamento, com notável consistência, atribui essas várias aparições a Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Verbo feito carne (Jo 1.14), aquele que veio em Nome do Pai (Jo 5.43), um Nome que o Pai glorificará (Jo 12.28) com a Glória que o Filho tinha com o Pai antes que houvesse mundo (Jo 17.5). Os escritores do Novo Testamento forçam ainda mais declarando que Jesus esteve presente em vários momentos para os patriarcas e profetas. Cristo apareceu a Abraão, trazendo-lhe grande alegria (Jo 8.56-59); Isaías viu Sua glória e falou Dele (Jo 12.41); Jesus conduziu o povo para fora do Egito (Judas 5), Cristo estava com Israel no deserto (1Cor 10.1-10). O Filho é "a imagem do Deus invisível" (Cl 1.15) que está ao lado do Pai e que nos deu a conhecer o Pai invisível (Jo 1.18). Olhar para o Filho é ver o Pai (Jo 14.9-11). Quem é o YHWH visto no Antigo Testamento que torna conhecido o YHWH invisível? O Novo Testamento nunca hesita em fazer essa identificação. Sempre houve apenas um em quem você poderia olhar para ver o Pai: "Pois Deus, que disse: 'Das trevas resplandeça a luz', resplandeceu em nossos corações para dar à luz do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo" (2Cor 4.6). Jesus coloca a situação de forma bem simples: "Quem me viu, viu o Pai" (Jo 14.9).

O Antigo Testamento testifica tanto a profecia sobre a vinda de Cristo quanto Sua verdadeira presença com os patriarcas e profetas.

Embora o objetivo deste capítulo seja apresentar a identidade de Deus no Antigo Testamento, não há muito que possa ser dito sobre essas teofanias sem recorrer ao Novo Testamento. Nesse ponto, a unidade e a perfeição das Escrituras se mostram indispensáveis para a classificação desses encontros sugestivos e ambíguos entre Deus e Seu povo no Antigo Testamento. Da perspectiva do Novo Testamento, aquele que assumiu a carne e habitou entre Seu povo é também aquele que apareceu aos patriarcas e profetas. Foi Ele quem lutou com Jacó, falou com Moisés da sarça ardente e guiou Israel pelo deserto; o mesmo que conversou com Gideão e com os pais de Sansão, que mostrou Sua glória a Isaías e 202

Ezequiel e que tocou a boca de Jeremias. Em vez de correlacionar essas várias teofanias com o Novo Testamento, o objetivo abaixo é estabelecer um ponto mais básico: YHWH se manifesta de forma visível ao Seu povo.

Esse mesmo YHWH, para o qual ninguém pode olhar e viver, também se dá a conhecer ao Seu povo e eles vivem. As Escrituras explicam isso distinguindo entre o YHWH invisível e o YHWH visível, mas não de forma a comprometer a unicidade única de YHWH. O Anjo de YHWH

Gênesis apresenta um número de aparições intrigantes do Anjo de YHWH/Elohim.13 No primeira, o Anjo de YHWH encontra Agar e fala com ela (Gn 16.7-11). O Anjo de YHWH diz: "Certamente multiplicarei a sua descendência, de modo que não poderá ser contada em multidão" (16.10). O anjo continua explicando isso detalhadamente e diz que isso acontecerá porque "YHWH ouviu a aflição dela" (16.11). Ao ouvir isso, Agar chama o "Nome de YHWH" de "Deus da visão" e imediatamente se pergunta se ela realmente viu Aquele que a vê (16.13).

No capítulo seguinte, Deus fala com Abraão e lhe conta o que disse a Agar sobre Ismael: "Eis que o abençoei e o farei frutificar e multiplicar grandemente" (17.20). No discurso com Abraão, não é feita nenhuma distinção entre Deus e o Anjo. Da mesma forma, o Anjo de YHWH fala na primeira pessoa a Agar: "Eu multiplicarei a tua descendência". Quando o anjo explica o motivo, ele passa para a terceira pessoa, dizendo que YHWH é quem está fazendo isso por ela. Agar, por sua vez, entende que entrou na presença de Deus e questiona se isso pode ser realmente verdade. De acordo com o padrão estabelecido aqui pelas Escrituras, o Anjo de YHWH permanece distinto de YHWH e, ainda assim, ambos fazem o que só é próprio de YHWH. Dois capítulos depois, encontramos uma das teofanias mais intrigantes das Escrituras. Lemos que YHWH aparece a Abraão junto aos 13

Para uma discussão mais detalhada sobre essas aparições do Anjo de YHWH, consulte Gieschen, Angelomorphic Christology, 53-69. Para um resumo delas e suas implicações para o pensamento trinitário, consulte Robert Jenson, "The Bible and the Trinity", Pro Ecclesia 11/3 (2002): 329-39; Jenson, "The Trinity in the Bible", Concordia Theological Quarterly 68 (2004): 195-206.

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carvalhos de Manre (Gn 18.1). Quando Abraão levanta os olhos, ele vê três homens (18.2) e os alimenta (18.8). As coisas só se tornam mais difíceis a partir daqui. Os três homens são chamados de YHWH e, por fim, dois deles são chamados de anjos (19.1). YHWH fala com Abraão tanto no singular (18.10,13) quanto no plural (18.9). Abraão se apresenta diante de YHWH e pleiteia em favor de Sodoma e Gomorra (18.22-32).

No relato da destruição de Sodoma e Gomorra, os detalhes se tornam mais intrigantes: dois dos homens são identificados como anjos e continuam a ser vistos como homens (19.1,5,8). Esses dois anjos/homens resgatam Ló dos homens de Sodoma e deixam alguns deles cegos (19.1011). Eles dizem a Ló para reunir sua família e sair de Sodoma. Depois de fazerem isso, lemos: "YHWH fez chover do céu enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra" (19.24). Esse é um versículo enigmático, com certeza.14 A clareza poderia ter sido alcançada se o versículo dissesse: "O Anjo de YHWH fez chover enxofre e fogo de YHWH do céu sobre Sodoma e Gomorra". Esse significado parece estar implícito em Gn 19.21, onde o anjo que fala com Ló se identifica como aquele que tem o poder de derrubar essas cidades. Esse tipo de fraseado também se 14

Para uma duplicação semelhante, veja Êx 35.5 e Os 1.7. Johann Gerhard considera todos esses três exemplos como sendo referentes ao Pai e ao Filho.

Veja Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis III, §150, 399; Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, § 8 (ed. Cotta, 188-89). Lutero segue os Pais ao entender Gn 19.24 como uma referência à Trindade (AE 3:296-97; WA 43:87.2540 e AE 15:280; WA 54:39.11-17). Hilário de Poitiers escreve: "O Senhor fez chover enxofre e fogo do Senhor. É o Senhor do Senhor; a Escritura não faz distinção entre suas naturezas por diferença de nome, mas discrimina entre si.

Assim, o que o Senhor deu, o Senhor teve recebido do Senhor" (De Trinitate, 4.29; NPNF, ii, vol. 9, 80). Cf. Ambrósio de Milão, De Fide, I.23 (NPNF, ii, vol. 10, 204). Martin Chemnitz cita a regra de Lutero: "Sempre que nas Escrituras você encontrar Deus falando sobre Deus, como se havia duas pessoas, você pode ousadamente assumir que três Pessoas da Divindade estão ali indicadas" (AE 15:280; WA 54:39.8-10). Sobre Gn 19.24, ele então escreve: "'O Senhor fez chover fogo e enxofre do Senhor', isto é, o Filho do Pai, com o Espírito agindo como testemunha". Martin Chemnitz, Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:91. Para interpretações semelhantes desse texto pelos luteranos, veja David Chytraeus, In Genesin Enarratio (Wittenberg, 1576), 37677; Aegidius Hunnius, Calvinus Iudaizans (Wittenberg, 1604), 15-16; Matthias Hafenreffer, Loci Theologici (Tübingen, 1603), 32, 52.

204

encaixaria bem no padrão mais amplo que encontramos em Gênesis 16 e 22. E, no entanto, se é assim que o versículo deve ser entendido, a omissão de "Anjo" apenas enfatiza ainda mais a identidade única exibida pelo Anjo de YHWH e YHWH.15 Os Pais seguiram o Novo Testamento e identificaram o primeiro YHWH com Jesus. Ele é aquele que destruiu "aqueles que não acreditavam" no deserto (cf. Nm 14,16; 1Co 10.10) e aqueles em Sodoma e Gomorra (Judas 5-7). Os Pais viram esse texto e a teofania mais ampla como uma revelação da Trindade. Abraão vê o invisível, fala com Ele e vive. YHWH fala tanto no singular quanto no plural. As Escrituras sugerem ainda a diversidade dentro da unidade de YHWH na destruição de Sodoma e Gomorra.16 Alguns capítulos depois, Deus diz a Abraão para oferecer Isaque como holocausto. Quando Abraão prepara o altar e coloca Isaque sobre ele, ele estende a mão e pega a faca. Naquele momento, "o anjo de YHWH o chamou do céu . . . Não ponha a mão sobre o menino, nem lhe faça coisa alguma, porque agora sei que teme a Elohim, visto que não me negou o seu filho, o seu único filho" (22.11-12). Como no caso de Agar, acima, há distinção e nenhuma distinção entre o Anjo de YHWH e Deus.

Por um lado, o anjo diz: "Eu sei que você teme a Deus" e, por outro lado, "Você não me negou seu filho, seu único filho”. As palavras do anjo indicam que ele é diferente de Deus e é Deus.

As várias aparições do Anjo de YHWH no restante do Antigo Testamento são tão sugestivas e ambíguas quanto as de Gênesis. O Anjo de YHWH aparece a Moisés em uma chama de fogo no meio de uma sarça que não se consumia (Êx 3.2). YHWH vê Moisés se virar em direção à sarça e Elohim lhe diz que o lugar em que ele se encontra é terra santa 15

Jarl E. Fossum, The Image of the Invisible God (Göttingen: Vandenhoek & Ruprecht, 1995), 51, 55-57.

16 A leitura moderna de Gn 19.27 se afasta da antiga leitura judaica e cristã. Os intérpretes modernos encontram ênfase literária - o YHWH que destruiu é o YHWH do céu. Os antigos rabinos reconheceram a distinção gramatical entre YHWH, o destruidor, e o YHWH do céu. Eles sugeriram que o primeiro era um intermediário angelical, talvez Gabriel. Os Pais, como mencionado, viam o primeiro YHWH como o Filho e o segundo como o Pai. Para uma discussão completa desse texto, veja Fossum, Image of the Invisible God, 41- 51.

205

(3.3-6). A voz da sarça declara: "Eu sou o Elohim de teu pai, o Elohim de Abraão, o Elohim de Isaque e o Elohim de Jacó" (3.6). Moisés se afasta "porque tinha medo de olhar para Deus" (3.6). A voz da sarça continua a falar com Moisés e o texto identifica essa voz como YHWH (3.7).

Continuamos a ver aqui com Moisés o que vimos com Agar e Abraão: existe uma distinção entre o Anjo de YHWH e YHWH e, ainda assim, os dois estão entrelaçados inseparavelmente no mesmo texto. Por exemplo, de acordo com o texto, quem está na sarça ardente? A resposta é o Anjo de YHWH. Novamente, de acordo com o texto, quem fala da sarça ardente? A resposta é YHWH. Aparições semelhantes acontecem com Gideão e com Manoá e sua esposa, os pais de Sansão. O Anjo de YHWH aparece a Gideão, que reconhece aquele que está diante dele. Somente depois de oferecer seu sacrifício, somente no ato de adoração, Gideão entende. Ele então declara: "'Porque agora tenho visto o Anjo de YHWH face a face'. Mas YHWH lhe disse: 'Paz seja com você. Não tema; você não morrerá'" (Jz 6.22-23).

Manoá e sua esposa encontram alguém conhecido como o Anjo de YHWH (Jz 13.3,13,15,16,18,20,21), o Anjo de Elohim (13.6), um homem de Elohim (13.6,8), Elohim (13.9,22), ou simplesmente como o homem (13.10,11), cujo nome é "maravilhoso" (13.18; Is 9.6). No final da conversa, lemos: "Então Manoá soube que ele era o Anjo de YHWH. E Manoá disse à sua mulher: 'Certamente morreremos, porque vimos a Elohim'" (Jz 13.21-22).

Apesar das inúmeras dificuldades que acompanham cada exemplo acima, o que o texto afirma sem ambiguidade, por mais difícil que seja conceituar ou explicar, é que existe uma distinção real entre YHWH e o Anjo de YHWH e, ainda assim, uma vez que essa distinção se estabelece, o Anjo de YHWH fala e age como Deus na primeira pessoa. Existe tanto distinção quanto identidade entre YHWH e o Anjo de YHWH. Além disso, um ponto que se tornará mais pronunciado nas teofanias discutidas abaixo, o YHWH visto também pode ser chamado de "o homem de Elohim" ou simplesmente "o homem" cujo nome é Maravilhoso.

Seguindo o padrão das Escrituras, aquele chamado Maravilhoso é o filho nascido da virgem, Emanuel, cujo nome será chamado de "Maravilhoso 206

Conselheiro" (Is 9.6).17 O nome de YHWH

O Antigo Testamento dá continuidade a esse padrão de alternância entre alguém identificado como YHWH e, ainda assim, distinto de YHWH, com as designações igualmente sugestivas do Nome de YHWH, da Glória de YHWH ou da Palavra de YHWH.18 Por exemplo, YHWH declara a Moisés: "Eis que envio um Anjo diante de ti para guardar-te no caminho e levar-te ao lugar que preparei. Preste muita atenção a ele e obedeça à sua voz; não se revolte contra ele, pois ele não perdoará sua transgressão, porque meu nome está nele. Mas, se você obedecer cuidadosamente e você ouvir a voz dele e fizer tudo o que eu disser, então serei inimigo para seus inimigos e adversário para seus adversários" (Êx 23.20-22). O Anjo que guardará o povo e em quem repousa o poder de absolver e reter o pecado possui o "Nome" de YHWH. O Nome de YHWH é distinto de YHWH, mas também inseparável de YHWH. O povo deve ouvir a voz do Anjo que carrega o Nome de YHWH e, ao fazer isso, eles ouvem YHWH. Como Gieschen coloca: "Não se pode separar o nome YHWH da realidade de YHWH."19 Da mesma forma, uma pessoa não pode separar a voz do Anjo que leva o Nome de YHWH de YHWH. Ouvir um é ouvir o outro. Eles são distintos, mas inseparáveis.

Alguns capítulos depois, YHWH ordena a Moisés que vá ao Monte Sinai. Moisés faz o que YHWH lhe ordena. Então lemos: "YHWH 17

Embora enigmático, Dn 8.13-14 identifica dois anjos. Os reformadores entendiam o primeiro anjo como Cristo e o segundo como Gabriel. O texto também nomeia o primeiro anjo na LXX como Palmoni (φελμουνι), um substantivo indeclinável que carece de definição. A maioria dos reformadores optou por deixar esse nome como está e argumentou que ele era um título para Cristo. Melanchthon argumentou que, se fosse traduzido, seria traduzido como "algo ou alguém maravilhoso" e corresponderia a "Maravilhoso Conselheiro" em Is 9.6. Ver Philipp Melanchthon, In Danielem Prophetam Commentarius (Leipzig, 1543), 137.

18 Sobre o nome de YHWH, veja também Gieschen, Angelomorphic Christology, 70-78.

19 Gieschen, "Real Presence of the Son Before Christ", 116.

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desceu na nuvem e ficou ali com ele e proclamou o Nome de YHWH. YHWH passou diante dele e proclamou: 'YHWH, YHWH, Deus misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e grande em amor e fidelidade, que guarda o amor por milhares, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado'" (Êx 34.6-7). Novamente YHWH proclama o Nome de YHWH a Moisés (distinção) e a proclamação é "YHWH, YHWH" (identidade). Aquilo que descreve YHWH, que marca Sua identidade - a saber, que Ele é misericordioso, gracioso, abundante em amor e fidelidade constantes, que mantendo amor constante e perdoando iniquidade, transgressão e o pecado - é verdadeiro tanto para YHWH quanto para o Nome de YHWH, conforme proclamado por YHWH.20 A relação entre YHWH e o Nome de YHWH torna-se ainda mais notável com o Templo, a casa construída por Salomão onde o Nome de YHWH habita: "E assim eu [Salomão] pretendo construir uma casa para o Nome de YHWH, meu Elohim, como YHWH disse a Davi, meu pai: 'Teu filho, a quem porei no teu trono, no teu lugar, edificará a casa para o meu Nome'" (1Rs 5.5). Deus havia declarado a Moisés que Seu Nome habitaria no local de adoração escolhido por Ele quando o povo herdasse a terra que o Senhor lhes forneceria do outro lado do Jordão. Então, YHWH lhes daria descanso de seus inimigos e um lugar para adorar (Dt 12.9-10): "Então para o lugar que YHWH teu Elohim escolherá, para ali fazer habitar o seu Nome, ali trarás tudo o que eu te ordeno: os seus holocaustos e os seus sacrifícios, os seus dízimos e a contribuição que você apresentar, e todas as suas melhores ofertas de voto que você fizer a YHWH. E você se alegrará perante YHWH, seu Elohim" (Dt 12.11-12).

Tudo isso se concretiza com Salomão: "Bendito seja YHWH, que deu descanso ao seu povo Israel, de acordo com tudo o que prometeu. Nem uma só palavra falhou em toda a sua boa promessa, que falou por 20

Um exemplo semelhante, embora não trate do nome de YHWH, ocorre com Oséias. YHWH declara a Oséias: "Terei misericórdia da casa de Judá, e os salvarei por [ou por meio de] YHWH, seu Elohim" (Os 1.7). A repetição, como a encontrada em Gn 19.24 e Êx 34.6-7, é peculiar. YHWH não diz "Eu os salvarei", mas "Eu os salvarei por ou por meio de YHWH teu Elohim". Muitos simplesmente seguiriam João Calvino e veriam apenas uma repetição enfática nesses textos.

Martinho Lutero e Johann Gerhard os viam como trinitários.

208

intermédio de Moisés, seu servo" (1Rs 8.56). Salomão reflete longamente sobre a presença de YHWH e Sua morada no Templo. YHWH, que habita em densas trevas (8.12), declarou que Seu Nome habitaria no Templo (8.16). Mas como, pergunta Salomão, Deus habitará na terra como prometeu fazer no Templo (8.27)? Salomão entende a promessa de YHWH a Moisés e a Davi como uma descrição de Sua presença real no Templo. Não há nenhuma figura de linguagem aqui, nenhuma aloeose zwingliana à sua disposição. Salomão declara o enigma da razão: "Eis que o céu e o mais alto dos céus não te podem conter; quanto menos esta casa que edifiquei"(8.27). E, no entanto, para Salomão, a promessa de Deus permanece e significa o que diz. YHWH declara: "Meu nome estará ali", e de fato assim será (8.29). A fé se apega à promessa, justificando Deus em Suas palavras, apesar das dificuldades da razão. O YHWH que habita no céu também habita na terra, em Seu Templo, onde está Seu Nome.

Como em todos os exemplos acima, há novamente uma distinção entre YHWH e o Nome de YHWH, e ainda assim os dois são inseparáveis.

A glória de YHWH

Arão instruiu o povo a apresentar-se diante de YHWH, pois Ele havia ouvido suas queixas: "E logo que Arão falou a toda a congregação do povo de Israel, eles olharam para o deserto, e eis que a Glória de YHWH apareceu na nuvem" (Êx 16.10).21 A nuvem e a coluna de fogo revelam diariamente a Glória de YHWH. Vemos isso com Moisés no Sinai e com o Tabernáculo/Templo.

Tendo Moisés subido, uma nuvem cobriu o monte. E a glória do SENHOR pousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu durante seis dias. No sétimo dia, do meio da nuvem o SENHOR chamou Moisés. Aos olhos dos israelitas, o aspecto da glória do SENHOR era como um fogo consumidor no alto do monte. E Moisés, entrando pelo meio da nuvem, subiu o monte; e lá permaneceu quarenta dias e quarenta noites. (Êx 24.15-18)

21

Para uma discussão mais detalhada dos textos que se seguem, consulte Gieschen, Angelomorphic Christology, 78-88.

209

Então a nuvem cobriu a tenda do encontro, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo. Moisés não podia entrar na tenda do encontro, porque a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo. Quando a nuvem se levantava sobre o tabernáculo, os filhos de Israel seguiam adiante, em todas as suas jornadas; se a nuvem, porém, não se levantava, não seguiam adiante, até o dia em que ela se levantava. De dia, a nuvem do SENHOR repousava sobre o tabernáculo, e, de noite, havia fogo nela, à vista de toda a casa de Israel, em todas as suas jornadas. (Êx 40.34-38) A designação da Glória de YHWH com a nuvem se funde com o Nome de YHWH que habita no Templo. Imediatamente antes da bênção de Salomão, citada em parte acima, lemos: "E quando os sacerdotes saíram do Lugar Santo, uma nuvem encheu a casa de YHWH, de modo que os sacerdotes não podiam ficar de pé para ministrar por causa da nuvem, porque a glória de YHWH encheu a casa de YHWH" (1Rs 8.10).

Se juntarmos tudo isso, descobriremos, como vimos acima, a distinção e a identidade comum entre YHWH e a Glória de YHWH. O povo veio diante de YHWH, e o que estava diante deles era a Glória de YHWH na nuvem; Moisés entrou na nuvem, a Glória de YHWH, e estava na presença de YHWH. Da mesma forma, a Glória de YHWH, o Nome de YHWH, habita no Templo, marcando a presença real de YHWH com Seu povo.

A mais impressionante revelação da presença de Deus como a Glória de YHWH aparece com a visão inicial de Ezequiel dos quatro seres viventes, suas rodas e a carruagem-trono. Por mais desconcertante e surpreendente que a primeira parte da visão de Ezequiel possa ser, as coisas só se tornam mais difíceis no final da visão.

Por cima do firmamento que estava sobre a cabeça dos seres viventes, havia algo semelhante a um trono, como uma safira; e, sobre essa espécie de trono, estava sentada uma figura semelhante a um ser humano. Vi que essa figura era como metal brilhante, como um fogo ao redor dela, desde a sua cintura e daí para cima; e desde a sua cintura e daí para baixo, vi que essa figura era como fogo e havia um resplendor ao redor dela. Como o aspecto do arco que aparece nas nuvens em dia de 210

chuva, assim era o resplendor ao redor. Esta era a aparência da glória do Senhor. Ao ver isto, caí com o rosto em terra e ouvi a voz de quem falava.

(Ez 1.26-28) Ezequiel vê o trono de Deus ocupado pela Glória de YHWH. Ele descreve a Glória de YHWH, sentado no trono, como tendo a semelhança de um homem. Quando Ezequiel vê isso, ele cai sobre seu rosto. Nesse momento, o Homem, a Glória de YHWH, fala com Ezequiel e, ao fazêlo, "o Espírito entrou em mim [Ezequiel] e, me pôs de pé e eu o ouvi falar comigo". Para que Ezequiel ouvisse o Homem, a Glória de YHWH o Espírito era necessário para que as palavras do Homem fossem recebidas no coração de Ezequiel e ouvidas por seus ouvidos (Ez 3.10). Depois que Ezequiel ouve essas palavras do Homem pelo Espírito, ouve-se o som de um grande estrondo por trás dele. Ezequiel ouve: "Bendita seja a Glória de YHWH desde o seu lugar" (Ez 3.12! Ezequiel entende que a mão de YHWH estava sobre ele (Ez 3.14).

Depois de sete dias, a Glória de YHWH, o Homem, vem novamente ao profeta, mas desta vez Ezequiel diz: "A Palavra de YHWH veio a mim" (Ez 3.16). Novamente, Ezequiel entende que a mão de YHWH está sobre ele: "E a mão de YHWH estava sobre mim ali. E ele me disse: 'Levante-se, saia para o vale, e lá falarei com você'. Então eu o levantei e fui para o vale, e eis que estava ali a glória de YHWH, como a glória que eu tinha visto junto ao canal de Quebar, e caí com o rosto em terra. Mas o Espírito entrou em mim e me pôs em pé e falou comigo e me disse..." (Ez 3.22-24). Ezequiel vê novamente a Glória de YHWH como em sua visão anterior, ou seja, na semelhança da aparência de um Homem. Ele novamente cai com o rosto no chão, e o Espírito entra nele e o levanta. A Glória de YHWH, o Homem, fala com Ezequiel como havia feito anteriormente. Apesar dessas semelhanças, a diferença entre as duas visões com relação à Glória de YHWH, o Homem, merece destaque. A Glória agora está separada do trono no qual Ele se sentou no primeiro capítulo. Ambas as verdades devem permanecer juntas. Por um lado, Ezequiel vê a Glória de YHWH no trono divino, e o que ele vê tem a aparência do Homem. Por outro lado, a Glória de YHWH, que tem a aparência do Homem, deixa o trono e vem até Ezequiel, colocando Sua 211

mão sobre ele.

Uma segunda visão dos viventes, que Ezequiel agora chama de querubins, ocorre no décimo capítulo. Quando o homem vestido de linho entra no santuário, uma nuvem preenche o pátio interno: "E a glória de YHWH subiu do querubim até o limiar da casa, e a casa se encheu da nuvem, e o pátio se encheu do resplendor da glória de YHWH" (Ez 10.4).

Ezequiel continua com uma descrição dos querubins e suas rodas, enfatizando que esses querubins são as criaturas vivas que ele viu no canal de Quebar no primeiro capítulo (Ez 10.15,20,22). Ele termina voltando à Glória de YHWH: "Então a Glória de YHWH saiu do limiar da casa e pôs-se sobre os querubins . . . E eles [os querubins] estavam à entrada da porta oriental da casa de YHWH e a glória do Elohim de Israel estava sobre eles. Estes eram os seres viventes que vi debaixo do Elohim de Israel, junto ao canal de Quebar, e soube que eram querubins" (Ez 10.1820). Para Ezequiel, aquele que tem a semelhança da aparência do Homem é a Glória de YHWH que tanto se assenta no trono divino e este vem até ele. Essa Glória de YHWH fala a Ezequiel, e Ezequiel ouve Suas palavras pelo Espírito.

A Glória de YHWH é o Elohim de Israel, o Deus de Israel (Ez 10.19-20). Ezequiel descreveu a Glória de YHWH, aquele que tinha a semelhança do Homem, como sentado em um trono "com aparência de safira" (Ez 1.26). Ezequiel vê esse homem à semelhança do Homem novamente no capítulo 8 e o descreve como "semelhante ao aspecto do resplendor, como metal reluzente" (Ez 8.2). Uma descrição semelhante do Deus de Israel aparece em Êxodo: "Então subiram Moisés e Arão, Nadabe e Abiú, e setenta dos anciãos de Israel, e viram o Elohim de Israel.

E havia debaixo de seus pés como que um pavimento de pedra de safira, como o próprio céu em sua claridade. E ele não lançou a mão sobre os escolhidos do povo de Israel; eles contemplaram a Deus, e comeram e beberam" (Êxodo 24.9-11). Se seguirmos o padrão das Escrituras, os principais homens de Israel viram a Glória de YHWH, o Elohim de Israel, aquele mesmo que foi visto por Ezequiel. Ambos procuram palavras para descrever o que viram e usam expressões semelhantes: "como safira" (Ez 1.26), "pavimento de pedra de safira" (Êx 24.10), "aparência de 212

resplendor" (Ez 8.2), "como o próprio céu em sua claridade" (Êx 24.10).

Moisés termina sua descrição simplesmente declarando: "Eles contemplaram Deus" (Êx 24.11).

A distinção e a unidade entre a Glória de YHWH e YHWH, entre aquele que é semelhante à aparência do Homem e o YHWH invisível, são expressas de diferentes maneiras em outras partes das Escrituras. Daniel, por exemplo, vê o Ancião de Dias em Seu trono e "um semelhante a um Filho de Homem" (Dn 7.9,13).

“Eu estava olhando nas minhas visões da noite.

E eis que vinha com as nuvens do céu alguém como um filho do homem.

Ele se dirigiu ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele.

Foi-lhe dado o domínio, a glória e o reino, para que as pessoas de todos os povos, nações e línguas o servissem.

O seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído.” (Dn 7.13,14)

Aquele que é semelhante a um Filho do Homem corresponde àquele na semelhança da aparência do Homem vista por Ezequiel. O que Daniel vê, então, é a Glória de YHWH sentada ao lado do Ancião de Dias no trono divino. O rei Davi vê isso e simplesmente declara: "O Senhor diz ao meu Senhor: 'Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por assento de teus pés'"(Sl 110.1).

Embora seja impressionante que Ezequiel veja a glória de YHWH na aparência de um Homem, o que é mais impressionante é a frequência com que Deus aparece no Antigo Testamento na aparência de Homem.

Já observamos como Ezequiel vê YHWH na aparência de um Homem, de forma bastante semelhante à de Moisés, Arão, Nadabe, Abiú e os setenta anciãos de Israel. Daniel O vê de várias maneiras, como o Homem vestido de linho e como alguém semelhante ao Filho do Homem. Abraão encontra três homens e os alimenta, mas os três falam como um só, designado, de acordo com as Escrituras, como YHWH. Jacó luta com "um homem", mas também luta com Deus. Josué vê "um homem" diante de si com uma espada desembainhada, cujo nome é "o Comandante do Exército de YHWH" (Js 5.14). As ações de Josué não deixam dúvidas 213

quanto à identidade desse homem: "Josué prostrou-se com o rosto em terra e adorou" (Js 5.14). Para ele, adorar qualquer pessoa ou coisa que não seja o único e verdadeiro Deus de Israel seria o cúmulo da blasfêmia.

Aquele que ele adora, então, como as várias outras aparições do Homem no Antigo Testamento, é distinto de YHWH e, ao mesmo tempo, inseparável de YHWH, de modo que vê-lo é ver YHWH e adorá-lo é adorar YHWH. Quando Moisés se aproxima da sarça ardente, YHWH diz: "Não se aproxime; tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é terra santa" (Êx 3.5). Da mesma forma, quando Josué se prostra diante do Homem, o Comandante do exército de YHWH, e o adora, o Homem diz: "Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é santo" (Js 5.15). Josué faz isso porque sabe, sem dúvida, que Ele estava diante do Deus de seus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó (Êx 3.6).

A Palavra de YHWH

Por fim, YHWH revela Sua identidade ao Seu povo com a designação Palavra de YHWH.22 No chamado de Jeremias, lemos: A palavra do Senhor veio a mim, dizendo: “Antes de formá-lo no ventre materno, eu já o conhecia; e, antes de você nascer, eu o consagrei e constituí profeta às nações.” Então eu disse: — Ah! Senhor Deus! Eis que não sei falar, porque não passo de uma criança.

Mas o Senhor me disse: “Não diga: ‘Não passo de uma criança.’

Porque a todos a quem eu o enviar, você irá; e tudo o que eu lhe ordenar, você falará.

Não tenha medo de ninguém, porque eu estou com você para livrá-lo”, diz o Senhor.

Depois, o Senhor estendeu a mão e tocou na minha boca.

E o Senhor me disse: “Eis que ponho as minhas palavras na sua boca. (Jr 1.4-9)

A Palavra de YHWH chega a Jeremias e declara que Ele criou Jeremias e o conheceu antes de ele nascer. Jeremias, discernindo 22

Veja também Gieschen, Angelomorphic Christology, 103-14.

214

corretamente que tal coisa só poderia ser dita de Deus, declara: Elohim Adonai! O texto continua com YHWH falando com Jeremias. YHWH então estende a mão, toca a boca de Jeremias e coloca Suas palavras em sua boca. Como nos vários exemplos acima, vemos a distinção entre a Palavra de YHWH e YHWH e, uma vez estabelecida essa distinção, a Palavra de YHWH fala como YHWH. Tanto a distinção quanto a unidade são enfatizadas.

Outro exemplo significativo da Palavra de YHWH ocorre com o profeta Zacarias. A Palavra de YHWH vem a Zacarias e lhe mostra várias visões, especialmente visões sobre o Cristo, o Renovo, que é YHWH, aquele que foi traspassado por causa das transgressões do povo (Zc 12.913.1). No terceiro capítulo, Zacarias tem uma visão de Josué, o sumo sacerdote, diante do Anjo de YHWH e de Satanás. O cenário é o de um tribunal com Satanás, o acusador, acusando Josué, oprimindo sua consciência por causa de seus pecados. YHWH repreende Satanás: "E disse YHWH a Satanás: 'YHWH te repreenda, ó Satanás! (Zc 3.2). Josué está diante do Anjo de YHWH, mas quem fala é YHWH. A visão continua: "Ora, Josué estava diante do Anjo, vestido de trajes imundos. E o Anjo disse aos que estavam diante dele: 'Tirai-lhe as vestes imundas'. E a ele disse: 'Eis que tirei de ti a tua iniquidade e te vestirei de vestes puras'" (Zc 3.3-4). No contexto do livro de Zacarias, os pecados de Josué, suas vestes imundas, representam Israel. Como sumo sacerdote, ele aparece diante do Anjo de YHWH como Israel, sujo de pecado, acusado por Satanás. O Anjo de YHWH, que é YHWH, repreende Satanás e declara a Josué, a Israel, que seu pecado será removido e ele será vestido pelo Anjo de YHWH ("Eu o vestirei") com vestes puras. O pecado de Josué é removido e ele é vestido com a pureza de outro. É uma pureza alheia dada a Josué (cf. 1Jo 3.2-3). A visão agora deixa explícito que Josué representa Israel e que o Anjo de YHWH eliminará a iniquidade de Israel, revestindoo de uma pureza alheia: "E o Anjo de YHWH assegurou solenemente a Josué: 'Assim diz YHWH Sabaoth . . . Eis que eu trarei o meu Servo, o Renovo. Pois eis que na pedra que coloquei diante de Josué, numa só pedra com sete olhos, gravarei a sua inscrição, declara YHWH Sabaoth, e removerei a iniquidade desta terra em um único dia'" (Zc 3.6-9). Zacarias continua a linguagem dos profetas aqui. Aquele em quem a salvação é 215

encontrada é o "meu" Servo (Is 42.1; 52.13), o Renovo (Is 4.2; Jr 33.15) e a Pedra (Sl 118.22; Is 8.14; 28.16). Em um único dia, o Servo de YHWH, o Renovo, a Pedra, removerá toda a iniquidade. A expiação aqui descrita é perfeita e, totalmente suficiente e resulta em paz: "Naquele dia, diz YHWH Sabaoth, cada um de vocês convidará o seu próximo para vir para debaixo da sua videira e da sua figueira" (Zc 3.10).

Apesar da óbvia ambiguidade presente na maioria dos textos sobre o Anjo, o Nome, a Glória e a Palavra de YHWH, todos eles demonstram como YHWH, o único e verdadeiro Deus de Israel, pode nunca ser visto e, ainda assim, foi visto. Além disso, eles mostram ao leitor atento que, dentro da identidade única de YHWH, há pluralidade. O Anjo de YHWH está separado de YHWH, mas é YHWH. Isso se aplica ao Nome, Glória e Palavra. Além disso, é ressaltado que a Palavra de YHWH e a Glória de YHWH são compreendidas somente pelo Espírito, que frequentemente é designado como o Espírito de YHWH ou o Espírito de Elohim. Quando juntamos o resumo narrativo do Antigo Testamento e os vários textos sobre o YHWH visível e invisível, descobrimos inequivocamente a pluralidade dentro da identidade comum.

Descobrimos que YHWH é Triúno.

RESUMO DOGMÁTICO DA IDENTIDADE BÍBLICA DE YHWH

De acordo com o Antigo Testamento, quem é Deus? A resposta mais direta a essa pergunta vem na sarça ardente. Deus diz a Moisés: "EU SOU O QUE SOU". Quando Moisés se vai aos israelitas, ele deve dizer que "EU SOU" enviou-o (Êx 3.14). Deus também diz a Moisés: "Diga o seguinte ao povo de Israel: 'YHWH, o Elohim de seus antepassados, o Elohim de Abraão, o Elohim de Isaque e o Elohim de Jacó, me enviou para vocês'. Este é o meu nome para sempre, e assim serei lembrado por todas as gerações" (Êx 3.15). Aqui duas respostas que se esclarecem mutuamente são dadas. Deus é "EU SOU O QUE SOU", e essa realidade pode ser expressa com o nome YHWH, o Elohim de Abraão, Isaque e Jacó. As duas respostas diferem em termos do contexto em que conhecemos ou entendemos o nome. Na primeira, "EU SOU O QUE SOU", temos uma tautologia. Quem é esse "EU SOU"? Ele é o "EU SOU" que falou o primeiro "EU SOU". Por mais confuso que isso possa 216

parecer, o argumento apresentado nos leva ao cerne das Escrituras: Deus declara Sua identidade em Seus próprios termos. O segundo, o nome que deve ser lembrado para sempre, é YHWH, o Elohim de seus antepassados, de Abraão, Isaque e Jacó. O único YHWH mantém um relacionamento com as pessoas que Ele criou e elegeu. Eles têm uma história. Conhecer YHWH envolve lembrar o que Ele fez e o que promete fazer por Seu povo. Essas duas respostas a Moisés andam juntas, informam uma à outra e delimitam como o Deus da Bíblia é conhecido por nós.

A revelação dada a Moisés na sarça ardente ensina o restante do Antigo Testamento e está no centro litúrgico da adoração de Israel.

Vemos isso especialmente em Deuteronômio. Novamente perguntamos: quem é Deus? Ele é "YHWH, o Elohim de Israel" (Dt 6.4). Seu nome é YHWH e Ele é o Deus "de Israel". Somente Ele nos dá a conhecer Sua identidade. Ele é YHWH; nós O recebemos como Ele é, como Ele nos declara. O ponto merece ser repetido: YHWH nunca é suscetível às nossas idolatrias intelectuais, aos nossos argumentos adequados ou às nossas inconstantes lealdades culturais - EU SOU O QUE SOU, não quem queremos que Ele seja, não o que queremos que Ele seja. Além disso, esse EU SOU, esse YHWH, está em relação a um povo que Ele criou e elegeu e é conhecido em termos desse relacionamento divinamente estabelecido. Isso significa que a economia divina, a obra de Deus na criação e em favor de Seu povo, torna-se o principal contexto no qual conhecemos, confessamos e adoramos o único Deus verdadeiro da Bíblia.

O conhecimento correto envolve a confissão e a adoração verdadeiras, o que requer fé e, portanto, os meios da graça. Não podemos conhecer corretamente Deus sem Deus, sem o relacionamento divinamente estabelecido com Ele, sem Sua graça, misericórdia, amor inabalável e justiça - tudo o que temos, de acordo com as Escrituras, somente em Cristo por meio do Espírito Santo.

As Escrituras modelam nossos pensamentos sobre esse Deus ao marcar Sua identidade únicapor meio das coisas que Ele faz e das promessas que Ele faz. YHWH declara: "Quando teu filho te perguntar no tempo que está por vir: 'Qual é o significado dos testemunhos, dos 217

estatutos e das regras que YHWH, nosso Elohim te ordenou? Então dirás ao teu filho: ‘Nós éramos escravos de Faraó no Egito. E YHWH nos tirou do Egito com uma mão poderosa'" (Dt 6.20-21). A resposta de YHWH continua demoradamente: você deve dizer a seu filho que YHWH nos libertou da escravidão, nos elegeu como Seu povo, nos guiou pelo deserto, nos abençoou e sustentou, alimentando-nos quando não havia comida e dando de beber quando tínhamos sede, enquanto nos ensinava que "nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de YHWH" (Dt 8.3). Para conhecer YHWH, quem Ele é, você deve se lembrar do que Ele fez, de como agiu na história e das promessas que fez. Você não pode abstraí-lo de Seu envolvimento ativo na história e em nome de Seu povo.

Aqueles que desejam enfraquecer a historicidade das Escrituras, sua facticidade, se alienam da revelação de Deus sobre Si mesmo, recuando para gentilizas filosóficas e idolatrias intelectuais. Conhecer Deus de acordo com as Escrituras é reconhecer que Deus é sujeito, não objeto, que Sua obra, particularmente Sua obra própria de salvação, determina nosso conhecimento e compreensão corretos Dele, na verdade, torna isso possível.

Ao lembrar da narrativa bíblica de YHWH e de Seu envolvimento, promessas e aparições para Seu povo, você entende o que significa dizer que somente Ele é a Verdade e a Vida. Esquecer de YHWH, seu Elohim, é buscar outros deuses, falsos deuses, e servi-los e adorá-los (Dt 8.19). Esquecer é buscar a falsidade e a morte, apesar da afirmação das multidões. O modo de lembrar de YHWH - Suas obras e Suas promessas - para conhecê-Lo encontra sua morada na adoração e na ordenação da vida do crente. A descrição narrativa de Deus apresentada acima é a maneira básica pela qual os fiéis confessam e adoram a identidade plural do único Deus verdadeiro, YHWH, nosso Elohim. O Novo Testamento esclarece isso em termos mais conhecidos: adoramos e glorificamos o Pai por meio do Filho pelo Espírito Santo. O Novo Testamento nos permite analisar a linguagem um tanto ambígua encontrada em todo o Antigo Testamento. O YHWH que aparece aos patriarcas e profetas, que mostra Sua glória a Isaías e Ezequiel, o YHWH que é traspassado pelos pecados de todos, que é chamado de Filho do Homem, Servo, Renovo, Homem, sobre quem repousa o Espírito de 218

YHWH, é Jesus Cristo, o Verbo feito carne, o Filho unigênito enviado pelo Pai, que por sua vez, com o Pai, envia o Espírito Santo conforme prometido pelos profetas. A ambiguidade das teofanias narradas acima se dissolve com o testemunho do Novo Testamento. O ponto aqui é que a narração histórica, a lembrança das obras e promessas de Deus, Seu envolvimento ativo em nossa história, é a principal forma de conhecermos o Deus da Bíblia. Essa narração forma o conteúdo de nossas orações e hinos, nossos sermões e liturgia. Ela dá sentido à nossa vida como povo de Deus e narração tanto ao nosso viver quanto o nosso morrer como Seus filhos redimidos. Somente quando alguém aparece e procura minar essa narração, procura comprometer a identidade única de YHWH, Suas obras e promessas, é que os fiéis reunidos devem passar da confissão narrativa para o pronunciamento dogmático.

O que podemos dizer, então, sobre a apresentação dogmática de Deus com base no Antigo Testamento? O Antigo Testamento identifica, sem ambiguidade, as características únicas que distinguem e separam o Senhor Deus de Israel de todos os falsos deuses, de todos os ídolos e, de fato, de toda a realidade criada. A apresentação narrativa de Deus acima, a lembrança de Seus feitos e promessas, Seu envolvimento ativo com Seu povo, podem ser resumidos da seguinte forma: 1. Ele é o criador dos céus e da terra. Somente Ele cria e cria sem assistência externa e sem nada anterior ao Seu ato livre de criação.

2. Como o único criador dos céus e da Terra, somente Ele é o governante supremo de tudo, que não está separado de Sua criação, mas está ativamente envolvido nela, determinando sua história e, especialmente, elegendo e cuidando de Seu povo.

3. Como o único Deus verdadeiro que criou todas as coisas, governa todas as coisas, que chamou Seu povo para ser Seu povo, estabelecendo uma aliança eterna com eles, resgatando da escravidão no Egito, preservando no deserto, trazendo para sua própria terra e assim por diante, Ele também é, apesar do pecado e da idolatria deles, misericordioso e gracioso, lento para se irar e abundante em amor e fidelidade constantes para com eles.

4. O Deus que cria e governa, o Deus que é misericordioso e gracioso, vai redimir o Seu povo de seus pecados, de seu afastamento, de sua impiedade. Ele será seu salvador, sua justiça, seu justificador. Ele enviará Seu Servo, excelso e exaltado, para carregar as iniquidades deles. O Servo, o Renovo Justo, será o Rei deles, e o povo se 219

refugiará naquele de quem YHWH diz: "Tu és meu Filho; Eu hoje te gerei" (Sl 2.7).

5. O Espírito de YHWH repousará sobre esse Servo, esse Filho, e esse mesmo Espírito será derramado sobre todos após a exaltação do Servo à mão direita de Deus.

A questão urgente levantada por esse resumo dogmático é se o Servo e o Espírito pertencem à identidade única de YHWH ou se são agentes de Sua obra de criação e redenção. Se forem agentes ou intermediários, eles pertencem à hoste angelical, na melhor das hipóteses. É exatamente nesse ponto que a questão de como a Bíblia apresenta seu monoteísmo se torna mais premente e a conclusão dogmática insistida pelo Novo Testamento se torna mais necessária. Um conceito do que o monoteísmo deve ter implicado que não pode ser trazido à luz do testemunho das Escrituras; em vez disso, o que constitui o monoteísmo bíblico deve ser obtido a partir do testemunho das próprias Escrituras.

Respondemos à pergunta sobre o Servo e o Espírito voltando ao resumo narrativo de YHWH. Em termos simples, há coisas que pertencem somente a Deus e a nenhum outro. Essas coisas marcam de forma inequívoca a identidade de YHWH para nós. Richard Bauckham, que escreveu extensivamente sobre a questão da identidade divina e, particularmente, sobre a significativa cristologia do Novo Testamento, argumenta que, pelo menos, três características constituem o entendimento de Deus no judaísmo do segundo templo: Ele é o único criador de todas as coisas, Ele é o único governante de todas as coisas e, portanto, somente Ele recebe adoração exclusiva.23 O argumento de Bauckham segue uma narrativa semelhante à apresentada acima. Os judeus do Segundo Templo eram conscientemente monoteístas. Eles rezavam o Shema duas vezes por dia e estavam bem cientes de sua fidelidade exclusiva ao único Deus verdadeiro. Seu monoteísmo não era meramente intelectual, mas envolvia sua adoração exclusiva a Deus e sua obediência exclusiva a Ele. Bauckham escreve:

23

Bauckham, "God Crucified"1-17. Bauckham usa a qualificação de Judaísmo do Segundo Templo porque esse é o contexto histórico do Novo Testamento e sua cristologia, que é o tema de seu ensaio.

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Para a nossa pergunta: "Em que o judaísmo do Segundo Templo considerava que consistia a singularidade do Deus único, o que distinguia Deus como único de todas as outras realidades, incluindo os seres adorados como deuses pelos gentios?", a resposta dada, em uma ampla variedade de literatura judaica do Segundo Templo, é que o único Deus verdadeiro, YHWH, o Deus de Israel, é o único Criador de todas as coisas e o único Governante de todas as coisas.

Embora essas características não sejam, de forma alguma, suficientes para identificar Deus (já que não dizem nada, por exemplo, sobre sua bondade ou sua justiça), elas são as características que mais prontamente distinguem Deus de toda outra realidade. . . Essas maneiras de distinguir Deus como único formaram uma maneira muito facilmente inteligível de definir a singularidade do Deus que eles adoravam, que todo judeu em toda sinagoga no final do período do Segundo Templo certamente teria conhecido. Por mais diverso que o judaísmo possa ter sido em muitos outros aspectos, isso era comum: somente o Deus de Israel é digno de adoração porque ele é o único Criador de todas as coisas e o único Governante de todas as coisas. Outros seres que de outra forma poderiam ser considerados divinos são, por esses critérios, criaturas e súditos de Deus.24

Em nossa apresentação da narrativa de Deus, destacamos essas três características de Deus como criador, governante e aquele a quem somente a adoração é dada. O que não enfatizamos, entretanto, é que as Escrituras continuam o padrão de pluralidade dentro da identidade única de Deus ao descrever essas três marcas definidoras de identidade. É exatamente aqui que as Escrituras resolvem a questão acima sobre o Servo e o Espírito.

Primeiro, somente Deus é o criador. Irineu resume sucintamente o ensinamento das Escrituras sobre esse ponto: "Deus faz; o homem é

24

Bauckham, "God Crucified", p. 9. Cf. as notas de rodapé 8 e 9 de Bauckham para uma extensa lista de textos que se referem somente a Deus como criador e governante.

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feito."25 Deus não tinha nenhum ajudante, servo ou intermediário para auxiliá-Lo no ato da criação. Deus declara repetidamente que somente Ele estendeu os céus e esparramou a terra (Is 44.24; cf. Sl 115.15; 121.2; 124.8). No entanto, as Escrituras atribuem o único ato de criação a YHWH, Elohim, a Palavra de YHWH, o Espírito de Deus, a Sabedoria e o Pai. No primeiro capítulo de Gênesis, lemos que Deus criou, que Ele fez isso falando todas as coisas à existência, ou seja, por meio de Sua Palavra, e que o Espírito de Deus participou. Embora três pessoas estivessem envolvidas, as Escrituras rejeitam a ideia de três criações, uma pelo Orador, uma pela Palavra falada e uma pelo Espírito de Deus, falando apenas de uma única criação. Conforme as Escrituras, temos três envolvidos em um único ato de criação.

Quando a Escritura em outros lugares relata a atividade criativa de Deus, ela diz que a Palavra de YHWH e o Espírito ou Sopro de Deus criaram, às vezes com papéis distintos, outras vezes de forma intercambiável. O Salmo 33.6 diz: "Pela Palavra de YHWH foram feitos os céus, e pelo sopro [rûach] de sua boca todo o seu exército". O salmo continua dizendo que quando YHWH "falou" todas as coisas vieram a existir (Sl 33.8-9).26 A Palavra de YHWH fez os céus. Em outro lugar, as Escrituras declaram: "YHWH fez os céus" (Sl 96.5). Como visto nas teofanias acima, a Palavra de YHWH é YHWH, mas também é distinta de YHWH. Em Jeremias, lemos: "Veio a mim a Palavra de YHWH, dizendo: 'Antes que eu te formasse no ventre, eu te conheci'" (Jr 1.4-5).

Novamente, a Palavra de YHWH é a Palavra falada em Gênesis 1, a Palavra do Salmo 33, que fez os céus, a Palavra que criou Jeremias e que, de fato, o conhecia antes de criá-lo. A segunda metade do Salmo 33.6 é intrigante: o "sopro [rûach] de sua boca" é certamente uma referência ao Espírito de Deus e, de fato, pode ser traduzido facilmente como tal, tornando explícita a relação intertextual com o Espírito (rûach) de Deus em Gênesis 1. Se a frase "the breath of His mouth" (o sopro de Sua boca) for mantida, ela não indica nada além do que Eliú declara a Jó: "O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida" (Jó 33.4). O 25

Irineu, Against Heresies, 1.11.2 (ANF, 1, 474).

Cf. Sl 148.5 (LXX): "Que eles [ou seja, toda a criação] louvem o nome do Senhor (YHWH), pois Ele falou e eles foram feitos; Ele ordenou e eles foram criados."

26

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Espírito de Deus fez Eliú, o Espírito que é o sopro (nishmat) do TodoPoderoso.

As Escrituras atribuem a criação não apenas à Palavra de YHWH e ao Espírito de Deus, mas também à Sabedoria e ao Pai. Lemos, por exemplo, que Deus "estabeleceu o mundo com a sua sabedoria" (Jr 10.12; 51.15); que Ele fez todas as coisas "em sabedoria" (Sl 104.24); que "o Senhor fundou a terra com sabedoria" (Pv 3.19; 8.27-30).27 Malaquias pergunta: "Não temos todos um só Pai? Não foi um só Deus que nos criou?" (Ml 2.10). Embora a designação de Deus como Pai ocorra com menos frequência do que se poderia esperar, ela não é desconhecida no Antigo Testamento e quase sempre aparece no contexto da obra de Deus como criador. Em Isaías, lemos: "Mas agora, ó YHWH, tu és nosso Pai; nós somos o barro, e tu és o oleiro; todos nós somos obra das tuas mãos" (Is 64.8). Mais uma vez, Moisés canta: "Porventura, assim retribuis a YHWH, ó povo tolo e insensato? Não é ele vosso Pai, que vos criou, que vos fez e vos estabeleceu?" (Dt 32.6).

O que devemos fazer com as Escrituras que identificam o único criador dos céus e da terra como YHWH, Elohim, Palavra, Espírito, Sabedoria e Pai? A resposta deve ser que o entendimento bíblico do monoteísmo abrange tanto Is 44.24 ("Assim diz YHWH, teu Redentor, que te formou desde o ventre: Eu sou YHWH, que fiz todas as coisas, que sozinho estendi os céus, que esparramei a terra por mim mesmo") e Gn 1.1, Dt 32.6 e Sl 33.6. As Escrituras declaram que YHWH, por si mesmo, fez todas as coisas, estendeu os céus e nos criou desde o ventre.

De acordo com as Escrituras, entretanto, o mesmo pode ser dito do Pai, da Palavra/Sabedoria e do Espírito. Além disso, as Escrituras insistem que temos uma criação, não três, e que esses três criaram, não que tenham contribuído com uma parte aqui e outra ali. Sua obra de criação é uma. A única conclusão responsável, de acordo com as Escrituras, é confessar o 27

Cf. Athanasius Orations Against the Arians 2.31 em Athanasius, trans. Khaled Anatolios (Nova York: Routledge, 2004), 126: "E a frase, 'Deus disse', por si só implica 'na Palavra'; pois diz: 'Ele fez todas as coisas em Sabedoria' (Sl 104.24), e 'pela Palavra do Senhor os céus foram estabelecidos' (Sl 33.6) e 'um Senhor Jesus Cristo, por meio de quem todas as coisas são e por meio de quem nós existimos' (1 Co 8.6)."

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trabalho correlativo e coigual o Pai, da Palavra/Sabedoria e do Espírito, e localizar todos os três - igual e eternamente - dentro da identidade única de YHWH, nosso Elohim.

Embora alguns possam querer argumentar que não devemos distinguir entre Pai, Palavra e Espírito, mas permitir que sejam sinônimos, como expressões poéticas de YHWH, para permitir alguma versão do sabelianismo, as Escrituras rejeitam essa falsa conclusão. Como veremos no próximo capítulo, o Novo Testamento é particularmente sensível a esse tipo de interpretação errônea, enfatizando especialmente a unidade e a distinção eterna do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Antigo Testamento, à sua maneira, faz algo bastante semelhante. Na seção anterior, vimos a distinção e a inseparabilidade de YHWH e o Anjo, Glória, Nome e Palavra de YHWH. A mesma ênfase aparece na criação.

Gênesis 1.1 indica três criadores: o Orador, a Palavra e o Espírito. Se identificarmos o Pai com o Orador, seguindo o padrão do Novo Testamento, então temos em Gênesis uma tentativa de distinguir o Pai de Sua Palavra e de Seu Espírito e, ainda assim, enfatizar a unidade deles no ato da criação.28 Novamente, temos uma criação, não três. A linguagem usada para descrever os três com relação à criação destaca sua interdependência e intimidade uns com os outros. Por exemplo, você não pode ser um Orador sem uma Palavra e você não pode ser uma Palavra sem um Orador, ou seja, que aquele que fala nunca está separado da Palavra que ele fala. Seu relacionamento eterno exige tanto distinção quanto inseparabilidade. Além disso, o Orador que profere Sua Palavra o faz pelo "sopro de sua boca", e chamamos isso de Sua voz. Quando as Escrituras declaram: "A voz de YHWH está sobre as águas" (Sl 29.3), os fiéis se lembram do Espírito de Deus, que enigmaticamente se movia sobre a face das águas (Gn 1.1). Uma linguagem semelhante aparece no Sl 33.6: "Pela palavra de YHWH foram feitos os céus, e pelo sopro/espírito de sua boca todo o seu exército". Novamente, em um nível muito básico, entendemos que nossas palavras são expressas pela passagem da respiração, do ar, sobre nossas cordas vocais. Onde não há 28

Cf. Augustine The City of God XI.24 (WSA I/7, 24-25): "Pois o Pai do Verbo é entendido como aquele que disse: 'Faça-se'. E o que foi feito quando ele disse isso foi, sem dúvida, feito por sua Palavra".

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respiração, não pode haver palavras. Os dois são necessariamente dependentes um do outro e, no entanto, por essa mesma necessidade, são distintos um do outro. O Espírito de Sua boca, a boca da Palavra de YHWH, transmite a mesma intimidade que o Orador e Sua Palavra de Gn 1.1 e ressalta ainda mais para nós o trabalho inseparável de Orador/Pai, Palavra/Filho e Voz/Espírito. Tudo isso destaca o ponto crucial mencionado acima: Pai, Palavra e Espírito são intrínsecos à identidade, realidade, ser e essência de YHWH, de acordo com as Escrituras. Uma leitura fiel e cuidadosa das Escrituras exige a confissão de que YHWH é Triúno: Ele é Pai, Verbo e Espírito, três que são um, coigual e coeterno, inseparavelmente unidos e, ainda assim, eternamente distintos.

Segundo, Deus é o governante. Assim como as Escrituras declaram que somente Deus criou todas as coisas, elas também enfatizam que somente Ele governa todas as coisas. Ele governa toda a criação (Jó 26, 28; Sl 148) e tudo que nela existe (Sl 139), para todo o sempre: "YHWH reinará para todo o sempre" (Êx 15.18; Sl 146.10); "YHWH é rei para todo o sempre" (Sl 10.16); "YHWH está entronizado como rei para todo o sempre" (Sl 29.10); "Teu trono, ó Deus, é para todo o sempre" (Sl 45.6). O reino de YHWH é um reino eterno (Sl 145.13); Seu domínio é um domínio eterno (Dn 4.34). Isso é dito sobre o Filho do Homem: "o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino, um reino que não será destruído" (Dn 7.14). O domínio eterno e o reino eterno serão estabelecidos pelo "Deus do céu" e realizados pela "pedra" cortada sem mão humana, que, como observado acima, é a maneira de Daniel designar o Messias, o Ramo Justo sobre o qual repousa o Espírito de YHWH (Is 11.1-20), aquele nascido da Virgem chamado Emanuel (Is 7.14). Esse Filho do Homem corresponde ao Filho unigênito do Salmo 2.

YHWH o chama de "meu Rei" e "meu Filho", que possui os confins da Terra e em quem todos os que se refugiam são abençoados (Sl 2.6-8, 12).

O Novo Testamento esclarece essa distinção e unidade para nós. O reino e o governo em questão são "de nosso Senhor e do seu Cristo", e serão eternos (Ap 11.15; 12.10). Novamente, "o Senhor Deus lhe dará [Jesus, o Filho do Altíssimo, aquele que nasceu da Virgem] o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reino não terá fim" (Lc 1.32-33).

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As Escrituras tomam cuidado especial para distinguir entre Deus como único governante e os vários intermediários angélicos usados por Deus para executar Seu governo. Eles governam em Seu nome, em Seu benefício, e não por seu próprio poder. Esses anjos são servos de Deus que executam Seu governo do mundo (Dn 10.20; Ap 7.2-3; 15.1; 16.1).29 Richard Bauckham mostra como as Escrituras tornam óbvia essa distinção entre Deus e Seus servos angélicos, recorrendo repetidamente à metáfora da altura e à postura dos servos em relação a Deus.30 Por exemplo, somente Deus está assentado em Seu trono, muito acima dos habitantes da terra (Sl 33.13-14), alto e elevado (Is 6.1). Mais uma vez, Isaías registra: "Porque assim diz o Alto e o Excelso, que habita a eternidade, cujo nome é Santo: 'Eu habito no alto e santo lugar'" (Is 57.15 KJA). Somente Deus está sentado no trono; Seus anjos assistentes estão diante Dele. Daniel escreve: "Milhares de milhares o serviam, e dez mil vezes dez mil estavam diante dele" (Dn 7.10). Da mesma forma, Gabriel se identifica dessa maneira para Zacarias: "Eu sou Gabriel, que está na presença de Deus, e fui enviado para falar com você e trazer estas boas novas" (Lc 1.18). João relata: "Então vi os sete anjos que estavam diante de Deus, e sete trombetas foram dadas a eles" (Ap 8.3).

Terceiro, somente Deus é adorado. Aqueles que estão diante de Deus, que está sentado em Seu trono, alto e elevado, servem em Seu nome. A confissão de Deus como criador e governante implicava ainda a prática de adorar somente a Deus: "Eu sou YHWH, este é o meu nome; a minha glória não dou a nenhum outro, nem o meu louvor aos ídolos esculpidos" (Is 42.8). Os anjos que servem a Deus, por mais exaltados que sejam, nunca se sentam com Deus, mas sempre estão diante Dele e rejeitam explicitamente qualquer adoração que lhes seja prestada.

Bauckham oferece vários exemplos de obras pseudepigráficas e apócrifas do Segundo Templo para mostrar isso.31 No entanto, a mesma prática é 29

Cf. Preface to the Prophet Daniel, 1530 (AE 35:305; WADB 11/2:30.11-14): "Daniel escreve algo especial sobre os anjos, algo que não encontramos em nenhum outro lugar das Escrituras, a saber, que os anjos bons lutam contra os anjos maus em defesa dos homens".

30 Bauckham, "God Crucified", 10, 35-36.

31 Bauckham, "God Crucified" (Deus Crucificado), 15.

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vista em Apocalipse. Por duas vezes João cai diante do anjo e é veementemente instruído a se levantar: "Então me prostrei a seus pés para adorá-lo, mas ele me disse: 'Não faça isso! Eu sou companheiro de serviço de vocês e de seus irmãos que mantêm o testemunho de Jesus. Adore a Deus" (Ap 19.9-10; Ap 22.8-9). Os profetas e apóstolos agem de maneira semelhante (Dn 2.46 KJV; Atos 10.26). O fato de os anjos nunca hesitarem em impedir que outras criaturas os adorem resolve parte da ambiguidade encontrada nas teofanias discutidas acima. Quando Josué e Ezequiel se prostram para adorar aquele que tem a aparência de um Homem, o Comandante do exército de YHWH, a Glória de YHWH, aquele que se senta no trono e se aproxima, eles não são repreendidos e nem lhes é dito para ficarem de pé porque estão na presença de YHWH. CONCLUSÃO

O Antigo Testamento apresenta Deus como o único criador e governante do mundo, o único que se senta em Seu trono e o único a quem pertence a adoração. Essa identidade única de Deus como criador dos céus e da Terra inclui Pai, Palavra/Sabedoria e Espírito. Esses três elementos são intrínsecos à identidade única de YHWH. Quando perguntamos quem é Deus de acordo com o Antigo Testamento, nossa resposta deve ser: Deus "é" aquele que criou todas as coisas, governa todas as coisas, senta-se em Seu trono e é o único que recebe adoração.

Esse Deus é aquele que falou no princípio; esse Deus é a Palavra falada que criou todas as coisas, a Palavra de YHWH; esse Deus é o Espírito de Deus presente no princípio com aquele que falou e a Palavra falada, o Espírito de Sua boca, a voz sobre as águas. Esse Deus, que é indivisivelmente um, também é irredutivelmente três. Esse é o único Deus que disse: "Façamos o homem à nossa imagem" (Gn 1.26).

No centro da identidade Triúna de YHWH está Sua promessa de redimir Seu povo de seus pecados. Ele será traspassado por eles e será tabernáculo com eles para sempre. Aquele que realiza essa salvação, essa expiação, é tanto YHWH quanto enviado por YHWH. O enviado, que é YHWH, nossa Justiça, é aquele sobre quem repousa o Espírito de YHWH. As Escrituras não se cansam de atribuir vários nomes a esse Salvador prometido. Além de ser o Anjo, a Glória, o Nome, a Palavra e o 227

Elohim de Israel, Ele também é Adonai (Sl 110.1), Elohim (Sl 45.6; Is 35.4), YHWH (Jr 23.6; 33.14; Os 1.7), YHWH Saboath (Is 44.6; Zc 12.5), o Filho de Deus (Sl 2.7; Pv 30.4; Is 9.6), o Filho do Homem (Dn 7.13), o Senhor e filho de Davi (Sl 110.10; Mt 22.42-45). Ele é Shiloh (Gn 49.10 KJV), o Comandante do Exército de YHWH (Js 5.14), Maravilhoso (Jz 13.18; Is 9.6), a Rocha (Is 30.29), a Pedra Angular (Sl 118.22), nosso Refúgio (Sl 46.1) e Esconderijo (Sl 32.7), nossa Fortaleza (Sl 91.2; Sl 18.2), nosso Escudo (Sl 3.3; 18.30) e Força (Sl 22.19). Ele é Rei (Sl 2.6; Is 6.5) e Pastor (Ez 34.23-24). Ele é Cristo (Sl 2.2; Dn 9.26), o Santo (Sl 71.22; Is 40.25; 43.3; 48.17) e o Salvador de todos (Is 45.15).

As Escrituras não apenas colocam este Cristo na identidade única de YHWH, mas também especificam, de forma crucial, como esse nascido da Virgem será conhecido. Para que não surja nenhuma ambiguidade, as Escrituras indicam explicitamente as coisas que esse único e verdadeiro Salvador fará. Ele será elevado e exaltado, o Espírito de YHWH repousará sobre Ele, e Ele trará boas novas aos pobres, curará os quebrantados de coração, proclamará liberdade aos cativos e consolará todos os que choram (Is 61.1-2). Ele abrirá os olhos dos cegos, desobstruirá os ouvidos dos surdos e soltará a corda dos mudos (Is 35.46). Ele entrará triunfante em Jerusalém (Zc 9.9), será ferido por nossas transgressões e esmagado por nossas iniquidades (Is 53.11), expiará os pecados e introduzirá a justiça eterna (Dn 9.24, 26), trazendo justificação (Is 53.11), paz eterna (Mq 5.2-5) e salvação para todos (Is 55-56). Ele é o Redentor que vive e que ressuscitará os mortos (Jó 19.25). Todos os povos da Terra devem servi-Lo (Sl 2.11; 72.11; Dn 7.14), confiar Nele (Sl 2.12; Is 28.16), temê-Lo (Sl 2.11), esperar Nele (Is 11.10; 14.32), adorá-Lo e invocá-Lo (Sl 22.27; 45.11; 72.11; 97.7). O Novo Testamento esclarece de forma crucial tudo isso que Deus tinha predito por meio dos patriarcas e profetas. Ele faz isso em termos de Jesus Cristo. A cristologia sempre ocupa o centro de nosso pensamento trinitário, porque é somente por meio de Cristo, pelo Espírito, que uma compreensão correta da identidade Triúna de YHWH é conhecida, confessada e adorada.

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CONTEÚDO

8 PAI E FILHO: A LINGUAGEM COMUM DO NOVO TESTAMENTO Os autores do Novo Testamento destacam a identidade divina de Jesus por meio de uma exegese detalhada e cuidadosa do Antigo Testamento.

Eles atribuem a Ele o nome divino e as características exclusivas de YHWH destacadas no capítulo anterior. Ao fazer isso, os escritores do Novo Testamento identificam e estabelecem para nós a identidade normativa de Deus. A ambiguidade presente no Antigo Testamento para nomear o YHWH visível e invisível - a pluralidade dentro da identidade única de YHWH, conforme observado na distinção entre YHWH e o Anjo, Nome, Glória ou Palavra de YHWH, que é YHWH e distinto de YHWH, ou entre o Homem, o Servo, o Justo, que é YHWH e distinto de YHWH - torna-se inteligível, à luz Novo Testamento, como a distinção e a inseparabilidade do Pai e do Filho. Eles são Deus de forma coeternas e coiguais, mas também eternamente distintos como Pai e Filho. De acordo com o Novo Testamento, esses nomes são os termos próprios e estão no centro da identidade ontológica de Deus. Além disso, esse relacionamento é conhecido e confessado por nós por meio do Espírito Santo enviado pelo Pai e pelo Filho. O Espírito nos aponta para o Filho, expressando Suas palavras para nós, ancorando-nos em Sua obra salvadora, e é conhecendo a obra salvadora do Filho, sendo revestidos de Sua justiça, que conhecemos o Pai e O invocamos como nosso Pai. A pessoa no centro dessa identidade, conhecimento e adoração apropriados do Deus Triúno é Jesus Cristo, o Filho de Deus. A Trindade começa com Cristo. Esses dois pontos, a identidade normativa de Deus e Cristo no centro, estão no cerne do testemunho do Novo Testamento.

Eles não são uma extrapolação teológica pertencente à reflexão dogmática da igreja, mas são básicos para a apresentação na Escritura da identidade do único e verdadeiro Deus de Israel. O Novo Testamento estabelece esses pontos mutuamente informativos de duas maneiras distintas: por 229

meio de narrativas históricas e em seções dogmáticas mais substanciais.

Embora eu tenha separado essas duas apresentações em meus capítulos, a distinção é artificial: o Novo Testamento as apresenta lado a lado. No entanto, com muita frequência, os teólogos gravitam em torno das seções dogmáticas mais robustas e ignoram a apresentação mais comum e básica de Sua identidade divina no Novo Testamento. Ambas são importantes; ambas modelam o discurso dos fiéis para falar sobre o Deus Triúno que eles adoram e glorificam.

De acordo com o Novo Testamento, o Pai é conhecido e adorado por meio do Filho no Espírito (Ef 2.18), e isso sempre no contexto da salvação realizada por Cristo. Aqui vemos o padrão de palavras sonoras usadas no discurso cristão sobre a obra salvadora da Trindade e a descrição normativa de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo. Refiro-me a isso como a linguagem comum da fé comum, por um lado, porque é tão predominante em todo o Novo Testamento, mas também porque é intensamente utilizado pelo escritor do Novo Testamento sem explicação.

Tanto Paulo quanto os quatro evangelistas nos ensinam essa linguagem comum da fé. A seguir, demonstrarei isso através das saudações e as bênçãos finais de Paulo. Quando ele reflete sobre a salvação que recebemos de Deus, a unidade que temos em Deus ou a estrutura da vida cristã, ele o faz com uma gramática ou padrão de discurso trinitário.

Embora possa parecer estranho analisar a apresentação de Paulo dessa maneira, ela representa para nós a maneira mais básica pela qual os fiéis falam sobre a Trindade de acordo com as Escrituras. Não há nenhuma reflexão teológica extensa sobre as implicações dessa linguagem sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, nenhuma consideração sobre a vida imanente e econômica da Trindade, muito menos qualquer urgência em justificar essa confissão com a fé no único Deus de Israel. Há simplesmente a linguagem exuberante da fé moldada profundamente pelas Escrituras.

Depois de estabelecer a nomeação revelada de Deus, os escritores do Novo Testamento mostram a ação correlativa do Pai e do Filho nos atos que pertencem exclusivamente a Deus. As Escrituras deixam claro que somente Deus cria e governa os céus e a terra, que Ele dá vida e 230

perdoa pecados e que, portanto, Ele e nenhum outro deve ser adorado e glorificado. Todas essas afirmações sobre YHWH no Antigo Testamento são ditas sobre Jesus no Novo Testamento. Os escritores do Novo Testamento chamam Jesus de Senhor, Deus e Salvador, todos títulos que, de acordo com as Escrituras, pertencem somente a YHWH. Eles não hesitam em citar textos do Antigo Testamento sobre YHWH e usá-los para se referir a Jesus. Ele é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Jesus é YHWH no mesmo sentido em que o Pai é YHWH. Ambos criam e ambos redimem, mas há apenas uma criação e uma redenção. Ambos recebem adoração, pois ambos ocupam o trono divino que pertence exclusiva e unicamente ao único Deus verdadeiro. Além disso, e essa talvez seja a parte mais significativa do testemunho do Novo Testamento sobre a identidade de Deus, Pai e Filho estão envolvidos um com o outro. Embora eternamente distintos em quem são como Pai e Filho, Eles são ao mesmo tempo um em quem são como Deus. Como dizem as Escrituras, o Pai está no Filho e o Filho está no Pai, mas o Pai não é o Filho e o Filho não é o Pai. Cada um é intrínseco à identidade do outro e, portanto, à realidade ontológica de Deus.

As características divinas descritas acima são enfatizadas especialmente nos textos da dogmática discutidos no próximo capítulo.

De forma sutil, elas também são encontradas na apresentação histórica dos Evangelhos. Assim como as saudações aparentemente insignificantes e as bênçãos finais de Paulo produzem um rico insight trinitário, as narrativas altamente estruturadas dos Evangelhos fornecem insights semelhantes em lugares inesperados. Os escritores dos Evangelhos perseguem, quase incansavelmente, a questão da identidade de Jesus.

Vemos isso nas perguntas dos discípulos, das multidões e dos oponentes de Jesus. É dessa forma, por meio da narrativa histórica da vida e da obra de Jesus, especialmente em Sua interação com as outras pessoas, que os Evangelhos apresentam Sua identidade como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Senhor e filho de Davi. Os Evangelhos também destacam a continuidade das palavras e ações de Jesus com o Antigo Testamento. Para compreender plenamente o que Jesus está dizendo sobre Si mesmo ou o que Ele quer dizer com as coisas que faz, o leitor deve sempre ter em mente o testemunho do Antigo Testamento. Os 231

escritores do Novo Testamento localizam Jesus explicitamente e sem hesitação na identidade bíblica de YHWH, atribuindo a Ele o nome divino ou substituindo Seu nome por YHWH nos textos do Antigo Testamento usados no Novo Testamento. O que deve ficar claro em nossa leitura do Novo Testamento é que os apóstolos, guiados pelo Espírito Santo, estavam bem cientes do que estavam confessando sobre o Filho.

A GRAMÁTICA TRINITÁRIA DE PAULO

Embora as saudações epistolares e as doxologias finais de Paulo possam parecer um recurso inesperado para a teologia trinitária, elas contribuem significativamente para o trabalho teológico formal das epístolas de Paulo e, para nossos propósitos, para a linguagem comum da fé, conforme expressa na saudação, bênção e oração cristãs. Paulo não demonstra interesse em esclarecer sua linguagem utilizada nessas seções; o restante da carta faz isso por ele. Essas seções refletem a linguagem da fé e da oração, a maneira adequada de falar o padrão sadio de palavras referentes ao Deus Triúno que adoramos. Algo semelhante a essa maneira de descrever aparece em outras partes das cartas de Paulo quando ele reflete, de forma um tanto resumida, sobre a obra salvadora de Deus em nosso favor e como esta obra molda a vida cristã. A seguir, examinaremos exemplos dessas partes das cartas de Paulo para ver o padrão de palavras apropriadas ao confessar a identidade eterna da Trindade.

As saudações de Paulo confessam a identidade trina de Deus e descreve como a própria identidade e autoridade de Paulo estão ligadas a quem é Deus. Paulo se apresenta no contexto do Deus que o separou, que o chamou e que o redimiu. Entretanto, o que chama nossa atenção, é a flexibilidade com que Paulo faz isso. Por exemplo, ele pode se designar como um servo de Cristo Jesus (δοῦλ Χριστοῦ Ιησοῦ, Rm 1.1), ou um servo de Deus Pai (δοῦλος ϕεοῦ, Tt 1.1). A correlação de Paulo entre Jesus e o Pai só faz sentido se ambos forem Deus. Se não forem, então sua declaração beira a blasfêmia. Ele estaria dizendo que serve tanto àquele que é o verdadeiro Deus quanto àquele que não é o verdadeiro Deus. Você não pode servir a Deus e àquilo que não é Deus sem comprometer a fidelidade de seu serviço a Deus: "Vocês não podem servir a Deus e a Mamom" (Mt 6.24 KJA). Paulo serve tanto ao Pai quanto a 232

Jesus. Tiago faz a mesma observação, mas com mais clareza, no início de sua carta: "Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo" (Ἰάκωϐος θεοῦ καὶ κυρίου Ἰησῦ Χριστοῦς, Tg 1/1). A maneira mais precisa de Tiago colocar isso é certamente o que Paulo quer dizer.

A identidade de Paulo está ligada à identidade de Jesus e do Pai. Para conhecer Paulo, é necessário conhecer aquele a quem ele serve. Ele foi separado pela vontade de Deus, o Pai (Rm 1.1; 1Co 1.1; 2Co 1.1; Cl 1.1; 1Tm 1.1), que prometeu, por meio dos profetas, enviar Seu Filho (Rm 1.2-3; Tt 1.2-3). Aqui temos nossa primeira indicação da centralidade do relacionamento entre o Pai e o Filho para a realidade ontológica de Deus, um ponto enfatizado de forma tão consistente em todo Novo Testamento. Paulo sempre coloca o Pai em relação a Seu Filho. Como Atanásio ensinou à igreja, os nomes exigem isso. Não se pode ser Pai sem Filho e, portanto, dizer Filho sempre envolve Pai. E ainda há mais do que isso. Deus, o Pai, não é conhecido nem nomeado como Pai sem Jesus Cristo, o Filho encarnado. Não existe uma realidade chamada "Deus" além do Pai e de Seu Filho.

Esse Filho é Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 1.4; 1Co 1.2) e nosso Salvador (Tt 1.4; 2Tm 1.10). E, no entanto, Paulo também pode confessar que Deus, o Pai, é nosso Salvador (1Tm 1.1; Ti 1.3). A salvação que recebemos do Pai é, obviamente, a mesma que foi realizada pelo Filho. A linguagem que Paulo destaca para nós é a obra conjunta do Pai e do Filho para nossa salvação. Embora menos clara, ele também confessa a obra do Espírito Santo para nossa salvação. Na saudação de Romanos, Paulo se refere ao Espírito como o Espírito de santidade (πνεῦμα ἁγιωσύνης, Rm 1.4; cf. Rm 15.16). E ainda na saudação de 1 Coríntios, os santos são santificados, tornados santos, em Cristo Jesus (1Co 1.2; cf. Hb 10.10-14), que é tanto a nossa justiça quanto a nossa santidade (δικαιοσύνη τε και ἁλιασμὸς, 1 Co 1.30). Esses santos são santificados em Cristo ao invocar o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, reconhecendo-o como seu Senhor (1Co 1.2). Embora não seja dito na saudação, Paulo enfatiza mais adiante na carta que essa é a obra do Espírito Santo: "Ninguém pode dizer 'Jesus é o Senhor' a não ser através do Espírito Santo" (1Co 12.3). A santificação ou santidade dos santos em Cristo é a obra do Espírito de santidade (cf.

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1Co 6.11). A salvação prometida pelo Pai e realizada pelo Filho torna-se nossa por meio da ação do Espírito Santo, que nos leva a Cristo, que, por sua vez, nos reconcilia com o Pai. Nossa salvação é a obra da Trindade.

O argumento mais frequente de Paulo é que a graça e a paz vêm de Deus, o Pai, e do Senhor Jesus Cristo (Rm 1.7; 1Co 1.3; 2Co 1.2; Gl 1.3; Ef 1.2); Fp 1.2; Cl 1.2; 2Ts 1.2; 1Tm 1.1; 2Tm 1.2; Tt 1.4; Fm 3). A graça e a paz vêm a nós da união do Pai e do Filho. Em outras palavras, sem o Pai ou o Filho não há graça e paz. A graça e a paz do Pai são a graça e a paz do Filho. Não recebemos uma graça e uma paz do Pai e outra do Filho, assim como chamar o Pai de Salvador e o Filho de Salvador não indica duas salvações. A única preposição de Paulo (ἀπὸ) rege os dois substantivos e indica para nós a obra correlativa de redenção pelo Pai e pelo Filho. Ambos são a fonte de nossa salvação. Da mesma forma, em sua doxologia no final de Romanos, Paulo ora "ao único Deus sábio seja dada glória para sempre por Jesus Cristo! Amém" (διὰ Ἰησοῦ Χριστου, Rm 16.27). Nós glorificamos o Pai somente por meio de Jesus Cristo (cf.

Fp 2.11). Sem Cristo, não há como glorificar o Pai, pois sem Cristo não há graça, paz ou salvação. No centro de nossa vida de fé está o Filho, o enviado do Pai conforme predito pelos profetas, que se entregou por nossos pecados (Gl 1.4), que ressuscitou dos mortos (Rm 1.4) e cujo nome invocamos pelo poder do Espírito para nossa salvação (1Co 1.2).

Quando Paulo qualifica a glória do Pai como apropriadamente dada somente "por meio" do Filho, ele nos afasta de nós mesmos e nos leva à vida e à obra de Deus. Não podemos glorificar o Pai da maneira que quisermos e de qualquer forma que possa agradar a nós ou às pessoas ao nosso redor. Nós O glorificamos corretamente somente por meio do Filho. Assim também, de acordo com Paulo, só podemos nos encontrar em Cristo por meio do Espírito Santo. São aqueles que através do Seu nome e nenhum outro os que recebem a salvação realizada em Cristo e os que são santificados Nele pelo Espírito de santidade. Paulo enfatiza o mesmo padrão de discurso para nossa vida cristã. Nós amamos os outros não com um amor abstrato a partir de nossas expectativas culturais de nossos dias. Nós amamos nosso próximo corretamente “em Cristo Jesus"(ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ, 1Co 16.24). Amamos nosso próximo 234

corretamente quando amamos independentemente de nós mesmos e de acordo com o amor de Deus em Cristo Jesus, que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo (Rm 5.5). Assim como Paulo direciona o seu leitor para a Trindade a fim de conhecê-la, ele também nos afasta de nós mesmos para conhecer a Deus e servir ao próximo. Em ambos os casos, Cristo Jesus ocupa o centro, o pivô ou a articulação desse conhecimento e atos corretos. Podemos glorificar o Pai somente por meio do Filho, porque somente no Filho podemos conhecer corretamente a glória do Pai conforme Ele a revelou. Da mesma forma, podemos amar uns aos outros somente em Cristo, pois somente Nele somos libertados da lei para servir e amar livremente os outros. Portanto, a comunhão que existe entre os fiéis, tanto em sua adoração quanto em seu serviço ao próximo, está sempre ancorada em Cristo. Paulo expressa isso em sua doxologia no final de 2 Coríntios: "A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todas vós” (2Co 13.14).

Outra doxologia que oferece uma impressionante confissão da identidade de Cristo é encontrada no final de 2 Tessalonicenses. Paulo escreve: "Ora, o próprio Senhor da paz lhes dê paz em todos os momentos e de todas as maneiras. O Senhor esteja com todos vocês ... A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vocês" (2Ts 3.16,18).

Como visto nas saudações, Paulo frequentemente designa Jesus como Senhor (kyrios), que é sua maneira preferida de atribuir o nome divino, YHWH, a Jesus.1 Quando Paulo confessa que Jesus Cristo é nosso Senhor, ele está de forma precisa atribuindo a Ele o nome divino e colocando-O dentro da identidade única de YHWH. Na bênção no final de 2 Tessalonicenses, há uma certa ambiguidade. Embora Paulo designe claramente Jesus Cristo como Senhor (kyrios) no versículo 18, é menos claro a quem ele se refere como Senhor no versículo 16. O primeiro uso que Paulo faz de Senhor no versículo 16 parafraseia a bênção Araônica.2 1

Larry Hurtado, Lord Jesus Christ: Devotion to Jesus in Earliest Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 2003), p. 112. Discutiremos esse ponto mais detalhadamente no próximo capítulo.

2 Cf. Martinho Lutero, Der Sagen (Nm 6:22-27), 1532 (WA 30/3:574-82). Para uma discussão sobre o sermão de Lutero, veja Nathan MacDonald, "A Trinitarian Palimpsest: Luther's Reading of the Priestly Blessing (Numbers 6.24- 26)", Pro 235

No Antigo Testamento, lemos, O Senhor disse a Moisés: — Fale com Arão e com os seus filhos, dizendo que abençoem os filhos de Israel do seguinte modo: “O Senhor os abençoe e os guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre vocês e tenha misericórdia de vocês; o Senhor sobre vocês levante o seu rosto e lhes dê a paz.”

— Assim, os sacerdotes colocarão o meu nome sobre os filhos de Israel, e eu os abençoarei. (Nm 6.22-27) A paz vem de YHWH. Os escritores do Novo Testamento sempre associam Pai e Filho ao falar sobre paz. Já vimos isso acima nas saudações de Paulo. Tanto Pedro quanto João fazem algo semelhante.

Pedro escreve: "Que a graça e a paz se multipliquem para vocês no conhecimento de Deus e de Jesus, nosso Senhor" (2Pe 1.2). Como Paulo, Pedro aqui designa o Pai simplesmente como Deus. João escreve de forma mais completa: "Graça, misericórdia e paz sejam conosco, da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, o Filho do Pai, em verdade e amor" (2Jo 1.3). Com tudo isso em mente, Paulo ou encerra sua carta elogiando a paz e a graça do Pai e do Filho ou está se referindo a Jesus em ambos os casos.3 Qualquer uma das opções é reveladora. Se o Pai (v. 16) e o Filho (v. 18) estão em mente, então é significativo que Paulo termine designando ambos como Senhor, e ainda assim distintos como Pai e Filho. Se Jesus estiver em mente em ambas as referências (vv. 16 e 18), então Paulo está claramente localizando Jesus na identidade única de YHWH, algo que o vemos fazer em outras partes de suas cartas. Qualquer uma das opções nos leva a conclusões trinitárias significativas. É recorrente nas cartas de Paulo o padrão do discurso trinitário empregado por ele em suas saudações e doxologias. Novamente, estamos Ecclesia 11:3 (2012): 299-313.

3 A maioria dos estudiosos acha que ambas as referências são a Jesus. Abraham Malherbe, The Letters to the Thessalonians (Nova York: Doubleday, 2000), 461.

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aqui interessados nas seções de suas cartas que oferecem confissões aparentemente incidentais da identidade trina de Deus no contexto de algum outro ponto que Paulo pretende estabelecer. Observar o padrão do discurso de Paulo em tais lugares nos permite ver a linguagem normativa da fé e como a Trindade transmite todos os artigos da fé. Por exemplo, em Romanos 5, a inteligibilidade da obra reconciliadora de Deus por nós exige a confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Depois de Paulo ter explicado minuciosamente a justificação que temos somente em Cristo, ele se volta, na primeira parte deste capítulo, para o resultado dessa justificação. Paulo escreve: "Portanto, uma vez que fomos justificados pela fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.1). A justificação que temos pela fé em Jesus Cristo, que é o Senhor, significa que temos paz com Deus, o Pai. Permanecemos nessa graça e nos regozijamos, sabendo que essa alegria envolve sofrimento, porque "o amor de Deus foi derramado em nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5.5). Mais uma vez, vemos a centralidade da ação de Cristo na vida dos fiéis. Aqueles que estão em Cristo, revestidos de Sua justiça, têm paz com o Pai e, por meio de Cristo, regozijam-se como pessoas de fé, apesar das dificuldades inerentes a essa fé, por causa do dom do Espírito Santo. Podemos resumir essa obra de salvação da seguinte forma: a paz e o amor do Pai são nossos por meio de Cristo e em Cristo pelo Espírito Santo. Paulo não dá muitos detalhes para esclarecer essa linguagem e a possível incongruência de confessar a obra única de salvação realizada pelo Pai, Filho e Espírito Santo.

Um exemplo muito semelhante da obra salvadora da Trindade e da linguagem comum dos fiéis para transmitir isso aparece na carta de Paulo a Tito. Observamos acima que Paulo nomeia tanto o Pai como Salvador quanto o Filho como Salvador no início de sua carta a Tito (1.34). No grego, essa dupla confissão do Pai e do Filho como ambos sendo os Salvadores aparece na mesma frase. Paulo enfatiza esse ponto em toda a sua carta. No segundo capítulo, Paulo menciona a doutrina de "Deus, nosso Salvador" (Tt 2.10) e, na frase seguinte, refere-se a Jesus Cristo como "nosso grande Deus e Salvador" que se entregou para nossa redenção (Tt 2.13-14). Por fim, Paulo encerra a carta com um resumo de uma frase sobre a obra salvadora de Deus para nós: 237

Mas quando se manifestou a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor por todos, ele nos salvou, não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo a sua misericórdia. Ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. (Tt 3.4-7)

Pela terceira vez, Paulo identifica tanto Deus Pai quanto Deus Filho como Salvador. Nessa frase final resumida, Paulo reúne os temas centrais de suas epístolas mais longas aos Romanos e Gálatas. A salvação que temos do Pai não deriva de nossas obras, nem de nossa própria justiça, mas da justiça imputada de Jesus Cristo, nosso Salvador, e, portanto, pela graça. Recebemos essa salvação em Cristo por meio do lavar regenerador e da renovação do Espírito Santo. A salvação do Pai realizada pelo Filho é nossa pela graça por meio da obra do Espírito Santo em nosso batismo.

Tratar sobre salvação de acordo com as Escrituras requer que a pessoa confesse sua fé na obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A Trindade salva. Embora Paulo demonstre pouco interesse em esclarecer a linguagem que usa para Deus e a salvação que temos somente dEle, sua linguagem não é ocasional, mas normativa. De fato, no contexto mais amplo de sua carta a Tito, a confissão trinitária de Paulo sobre nossa salvação está no centro da sã doutrina. A ênfase da carta de Paulo a Tito, assim como a de suas cartas a Timóteo, diz respeito à doutrina sã ou saudável (Tt 1.9; 2.1; 1Tm 1.10; 6.3; 2Tm 4.3). O homem que deseja pregar e ensinar a Palavra de Deus ao povo de Deus deve "apegar-se firmemente à palavra fidedigna, tal como foi ensinada, para que possa instruir na sã doutrina e repreender os que a contradizem" (Tt 1.9).

Aqueles que ensinam falsas doutrinas não são da fé (Tt 1.13). Eles se afastaram da verdade e se contaminaram (Tt 1.15-16). Paulo exorta Tito a ensinar somente o que está de acordo com a sã doutrina (Tt 2.1). Ao ensinar a sã doutrina, demonstramos nossa boa fé e em tudo adornamos "a doutrina de Deus, nosso Salvador" (Ti 2.10). Doutrina e vida andam juntas. A doutrina da qual Paulo está tratando aqui diz respeito à salvação 238

que temos da Trindade e à vida que procede da salvação. Afastar-se dessa sã doutrina é afastar-se da verdade e contaminar-se.

Dada a ênfase na sã doutrina na carta de Paulo a Tito, o que pensar de sua correlação entre o Pai e o Filho como Salvador? Mais uma vez, não podemos nos ater a qualquer ideia que sugira licença poética ou linguagem descuidada. Essa conclusão se opõe ao próprio objetivo da carta de Paulo. A outra conclusão é que Paulo atribui tanto ao Pai quanto ao Filho a salvação reivindicada exclusivamente por YHWH no Antigo Testamento: "Eu, eu sou YHWH, e além de mim não há Salvador" (Is 43.11). O Deus de Israel é o Salvador (Is 45.15). Novamente, "Não há outro deus além de mim, Deus justo e Salvador; não há outro além de mim" (Is 45.21). Paulo não hesita em identificar Jesus como nosso Salvador e justiça, como algo que pertence exclusivamente a YHWH. Tampouco, devemos observar novamente que Paulo sente qualquer necessidade de esclarecer essa linguagem para Tito.

Embora a identificação que Paulo faz de Jesus com aquilo que pertence à identidade única de YHWH esteja clara em Tito, Paulo pode ser ainda mais explícito em outros lugares.4 Em Romanos 10, Paulo escreve: "Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor (kyrios) e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, você será salvo" (Rm 10.9). Paulo continua: "Pois a Escritura diz: 'Todo aquele que nele crê não será envergonhado'" (Rm 10.11). A referência de Paulo é a Is 28.16, que ele também usa em 9.33: "Eis que estou pondo em Sião uma pedra de tropeço e uma rocha de escândalo; e todo aquele que nele crer não será confundido". Jesus é a pedra de tropeço, a rocha de escândalo, colocada em Sião, e quem crer nEle não será envergonhado. Paulo relaciona esse texto de Isaías com Joel por meio do termo compartilhado "vergonha".5 No segundo capítulo de Joel, YHWH promete restaurar Seu 4

Além do exemplo a seguir, veja Rm 14.11; 1Co 1.31 e 2Co 10.17; 1Co 2.16; 1Co 10.26; e 2Tm 2.19. Para uma discussão sobre esses textos, veja David Capes, Old Testament Yahweh Texts in Paul's Christology (Tübingen: Mohr/Siebeck, 1992), pp. 115-49. Para uma lista mais longa, consulte Richard Bauckham, Jesus and the God of Israel (Grand Rapids: Eerdmans, 2008), 186-90, 219-21.

5 Paulo frequentemente faz esse movimento exegético (gezera shawa) ao interpretar o Antigo Testamento. Um exemplo clássico é Romanos 4. Paulo liga 239

povo e eles nunca mais serão envergonhados: "Vocês saberão que eu estou no meio de Israel, e que eu sou YHWH, o seu Elohim, e que não há outro. E o meu povo nunca mais será envergonhado"(Jl 2.27). Quando essa salvação de Israel vier a acontecer, YHWH derramará Seu Espírito sobre toda a carne (Jl 2.28), e "todo aquele que invocar o nome de YHWH [κύριος] será salvo" (Jl 2.32). Paulo cita esse texto em Romanos 10, mas muda a referência de YHWH para Jesus. Paulo escreve: "Pois não há distinção entre judeus e gregos; o mesmo Senhor é Senhor de todos, concedendo riquezas a todos os que o invocam. Pois todo aquele que invocar o nome do Senhor [τὸ ὄνομα κυρίου] será salvo" (Rm 10.12-13).

No contexto de Romanos 10, Jesus é o sujeito. Jesus é o Senhor de tudo, e todos que invocarem o Seu nome serão salvos. O nome que salva, de acordo com Joel, é YHWH, e esse YHWH, diz Paulo, é o homem Jesus.

Todos os que acreditam em Jesus evitarão a vergonha eterna e serão salvos. Ele é o Senhor de tudo; Ele é YHWH.6 Paulo nunca hesita em descrever sobre a salvação que temos somente de Deus ou sobre a vida cristã que se segue a essa salvação em termos trinitários. Suas cartas são totalmente trinitárias, e essa confissão trinitária encontra seu centro em Cristo crucificado. Quando Paulo aborda as divisões em Corinto, ele começa com a loucura da cruz. Cristo é o poder e a sabedoria de Deus. Embora seja uma pedra de tropeço para os judeus e uma loucura para os gregos, nós pregamos o Cristo crucificado (1Co 1.23-24). Paulo continua: "Decidi não saber nada entre vocês a não ser Jesus Cristo e este crucificado" (1Co 2.2). Aqueles que pregam o Cristo crucificado o fazem pelo poder do Espírito, e essa pregação produz uma fé que se fundamenta no poder de Deus, o Pai, e não na sabedoria do mundo (1Co 2.4-5). O homem natural zomba daqueles que pregam a crucificação do Senhor da Glória (1Co 2.8), mas os que têm fé confessam Gn 15.6 (Rm 4.3) e Sl 32.1-2 (Rm 4.8) por meio da palavra grega λογίζομαι. Essa ligação intertextual usa a Escritura para interpretar a Escritura. Essa abordagem exegética era especialmente popular entre os pais da igreja primitiva e, como pode ser visto aqui, é um insight exegético derivado das Escrituras.

6 Para uma discussão detalhada de Romanos 10, consulte C. Kavin Rowe, "Romans 10.13: What Is the Name of the Lord?" Horizons in Biblical Theology 22 (2000): 135-73.

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o Cristo crucificado. A resposta de Paulo às divisões em Corinto começa com a Trindade e Cristo crucificado. A resposta dos fiéis, conforme mostrado nas cartas de Paulo, é dizer: "Fui crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" (Gl 2.19-20). Aquele que vive em Cristo é o que foi adotado por Deus por meio do Espírito: "E, porque vocês são filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que faz clamarmos: 'Aba! Pai!" (Gl 4.6). Aqueles que vivem pelo Espírito (Gl 5.25) são os que nasceram de novo pela água e pelo Espírito, purificados pela lavagem da água com a Palavra (Ef 5.26).

Aqueles que se lembram de seu batismo confessam o Cristo crucificado pelo poder do Espírito Santo e clamam ao Pai que lhes foi dado a conhecer em Cristo. O batismo sempre está no centro da vida cristã e, se bem compreendido, cura todas as divisões. Aqui, no batismo, renascemos como filhos de Deus - não pela vontade do homem, mas de Deus (Jo 1.13). Enterrados no batismo com Cristo, unidos à Sua morte e ressurreição, somos libertados Nele do pecado, da morte e do diabo, da maldição da lei e de nós mesmos, para andar em novidade de vida de acordo com o Espírito (Rm 6-8; Cl 2.12-15). Como Paulo diz em outro lugar: "Vocês foram lavados, e justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus" (1Co 6.11). O Pai que nos escolheu em Cristo antes da fundação do mundo nos abençoou em Cristo (Ef 1.34), nos redimiu por meio do sangue de Cristo e perdoou nossos pecados (Ef 1.7; 4.32). Essa salvação nos é concedida pela graça, por meio da fé, independentemente das obras (Ef 2.8-9). Nós, que antes estávamos longe, fomos trazidos para perto pelo sangue de Cristo, que é a nossa paz e reconciliação com o Pai (Ef 2.13-16) e com todos os outros (Ef 4.32; 5.21; 1Ts 5.9-13). Somente por meio de Cristo temos acesso ao Pai no Espírito (Ef 2.18).

Paulo nunca procura justificar sua linguagem trinitária. Ele simplesmente a usa e assume as convicções compartilhadas por seus leitores. Além disso, ele saúda, abençoa, ora e fala sobre nossa salvação e vida cristã em termos trinitários. A linguagem comum da fé, profundamente moldada pelas Escrituras, não conhece outra forma.

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A IDENTIDADE DE CRISTO NOS EVANGELHOS ¿Quién es Jesús?

A forma mais básica pela qual a questão da identidade de Jesus surge nos Evangelhos é com a expectativa geral do Messias prometido, aquele que está vindo, e se Jesus é esse Messias. João Batista, expressando as preocupações de muitos, envia mensageiros a Jesus, perguntando: "És tu aquele que há de vir, ou havemos de esperar outro?" (Mt 11.3). A mulher samaritana confessa: "Eu sei que o Messias está chegando (aquele que é chamado de Cristo). Quando ele vier, nos dirá todas as coisas" (Jo 4.25). Outros que estavam procurando o Messias se alegram com o fato de Ele ter vindo. André, ao encontrar seu irmão Simão Pedro, diz: "Encontramos o Messias" (Jo 1.41). Da mesma forma, Filipe encontra Natanael e lhe diz: "Encontramos aquele de quem Moisés, na Lei, e os profetas escreveram: Jesus de Nazaré, filho de José" (Jo 1.45). Os discípulos no caminho de Emaús expressam surpresa pelo fato de Jesus, que eles ainda não haviam reconhecido, não saber nada sobre as coisas que haviam ocorrido em Jerusalém.

Um, porém, chamado Cleopas, respondeu: — Será que você é o único que esteve em Jerusalém e não sabe o que aconteceu lá, nestes últimos dias?

Ele lhes perguntou: — Do que se trata?

Eles explicaram: — Aquilo que aconteceu com Jesus, o Nazareno, que era profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo, e como os principais sacerdotes e as nossas autoridades o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir Israel. Mas, depois de tudo isto, já estamos no terceiro dia desde que essas coisas aconteceram. (Lucas 24.18-21) Eles esperavam, juntamente com muitos outros, que esse Jesus fosse aquele que viria, aquele que redimiria Israel. Estes exemplos mostram uma preocupação comum da maioria dos crentes no Novo Testamento, que conheciam bem as promessas do Antigo Testamento.

Eles estavam aguardando ansiosamente o Messias prometido, e alguns até 242

estavam procurando incansavelmente por Ele. A pergunta a Jesus demonstra bem esse motivo. Você é o Messias? A questão da identidade de Jesus forma o pano de fundo da apresentação histórica dos Evangelhos.

Os Evangelhos respondem à pergunta sobre a identidade de Jesus tanto de forma clara quanto sutil. Quando Ele faz coisas que pertencem somente a Deus ou, no mínimo, a algo que Ele demonstra ser maior do que um simples homem, as pessoas ao Seu redor se perguntam sobre Sua identidade. Quando Ele perdoa os pecados da mulher com o vaso de alabastro, aqueles que testemunham isso começam a dizer entre si: "Quem é este, que até perdoa pecados?" (Lc 7.49). Quando Ele perdoa os pecados do paralítico, os escribas declaram em seus corações: "Ele está blasfemando! Quem pode perdoar pecados senão somente Deus?" (Mc 2.7). Quando Ele repreende o vento e acalma o mar, os discípulos, cheios de medo, dizem uns aos outros: "Quem é este, que até o vento e o mar lhe obedecem?" (Mc 4.41). As ações de Jesus, Suas atividades, levantam questões de identidade para aqueles que O cercam.

Jesus sempre usa a confusão que surge sobre as coisas que Ele faz para encorajar questões de identidade. Para entender quem Ele é, devemos olhar para o que Ele faz e considerá-lo à luz do que o Antigo Testamento diz sobre essas coisas. Jesus responde aos mensageiros enviados por João Batista da seguinte forma: "Vão e contém a João o que vocês viram e ouviram: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, aos pobres são anunciadas boas novas" (Lc 7.22; cf. 1Jo 1.1-3). A resposta de Jesus estabelece dois pontos importantes. Primeiro, discernimos a identidade do Messias não apenas pelo que Ele declara sobre Si mesmo, mas também pelas coisas que Ele faz, pelo poder que exerce. Suas obras, Suas atividades, Suas funções, como quisermos dizer, "revelam" Sua identidade como o Messias. Além disso, essas atividades são realizadas por Seu próprio poder, não pelo poder de outra pessoa. Ele perdoa os pecados do paralítico e diz a ele que se levante e ande com Sua própria autoridade (ἐξουσία, Lc 5.20-24). Ele ordena que Lázaro ressuscite utilizando apenas o poder de Sua voz (Jo 11.43), porque "o Filho dá vida 243

a quem ele quer" (Jo 5.21). Por outro lado, Elias ressuscita o filho da viúva de Sarepta orando para que Deus faça isso: "'Senhor, meu Deus, faze com que a vida deste menino volte para ele'. E o Senhor ouviu voz de Elias. E a vida do menino tornou a entrar nele, e ele reviveu" (1 Rs 17.21-22).

Embora a oração tenha sido omitida, Paulo faz exatamente o mesmo que Elias fez ao ressuscitar Êutico (At 20.10). Outro exemplo, embora de um modo diferente, ocorre no vale dos ossos secos. A vida retorna a esses ossos por meio de Ezequiel como um agente do poder de Deus: "Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar em vós o fôlego, e vivereis" (Ez 37.5). Elias, Ezequiel e Paulo concedem vida pelo poder de outra pessoa; Jesus concede vida por Seu próprio poder.

Um segundo aspecto importante demonstrado pela resposta de Jesus é a identidade que precisamos reconhecer quando queremos julgar corretamente as questões que envolvem a atividade e a identidade de Jesus. Conhecemos o Messias pelo que Ele faz porque as Escrituras estabelecem as coisas que Ele fará. Não nos resta adivinhar se esta ou aquela ação indica Sua identidade; examinar as Escrituras e confiar no testemunho de Deus sobre Ele mesmo. A resposta de Jesus aponta especialmente para o que Deus declarou por meio dos profetas sobre o Messias. De acordo com as Escrituras, o Messias trará boas novas aos pobres, curará os quebrantados de coração, proclamará liberdade aos cativos e consolará todos os que choram (Is 61.1-2). Ele abrirá os olhos dos cegos, desentupirá os ouvidos dos surdos, curará os coxos e soltará a corda vocal dos mudos (Is 35.4-6). Além disso, Ele será ferido por nossas transgressões (Is 53.5-6), carregará nossas iniquidades (Mq 5.2-5), será transpassado por nós (Zc 12.10) e será uma fonte que nos purificará de todo pecado (Zc 13.1).

Embora seja normal que a questão da identidade de Jesus esteja centrada nas coisas que Ele faz e na reação que os outros dão a Ele, os Evangelhos também apresentam a identidade de Jesus de maneiras mais sutis por meio das ações dos outros. Na conhecida leitura indicada para a Epifania, os magos chegam a Jerusalém à procura do rei dos judeus. Eles relatam que seguiram Sua estrela e “vieram adorá-lo” (Mt 2.2).7 7

Um quebra-cabeça exegético que ocupou a mente dos luteranos dos séculos 244

Imediatamente ficamos sabendo que tanto Herodes quanto o povo de Jerusalém ficaram perturbados. Será que estavam perturbados porque os magos procuravam outro rei, um rival de Herodes, e, portanto, XVI e XVII dizia respeito a como os magos conheceram o Menino Jesus. O Novo Testamento nos diz apenas que os magos foram guiados pela "sua estrela" a Jerusalém e a Herodes (Mt 2.1). A pergunta feita por Lutero, Chemnitz e Gerhard é se os magos conheceram o Menino Jesus e O adoraram por causa de sua razão natural e da luz natural dessa estrela. Para todos eles, essa era uma conclusão impossível e profana. Johann Gerhard comenta: "Uma coisa é certa, eles não teriam sido capazes de reconhecer o nascimento de Cristo apenas pela aparição da estrela" (Postilla, trans. Elmer Hohle [Malone, TX: Repristination Press, 2003], 1:138). A resposta, tanto para Chemnitz quanto para Gerhard, remonta a Daniel e ao cativeiro babilônico, uma percepção que Chemnitz obteve de Veit Deitrich (Martin Chemnitz, Harmoniae Evangelicae [Genebra, 1628], p. 94). Gerhard acha que não há dúvida de que Daniel, que foi nomeado chefe dos magos (Dn 5.11), teria confiado aos sábios babilônicos algo sobre as promessas de Cristo e que esses ensinamentos teriam sido mantidos continuamente por eles. De forma um pouco menos conclusiva, Martin Chemnitz supõe: "Não será absurdo se algum conhecimento das promessas relativas ao Messias dos judeus - cuja salvação se estendia também aos gentios - chegou aos magos a partir de resquícios dos ensinamentos de Daniel, dos exilados israelitas que permaneceram na Babilônia ou de leituras dos profetas" (Harmoniae Evangelicae, 95). O que não se deve acreditar é que os magos chegaram a esse conhecimento de Cristo como seu salvador "a partir de princípios e conhecimentos naturais" (Harmoniae Evangelicae, 94). Chemnitz concede certa liberdade exegética para resolver essa questão, desde que a interpretação de uma pessoa permaneça consistente com a analogia da fé. Ele escreve: "A analogia da fé deve ser observada não se opondo ao fundamento dessas Escrituras - Rm 10.17, 1 Co 2.8, 1 Co 2.14 - que sustentam que a razão, por sua própria luz natural, não pode alcançar o conhecimento de Cristo. Esse conhecimento é dado pelo Espírito Santo por meio da Palavra" (Harmoniae Evangelicae, 95). Ele insiste que não existe tal conhecimento de Cristo sine verbo et revelatione divina. Lutero pregou sobre os magos de maneira semelhante. Em um sermão para a Epifania, ele pergunta como os magos encontraram o Menino Jesus. Não foi pela razão natural ou por alguma ocorrência natural, como a estrela que guiou sua jornada. Os magos, como todas as pessoas, O encontraram, explica Lutero, "somente por causa do profeta, da palavra escrita (...) a fim de que todo conhecimento natural e toda razão humana fossem rejeitados e toda iluminação repudiada, exceto a que vem por meio do Espírito e da graça" (The Gospel for the Festival of the Epiphany, 1522 [AE 52:194; WA 10/1, 1:609.5-9]). Embora a estrela tenha servido ao propósito de guiar os magos ao seu destino, eles buscavam o rei dos judeus porque Ele era o Cristo, seu salvador, e isso eles sabiam pela Palavra.

245

ameaçavam o trono e o poder de Herodes? O povo estava preocupado com o que Herodes faria para se livrar desse rei rival? Embora isso possa ter tido algo a ver com o medo deles, as Escrituras indicam outro motivo.

A única coisa que os magos relataram a Herodes foi o fato de terem vindo adorar o rei dos judeus. Sem hesitar, Herodes se dirigiu aos principais sacerdotes e escribas para perguntar onde o Cristo, o Messias, nasceria uma questão de identidade recorrente no Novo Testamento. A reação de Herodes deve nos fazer pensar; O que os magos poderiam ter dito para indicar a Herodes que estavam procurando o Messias? Até esse ponto do texto, ninguém havia mencionado o Cristo além de Herodes. A resposta está no que eles estavam procurando fazer - adorar o rei dos judeus.

Somente Deus recebe adoração. Os magos estavam buscando o Deus que apaga as transgressões, o único que salva Seu povo de seus pecados e cujo é eterno. Herodes entendeu isso, o que causou grande temor a ele e ao povo. Ou "o dia do Senhor" (Ml 4.1; Is 13.6, 9; Jr 46.10; Jl 1.15; 2.1; 2.11; Ob 15) estava sobre eles ou esses magos estavam blasfemando ao extremo, procurando oferecer a adoração devida somente a outro Deus, que eles consideravam o verdadeiro rei dos judeus (cf. 1 Sm 8.7). Qualquer uma dessas possibilidades teria causado medo tanto a Herodes quanto ao povo. A reação de Herodes, no entanto, deixa bem claro como ele entendeu o pedido deles. A atividade (adoração) revela a identidade (Deus). Esses magos estavam procurando "adorar" o Deus que veio para habitar entre Seu povo, conforme prometido pelos profetas.

Finalmente, Jesus introduz a questão de Sua própria identidade em várias ocasiões. Ele pergunta diretamente aos discípulos: "Quem dizem as pessoas que eu sou?" (Mc 8.27). As pessoas deram respostas diferentes. Alguns disseram João Batista, outros disseram Elias, e outros ainda disseram um dos profetas (Mc 8.28) ou até mesmo Jeremias (Mt 16.14). João registra um exemplo de multidões intrigadas com a identidade de Jesus, conforme relatado aqui pelos discípulos. Quando Jesus está na Festa das Tendas, Ele ensina no templo e os judeus ficam maravilhados com Seu conhecimento. As pessoas se perguntam por que os fariseus não O prendem, já que estavam tentando matá-Lo. Será que "as autoridades sabem realmente que este é o Cristo?" (Jo 7.26). As pessoas continuam: "Mas nós sabemos de onde vem este homem, e 246

quando o Cristo aparecer, ninguém saberá de onde ele vem" (Jo 7.27). O argumento final da multidão não é aceito por todos. Como vimos acima, Herodes e seus chefes sacerdotes sabiam onde o Cristo nasceria. Alguns na multidão compartilham a posição de Herodes. No último dia da festa, Jesus começa a ensinar sobre o Espírito que será dado quando Ele for glorificado. As pessoas voltam a se perguntar sobre a identidade de Jesus.

Quando ouviram essas palavras, alguns do meio do povo diziam: — Este é verdadeiramente o profeta.

Outros diziam: — Ele é o Cristo.

Outros, porém, perguntavam: — Por acaso o Cristo virá da Galileia? 42Não diz a Escritura que o Cristo vem da descendência de Davi e da aldeia de Belém, de onde era Davi?

Assim, houve divisão entre o povo por causa dele. (João 7.4043) A divisão entre as pessoas diz respeito à Sua identidade como o Cristo e ao que as Escrituras dizem sobre o Cristo. A discordância entre as pessoas se estende até mesmo à questão de sabermos ou não de onde vem o Cristo. Aqueles que sabem que o Cristo vem de Belém enfatizam o testemunho claro de Miquéias (5.2, cf. Mt 2.6). Aqueles que sugerem que Ele simplesmente aparecerá e ninguém saberá de onde Ele vem oferecem uma interpretação peculiar de Malaquias (3.1, cf. Lc 2.25-35), que descreve o Senhor vindo repentinamente ao Seu templo. O ponto significativo aqui é que a identidade do Cristo depende das Escrituras e se tornou um tópico urgente de conversa entre as multidões. Depois que os discípulos responderam à pergunta de Jesus relatando as diferentes respostas das pessoas, Jesus lhes perguntou: "Quem vocês dizem que eu sou?" (Mc 8.29). Mateus registra a resposta mais completa. Simão Pedro responde: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.16; cf. Jo 11.27; 20.31). A identidade de Jesus é conhecida por Sua obra salvadora como o Cristo e por Seu relacionamento eterno com o Deus vivo, o Pai. Ambas as declarações revelam quem é Jesus. Essa confissão da identidade de Jesus não vem do homem, nem das palavras plausíveis da sabedoria, mas do Pai por meio do ensinamento de Cristo (Mt 16.17).

Jesus questiona não apenas Seus discípulos, mas também Seus 247

oponentes sobre Sua identidade. Ele pergunta aos fariseus: "O que vocês acham do Cristo? De quem ele é filho?" (Mt 22.42). Eles respondem que o Cristo é o filho de Davi. Jesus então pergunta: "Como é, então, que Davi, no Espírito, o chama de Senhor?" (Mt 22.43). Jesus cita o Salmo 110.1 e pergunta novamente como Davi pode chamá-lo tanto de Senhor quanto de filho. Ninguém é capaz de responder (Mt 22.46). Duas coisas são dignas de nota. Para entender corretamente a identidade de Jesus, é preciso conhecer as Escrituras. Não sabemos quem é o Cristo recorrendo às nossas melhores ideias, mas apenas e sempre retornando à Palavra de Deus. Segundo, para saber quem é Cristo, como visto com os discípulos acima e aqui com os fariseus, requer Deus. Davi conhecia o Cristo como Senhor e filho pelo Espírito; Pedro conhecia o Pai por meio dos ensinamentos de Cristo.

A identidade de Jesus e a Trindade

Os exemplos acima mostram a importância de responder corretamente à pergunta sobre a identidade de Jesus e a importância dessa pergunta para o Novo Testamento. A partir dessa perspectiva, os Evangelhos podem ser vistos como apresentações ampliadas da identidade de Cristo. Embora os quatro Evangelhos apresentem a mesma identidade de Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, eles procedem de diferentes maneiras, mas complementares. Todos os Evangelhos abordam a questão da identidade desde o seu início. Mateus registra que Jesus Cristo é o filho de Davi e filho de Abraão (Mt 1.1).

Marcos simplesmente declara que Jesus é o Filho de Deus (Mc 1.1). João começa com a destacada confissão de Jesus como a eterna Palavra de Deus que se tornou carne e habitou entre nós (Jo 1.1,14). Lucas tem como objetivo fornecer um relato ordenado para seus leitores e, de forma progressiva, constrói a questão da identidade de Jesus. Sua abertura, no entanto, refere-se a Jesus como a Palavra. Lucas nos diz que ele está transmitindo o que foi entregue aos fiéis pelas testemunhas oculares e ministros "da Palavra" (τοῦ λόγου, Lc 1:3).8

8

Arthur Just, Jr., Luke 1:1-9:50, Concordia Commentary (St. Louis: CPH, 1996), 36.

248

Tanto Lucas quanto Mateus apresentam de forma clara a identidade de Jesus em termos trinitários. Na narrativa de Lucas sobre a anunciação, o anjo declara à Virgem Maria: "O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso, o menino que vai nascer será chamado santo, o Filho de Deus" (Lc 1.35).

Lucas ressalta ainda mais a identidade divina de Jesus, atribuindo-lhe o nome divino (YHWH/κύριος). Zacarias e Isabel andam irrepreensivelmente nos mandamentos e estatutos "do Senhor" (Lc 1.6).

Zacarias entra no "templo do Senhor" (Lc 1.9), e diante dele aparece "um anjo do Senhor" (Lc 1.11). Zacarias é informado de que Isabel dará à luz a um filho chamado João e que ele converterá muitos "ao Senhor seu Deus" (Lc 1.16). Da mesma forma, Gabriel se aproxima da Virgem Maria e declara que "o Senhor Deus" dará a Jesus, o Filho do Altíssimo, o trono de Seu pai Davi (Lc 1.32), e Maria acaba respondendo: "Eis que eu sou a serva do Senhor" (Lc 1.38). Em todos esses casos, Senhor (κύριος) referese claramente a YHWH.9 Após a conversa com Gabriel, Maria visita Isabel: "E Isabel ficou cheia do Espírito Santo, e exclamou em alta voz: 'Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre! E por que me foi concedido que a mãe do meu Senhor (ἡ μήτηρ τοῦ κυρίου μου) viesse a mim?" (Lc 1.41-43). Aqui Lucas identifica Jesus com o nome divino, YHWH, e Isabel confessa isso pelo Espírito Santo.

Em Mateus, o anjo Gabriel aparece a José e lhe diz para tomar Maria como esposa, "porque o que nela foi gerado vem do Espírito Santo" (Mt 1.20). Jesus nasceu de Maria pelo Espírito Santo. Ele não tem pai humano. Mateus enfatiza esse ponto com precisão gramatical em sua genealogia (ἐξ ἧ, Mt 1.16) e apelando para Is 7.14 (Mt 1.23). O nome Jesus significa que Ele salvará Seu povo de seus pecados (Mt 1.21). A salvação pertence somente a Deus, à Sua identidade única. Não há outro Salvador além de YHWH. Mateus deixa clara a identidade divina de Jesus, que é tanto Deus quanto homem. Ele salva, e Ele salva Seu povo. Eles pertencem a Ele, porque Ele é o Seu Deus. Para que não reste nenhuma dúvida, Mateus declara a identidade de Jesus de forma absoluta: Ele é 9

C. Kavin Rowe, "Luke and the Trinity: An Essay in Ecclesial Biblical Theology", Scottish Journal of Theology 56/1 (2003): 13-14.

249

Emanuel, Deus conosco.

Embora Mateus declare a identidade de Jesus como Deus em termos absolutos, os Evangelhos apresentam Sua identidade com mais frequência em termos relativos. Ele é o Filho do Pai. Marcos e João procedem dessa forma desde o início. Para Marcos, Ele é o Filho de Deus e, para João, Ele é a Palavra de Deus. Lucas escreve algo semelhante.

Gabriel declara a Maria que ela conceberá e dará à luz um filho, e Seu nome será Jesus. Gabriel continua: "Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo" (Lc 1.32). Todos os quatro Evangelhos relatam que, no batismo de Jesus, o Espírito Santo desceu sobre Ele e uma voz do alto declarou: "Tu és o meu Filho amado; em ti me comprazo" (Mt 3.16-17; Mc 1.10-11; Lc 3.22; cf. Jo 1.33-34). Jesus é o Filho de Deus enviado ao mundo por Seu Pai. Conforme demonstrado no capítulo anterior, os nomes do Pai e do Filho, sua distinção e unidade, eram conhecidos no Antigo Testamento. Entretanto, somente com a revelação da identidade de Jesus no Novo Testamento, podemos dizer que esses nomes são normativos para falarmos e adorarmos corretamente o único e verdadeiro Deus de Israel.

Esses nomes normativos encontrados nas Escrituras, Pai e Filho, são constitutivos da identidade eterna de Deus. O Pai é o Pai e eternamente assim. O Filho é o Filho e eternamente assim. Além disso, não há realidade anterior a Deus como Pai ou Deus como Filho.10 O Filho está em um relacionamento eterno com o Pai, e o Pai em um relacionamento eterno com o Filho. O Pai é Pai sempre em relação a Seu Filho; o Filho é Filho sempre em relação a Seu Pai. Um implica o outro; cada um pertence à identidade do único Deus verdadeiro. Por essa razão, as Escrituras declaram ainda que conhecer o Filho é conhecer o Pai. Mateus, Lucas e João enfatizam esse ponto. Em Mateus e Lucas, Jesus declara: "Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai 10

William Weinrich, "Trinitarian Reality as Christian Truth: Reflections on Greek Patristic Discussion", Concordia Theological Quarterly 67:3/4 (2003): 338: "Não há realidade que possamos chamar de 'Deus' que seja anterior a Deus como Deus Pai; não há realidade que possamos chamar de 'Deus' que seja anterior a Deus como Deus Filho."

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senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar" (Mt 11:27; Lc 10:22). David Scaer observa que o Pai e o Filho têm um conhecimento peculiar um do outro11 Nós recebemos essa revelação por meio do Espírito Santo (1Co 2.11 KJV). Além disso, um destaque que vemos acima é que o acesso ao Pai é feito por meio do Filho e que isso ficou especialmente claro em João.

João ensina que é somente por meio do Filho que conhecemos, vemos e honramos o Pai: "Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou" (Jo 5.23). Honrar o Pai é adorar o Pai. Portanto, quem não adora o Filho não adora o Pai. Podemos ver o Pai somente por meio do Filho (Jo 12.45; 14.9) porque é por meio do Filho que conhecemos o Pai (Jo 14.6-7). E, no entanto, também é verdade que o Pai dá testemunho do Filho (Jo 5.37; 8.18) e ninguém chega a conhecer o Filho, o único que revela e torna conhecido o Pai, a menos que o Pai o atraia (Jo 6.37,44, 65).

A vontade do Pai é que todos os que buscam a vida eterna olhem para o Filho (Jo 6.40). Conhecer o Filho é conhecer o Pai; negar o Filho é negar o Pai (1Jo 2.23). Jesus declara: "Quem me odeia a mim, odeia também a meu Pai" (Jo 15.23). Da mesma forma, João escreve em outro lugar: "Quem transgride e não permanece na doutrina de Cristo não tem Deus.

Aquele que permanece na doutrina tem tanto o Pai quanto o Filho" (2Jo 9 KJA).

Quando os judeus acusam Jesus de querer se igualar a Deus ao chamá-Lo de Pai, Ele responde demonstrando a ação na qual ambos estão envolvidos. O Filho não faz nada por conta própria, Ele apenas vê o que Pai está fazendo. Jesus explica: "Tudo o que o Pai faz, o Filho também faz" (Jo 5.19). Eles são distintos na identidade como Pai e Filho, mas são um na ação que fazem em nosso favor (opera ad extra). Jesus continua explicando esse trabalho correlativo: "Pois assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá vida, assim também o Filho dá vida a quem Ele quer. O Pai não julga ninguém, mas deu todo o julgamento ao Filho, para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai" (Jo 5.21-23). Dar vida, julgar, são prerrogativas divinas, pertencentes à identidade única de Deus.

11

11. David Scaer, "The Doctrine of the Trinity in Biblical Perspective", Concordia Theological Quarterly 67:3/4 (2003): 332.

251

Se conhecemos e adoramos o Pai somente por meio do Filho, então como conhecemos e adoramos o Filho? João aborda exatamente essa questão. Para que possamos conhecer o Filho e o Pai, ambos enviam o Espírito Santo, o Consolador e Espírito da Verdade (Jo 14.26; 15.26).

O Espírito dá testemunho do Filho (Jo 15.26), direcionando-nos ao que o próprio Cristo disse (Jo 14.26). Ele convencerá o mundo sobre "o pecado, a justiça e o juízo" (Jo 16.8) e nos declarará o que pertence ao Filho e ao Pai (Jo 15.15). Por fim, o Espírito da Verdade nos guiará à Verdade (Jo 15.13). Ninguém vem ao Pai a não ser pelo Filho, porque Ele é "o caminho, e a verdade, e a vida" (Jo 14.6). O Espírito nos guia para a Verdade, falando-nos as palavras da Verdade, e o Filho, que é a Verdade, é o caminho para o Pai e para a vida eterna. Jesus reúne tudo isso em Seu discurso com a mulher de Samaria sobre a adoração correta. Os verdadeiros adoradores, explica Ele, "adoram o Pai em Espírito e Verdade" (Jo 4.23).12 Os exemplos acima estabelecem dois pontos importantes.

Primeiro, a questão da identidade de Jesus está por trás da apresentação histórica de Sua vida, obras e ensinamentos pelos quatro evangelistas. As pessoas estavam aguardando ansiosamente o Messias. Seja amigo, inimigo ou espectador, quando se deparam com Cristo, todos se perguntam sobre Sua identidade. Os evangelistas apresentam a resposta a essa pergunta contando sobre a vida de Cristo, Seus atos e Suas palavras. Em segundo lugar, a pergunta sobre a identidade de Jesus não pode ser respondida, de acordo com as Escrituras, sem o Pai e o Espírito. Proclamar Cristo, falar Dele e adorá-Lo é confessar à Trindade que é Deus, conforme visto em Paulo e nos evangelistas. Além disso, no centro da identidade de Deus está o relacionamento entre Pai e Filho, um relacionamento que nos é dado a conhecer pelo Espírito que Eles nos enviam.

12

Embora a maioria das traduções deixe espírito e verdade em minúsculas (προσκυνήσουσιν τω πατρὶ ἐν καὶ ἀληθεια), os Pais leem "espírito" como uma referência ao Espírito Santo e "verdade" como uma referência ao Filho. Veja, entre outros, Athanasius Letters to Serapion 1.33 and Gregory of Nazianzus Or. 31.12.

252

Jesus e o Antigo Testamento

Os escritores dos Evangelhos apresentam, desde o início, a identidade de Jesus declarando-o filho de Davi e Abraão, Filho de Deus, Filho do Altíssimo ou Verbo de Deus - todas designações estão presentes no Antigo Testamento. Os evangelistas, então, prosseguem, cada um a seu modo, para recontar os eventos de Sua vida e assim eles revelam ainda mais detalhes de quem Ele é. No entanto, não devemos pensar nos Evangelhos como meros registros de fatos históricos sobre Jesus.

Tampouco devemos pensar que eles - os próprios escritores dos Evangelhos - declaram para nós a identidade de Jesus como o eterno Filho de Deus. Em vez disso, eles apresentam narrativas altamente estruturadas da vida de Jesus que mostram quem ele é por meio de uma exegese fiel do Antigo Testamento. É o Antigo Testamento que declara a identidade de Jesus. Os escritores dos Evangelhos nos lembram disso o tempo todo.

Por exemplo, todos os quatro evangelistas usam Isaías 40 para estabelecer a identidade daquele sobre quem escrevem. Marcos faz isso imediatamente. Depois de declarar que Jesus é o Filho de Deus, ele cita o profeta Isaías: "Eis que eu envio o meu mensageiro diante de ti, o qual preparará o teu caminho, como a voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor [YHWH/κύριος], endireitai as suas veredas" (Mc 1.2- 3). Isaías e Malaquias deixam claro que o mensageiro preparará o caminho para YHWH (Is 40.3; Ml 3,1). João Batista se identifica como a voz que clama no deserto (Jo 1.23), e Jesus confirma isso (Lc 7.27). Assim como Paulo acima, todos os evangelistas citam um texto do Antigo Testamento que se refere explicitamente a YHWH e o atribuem a Jesus.

João Batista prepara o caminho para YHWH, o homem Jesus. Os escritores do Evangelho também usam o Antigo Testamento de maneiras mais sutis para marcar a identidade de Jesus.

No final de sua carreira reformadora, Lutero voltou várias vezes ao Antigo Testamento. Conforme observado no capítulo 5, o Antigo Testamento estava sendo ignorado pelos exegetas cristãos de sua época.

Em seu Prefácio ao Antigo Testamento, Lutero exorta os fiéis a se debruçarem sobre o Antigo Testamento para que pudessem ver Cristo e entender o Novo Testamento. Ele escreve: 253

Há pessoas que têm pouca consideração pelo Antigo Testamento.

Eles o consideram um livro que foi dado apenas ao povo judeu e que agora está desatualizado, contendo apenas histórias de épocas passadas.

Eles acham que já têm o suficiente no Novo Testamento e afirmam que apenas um sentido espiritual deve ser buscado no Antigo Testamento...

Mas Cristo diz em João 5: "Examinai as Escrituras, porque são elas que testificam de mim" (Jo 5.39). São Paulo pede a Timóteo que preste atenção à leitura das Escrituras (1Tm 4.13), e em Romanos 1 ele declara que o evangelho foi prometido por Deus nas Escrituras (Rm 1.2), enquanto em 1 Coríntios 15 ele diz que, de acordo com as Escrituras, Cristo veio da semente de Davi, morreu e ressuscitou dos mortos. São Pedro também nos remete, mais de uma vez, às Escrituras.13 Jesus e os escritores do Novo Testamento nos remetem ao Antigo Testamento. Eles fazem isso para que possamos estudar diligentemente o Antigo Testamento e para entender melhor o Novo Testamento. Como o Antigo Testamento é o fundamento e a prova do Novo Testamento, não devemos desprezá-lo, escreve Lutero. Ele continua: "O que é o Novo Testamento senão uma pregação e proclamação pública de Cristo, apresentada por meio dos ditos do Antigo Testamento e cumprida por meio de Cristo?"14 O que devemos esperar encontrar no Antigo Testamento? Lutero não hesita em responder: “Aqui vocês encontrarão as faixas e a manjedoura em que Cristo repousa, e para a qual o anjo aponta os pastores (Lc 2.12). Simples e humildes são esses panos, mas caro é o tesouro, Cristo, que jaz neles." 15 O testemunho dos Evangelhos sobre Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro homem se apoia no Antigo Testamento e no conhecimento do que Deus declarou por meio dos patriarcas e profetas.

Vemos isso de duas maneiras. Por um lado, cada Evangelho, considerado como um todo, apresenta uma narrativa cuidadosamente estruturada que leva à mesma conclusão: Jesus é o Filho de Deus, e isso é corretamente entendido na cruz e com Sua morte por nós. Esse mesmo ponto, como visto no último capítulo, é conhecido com grande clareza no Antigo 13

Preface to the Old Testament, 1545 (AE 35:235; WADB 8:11.1-12). (OS 8).

Preface to the Old Testament, 1545 (AE 35:235; WADB 8:11.19-21). (OS 8).

15 Preface to the Old Testament, 1545 (AE 35:235; WADB 8:13.6-8). (OS 8).

14

254

Testamento e chega ao cerne da identidade única de YHWH. A seguir, mostrarei brevemente como Marcos descreve isso em seu Evangelho. Em segundo lugar, a questão da identidade de Jesus e do Antigo Testamento está por trás de muitos dos textos conhecidos do Novo Testamento. Três exemplos serão apresentados a seguir. Com muita frequência, esses tipos de textos são ignorados e os textos mais claramente dogmáticos, como o prólogo do Evangelho de João ou o hino cristológico de Filipenses 2, são favoráveis. Isso é certamente compreensível. Esses textos dogmáticos afirmam sem ambiguidade a identidade divina de Jesus. Os textos abaixo são mais sutis e exigem maior familiaridade com o Antigo Testamento.

Eles podem ser descritos como exemplos homiléticos da identidade divina de Jesus. Esses tipos de textos enchem nossos lecionários e ocupam a atenção de nossa pregação e ensino.

Estructura narrativa de Marcos

Todos os autores dos Evangelhos tomam decisões literárias em sua apresentação da identidade divina de Jesus. No Evangelho de Marcos, a frase "Filho de Deus" desempenha um papel fundamental na revelação de quem é Jesus. Marcos inicia seu Evangelho declarando que Jesus é o Filho de Deus e depois prossegue com seu Evangelho para nos mostrar o que isso significa. Jesus ensina com autoridade, ao contrário dos escribas (Mc 1.22), o que confunde as pessoas, mas não o espírito imundo, que declara: "Eu sei quem você é - o Santo de Deus" (Mc 1.24). Jesus repreende o espírito imundo e liberta o homem endemoniado. As pessoas ficam ainda mais espantadas: "O que é isso? Um novo ensinamento com autoridade! Ele dá ordens até aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem" (Mc 1.27). As pessoas conhecem o espírito imundo, mas não aquele que tem poder sobre o espírito imundo. Jesus passa a curar muitos, limpa um leproso e perdoa os pecados do paralítico. Ele faz isso com Sua própria autoridade e poder. Depois que Jesus declara ao paralítico, na presença dos escribas, "Meu filho, os teus pecados estão perdoados", os escribas começam a questionar: "Por que esse homem fala assim? Ele está blasfemando! Quem pode perdoar pecados, senão somente Deus?" (Mc 2.6-7). Embora os escribas não acreditem em quem é Jesus, sua própria conclusão, baseada no que Jesus está fazendo, o identifica corretamente.

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Ele é Deus.

A confusão dos escribas corresponde à dos discípulos. Quando Jesus acalma a tempestade, os discípulos dizem uns aos outros: "Quem é este, que até o vento e o mar lhe obedecem?" (Mc 4.41). Aquele que estendeu os céus e a terra, aquele que ordenou que as ondas não fossem tão longas (Jó 38.11) é o único que faz essas coisas. O Deus que fez todas as coisas e governa todas as coisas também é o Deus a quem clamamos em nossa angústia. O salmista registra esse mesmo episódio: "Então, na sua angústia, clamaram a YHWH, e ele os livrou da sua aflição. Ele fez cessar a tempestade, e as ondas do mar se acalmaram. Então se alegraram porque as águas se acalmaram, e ele os levou ao porto que desejavam.

Agradeçam a YHWH por seu amor inabalável, por suas maravilhas para com os filhos dos homens!" (Sl 107.28-31). Deus liberta Seu povo em sua angústia; eles se alegram e agradecem a YHWH por Seu amor inabalável.

Os discípulos temem por suas vidas quando as ondas sacodem o barco e a água sobe pela lateral. Jesus acorda e repreende o vento, e há uma grande calmaria. Ele então lhes diz: "'Por que vocês estão com tanto medo?

Vocês ainda não têm fé? Eles não responderam, mas se perguntaram quem seria este que até o mar e o vento lhe obedecem" (Mc 4.40-41). A resposta, dada em sua observação, mas ainda não compreendida e confessada, é que Jesus é o Filho de Deus.

Marcos começa seu Evangelho declarando que Jesus é o Filho de Deus. Os espíritos imundos reconhecem que Ele é o Santo de Deus (Mc 1.24), o Filho de Deus (Mc 3.11) e o Filho do Deus Altíssimo (Mc 5.7).

Embora o povo, os escribas e os discípulos reconheçam que, conforme as Escrituras, as coisas que Jesus faz são feitas somente por Deus, nenhum ser humano pode fazer e isso até o centurião na cruz faz, ao confessar que Jesus é o Filho de Deus (Mc 15.39). Embora isso devesse ter sido conhecido pelos escribas quando Ele perdoou os pecados do paralítico e pelos discípulos quando repreendeu o vento e acalmou a tempestade, não foi. Não precisamos procurar muito para descobrir o motivo. Depois que Pedro confessa que Jesus é o Cristo (Mc 8.29), ele passa a negar o que isso significa, confiando nas melhores ideias do homem (Mc 8.32-33). Deus não é conhecido se for considerado apenas como o criador e governante 256

de Sua criação. Ele é conhecido na cruz. Por quê? Aqui chegamos ao propósito básico do que Jesus fez no Evangelho de Marcos. Suas ações não são demonstrações gratuitas de poder divino; ao contrário, Ele está travando uma guerra contra o pecado, a morte e o diabo. Ele expulsa os demônios, os espíritos imundos. Ele cura as doenças causadas pelo pecado e pela queda em pecado. Ele ressuscita os mortos, frustrando o domínio da morte sobre eles. Ele repreende o vento e acalma a tempestade, fazendo retroceder as forças destrutivas da natureza causadas pela Queda. O reino de Deus está próximo (Mc 1.15). A derrota final do pecado, da morte e do demônio, o golpe final, ocorre na cruz. O centurião, entre todas as pessoas, entende isso. Ele confessa que Jesus é o Filho de Deus, e isso na morte de Jesus. Após a confissão de Pedro, Jesus explica essa verdade aos discípulos; Pedro o repreende. O argumento apresentado por Marcos e pelos outros escritores do Evangelho, é que Deus é conhecido em Seus próprios termos e não nos nossos. Esse Deus da Bíblia vem entre nós não apenas para exibir Seu poder divino sobre a criação, mas para derrotar Satanás, vencer o pecado e derrotar a morte. Por essa razão, o Deus Triúno da Bíblia é conhecido na morte e ressurreição do homem Jesus, o eterno Filho de Deus.

Os discípulos na estrada para Emaús

Quando Jesus diz aos discípulos no caminho para Emaús que "tudo o que está escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos deve ser cumprido", e passa a resumir o que essas Escrituras proclamam, a saber, "que o Cristo sofresse e ao terceiro dia ressuscitasse dentre os mortos, e que em seu nome se proclamasse o arrependimento e o perdão dos pecados a todas as nações" (Lc 24.44-46), Ele deixa claro para eles o sentido cristológico adequado no qual devemos ler as Escrituras. Dois pontos importantes ocorrem nessa conversa com os discípulos de Emaús. O primeiro ponto, feito com insistência em todo o Novo Testamento e ecoado por Lutero acima, enfatiza a fonte autorizada e definitiva para conhecer Deus e Suas obras: as Escrituras. Jesus não oferece aqui nenhuma nova perspectiva, nenhuma percepção ou tradição não escrita a ser guardada por poucos. Jesus aponta os discípulos para o Antigo Testamento, somente para as Escrituras. Deixar de entender o que 257

está escrito aqui é ser tolo e sem sentido (ὦ ἀνόητοι, Lc 24.25). Jesus esclarece ainda mais o conteúdo das Escrituras: "E, começando por Moisés e por todos os profetas, interpretou lhes todas as Escrituras com as coisas que a ele se referiam" (Lc 24.27). O Antigo Testamento proclama Cristo. Além disso, ele não o faz em textos isolados, mas "em todas as Escrituras", de Gênesis a Malaquias. Quando Paulo chegou a Roma, ensinou aos judeus "acerca de Jesus, segundo a lei de Moisés e segundo os profetas" (Atos 28.23). Se quisermos conhecer Cristo corretamente, também devemos nos direcionar ao Antigo Testamento. Cristo diz ao homem rico: "Se não ouvirem Moisés e os profetas, tampouco não se convencerão se alguém ressuscitar dentre os mortos" (Lc 16.31). Para ouvir Moisés e os profetas, para escutá-los e dar atenção às suas palavras, é necessário que nossos ouvidos estejam abertos. Isso exige que Jesus coloque os dedos em nossos ouvidos e declare: "Efatá" (Mc 7.34), o que Ele faz em nosso batismo.16 O segundo ponto levantado por Jesus diz respeito ao nosso entendimento. Conhecemos Deus e Suas obras por meio da leitura das Escrituras. Entendemos o que lemos quando Deus abre nossos olhos e ouvidos para captar Sua Palavra. Os discípulos ouviram Jesus expor as Escrituras para eles, mas o momento de compreensão veio depois.

Assim, eles se aproximaram da aldeia para onde estavam indo. Ele agiu como se estivesse indo para mais longe, mas eles o incentivaram fortemente, dizendo: "Fique conosco, pois já é noite e o dia já está bem avançado". Então, ele entrou para ficar com eles. Quando estava à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e o deu a eles. E seus olhos se abriram, e eles o reconheceram. E ele desapareceu da vista deles.

Disseram uns aos outros: "Porventura não ardia em nós o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos abria as Escrituras?" Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram para Jerusalém. E encontraram os 16

No Ocidente latino, Mc 7.34 era usado na "abertura" da liturgia batismal. O bispo tocava as orelhas do candidato enquanto dizia: "Ephphatha, ou seja, seja aberto". Veja Ambrósio On the Mysteries 1.3 (NPNF, ii, 10, 317). Lutero manteve isso em sua ordem de batismo (The Order of Baptism, 1523 [AE 53:99; WA 12:45.11-13]).

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onze e os que estavam com eles reunidos, dizendo: "De fato, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!" Então contaram o que havia acontecido no caminho e como ele lhes foi dado a conhecer no partir do pão.

Depois que Adão e Eva comeram do fruto proibido, seus olhos foram abertos pela lei ao verem seu pecado e sua rejeição a Deus. Seus olhos se abriram para o mal ao se relacionarem com a serpente e seus falsos ensinamentos. No caminho para Emaús, após a crucificação e a ressurreição, os olhos dos dois discípulos se abriram ao comungarem com o Cristo ressuscitado. Quando Ele tomou o pão, abençoou-o e o deu a eles, o véu foi levantado, seus olhos se abriram, seus ouvidos se abriram; eles viram Jesus e entenderam as Escrituras.

Conhecer corretamente o sentido cristológico das Escrituras implica a reunião litúrgica do povo batizado de Deus em torno da Ceia do Senhor. Nosso entendimento correto das Escrituras requer iluminação divina, que para os discípulos no caminho de Emaús foi realizada pelo próprio Cristo, para Pedro pelo Pai por meio do ensino de Cristo (Mt 16.17) e para todos os crentes pelo Espírito Santo (Mt 22.43; 1Co 2.10; 1Pe 1.12). Sem essa iluminação, as coisas sobre o sofrimento e a ressurreição de Cristo, conforme proclamadas em todas as Escrituras, especialmente pelos profetas, não são compreendidas nem entendidas, de fato, permanecem ocultas para nós (Lc 18.34). Quando passamos a conhecer essas coisas e a acreditar nelas, diz-se que renascemos como filhos de Deus, "não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus" (Jo 1.13).

Dois outros pontos precisam ser enfatizados. Nosso conhecimento sobre Deus vem somente de Deus - Pai, Filho e Espírito Santo. Além disso, esse tipo de conhecimento altera a identidade e é regenerador. O homem natural não apenas deixa de entender as coisas do Espírito de Deus (1 Co 2.14), mas também as considera tolas e absurdas.

Não há espaço "teológico" neutro: "Quem não está comigo está contra mim" (Lc 11.23). A luz do evangelho permanece velada para essa pessoa, que está de costas para o Senhor (2Co 3.16; 4.3-4). Quando lhe dizem que precisa renascer, ele só pode responder com o absurdo: "Como pode um homem nascer quando já é velho? Pode ele entrar uma segunda vez no 259

ventre de sua mãe e nascer?" A resposta dada por Jesus é que você deve nascer da água e do Espírito (Jo 3.4-5). Paulo continuou a pregar essa loucura da regeneração batismal e da renovação pelo Espírito Santo, enfatizando que esse mesmo Espírito é o que foi derramado ricamente sobre nós por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, "para que, justificados por sua graça, nos tornemos herdeiros segundo a esperança da vida eterna" (Tt 3.5-6). Esse Espírito de regeneração e renovação é descrito em outro lugar como o Espírito da Verdade, que nos guia em toda a verdade, que não fala por Sua própria autoridade, mas somente pelo que ouviu do Filho, que O enviou a nós (Jo 16.7). A fonte do conhecimento correto de Deus vem de Deus, e o local desse conhecimento é o batismo.17 A centralidade de Cristo para as Escrituras e para o conhecimento adequado da Trindade é enfatizada em todo o Novo Testamento. Jesus diz aos judeus: "Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim; contudo, recusais vir a mim, para que tenham vida" (Jo 5.39-40). As Escrituras, o Antigo Testamento, apontam para Cristo e dão testemunho de Sua pessoa e obra (cf. Lc 24.25-27). Jesus continua: "Se vocês cressem em Moisés, creriam em mim, pois ele escreveu a meu respeito" (Jo 5.46). Se buscarmos nas Escrituras alguém ou algo que não seja Cristo, destacaremos o que não é pretendido e não conseguiremos entender o significado e o sentido adequado da Palavra de Deus - a Palavra dada por Deus e pertencente a

17

Os Pais frequentemente se referem ao batismo (βάπτισμα) como iluminação (φώτισμος ou φώτισμα). Gregório de Nazianzo escreve: "A iluminação é o esplendor das almas, a conversão da vida, o apelo da consciência a Deus. A iluminação é a ajuda para nossa fraqueza, a renúncia da carne, o seguimento do Espírito, a comunhão com a Palavra, o aperfeiçoamento da criatura, a destruição do pecado, a participação na luz, a dissolução das trevas. É a carruagem que leva a Deus, a morte com Cristo, o aperfeiçoamento da mente, o baluarte da fé, a chave do reino dos céus, uma mudança de vida, a remoção da escravidão, a soltura das correntes, a renovação de nosso ser complexo. Por que devo entrar em mais detalhes? A iluminação é o maior e mais magnífico dos dons de Deus."

Gregório de Nazianzo Or. 40.3, trans. em Christopher Beeley, Gregory of Nazianzus on the Trinity and the Knowledge of God (Oxford: Oxford University Press, 2008), 108.

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Deus. Além disso, se você não consegue entender que o Antigo Testamento revela Cristo, então, de acordo com o Novo Testamento, você também não consegue entender Deus, o Pai. As Escrituras são as palavras da vida eterna porque são as palavras de Cristo (Jo 6.68-69). E ainda, explica Jesus, "A palavra que vocês ouvem não é minha, mas do Pai que me enviou" (Jo 14.24; cf. Jo 12.49-50).

Jesus e os discípulos

Acima, observamos a estrutura narrativa de Marcos e como os discípulos não conseguem entender a identidade de Jesus na calmaria da tempestade. A troca entre Jesus e os discípulos se baseia em uma compreensão mais profunda do Antigo Testamento. Eles deveriam ter conhecido a identidade de Jesus não apenas porque Ele acalmou a tempestade, mas porque as Escrituras revelaram isso. Outro exemplo ocorre quando Jesus caminha sobre as águas. Após alimentar cinco mil, os discípulos se reuniram em um barco e partiram para Betsaida da Galileia (Mc 6.45; cf. Jo 12.21). Os discípulos estão novamente lutando contra o mar e o vento quando Jesus vem até eles. Marcos escreve: "E, perto da quarta vigília da noite, veio ter com eles, andando sobre o mar.

Ele pretendia passar por eles, mas quando o viram andando sobre o mar, pensaram que era um fantasma e gritaram, pois todos o viram e ficaram apavorados. Imediatamente, porém, ele lhes falou e disse: 'Tende bom ânimo, sou eu, não tenham medo'" (Mc 6.48-50). De acordo com o Antigo Testamento, aquele que caminha sobre as águas é o mesmo que criou todas as coisas e que rege e governa Sua criação. Jó louva a Deus como sábio de coração e poderoso em força, aquele que remove montanhas e sacode a terra, que comanda o sol e sela as estrelas. Deus é aquele "que sozinho estendeu os céus e andou sobre as ondas do mar" (Jó 9.8). A LXX torna o paralelo mais explícito: Somente Deus estende os céus e "anda sobre o mar como sobre a terra" (περιπατῶν ὡς ἐπ ᾽ἐδάφους ἐπὶ θαλάσσης).18 Por um lado, o fato de Jesus andar sobre o mar indica Sua identidade como aquele por meio de quem e por quem o mar foi feito.

Há, entretanto, um outro ponto a ser observado.

18

Sobre esse ponto, veja Richard Hays, "Can the Gospels Teach Us How to Read the Old Testament", Pro Ecclesia XI:4 (2002): 409-11.

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Marcos observa que Jesus pretendia passar pelos discípulos. Em outras palavras, Ele pretendia ficar à vista dos discípulos, mas passar por eles e não entrar no barco. Por quê? As ações de Jesus são explicadas voltando à passagem de Jó. Depois que Jó relata as poderosas obras de Deus, Seu poder e domínio sobre as coisas que Ele fez e como essas coisas escapam ao nosso entendimento, Ele confessa que essa providência de Deus sobre as coisas que Ele fez, incluindo o homem, permanece invisível, mas é conhecida por Jó. Ele escreve que é Deus "que faz coisas grandes e coisas maravilhosas que não se podem contar. Eis que ele passa por mim, e eu não o vejo; ele segue em frente, e eu não o percebo" (Jó 9.10-11). O Deus que criou todas as coisas, governa e rege todas as coisas escapa à nossa visão, mas não à nossa fé.

Os discípulos lutaram contra o vento e o mar a noite toda. Eles estão exaustos de corpo e mente. Eles se esqueceram de que o próprio Senhor os enviou para atravessar o mar. Imediatamente antes disso, eles estavam com Jesus quando Ele alimentou cinco mil pessoas. Um pouco de contexto nos ajudará a ver por que isso é significativo. Os doze discípulos haviam sido enviados em uma viagem missionária e voltaram para contar a Jesus o que haviam feito e ensinado (Mc 6.7, 30). Jesus viu que eles estavam exaustos e famintos (Mc 6.31) e lhes disse para irem a um lugar deserto para descansarem um pouco. Nesse meio tempo, uma grande multidão viu Jesus e os discípulos entrando em um barco e correu a pé, reunindo mais pessoas à medida que avançavam (Mc 6.33). Quando Jesus viu a multidão, teve compaixão deles e começou a ensinar (Mc 6.34).

Os discípulos exaustos, que precisavam de descanso e comida, prometidos pelo próprio Jesus, chegam e encontram as multidões. À medida que a hora se aproxima, a frustração toma conta dos discípulos cansados e famintos. Eles dizem a Jesus: "Este é um lugar deserto, e a hora já está avançada. Mande-os embora para os campos e vilarejos vizinhos e comprem algo para comer" (Mc 6.36). Os discípulos querem descansar e querem comer o pouco de comida que trouxeram com eles.

Eles não querem que Jesus continue ensinando; não querem ter nada a ver com as multidões. Eles estão irritados com as pessoas e querem que Jesus as mande embora. Jesus responde: "Dai-lhes vós de comer" (δότε αὐτοῖς ὑμεῖς, Mc 6.37KJV). Ou seja, você que acabou de voltar de uma 262

viagem missionária, você que está cansado e não teve a chance de comer, pegue o pouco que tem e dê a eles. Eles estão com fome. Dê-lhes de comer. As palavras de Jesus são difíceis não por causa do pouco que eles têm para dar, mas porque eles já deram muito e Ele quer que eles deem mais, até mesmo o pouco que resta.

Os discípulos cedem e perguntam se devem comprar comida. Em vez disso, Jesus mostra diante deles Seu poder divino. Ele pega os cinco pães e os dois peixes, agradece ao Pai, parte o pão e o dá aos discípulos para que o possam distribuir ao povo (Mc 6.41). Todos comem e ficam satisfeitos. Imediatamente depois disso, Jesus envia os discípulos para o barco e para o outro lado do mar. Marcos vincula explicitamente esses dois eventos. Quando Jesus entra no barco, o vento cessa. Marcos então registra: "E eles ficaram totalmente atônitos, pois não entendiam nada sobre os pães" (Mc 6.52). A conexão entre esses dois eventos tem a ver com o fato de que Jesus não pretendia entrar no barco, mas passar por eles (Mc 6.48). Conforme relatado por Jó, a providência oculta de Deus sobre nós e toda a criação passa por nós sem que vejamos. Jesus, que demonstra Seu poder sobre a criação com a alimentação dos cinco mil e a caminhada sobre o mar, pretende passar pelos discípulos e assegurarlhes Seu poder sobre as coisas que Ele fez e Seu cuidado por eles em meio às dificuldades da vida e ao cuidado pastoral deles com Seu povo. Em outras palavras, Jesus alimenta os cinco mil em parte para demonstrar Seu cuidado com os discípulos. Eles estão cansados, famintos e frustrados por causa de seu trabalho em Seu nome, trabalho de acordo com seu chamado, e Ele pede mais para mostrar a eles que devem contar com Ele e confiar só Nele quando as circunstâncias da vida parecem sombrias, mesmo quando as pessoas se tornam difíceis nos seus relacionamentos, mesmo quando fisicamente parece que não podem fazer mais nada. Jesus os envia para o mar, sabendo da tempestade que está por vir, e mais uma vez pretende demonstrar Seu cuidado contínuo com eles, à medida que dão ouvidos à Sua palavra e vão para onde Ele os envia, tudo de acordo com o chamado deles. Ele passará e eles verão. Jó não viu Deus passar.

Moisés viu apenas as costas de Deus. Os discípulos verão Deus passar em carne e osso.

Quando os discípulos veem Jesus, ficam aterrorizados. Jesus lhes 263

diz: "Tende bom ânimo; sou eu [ἐγώ]. Não tenham medo" (Mc 6.50). Mais literalmente, Jesus diz a eles: "Sejam corajosos, EU SOU. Não tenham medo". As palavras de Jesus tornam explícita a Sua identidade divina, que é o que os discípulos deveriam ter entendido a partir da alimentação dos cinco mil e da caminhada sobre o mar. Além disso, a coragem e a força deles vêm Dele. Quando eles seguem seu chamado divino, devem ir em frente com ousadia, com coragem, com a certeza de que Aquele que os enviou continua a prover para eles. O alicerce de seu conforto é Cristo, que é Emanuel, o Verbo feito carne, que criou todas as coisas e governa sobre todas as coisas. Essa identidade divina fica clara para nós, assim como ficou para os discípulos, quando contextualizamos as atividades de Cristo com a identidade de Deus conhecida em todas as Escrituras.

YHWH, EU SOU O QUE SOU, anda sobre as ondas; Jesus caminha sobre as águas e declara a eles: "Sejam corajosos, SOU EU". Mateus termina seu relato com essa mesma percepção dos discípulos: "Os que estavam no barco o adoraram, dizendo: 'Verdadeiramente tu és o Filho de Deus'" (Mt 14.32).

João e os ditos do EU SOU

No diálogo acima entre Jesus e os discípulos, Ele os conforta e encoraja referindo-se a Si mesmo como EU SOU. Essa designação aparece com regularidade e propósito no Evangelho de João. A estrutura narrativa do Evangelho de João gira em torno de um conjunto de sete.

Há sete sinais ou milagres realizados por Jesus (2.1-11; 4.46-54; 5.1-15; 6.1-15; 6.16-21; 9.1-41; 11.1-44); há sete afirmações metafóricas do EU SOU que correspondem em parte a sete sinais; e, finalmente, há sete afirmações absolutas do EU SOU que marcam inequivocamente a identidade divina de Jesus nos termos estabelecidos pelo Antigo Testamento.19 O número sete indica completude. O primeiro conjunto de declarações EU SOU usa nominativos predicados para fornecer uma imagem verbal da salvação que Cristo traz. Algumas delas correspondem aos sinais. Depois de alimentar os cinco mil, Jesus declara: "EU SOU o pão da vida" (Jo 6.35, 48). Depois de abrir os olhos do cego, Jesus declara: 19

Richard Bauckham, The Testimony of the Beloved Disciple (Grand Rapids: Baker Academic, 2007), 243- 244.

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"EU SOU a luz do mundo" (Jo 8.12). Depois que Jesus ressuscita Lázaro dos mortos, Ele declara: "EU SOU a ressurreição e a vida" (Jo 11.25).

Jesus também se refere a Si mesmo, com a fórmula EU SOU, como a porta (Jo 10.7, 9), o Bom Pastor (Jo 10.11, 14), o caminho, a verdade e a vida (Jo 14.6) e a videira verdadeira (Jo 15.1, 5). Todas essas declarações ressaltam a salvação que temos em Cristo. Ele é a fonte (videira, vida, ressurreição) e o meio (caminho, porta) dessa salvação. Somente Ele realiza essa salvação (pastor) e é completamente suficiente (pão).

A explicação de Jesus sobre si mesmo como o Bom Pastor ilustra a correlação entre atividade e identidade e a importância do Antigo Testamento para a compreensão dessas declarações do EU SOU. Depois que Jesus declara que dá vida eterna às Suas ovelhas (Jo 10.28) e que Ele e o Pai são um (Jo 10.30), os judeus pegam pedras para apedrejá-Lo. Jesus responde: "Eu lhes mostrei muitas obras boas do Pai; por qual delas vocês vão me apedrejar?" (Jo 10.32). Os judeus respondem de uma maneira um tanto estranha. Eles querem apedrejá-Lo não por qualquer obra boa que Ele tenha feito, mas por blasfêmia, por fazer-se de Deus (Jo 10.33). Jesus responde dizendo a eles para que não acreditem que Ele é o Filho de Deus porque Ele disse que é, mas que olhem para as obras que Ele está fazendo e entendam assim a Sua identidade: "Se eu não faço as obras de meu Pai, não me creiais; mas, se as faço, ainda que não me creiais a mim, crede nas obras, para que saibais e entendais que o Pai está em mim e eu no Pai" (Jo 10.37-38). Os judeus desejam separar atividade e identidade. Eles afirmam que não se ofendem com as obras, mas com a conclusão tirada das obras.

Sua abordagem, ao que parece, é reconhecer Jesus apenas como um agente da obra de Deus. A resposta aponta o óbvio: atividade e identidade necessariamente se completam uma à outra. As funções nunca são meras funções; indicam identidade; indicam um sujeito que possui o poder de fazer o tipo de coisa que está sendo feita. Neste caso, Jesus está concedendo vida eterna a Suas ovelhas, as ovelhas que Ele conhece pelo nome, as ovelhas que ouvem Sua voz e O seguem (Jo 10.3, 27-28).

Somente Deus salva e concede a vida eterna. Jesus salva e concede a vida eterna porque Ele é o Filho de Deus (Jo 5.21, 26). Ele e o Pai são um; o Pai está Nele e Ele no Pai; mas o Filho não é o Pai e o Pai não é o Filho.

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A riqueza teológica desses predicados vem do Antigo Testamento, seja por meio de contraste ou por meio de cumprimento. O exemplo mais óbvio é novamente o de Cristo como o Bom Pastor. Em Ezequiel, o Senhor declara que Ele será o Pastor de Seu povo. Ele buscará o perdido, trará de volta o desgarrado, curará o ferido, fortalecerá o fraco e destruirá o obeso e o forte (Ez 34.15-16). O Senhor será o Bom Pastor e, no entanto, na mesma passagem, lemos: "Porei sobre eles um só pastor, meu servo Davi, o qual os apascentará" (Ez 34.23). O mesmo padrão de distinção e unidade observado em todo o Antigo Testamento e discutido detalhadamente no capítulo anterior aparece aqui também. Por meio de Zacarias, YHWH declara: "Meu pastor, o homem que está ao meu lado" será atingido e as ovelhas se dispersarão (Zc 13.7). Jesus aplica esse texto a Si mesmo. Ele é o Pastor, o Homem que está ao lado de YHWH, e os discípulos são as ovelhas dispersas (Mt 26.31). Jesus é o Senhor, o Grande Pastor das ovelhas (Hb 13.20), que nos alimenta com pão da vida e somente por meio do qual temos a salvação.

As sete declarações absolutas do EU SOU declaram sem ambiguidade a identidade divina de Jesus. Jesus fala sobre a verdadeira adoração ao Pai em Espírito e Verdade com a mulher samaritana no poço.

A mulher responde a Jesus confessando que acredita que o Messias, o Cristo, está chegando e que Ele nos dirá todas as coisas. Ele lhe responde: "EU SOU, aquele que está falando com você" (ἐγώ, ὁ λαλῶν, Jo 4.26).20 A resposta de Jesus afirma tanto que Ele é o Messias quanto que Ele pertence à identidade única de YHWH. Da mesma forma, Jesus usa EU SOU duas vezes com os discípulos. Quando Ele vem andando sobre a água em direção aos discípulos que estavam sendo jogados de um lado para outro no barco, Ele declara a eles: "EU SOU; não temais" (ἐγώ εἰμι, μὴ φοϐεῖσθε, Jo 6.20). Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus prediz Sua traição por Judas. Ele então diz: "Estou lhes dizendo isso agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vocês creiam que EU SOU" (Jo 13.19). As palavras de Jesus aos discípulos têm o objetivo de trazer

20

Com muita frequência, as traduções em inglês obscurecem a resposta de Jesus. Por esse motivo, Suas respostas são dadas mais literalmente de acordo com o grego.

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conforto ao enfatizar Sua identidade divina. Somente YHWH pode andar sobre as ondas. Jesus vem até os discípulos, andando sobre as águas, fazendo o que pertence a YHWH, e procura confortá-los declarando "EU SOU". Da mesma forma, YHWH declara: "Eu sou Deus, e não há outro; eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim, que anuncio o fim desde o princípio, e desde a as coisas que ainda não sucederam" (Is 46.9-10). E assim também Jesus declara a traição de Judas antes que ela aconteça, para que eles saibam que Jesus é o EU SOU. Duas vezes depois disso, Jesus enfatizará que Ele declara as coisas antes que elas aconteçam pelo mesmo motivo (Jo 14.29; 16.4). Aquilo que pertence somente a Deus, essas prerrogativas divinas únicas, pertencem a Jesus, o Filho de Deus.

Os capítulos 7 e 8 do Evangelho de João abordam diretamente a questão da identidade de Jesus. Já vimos acima como essa questão se apresenta no capítulo 7 com as multidões. No capítulo 8, os oponentes de Jesus enfrentam o uso que Ele faz de EU com confusão e violência. A princípio, eles não sabem o que fazer com o uso que Ele faz da frase EU SOU. Jesus diz aos fariseus que eles são de baixo, mas Ele é de cima; eles são deste mundo, mas Ele não é deste mundo. Ele então diz: "Porque, na verdade, se não crerdes que EU SOU, morrereis em vossos pecados" (Jo 8.24). A linguagem de Jesus confunde os fariseus e eles lhe perguntam: "Quem és tu? (Jo 8.25). Sua segunda resposta cria ainda mais confusão.

Por fim, Jesus diz: "Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis que EU SOU" (Jo 8.28). A identidade de Jesus como EU SOU será conhecida na cruz. Apesar de Sua repetida afirmação de ser o EU SOU, os fariseus não entendem até que a conversa se volta para Abraão. Os fariseus afirmam que Abraão é o pai deles; Jesus lhes diz que o diabo é o pai deles. Em seguida, Jesus lhes diz que quem guardar a Sua palavra jamais verá a morte (Jo 8.51). Os judeus O acusam de ter um demônio e perguntam se Ele é maior do que Abraão e os profetas que morreram. Em seguida, perguntaram: "Quem é que você pretende ser?"

(Jo 8.53). Ao longo desse capítulo, os fariseus acusam Jesus de dar testemunho de si mesmo (Jo 8.13, 53), e todas as vezes Jesus responde enfatizando Seu relacionamento com o Pai. Você não pode conhecer o Pai sem o Filho ou o Filho sem o Pai (Jo 8.14-19; 8.54-56). Aqueles que conhecem Deus como Pai amam o Filho, que Ele enviou para nossa 267

salvação (Jo 8.42). Abraão sabia disso. Jesus explica: "Abraão, seu pai, alegrou-se por ter visto o meu dia. Ele o viu e se alegrou" (Jo 8.56). Os fariseus objetam. Não é possível que Abraão tenha conhecido Jesus. Jesus responde: "Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, EU SOU" (πρὶν Ἀβραὰμἐγὼ εἰμί, Jo 8.58). A confusão dá lugar à violência, pois os fariseus agora entendem muito claramente que Jesus se localiza na identidade única de YHWH. A última declaração absoluta do EU SOU aparece no final do Evangelho com a frase de Jesus na prisão. O grupo de soldados, Judas e os oficiais dos chefes dos sacerdotes e fariseus se aproximam de Jesus.

Ele lhes pergunta: "A quem procurais?" (Jo 18.4). Eles dizem Jesus de Nazaré, e Ele responde: SOU EU (Jo 18.5). Quando Ele diz isso, eles recuam e caem por terra (cf. Is 45.23). Embora muito mais possa ser dito sobre a declaração EU SOU de Jesus nos outros exemplos, esse fornece um ponto mais sutil. O significado está no público. As declarações anteriores foram feitas à mulher samaritana, aos discípulos e aos fariseus.

Ou seja, Jesus declara Sua identidade divina a uma pessoa religiosa de fora (samaritana), aos discípulos e aos religiosos de dentro (fariseus). O último grupo aparece com os guardas que vieram para prender Jesus. Esses gentios representam o resto da humanidade que ainda não foi incluída nos outros grupos para os quais Ele apareceu. O argumento apresentado por João ao reunir esses exemplos específicos de Jesus declarando Sua identidade divina é que todas as pessoas, o mundo inteiro, tanto judeus quanto gentios, religiosos de dentro e de fora, crentes e descrentes, estão representados. Os de fora e os incrédulos, independentemente do que pensem de Jesus, ainda O confrontam e se apresentarão diante Dele como juiz. Após a crucificação e a ressurreição, após a exaltação de Jesus à mão direita de Deus em glória, todo joelho se dobrará, no céu, na terra e debaixo da terra (Fp 2.10; Rm 14.10-11), e "todo olho verá, até mesmo aqueles que o traspassaram, e todas as tribos da terra se lamentarão por causa dele" (Ap 1.7; Jo 19.34-37).

A frase EU SOU usada por Jesus no Evangelho de João, mas também nos outros Evangelhos, deriva do Antigo Testamento.21 A frase 21

As declarações absolutas do EU SOU em João também aparecem, embora com 268

aparece em dois lugares relacionados. O primeiro é o nome divino revelado a Moisés na sarça ardente.

Então Moisés disse a Deus: "Se eu for ao povo de Israel e disser a eles: 'O Deus de seus pais me enviou a vocês', e eles me perguntarem: 'Qual é o nome dele? Deus disse a Moisés: "EU SOU O QUE SOU". E ele disse: "Diga o seguinte ao povo de Israel: 'EU SOU me enviou a vocês'". (Êx 3.13-14) A tradução em inglês, baseada no hebraico, torna a conexão com a frase EU SOU mais óbvia do que o grego permite. A LXX diz: "Deus disse a Moisés: 'Eu sou aquele que é' [ἐγώ εἰμι ὁ ὢν]. E assim vocês dirão aos filhos de Israel: 'Aquele que é [ὁ ὢν] me enviou a vocês'". Embora o ἐγώ εἰμι apareça, ele é unido ao ὁ ὢν, que é então repetido sem o ἐγώ εἰμι.

Apesar dessa dificuldade, o uso subsequente de ἐγώ εἰμι em todo o restante do Antigo Testamento deixa claro que o nome divino é o significado da frase.

A frase ἐγώ εἰμι aparece regularmente em seções com características monoteístas do Antigo Testamento.22 Richard Bauckham observa que essas seções aparecem em um conjunto de sete (grego) ou nove (hebraico), o que corresponde ao que pode ser contado como sete menos frequência, nos outros Evangelhos. Já vimos um exemplo acima com Jesus andando sobre as águas (Mc 6.50; Mt 14.27). Há também Sua advertência de que nos últimos dias muitos virão em Seu nome, dizendo "EU SOU" (ἐγώ εἰμι), e eles desviarão muitos (Mc 13.6; Lc 21.8). Talvez o exemplo mais claro fora de João seja encontrado em Marcos. Quando o sumo sacerdote pergunta a Jesus se Ele é o Cristo, o Filho do Abençoado, Ele responde: "EU SOU, e vereis o Filho do Homem assentado à direita do Poder, e vindo com as nuvens do céu" (Mc 14.6162). Ao ouvir isso, o sumo sacerdote rasga suas vestes e declara que a resposta de Jesus é uma blasfêmia. Outros cuspiram nele e o feriram. A raiva do conselho se deve à forma como Jesus respondeu à pergunta. Perguntaram-lhe se Ele era o Cristo. A resposta de Jesus O identifica como Deus (EU SOU, ἐγώ εἰμι). YHWH salva; não há outro Salvador além de YHWH. A clara identificação de Jesus como Deus, por meio do nome divino EU SOU, resulta na acusação de blasfêmia e na violência contra Ele. 22 Para uma discussão mais completa dos textos a seguir, consulte Bauckham, Testimony of the Beloved Disciple, 246-50.

269

ou nove, dependendo de como se conta o EU SOU final em João 18.23 Todos esses exemplos vêm de Isaías, exceto o primeiro. Em Deuteronômio, lemos: "'Vede agora que eu, eu mesmo, sou ele, e há deus além de mim'" (32.39). A LXX torna isso enfático: "Vejam, ! EU SOU [ἐγώ εἰμι] e não há outro deus além de mim". O uso de EU SOU se torna explícito em Isaías. Por um lado, o nome divino é usado para declarar que YHWH é o primeiro e o último: "Eu, YHWH, sou o primeiro e o último; EU SOU" (Is 41.4), e "EU SOU; eu sou o primeiro e eu sou o último" (Is 48.12). Como será observado no próximo capítulo, esses textos aparecem de forma proeminente no Apocalipse de João. Há também usos enfáticos de EU SOU em Isaías. YHWH declara: "EU SOU, EU SOU [ ‫אוּה יכנָא‬ ‫ ; יכנָא‬ἐγώ εἰμι ἐγώ εἰμι] que apaga as tuas transgressões por amor de mim, e não me lembrarei dos teus pecados" (Is 43.25; cf. 51.12). Esses poucos exemplos mostram claramente que EU SOU marca a identidade divina única de YHWH. Não há outro EU SOU além de YHWH. Esse fato, por si só, explica a violência contra Jesus quando Seus inimigos entendem que Ele está usando EU SOU para marcar Sua identidade.

O significado do uso de EU SOU por Jesus vai além do próprio nome. Quando os judeus tentam apedrejá-Lo, Jesus diz a eles que não acreditem que Ele é o Filho de Deus porque Ele disse que é, mas que olhem para as obras que Ele está fazendo e entendam com isso Sua identidade: "Se eu não faço as obras de meu Pai, não me creiais; mas, se as faço, ainda que não me creiais a mim, crede nas obras, para que saibais e entendais que o Pai está em mim e eu no Pai" (Jo 10.37-38). As declarações do EU SOU no Antigo Testamento nunca aparecem separadas de alguma atividade pertencente somente a Deus. Depois que YHWH declara em Deuteronômio: "EU SOU e não há deus além de mim", Ele passa a marcar Sua identidade única, declarando: "Eu mato e eu faço viver; eu firo e eu curo; e não há quem possa livrar da minha mão" (Dt 32.39). EU SOU é quem dá vida e a tira; Ele é quem julga os vivos e os mortos. Esse texto é ecoado de Isaías. Depois que YHWH declara EU

23

Bauckham apresenta as seguintes listas: em hebraico Dt 32.39; Is 41.4; 43.10, 13, 25; 46.4; 48.12; 51.12; 52.6; e na LXX Dt 32.39; Is 4.14; 43.10; 43.25; 45.18; 46.4; 51.12. Bauckham, The Testimony of the Beloved Disciple, 247.

270

SOU em Isaías 43, Ele continua: "'Antes de mim deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá. Eu, eu sou YHWH, e além de mim não há salvador. Eu anunciei, e salvei, e proclamei, quando não havia deus estranho entre vós; e vós sois as minhas testemunhas", declara YHWH, "e eu sou Deus. E daqui em diante EU SOU; não há quem possa livrar da minha mão; eu trabalho, e quem pode voltar atrás? (Is 43.11-13). Esse EU SOU é o primeiro e o último (Is 41.4; 48.12). Ele é o único que salva, pois não há outro salvador. Ele é o juiz e ninguém pode livrar-se de Suas mãos.

Ele declara as coisas antes que elas aconteçam: "Porque eu sou Deus, e não há outro; eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim, declarando o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam" (Is 46.9-10).

Quando Jesus usa a fórmula EU SOU no Evangelho de João, Ele enfatiza exatamente essas prerrogativas divinas.24 Ele é o primeiro e o último, o eterno: "Antes que Abraão existisse, EU SOU" (Jo 8:58). Ele dá vida a Lázaro por Seu próprio poder e autoridade: "EU SOU a ressurreição e a vida" (Jo 11:25). Ele é o Messias (Jo 4.26), aquele que salva: "Porque, na verdade, se não crerdes que EU SOU, morrereis nos vossos pecados" (Jo 8.24). Ele é o único que declara as coisas antes que elas aconteçam para que Seus discípulos possam saber e crer que Jesus é EU SOU (Jo 13.19; 14.29; 16.4). As declarações EU SOU que usam um predicado nominativo mostram com grande profundidade e clareza a obra salvadora perfeita e completa de Cristo. As afirmações absolutas EU SOU complementam essas afirmações mostrando a identidade divina de Jesus, tanto pelo nome em si quanto pelas prerrogativas divinas exclusivamente ligadas ao nome. Aquele que realiza essa salvação é Deus em carne e osso, EU SOU, o YHWH visto.

CONCLUSÃO

Os escritores do Novo Testamento oferecem uma confissão inequívoca da identidade divina de Cristo. Ele é o verdadeiro Filho de Deus, coigual e coeterno com o Pai. O Novo Testamento estabelece para os fiéis a identidade adequada do Deus Triúno como Pai, Filho e Espírito 24

Bauckham, Testimony of the Beloved Disciple, 242-43.

271

Santo. Cristo está no centro dessa confissão. Conhecemos o Pai somente por meio do Filho e o Filho somente pelo Espírito Santo, que Ele e o Pai enviam a nós. Além disso, sabemos quem é Cristo por meio da lei e dos profetas. Ao ancorarmos nossa confissão de Cristo no Antigo Testamento, permitimos que Deus nos revele Sua identidade trina. Não existe monoteísmo "cristão" ou monoteísmo "judaico"; existe apenas o monoteísmo bíblico. Não postulamos o que é apropriado para Deus; em vez disso, conformamos nossas expectativas ao que Deus revelou sobre Si mesmo. Somente Deus cria, governa Sua criação, perdoa pecados e ressuscita os mortos, entre outras coisas. Jesus faz essas coisas porque Ele é Deus.

No material acima, a identidade de Jesus foi revelada por meio de narrativas históricas dos Evangelhos e nos comentários de passagem das cartas de Paulo. Nessas seções, vemos a linguagem comum da fé expressa em nossas orações, hinos e sermões. No próximo capítulo, examinaremos as seções dogmáticas Novo Testamento que apresentam a identidade de Jesus. As conclusões serão as mesmas; a diferença está no tipo de apresentação que observaremos. Essas discussões mais técnicas aparecem ao lado dos textos mais comuns enfatizados acima. Nossa distinção entre os dois é apenas isso, uma distinção, que mostra de forma útil as diferentes maneiras pelas quais os escritores do Novo Testamento confessaram a identidade divina de Jesus. As duas pertencem uma à outra e nenhuma deve ser privilegiada em nossa confissão da identidade divina de Jesus Cristo, o eterno Filho de Deus.

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CONTEÚDO

9 PAI E FILHO: OS COMPROMISSOS DOGMÁTICOS DO NOVO TESTAMENTO

No capítulo 8, descrevemos o que o Novo Testamento diz a respeito da identidade bíblica de Jesus e que Sua identidade está no centro do conhecimento e da adoração à Trindade. Os escritores do Novo Testamento repetidamente enfatizam que ninguém conhece o Pai sem o Filho e ninguém conhece o Filho sem o Espírito Santo. Nosso acesso ao Pai é feito pelo Filho através do Espírito Santo. No centro do testemunho das Escrituras sobre a identidade única de Deus, que é a Trindade, está o homem Jesus, o Senhor crucificado e ressurreto. A cristologia está no centro da teologia trinitária. Esse ponto dogmático é explicitamente apresentado no Novo Testamento; não é uma conclusão tirada pela igreja, mas um ponto estabelecido pelas Escrituras. Vários textos ricos em teologia do Novo Testamento estabelecem sem ambiguidade a identidade divina de Jesus e Sua centralidade em nossa confissão da Trindade. No capítulo seguinte, examinaremos em detalhes esses textos, que individual e coletivamente mostram como os apóstolos estavam bem cientes das várias questões envolvidas na identificação de Jesus como o verdadeiro Filho de Deus, que é eternamente distinto e, ainda assim, inseparavelmente unido ao Pai e ao Espírito Santo.

EVANGELHO DE JOÃO

O prólogo do Evangelho de João oferece um bom exemplo de como os apóstolos entendiam a identidade única de Deus, o relacionamento eterno entre o Pai e o Filho e o contexto no qual Deus é conhecido. O prólogo de João estabelece vários pontos cruciais: ele mostra como a Escritura deve ser lida e como o autor da Escritura deve ser conhecido; ele demonstra como a pessoa e a obra de Jesus, o Filho de Deus encarnado, pertencem à identidade única de Deus e determinam nosso conhecimento adequado de Deus; e, por fim, ele enfatiza a 273

centralidade da cruz para conhecer corretamente a glória de Deus. As ênfases de João são encontradas em todo o Novo Testamento. O sofrimento, a morte e a ressurreição de Jesus estabelecem o contexto no qual a Trindade deve ser conhecida, adorada e glorificada. Além da pessoa e da obra de Jesus, não há verdadeiro conhecimento de Deus; além da cruz, não há verdadeiro conhecimento do amor de Deus e do relacionamento eterno entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Embora seja comum que os teólogos sistemáticos separem as discussões formais sobre Cristo da Trindade, as Escrituras não conhecem essa distinção. Isso também deve ser dito na discussão sobre soteriologia e os meios de graça. Conhecer o Deus Triúno é conhecer o Cristo crucificado, e isso somente pela obra regeneradora e renovadora do Espírito Santo por meio dos meios da graça. Pregamos com ousadia o puro evangelho de Jesus Cristo porque não há outra maneira de conhecer, adorar e glorificar a Santíssima Trindade. De fato, além do evangelho, o Deus Triúno da Sagrada Escritura permanece desconhecido. Por essa razão, nossas Confissões insistem corretamente que "a principal adoração a Deus é a pregação do Evangelho".1 A Palavra Eterna

"No princípio", as mesmas palavras usadas para abrir o livro de Gênesis abrem o Evangelho de João (Jo 1.1). Para Lutero, o prólogo do Evangelho de João serve como a lente bíblica por meio da qual entendemos o capítulo inicial de Gênesis.2 João mostra de forma impressionante como a Escritura interpreta a Escritura. Isso significa simplesmente que Deus é Seu próprio intérprete. Esse ponto precisa ser enfatizado em todos os momentos. O prólogo de João fornece uma das declarações mais concisas das Escrituras sobre a identidade eterna de Deus. João, no entanto, começa o prólogo de tal forma que a primeira declaração não diz respeito à identidade de Deus, mas sim a como alcançamos esse conhecimento de Deus, ou seja, por meio da exegese 1

ApCA XV.42.

Complete Sermons of Martin Luther, trans. John Lenker (Grand Rapids: Baker Books, 2000), 1.1:174-79.

2

274

adequada da Escritura através da Escritura (scriptura ex scriptura explicanda est).3 João começa como Moisés começou. Para conhecer a identidade de Jesus, o propósito do prólogo de João, devemos retornar a Gênesis e àquilo que foi primeiramente entregue a Moisés. Esses dois textos revelam a identidade de Deus e mostram ao leitor a abordagem adequada para o conhecimento de Deus.

A frase "no princípio" aponta não para o início da criação, não para primeiro momento do ato da criação, mas para aquilo que, como diz Paulo, existia "antes da fundação do mundo" (Ef 1.4). Nossa linguagem se esforça para expressar esse período pré-temporal sem recorrer à linguagem temporal. As palavras de Paulo são o melhor que podemos fazer, mesmo assim elas envolvem certa dificuldade na interpretação.

"Antes" é um marcador de tempo, mas o tempo pertence à criação. "No princípio", como "antes" da fundação do mundo, recorre à circunlocução para designar a eternidade. Nesse sentido, "eternidade" afirma menos do que se poderia esperar. Eternidade significa não temporal, não pertencente aos limites do tempo, não aquilo que é conceitualmente colocado na categoria de criação. É claro que também significa mais do que isso. Há um valor positivo na eternidade, mas o conceito pleno dessa palavra sempre nos escapa. Como seres criados, não temos acesso a pensar ou falar sobre algo ausente de tempo e lugar. As Escrituras se adaptam à nossa condição, às nossas limitações, ampliando as possibilidades conceituais de nossas palavras temporais e espaciais.

João localiza a Palavra nesta eternidade. Quando João declara: "No princípio era o Verbo", ele usa uma expressão bíblica estabelecida em Gênesis para dizer: "Desde a eternidade era o Verbo", ou, como João coloca no início de sua primeira epístola, "Aquele que era desde o princípio" (Ὃ ἧν ἀπῆς, 1 Jo 1.1). A Palavra "era" (ἦν) marca um período anterior e antes de toda a criação. Poderíamos afirmar de modo diferente: sempre que a criação ocorreu, em qualquer ponto em que tudo começou, já havia um passado eterno, uma história, em referência ao seu início.

Hilário de Poitiers acredita que a palavra "era" (erat) funciona como o termo teológico chave no versículo inicial de João. A força de erat significa 3

Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:362.

275

que a Palavra já existia in princípio, pois é incompatível com o significado de "era" que algo não existisse já.4 A criação marca o início do tempo, não da existência. O Verbo pré-temporal, como o criador do tempo, está separado do tempo. Como Ele "era" no princípio, Ele mesmo não tem princípio. A expressão era o Verbo é equivalente ao Verbo é e corresponde às afirmações absolutas EU SOU encontrada em todo o Evangelho de João.

A Palavra eternamente "com" Deus

Depois de estabelecer a existência eterna do Verbo, João imediatamente enfatiza que o Verbo estava com Deus (πρὸς τὸν θεόν) e era Deus (καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος).5 O Verbo está em relação a outro, a Deus.

A Palavra é ao mesmo tempo eternamente distinta de Deus e igualmente Deus. No final do prólogo, João esclarecerá essa linguagem ambígua e padronizará nosso discurso para dizer que o Verbo, que é o Filho de Deus, é eternamente distinto de Deus Pai. Nesse sentido, o prólogo de João demonstra o movimento do Antigo Testamento para o Novo Testamento na descrição normativa do Deus Triúno. A abertura do prólogo, usando o idioma estabelecido do Antigo Testamento, reflete a distinção e a inseparabilidade da Palavra de YHWH e de YHWH. Para João, isso é expresso simplesmente como a Palavra e Deus. Eles são distintos, mas inseparáveis, coiguais, mas coeternos. O final do prólogo esclarece. A Palavra, a Palavra de YHWH, é o Filho de Deus, e Deus, em distinção à Sua Palavra, é o Pai. Uma segunda vez, João enfatiza a distinção eterna entre Deus Pai e Sua Palavra: "Ele estava no princípio com Deus" (πρὸς τὸν, Jo 1.2).

Lutero acha que João usou a palavra "com" para contradizer a razão natural e os futuros hereges.6 Falar de Deus abstratamente, o método preferido da razão natural, fala de Deus à parte de Sua Palavra, à parte de

4

Hilário de Poitiers De Trinitate 2.17. Veja também Basílio de Cesaréia Against Eunomius 2.14–2.14-15.

5 Para uma discussão sobre o uso anarthous de theos, consulte Raymond Brown, The Gospel According to John I-XII (Nova York: Doubleday, 1966), 5.

6 Complete Sermons of Martin Luther, 1.1:181.

276

Seu relacionamento eterno com a Palavra (ὁ λογος). Um "deus" abstrato é um "deus" não pessoal, um "deus" incompreensível ou irracional (ἂλογος). Falar de Deus como sendo anterior à Sua Palavra seria ler João dizendo que a Palavra estava "em" Deus em vez de "com" Deus. Essa abordagem atraiu tanto os arianos (Asterius, o Sofista) quanto os adocionistas (Photinus de Sirmium). A πρὸς de João destrói ambos os ensinamentos os identificando como falsos. O argumento de Lutero é que existe um relacionamento eterno entre o Filho e o Pai, de modo que um nunca existe sem o outro. Isso significa que você não pode conhecer o Pai sem o Filho e não pode conhecer o Filho sem o Pai. O Pai é sempre o Pai do Filho; o Filho é sempre o Filho do Pai. Eles implicam um ao outro.

Desde toda a eternidade, Deus, o Pai, existiu com Sua Palavra.

Eles são um como Deus, mas não um ao outro. O Pai é Deus; o Filho é Deus; mas o Pai não é o Filho e o Filho não é o Pai. Como a igreja expressará mais tarde, Deus Pai e Deus Palavra, embora sejam um, permanecem pessoalmente distintos um do outro. João enfatiza esse ponto em seus versículos iniciais. A preocupação de João parece ser as falsas compreensões da identidade única de Deus que ou colapsam o Pai e a Sua Palavra numa só pessoa ou separam o Pai da Sua Palavra coeterna e coigual. Na história da igreja, o primeiro problema ocorre com Sabélio e o segundo com Ário. Outra forma de expressar a preocupação de João seria dizer que uma visão falsamente construída do monoteísmo bíblico que exclui distinções eternas dentro da identidade única do Deus único e verdadeiro se opõe à autorrevelação de Deus nas Escrituras. Aqui começamos a apreciar a abertura deliberada de João em seu Evangelho.

Não devemos apenas ler o Gênesis à luz da revelação mais clara que nos foi dada no prólogo. Devemos ser lembrados de que o Deus que falou a Moisés, que lhe confiou Sua revelação, é o Deus que deu existência a toda a criação por meio de Sua Palavra coigual e eternamente distinta. Moisés, assim como João, pronunciou o Shemá duas vezes por dia; Moisés, assim como João, registra que no princípio era Deus e a Palavra por meio da qual todas as coisas foram feitas.

Uma característica principal da identidade única de Deus é que 277

somente Ele cria. Gênesis declara: "No princípio, criou Deus os céus e a terra" (Gn 1.1). As Escrituras nunca se cansam de enfatizar esse ponto.

Isaías proclama que a obra da criação pertence exclusivamente a Deus e a nenhum outro: "Porque assim diz YHWH, que criou os céus (ele é Deus!), que formou a terra e a fez (ele a estabeleceu; ele não a criou vazia, ele a formou para ser habitada!): 'Eu sou YHWH, e não há outro'" (Is 45.18).

Quando João declara que todas as coisas vieram a existir por meio do Verbo, que estava com Deus e é Deus, ele fixa precisamente a pessoa de Jesus na identidade única de YHWH. Para que não se perca o peso total de seu argumento, João se repete: "Todas as coisas foram feitar por intermédio dele e sem ele nada do que foi se fez" (Jo 1.3). A Palavra que criou todas as coisas é a Palavra de YHWH: "Pela Palavra de YHWH foram feitos os céus" (Sl 33.6). Novamente Jeremias declara: "Veio a mim a Palavra de YHWH, dizendo: 'Antes que eu te formasse no ventre, eu te conheci'" (Jr 1.4-5). A Palavra de YHWH, a Palavra falada em Gênesis 1, é a própria Palavra aqui confessada por João, a Palavra que ele viu com seus próprios olhos e tocou com suas próprias mãos (1Jo 1.1).

Salvação no nome divino

A obra da criação aponta para a obra da redenção. O Verbo que se tornou carne, que é o Filho de Deus, é aquele por quem fomos criados e em quem temos vida. A salvação é encontrada "em seu nome" (Jo 1.12).

Que "nome" é esse? Charles Gieschen argumenta que é o nome divino.7 Vimos nos dois capítulos anteriores que o nome divino marca a identidade única de Deus, quem Ele é e o que Ele faz. Pertence somente a Ele e aponta especialmente para Sua obra de julgamento e salvação. Em Ezequiel, por exemplo, Deus pronuncia julgamento sobre as nações e Jerusalém para que "saibam que eu sou YHWH".8 Deus traz salvação por causa de Seu santo nome (Ez 36.21-22). Quando Ele reivindicar Seu santo nome, as nações saberão que somente YHWH é o Senhor (Ez 36.23).

Essa salvação chegará ao povo. Deus "aspergirá água limpa" sobre eles, que serão purificados de suas iniquidades e de seus ídolos, e lhes será dado um "coração novo" e um "espírito novo" (Ez 36.25). Deus declara: "Porei 7 8

Charles Gieschen, Angelomorphic Christology (Leiden: Brill, 1998), 272.

Ez 25.11, 17; 26.6; 28.24; 29.9; 30.8; 30.19; 33.29 et passim.

278

dentro de vós o meu Espírito... e vós sereis o meu povo, e eu serei o vosso Deus" (Ez 36.28).

Consistentemente, as Escrituras enfatizam que a salvação é obra somente de YHWH e que o perdão dos pecados é encontrado em Seu nome. Deus declara por meio de Isaías: "Eu, eu sou aquele que apaga as tuas transgressões por amor de mim, e não me lembrarei dos teus pecados" (Is 43.25). A LXX enfatiza ainda mais a questão: "EU SOU EU SOU que apago as suas transgressões" (ἐγώ εἰμι ἐγώ).9 Como mostrado no capítulo anterior, Jesus usa o nome divino para esses mesmos propósitos no Evangelho de João: "Se não crerdes que EU SOU [ἐγώ], morrereis em vossos pecados" (Jo 8.24) e "Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que EU SOU" (ἐγώ εἰμι, Jo 8.28). Esse segundo texto é o que YHWH declara a Isaías: "'Vós sois as minhas testemunhas', declara YHWH, 'e o meu servo a quem escolhi, para que saibais e acrediteis em mim e entendais que eu sou" (ἐγώ, Is 43:10). O público de Jesus entendeu o uso que Ele fez do nome divino. Quando Ele declara: "Antes que Abraão existisse, eu sou" (ἐγώ, Jo 8:58), os judeus querem apedrejá-Lo. Quando os soldados, os principais sacerdotes e os fariseus chegam para prendê-Lo perguntam por Jesus de Nazaré; Ele declara: "Eu sou" (Jo 18.5, ἐγώ εἰμι), e os que ouvem isso caem por terra.

No prólogo de João, a Palavra, que criou os céus e a terra, vem ao mundo, trazendo salvação a todos os que creem em Seu nome. Conforme profetizado por Ezequiel, o Espírito proporciona essa salvação por meio do santo batismo. Aqueles que renascem da água e do Espírito (Jo 3.5) são purificados de suas iniquidades e recebem um novo coração. Esse Espírito nos dá um novo espírito e "testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus" (Romanos 8.16). Que essa salvação, essa ajuda, vem de YHWH não teria passado despercebido pelos ouvintes de João versados nas Escrituras. Quando ele inicia seu prólogo da mesma maneira que Gênesis, prossegue para esclarecer o significado de Gênesis em termos da pessoa de Jesus e declara que a Palavra, que estava com Deus e é Deus, criou todas as coisas, a Palavra de YHWH, seu público saberia 9

Brown, Gospel According to John I-XII, 536.

279

que é YHWH quem faz essas coisas: "Nosso socorro está no nome de YHWH, que fez o céu e a terra" (Sl 124.8; Sl 121.2). João não para por aqui. Aquele que criou os céus e a terra e em cujo nome se encontra a salvação é também aquele que se fez carne e habitou entre nós (ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκῄνωσεν ἐν ἡμῖν, Jo 1.14).

A palavra Tabernáculos

Normalmente, o Novo Testamento usa a atividade para mostrar a identidade, mas há alguns exemplos importantes de identidade que precedem a atividade. O prólogo de João é um desses exemplos. O prólogo começa com uma afirmação ontológica sobre o Verbo e, em seguida, prossegue com a atividade desse Verbo, que é coeterno e coigual a Deus, o Pai. Para João, é a confissão da identidade do Verbo que informa Sua obra como criador e redentor. De fato, como o objetivo do prólogo de João é mostrar que a salvação chegou até nós na pessoa e na obra de Jesus Cristo, o Verbo feito carne, é de grande importância que ele comece com a identidade e a principal atividade que marca essa identidade (criação) antes de passar para o objetivo do prólogo e do restante do Evangelho (redenção). Assim como fez no início do prólogo, João passa, no versículo quatorze, da identidade para a obra: o homem-Deus se fez tabernáculo entre nós (ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν). Tornar-se tabernáculo assinala a atividade. No Antigo Testamento, o tabernáculo marcava o lugar onde o Deus onipresente habitava e onde ocorria a expiação dos pecados. Além disso, os profetas enfatizam cada vez mais que o Messias prometido, o Servo, o Renovo Justo, o Homem, será o tabernáculo no meio do povo, no tempo e para sempre. Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é o verdadeiro e perfeito tabernáculo, Deus conosco (Emanuel), a expiação por nossos pecados.

O uso que João faz da forma verbal de tabernáculo não deve ser obscurecido na tradução, para que as ligações intertextuais com os profetas, vistas claramente no grego, não sejam obscurecidas pelo inglês/português. Essa forma verbal ocorre uma vez no prólogo de João e duas vezes em Apocalipse. João nos diz que aquele que se fez tabernáculo é o que está sentado no trono (Ap 7.15). Em sua visão do novo céu e da nova terra, João escreve: "Ouvi uma grande voz vinda do 280

trono, dizendo: 'Eis que o tabernáculo de Deus [ἡ σκηνὴ τοῦ θεοῦ] está entre os homens. Ele será tabernáculo [σκηνώσει] com eles, e eles serão o seu povo, e o próprio Deus estará com eles como seu Deus'" (Ap 21.3).

A linguagem usada em todo o Apocalipse remete a Ezequiel: "O meu tabernáculo [ἡ κατασκήνωσίς] estará com eles; de fato, eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Então as nações saberão que eu, o Senhor, santifico Israel, quando o meu santuário estiver no meio deles para sempre" (Ez 37.27-28 KJA). Conforme enfatizado no capítulo 7, o Messias, o Renovo Justo, será aquele que habitará no meio do povo: "Canta e alegra-te, ó filha de Sião, porque eis que eu venho, e serei tabernáculo no meio de ti [κατασκηνώσω ἐν μέσῳ], e saberás que o Senhor dos Exércitos me enviou a ti" (Zc 2.10-11). No contexto do prólogo de João, Ez 43.7 (LXX) é destacadamente expresso: "O meu nome habitará no meio da casa de Israel para sempre". O Nome no qual há salvação, o Nome que pertence ao Verbo, que estava com Deus e é Deus, se tornará carne e será tabernáculo entre Seu povo.

Pai e filho

João encerra seu prólogo introduzindo a linguagem de Pai e Filho para esclarecer o que foi dito ao longo do prólogo sobre o relacionamento entre a Palavra e Deus. Como o Verbo se fez carne, a glória de Deus, o Filho, foi vista: "Vimos a sua glória, glória como do Filho único, vindo do Pai, cheio de graça e de verdade" (Jo 1.14). A frase de João afirma três coisas significativas. Primeiro, a glória do Filho é a divindade que Ele compartilha com o Pai. Como é dito em outra parte do Novo Testamento, o Filho é o "resplendor da glória de Deus e a marca exata de sua natureza" (Hb 1.3). A glória do Filho é Seu ser eterno. É a glória que o Filho tinha com o Pai "antes que o mundo existisse" (Jo 17.5). Essa glória se tornou visível porque o Verbo se tornou carne. Ela é vista não apenas em Seus ensinamentos e milagres, como Lutero observa, mas também em Seu sofrimento, morte e ressurreição (Jo 12.23; 12.27).10 Essa é a Glória de YHWH que Isaías e Ezequiel viram e profetizaram (Jo 12.41; Isaías 6; Isaías 53; Ez 1.26-28; 3.22-24). Por fim, a obra salvadora da cruz revela a

10

Complete Sermons of Martin Luther, 1.1:221.

281

glorificação mútua do Pai e do Filho (Jo 17.1, cf. 13.31-32).

Segundo, João descreve o Filho com o termo indefinido monogenes (μονογενής). A palavra grega afirma que esse Verbo feito carne é o Filho único e exclusivo do Pai. Jerônimo traduziu monogenes como unigenitus na Vulgata: o Filho unigênito. Embora estudiosos do Novo Testamento se preocupem com essa tradução, o unigenitus de Jerônimo comunica a substância do que João confessou nesse prólogo, especialmente contra aqueles com tendências arianas. Unigênito, como único ou somente, expressa a relação ontológica exclusiva e única que existe entre o Pai e o Filho. Além disso, ela distingue o Filho, que é assim por natureza, daqueles que são filhos renascidos de Deus, não por natureza, mas pela graça (Jo 1.13) por meio do batismo (Jo 3.5).

Isso leva ao terceiro ponto de João. A frase “o Filho unigênito do Pai” (παρὰς) ressalta a relação eterna entre o Filho e o Pai, o unigênito e o não gerado. A frase se refere à geração eterna do Filho a partir do Pai. Mais adiante no Evangelho, Jesus usa a mesma expressão para descrever Seu relacionamento pré-temporal (eterno) com o Pai: "Eu vim do Pai [παρὰ τοῦὸς] e vim ao mundo, e agora estou deixando o mundo e indo para o Pai" (Jo 16.28). Da mesma forma, Jesus usa essa expressão para descrever a missão temporal e a provisão eterna do Espírito do Pai: "Mas, quando vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai [παρὰ τοῦ πατρὸς], o Espírito da verdade, que procede do Pai [παρὰ τοῦὸς], ele dará testemunho de mim" (Jo 15.26). Muito será dito sobre esse versículo no capítulo sobre a procedência do Espírito Santo, mas, para nossos propósitos aqui, é suficiente observar o uso da frase "do Pai" nessas passagens que descrevem o relacionamento eterno que existe entre o Pai e o Filho (Jo 1.14; 16.28) e o Pai e o Espírito Santo (Jo 15.26).

Em grande parte de seu argumento, João enfatizou a distinção eterna entre o Pai e o Filho no prólogo. Ele termina ressaltando a unidade deles. O Pai e o Filho são eternamente distintos e intimamente um só: “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o deu a conhecer” (Jo 1.18).11 O Filho dá a conhecer o Pai (distinção) 11

Para conhecer as testemunhas textuais desse versículo e as diferentes formas 282

porque Ele está no seio do Pai (unidade). Como Jesus afirma mais adiante, “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14.9) porque "Eu estou no Pai e o Pai está em mim" (Jo 14.10). Sem dúvida, a expressão mais clara e concisa de unidade e distinção é Jo 10.30: “Eu e o Pai somos um” (ἐγὼ καὶ ὁ πατὴρ ἓσμεν, Jo 10.30). Nesse versículo, temos a distinção (ἐσμεν) e a unidade (ἓν). O neutro ἓν enfatiza a essência divina. Sua unidade é encontrada não na pessoa (distinção), mas na natureza (unidade).12 John Bengal faz um sofisma afirmando que ἐσμεν refuta Sabélio e ἓν Ário.13 Da mesma forma, Johann Gerhard diz que é “um” contra Ário e “são” contra Sabélio.14 Essa distinção e unidade eternas do Pai e do Filho não foi perdida pelos inimigos de Jesus. Depois que Ele disse que Ele e o Pai são um, os judeus pegaram em pedras para apedrejá-Lo. Quando Ele perguntou por que, eles responderam: "Por blasfêmia, porque, sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo" (Jo 10.33). Essa não foi a primeira vez que os inimigos de Jesus não entenderam o significado do que Jesus estava fazendo e dizendo. No início do Evangelho, lemos: "Os judeus procuravam ainda mais matá-lo, porque não só violava o sábado, mas também chamava a Deus de seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus" (Jo 5.18). Agostinho observa que os inimigos de Jesus entendiam muito claramente o que os arianos não conseguiam entender.15 João termina o prólogo enfatizando o mesmo ponto com o qual de traduzi-lo, consulte Brown, Gospel According to John I-XII, 17. A tradução oferecida aqui é de minha autoria.

12 Cf. Abraham Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1659), 3:109: "Eu e o Pai somos um (unum). Cristo não diz “Eu e o Pai somos unus, mas Ele afirma que são unum”, para que a distinção das pessoas não fosse prejudicada".

13 John Bengel, Bengel's New Testament Commentary (Grand Rapids: Kregel, 1981), 1:651.

14 Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and On the Trinity, trans. Richard Dinda (St. Louis: CPH, 2007), Exegesis III, §51, 307; cf.

Augustine On Heresies 7 (WSA I/18); Thomas Aquinas, Commentary on the Gospel of John, trans. Fabian R. Larcher, 1451 (Lander, WY: Aquinas Institute for the Study of Sacred Doctrine, 2013), 2:63.

15 Agostinho In Johannis Evangelium Tractatus 48.8 (PL 35, 1744); cf. Thomas Aquinas, Gospel of John, 1456, 2:67; Johann Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §22 (ed. Cotta, 373).

283

ele começou: somente Deus se revela a nós, e somente Deus determina Sua identidade. O Filho veio a nós para que pudéssemos conhecer o Pai. Seguem-se dois pontos relacionados. Primeiro, se buscarmos conhecer o Pai sem o Filho, quaisquer que sejam nossas motivações, isso “não é segundo o conhecimento”, mas na nossa ignorância (Rm 10.2; cf. Jo 16.23). Segundo, Deus é Seu próprio intérprete e determina Sua própria identidade. A chave para conhecer e falar corretamente sobre o Deus Triúno é encontrada na pessoa e na obra de Cristo, o eterno Filho de Deus, distinto do Pai em pessoa, um com o Pai em natureza. Quando o Concílio de Calcedônia (451) confessou que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, perfeito em divindade e perfeito em humanidade, consubstancial com o Pai em divindade e consubstancial conosco em humanidade, ele não estava dizendo nada mais do que o que João registra em seu prólogo: o Verbo se fez carne (ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο). A Palavra é Deus, e esse Deus assumiu a carne, tornando-se verdadeiramente homem.

A diferença está na expressão idiomática usada para expressar a identidade de Deus. No entanto, o julgamento a respeito da identidade desse Deus permanece o mesmo para João e para aqueles reunidos em Nicéia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia.16 SALMO 110 COMO TEXTO DO NOVO TESTAMENTO

No prólogo de João, os principais temas que marcam a identidade divina de Jesus são a criação e a salvação. Os escritores do Novo Testamento usaram o Salmo 110, o texto do Antigo Testamento mais frequentemente citado no Novo Testamento, para mostrar o senhorio escatológico de Jesus sobre todas as coisas. O Salmo 110:1 diz: O Senhor disse ao meu Senhor: "Sente-se minha direita, até que eu ponha seus inimigos como estrado de seus pés".

Vinte e uma citações ou alusões a esse salmo aparecem no Novo Testamento.17 O Senhorio e o Governo de Cristo se estendem sobre todas 16

David Yeago, "The New Testament and Nicene Dogma: A Contribution to the Recovery of Theological Exegesis", Pro Ecclesia 3 (1994): 152-64.

17 Richard Bauckham, "God Crucified" em Jesus and the God of Israel (Grand 284

as coisas. Os apóstolos mostram isso ecoando o que foi dito de Deus no Antigo Testamento. Deus "fez todas as coisas" (Is 44.24), "formou todas as coisas" (Jr 10:16) e "cuida de todas as coisas" (Sabedoria de Salomão12.13). No Novo Testamento, somos informados de que “todas as coisas” foram feitas por meio de Jesus (Jo 1.3; 1 Co 8.6) e para Ele (Cl 1.16). Como criador de todas as coisas, Ele também é “antes de todas as coisas” (Cl 1.17). Aquele por meio de quem todas as coisas foram criadas é também aquele por meio de quem “todas as coisas se mantêm unidas” (Cl 1.17) e “existem” (1 Co 8.6). Os apóstolos juntam isso ao expressar o senhorio escatológico de Cristo com o Salmo 110. Ele é o Senhor de tudo (Atos 10.36), pois “todas as coisas” foram colocadas sob Seus pés (Ef 1.22) e estão sujeitas a Ele (Fp 3.21).

Como Deus poderia usar mediadores angelicais para executar Seu governo, os escritores do Novo Testamento usam ainda o Salmo 110 para enfatizar que o governo e a autoridade de Jesus estão à parte e, de fato, são totalmente transcendentes ao que pertence aos anjos. Em Efésios, por exemplo, lemos que o exaltado Jesus, que está assentado à direita de Deus e tem todas as coisas sob Seus pés, está "muito acima" de tudo o que pode ser nomeado ou imaginado (Ef 1.20-21).18 Aquele que desceu subiu "muito acima de todos os céus" para que pudesse preencher "todas as coisas" (Ef 4.10). A metáfora da altura usada no Antigo Testamento para demonstrar a transcendência de Deus sobre os anjos e sobre todas as coisas criadas é usada aqui para descrever o senhorio de Cristo.

O uso frequente do Salmo 110 no Novo Testamento provavelmente decorre do próprio apoio de Jesus e do uso desse texto para mostrar Sua identidade como Senhor e filho de Davi. Todos os três Evangelhos sinóticos registram o seguinte diálogo entre Jesus e alguns fariseus.

Rapids: Eerdmans, 2008), 22: Mt 22.44; 26.64; Mc 12.36; 14.62; 16.19; Lc 20.4243; 22.69; Atos 2.33-35; 5.31; 7.55-56; Rm 8.34; 1Co 15.25; Ef 1.20; 2.6; Cl 3.1; Hb 1.3; 1.13; 8.1; 10.12-13; 12.2; 1Pe 3.22; Ap 3.21. Veja também Martin Hengel, Studies in Early Christology (Edimburgo: T&T Clark, 1995), 133-34.

18 Richard Bauckham, "The Throne of God and the Worship of Jesus", em Jesus and the God of Israel, 177-78.

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“O que você pensa sobre o Cristo? De quem ele é filho?"

Eles lhe responderam: "O filho de Davi". Ele lhes disse: "Como é, então, que Davi, no Espírito, o chama de Senhor, dizendo: 'O Senhor disse ao meu Senhor: Sente-se minha direita, até que eu ponha os seus inimigos debaixo dos seus pés'? Se, pois, Davi o chama de Senhor, como é ele seu filho?"” (Mt 22.42-45; cf. Mc 12.35-37 e Lc 20.41-44).

Aquele cujo governo e autoridade transcendem totalmente os anjos e cujo senhorio se estende sobre todas as coisas é aquele que habitou entre nós, Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Senhor e filho de Davi, e tudo isso o Espírito Santo fez com que fosse registrado para nós no Salmo 110.

A outra observação feita por Jesus diz respeito à compreensão e interpretação apropriados. O Antigo Testamento nos ensina a interpretar o Novo Testamento e, ao mesmo tempo, o Novo Testamento nos ensina a interpretar o Antigo Testamento. Ambos se corroboram mutuamente e ressaltam ainda mais a unidade e a perfeição das Escrituras. Vimos isso acima com o prólogo de João e sua paráfrase de Gênesis à luz de Cristo.

Aqui, o uso que Jesus faz do Salmo 110 e sua interpretação nos mostra a maneira correta de ler de acordo com as Escrituras. Em nenhum lugar Cristo indica a presença de um significado obscuro, como se fossemos incentivados a ler o Salmo 110 à parte do Novo Testamento e das palavras de Cristo. Davi quis dizer o que Jesus diz que Ele quis dizer. A compreensão adequada do Salmo 110 revela Jesus, o Senhor de Davi e o filho de Davi.

EPÍSTOLA AOS HEBREUS A divindade de Cristo

De maneira semelhante ao prólogo do Evangelho de João, os dois primeiros capítulos de Hebreus demonstram que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, compartilhando a identidade única de Deus e assumindo a verdadeira humanidade para nossa salvação. O autor de Hebreus enfatiza a distinção entre Jesus e os anjos. Jesus não é um mero agente divino e nunca deve ser confundido com os anjos. Hebreus 286

reinterpreta vários textos do Antigo Testamento à luz da pessoa e da obra de Jesus Cristo, a fim de atestar um entendimento apropriado do Salmo 110. Hebreus 1.1-4 diz: Há muito tempo, em muitos momentos e de muitas maneiras, Deus falou aos nossos pais por meio dos profetas, mas nestes últimos dias ele nos falou por meio de seu Filho, a quem designou herdeiro de todas as coisas, por meio de quem também criou o mundo. Ele é o resplendor da glória de Deus e a marca exata de sua natureza, e sustenta o universo pela palavra de seu poder. Depois de purificar os pecados, ele se assentou à direita da Majestade nas alturas, tendo se tornado tão superior aos anjos quanto o nome que é mais excelente do que o deles.

A epístola aborda a questão da identidade de Jesus de forma semelhante ao prólogo de João. O versículo inicial diz respeito à revelação de Deus e à maneira pela qual Deus comunica a Si mesmo e Sua obra a nós (1.1). Embora exista um contraste entre as muitas e as diversas maneiras pelas quais Deus falou por meio dos profetas da antiguidade e a revelação decisiva e final foi dada nos últimos dias por meio do Filho, a continuidade prevalece no fato de que é o mesmo Deus que fala e a mesma mensagem de salvação é transmitida (Hb 4:2; 11:30).19 Após o versículo inicial, encontramos uma declaração clara da divindade plena e eterna do Filho (1.2-4). Esses versículos iniciais declaram de forma concisa a pré-existência, encarnação, morte e exaltação do Filho e atribuem resumidamente as sete características a Ele que pertencem à identidade única de Deus.20 (1) Como herdeiro de todas as 19

Harold Attridge, The Epistle to the Hebrews (Filadélfia: Fortress Press, 1989), 37-39.

20 Richard Bauckham refere-se a isso como a identidade narrativa sétupla do Filho de Deus. Bauckham, "Monotheism and Christology in Hebrews 1", Early Jewish and Christian Monotheism, ed., Loren T. Stuckenbuch e Wendy E. S. North (Edinburg: T&T Clark, 2004). Loren T. Stuckenbuch e Wendy E. S. North (Edimburgo: T&T Clark, 2004), 173. Para o que se segue, veja Bauckham, "The Divinity of Jesus in the Letter to the Hebrews", em Jesus and the God of Israel, 237-39.

287

coisas, Ele tem domínio sobre tudo e todos estão sujeitos a Ele. (2) Como aquele por meio de quem o mundo foi criado, Ele é o criador e, portanto, está separado de toda a realidade criada e de qualquer coisa que não seja Deus. (3) Como o resplendor da glória de Deus e a marca exata de Sua natureza (χαρακτὴρ τῆς ὑποστάσεως αὐτοῦ), Ele é coigual e coeterno com Deus. (4) Como aquele que sustenta o universo pelo poder de Sua palavra, Ele providencialmente governa e rege todas as coisas. (5) Como aquele que faz a purificação dos pecados, Ele é tanto sacerdote quanto sacrifício todo-suficiente para nossa redenção eterna. (6) Como aquele que "se assentou" à direita da Majestade "nas alturas", Ele ocupa o trono transcendente de Deus e deve ser adorado. (7) Como aquele que herdou "o nome", Ele é muito superior aos anjos, pois tem o nome divino, que é o nome acima de qualquer outro nome.

Após essa descrição inicial da plena divindade do Filho, o autor de Hebreus apela para sete textos do Antigo Testamento que demonstram a superioridade de Cristo sobre a hoste angelical. O número sete, como vimos em outro lugar, ressalta a completude e a suficiência total do que se segue. O Filho é superior aos anjos (Sl 2.7 e 2 Sm 7.14) e é adorado por eles (Dt 32.43). De fato, os anjos são criados por Aquele a quem adoram (Sl 104.4). Aquele que os criou e aquele que eles adoram reina com Deus Pai no trono (Sl 45.6-7). O Filho é eterno, o mesmo de eternidade em eternidade, enquanto a criação que Ele fez é feita e muda (Sl 102.25-27).

A citação de textos do Antigo Testamento termina com o Sl 110.1, que foi dito apenas sobre Filho, que foi exaltado ao trono de Deus para governar para sempre. Esse capítulo inicial estabelece uma distinção absoluta entre o Filho e Seus anjos. Os anjos são “espíritos ministradores” enviados para servir. Eles são servos de Deus e estão diante do trono.

Cristo está assentado à direita de Deus (Hb 1.13; Sl 110.1). Ele ocupa o trono de Deus e governa com Deus (Hb 1.8-9; Sl 45.6-7). Ele lançou os fundamentos da Terra, criou tudo o que existe e é eterno (Hb 1.10-12; Sl 102.25-27). Cristo criou os anjos e eles O servem.

Por que o autor de Hebreus enfatiza de forma tão decisiva a superioridade de Cristo em relação aos anjos? A razão parece ser dupla.

Em primeiro lugar, Deus usou os anjos como agentes divinos para realizar Seu governo e governança do mundo. Será que Jesus pertence a essa hoste 288

angelical e foi um desses intermediários usados por Deus? Esse capítulo inicial responde de forma clara que não a essa pergunta. A segunda questão tem a ver com o fato de mostrar como Cristo é ao mesmo tempo superior e inferior aos anjos. Richard Bauckham argumenta que os anjos são usados como medidas de status ontológico.21 O Cristo exaltado, que compartilha o trono de Seu Pai nas alturas, está muito acima dos anjos e, de fato, de toda a realidade criada, pois compartilha da realidade transcendente de Deus. Esse é o objetivo do primeiro capítulo de Hebreus. O segundo capítulo mostra a humilhação do Filho. Quando o Filho assumiu a carne humana, Ele foi feito, por pouco tempo, inferior aos anjos (Sl 8.4-6; Hb 2.6-8). Os anjos marcam essa distinção para nós.

Bauckham explica: "Estar acima dos anjos é ser Deus, estar abaixo dos anjos é ser humano. Acima dos anjos, Jesus transcende toda a criação, compartilhando a identidade divina como Criador e Governante até mesmo dos anjos. Abaixo dos anjos, Jesus compartilha a identidade comum dos humanos terrenos no nascimento, no sofrimento e na morte."22 A humanidade de Cristo

O capítulo inicial de Hebreus estabelece a divindade de Cristo, aquele que está muito acima de todos os anjos, sentado à direita de Deus.

O segundo capítulo, por outro lado, estabelece a humanidade de Cristo, aquele que foi feito um pouco inferior do que os anjos, que compartilha da carne e do sangue com todos os humanos (Hb 2.7,14; Sl 8.4-6). O Filho de Deus assume verdadeiramente a humanidade para realizar nossa salvação. Ele prova a morte por todos (Hb 2.9), destruindo por meio de Sua morte aquele que tem o poder da morte, o diabo (Hb 2.14). Como autor da nossa salvação (Hb 2.10), Ele é o nosso grande sumo sacerdote (Hb 4.14).

O propósito da Encarnação, a verdadeira humanidade pelo Filho, ocupa o restante de Hebreus. Ao ser feito um pouco menor do que os anjos, Cristo ofereceu a Si mesmo como sacrifício pelos pecados de todos.

21 22

Bauckham, "Divinity of Jesus", 241.

Bauckham, "Divinity of Jesus", 241.

289

Aquele para quem e por meio de quem todas as coisas existem (Hb 2.10) torna-se o Filho do Homem e é nomeado nosso Sumo Sacerdote (Hb 5.5). Mais uma vez, os Salmos descrevem isso. O Salmo 8 declara a encarnação, a humilhação e o senhorio escatológico de Cristo (Hb 2.6-8).

Os Salmos 2 e 110, que já foram usados no capítulo inicial de Hebreus, aparecem novamente para enfatizar que Cristo não se elevou para ser feito Sumo Sacerdote, mas foi designado pelo Pai (Hb 5.5-6). Por causa disso, o trono da glória, compartilhado pelo Pai e pelo Filho em toda a eternidade, é também o trono da graça, do qual os pecadores podem se aproximar agora com confiança, buscando ajuda em tempos de necessidade e recebendo misericórdia (Hb 4.16).

O Salmo 110.1 demonstra a coigualdade entre o Filho e o Pai e seu senhorio compartilhado. Esse ponto aparece em todo o Novo Testamento. No entanto, o que é exclusivo de Hebreus é o apelo adicional ao Salmo 110.4: "Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque". O autor de Hebreus lê esse texto obscuro por meio das lentes de outro texto igualmente obscuro, Gn 14.18 (Hb 7.1-2). Este Melquisedeque é tanto sacerdote quanto rei. O uso de Melquisedeque para descrever o sumo sacerdócio de Cristo vem do Salmo 110. Novamente, nenhum outro texto ocorre com mais frequência no Novo Testamento do que esse Salmo. O senhorio de Cristo, Sua coeternidade e coigualdade com o Pai, não tem referência mais clara. O que devemos fazer então com o Salmo 110.4 e a descrição do sacerdócio do Filho? Para o autor de Hebreus, Gênesis 14 e o Salmo 110 enfatizam a eternidade do Filho.

Melquisedeque é "sem pai, nem mãe, nem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida"(Hb 7.3). No contexto de Hebreus, o Salmo 110.4 ressalta a identidade divina de Cristo, nosso sumo sacerdote eterno.

Nesse sentido, a reflexão sobre a obra expiatória perfeita e totalmente suficiente de Cristo, que se seguirá agora em Hebreus, está firmemente fundamentada na verdadeira divindade e humanidade do Filho, nosso Senhor, Jesus Cristo.23 23

Os títulos usados em Hebreus para Cristo são variados e intercambiáveis. Veja, por exemplo, Filho (1.2; 1.5; 1.8; 5.5; 7.28), Filho de Deus (4.14; 6.6; 7.3; 10.29), Jesus (2.9; 3.1; 6.20; 7.22; 10.19; 12.2; 12.24; 13.12;13.20), Cristo (3.6; 5.5; 6.1; 9.11; 9.14; 9.24; 9.28; 11.26), Jesus Cristo (10.10; 13.8; 13.21) e Senhor (2.3; 290

Depois de estabelecer a identidade do Filho como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, o autor de Hebreus passa a uma reflexão detalhada sobre a obra salvadora do Filho como Sumo Sacerdote. Cristo é o grande Sumo Sacerdote, "o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos humanas, isto é, não desta criação" (Hb 9.11; cf. Dn 2.45), que entrou de uma vez por todas nos lugares santos por meio de Seu próprio sangue, assegurando uma redenção eterna (Hb 9.12). Ele é o nosso mediador que comparece na presença de Deus em nosso favor (Hb 9.24), intercedendo por nós (Hb 7.25). O autor de Hebreus encerra essa longa reflexão sobre a obra expiatória de Cristo reunindo Seu sacerdócio e Seu senhorio: “E, havendo Cristo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à direita de Deus, esperando desde então que os seus inimigos lhe fossem postos por estrado dos pés” (Hb 10.12). Ele apareceu de uma vez por todas para eliminar o pecado pelo sacrifício de Si mesmo (Hb 9.26). Sua obra de expiação é completa e suficiente. Ele se assenta no trono à direita do Pai. Se quisermos entender apropriadamente a identidade bíblica de Deus, devemos levar em consideração tanto a criação quanto a redenção.

O Deus que cria é o mesmo Deus que salva. O papel de Sumo Sacerdote de Cristo se expressa no contexto de Seu senhorio messiânico. Isso quer dizer que não conseguimos entender o senhorio de Cristo, o senhorio exclusivo de Deus, à parte de Seu sacrifício expiatório e de Sua morte.

Novamente nos encontramos na cruz e tudo o que ela implica para conhecer corretamente a identidade bíblica de nosso Deus Triúno.

Espírito Santo

Outra característica importante de Hebreus diz respeito ao papel do Espírito Santo. Até certo ponto, o autor de Hebreus emoldura apropriadamente toda a obra expiatória do Filho por referência à Trindade. O relacionamento entre o Pai e o Filho na obra expiatória de nosso Sumo Sacerdote é evidente em todo o texto. Menos óbvio, mas igualmente importante, é o papel desempenhado pelo Espírito Santo nessa obra de salvação.

7.14; 13.20).

291

Depois de estabelecer a identidade do Filho no primeiro capítulo, o segundo capítulo começa com uma advertência. Não devemos nos esquecer da "nossa grande salvação", que foi declarada pelo Filho (a quem Ele aqui designa como Senhor, usando a linguagem do Salmo 110), testemunhada por Deus Pai e entregue pelo dom do Espírito Santo (Hb 2.3-4). Desse ponto em diante, o Espírito Santo desempenha um papel instrumental na obra de salvação do Filho. O testemunho profético dado a essa salvação pertence à obra do Espírito Santo, que anunciou essas coisas há muito tempo por meio dos profetas (Hb 3.7; 10.15). Jesus, feito menor que os anjos, sofreu a morte para que pudesse provar a morte por todos. Isso Ele fez “pela graça de Deus” (Hb 2.9). O fato de esta ser uma referência ao Espírito Santo está de acordo com o restante de Hebreus.

No ponto alto da exposição da obra expiatória de Cristo, o autor de Hebreus declara que a redenção eterna garantida para nós foi realizada pelo “sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo sem mácula a Deus” (Hb 9.14). O que foi dito sobre a "graça de Deus" em Hb 2.9 se refere aqui ao Espírito eterno. No capítulo seguinte, o autor de Hebreus declara que aqueles que desprezam o Filho de Deus (identidade) e profanam Sua obra salvadora (atividade), ultrajam "o Espírito da graça" (Hb 10.29). O Espírito da graça é o Deus da graça de Hebreus 2 e o Espírito eterno de Hebreus 9. Uma vez que a obra da salvação é a obra tanto do Filho quanto do Espírito, inseparavelmente unidos em sua obra por nós, o autor de Hebreus pode afirmar que participar do dom da salvação trazido pelo Filho é participar do dom do Espírito (Hb 6.4).

FILIPENSES 2:5-11

Muitos estudiosos acreditam que Fp 2.5-11 se originou de um hino antigo que Paulo escreveu ou adaptou para sua epístola.24 N. T.

24

Ralph Martin, Carmen Christi: Philippians 2:5-11 in Recent Interpretation and in the Setting of Early Christian Worship (Grand Rapids: Eerdmans, 1983); N. T. Wright, The Climax of the Covenant (Minneapolis: Fortress Press, 1992), 56-98.

Sobre a autoria paulina do hino, veja Bauckham, "God Crucified", 41; Arthur W. Wainwright, The Trinity in the New Testament (Eugene, OR: Wipf and Stock, 2001), 87.

292

Wright considera esse hino uma das passagens mais notáveis de todo o Novo Testamento.25 O hino torna explícita a identidade única de YHWH conforme apresentada no Antigo Testamento e esclarece de forma significativa a nomeação do YHWH Triúno. No centro da identidade de YHWH está Cristo. Apesar desses temas elevados, Paulo demonstra pouca urgência em explicar ou justificar o conteúdo cristológico do hino.

Ele escreve: 5 Tende entre vós o mesmo sentimento que tendes em Cristo Jesus, 6 o qual, sendo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus como algo a ser usado para seu próprio proveito, 7 antes, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens. E sendo encontrado em forma humana, 8 Ele se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz.

9 Por isso Deus o exaltou ao mais alto lugar e lhe deu o nome que está acima de todo nome, 10 para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, 11 e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.26

No capítulo 7, relacionei o nome divino em hebraico e em grego para indicar a forma padrão em que a LXX traduz YHWH. Por exemplo: "Ouve, Israel: O Senhor [YHWH/κύριος] nosso Deus, o Senhor [YHWH/κύριος] é um só" (Dt 6.4). Embora o Novo Testamento nunca use o hebraico YHWH, ele emprega consistentemente a tradução da LXX, kyrios, para indicar o nome divino. Somente em Romanos podem ser vistos vários exemplos disso: Rm 4.8 (Sl 32.2); Rm 9.28 (Is 10.22); Rm 9.29 (Is 1.9); Rm 10.16 (Is 53.1); Rm 11.34 (Is 40.13); e Rm 15.11 (Sl 117.1). Em todos esses casos, Paulo substitui YHWH por kyrios. No 25

Wright, Clímax of the Covenant, 56.

Esta é minha própria tradução. Ela reflete os argumentos de Wright e Bauckham. Wright, Climax of the Covenant, 62-90; Richard Bauckham, "Paul's Christology of Divine Identity", em Jesus and the God of Israel, 197- 210.

26

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mínimo, isso nos diz que, no vocabulário teológico de Paulo, kyrios funciona como o substituto grego apropriado para YHWH.27 O que devemos pensar do uso que Paulo faz de kyrios para Jesus? O que devemos pensar do fato de Paulo atribuir os textos de YHWH do Antigo Testamento a Jesus? A resposta em ambos os casos é que Paulo confessa inequivocamente que Cristo pertence à identidade única de YHWH. O hino começa estabelecendo a identidade de Jesus Cristo.

Embora na forma de Deus (v. 6), Ele se humilhou e nasceu como homem (v. 7). O Cristo pré-encarnado, igual a Deus, o Pai, não considera Sua igualdade com o Pai como algo a ser usado para Seu próprio benefício.

Como observa N. T. Wright, não se pode tirar vantagem de algo que ainda não se possui.28 Além disso, a conclusão do hino depende da igualdade do Cristo preexistente com o Pai. O que quer que queiramos dizer sobre o Pai como Deus, também devemos dizer sobre o Cristo preexistente. O hino, na mesma perspectiva, acrescenta que esse Cristo preexistente, coigual e coeterno com o Pai, que não considerava Sua igualdade algo do qual iria tirar proveito (v. 6), humilhou-Se para nascer como homem (v.

7). A questão expressa nesses versículos não tem nada a ver com ganhar ou perder o que o Cristo pré-encarnado possui eternamente. O hino não prevê um despojamento da essência ou da natureza, mas sim uma autodoação de Cristo para a redenção do homem.29 Essa autodoação, essa encarnação de Deus, leva à morte na cruz (v. 8). A notável confissão do hino revela com clareza aquilo que os profetas confessaram de forma mais obscura: o sofrimento e a cruz são constitutivos da identidade única de Deus. N. T. Wright afirma: “A verdadeira humilhação da encarnação e da cruz é que alguém que era Deus e que nunca, durante todo o processo, deixou de ser Deus, pôde abraçar tal vocação.”30 No Calvário, vemos a verdade da identidade de Deus. O que quer que queiramos dizer sobre Deus e o que quer que pensemos que significa ser Deus, de acordo com as Escrituras, devemos colocar no centro dessa descrição a cruz e Cristo 27

Hurtado, Lord Jesus Christ, 112. Hurtado fornece várias outras passagens paulinas para fundamentar ainda mais esse ponto.

28 Wright, Climax of the Covenant, 82.

29 Wright, Climax of the Covenant, 83-84.

30 Wright Climax of the Covenant, 84.

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crucificado.

O hino começa confessando sem ambiguidade a coigualdade e a coeternidade de Cristo e do Pai, e que esse Cristo se tornou homem para nossa salvação, sofrendo a morte na cruz. Portanto, por essa razão, por causa do sofrimento na cruz, o Pai O exaltou ao mais alto lugar e conferiu a Ele o Nome que está acima de todo nome (v. 9). O Nome que está acima de todo nome é uma referência ao nome divino, a YHWH.31 A quem ou a que se refere a exaltação? A resposta, é claro, é a Jesus (vv. 1011), mas isso não responde realmente à pergunta. Em que sentido isso se refere a Jesus? A exaltação não se refere à natureza divina de Cristo, mas à honra e à adoração concedidas à humanidade assumida de Cristo, o homem Jesus, como Senhor, como YHWH. Deus, o Pai, exaltou o homem Jesus Cristo. Aqui, o Pai declara e reconhece publicamente a obra expiatória completa e totalmente suficiente de Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Além disso, Ele direciona toda a honra e adoração do Pai ao Cristo crucificado. Por causa dessa obra expiatória completamente suficiente, ao nome de Jesus todo joelho deve se dobrar (v. 10) e toda língua deve confessar que Jesus Cristo é Senhor, e isso para a glória do Pai (v. 11; cf. Jo 5.23). O hino começa distinguindo o Cristo préencarnado do Pai. O hino termina identificando o homem Jesus com o Pai. Conhecemos o homem Jesus como Senhor para a glória do Pai e isso somente, como Paulo enfatiza em outro lugar, pelo Espírito Santo (1Co 12.3). Mais uma vez Cristo está no centro de nossa confissão trinitária.

Três coisas são particularmente dignas de nota no final desse hino.

Primeiro, o senhorio escatológico de Cristo significa que todas as pessoas no final dos tempos, sejam elas crentes ou descrentes, dobrarão os joelhos ao nome de Jesus, reconhecendo-o como o Senhor para a glória de Deus Pai. Outra observação é feita para os crentes. A adoração de Jesus pelos fiéis envolve a cruz e a crucificação. O Pai concede o nome divino a Seu Filho, Jesus, que na eternidade é Deus, mas no tempo se humilha, 31

Cf. Bauckham, "Paul's Christology of Divine Identity", 199: "Não pode haver dúvida de que 'o nome que está acima de todo nome' (v. 9) é YHWH: é inconcebível que qualquer escritor judeu pudesse usar essa frase para um nome que não fosse o nome único de Deus".

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nascendo como homem e sofrendo a morte em uma cruz, e todos os crentes confessarão que Ele é o Senhor pelo poder do Espírito Santo (Fp 2.1; 1Co 12.3). Adorar o Pai é adorar o Jesus crucificado, e isso pelo Espírito. Além disso, não há adoração ao Pai sem o homem Jesus e Sua cruz. Da mesma forma, não pode haver compreensão da identidade de YHWH sem a encarnação e a crucificação de Jesus.

Em segundo lugar, a compreensão do hino requer um entendimento completo dos profetas. O conteúdo do hino tem base na revelação que Deus fez de Si mesmo e de Sua identidade única aos profetas. O hino não nos dá uma “nova” maneira de pensar sobre Deus; em vez disso, ele esclarece para nós o que Deus já havia declarado sobre Si mesmo no Antigo Testamento. No capítulo 7, destacamos especialmente “o Servo alto e elevado” que seria exaltado à mão direita de Deus. Perguntamos como o Servo, que compartilha o trono eterno de Deus, poderia ser exaltado. A resposta é que a exaltação pressupõe humilhação, a encarnação do Servo. Os profetas descrevem essa humilhação detalhadamente. O Servo será desprezado e rejeitado pelos homens; Ele será um homem de dores que carregará as nossas dores e levará as nossas tristezas (Is 53.2-3). Ele será ferido por causa de nossas transgressões e esmagado por causa das iniquidades, pois "YHWH fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós" (Is 53.5-6). Aquele que carrega nossas iniquidades é "YHWH, nossa justiça" (Jr 23.5), e Ele nos justificará (Is 53.11). Quando isso acontecer, YHWH declara, derramarei o Espírito de graça e misericórdia e as pessoas "olharão para mim, a quem traspassaram, e prantearão, como quem pranteia por seu único filho, e se amargurarão por ele, como quem está em amargura por seu primogênito"(Zc 12.10 KJV; Jo 19:37; Ap 1.7). YHWH diz que eles olharão para "mim", a quem traspassaram, e ao mesmo tempo se lamentarão "por ele". O YHWH que foi transpassado permanece distinto do YHWH que o enviou. Aquele que foi ferido por nossas transgressões, aquele que foi transpassado por nós, que foi enviado por YHWH e é YHWH, que compartilha o trono eterno, que será exaltado após Sua humilhação, é Cristo Jesus, que, sendo igual ao Pai, assumiu a verdadeira humanidade no tempo, sofreu e morreu na cruz por nós. Depois disso, o Pai exaltou o homem Cristo Jesus, conferindo-lhe o nome acima de todo 296

nome, e todo joelho se dobrará e toda língua confessará que ele é o Senhor, para a glória do Pai. Terceiro, o final do hino interpreta explicitamente a identidade do homem Jesus com Isaías 45. Nesse capítulo, YHWH declara repetidamente Sua identidade única e exclusiva. Somente Ele é Deus.

Somente Ele criou os céus e a Terra. Somente Ele salva. YHWH diz por meio de Isaías: E não há outro deus além de mim, um Deus justo e um Salvador; não há outro além de mim. Voltem-se para mim e sejam salvos, todos os confins da terra! Porque eu sou Deus, e não há outro. Jurei por mim mesmo: da minha boca saiu em retidão uma palavra que não voltará atrás: "Para mim todo joelho se ajoelhará toda língua confessará". Somente em YHWH, dir-se-á de mim, estão a justiça e a força; a ele virão e serão envergonhados todos os que se enfureceram contra ele. Em YHWH, toda a descendência de Israel será justificada e se gloriará. (Is 45.21-25)

YHWH declara repetidamente que Ele é o único Deus. Somente Ele salva, pois somente Nele estão a justiça e a força. A justificação está somente Nele. Além disso, Sua única identidade divina será reconhecida universalmente no contexto de Sua salvação. Quando isso acontecer, a Sua identidade será conhecida de forma apropriada. O uso que Paulo faz desses versículos no hino significa, sem dúvida, que a exaltação do homem Jesus após a crucificação é o cumprimento do que YHWH declara sobre Si mesmo em Isaías 45. Além disso, Is 42.8 permanece: "Eu sou YHWH; esse é o meu nome; não dou a minha glória a nenhum outro, nem o meu louvor a ídolos esculpidos." No centro do monoteísmo explícito de Isaías e adoração universal de YHWH está Cristo crucificado. Dobrar os joelhos e confessar com a língua que Jesus é o Senhor, possuindo o nome acima de todo nome, é reconhecer a identidade Triúna de YHWH. O Pai concede nome ao Filho, e os fiéis O confessam como Senhor pelo poder do Espírito Santo. Tudo isso gira em torno da cruz. Constitutiva da identidade de YHWH, da Santíssima Trindade, é a cruz, Cristo crucificado, o homem Jesus.

297

1 CORÍNTIOS 8.6

Duas vezes por dia, os judeus fiéis confessavam o Shema: "Ouve, ó Israel: O Senhor [YHWH/ κύριος] nosso Deus, o Senhor [YHWH/κύριος] é um só" (Dt 6.4). A confissão da identidade única de YHWH também implicava adoração e vida fiel ou ética: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças" (Dt 6.5). Por meio dessa oração diária, os judeus fiéis confessavam sua fidelidade somente a YHWH e ordenavam suas vidas.

Eles amavam o Senhor porque Ele os amou primeiro. Eles amavam o próximo como a si mesmos por causa de quem o Senhor é e por causa do Seu amor por eles (Levítico 19). Tudo isso se relaciona com o que Paulo escreve aos coríntios. Em sua primeira carta, ele reafirma o Shema ao incluir Jesus, de forma explícita e inequívoca, na identidade única de YHWH. O contexto mais amplo da confissão de Paulo aumenta a importância do que ele diz. Ele aborda preocupações sobre comer carne oferecida a ídolos e como isso pode ser entendido por alguns como participação em adoração politeísta. Paulo sugere que os irmãos mais fracos podem estar confusos quanto à existência de ídolos e podem pensar que comer carne oferecida a eles contamina a pessoa. Os irmãos mais fortes devem evitar comer essa carne para que não façam o irmão mais fraco tropeçar e se contaminar (1Co 8.7-13). Em meio ao reconhecimento desse problema e da sua resposta, Paulo levanta a questão dos ídolos e deuses pagãos. Apesar do fato de que eles não existem (1 Coríntios 8.4), a imaginação grega e romana povoa os céus e a terra com eles (1 Coríntios 8.5). Nesse sentido, há muitos "deuses" e muitos "senhores" ao nosso redor (1 Coríntios 8.5). Nesse ponto, Paulo escreve: "Para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos, e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas e pelo qual existimos" (1Co 8.6).

A questão central da reafirmação do Shemá por Paulo diz respeito ao monoteísmo, à adoração adequada do único Deus verdadeiro e à vida fiel. Enfatizamos no capítulo 7 e em toda a parte 1 que a confissão, a adoração e a ética andam juntas. A Bíblia não concebe a confissão de Deus 298

ou de um ídolo separada da adoração a Deus ou a esse ídolo e do comportamento ético que se segue. A resposta de Paulo ressalta a divindade exclusiva de YHWH. Somente Ele é Deus e não há nenhum outro. Deus é um (1Co 8.4). À luz da pessoa e da obra de Cristo, Paulo reafirma o Shemá, reorganizando, de certa forma, as próprias palavras do Shemá.32 O único Deus do Shemá é o Pai; o único Senhor do Shemá é Cristo. Eles são distintos - o Pai é o Pai e não Jesus, da mesma forma que Jesus é Jesus e não o Pai - mas também são um. N. T. Wright e Richard Bauckham chamam isso de monoteísmo cristológico.33 Paulo inclui Jesus na identidade divina única expressa pelo Shema. Ele não "acrescenta" Jesus à identidade confessada no Shemá. Tal acréscimo, observa Bauckham, minaria o próprio objetivo do Shemá como Paulo o declarou.34 Paulo esclarece ainda mais a identidade divina de Cristo apelando para a criação como uma marca de Sua identidade divina. Várias vezes, as Escrituras afirmam que somente Deus cria. Todas as coisas existem a partir do Pai; todas as coisas existem por meio do Filho. Essa prerrogativa divina de criação pertence ao Pai e ao Filho de forma igual e eterna. Não há nada que exista ou tenha existido fora do Pai e do Filho.

Necessariamente, o ato divino da criação envolve tanto o Pai quanto o Filho. Não há espaço conceitual para uma consideração da criação separada de ambos. Eles são distintos e, ainda assim, inseparáveis em seu trabalho correlativo de criação. Tudo o que existe é tanto "do" Pai quanto "por meio" do Filho.

Por fim, Paulo afirma que "nós" existimos para o Pai por meio do Filho. Paulo começou sua discussão sobre os alimentos oferecidos aos ídolos fazendo uma distinção entre o conhecimento que ensoberbece e aquele que procede do amor de Deus. O primeiro carece de humildade e repousa na arrogância espiritual. O segundo ama a Deus, é conhecido por Deus e, portanto, ama o próximo. Essa pessoa conhece o amor de Deus em Cristo Jesus, conhece a salvação conquistada para nós por Aquele que 32

Bauckham, "God Crucified" 27-28.

Wright, Climax of the Covenant, p. 132; Bauckham, "God Crucified", 28.

34 Bauckham, "Paul's Christology of Divine Identity", 212-213.

33

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se humilhou, suportando o sofrimento e a cruz. Essa pessoa não explora sua liberdade cristã às custas dos outros (cf. 1 Coríntios 9). Pelo contrário, embora essa pessoa seja livre de todos, ela se faz serva de todos (1Co 9.19).35 essa pessoa que sabe que existe para o Pai por meio do Filho. A declaração final de Paulo diz respeito ao conhecimento humilde dos fiéis que sabem não apenas que há um só Deus e um só Senhor, de quem e por meio de quem são todas as coisas, mas também que esse único Deus e esse único Senhor nos levaram a conhecê-los, adorá-los e confessá-los como Pai e Filho. Nossa vida é por meio do Filho para o Pai. Os orgulhosos e arrogantes, aqueles que ostentam sua liberdade às custas de seus irmãos, pensam que existem para si mesmos e por meio de si mesmos.

APOCALIPSE

O último livro do Novo Testamento apresenta uma descrição altamente estruturada e precisa da Trindade e, especialmente, da identidade de Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Tudo o que João vê e registra é pelo Espírito (Ap 1.10; 4.2; 17.3; 21.10). O Espírito de profecia predominante em todo o Antigo Testamento e presente no Apocalipse aponta para Cristo, Sua obra salvadora e o contexto em que conhecemos tanto a Ele como ao Pai. O Apocalipse deixa clara a identidade de Cristo e Seu relacionamento com o Pai ao atribuir a Cristo o mesmo nome divino atribuído a Deus, o Pai, ao localizar Cristo, o Cordeiro de Deus, no meio do trono divino recebendo adoração com o Pai e, finalmente, ao usar uma gramática peculiar para transmitir a identidade divina única de Deus e de Cristo.

Deus, o Pai, fala em apenas duas ocasiões em Apocalipse. Antes da visão de João, lemos: "'Eu sou o Alfa e o Ômega', diz o Senhor Deus, 'que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso'" (Apocalipse 1.8). Na visão do novo céu e da nova terra, o Pai declara do trono: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim" (Apocalipse 21.6). Deus declara três 35

O pano de fundo exegético da liberdade de um Cristão de Lutero é a discussão de Paulo em 1 Coríntios 8 e 9. A ética descritiva que Paulo estabelece aqui é o que Lutero expressa plenamente em seu tratado. (OS 2).

300

coisas sobre Si mesmo: Ele é o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, aquele que é, que era e que há de vir. As duas primeiras declarações são sinônimas. Alfa e Ômega são a primeira e a última letra do alfabeto grego.

A declaração final encobre o nome divino, YHWH, EU O QUE SOU, ou como a Septuaginta diz, EU SOU aquele que é.

As duas primeiras afirmações ressaltam a absoluta singularidade de Deus. Ele é o princípio sem princípio e o fim sem fim. Ele é o criador de tudo e o governante de tudo. Essas coisas pertencem somente a Deus.

Por meio do profeta Isaías, YHWH declarou: "Eu sou o primeiro e eu sou o último; além de mim não há deus" (Is 44.6). Mais uma vez, Ele declara: "Eu, YHWH, o primeiro e o último, EU SOU" (Is 41.4) e "EU SOU; eu sou o primeiro e eu sou o último" (Is 48.12). Esses três textos de Isaías enfatizam a divindade exclusiva de YHWH. Somente Ele é Deus e não há nenhum outro. Ele é o primeiro e o último; Ele é incomparável a todos. De fato, Ele é o contexto no qual tudo o mais encontra seu significado e vida. Ele precede tudo como Criador e completa tudo, leva tudo à realização, como Senhor. É claro que nada disso é particularmente surpreendente. As Escrituras afirmam que somente Deus cria e governa, que somente Ele e nenhum outro é Deus. O que chama a atenção do leitor em Apocalipse é o fato de Cristo usar os mesmos títulos para descrever a Si mesmo em duas ocasiões distintas. Na visão inicial, João vê "um semelhante a um filho de homem" e cai a Seus pés. A descrição desse semelhante a um filho de homem se assemelha ao que foi visto por Ezequiel e Daniel. O filho do homem O toca e diz: "Não temas, EU SOU o primeiro e o último [ἐγώ εἰμι ὁ πρῶτος καὶ ὁ ἒσχατος], e o Vivente. Eu morri, e eis que estou vivo para sempre, e tenho as chaves da Morte e do Hades" (Ap 1.17-19). Jesus dá a João a mesma resposta que deu aos discípulos quando Ele veio andando sobre as águas (Jo 6.20). Aqui, entretanto, Ele acrescenta ao nome divino a descrição adicional dada em Isaías e usada pelo Pai imediatamente antes dessa visão. No final do Apocalipse, Jesus declara de forma semelhante: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim" (Apocalipse 22.13).

Essas quatro declarações, duas para o Pai e duas para Cristo, aparecem na abertura e no encerramento da visão de João. As afirmações 301

feitas pelo Pai e por Cristo derivam das declarações de YHWH sobre Si mesmo em Isaías. Ambas pertencem à identidade única de Deus. O que quer que signifique para o Pai ser o Alfa e o Ômega ou o princípio e o fim, significa o mesmo para Cristo e essas afirmações são única e exclusivamente feitas para YHWH. Eles são as duas coisas e, ainda assim, eternamente distintos como Pai e Filho. Além disso, Cristo, que é Deus, também se tornou homem. O vivente morreu e vive para sempre. Esse homem, como o filho do homem, é o Messias prometido desde a antiguidade, que é tanto YHWH quanto distinto de YHWH. Em outras partes do Apocalipse, Cristo também se descreve em termos messiânicos como o Leão de Judá, a raiz e a descendência de Davi, a brilhante estrela da manhã (Ap 5.5; 22.16).

O Pai declara que Ele é aquele que é, que era e que há de vir.

Embora os outros títulos apareçam com Cristo, esse não aparece em tantas palavras. E, no entanto, a mesma coisa é afirmada sobre Cristo. Ele é o Alfa e o Ômega; Ele é o primeiro e o último; e Ele é, por Sua própria promessa, aquele que virá em breve (Ap 22.7,12). Nesse sentido, o que o Pai diz sobre Si mesmo também é dito sobre o Filho. No entanto, há um ponto adicional e mais significativo. A declaração do Pai é um resumo do nome divino, YHWH. O que é digno de nota é que Ele não diz: "Eu sou aquele que é, que era e que será".36 Se Deus tivesse dito isso, teria dado ênfase à Sua eternidade como Ele é em Si mesmo. Em vez disso, o Pai diz: "Eu sou aquele que é, que era e que há de vir". Ele muda do verbo "ser" para o verbo "vir". O futuro de Deus é expresso aqui por Seu relacionamento com Seu povo. O futuro de Deus não está separado da obra redentora de Cristo, o Cordeiro de Deus morto e que vive, porque morreu e ressuscitou. A frase final usada pelo Pai enfatiza a salvação, o julgamento e o cumprimento escatológico dos propósitos de Deus. Ele é o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, não simplesmente separado da criação, mas muito ativo nessa criação ao reivindicar Seus filhos como Seus. O futuro de Deus está com Seu povo. Da mesma forma, nosso futuro está naquele que virá.

36

Cf. Richard Bauckham, The Theology of the Book of Revelation (Cambridge: Cambridge University Press, 1993), 28-29.

302

A declaração final feita pelo Pai inclui o Filho e o Espírito. O final do Apocalipse deixa isso claro ao usar os títulos comuns que pertencem ao Pai e ao Filho, conforme estabelecido desde o início da visão de João.

No capítulo 21, João vê o novo céu e a nova terra, a cidade santa, a nova Jerusalém. Uma voz alta, a voz do Pai vinda do trono, declara: "Eis que o tabernáculo de Deus está com o homem. Ele habitará com eles, e eles serão o Seu povo, e o próprio Deus estará com eles como o seu Deus. Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram" (Apocalipse 21.3-4). Aquele que está sentado no trono, aquele que diz essas coisas, diz a João que está fazendo novas todas as coisas. Ele então lhe diz: "Está feito! Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim" (Apocalipse 21.6).

Os fiéis receberão essas coisas como filhos e filhas; os infiéis receberão o lago que arde com fogo e enxofre, a segunda morte (Apocalipse 21.8). O futuro de Deus está com Seu povo; o futuro deles, onde a morte não existe mais, onde não há luto nem dor, está com Deus.

João continua com uma descrição da Nova Jerusalém e destaca especialmente a inseparabilidade de Deus e do Cordeiro. Ele não vê nenhum templo, pois o templo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro (Apocalipse 21.22). Nessa cidade onde não há noite, João não vê sol, pois a glória de Deus a ilumina e sua lâmpada é o Cordeiro (Ap 21.23). João vê o rio da água da vida, que é o Espírito Santo, saindo do trono de Deus e do Cordeiro (Ap 22.1). Após essa visão, João ouve: "E eis que logo venho" (Ap 22.7). Novamente Jesus declara: "Eis que venho em breve, trazendo a minha recompensa, para retribuir cada um pelo que fez. Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim" (Ap 22.12). Quando Cristo voltar haverá julgamento e a conclusão da obra salvadora do Cordeiro. Pela terceira vez, Cristo declara: "Certamente, em breve virei" (Apocalipse 22.20). O futuro do Pai nunca se separa da obra salvadora do Filho e de Sua habitação mútua com os fiéis, a Noiva de Cristo, que, guiados pelo Espírito, têm sede da água da vida sem preço (Ap 22.17) e clamam: "Amém. Vem, Senhor Jesus!" (Ap 22.20).37 37

Cf. TLH 343:7: "Oh, alegria de saber que Tu, meu Amigo / És Senhor, Princípio sem fim / O Primeiro e o Último, Eterno! / E Tu, finalmente - ó gloriosa graça! - / Levar-me-ás àquele lugar santo / Ao lar das alegrias supernas. / Amém, Amém!

303

O contexto no qual Deus é corretamente conhecido é a adoração.

Aqui podem ser observados os dois últimos pontos apresentados por João. Primeiro, os fiéis se reúnem ao redor do trono para adorar a Deus e ao Cordeiro (Ap 22.3). A visão inicial de João do céu descreve a cena celestial de adoração ao redor do trono de Deus. Os vinte e quatro anciãos e os quatro seres viventes: "Santo, santo, santo é o Senhor Deus TodoPoderoso, que era, que é e que há de vir! (Apocalipse 4.8). Quando os quatro seres viventes dão glória, honra e graças ao Pai, os vinte e quatro anciãos se prostram diante Dele e o adoram. Eles lançam suas coroas de ouro diante do trono e clamam: "Digno és, Senhor e Deus nosso, de receber glória, honra e poder, pois criaste todas as coisas e por tua vontade elas existem e foram criadas" (Ap 4.11). A descrição de João ecoa a descrição feita por Isaías e Ezequiel. O ponto teológico, apresentado em todas as Escrituras, é que somente Deus recebe adoração. Aqueles que servem ou governam em Seu nome, os vinte e quatro anciãos, prostramse diante Dele em adoração, lançando suas coroas de ouro diante do trono. Somente Deus cria, somente Ele governa e somente Ele recebe adoração.

Acima, João atribui o mesmo nome divino a Deus, o Pai, e a Cristo. Ele registra primeiro a declaração do Pai sobre Si mesmo e depois a declaração de Cristo. Ambos são o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim, porque ambos são Deus e, ainda assim, são distintos como Pai e Filho. De maneira semelhante, João vê primeiro o Pai em Seu trono e, no capítulo seguinte, vê o Cordeiro. As mesmas prerrogativas divinas observadas no capítulo 4 são observadas no capítulo 5, mas dessa vez com o Cordeiro, o Leão de Judá, a Raiz de Davi (Apocalipse 5.5). João vê um rolo de pergaminho na mão daquele que está sentado no trono. Quando o Cordeiro toma o rolo do que está sentado no trono, os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos se prostram diante do Cordeiro (Apocalipse 5.8). João então ouve os quatro seres viventes, os vinte e quatro anciãos e os anjos em número de miríades de miríades, milhares de milhares, dizerem em alta voz: "Digno é o Cordeiro,

/ Venha e me encontre! Rapidamente me cumprimente! / Com profundo anseio / Senhor, eu espero por Teu retorno."

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que foi morto, de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e bênção! (Ap 5.12). Todo o exército celestial, toda a hierarquia do céu, prostra-se diante do Cordeiro em adoração. Eles não apenas adoram o Cordeiro como adoraram o Pai, mas também dão glória e honra ao Cordeiro como deram ao Pai. A mesma adoração divina, a mesma glória e honra dadas ao Pai no capítulo 4 são dadas ao Cordeiro no capítulo 5. Finalmente, João ouve toda criatura no céu, na terra, debaixo da terra e no mar, e tudo o que há neles, dizer: "Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro sejam dados bênção, honra, glória e poder para todo o sempre!" (Apocalipse 5.13). A isso os quatro seres viventes dizem "Amém" e os anciãos se prostram e adoram (Apocalipse 5.14). O Cordeiro que está "no meio do trono" (Ap 7.17) recebe a mesma adoração dada ao Pai, pois ambos são o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último.

A adoração exclusiva dada a YHWH, ao único Deus verdadeiro de Israel, pertence tanto a Deus quanto ao Cordeiro. A mesma adoração dada pelos quatro seres viventes e pelos anciãos ao Pai é dada ao Cordeiro.

No capítulo 7, observamos que o Antigo Testamento marca a identidade exclusiva de YHWH ao enfatizar as características e prerrogativas que pertencem somente a Ele e a nenhum outro. Somente YHWH cria e governa Sua criação, somente Ele se senta no trono e recebe adoração, somente Ele redime Seu povo de seus pecados. O Novo Testamento nunca hesita em atribuir essas prerrogativas divinas a Jesus, o verdadeiro Filho de Deus. Já vimos a ênfase em Cristo como criador e governante, aquele que recebe adoração de todos, mas é principalmente em Apocalipse que a ênfase está no trono divino. Tanto Deus quanto o Cordeiro estão no trono e recebem a adoração reservada somente a YHWH. Finalmente, uma peculiaridade da visão de João diz respeito à relutância em se referir a Deus e a Cristo com verbos ou pronomes no plural.38 No exemplo acima, Nova Jerusalém, João vê o trono de Deus e do Cordeiro. Ele escreve: "Não haverá mais nada amaldiçoado, mas o trono de Deus e do Cordeiro estará nele, e seus [αὐτοῦ] servos o adorarão [αὐτῷ]" (Ap 22.3). João usa deliberadamente o pronome singular para se 38

Bauckham, Theology of the Book of Revelation, 60-61.

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referir tanto a Deus quanto a Cristo. Ele faz a mesma coisa em outras partes do Apocalipse. Por exemplo, ele ouve uma voz alta no céu dizendo: "O reino do mundo se tornou o reino de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará [βασιλεύσει] para todo o sempre" (Apocalipse 11.15). Aqui o verbo no singular refere-se tanto a nosso Senhor quanto a Seu Cristo. A linguagem de João evita qualquer indício de politeísmo e ressalta a unidade de Deus e Cristo como o único Deus verdadeiro que é eternamente distinto como Pai e Filho. Ambos compartilham a mesma glória e recebem a mesma adoração. Ambos se assentam no trono divino e são conhecidos pelo Espírito no contexto da adoração, ou seja, no serviço divino da igreja.

CONCLUSÃO

No último capítulo, vimos que os escritores do Novo Testamento confessam sem ambiguidade a identidade divina de Cristo por meio das narrativas históricas dos Evangelhos e das seções aparentemente insignificantes das cartas de Paulo. A linguagem comum da fé, como eu a chamei, confessa, ora e canta a coigualdade e a coeternidade do Pai e do Filho. Neste capítulo, nos concentramos nas apresentações mais dogmáticas e concisas da identidade de Cristo. Esses textos, como os do capítulo anterior, colocam Cristo no centro de nossa confissão da identidade bíblica de Deus. Conhecemos o Pai somente por meio do Filho; conhecemos o Filho pelo Espírito Santo, que tanto o Pai quanto o Filho nos enviam. Além disso, os textos deste capítulo enfatizam novamente a necessidade do Antigo Testamento para nossa compreensão da pessoa e da obra de Cristo. Somente Deus determina Sua identidade, e isso Ele providencialmente preserva para nós em Suas Escrituras. Por fim, o Novo Testamento deixa claro que a identidade de Deus é totalmente revelada na cruz. É nesse exato momento que conhecemos a glória de Deus no Cristo crucificado, vendo nossa reconciliação com o Pai por meio da obra salvadora do Filho. Isso nós sabemos, confessamos, cantamos e oramos pelo poder do Espírito Santo.

306

CONTEÚDO

10 O ESPÍRITO SANTO

Nossos capítulos anteriores descreveram a identidade plural de YHWH nosso Elohim, a identificação de YHWH como Pai, Filho e Espírito Santo, a centralidade de Cristo para nossa confissão da Trindade e a obra inseparável do Pai e do Filho em nossa criação e redenção. As Escrituras não isolam sua apresentação da identidade eterna da Trindade em poucas passagens sobre as pessoas individuais. Não olhamos para o Antigo Testamento em busca do Pai, para os Evangelhos em busca do Filho e para os Atos dos Apóstolos e suas Epístolas em busca do Espírito Santo.1 Toda a Escritura testifica a Trindade. Por essa razão, já tivemos a oportunidade de comentar sobre o Espírito Santo em nossa discussão sobre a identidade bíblica de YHWH no Antigo Testamento e em nossa discussão sobre o Pai e o Filho no Novo Testamento. O presente capítulo tem como objetivo desenvolver o que já foi dito, concentrando-se especialmente no Novo Testamento e no papel do Espírito Santo na igreja.

Nossa discussão sobre a identidade bíblica do Espírito Santo envolve duas questões: a identidade divina do Espírito Santo e a origem 1

Gregório de Nazianzo afirmou que Deus revela progressivamente Sua identidade Triúna ao longo das Escrituras. O Pai é mais conhecido no Antigo Testamento, o Filho no Novo Testamento e o Espírito Santo na história da igreja.

Gregory of Nazianzus Or. 31.26 (PPS, 137). Um sentimento semelhante pode ser encontrado em Martin Chemnitz. Ele escreve: "A pessoa e a divindade do Pai são frequente e claramente testemunhadas no Antigo Testamento. Com relação à pessoa e à divindade do Filho, as passagens do Antigo Testamento são bastante obscuras. Mas no Novo Testamento a divindade do Filho é mais claramente demonstrada por mais e mais claras passagens do que a divindade do Espírito Santo." Chemnitz, Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:237. Comentários como este geralmente são interpretados de forma errônea.

Tanto Gregório quanto Martin Chemnitz fornecem exemplos significativos do Filho e do Espírito no Antigo Testamento.

307

eterna do Espírito Santo. No Credo Niceno, confessamos que o Espírito Santo, o Senhor e doador da vida, procede do Pai e do Filho. A linguagem da "procedência" aponta para a origem eterna do Espírito a partir do Pai e do Filho. A frase adicional "e o Filho", que em latim é o filioque, foi acrescentada posteriormente ao Credo de Constantinopla (381) e desencadeou o que é chamado de controvérsia filioque. Uma vez que os luteranos confessam e ensinam o filioque por causa de seu compromisso com as Escrituras, essa questão também pertence a nós na discussão da identidade bíblica do Espírito Santo. E, por isso, para conduzir essa discussão, precisamos nos valer de termos técnicos e padrões de discurso usados pela igreja que ainda não introduzimos. Apesar dessa dificuldade, abordaremos o filioque no próximo capítulo antes de nos voltarmos, na parte 3, para a forma como os fiéis ao longo da história da igreja confessaram, defenderam e preservaram a identidade bíblica da Trindade.

Neste capítulo, mostraremos a identidade divina do Espírito Santo concentrando-se em alguns dos testemunhos que já fizemos com o Filho. Discutiremos como as Escrituras atribuem o nome divino ao Espírito Santo, chamam-no de Deus e atribuem a Ele obras que pertencem exclusivamente a Deus. Esse tipo de análise só é feito para com o único Deus verdadeiro das Escrituras. Porém, antes de abordarmos essas coisas, trataremos de uma questão que não se encontra no Pai e no Filho - o nome peculiar Espírito Santo. Agostinho, há muito tempo, comentou que o Espírito Santo não tem um nome pessoal.2 Nós O chamamos de Espírito Santo porque é o nome que as Escrituras nos dão, mas este nome Espírito Santo é compartilhado de diferentes maneiras com o Pai e o Filho e com as coisas criadas. As Escrituras usam a palavra Espírito, rûach ou pneuma, para se referir a Deus, à pessoa do Espírito Santo, aos dons do Espírito Santo ou até mesmo aos espíritos criados angelicais, demoníacos e humanos.3 Algumas pessoas usaram essa ambiguidade para enfraquecer a identidade distinta e eterna do Espírito Santo. Outros exploraram essa ambiguidade na tradução para limitar a visibilidade do Espírito na Bíblia.

2 3

Augustine, The Trinity V.12 (WSA I/5, 197-98).

Ver CM II.35-36.

308

Outra questão que requer nossa atenção diz respeito à maneira como Deus se revela a nós e nos entrega Sua salvação. Um ponto repetido em todas as Escrituras é que o Pai será conhecido somente através do Seu Filho. E é assim que, quando colocamos nossos olhos sobre Jesus, vemos o Pai (Jo 14.8-9). Um problema recorrente em toda a história da igreja é que as pessoas buscaram Deus através de seus próprios termos. As Escrituras nos deixam claro que somente pelo Espírito Santo podemos conhecer a Deus e as coisas de Deus (1Co 2.11-12). Se não fosse pelo Espírito, não poderíamos confessar Cristo como Senhor (1Co 12.3) para a glória do Pai (Fp 2.11) e ter acesso ao Pai por meio do Filho (Ef 3.18).

O principal dom do Espírito, o principal carisma entre os fiéis, é confessar Cristo como Senhor, como o Filho do Pai, em quem somente temos redenção e vida. Sem o Espírito Santo, o Filho permanece desconhecido, assim como o Pai (Jo 15.23; 2 Jo 9 KJA). Essa dádiva do Espírito nos proporciona tudo: o conhecimento adequado da Trindade e de nós mesmos, a salvação operada em nosso favor pela Trindade, a liberdade em Cristo para amar e servir ao próximo (Gálatas 5; Romanos 8), as palavras para confessar a Trindade e o evangelho (Mt 10.20; 28.20), as palavras para orar e, de fato, orações profundas demais para serem ditas (Rm 8.26). O Espírito concede esse dom por meio dos meios da graça divinamente instituídos, por meio da Palavra de Deus e dos Sacramentos, para que possamos conhecer e ser conhecidos por Deus (Gl 4.9). Quando juntamos todos esses argumentos, aprendemos que somente pela ação do Espírito Santo e pelos meios da graça de Deus podemos conhecer a Trindade e a salvação conquistada em nosso favor. A Bíblia não conhece outras formas além dessas. Aqueles que buscam Deus à parte de Sua Palavra e Sacramentos não são diferentes daqueles que querem ver o Pai à parte do homem Jesus.

O presente capítulo demonstrará a identidade bíblica do Espírito Santo, mas se concentrará especialmente na obra do Espírito Santo em criar e sustentar a fé salvadora por meio dos meios de graça ofertados na igreja. É este ponto final que nos deixará claro que uma compreensão adequada do Espírito Santo e de Suas obras nos torna centrados em Cristo tanto na doutrina quanto na vida. Os luteranos enfatizam a cristologia por esse motivo. Cristo está no centro da Trindade, da nossa salvação e da vida batismal.

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O NOME ESPÍRITO SANTO

O nome próprio dado pelas Escrituras à Terceira Pessoa da Trindade apresenta dificuldades que não encontramos quando tratamos do Pai e do Filho. O Espírito Santo é espírito, mas o Pai e o Filho também são espírito: "Deus é espírito" (Jo 4.24). As Escrituras também declaram que o Pai e o Filho são santos, assim como o Espírito é santo: "Santo, Santo, Santo é YHWH Sabaoth" (Is 6.4).4 Jesus ora: "Pai Santo, guardaos no teu Nome, que me deste, para que sejam um, como nós somos um" (Jo 17.11). O anjo Gabriel diz à Virgem Maria que "o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus" (Lc 1.35 KJA; cf. Jo 6.69; Atos 3.14).5 Até mesmo os espíritos imundos declaram essa verdade: "O que você tem a ver conosco, Jesus de Nazaré? Você veio para nos destruir? Eu sei quem você é, o Santo de Deus" (Mc 1:24-25). Em todo o Antigo e Novo Testamentos, é afirmado que Deus é santo e que operará Sua santidade em nós: "Sereis santos, porque eu, o Senhor [YHWH], sou santo" (Lv 19.2; 1Pe 1.15-16). Essa santidade vem a nós pelo Espírito Santo (Rm 1.4; 1Pe 1.2), mas também por Cristo, que é a nossa santidade, a nossa santificação (1Co 1.30). As Escrituras enfatizam tanto o Espírito quanto Cristo nessa obra: "Mas fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus" (1Co 6.11). O nome Espírito Santo pertence exclusivamente à Terceira Pessoa da Trindade, mas não de tal forma que o Pai e o Filho também não sejam perfeitamente chamados de "santo" e "espírito".

Por que, então, qualquer um dos aspectos acima mencionados representa um problema? Uma questão que exploraremos com profundidade nos próximos capítulos diz respeito à maneira como confessamos o que as Escrituras revelam sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Certas passagens das Escrituras tratam da essência de nosso Deus

4

Ambrose On the Holy Spirit I.9 (Fathers of the Church, 73-74); Augustine The Trinity V.12 (WSA I/5, 197-98); Johann Gerhard, De Spiritu Sancto, Locus 4/3, §20 (ed. Cotta, 302).

5 A ESV traduz esse versículo da seguinte forma: "A criança que vai nascer será chamada de santa - o Filho de Deus". Ambas as traduções fazem o destaque, mas a NKJV segue o texto mais de perto.

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Triúno e outras passagens tratam sobre as pessoas eternamente distintas da Trindade. Os Pais e os Reformadores distinguiram essas formas de se expressar concluindo que as Escrituras afirmam alguns termos de substância (predicação substantiva) e outros aspectos em termos de pessoa (predicação relativa). Pai e Filho são os nomes pessoais da Primeira e Segunda Pessoas da Trindade. O Pai é Pai e nunca Filho; o Filho é Filho e nunca Pai. Ambos são Deus no mesmo sentido. Quando usamos o nome Espírito Santo como um nome pessoal, usamos da mesma forma que o usamos para Pai e Filho. O Pai nunca é o Espírito Santo; o Espírito Santo nunca é o Filho. Uma vez que todos os três são Deus, mas não são três deuses, as Escrituras nos orientam a dizer que o Pai é Todo-Poderoso, o Filho é Todo-Poderoso e o Espírito Santo é Todo-Poderoso, mas eles não são três Todo-Poderosos, mas um Todo-Poderoso. Tudo o que significa ser Deus é verdade para o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que são o único Deus verdadeiro. Tudo isso será explicado com mais detalhes nos próximos capítulos, mas com este breve resumo já percebemos o problema. O Espírito Santo é santo e é espírito da mesma forma que o Pai e o Filho, mas o Pai e o Filho não são o Espírito Santo. Duas coisas muito diferentes estão sendo ditas aqui com as mesmas palavras. Todos os três são santos e espírito em termos de essência, mas somente o Espírito Santo é o Espírito Santo em termos de pessoa. Quando nos afastamos desse padrão de fala, da distinção correta entre predicação substantiva e relativa, surgem confusões e falsas declarações sobre a Trindade. Esta situação levou alguns na igreja primitiva e outros durante a Reforma a afirmarem que o Espírito Santo não era uma pessoa distinta e separada (hipostase), mas meramente uma extensão ou manifestação de Deus. Por essa razão, foi e ainda é importante mostrar como as Escrituras proclamam a hipostase ou pessoa do Espírito Santo eternamente distinta e separada do Pai e do Filho.

RÛACH E PNEUMA

Outra dificuldade reside na ampla gama de significados da palavra hebraica rûach e da palavra grega pneuma.6 A palavra hebraica rûach pode significar espírito, vento ou respiração, entre outras coisas. As Escrituras 6

Cf. Didymus the Blind On the Holy Spirit, 236-56 (PPS, 216-22).

311

usam o mesmo termo para designar os "quatro ventos" do céu (Dn 8.8; 11.4; Zc 2.6), os anjos de YHWH que são "ventos" (Sl 104.4; Hb 1.7 ESV) e "espíritos" (KJV). Novamente, o termo pode se referir ao julgamento de Deus como um "vento abrasador" (Sl 11.6), o "espírito" do homem (Sl 51.10,12) ou "o Espírito Santo" (Sl 51.11) que se movia sobre a face das águas (Gn 1.2). O termo pode se referir ao "sopro" do homem (Sl 146.4; Jó12.10) ou ao "sopro" de YHWH (Sl 33.6). Lemos sobre "o Espírito de Deus" que cria (Jó 33.4) e sobre o "espírito do homem", o "espírito dos animais" (Ec 3.21) e os "espíritos de toda a carne" que são criados (Nm 16.22). O homem pode ter "o Espírito de YHWH" dentro de si ou "um espírito maligno" (1 Sm 16.14). O "espírito de prostituição" leva o povo de Deus à idolatria (Os 4.12) e eles não conhecem mais o Senhor (Os 5.4).

A mesma palavra pode descrever nossas emoções: "O coração alegre é bom remédio, mas o espírito abatido seca os ossos" (Pv 17.22); "O tardio em irar-se é de grande entendimento, mas o precipitado de espírito exalta a estultícia" (Pv 14.29). O "espírito" no homem pode ser altivo (Pv 16.18) ou humilde (Pv 16.19), frio (Pv 17.27) ou moído (Pv 18.14). Finalmente, as Escrituras às vezes usam essa palavra para se referir aos dons do Espírito em vez da pessoa do Espírito. Eliseu suplica a Elias: "Por favor, que haja uma porção dobrada do seu espírito sobre mim" (2Rs 2.9). Da mesma forma, YHWH diz a Moisés para reunir setenta anciãos do povo.

Quando ele tiver feito isso, YHWH "fará que pegue um pouco do Espírito que está sobre você e coloque-o sobre eles, e eles levarão o fardo do povo com você, para que você não o carregue sozinho" (Nm 11.17).

A mesma diversidade pode ser encontrada no Novo Testamento com o grego pneuma. Com frequência, o termo designa "o Espírito Santo" (Mt 1.18 e seguintes) ou "o Espírito de Deus" (Mt 3.16 e seguintes). Essa última designação é o título usado com mais frequência nas Escrituras. O Espírito de Deus encontrado no Novo Testamento é o mesmo Espírito que criou no princípio com o Pai e Sua Palavra (Gn 1.3), que inspirou os patriarcas e profetas (1Sm 11.6; 2Cr 24.20; Ez 11.24 et passim) e que repousaria sobre o Cristo, o Messias prometido (Is 11.2; 42.1; 61.1). Os escritores dos Evangelhos registram que, de fato, o Espírito de Deus desceu sobre Cristo em Seu batismo (Mt 3.16), conduziu-O ao deserto (Mt 4.1), levou-O de volta à Galileia (Lc 4.14) e esteve sobre Ele durante 312

todo o Seu ministério (Lc 4.18). É esse mesmo Espírito Santo que Cristo soprou sobre os discípulos, instituindo o ofício do ministério (Jo 20.22).

Paulo nos diz que o Espírito de Deus habita em todos os crentes, e esse Espírito de Deus é o Espírito de Cristo (Rm 8.9). Quando Israel se rebelou contra YHWH, eles "entristeceram o seu Espírito Santo" (Is 63.10). Da mesma forma, Paulo adverte os crentes a não "entristecerem o Espírito Santo de Deus" (Ef 4.30).

Pneuma pode se referir com a mesma frequência a algo que não seja o Espírito Santo. O mesmo termo se aplica àqueles que são "pobres de espírito" (Mt 5.3) ou "fervorosos de espírito" (Rm 12.11). Nas Escrituras, fala-se muito sobre o espírito do homem. Seu espírito se alegra (Lc 1.47) e precisa de refrigério (2Co 7.13) ou renovação (Ef 4.23).

Seu espírito luta contra a carne (Mt 26.41). Uma pessoa pode ter um espírito de temor (2Tm 1.7) ou um espírito manso e tranquilo (1Pe 3.4). Às vezes, as Escrituras usam a mesma palavra para designar o Espírito Santo e o espírito do homem no mesmo versículo: "O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus" (Rm 8.16).

Ocasionalmente, essa palavra pode significar sopro (2Ts 2.8) ou vento (Jo 3.8), mas normalmente o grego usa outras palavras para esses significados.7 A palavra também pode se referir a "um espírito imundo" 7

João 3.8 é especialmente difícil nesse ponto. O Novo Testamento prefere ὁ ἀνεμος (Mc 4.39-41; Mt 11.7) e menos frequentemente ἡ πνοή (Atos 2.2) para vento. João 3 usa pneuma e isso cria uma ambiguidade. Os leitores ingleses podem ver isso especialmente com a Vulgata, já que nossa palavra Espírito vem do latim. Jesus está falando sobre o Espírito. Ele diz a Nicodemos que o que é nascido do Espírito é espírito (quod natum est ex Spiritu spiritus est). Embora Nicodemos fique maravilhado com isso, ele não deveria. Jesus explica: "Spiritus ubi vult spirat". A KJV e a ESV traduzem isso como o vento soprando ou listando onde lhe agrada. A Douay-Rheims, que é uma tradução da Vulgata, diz: "O Espírito sopra onde quer". Jesus termina Seu exemplo dizendo que assim é com "todo aquele que é nascido do Espírito" (qui natus ex Spiritu). O latim, assim como o grego, prefere outras palavras para vento (por exemplo, ventus e, menos comumente, flatus). Tudo isso não é para defender a tradução de Espírito em Jo 3.8, mas apenas para mostrar a dificuldade de traduzir pneuma ou Spiritus. Em Jo 3.6-8, a KJV e a ESV alternam entre "Espírito" e "vento", mas no grego e no latim a mesma palavra está sendo usada em todo o texto. Tudo isso fica obscuro para aqueles que acessam as Escrituras apenas em inglês.

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(Mc 1.23) ou pode ser usada no sentido de "fantasma" (Lc 24.37, 39). O termo contrasta o Espírito Santo com os espíritos malignos ou o espírito do anticristo. Há o Espírito da verdade e o espírito do erro (1Jo 4.6).

João escreve: "Nisto conheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus, e todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus. Este é o espírito do anticristo, que vocês ouviram que viria e que agora já está no mundo" (1Jo 4.2-3). É esse espírito maligno que está agindo nos filhos da desobediência (Ef 2.2).

A dificuldade com os exemplos acima é óbvia. A palavra usada para designar o Espírito Santo pode ser usada para descrever anjos, pessoas, demônios, emoções, dons e até mesmo vento ou respiração. A história da Igreja mostra que muitos tropeçaram por causa desta ambiguidade. Falsos mestres na igreja primitiva (macedônios ou pneumatômacos) e durante a Reforma (socinianos) argumentavam que o Espírito Santo não era uma pessoa auto subsistente, separada e distinta do Pai e do Filho, mas sim uma influência criada ou alguma forma impessoal usada por Deus. A ambiguidade da linguagem permitiu que eles apresentassem esse falso argumento. Atualmente, os tradutores aproveitam essa ambiguidade da linguagem para oferecer interpretações que obscurecem o significado claro do texto e confundem ainda mais os leitores desavisados. Aqueles que não estão familiarizados com o hebraico ou o grego podem ser induzidos ao erro por causa disso ou podem deixar de ver o padrão sólido de palavras e as ligações intertextuais das Escrituras.

Como a mesma palavra pode ser traduzida de várias maneiras, é especialmente importante deixar que as Escrituras interpretem a si mesmas para determinar se a palavra significa o Espírito Santo, um espírito criado, vento ou respiração. Um exemplo bem conhecido é o início de Gênesis. Tanto a ESV quanto a KJV apresentam o Espírito de Deus movendo-se sobre a face das águas; a NRSV traduz isso como um vento de Deus (Gn 1.2). Aqueles que dependem da NRSV não verão a presença do Espírito Santo na criação do mundo. A mesma palavra de Gênesis 1, que a ESV e a KJV traduzem como Espírito, é traduzida como "sopro" no Salmo 33: "Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e pelo 314

sopro da sua boca todo o seu exército" (Sl 33.6; cf. Is 40.7-8). Todos os Pais e Reformadores leram esse versículo como se referindo à Palavra e ao Espírito (sopro).8 Manter o sopro na tradução é perfeitamente aceitável, desde que entendamos que esse Salmo, como argumenta Aegidius Hunnius, é um resumo ou transcrição da criação pelo Pai, Filho e Espírito Santo.9 Em outros lugares, as Escrituras afirmam claramente que o Espírito Santo dá vida (2 Co 3.6; Jo 6.63). Da mesma forma, Eliú declarou a Jó: "O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida" (Jó 33.4). Tanto Gênesis 1 quanto o Salmo 33 descrevem a criação e ambos envolvem o Espírito Santo. Os tradutores podem obscurecer esse fato pela escolha de palavras ou pelo uso de letras minúsculas para espírito ou fôlego. Tais movimentos são interpretativos e fazem afirmações dogmáticas - assim como, é claro, a insistência de que esses textos se referem ao Espírito. Novamente, as Escrituras devem interpretar as Escrituras nessas questões.

Uma ambiguidade semelhante pode ser encontrada no Evangelho de João. Para que possamos conhecer o Filho e o Pai, ambos enviam o Espírito Santo, o Consolador, o Espírito da Verdade (Jo 14.26; 15.26). O Espírito dá testemunho do Filho (Jo 15.26), direcionando-nos ao que o próprio Cristo disse (Jo 14.26). Ele convencerá o mundo a respeito do "pecado, da justiça e do juízo" (Jo 16.8) e nos declarará aquilo que pertence ao Filho e ao Pai (Jo 15.15). Além disso, o Espírito da Verdade nos guiará à Verdade (Jo 15.13), o que significa que o Espírito do Filho nos guiará ao Filho. Ninguém vem ao Pai a não ser pelo Filho, porque Ele é "o caminho, e a verdade, e a vida" (Jo 14.6). O Espírito nos guia para a 8

Para a leitura patrística desse versículo, veja Irineu Against Heresies1.22.1 e 3.8.3; Irenaeus Proof of the Apostolic Preaching 11; Athanasius Orations Against the Arians 2.31; Basil of Caesarea Letter 8.11 e On the Spirit 38 e 49; Gregory of Nazianzus Or. 41.14; e Augustine Exposition of Psalm 32(33), versículo 6, exposição 1 e 3. Os reformadores luteranos continuam a tradição patrística e medieval de interpretação desse versículo. Veja On the Last Words of David, 1543 (AE 15:301; WA 54:56.29-57.8); Melanchthon, Loci Communes, 40; Chemnitz, Loci Theologici 1:89, 91. Essa interpretação é continuada ao longo do século XVII pelos dogmáticos luteranos.

9 Aegidius Hunnius, Calvinus Iudaizans (Wittenberg, 1604), 24-29; cf. AE 15:301; WA 54:57.9-25.

315

Verdade, falando-nos as palavras da Verdade, e o Filho, que é a Verdade, é o caminho para o Pai e a vida eterna. Tudo isso é transmitido por Jesus em Seu discurso com a mulher de Samaria sobre a maneira correta de adorar. Os verdadeiros adoradores, explica Ele, "adoram o Pai em Espírito e Verdade" (Jo 4.23). Embora a maioria das traduções deixe espírito e verdade em letras minúsculas (προσκυνήσουσιντῷ πατρὶ ἐν πνεύματι καὶ ἀληθειᾳ), os Pais leem "espírito" como uma referência ao Espírito Santo e "verdade" como uma referência ao Filho.10 Para Atanásio, nossa adoração ao Pai é determinada pelo Pai; nós O adoramos corretamente quando somos guiados pela fé que nos foi dada pelo Espírito Santo, uma fé que coloca seu olhar somente no Filho, a Verdade, e isso para o deleite do Pai. Não há outra adoração ao Pai a não ser pelo Espírito através do Filho (Ef 2.18). Para Atanásio, essa maneira de traduzir Jo 4.23-24 enfatiza a inseparabilidade do Filho e do Espírito. O Espírito, enviado pelo Pai e pelo Filho, sempre nos leva de volta ao Filho, a Verdade, para que possamos adorar e glorificar o Pai.11 Os Pais e os Reformadores resolvem essas dificuldades observando o contexto e a gramática. Quando as Escrituras modificam rûach ou pneuma com "Santo", ou o qualificam com "de Deus" ou "do Pai" ou "do Filho" ou "de Cristo" ou "da Verdade", então, em todos esses casos, não há dúvida de que o Espírito que está sendo apresentado é o Espírito Santo. Quando o modificador está ausente, quando não há um adjetivo marcando o significado para nós, então o contexto se torna a nossa guia.12 Os Pais e os Reformadores observaram especialmente o que 10

De acordo com Raymond Brown, a maioria dos exegetas atuais concorda que o espírito mencionado por Jesus é o Espírito Santo. Ele não acha que "verdade" se refere ao Filho, mas sugere que "Espírito e verdade" atuam como uma hendíade e são equivalentes ao Espírito da Verdade, uma expressão comum em João (cf. Jo 14:17; 15:26; 16:13). Ver Raymond Brown, The Gospel According to John I-XII (Nova York: Doubleday, 1966), 180.

11 Athanasius Letters to Serapion 1.33.3-5 (PPS, 104); cf. Gregory of Nazianzus Or. 31.12 (PPS, 125).

12 Athanasius and Didymus the Blind observam ainda que na maioria das vezes há exceções - as Escrituras distinguem o Espírito Santo dos dons do Espírito ou dos espíritos criados usando o artigo definido. Quando a Escritura fala sobre "o Espírito", ela está se referindo ao Espírito Santo; quando a Escritura se o artigo 316

estava sendo dito sobre o "espírito" e, a partir daí, determinaram se a Escritura estava falando sobre a pessoa do Espírito, os dons do Espírito ou um espírito criado. Dídimo, o Cego, explica: "Devemos considerar a maneira pela qual o termo é usado em cada instância, para que, talvez por ignorância, não caiamos no abismo do erro."13 Outra dificuldade, que analisaremos mais de perto, diz respeito à ambiguidade mencionada acima com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Como todos os três são espírito e santo, às vezes é difícil saber se a referência das Escrituras a "Espírito" indica o Espírito Santo, o Pai ou o Filho. Isso pode ser visto especialmente com o nome divino.

O NOME DIVINO Mateus e a fórmula batismal

Como já descrevemos nos capítulos anteriores, o nome divino marca a identidade única de Deus, quem Ele é e o que Ele faz. Aquilo que pertence somente a Ele e aponta especialmente para a Sua obra de criação, julgamento e salvação. Nos capítulos anteriores, demonstramos a importância do nome divino no Antigo Testamento e como o Novo Testamento atribui esse nome a Jesus. Os escritores do Novo Testamento também atribuem o nome divino ao Espírito Santo, colocando-o de forma precisa na identidade divina de YHWH. Esse fato, por si só, demonstra a consubstancialidade e a coigualdade do Espírito Santo com o Pai e o Filho e Sua distinção hipostática ou pessoal entre eles. A fórmula batismal do Evangelho de Mateus é um bom exemplo disso. Jesus instrui os discípulos a batizarem "em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo" (Mt 28.19). Esse nome, o nome divino, pertence ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo igual e eternamente. O Espírito Santo entrega, por meio do santo batismo, a salvação do Pai alcançada pelo Filho (cf. Tt 3.46); aqui nós filhos de Deus, filhos do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Jo for omitido e se referir a "espírito", geralmente está falando de um espírito criado. Para mais exemplos, veja Athanasius Letters to Serapion 1.5.1-1.6.13 (PPS, 57-65) e Didymus the Blind On the Holy Spirit 8, 73 (PPS, 145-46; 165-66).

Martin Chemnitz elogia essa observação e a considera útil. Veja Chemnitz, Loci Theologici 1:221.

13 Didymus the Blind On the Holy Spirit, 256 (PPS, 222).

317

1.12-13; Rm 8.16-17). A Trindade salva, e neste nome, que pertence exclusivamente à Trindade, encontramos nossa vida, nossa salvação: "Salva-nos, ó YHWH, nosso Elohim, e congrega-nos dentre as nações, para que demos graças ao teu santo nome e nos gloriemos no teu louvor" (Sl 106.47; 1Cr 16.35).14 Adoramos e glorificamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo no contexto de nosso batismo, onde nos tornamos filhos de Deus.

Quando analisamos as palavras de Jesus no final do Evangelho de Mateus à luz do contexto de todo o Evangelho, descobrimos a riqueza da fórmula trinitária. O Evangelho de Mateus, como toda a Escritura, é totalmente trinitário. A contrapartida da fórmula batismal conclusiva é o início do Evangelho e o batismo de Jesus. Estes suportes trinitários formam o contexto amplo para tudo o que Mateus afirma. Após a genealogia inicial, Mateus se volta diretamente para o nascimento de Cristo. Maria está grávida "pelo Espírito Santo" (Mt 1.19). Quando José fica preocupado, um anjo do Senhor aparece para ele: Enquanto ele pensava nessas coisas, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonho, dizendo: "José, filho de Davi, não temas receber Maria como tua esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e você o chamará de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos pecados deles." (Mt 1.20-22)

Mateus imediatamente direciona o leitor para a profecia de Is 7.14: "'Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe darão o nome de Emanuel (que significa Deus conosco)" (Mt 1.23). O nascido de Maria é o Filho de Deus, Deus conosco, Emanuel. Maria concebeu essa criança por meio do Espírito Santo. O anjo do Senhor, dado o contexto do que é afirmado, deve ser entendido como o anjo do Pai. Isso é confirmado 14

Correlacionar Mt 28.19, Sl 106.47 e 1Cr 16.35 produz as seguintes equivalências: Pai, Filho e Espírito Santo equivalem a YHWH nosso Elohim, que pode ser confessado mais simplesmente como o Deus da nossa salvação. Essa forma final de expressar a Trindade corresponde ao cântico de Maria: "A minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador" (Lc 1.46-47).

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alguns versículos adiante (embora cronologicamente um pouco mais tarde) quando o mesmo anjo do Senhor aparece a José. O anjo o orienta a levar a criança para o Egito e permanecer lá até que o anjo o chame de volta. Isso era para cumprir o que o Senhor havia dito por meio de Oséias: "Do Egito chamei meu Filho" (Mt 2.15). O Pai anuncia a José que Maria dará à luz ao próprio Filho de Deus pelo Espírito Santo para a salvação de todas as pessoas. Desde o início do Evangelho, Mateus proclama a Trindade e a obra de salvação da Trindade para nós.

Mateus imediatamente direciona o leitor para a profecia de Is 7.14: "'Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe darão o nome de Emanuel (que significa Deus conosco)" (Mt 1.23). O nascido de Maria é o Filho de Deus, Deus conosco, Emanuel. Maria concebeu essa criança por meio do Espírito Santo. O anjo do Senhor, dado o contexto do que é afirmado, deve ser entendido como o anjo do Pai. Isso é confirmado alguns versículos adiante (embora cronologicamente um pouco mais tarde) quando o mesmo anjo do Senhor aparece a José. O anjo o orienta a levar a criança para o Egito e permanecer lá até que o anjo o chame de volta. Isso era para cumprir o que o Senhor havia dito por meio de Oséias: "Do Egito chamei meu Filho" (Mt 2.15). O Pai anuncia a José que Maria dará à luz ao próprio Filho de Deus pelo Espírito Santo para a salvação de todas as pessoas. Desde o início do Evangelho, Mateus proclama a Trindade e a obra de salvação da Trindade para nós.

Deliberadamente, Mateus estrutura seu Evangelho com esses dois textos explicitamente trinitários. A obra do Espírito nessas duas perícopes exige nossa ênfase. David Scaer escreve: "O Espírito, em cujo nome o batismo é dado, é responsável pela encarnação do Filho."15 O Espírito que dá vida humana ao Filho é o mesmo que nos regenera e renova por meio do batismo (Tt 3.4-7), tornando-nos filhos de Deus e herdeiros de Cristo (Rm 8.14-17; cf. Jo 1.12-14). O Espírito que nos leva a Cristo e à Sua salvação nos dá a conhecer o Pai por meio do Filho, permitindo-nos clamar "Aba, Pai" e orar corajosamente "Pai Nosso". Esse ponto se torna explícito para Mateus no batismo de Jesus. Imediatamente quando Jesus 15

David Scaer, Baptism, Confessional Lutheran Dogmatics vol. 11 (St. Louis: Luther Academy, 1999), 75.

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é batizado, os céus se abrem, o Espírito de Deus desce sobre Ele e uma voz alta declara: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo" (Mt 3.17). O Espírito que veio sobre Jesus em Seu batismo para cumprir toda a justiça (Mt 3.15) é o mesmo Espírito Santo com o qual Ele nos batizará (Mt 3.11).

Precisamos nos deter aqui por um momento. A descida do Espírito sobre Jesus ilustra a ação adequada do Espírito; Ele sempre conclui com Jesus. Quando o Espírito desce sobre Jesus em nosso favor, ou seja, quando pela fé vemos Jesus como o próprio Filho de Deus, algo possível somente pelo Espírito Santo, então ouvimos a voz do Pai declarando que esse é Seu Filho Amado. A cristologia está no centro de uma compreensão adequada do Espírito e do Pai; de fato, somente uma cristologia adequada garante uma compreensão adequada da Trindade.

Também vemos isso com o nome Emanuel. A criança que Maria concebeu pelo Espírito Santo, aquela em quem o Pai se agrada, será chamada Emanuel, Deus conosco. Esse nome harmoniza o Evangelho de Mateus e está no centro das duas passagens trinitárias no início e no fim do Evangelho (Mt 1.23; 28.20). Cristo está conosco até a eternidade pela ação do Espírito Santo por meio da Palavra e dos Sacramentos; quando permanecemos em Cristo, conhecemos o Pai e nos deleitamos com a liberdade do Espírito para amar e servir ao próximo.

Mateus passa da Epifania para a Quaresma, do batismo para a tentação, da nova vida para a vida dos batizados. Após o batismo, "Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo" (Mt 4.1).

Jesus e o Espírito permanecem juntos na realização da obra de salvação.

Isso também, como Mateus nos lembra mais adiante, é para cumprir o que foi dito por Isaías: "Eis aqui o meu servo, a quem escolhi, o meu amado, em quem a minha alma compraz. Porei sobre ele o meu Espírito, e ele anunciará a justiça aos gentios e em seu nome os gentios terão esperança" (Mt 12.18, 21; Is 42.1-3, 42.4 LXX [Rm 15.12]). O Pai declara Seu grande prazer com o Filho no batismo e coloca Seu Espírito sobre Ele. A obra de salvação da Trindade em nosso favor, predita por Isaías, é explicada agora de forma mais clara por Mateus.16 16

A conexão aqui é ainda mais explícita em Lucas. Quando Jesus retorna do 320

Mateus faz mais duas observações antes de chegarmos à fórmula batismal e ao Nome que pertence única e exclusivamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, a YHWH nosso Elohim, a Deus nosso Salvador.

Jesus declara: "Todas as coisas me foram entregues por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar" (Mt 11.27). Essa observação já foi feita com certa ênfase por Mateus. No batismo de Jesus, ouvimos o Pai declarar que Jesus é Seu Filho amado, em quem Ele se agrada. Novamente na Transfiguração, o Pai declara: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; escutai-o" (Mt 17.5). Aqueles que desejam conhecer o Pai devem conhecer o Filho. O Pai direciona tudo para Seu Filho: "Ouçam-no". No Sermão da Montanha, Jesus fala extensivamente sobre o Pai. Se ouvirmos Jesus e fizermos o que Ele nos diz para fazer, seremos filhos do Pai (Mt 5.43-45). Aqueles que amam e servem ao próximo sem buscar atenção e recompensa, mas o fazem por causa de sua fé viva e ativa - uma fé dada e alimentada pelo Espírito Santo por meio dos meios da graça - receberão sua recompensa do Pai (Mt 6.1), que vê todas as coisas (Mt 6.4, 6, 18). Devemos orar ao Pai (Mt 6.6), que conhece nossas necessidades antes de pedirmos a Ele (Mt 6.9, 32). Por meio do Filho, nós O invocamos como "nosso Pai" (Mt 6.9) e Dele recebemos o perdão (Mt 6.14). Nosso Pai, que alimenta as aves do céu e reveste o campo de grama (Mt 6.26-28), conhece nossas necessidades e dará coisas boas àqueles que pedirem (Mt 7.11).

As Escrituras enfatizam amplamente que é o Espírito que usa a Palavra para nos levar à fé. O Espírito, que inspirou os patriarcas, os profetas e os apóstolos, usa Sua Palavra inspirada para nos levar ao Filho e ao Pai. Confessamos e conhecemos o Filho, e se conhecemos o Filho, então também conhecemos o Pai, pela ação do Espírito Santo por meio da Palavra. Davi conhecia o Pai como Senhor e o Filho como Senhor e isso, de acordo com Jesus, "no Espírito" (Mt 22.43). O mesmo Espírito que manifestou a boa confissão por meio de Davi continua a falar por deserto, Ele vai para Nazaré e entra na sinagoga no dia de sábado. Ele pega o rolo de Isaías, desenrola-o e lê Is 61.1-2 (Lc 4.16- 19). Em seguida, diz aos que estavam reunidos: "Hoje se cumpriu esta Escritura, segundo o que ouvistes" (Lc 4.21).

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meio dos fiéis. Jesus diz aos discípulos que eles serão entregues aos tribunais e açoitados por causa dele. Naquela hora, eles não precisam temer o que dirão. Jesus explica: "Porque não sois vós que falais, mas o Espírito de vosso Pai é que fala por vós" (Mt 10.20). Vemos essa confissão feita pelo Espírito do Pai na grande confissão de Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.16). Esse tipo de confissão enfatiza Jesus, que não vem da carne e do sangue, mas de "meu Pai que está nos céus" (Mt 16.17) por meio do ensino de Cristo pelo Espírito Santo. É por este mesmo Espírito que os discípulos ensinarão tudo o que Cristo ordenou (Mt 28.20). Vemos isso expressamente declarado por João. Ele registra o que faz em seu Evangelho para que "vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, para que crendo, tenham vida em seu nome" (Jo 20.31).

A confissão de Pedro é a confissão feita pelos que creem. Como Marta, pelo Espírito Santo confessamos: "Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus" (Jo 11.27).

Mateus faz uma observação adicional sobre o Espírito Santo.

Quando Jesus expulsa demônios, Ele é acusado pelos fariseus de fazer isso por Belzebu. Jesus lhes diz que Ele expulsa os demônios pelo Espírito de Deus (Mt 12.28), o mesmo Espírito de Deus que desceu sobre Ele em Seu batismo (Mt 3.16) e O conduziu ao deserto (Mt 4.1). Além disso, o fato de isso acontecer significa que o reino de Deus veio para nós (Mt 12.29). Jesus então diz algo que tem deixado os intérpretes perplexos ao longo da história da Igreja: Por isso lhes digo que todo pecado e blasfêmia serão perdoados, mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. E quem disser uma palavra contra o Filho do Homem será perdoado, mas quem falar contra o Espírito Santo não será perdoado, nem nesta era nem na era vindoura (Mt 12.31-32).

No Evangelho de Mateus, a palavra blasfêmia só é usada com referência à obra de Deus. Os inimigos de Jesus sabem que as obras que Ele realiza pertencem somente a Deus. Em vez de confessar Sua identidade divina por causa dessas obras, eles O acusam de blasfêmia (Mt 26.65). Jesus nos diz que do coração saem os maus pensamentos e as 322

blasfêmias, o que significa calúnia ou discurso abusivo (Mt 15 19). É assim que Jesus usa a palavra em outras partes do Evangelho de Mateus.

Quando Jesus perdoa os pecados do paralítico, os escribas O acusam de blasfêmia. Jesus responde: "Por que pensais mal em vossos corações?"

(Mt 9.2-4).

A blasfêmia contra o Espírito Santo é a rejeição ativa da obra de Deus que calunia a Deus. No contexto de Mateus 12, os fariseus difamam a obra de Jesus por curar o homem possesso por demônios que era cego e mudo. Essa obra específica pertence ao Messias sobre o qual repousa o Espírito de YHWH (Is 35.5), um texto messiânico que Jesus aplica a Si mesmo quando os discípulos de João Batista vêm a Ele com suas perguntas sobre Sua identidade (Mt 11.4-6). Em vez de confessar que essa é a obra do Messias pelo Espírito de Deus, os oponentes de Jesus dizem que ela vem de Belzebu. Eles não apenas resistem à obra do Espírito entre si (Atos 7.51), mas também difamam a obra salvadora de Deus. Eles rejeitam propositalmente Deus e Sua obra, atribuindo-a ao diabo. Isso é blasfêmia, e esses pensamentos e acusações perversos, que prejudicam não apenas a pessoa que os profere, mas potencialmente também aqueles que os ouvem, são contra o Espírito Santo e não serão perdoados. Marcos chama isso de "pecado eterno" (Mc 3.29).

O que incomoda muitas pessoas com esse texto é o fato de Jesus dizer que esse tipo de pecado não será perdoado. Por que Jesus isolaria esse pecado específico e diria que ele não poderia ser perdoado? Uma interpretação mais ampla esclarecerá essa questão. Jesus faz uma distinção entre aqueles que falam contra o Filho do Homem e aqueles que falam contra o Espírito Santo.17 Qual é a diferença? Uma pessoa poderia falar contra o Filho do Homem vendo-O apenas como o filho de um carpinteiro (Mt 13.55; Lc 4.22) ou um mero nazareno (Mc 14.67; Jo 1.46).

Tropeçar na humildade do Filho, vendo apenas Sua humanidade sem a majestade e a beleza esperada (Is 53.2) que atraem o teólogo da glória, 17

Para Abraham Calov, a distinção de Jesus entre um pecado contra o Espírito Santo ou contra o Filho do Homem destaca a distinção hipostática do Espírito em relação ao Filho e, por extensão, ao Pai. Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1659), 3:727, 752-53.

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levou muitos ao longo dos séculos a evitar a manjedoura e a cruz, os lugares humildes de Deus. Essa dúvida provém do descontentamento com a simples e escandalosa mensagem da pregação do Cristo crucificado.

Quando o Espírito Santo nos leva à fé, Ele nos liberta dessas dúvidas, dessas falsas construções do que parece razoável e adequado para Deus.

Esses tipos de dúvidas, de acordo com Jesus, são uma forma diferente de falar contra o Espírito Santo.

Quando uma pessoa expressa descontentamento com a água comum do batismo ou com o pão e o vinho comuns da Ceia do Senhor, ou com a salvação perfeita realizada por Cristo, independentemente de nós e de nossas obras, ou com outros assuntos que dizem respeito à maneira pela qual Deus nos salva e determinou entregar essa salvação a nós, algo mais está sendo dito do que as dúvidas acima. Não temos acesso à salvação adquirida para nós pelo Filho, exceto pelo Espírito Santo.

Normalmente, isso ocorre por meio dos meios da graça divinamente designados, a Palavra e o Espírito Santo. Uma pessoa não pode mais ver o Pai sem o Filho (Jo 14.8-11), não pode confessar o Filho como Senhor sem o Espírito Santo (1 Co 14.3). Nossa salvação foi realizada por Deus e será entregue por Deus por meio de Seus meios designados. Não há como contornar isso. Os fariseus reclamam da obra do Espírito de Deus em Cristo. Eles não gostam tanto da maneira pela qual Deus atua que acusam Cristo de agir em favor do diabo. Eles não querem a obra de salvação de Deus da maneira como Ele a realiza. Eles querem ver e falar à parte de Cristo e do Espírito. Eles ainda querem separar o Filho do Espírito e remover Deus das pessoas simples e humildes. Assim, blasfemam contra o Espírito Santo, rejeitando Deus e a Sua obra por nós.

Aqueles que desejam conhecer o Pai à parte do Filho, o Filho à parte do Espírito, ou a salvação de Deus à parte da obra do Espírito através da Palavra, do Batismo e da Ceia do Senhor, rejeitam quem Deus é e a forma como Ele trabalha e nos entrega os Seus benefícios salvadores. A sua rejeição ativa prejudica a si próprio e aos que a rodeiam. Essa calúnia, essa blasfémia, resiste ao Espírito Santo. Tal blasfêmia não pode ser perdoada porque é uma rejeição total do Deus Triúno e de Sua salvação.18 18

Para uma interpretação um pouco semelhante, veja Ambrose of Milan On the 324

Mateus mostra consistentemente a identidade e a obra da Trindade. A fórmula batismal no final do Evangelho declara de forma concisa a estrutura trinitária de todo o Evangelho. Jesus é Emanuel, Ele é Deus conosco, o Filho amado do Pai. O Espírito é o Espírito do Pai, o Espírito de Deus, que repousa sobre Jesus e age intimamente com Ele. O que o final de Mateus revela com excepcional clareza é que o Pai, o Filho e o Espírito Santo pertencem à identidade única de YHWH. Além disso, o nome divino, no qual a salvação é encontrada, está no centro do batismo, e é aqui que Deus vem até nós, batizando-nos e entregando-nos Sua salvação. Como dizem nossas Confissões, "Ser batizado em nome de Deus é ser batizado não por homens, mas pelo próprio Deus".19 No santo batismo, nos tornamos filhos de Deus, nossos pecados são perdoados e nossa salvação é entregue. Nossa identidade, nossa existência e nossa vida estão firmemente fundamentadas no batismo. É por isso que Lutero e a tradição luterana nunca se cansam de exaltar a virtude do batismo. No Catecismo Maior, Lutero chama o batismo de um tesouro que Deus nos dá (CM IV.37), um remédio que engole a morte e nos mantém vivos (CM IV.43), nossa fonte diária de força e conforto (CM IV.44), uma grande joia que adorna nosso corpo e alma (CM IV.46), nossa vestimenta diária (CM IV.84). A vida cristã nada mais é do que um batismo diário (CM IV.65). "No batismo", escreve Lutero, "todo cristão tem o suficiente para estudar e praticar por toda a sua vida" (CM IV.41). Aqui, no Batismo, conhecemos a nós mesmos e a Trindade que salva, aqui adoramos e glorificamos o Pai com o Filho e com o Espírito Santo. A partir deste batismo, nunca nos graduamos como cristãos; retornamos diariamente, vivendo e morrendo em nosso batismo.

O Espírito Santo é o Senhor (YHWH)

Paulo também identifica o Espírito Santo com o nome divino.

Nos capítulos anteriores, mostramos que, no vocabulário teológico de Paulo, kyrios pode ser traduzido com o substituto grego adequado para YHWH. O que devemos pensar, então, de seu uso de kyrios para o Espírito Santo? O que devemos pensar do fato de ele atribuir textos do Holy Spirit I.54 (Fathers of the Church, 55).

19 CM IV.10.

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YHWH do Antigo Testamento ao Espírito Santo? Fizemos essas mesmas perguntas sobre o fato de Paulo atribuir textos de YHWH a Jesus. A resposta é que Paulo confessa apropriadamente que o Espírito Santo, assim como Jesus, pertence à identidade única de YHWH. O texto em questão vem de sua segunda carta aos Coríntios. Nessa carta, Paulo se opõe a um grupo de falsos mestres que questionam sua proclamação do evangelho e sua autoridade. Ele nos diz que esses oponentes vendem e adulteram a Palavra de Deus (2Co 2.17; 4:2). Esses "superapóstolos" pregam outro Jesus e outro evangelho (2Co 11.4-5). Eles enganam por meio de sua eloquência (2Co 11.6) e por se vangloriarem de seu judaísmo (2Co 11.22). Eles produzem "cartas de recomendação" e, por sua vez, questionam a autoridade e as credenciais apostólicas de Paulo (2Co 3.12). É difícil saber exatamente o que esses oponentes estavam argumentando. No mínimo, tinha a ver com um falso entendimento de Moisés e da lei que enfraquecia Cristo e a liberdade do Espírito. Seu falso ensino levantou questões sobre como lemos e interpretamos as Escrituras (hermenêutica) e, além disso, como essa leitura informa a vida cristã (ética). Essa é a questão abordada por Paulo no terceiro capítulo de sua carta.

Paulo faz um contraste entre a letra e o Espírito, entre o ministério da morte esculpido em pedras e o ministério do Espírito escrito nos corações humanos, entre o ministério da condenação e o ministério da justiça (2Co 3.3-9). Cada contraste feito por Paulo é entre uma glória menor que chegou a não ter glória e uma glória maior que a supera (2Co 3.10). Paulo então se volta para Moisés e Cristo (2Co 3.12-18). Seu argumento baseia-se em Êx 3.29-35 e no contraste entre a glória da antiga aliança (morte e condenação) e a glória maior da nova aliança (Espírito e justiça).20 Paulo explica esse contraste apelando para o uso de um véu por Moisés. Moisés cobriu o rosto, explica ele, "para que os israelitas não pudessem ver o resultado do que estava sendo" (2Co 3.13). Esse véu 20

Sobre o que se segue, veja especialmente J. D. G. Dunn, "2 Corinthians III.17The Lord Is the Spirit", Journal of Theological Studies, N.S., 21:2 (1970): 309-20; Richard B. Hays, Echoes of Scripture in the Letters of Paul (New Haven, CT: Yale University Press, 1989): 125-53; e C. Kavin Rowe, "Biblical Pressure and Trinitarian Hermeneutics", Pro Ecclesia 11/3 (2002): 303-4.

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permanece para aqueles que leem a antiga aliança à parte de Cristo. Paulo é enfático: "Somente por meio de Cristo o véu é retirado" (2Co 3.14). Ele então parafraseia Êx 34.34. "Mas, quando alguém se converte ao Senhor, o véu é retirado" (2Co 3.16). Quando Moisés se apresentou diante do Senhor (YHWH), ele removeu o véu. Como passamos da glória menor da antiga aliança, que não é glória, para a glória maior da nova aliança? A resposta de Paulo é por meio de Cristo, voltando-se para o Senhor. Quem é o Senhor em questão? Ele continua: "Ora, o Senhor é o Espírito" (ὁ δὲ κύριος τὸ πνεῦμά ἐτίν, 2Co 3.17). Esse é o mesmo Espírito que Paulo já mencionou: o Espírito do Deus vivo (2Co 3.3), o Espírito que dá vida (2Co 3.6). O véu da antiga aliança de morte é removido ao nos voltarmos para o Espírito de vida que nos entrega a obra salvadora de Cristo. Paulo explica: "Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade" (2Co 3.17).

Somente pelo Espírito, por meio de Cristo, temos liberdade da morte e da condenação lei, a antiga aliança. Esse Espírito de vida nos liberta em Cristo de nós mesmos para amar e servir ao próximo (2Co 5.14-15).

Aqueles que se voltaram para o Espírito contemplarão a glória do Senhor na face de Jesus Cristo, que é o Senhor (2Co 3.18; 4.5-6), e isso "da parte do Senhor, que é o Espírito" (2Co 3.18). Paulo, no espaço de apenas alguns versículos, atribui o nome divino a Deus, o Pai, a Jesus e ao Espírito. O Pai é Senhor, Jesus é Senhor, o Espírito Santo é Senhor, mas eles não são três senhores, mas um só Senhor. Tudo isso é dito por Paulo no contexto de nossa salvação, que ele resume em sua doxologia final: "A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós" (2Co 13.14).21 O ESPÍRITO SANTO É DEUS

A fórmula batismal no final do Evangelho de Mateus e a identificação de Paulo do Espírito Santo como Senhor localizam clara e precisamente o Espírito Santo na identidade única de YHWH. O Novo Testamento também identifica o status divino do Espírito Santo chamando-o de Deus ou descrevendo-o da mesma forma que ele é Deus.

21

Paulo usa rotineiramente fórmulas trinitárias. Além desta, veja Rm 1.1-4; 1Co 12.4-6; Gl 4.4-6; Ef 1.3-13; 4.4-6; Tt 3.4-7.

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Ananias e Safira se recusam a compartilhar seus bens com os outros discípulos e, em vez disso, secretamente e com a intenção de enganar, retêm uma parte (Atos 5.2). Pedro confronta Ananias: "Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que ao Espírito Santo e detivesses para ti parte do produto da terra?" (Atos 5.3)22 A mentira de Ananias para os discípulos foi uma mentira contra o Espírito Santo. Pedro continua deixando bem claro quem é o Espírito Santo: "Vocês não mentiram aos homens, mas a Deus" (Atos 5.4). Mentir para o Espírito Santo é mentir para Deus, porque o Espírito Santo é Deus.

O Novo Testamento também confessa a identidade divina do Espírito, atribuindo a Ele a mesma atividade que é atribuída ao Pai e ao Filho. No Credo Niceno, a igreja confessa que o Espírito é o Senhor e doador da vida (2Co 3.17-18). Há alguma ambiguidade intencional aqui.

O Espírito dá tanto a vida em termos de existência, o que é especialmente enfatizado no Antigo Testamento, como também a vida eterna. Ambos os pontos são destacados no Novo Testamento. Somente Deus dá vida; somente Ele cria e redime. Uma das principais maneiras pelas quais as Escrituras marcam a identidade única de Deus é atribuindo essa obra exclusiva ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Não há ninguém mais que cria e ninguém mais que salva.

O prólogo do Evangelho de João enfatiza a criação e a redenção a fim de mostrar a coigualdade e a distinção eterna do Pai e do Filho. Da mesma forma, encontramos essa mesma preocupação com o Pai e o Espírito no Novo Testamento. Paulo escreve: "O Espírito dá vida" (2Co 3.6). Em outro lugar, ele usa a mesma expressão para o Pai. Ele escreve a Timóteo: "Conjuro-te na presença de Deus, que dá vida a todas as coisas, e de Cristo Jesus, que, em seu testemunho perante Pôncio Pilatos, fez a boa confissão" (1Tm 6.13). Aqui Paulo se refere a Deus, o Pai, que dá vida. Em outra passagem, ele confessa que o Filho criou todas as coisas e sustenta todas as coisas (Cl 1.16-17). Em outra passagem, ele simplesmente confessa que YHWH chama todas as coisas à existência e dá vida e o sopro da vida (Rm 4.17; At 17.25). Como vimos, o Antigo 22

Sobre a questão exegética de Satanás encher o coração, veja Didymus the Blind On the Holy Spirit 257-67 (PPS, 222-25).

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Testamento diz de várias maneiras que somente YHWH cria, a Palavra de YHWH cria e o Espírito de YHWH, que é o sopro do Todo-Poderoso, cria. A mesma diversidade encontrada no Antigo Testamento é encontrada no Novo Testamento. Para Paulo, a vida dada pelo Espírito é a vida dada pelo Pai e pelo Filho. Portanto, há distinção e unidade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo dão vida, e a vida que eles dão é uma só.

No Evangelho de João, o foco está na obra do Espírito Santo que nos dá a vida eterna. Jesus diz: "Ele [o Espírito] me glorificará, pois tomará o que é meu e o anunciará a vocês. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso eu disse que ele tomará o que é meu e o anunciará a vocês" (Jo 16.14-15).

Jesus já explicou que tudo o que o Pai faz, o Filho faz (Jo 5.19). O Pai dá vida; o Filho dá vida. A mesma honra que o Pai recebe de nós, o Filho recebe. Quem não honra o Filho não honra o Pai. Essa coigualdade entre o Pai e o Filho é então expressa em termos de consubstancialidade: "Porque, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também concedeu ao Filho ter a vida em si mesmo" (Jo 5.26). O que o Pai tem por natureza (aqui declarado como "vida"), o Filho tem por natureza do Pai. Além disso, uma vez que o que o Pai é como Deus, Ele o é eternamente (Sl 102.27; Ml 3.6; Tg 1.17) e o Filho tem "tudo" o que o Pai tem, o Pai e o Filho são coeternos. Assim, quando Jesus declara: "Tudo o que o Pai tem é meu", Ele está descrevendo os termos de sua natureza divina coigual e coeterna, que a igreja tem confessado ao longo dos séculos com a palavra homoousios. Ambos são a própria "vida". Essa "vida" é o que o Espírito também tem do Pai e do Filho: "É o Espírito que dá a vida" (Jo 6.63). Essa "vida", a vida eterna, é a vida da Trindade compartilhada conosco no santo batismo. O Pai é vida, o Filho é vida, o Espírito Santo é vida. Eles não são três "vidas", de modo que recebemos três dons diferentes de vida eterna, um do Pai, um do Filho e um do Espírito Santo.

A vida que Eles dão é uma só porque Eles são um. Participamos da vida do Pai por meio do Filho pelo Espírito Santo.

O Pai, o Filho e o Espírito Santo criam e dão vida. Nos capítulos sobre o Pai e o Filho, também observamos textos em que Eles trazem mortos de volta à vida. Esse poder pertence somente a Deus e serve para distinguir Sua identidade de todas as outras. As Escrituras também 329

atribuem essa prerrogativa divina ao Espírito Santo. As Escrituras afirmam com mais frequência que Deus o Pai ressuscitou Jesus de entre os mortos (Atos 2.24, 32; 3.15; Rm 4.24; 6.4; 10.9; 2Co 4.14; Gl 1.1; Ef 1.20). A mesma coisa também é dita sobre Jesus e o Espírito Santo. Jesus diz: "Eu dou a minha vida para poder retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou por mim mesmo. Eu tenho autoridade para estabelecê-la e tenho autoridade para retomá-la. Essa responsabilidade eu o recebi de meu Pai" (Jo 10.17-18). A declaração de Jesus corresponde à Sua resposta enigmática aos judeus sobre o Templo: "Destruam este templo, e em três dias eu o levantarei" (Jo 2.19). Os judeus ficaram confusos com isso. Os discípulos entenderam as palavras de Jesus somente após a ressurreição: "Ele estava falando sobre o templo do seu corpo" (Jo 2.21). Também, de forma menos clara, as Escrituras afirmam que o Espírito de Deus ressuscitou Jesus: "Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vocês..." (2 Coríntios 8.11). De acordo com as Escrituras, o poder que ressuscitou Jesus dentre os mortos pertence ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Pode-se dizer que todos os três, em diferentes contextos, ressuscitaram o homem Jesus dentre os mortos. Seu poder, no entanto, é único, pois Eles são um. A prerrogativa divina única de criar e sustentar a vida, de devolver a vida aos mortos, pertence somente a Deus, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

LA OBRA DEL ESPÍRITU SANTO

Em nossos capítulos anteriores, enfatizamos a obra singular de Deus na criação, no governo de Sua criação, no julgamento e na salvação.

O Antigo Testamento estabelece a obra do Espírito sobre todas essas coisas, e o Novo Testamento também dá esse testemunho. Como vimos acima, no princípio, o Espírito de Deus criou todas as coisas juntamente com o Pai e Sua Palavra (Gn 1.3). Impressionado com a grandeza e a beleza da criação, Davi canta louvores a Deus por Sua criação de todas as coisas no Salmo 104. YHWH estendeu os céus, pôs a terra sobre os seus fundamentos, elevou os montes e juntou os vales. Ele fez jorrar as fontes para dar de beber aos animais, plantou árvores com galhos para os pássaros, cultivou grama para o gado e plantas para o homem cultivar. Ele deu vinho para alegrar o coração do homem e pão para dar força. Como 330

Ele criou todas essas coisas? Davi escreve: "Quando envias o teu Espírito, elas são criadas, e tu renovas a face da terra" (Sl 104.30).23 Além disso, o Espírito que cria, o Espírito de YHWH, permanece no homem e sustenta sua vida (Gn 6.3). Como vimos, o Novo Testamento dá continuidade a esta ênfase no Espírito como o doador da vida e da vida eterna.

O Espírito criador, que traz todas as coisas à existência também dirige a história humana. Ele é aquele que falou por meio dos profetas, declarando as coisas de Deus para nós. O Espírito que cria e está presente na vida dos patriarcas, juízes, profetas e servos de Deus (Gn 41.38; Nm 11.17, 29; Js 6.34; 14.6; 1Sm 10.6; 11.6; 2Cr 24.20; Ez 11.24 et passim). O Novo Testamento não se cansa de enfatizar a obra do Espírito Santo nos profetas. Suas profecias não provinham deles, nem de sua vontade, mas "de Deus, conforme eram conduzidos pelo Espírito Santo" (2Pe 1.21; cf.

At 28.25). Pedro diz ainda que o Espírito Santo, o Espírito de Cristo, foi enviado do céu para declarar aos profetas da antiguidade essas profecias sobre Cristo e nossa salvação. Eles declararam essas coisas pelo Espírito para nós (1Pe 1.10-12; cf. Hb 10.15-18). O Espírito continua a falar a verdade de Deus por meio das pessoas de fé. Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor a não ser pelo Espírito Santo (1Co 12.3); os que têm fé falam no Espírito de Deus, pois ninguém compreende as coisas de Deus a não ser o Espírito de Deus (1Co 2.11). Pedro diz que aqueles que são insultados por causa do nome de Cristo são abençoados porque "o Espírito da Glória e de Deus" repousa sobre eles (1Pe 4.14).

Os profetas enfatizam ainda que o Espírito repousará sobre o Cristo, o Messias prometido (Is 11.1-2; 42.1; 61.1). No dia de YHWH, após a vinda do Mestre da Justiça (Jl 2.23), esse Espírito será derramado (Jl 2.28; Ez 39.29; Zc 12.10) e "todo aquele que invocar o nome de YHWH será salvo" (Jl 2.32). O Novo Testamento enfatiza repetidamente o derramamento do Espírito Santo sobre o povo de Deus. Quando o Espírito enche os crentes, Ele lhes traz fé, amor, alegria, sabedoria, graça, poder e confiança para falar a Palavra de Deus. João Batista está "cheio do Espírito Santo, desde o ventre de sua mãe" (Lc 1.15). Sua mãe, Isabel, ao ouvir a saudação de Maria, "ficou cheia do Espírito Santo e exclamou 23

Athanasius Letters to Serapion 1.24.5 (PPS, 91) e 1.9.6 (PPS, 67).

331

em alta voz: 'Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre! (Lc 1.41-42). Cheia do Espírito Santo, Isabel se alegra com o fato da mãe de seu Senhor ter vindo a ela (Lc 1.43). Zacarias também é "cheio do Espírito Santo e profetizou, dizendo: 'Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo e levantou para nós uma força de salvação na casa de seu servo Davi'" (Lc 1.67-69 KJV). Após a ascensão de Cristo, quando chega o dia de Pentecostes, os discípulos se reúnem e estão todos "cheios do Espírito Santo" e proclamam o evangelho em várias línguas (Atos 2.1-4). Assim como aconteceu com Isabel e Zacarias, quando os discípulos estão cheios do Espírito Santo, eles saem proclamando a salvação que temos em Cristo.

Em Atos, depois que os discípulos estão cheios do Espírito, eles proclamam o evangelho nas diversas línguas da época, superando a confusão de Babel. Sua pregação, pelo poder do Espírito Santo, é totalmente cristológica. Esse ponto deve ser enfatizado. Nos dois capítulos anteriores, demonstramos como Jesus nos deixa claro o sentido cristológico em que devemos ler as Escrituras. A pregação dos apóstolos mostra exatamente isso. No pórtico de Salomão, após o Pentecostes, Pedro prega sobre Jesus ressuscitado, "Santo e Justo", que é o "Autor da vida", ressuscitado dos mortos pelo Pai (Atos 3.14). Tudo o que Deus havia declarado "pela boca de todos os profetas, que o seu Cristo havia de padecer, assim o cumpriu" (Atos 3.18, 21). Tanto Moisés quanto Samuel testemunharam sobre Ele (Atos 3.22, 24). Ele é a bênção prometida às nações pela semente de Abraão que veio e ressuscitou dos mortos (Atos 3.26-27). Da mesma forma, em seu grande sermão no Pentecostes, Pedro começa direcionando seus ouvintes para o que os profetas do Antigo Testamento proclamaram. O sermão é totalmente trinitário. É o Espírito que nos aponta para o Filho e o Filho que nos revela o Pai. Pedro segue esse padrão em seu sermão, começando com o Espírito e terminando com Pai. Ele começa com um versículo introdutório de Isaías e, em seguida, uma longa citação de Joel: "E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, e os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos terão sonhos. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo" (At 2.17-21; Is 2.2; 332

Mq 4.1; Jl 2.28-32). O Espírito aponta para o Filho, em cujo nome todos os que creem têm vida eterna (Jo 3.16-18; 1Jo 5.13).

Para que não façamos uma leitura muito rápida do sermão de Pedro, precisamos nos lembrar do contexto de Joel para o que Pedro está dizendo. Esse contexto nos permite apreciar mais plenamente a força do sermão de Pedro e como três mil almas puderam ser salvas por esse único sermão (Atos 2.41). Quem fala em Joel é YHWH. Ele promete salvação ao Seu povo. YHWH, nosso Elohim, enviará "o Mestre da Justiça" (Jl 2.23), que é nossa abundância e nosso tesouro (Jl 2.24-26).24 E acontecerá depois que o Espírito de YHWH será derramado (Jl 2.28; cf. Ez 39.29; Zc 12.10), e "todo aquele que invocar o nome de YHWH será salvo" (Jl 2:32).

De acordo com os profetas, os últimos dias são os dias da vinda do Messias (Isaías 2; Miquéias 4). O Espírito de YHWH será derramado naqueles dias, e por Ele as pessoas invocarão o "nome" de YHWH e serão salvas. O argumento de Pedro é que esses dias já chegaram. O Espírito de YHWH foi enviado, e o nome de YHWH que as pessoas devem invocar é Jesus, em quem se encontra o perdão dos pecados e a salvação (Atos 2.38; cf. Atos 4.12; Rm 10.9-13).

Em seu sermão de Pentecostes, Pedro passa do Espírito Santo para o Filho e depois para o Pai. O patriarca e profeta Rei Davi declarou: Vi o Senhor sempre diante de mim, porque está à minha direita, para que eu não seja abalado; por isso o meu coração se alegrou, e a minha língua exultou; também a minha carne habitará em esperança. Pois não abandonarás a minha alma no inferno, nem deixarás que o teu Santo veja corrupção.

Tu me fizeste conhecer as veredas da vida; tu me encherás de alegria com a tua presença (Atos 2.25-28; Sl 16.8-11).

Como Pedro salienta, Davi morreu e foi sepultado (Atos 2.29).

Essas palavras foram dadas por Davi como profecia. Elas se referem a Cristo. Ele é o que (Lc 1.35; Mc 1.24-25; Jo 6.69; Atos 3.14) cuja carne não viu corrupção. Além disso, depois que Ele foi exaltado pelo Pai, "a 24

Para uma discussão sobre "Teacher of Righteousness", veja Theodore Laetsch, The Minor Prophets (St. Louis: CPH, 1956), 125-126.

333

promessa do Espírito Santo" foi derramada (Atos 2.33; cf. Gl 3.14). Mais uma vez, Pedro apela para os Salmos e para as palavras de Davi: "Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés" (Atos 2.34; Sl 110.1). Deus, o Pai, fez de Jesus, aquele que foi crucificado, tanto Senhor quanto Cristo. O Pai é o Senhor; o Filho é o Senhor. Ambos são Senhor e isso nós sabemos pelo Espírito que é Senhor (2 Co 3.17-18).

Ao longo de Atos, os discípulos, cheios do Espírito Santo, proclamam a salvação que temos somente em Cristo. Pedro aparece diante do Sinédrio e eles lhe perguntam com que poder ou com que nome ele prega. Pedro, "cheio do Espírito Santo" (Atos 4.8), aponta para o Cristo crucificado, a pedra angular, em quem somente há salvação, "porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos" (Atos 4.12). O Espírito aponta para Cristo; aqueles que são cheios do Espírito proclamam a salvação que temos em Cristo. Quando Estêvão é cheio do Espírito Santo, ele vê a glória de Deus e Jesus à Sua direita (Atos 7.55). Especialmente com Estêvão, vemos que aqueles que estão cheios do Espírito Santo têm os dons do Espírito. Estêvão é "cheio de sabedoria e do Espírito Santo" (Atos 6.3); ele é um homem "cheio de fé e do Espírito Santo" (Atos 6.5); novamente, ele é um homem "cheio de graça e poder" (Atos 6.8), e as pessoas que discutiam com ele "não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito com que ele falava" (Atos 6.11). Mais tarde, em Atos, lemos que "os discípulos ficaram cheios de alegria e do Espírito Santo" (Atos 13.52).

Quando o Espírito Santo é derramado sobre o povo de Deus, quando Ele enche um crente, Ele lhe traz fé, amor, alegria, sabedoria, graça, poder e confiança para testemunhar da Palavra de Deus. Esses dons de Deus vêm a nós por meio do Espírito Santo. Paulo escreve: "O amor de Deus foi derramado em nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5.5). O Pai derrama Seu Espírito, o Espírito do Pai, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador. Paulo escreve novamente: Mas, manifestando-se a bondade e benignidade de Deus, nosso Salvador, ele nos salvou, não em virtude de obras de justiça por nós praticadas, mas segundo a sua misericórdia, 334

pela lavagem renovadora do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós abundantemente, por Jesus Cristo, nosso Salvador, para que, justificados por sua graça, fôssemos feitos herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. (Tt 3.4-7)

Como descrito no capítulo 8, Paulo se refere tanto ao Pai quanto ao Filho como Salvador em sua breve carta a Tito. A salvação deles nós recebemos por meio do santo batismo, pela ação regeneradora e renovadora do Espírito Santo, que o Pai derrama sobre nós por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador. Como Lutero sucintamente coloca, a Trindade salva.

A obra de criação e redenção envolve tanto o Espírito quanto o Pai e o Filho. Os três são distintos, mas inseparáveis. Uma característica consistente da obra do Espírito é que Ele aponta todas as pessoas para o Filho. Ele se apoia nos patriarcas e profetas, para que proclamem as promessas do Pai que se cumprem no Filho. Ele se apoia em Cristo em Sua obra econômica e é enviado pelo Pai e pelo Filho após a obra salvadora de Cristo, para que todos invoquem o nome de YHWH, o nome de Jesus, e sejam salvos. Da mesma forma, quando o povo de Deus se rebela, quando se volta para seus próprios caminhos e se esquece do que Deus fez por eles e prometeu a eles, diz-se que eles "entristecem" o Espírito Santo (Is 63.10; Ef 4.30). Quando os fiéis veem seu pecado e sabem que esse pecado é contra Deus (Sl 51.4), eles se arrependem, oram para que seus pecados sejam lavados e que um coração limpo seja criado dentro deles, para que o Espírito Santo não seja tirado deles (Sl 51.11).

Ter o Espírito Santo, como Davi continua em seu Salmo, é ter a alegria da salvação (v. 12), é ensinar os pecadores sobre o caminho de Deus e Sua salvação (v. 13), para cantar em voz alta Sua justiça (v. 14), para declarar Seu louvor (v. 15). Tudo isso procede do Espírito Santo que repousa em seu interior. O mesmo Espírito Santo que encheu Davi, enche Isabel, Zacarias e João Batista, enche Pedro, Estêvão e os discípulos e, de fato, enche todos os crentes que confessam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e que proclamam a salvação somente Nele, deleitando-se na alegria, no amor, na graça e no poder de Deus que são nossos por meio da atuação Espírito Santo em nós.

335

O ESPÍRITO SANTO E A IGREJA

Dissemos acima que não podemos conhecer o Pai ou o Filho sem o Espírito. Por essa razão, tanto o Pai quanto o Filho enviam o Espírito Santo a nós (Jo 14.26; 15.26). Temos acesso ao Pai por meio do Filho no Espírito (Ef 3.18). O Espírito opera a fé em nosso coração para confessar Cristo como Senhor para a glória do Pai. O Espírito opera esta fé na igreja por meio da Palavra e do Sacramento, tornando os pecadores puros e santos (1Co 6.11). Aqui, nos meios instituídos por Deus para nos ofertar a Sua graça, o Espírito está presente e em ação. Aqueles que procuram o Espírito em outro lugar buscam aquilo que não é o Espírito Santo. As Confissões Luteranas afirmam isso claramente: "O Pai não [nos atrairá a Cristo] sem meios, e ele ordenou a Palavra e os sacramentos como os meios ou instrumentos comuns para realizar esse fim."25 As Escrituras não conhecem nenhuma separação entre a Palavra e o Espírito, nem nossas Confissões. Onde a Palavra é proclamada, o Espírito está com certeza em ação. Lutero escreve: "Devemos e precisamos manter constantemente que Deus não tratará conosco a não ser por meio de Sua Palavra e Sacramento externos. O que quer que seja atribuído ao Espírito fora de tal Palavra e sacramento é do demônio."26 O Pai e o Filho enviam o Espírito a nós para nos levar à fé por meio da Palavra e do Sacramento.

O Espírito toma as palavras de Cristo e as fala a nós, apontando-nos sempre para Cristo (Jo 14.26; 15.26) e operando a fé em nossos corações (Rm 10.17). Estas palavras de fé, de doutrina, nos nutrem (1Tm 4.6 KJV); elas são nosso puro leite espiritual (1Pe 2.2). O Espírito usa a Palavra para nos nutrir e nos iluminar (Sl 119.105), a Palavra que Ele deu aos profetas da antiguidade (2Pe 1.21) que é a obra salvadora de Cristo pelo Espírito (1Pe 1.11-12). É por isso que o Espírito, o Senhor e doador da vida, permanece inseparavelmente ligado à proclamação do evangelho.

Paulo proclama o evangelho não de acordo com sua própria inteligência, mas de acordo com o Espírito. E ele faz isso para que nossa fé possa repousar em Deus e não no homem. Paulo escreve: "O meu discurso e a minha mensagem não consistiram em palavras plausíveis de 25 26

FC DS XI.76.

AE III.viii.10.

336

sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus" (1Co 2.4-5). Aos tessalonicenses, ele escreve: "O nosso Evangelho chegou a vocês não apenas em palavras, mas também em poder, no Espírito Santo e com plena convicção" (1Ts 1.5). O evangelho pregado por Paulo em poder e no Espírito Santo nos traz "a alegria do Espírito Santo" (1Ts 1.6).

Assim como Deus usa a água, o vinho e o pão para transmitir Sua graça e perdão, Ele usa Paulo e, em nossos dias, Seus servos da Palavra chamados e ordenados para proclamar Seu evangelho e administrar Seus sacramentos ao Seu povo. Aqui o Espírito Santo cria e sustenta a fé daqueles que pertencem ao Corpo de Cristo.

Paulo enfatiza que é pelo evangelho que recebemos o Espírito Santo. Depois de proclamar que somos justificados não por obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, o que significa que morremos para a lei e vivemos para Deus, de fato, que Cristo vive em nós (Gl 2.15-21), Paulo pergunta aos gálatas: "Vocês receberam o Espírito por obras da lei ou por ouvir com fé? (Gl 3.2). Ele faz a pergunta novamente e, dessa vez, traz Abraão para a conversa. Abraão creu em Deus e sua fé lhe foi imputada como justiça (Gl 3.6). Os que têm fé são filhos de Abraão, o homem de fé. O mesmo evangelho que justificou Abraão justifica os gentios pela fé (Gl 3.8-9). Paulo enfatiza esse ponto em Romanos: "As palavras 'isso lhe foi imputado' não foram escritas somente por causa dele, mas também por causa de nós" (Rm 4.23-24). Deus prometeu a Abraão que todas as nações serão abençoadas nele. Paulo nos diz que isso aconteceu com Cristo. Nosso interesse é como ele relaciona isso ao Espírito. Ele escreve: "Em Cristo Jesus, a bênção de Abraão [veio] para os gentios, para que pudéssemos receber o Espírito prometido por meio da fé" (Gl 3.14).

Acima, observamos como Pedro enfatiza a promessa do Espírito feita pelo Pai (Atos 2.33). Aqui Paulo também direciona os gálatas para a promessa do Espírito do Pai, que eles recebem pela fé em Cristo. Somente quando confessamos Cristo como Senhor, reconhecendo-O como o Filho unigênito do Pai, é que também passamos a conhecer e a nos regozijar no Espírito de Cristo que habita em nós. Uma compreensão adequada do Espírito sempre coloca Cristo no centro.

337

O principal dom ou carisma do Espírito é a fé na obra salvadora de Cristo. Isso Ele realiza por meio do ouvir a Palavra e do batismo.

Quando alcançamos a fé, conhecemos e reconhecemos Jesus, o verdadeiro Filho de Deus, e por meio Dele conhecemos o Pai e o Espírito.

O Espírito que nos leva à fé e nos sustenta nessa fé é o Espírito de Cristo, que habita em nós e intercede por nós. É por meio Dele que nos tornamos "filhos de Deus, pela fé" (Gl 3.26). Em outro lugar, Paulo explica que aqueles que são filhos de Deus são coerdeiros de Cristo e vivem "pelo Espírito de Deus" (Rm 8.14). Somos libertados em Cristo pelo Espírito e "não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8.4; Gl 3.29). Essa liberdade é alegria e vida, e Paulo a relaciona com o batismo.

Aqueles que "se revestiram de Cristo", o que, como visto acima, ocorre pela ação do Espírito Santo, são aqueles que "foram batizados em Cristo" (Gl 3.27). Quando somos batizados em Cristo, somos "batizados na sua morte" (Rm 6.3). O que isso significa? Paulo explica: "Fomos, pois, sepultados com ele pelo batismo na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida" (Rm 6.4). No centro de nosso batismo encontramos a morte e a ressurreição de Cristo, encontramos nossa morte para o pecado e nossa liberdade para viver em Cristo, amando e servindo ao próximo nos lugares comuns de nossas vocações. A expressão abreviada para essa morte e nova vida é o perdão dos pecados. Onde há perdão, há também vida e salvação. Essa vida vem a nós pelo Espírito Santo, o Senhor e doador da vida, que habita em nós ricamente e nos une a Cristo. Paulo escreve, Vocês... não estão na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vós. Quem não tem o Espírito de Cristo não pertence a ele. Mas, se Cristo está em vocês, embora o corpo esteja morto por causa do pecado, o Espírito é vida por causa da justiça. Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vocês, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos também dará vida aos seus corpos mortais por meio do seu Espírito que habita em vocês. (Rm 8.9-11).

O Espírito que habita em nós é o Espírito de Deus Pai, o Espírito 338

de Cristo. Ele nos regenera e nos renova no santo batismo (Tt 3.5), o que significa que Ele nos sepulta pelo batismo na morte de Cristo, matando nosso pecado e imputando a nós a justiça de Cristo, para que possamos andar em novidade de vida como filhos de Deus, coerdeiros de Cristo, clamando "Aba, Pai" (Rm 8.12-17). Paulo não se cansa de resumir esse ensinamento sobre o batismo. Além de Tito 3, ele também escreve: "Vocês foram lavados [ou seja, batizados], foram santificados, foram justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus" (1Co 6.11). Somente Deus nos recria e nos faz novos por meio do batismo. Por essa razão, Lutero estruturou o dia cristão e, de fato, toda a vida cristã em torno da morte e da vida batismal.”27 Lutero continua descrevendo como o crente mergulha "diariamente" em seu batismo, matando o velho Adão e ressuscitando em Cristo. Ele associa a penitência ao batismo. Se você vive em arrependimento, você caminha no batismo.

E isso, explica Lutero, produz e promove a "nova vida" trazida pelo poder e pela graça do Espírito Santo.28 A vida de santificação envolve a lembrança diária do batismo. Além do batismo, a vida de santificação, a caminhada cristã, brota da justificação e a da justiça de Cristo.

Paulo também conecta o batismo com a igreja, o Corpo de Cristo.

Paulo expressa isso no contexto de sua reflexão sobre maridos e esposas.

Ele escreve, Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, a fim de apresentar a igreja a si mesmo em esplendor, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, para que seja santa e irrepreensível. (Ef 5.25-27)

Cristo e a igreja servem como a imagem do casamento entre marido e mulher. Cristo, o cabeça da igreja, entregou-Se por ela, comproua com Seu próprio sangue (Atos 20.28 KJV) e a purificou por meio da 27

CM IV.65.

CM V.71-76. Ninguém na história da igreja tem uma teologia mais robusta do batismo do que Lutero. Em minha opinião, o teólogo mais próximo de Lutero sobre o batismo é Gregório de Nazianzo.

28

339

lavagem do batismo pela Palavra, para que Ele pudesse apresentar Sua noiva, a igreja, a Si mesmo sem mancha ou defeito. A santificação e o batismo andam juntos. Além disso, o Corpo de Cristo é a família de Deus, edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo Cristo a pedra angular, e isso pelo Espírito (Ef 2.18-22). Quando Paulo afirma que acessamos o Pai por meio do Filho no Espírito (Ef 2.18), ele expressa concretamente sobre o ambiente onde isso ocorre: na igreja. O Espírito que é nossa garantia (Ef 1.14; 2Co 1.22; 5.5) é o Espírito do Pai, o Espírito do Filho, enviado a nós para criar e sustentar a fé por meio da Palavra e do Sacramento, e essas são as marcas da igreja. O Espírito trabalha por meio do ofício divinamente designado do ministério (Jo 20.21-23) para nos levar ao Filho e a Seus benefícios salvadores, e é aí que encontramos nosso acesso ao Pai. Não há entusiasmo ou desordem previstos por Paulo.

O Espírito é um Espírito de ordem, que concede com certeza uma diversidade de dons, mas o principal dom, o principal carisma, é a nova vida em Cristo para a glória do Pai (1Co 12.1-31). Em fidelidade às Escrituras, insistimos que o Pai envia Seu Espírito a nós por meio da Palavra e do Sacramento para nos atrair a Cristo e nos manter Nele.

Nossas Confissões insistem nisso quando enfatizam que o Espírito Santo nos leva à fé por meio da Palavra e do Sacramento sendo estes os únicos meios.29 A Palavra é o meio usado pelo Espírito Santo para levar à conversão;30 sem a Palavra, sem os meios, o Espírito Santo não leva à conversão.31 CONCLUSÃO

Duas afirmações ocorrem com regularidade na atual abordagem sobre a Trindade. Os estudiosos bíblicos e alguns teólogos nos dizem rotineiramente que a doutrina da Trindade não pode ser encontrada na Bíblia.32 Para eles, ela pertence à história da igreja e às pesquisas dos Pais 29

CA V; CA XVIII. FC Ep. II.19.

31 FC Ep. II.4.

32 Donald Juel, "The Trinity in the New Testament", Theology Today 54 (1997): 313: "O Novo Testamento não contém nenhuma doutrina da Trindade". Emil Brunner, The Christian Doctrine of God: Dogmatics, trans. Olive Wyon (Filadélfia: The Westminster Press, 1950), 1:236: "A doutrina da Trindade em si, no entanto, 30

340

da igreja. Os escritores ortodoxos concordam que os Pais usaram as Escrituras para confessar a Trindade, mas qualquer que seja a forma que a Trindade tenha nas Escrituras, ela é, na melhor das hipóteses, incipiente.33 Embora os Pais tenham reunido o testemunho das Escrituras de modo a confessar a Trindade consubstancial, a sugestão, ao que parece, é que algo mais poderia ter sido confessado.34 Essa posição implica ainda que nenhuma fundamentação trinitária pode ser encontrada entre os escritores bíblicos. Em segundo lugar, somos informados de que o Espírito Santo é o Deus desconhecido ou esquecido entre os cristãos ocidentais.35 Os pentecostais e carismáticos enfatizam o "Espírito", mas os outros cristãos mais institucionais e sacramentais não têm consciência dos dons e da atividade do Espírito entre os fiéis.

Aqueles que acham que a doutrina da Trindade pertence à história da igreja e não à Bíblia usam a palavra "doutrina" de uma maneira peculiar.

Da mesma forma, aqueles que acham que os pentecostais e carismáticos enfatizam o "Espírito" e outros não têm uma maneira peculiar de entender a pessoa e a obra do Espírito Santo. Se doutrina significa termos teológicos técnicos e fórmulas precisas, moldes dos credos posteriores, então a Bíblia não oferece tal coisa. Se doutrina significa ensino, então, não é uma doutrina bíblica, e isso de fato não por acidente, mas por necessidade." Cf. Robert Jenson, "The Bible and the Trinity", Pro Ecclesia XI:3 (2002): 329.

33 Robert Jenson, "The Trinity in the Bible", Concordia Theological Quarterly 68 (2004): 196: "Alguns historicistas consideram o suposto status pós-bíblico da doutrina da Trindade como uma libertação do que eles consideram uma doutrina absurda. Outros dirão coisas como eu dizer, que embora a doutrina da Trindade não esteja de fato nas Escrituras, ela é um desenvolvimento apropriado de coisas que estão nas Escrituras - e de fato eu ainda poderia dizer isso em certos contextos, mas acabei vendo que é apenas uma pequena parte da verdade."

34 Juel, "The Trinity in the New Testament", 313: "A fé trinitária completa é uma interpretação posterior e criativa do testemunho bíblico pela igreja".

35 Cf. Robert Jenson, Systematic Theology, (Oxford: Oxford University Press, 1997), 1:153; Walter Kaspar, The God of Jesus Christ, (Nova York, NY: Crossroad, 1984), 198. A exortação apostólica Evangelii Gaudium do Papa Francisco recebeu o seguinte elogio em uma resenha: "A ênfase no membro mais negligenciado da Trindade - o Espírito Santo - na vida da Igreja é especialmente inspiradora."

Samuel Gregg, "Pope Francis and Poverty", em The Corner, National Review Online, 26 de novembro de 2013.

341

sem dúvida, a Bíblia ensina a identidade Triúna do único Deus verdadeiro como Pai, Filho e Espírito Santo. Se ter o "espírito" significa ter uma experiência extática afastada de Cristo e separada da Palavra e do sacramento, então o "espírito" não é aquele prometido nas Escrituras como o Espírito Santo. Em ambos os casos, as duas declarações acima, que aparecem com regularidade em nossos dias, procedem com julgamentos não derivados das Escrituras, mas com expectativas em conformidade com nossas melhores ideias ou desejos.

Uma visão desvirtuada do Espírito sempre resulta em uma cristologia defeituosa, que por necessidade resulta em uma rejeição da Trindade. Os pentecostais que unificam as pessoas da Trindade são uma evidência disso. Embora falem muito sobre Jesus e o Espírito, eles rejeitam a Trindade e, portanto, negam o Deus da Bíblia. A história da igreja tem nos mostrado que quando a Trindade é rejeitada, o mesmo acontece com o evangelho. Em todos os casos, prevalece apenas o legalismo. Vivemos em uma época em que muitos estudiosos da Bíblia, poucos ainda que se declaram cristãos, afirmam que a Bíblia não ensina a doutrina da Trindade. Fazer essa afirmação não é diferente de dizer que a Bíblia não ensina o cristianismo. Negar a Trindade é negar o cristianismo.

Também vivemos em um mundo em que a "denominação" que mais cresce é o pentecostalismo, que nega ou distorce a Trindade. Separar o Espírito e o Filho é promover ideias sobre Deus desconhecidas pelas Escrituras. Retirar o Espírito dos meios de graça, das próprias coisas dadas por Deus para criar, nutrir e sustentar a fé em nós, é rejeitar o Corpo de Cristo, a igreja. A batalha em nossos dias, sobre a Bíblia e o Espírito, vai ao cerne do cristianismo. Precisamos reaprender a exegese dos Pais e dos Reformadores, a voz da igreja, e continuar a pregar e ensinar, orar, cantar e viver de acordo com nossa fé batismal. Gregório de Nissa nos exorta a fazer exatamente isso. Ele escreve: Portanto, somos batizados como nos foi transmitido, no Pai e no Filho e no Espírito Santo, e cremos como somos batizados - pois convém que nossa confissão seja de uma só voz com nossa fé - e damos glória como cremos, pois não é natural que a adoração faça guerra contra a fé, mas como cremos, assim também damos glória. Ora, como nossa fé 342

está no Pai, no Filho e no Santo, a fé, a adoração e o batismo estão de acordo entre si.36

Muitos séculos depois, Lutero diria coisas muito semelhantes.

Como tivemos a oportunidade de ver, Lutero coloca a vida cristã em torno do batismo. Uma compreensão correta do batismo preserva o evangelho e a salvação da Trindade. Devemos unir nossas vozes às de Lutero e declarar: "Sou batizado, instruído somente com a Palavra, absolvido e participo da Ceia do Senhor. Mas com a palavra e por meio da Palavra o Espírito Santo está presente, e toda a Trindade opera a salvação, como declaram as palavras do batismo."37 Tanto Gregório quanto Lutero testemunham desta forma porque sabiam que a Bíblia era completamente trinitária, que nossa salvação foi realizada e operada em nós pela Trindade por meio dos meios de graça divinamente instituídos, e que tudo isso foi corretamente contemplado e vivido em nosso batismo.

36

Gregory of Nyssa, Letter 24.8 em Gregory of Nyssa: The Letters, trans. Anna M. Silvas (Leiden: Brill, 2007), 194.

37 Martin Luther, Lectures on Genesis, 1535-45 (AE 8:264; WA 44:773.4-6).

CONTEÚDO

343

344

11 A EMANAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO

No capítulo anterior descrevemos como as Escrituras revelam a identidade divina do Espírito Santo. Ele é Senhor e Deus da mesma forma que o Pai e o Filho são Senhor e Deus. Ele cria e julga, dirige a história humana e nos entrega a salvação do Pai realizada no Filho por meio do ofício divinamente instituído do ministério e dos meios da graça divinamente instituídos. Sem o Espírito Santo não há salvação, pois, sem Ele, ninguém pode invocar o nome de Jesus, em quem somente temos a reconciliação com o Pai e a justiça que vale para a vida eterna. É por esse mesmo Espírito que, em liberdade cristã, amamos e servimos ao próximo nos lugares para os quais Deus nos chamou e proclamamos em palavras e ações a salvação do Senhor nosso Deus.

Também enfatizamos a inseparabilidade do Filho e do Espírito.

Cada evento importante na vida humana de Jesus envolve o Espírito Santo. Do nascimento ao batismo, da tentação à provação, o Espírito Santo está sobre Jesus e age com Ele para nossa salvação. Após a ressurreição, o Filho sopra o Espírito sobre os discípulos, instituindo o ministério da Palavra; após a ascensão de nosso Senhor, o Espírito Santo é derramado sobre todos os crentes. Embora este mesmo Espírito tenha atuado no Antigo Testamento por meio dos patriarcas, juízes e profetas, e tenha atuado durante a vida de Cristo enchendo Zacarias, Isabel, João Batista e Simeão, entre outros, para apontar para Cristo e proclamar Sua salvação, algo decisivo ocorre com o Pentecostes. Tanto o Pai como o Filho tinham prometido enviar-nos o Espírito, para tomar as palavras de Cristo, que são as palavras do Pai, e para a nós às dizer, criando e sustentando a fé em nós - em suma, desviando-nos do nosso pecado para a nossa vida em Cristo, e tudo isto para deleite do Pai. Uma questão teológica preemente que surge na igreja primitiva diz respeito ao relacionamento eterno que existe entre o Pai, o Filho e o 345

Espírito Santo. Como Eles são um? Como Eles são três? Como podemos distinguir essas três pessoas sem comprometer sua unidade? Como podemos falar sobre a unidade deles sem desmoronar sua diversidade?

Eles são eternamente distintos um do outro como três e, ainda assim, inseparavelmente unidos como um. As Escrituras deixam isso claro em ambos os testamentos. Embora abordemos a sistematização teológica da igreja sobre essas questões nos próximos capítulos, precisamos tratar neste capítulo da origem do Espírito e se Ele procede somente do Pai ou do Pai e do Filho (filioque). Nossas convicções nos obrigam a abordar essa questão aqui, em nossos capítulos sobre a identidade das Escrituras, e não como parte do raciocínio dogmático da igreja. A posição luterana sobre o filioque se baseia nas Escrituras.

A objeção ortodoxa posterior contra o filioque deriva de uma controvérsia e de um julgamento teológico específico. Eles postulam uma distinção nítida entre a emanação eterna e a missão temporal que não era amplamente defendida na igreja primitiva e era entendida de forma diferente pelos teólogos do Ocidente, incluindo nossos pais luteranos. Só no período medieval que esta objeção se torna central para o argumento ortodoxo, quando a controvérsia emerge, e, por isso, pertence a um período posterior da igreja, que o diferencia do ensino inicial encontrado entre os Pais sobre como o Espírito se relaciona eternamente com o Filho.1 É de vital importância reconhecer esse fato. Os compromissos da 1 David Bentley Hart, um teólogo ortodoxo, escreve: "Desde a época de Vladimir Lossky, vários teólogos ortodoxos modernos, em seu ataque ao 'filioquismo', adotaram um 'fotianismo' exagerado e argumentaram que entre os atos de Deus na economia da salvação e a vida eterna de geração e processão de Deus não há uma correspondência exata de ordem ... Este, no entanto, é um curso teologicamente desastroso a ser trilhado, e que se afasta completamente da genuína tradição ortodoxa. Pode-se notar, para começar, que se essa afirmação fosse sólida, os argumentos pelos quais os capadócios defenderam a teologia trinitária completa contra a teologia ariana e eunomiana - em obras como De Spiritu Sancto de Basílio e Adversus Macedonianos de Gregório - desmoronariam completamente; mais terrivelmente, no entanto, por trás de tal separação das ordens das Trindades econômicas e imanentes umas das outras está o espectro bastante inexorável do nominalismo. . . tudo isso é bastante repugnante à tradição patrística. David Bentley Hart, “The Mirror of the Infinite: Gregory of Nyssa on the Vestigia Trinitatis,” Modern Theology 18: 4 (2002): 559 n. 11.

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igreja latina, primitiva e medieval, com o filioque, os mesmos compromissos abraçados por nossos pais luteranos e confessados no Livro de Concórdia, surgiram principalmente de sua leitura das Escrituras e não em resposta à controvérsia posterior.2 Antes que houvesse algo como a controvérsia do filioque, os teólogos e credos da igreja ocidental já haviam estabelecido há muito tempo o ensino bíblico da procedência do Espírito a partir do Pai e do Filho.

UMA BREVE HISTÓRIA DO FILIOQUE

O acréscimo do filioque ao Credo Niceno ocidental tem uma história longa e complicada.3 Ele se tornou um padrão fixo na liturgia ocidental somente durante o século XI. Dois séculos antes disso, Carlos Magno havia inserido o filioque no credo para os francos, e esse credo alterado foi usado na liturgia em Aachen e pelos missionários francos na Bulgária. A presença desses missionários em terras sob a jurisdição dos ortodoxos criou problemas; seu uso do filioque adicionou lenha na fogueira. O papa da época, Leão III, recusou-se a mudar a redação do Credo Niceno na liturgia romana, como Carlos Magno havia feito no Norte, mas concordou com o ensinamento.

O uso do filioque não se originou com Carlos Magno. Embora a 2

Além do Credo Niceno e do Credo de Atanásio, o Livro de Concórdia menciona o filioque apenas duas vezes: AE I.2 e FC DS VIII.73. Lutero apenas menciona isso.

A Fórmula reflete brevemente sobre isso: "Uma vez que Cristo, segundo sua divindade, é a segunda pessoa na Santíssima Trindade e o Espírito Santo procede dele e do Pai (e, portanto, ele é e permanece por toda a eternidade seu próprio Espírito e do Pai, que nunca está separado do Filho), segue-se que, por meio da união pessoal, toda a plenitude do Espírito (como dizem os antigos Pais) é comunicada a Cristo segundo a carne, que está pessoalmente unido ao Filho de Deus."

3 Para uma análise da história do filioque, consulte A. Edward Siecienski, The Filioque: A History of a Doctrinal Controversy (Oxford: Oxford University Press, 2010); Brian Daley, "Revisiting the Filioque: Roots and Branches of an Old Debate", Pro Ecclesia 10 (2001): 31-62; Brian Daley, "Revisiting the Filioque: Contemporary Catholic Approaches", Pro Ecclesia 10 (2001): 195-212; J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds, 3d ed. (Londres: Longman, 1972), 358-67. Veja também Bernard Lonergan, The Triune God: Doctrines (Toronto: University of Toronto Press, 2009), 517-31.

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chamada controvérsia do filioque deva muito à antipatia de Carlos Magno pelos ortodoxos, o ensinamento em si é muito anterior a ele. Além do Credo Niceno alterado, a procedência do Espírito a partir do Pai e do Filho já havia sido confessada em credos locais na Igreja Ocidental. O mais famoso desses credos é o Credo Atanasiano do século V, que afirma: "O Espírito Santo é do Pai e do Filho, nem feito, nem criado, nem gerado, mas procedente."4 De forma semelhante, um credo que data do final do século IV confessa: "Cremos ... no Espírito Santo, não gerado nem não gerado, não criado nem feito, mas procedente do Pai e do Filho."5 A primeira associação do filioque com o Credo Niceno ocorre no Terceiro Concílio de Toledo (589). Os bispos desse concílio ensinaram o filioque como parte Credo Niceno e condenaram qualquer um que não ensinasse que o Espírito procede do Pai e do Filho (a Patre et Filio procedere).6 Os credos sumarizam a fé cristã desde longa data. Eles podem usar uma linguagem pouco familiar para fazer isso (por exemplo, homoousios), mas seu conteúdo dogmático deriva da liturgia do povo e de entendimentos antigos das Escrituras. Encontramos esse padrão com o filioque. Os Pais gregos e latinos o ensinaram muito antes de qualquer credo o confessar. Hilário de Poitiers, como muitos de seus contemporâneos gregos, assume algo como o filioque sem usar a expressão acabada. Ambrósio e Agostinho o ensinaram explicitamente; Fulgêncio de Ruspe o considerou genuinamente apostólico.7 A partir dessa perspectiva, o acréscimo do filioque no Credo Niceno pela igreja ocidental posterior deve ser visto mais em termos de alinhamento da teologia do Credo com compromissos antigos tanto dogmáticos e como litúrgicos, expressos por teólogos, concílios e credos anteriores. Dado esse breve esboço da história podemos entender por que os teólogos de Carlos Magno pensaram que o filioque deveria ter sido parte do Credo Niceno original e foi posteriormente removido pelos gregos.8 4

TLH, 53.

Kelly, Early Christian Creeds, 360.

6 Kelly, Early Christian Creeds, 361-62.

7 Para Hilário, Ambrósio e Agostinho, veja a discussão abaixo. Para Fulgêncio, veja Siecienski, The Filioque, 67-68.

8 Opus Caroli regis contra synodum (= Libri Carolini), 3.3, ed. Ann Freeman 5

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O filioque tem duas histórias muito diferentes. Por um lado, há o debate acalorado entre as igrejas latina e grega que começou nos séculos VIII e IX, e que continuou durante os períodos Medieval e da Reforma e permanece até hoje. Grande parte dessa história é lamentável e cheia de controvérsias. Por outro lado, há a afirmação, declarada de várias maneiras pelos Pais, tanto gregos quanto latinos, de que o Espírito procede de alguma forma do Filho, deriva do Filho, depende do Filho ou flui do Filho. Essas várias expressões foram guiadas pelas Escrituras e tinham como objetivo dizer algo significativo sobre o Espírito Santo e Sua relação eterna com o Pai e o Filho. Estas diferentes maneiras de declarar o que a Escritura revela não tinham nada a ver com o comprometimento do Credo Niceno (que não afirmava nem negava a procedência do Espírito a partir do Filho) ou com a concordância ou discordância com a controvérsia posterior sobre o filioque.9 É necessário excluir os Pais dos julgamentos teológicos posteriores dessa controvérsia.

Infelizmente, a maior parte da literatura sobre os Pais permanece comprometida com esses julgamentos posteriores. A seguir, apresentaremos o argumento bíblico para a procedência do Espírito a partir do Pai e do Filho, mostraremos a maneira pela qual os Pais expressaram esse ensinamento bíblico e terminaremos com um comentário sobre o significado teológico do filioque.

ENSINO DAS ESCRITURAS SOBRE A PROCEDÊNCIA DO ESPÍRITO

As Escrituras distinguem o Pai, o Filho e o Espírito Santo um do outro ao enfatizar suas formas diferentes de existência. Para apresentar essa perspectiva, os Pais usam a frase modo ou maneira que o relaciona à (Hanover, Alemanha: Hahnsche Buchhandlung, 1998); Siecienski, The Filioque, 91-93. Ann Freeman (Hanover, Alemanha: Hahnsche Buchhandlung, 1998); Siecienski, The Filioque, 91-93.

9 O Credo original dizia apenas que o Espírito procede do Pai, usando a linguagem de Jo 15.26. Ele não dizia, nem implicava, que o Espírito procede só do Pai e separado do Filho. Até mesmo os teólogos gregos dos séculos IV e V enfatizaram que o Espírito procede do Pai por meio do Filho, o que significa que a procissão do Espírito envolve o Filho e nunca deve ser concebida como separada do Filho.

Cf. Gregory of Nyssa, Letter 35, 4d em Gregory of Nyssa: The Letters, trans. Anna M. Silvas (Leiden: Brill, 2007), 253.

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existência (τρόπος τῆ ὑπάρξεως). Por exemplo, a Escritura declara que o Filho é o unigênito (Sl 2.7 [Hb 1.5]; Jo 1.14, 18;3.16,18 KJV). Unigênito é um termo que expressa relação; é dito sobre o Filho com referência ao Pai. Se fosse usado para descrever Sua essência, que o Filho era "unigênito" em Sua substância, então ou o Pai e o Espírito Santo teriam que ser descritos da mesma forma ou se concluiria que o Filho não era Deus da mesma forma que o Pai e o Espírito Santo. Somente o Filho é unigênito, e esse termo expressa Sua relação com o Pai. Por implicação, o Pai não é gerado, o que significa nada mais do que não gerado ou não o Filho. Se o Filho foi gerado pelo Pai, o que dizer do Espírito Santo?

Embora as Escrituras tenham pouco a dizer sobre isso, elas não silenciam totalmente sobre a questão. João nos diz que o Espírito Santo procede do Pai (Jo 15.26). O Filho é gerado e o Espírito procede. A procedência pertence ao Espírito e expressa Sua relação com o Pai. Essa maneira de distinguir as pessoas, que deriva das Escrituras, torna-se padrão para os Pais e encontra seu lugar nos Credos Niceno e Atanásio. O Filho é gerado pelo Pai, e o Espírito procede do Pai. No capítulo 9, chamamos a atenção para a linguagem de João para expressar o relacionamento eterno entre o Pai e o Filho e o Pai e o Espírito. No prólogo, João se refere a Cristo como "o Filho unigênito do Pai" (παρά πατρός). Conforme mencionado acima, a linguagem de "unigênito" é relacional. João deixa isso claro aqui ao acrescentar a frase "do Pai". Ele ressalta a relação eterna entre o Filho e o Pai, o unigênito e o não gerado. Mais adiante no Evangelho, Jesus usa a mesma expressão para descrever Seu relacionamento eterno com o Pai: "Eu vim do Pai [παρὰ τοῦ πατρός] e vim ao mundo, e agora estou deixando o mundo e indo para o Pai" (Jo 16.28). Encontramos essa mesma frase com o Espírito Santo. Jesus diz: "Mas, quando vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai [παρὰ τοῦ πατρός], o Espírito da verdade, que procede do Pai [παρὰ τοῦ πατρός], ele dará testemunho de mim" (Jo 15.26). A mesma frase usada para descrever o relacionamento eterno entre o Pai e o Filho é usada por Jesus para descrever o relacionamento entre o Pai e o Espírito. A igreja mais tarde descreverá esses relacionamentos como a geração eterna do Filho a partir do Pai e a eterna procedência do Espírito a partir do Pai. 350

A linguagem usada por Jesus tem relação direta com a questão do filioque. Quando as Escrituras falam sobre as pessoas divinas, a linguagem de ser de alguém corresponde a ser enviado por essa mesma pessoa. Por exemplo, as Escrituras afirmam que o Filho e o Espírito são ambos do Pai e enviados pelo Pai. Há uma coerência aqui. Podemos dizer, de acordo com as Escrituras, que o Filho é do Pai ou que o Pai envia o Filho.

Embora a ordem dos tempos seja diferente - do Pai refere-se à geração eterna do Filho e ser enviado pelo Pai refere-se à missão temporal do Filho - ambas as expressões correspondem uma à outra e refletem a ordem eterna, a ordem interior, do Pai para o Filho. Da mesma forma, podemos dizer que o Espírito vem do Pai e que o Pai envia o Espírito.

Ambas as expressões nos revelam algo real e verdadeiro a respeito da relação eterna entre o Pai e o Espírito. A linguagem de "enviar" pertence à missão econômica ou temporal do Filho ou do Espírito e corresponde à origem eterna dessa pessoa "do" Pai. Por que deveria ser assim? A resposta é bastante simples. Podemos conhecer Deus somente porque Ele se revela, se mostra, para nós. Portanto, o que quer que possamos dizer sobre a Trindade, seja no tempo ou na eternidade, de forma econômica ou imanente, deve ser aprendido a partir da história de Deus conosco.

Não há como ir além ou atrás dessa história. Isso significa que o que o Pai, o Filho e o Espírito Santo fazem no tempo para nossa salvação também nos revela suas relações eternas além da criação e da salvação.

Essa percepção está no cerne do pensamento trinitário latino e tem relação direta com a forma como os luteranos pensam sobre a igreja e os meios de graça.

Os Pais e a tradição dogmática posterior do período Medieval e da Reforma apelam ainda mais para a ordem das pessoas (τάξις, taxis) confessada nas Escrituras. A Primeira Pessoa da Trindade é o Pai, a Segunda Pessoa é o Filho e a Terceira Pessoa é o Espírito Santo. Essa ordem tem importância para a forma como pensamos sobre as pessoas e corresponde ao que descrevemos acima. O Pai envia o Filho; o Filho vem do Pai. Essas expressões refletem a ordem das pessoas que nos são conhecidas por meio das Escrituras e se relacionam com a questão da origem. Lemos sobre o Filho do Pai e o Espírito do Pai, mas nunca sobre o Pai do Espírito. E quanto ao Filho e ao Espírito? Encontramos um uso 351

semelhante de linguagem com eles? Aqui precisamos analisar de trás para frente. Observando a linguagem de "envio" e a ordem das pessoas, aprenderemos sobre a relação eterna que existe entre o Filho e o Espírito.

Quando perguntamos por que é importante que a pessoa e a vida do Espírito sejam derivadas do Pai e do Filho (filioque), nos encontramos no centro da questão.

Em três ocasiões, Jesus se refere ao Espírito Santo como enviado pelo Pai e por Ele. Jesus diz: "Estas coisas eu lhes disse enquanto ainda estou com vocês. Mas o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse [ἐκεῖνος] vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito" (Jo 14.25-26). Jesus enfatiza o envio mútuo do Espírito Santo pelo Pai e por Ele mesmo. Embora Espírito em grego seja neutro e exija pronomes neutros, encontramos aqui o uso deliberado do pronome masculino para Espírito, ressaltando a existência hipostática distinta e separada do Espírito Santo do Pai e do Filho. A segunda menção de Jesus sobre o envio mútuo do Espírito ocorre em Jo 15.26, onde, conforme citado acima, Ele afirma que o Espírito procede do Pai. Imediatamente após isso, Ele menciona o envio do Espírito pela terceira vez: "Contudo, eu lhes digo a verdade: é melhor para vocês que eu vá embora, pois se eu não for embora, o Ajudador não virá a vocês. Mas, se eu for, eu o enviarei a vocês" (Jo 16.7). Aqui, somente Jesus diz que enviará o Espírito. A linguagem demonstra uma troca.

Podemos dizer que o Pai envia o Espírito, que o Filho envia o Espírito ou que ambos enviam o Espírito. O envio do Espírito envolve tanto o Pai quanto o Filho, mesmo que apenas um seja mencionado. E, no entanto, não estamos falando de dois envios, duas missões, mas de uma. Nesse sentido, poderíamos restringir ainda mais nossa linguagem e dizer que o Pai do Filho envia o Espírito principalmente (principaliter). Uma vez que as Escrituras em nenhum lugar localizam o envio do Espírito do Filho como algo que o Filho recebe no tempo, segue-se que o envio pertence a Ele eternamente como o Filho e, portanto, foi dado a Ele pelo Pai em Sua criação.

Nas três passagens acima do Evangelho de João, duas coisas são declaradas: o Pai e o Filho "enviam" o Espírito Santo e o Espírito 352

"procede" do Pai. É quase impossível para o leitor de hoje ver essas duas afirmações à parte da controvérsia do filioque. No entanto, devemos tentar fazer isso. Nosso principal problema é que atribuímos significado teológico à palavra "procedência" e pensamos nela apenas nos termos técnicos dos credos posteriores que a contrastam com a "geração" do Filho a partir do Pai. Sem tirar nada desse uso técnico e da história do credo, precisamos explorar o sentido mais amplo do termo nas Escrituras.

Na Vulgata, a frase "que procede do Pai" (Jo 15.26) é traduzida como qui a Patre procedit. Aqui o latim procedere traduz o grego ἐκπορεύομαι. Essas palavras são amplamente usadas na Bíblia e traduzidas de forma variada em nossas Bíblias em inglês. Embora a maioria das Bíblias em inglês traduza Jo 15.26 com a palavra "procede", uma tradução mais literal seria "surge". O Espírito "sai" do Pai. A maioria dos outros usos dessa palavra no Novo Testamento têm a ver com o que "vem" ou "sai da" boca. Jesus diz a Satanás: "Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4.4). Mais uma vez, Jesus diz: "Não é o que entra na boca que contamina o homem, mas o que sai da boca é o que contamina o homem" (Mt 15.11). Paulo exorta: "Não é da boca de vocês que pode sair alguma palavra torpe" (Ef 4.29).

A palavra usada no Evangelho de João para descrever o relacionamento do Espírito com o Pai teria lembrado os leitores gregos e latinos daquilo que sai da boca. Isso, por sua vez, os teria lembrado da imagem do Espírito no Antigo Testamento como o sopro do TodoPoderoso ou o sopro boca de YHWH. A essa altura, já estamos bastante familiarizados com esses textos. Eliú declarou a Jó: "O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida" (Jó 33.4). No Salmo 33, lemos: "Pela palavra de YHWH foram feitos os céus, e pelo sopro da sua boca todo o seu exército" (Sl 33.6). O Pai dá existência a toda a criação por Sua Palavra, por meio de Seu Espírito, o sopro de Sua boca. Essa é a imagem do Espírito Santo que encontramos em Jo 15.26. O Espírito de YHWH, o sopro do Pai Todo-Poderoso, "sai" Dele, mas nunca separado de Seu Filho, a Palavra do Pai. Essa maneira de colocar a questão corresponde ao que discutimos em nossos capítulos anteriores sobre o Pai e o Filho. Como o Pai é sempre Pai do Filho e o Filho é sempre Filho do Pai, dizer Pai ou Filho sempre envolve o outro. Por essa razão, a 353

procedência do Pai deve ser entendida, no mínimo, como a procedência do Pai do Filho. Não importa a posição que você assume em relação ao filioque, as Escrituras nunca preveem uma separação entre o Pai e o Filho.

Isso significa que o Espírito só procede do Pai e não procede do Filho?

Antes de responder a essa pergunta, precisamos examinar melhor o uso de procedere na Bíblia. Essa mesma palavra latina também pode ser usada para traduzir a palavra grega ἐξέρχομαι, que também pode significar sair de ou proceder de.10 Essa palavra grega também denota geração. O autor de Hebreus usa essa palavra para descrever aqueles que descendem ou procedem dos lombos de Abraão (Hb 7.5). Um uso semelhante pode ser encontrado para descrever a geração eterna do Filho a partir do Pai. Jesus diz: "Se Deus fosse vosso Pai, vós me amaríeis, porque eu saí [ἐξῆλθον] e vim de [ἣκω] Deus, e não vim de mim mesmo, mas Ele me enviou" (Jo 8.42 KJV). Alguns capítulos depois, Jesus afirma novamente: "Eu saí [ἐξῆλθον] do Pai e vim ao mundo" (Jo 16.28 KJV). Por causa de textos como estes, os teólogos do período Medieval e da Reforma usaram a linguagem da procedência tanto em um sentido amplo como restrito.11 Em seu sentido mais amplo, essa linguagem pode ser usada tanto para o Filho quanto para o Espírito. Nossos hinos refletem isso. Sobre o Filho, cantamos: "Glorioso Senhor, Tu mesmo nos dás / Luz da Luz, de Deus procedente; / Abre nossos ouvidos e coração/ Ajuda-nos com a súplica do Teu Espírito" (TLH 16:3). Sobre o Espírito, cantamos no hino de Paul Gerhardt sobre a Trindade ("The Mystery Hidden from the Eyes"): O Pai gerou o Filho, primogênito de toda criatura; O Filho assumiu nossa carne fraca, mas não nossa natureza pecaminosa; Tanto do Pai quanto do Filho O Espírito Santo procede De toda a eternidade, mas ninguém Em força e poder excede; Todos iguais, coeternos. (ELH 405:3; ELHB 264:3).

10

Embora os ortodoxos não alinhem essas duas palavras gregas, as Escrituras o fazem. Tiago 3.10: "Da mesma boca procedem [ἐξέρχεται, procedit] a bênção e a maldição".

11 Veja, por exemplo, Thomas Aquinas ST I 27.1-4.

354

O termo procedência é frequentemente aplicado, afirma Tomás de Aquino, a qualquer coisa que denote origem de qualquer tipo.12 A procedência do Filho a partir do Pai é apropriadamente chamada de geração; a procedência do Espírito é apropriadamente chamada de inspiração. Aqui encontramos uma diferença fundamental entre o Oriente e o Ocidente. Para os teólogos bizantinos medievais e para Pais como Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, a procedência é um termo técnico aplicado somente ao Espírito; para os teólogos latinos dos períodos Medieval e da Reforma, o termo não tem esse tipo de precisão.

Embora a linguagem possa ser um pouco confusa, ela decorre de sua leitura das Escrituras.13 Para nossos propósitos, precisamos observar o padrão estabelecido aqui pelas Escrituras. O Filho, gerado pelo Pai em toda a eternidade, procede dEle e é enviado por Ele. Isso quer dizer que o Filho procede do Pai na eternidade e é enviado pelo Pai no tempo. As duas expressões estão uma ao lado da outra e se completam. O enviado pelo Pai é aquele que procede eternamente Dele como Seu Filho unigênito: “Tu és meu Filho; hoje eu te gerei" (Sl 2.7).14 Com tudo isso em mente, voltamos a Jo 15.26 e vemos que o Espírito que procede ou sai do Pai será enviado pelo Filho. Embora façamos aqui uma distinção correta entre a origem eterna do Espírito e o envio no tempo do Espírito, que garantia temos para concluir que os dois são mutuamente exclusivos? O que nos impede de concluir, como a tradição latina tem feito, que o envio do Espírito no tempo nos revela algo sobre o relacionamento eterno do Filho e do Espírito?15 Essa conclusão estaria de acordo com o padrão 12

Thomas Aquinas ST I.36.2c.

O argumento de que nosso retorno ao grego do Novo Testamento alivia esse problema não é suficiente. A tradução da Vulgata indica para nós como essas palavras gregas eram entendidas pelos Pais. As distinções técnicas posteriores atribuídas a essas palavras também são tentativas de tradução. Reconhecer esse fato significa apenas que a tarefa de exegese exige mais do que dicionários.

14 Cf. Sl 109:3 (Vulg.), "Desde o ventre, antes do nascer do dia, eu te gerei".

15 Johann Andreas Quenstedt, Systema Theologicum I, 9 (Wittenberg, 1691), 331: "A missão do Espírito Santo no tempo sobre e para os Apóstolos e outros crentes é a manifestação ou consequência e efeito da procissão eterna." Cf. Martinho Lutero, The Three Symbols or Creeds of the Christian Faith, 1538 (AE 34:217; WA 13

355

estabelecido pela Escritura, que consistentemente nos informa sobre o relacionamento eterno entre o Pai e o Filho usando a linguagem da origem do Filho do Pai ou o envio temporal do Filho do Pai. O mesmo não poderia ser indicado com o Filho e o Espírito? Por exemplo, Jesus nos diz que enviará o Espírito Santo. Isso ocorre após a ressurreição. Em Jo 20.22, Jesus "sopra" sobre os discípulos e ele diz a eles: "Recebam [λάϐετε, accipite] o Espírito Santo". O Espírito que sai do Filho não é outro senão o Espírito do Filho, que "recebe" tudo o que Ele é do Filho. Jesus explica: "Tudo o que o Pai tem é meu; por isso, eu disse que ele [λαμβάνει, accipite] o que é meu se dará a conhecer" (Jo 16.15). Hilário de Poitiers alinha os textos acima com Jo 15.26. Ele escreve: Assim, ele "recebe" do Filho [esse Espírito], que é enviado por ele e procede do Pai (Jo 15.26, 16.14-15). Agora eu pergunto se receber do Filho é a mesma coisa que proceder do Pai. Mas se alguém acredita que há uma diferença entre receber do Filho e proceder do Pai, certamente receber do Filho e receber do Pai serão considerados como uma e a mesma coisa. ...Tal unidade não admite diferença, nem faz qualquer diferença de quem é recebido, o que dado pelo Pai, é descrito também como dado pelo Filho.16

Apesar de Hilário não abordar a questão inicial que ele levanta, não parecia óbvio para ele que uma distinção nítida deveria ser feita entre "receber" do Filho e "proceder" do Pai. Em outro lugar, Hilário poderia simplesmente afirmar: "Devemos confessá-lo [o Espírito] como tendo o Pai e o Filho como sua fonte."17 Os teólogos latinos descobriram que o relacionamento eterno do Espírito com o Pai e com o Filho é ensinado com mais ênfase na forma 50:274.9-10): "O Espírito Santo procede do Pai e é enviado pelo Filho. Aquele que é enviado, no entanto, também é dito 'procede de'".

16 Hilary of Poitiers De Trinitate 8.20 (SC 448, p. 408), citado em Daley, "Revisiting the Filioque: Roots and Branches", 38.

17 Hilary of Poitiers De Trinitate 2.29 (SC 443, . 322). Para essa tradução, consulte Daley, "Revisiting the Filioque: Roots and Branches", p. 38. Veja também Kelly, Early Christian Creeds, 358.

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como as Escrituras modelam nosso discurso sobre o Espírito. O Espírito Santo é chamado de Espírito de Deus de forma consistente em todas as Escrituras. Esse mesmo Espírito é ainda identificado como o Espírito do Pai (Mt 10.20), o Espírito do Filho (Gl 4.6), o Espírito de Cristo (Fp 1.19; 1Pe 1.11) e o Espírito de Jesus (At 16.7). Em um determinado momento, Paulo se refere ao Espírito como o Espírito de Deus e o Espírito de Cristo no mesmo versículo (Rm 8.9). O que esses genitivos indicam?

Certamente, o relacionamento do Espírito com o Pai e o Filho é indicado de alguma forma com essas expressões. Que tipo de relacionamento é esse? Essas expressões correspondem à ordem das pessoas nas Escrituras: o Pai é a Primeira Pessoa, o Filho é a Segunda Pessoa e o Espírito Santo é a Terceira Pessoa da Trindade. Os genitivos em todo o Novo Testamento ensinam ainda mais essa ordem das pessoas. Por exemplo, Jesus é "o Filho do Altíssimo" (Lc 1.32), o Filho unigênito do Pai (Jo 1.18), ou simplesmente colocado, "o Filho do Pai" (2 Jo 1.3 KJV). O relacionamento expresso com esses genitivos aponta para a origem do Filho; Ele foi gerado pelo Pai em toda a eternidade. A mesma conclusão segue razoavelmente para as expressões que tratam do Espírito Santo.18 Da mesma forma que o Espírito é o Espírito de Deus e o Espírito do Pai, Ele também é o Espírito do Filho e o Espírito de Cristo. O Espírito que pertence ao Pai procede dEle e é enviado por Ele. Esse Espírito também pertence ao Filho, a Jesus Cristo, e recebe Dele e é enviado por Ele. Qualquer objeção ao entendimento destes genitivos implicaria também em uma objeção às expressões sobre o Filho do Pai e o Espírito do Pai. Se o Espírito do Filho não aponta para a origem do Espírito, então o Espírito do Pai também não pode proceder. O fato de que essas expressões devem ser consideradas como a origem explica por que nunca as vemos invertidas. Como Agostinho aponta, as Escrituras nunca dizem "Filho do Espírito" ou "Cristo do Espírito".19 Vemos essa ordem das pessoas ainda mais expressa nas Escrituras com a dependência de uma pessoa em relação à outra. Jesus nos diz que 18

Augustine The Trinity V.13 (WSA I/5, 197–98); Gerhard, De Spiritu Sancto, Locus 4/3, §20 (ed.

Cotta, 302).

19 Augustine The Trinity V.12 (WSA I/5, 198).

357

o Espírito "não falará por sua própria autoridade", mas falará tudo o que ouvir (Jo 16.13-14). O Espírito, que é o Espírito do Filho e o Espírito do Pai, depende do Pai e do Filho para falar. Da mesma forma, o Filho depende do Pai: "O Filho nada pode fazer por si mesmo, mas somente o que vê o Pai fazer" (Jo 5.19). A linguagem da dependência não diminui de forma alguma a coigualdade e a coeternidade das pessoas.20 Em vez disso, esta linguagem aponta para a origem do Filho a partir do Pai e do Espírito a partir do Pai e do Filho e corresponde ao uso deliberado de genitivos nas Escrituras para as pessoas: Filho do Pai, Espírito do Pai e Espírito do Filho. Quando juntamos essas expressões com os textos sobre o Filho enviando o Espírito, o sentido mais amplo de procedere, conforme visto em toda a Escritura, e a dependência do Espírito em relação ao Filho, começamos a entender por que os pais, tanto gregos quanto latinos, declaravam explicitamente que o Espírito procede do Filho ou ensinavam, sem recorrer ao termo, a dependência do Espírito em relação ao Filho.

Se tudo o que foi dito acima é verdade, por que as Escrituras nunca dizem explicitamente que o Espírito procede do Filho? Embora muitos leitores modernos das Escrituras possam pensar assim, os exegetas pré-modernos não pensariam. Para eles, as Escrituras de fato usam a linguagem de procedência para o Espírito proveniente do Pai e do Filho.

No último dia da Festa dos Tabernáculos, Jesus se levanta e clama: "Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como testemunhado pela Escritura, do seu coração fluirão rios de água viva" (Jo 7.37-38). O que isso significa? João nos diz: "E isto dizia ele a respeito do Espírito que haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado" (Jo 7.39).

Jesus se refere a uma ideia principal das Escrituras, e não a um versículo específico. O rio de água viva nos faz lembrar de vários textos do Antigo Testamento. Vamos citar apenas um. Em Ezequiel 47, o profeta vê o templo escatológico de Deus e o rio de água viva saindo dele. Esse rio dá vida. Onde este rio está a vida é encontrada; fora desse rio não há vida (Ez 47.9). Esse rio sai do templo. João já nos informou que Jesus falou

20

Para uma discussão ampliada sobre dependência, consulte Lonergan, Triune God: Doctrines, 534-47.

358

sobre o Espírito Santo. Onde está o Espírito, está a vida; onde está a vida, está o Espírito Santo.21 Além disso, João identifica Jesus como o tabernáculo/templo que habita no meio de nós (cf. Zc 2.10-11; Ez 37.2628). Não é difícil, então, ver a referência ao rio de água viva que sai do templo como o Espírito Santo que dá e sustenta a vida. João elimina qualquer dúvida sobre essa leitura com o que ele vê em Apocalipse 22.

Então o anjo me mostrou o rio da água da vida, brilhante como cristal, que flui do trono de Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade; e, em cada lado do rio, a árvore da vida com seus doze tipos de frutos, que dão seus frutos a cada mês. (Ap 22.1-2) A visão de João da Nova Jerusalém se concentra na salvação realizada para nós pelo Filho e entregue a nós pelo Espírito Santo. O rio da água da vida é brilhante como cristal, indicando sua pureza e santidade.

Esse rio traz vida e flui de Deus e do Cordeiro. O rio nos leva à árvore da vida que produz frutos continuamente. O fruto dessa árvore é perfeito, todo-suficiente e interminável. Essa árvore da vida é a cruz. Chegamos à cruz e aos benefícios que ela nos trouxe por meio das águas vivificantes do batismo, nas quais atua o Espírito Santo, o Senhor e doador da vida.

O que é expresso aqui não é muito diferente do que Paulo diz em Tito.

Deus, nosso Pai, misericordiosamente nos salvou pela lavagem da regeneração e renovação do Espírito Santo, que Ele derramou ricamente sobre nós por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador. E isso significa que somos justificados por Sua graça (Tt 3.4-8). A vida, a santidade e a justiça concedidas pelo Espírito Santo por meio do batismo são a vida, a justiça e a santidade de Cristo adquiridas para todos na cruz, a árvore da vida.

Os Pais não hesitaram em ler Apocalipse 22 dessa forma.

Ambrósio se concentra especialmente no rio que sai de Deus. O Espírito Santo é o rio que procede do trono de Deus e que o crente em Cristo bebe, como o próprio Cristo disse em João 7.22 Para Ambrósio, esse texto demonstra a coigualdade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ele mostra que o Espírito realiza o reino de Deus e reina com Cristo. Nossos pais 21 22

Ambrose On the Holy Spirit I.15 (Fathers of the Church, 90).

Ambrose of Milan On the Holy Spirit III, 20 (Fathers of the Church, 208-9).

359

luteranos continuaram esse tipo de leitura, mas notaram especialmente a linguagem usada por João. A palavra para "fluir" (ἐκπορευόμενον) é a mesma palavra usada para descrever a procedência do Espírito do Pai no Evangelho de João (Jo 15.26). Em latim, esse texto do Apocalipse diz: "procedentem de throno Dei et agni."23 Poderíamos facilmente traduzir da seguinte forma: "o rio da água da vida, brilhante como cristal, que procede do trono de Deus e do Cordeiro". O rio da água da vida é o Espírito que procede (ἐκπορευόμενον) de Deus, o Pai, e do Cordeiro, Jesus Cristo.24 O Espírito, o rio da vida, é o Senhor e doador da vida, que nos entrega os méritos do Cordeiro para a glória do Pai, e todos os benefícios e as graças da vida. No século XVI, Georg Nigrinus fez essas observações em seu sermão sobre Apocalipse 22. Ele escreve, Que o Espírito Santo é esse rio de água viva que procede do Pai e do Filho (vom Vater und Sohn ausgehet) como o amor e a

23

Nossos pais luteranos dão testemunho de diversas variações desse texto.

Gerhard às vezes substitui "de throno" (trono) por "de sede" (assento). Calov e Quenstedt, até onde sei, usam apenas "de throno". David Hollaz oferece uma leitura diferente de todos eles. Ele cita o texto em grego e depois em latim. Seu texto em latim diz "exeuntem e throno Dei et Agni", que pode ser sua própria tradução. Embora o texto grego seja autoridade para todos eles, Hollaz tem a tarefa adicional de mostrar que exire significa procedere. Para obter referências a esses textos, consulte a próxima nota.

24 Tanto Abraham Calov quanto David Hollaz listam Apocalipse 22 como uma das principais provas da procedência do Espírito a partir do Pai e do Filho. Essa interpretação é amplamente comprovada entre os dogmáticos e nos manuais dogmáticos dos séculos XIX e XX. Veja Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1659), 3:809, 811; Hollaz, Examen Theologicum Acroamaticum, I, 2, Q. 50 (Leipzig, 1763), 337-38; cf. Johann Gerhard, De Morte, Locus 29, §476.17 (Jena, 1621), 909; Johann Gerhard, De Vita Aeterna, Locus 34, §24 (Jena, 1622), 761-62; Johann Andreas Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 405.

Para um uso mais recente desse texto, veja Heinrich Schmid, The Doctrinal Theology of the Evangelical Lutheran Church, 3d ed. (Philadelphia: United Lutheran Publication House, 1899), 155; Henry Eyster Jacobs, A Summary of the Christian Faith (Philadelphia: United Lutheran Publication House, 1905), 55; G. Gösswein, Schriftgemässe und erbauliche Erklärung der Offenbarung St. Para o uso desse texto em obras dogmáticas católicas romanas, veja a discussão e as notas em Lonergan, The Triune God: Doctrines, 550-55.

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alegria essenciais da Divindade eterna (Gottheit), por meio do qual os fiéis se tornam intimamente ligados, unidos e unidos a Deus Pai e Deus Filho e vivem neles, Cristo, o próprio Senhor, atestou em João 7, dizendo: "Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Aquele que crê em mim, como diz a Escritura, 'Do seu coração fluirão rios de água viva'". Mas isso ele falou do Espírito, diz João, que os que nele creem devem receber.25

Para nossos pais luteranos, esse texto sobre o rio de água viva, o rio da vida que procede de Deus e do Cordeiro, foi um texto central para demonstrar a procedência do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho. Se o ἐκπρεύομαι de Jo 15.26 tem um significado técnico, o que a igreja, tanto no Oriente quanto no Ocidente, sempre achou que tinha, então o mesmo acontece com a mesma palavra do mesmo João em Apocalipse 22.

MISSÃO TEMPORAL E PROCEDÊNCIA ETERNA

Os ortodoxos frequentemente objetam que os teólogos latinos não conseguem distinguir suficientemente entre a procedência eterna e a missão temporal. Os ortodoxos argumentam que o envio do Espírito pelo Pai e pelo Filho se refere à missão temporal do Espírito. A procedência do Espírito, por outro lado, refere-se à origem eterna do Espírito a partir do Pai. O Pai gera eternamente o Filho e eternamente exala o Espírito. O Pai é a fonte e a origem do Espírito na eternidade; o Pai e o Filho enviam o Espírito no tempo. Esta distinção corresponde à distinção entre a Trindade imanente e a Trindade econômica. A Trindade imanente diz respeito a Deus em Si mesmo em toda a eternidade. A Trindade econômica diz respeito à maneira pela qual Deus Se revela a nós na criação e na salvação.

A distinção entre origem eterna e missão temporal ou entre Trindade imanente e econômica é importante, amplamente reconhecida e usada por nossos dogmáticos luteranos. O que não é consensual - e isso é realmente crucial para todo o debate sobre o filioque - é o que a distinção 25

Georg Nigrinus, Apocalypsis: Die Offenbarunge Sanct Johanniss des Apostels und Evangelisten (Ursel, 1573), 600.

361

significa. Os teólogos ortodoxos desde o final da patrística e início do período medieval argumentam que a ordem econômica é distinta da eterna a tal ponto que não podemos tirar nenhuma conclusão da manifestação econômica de Deus para o ser eterno de Deus.26 Em outras palavras, o envio temporal do Espírito pelo Pai e pelo Filho não revela nada sobre as relações eternas entre as pessoas. A missão não apresenta nada de real em relação a Deus.27 Nossos pais luteranos, em consonância com a tradição latina, particularmente Agostinho, traçam um caminho totalmente diferente.28 Para eles, conhecemos Deus somente por meio da economia e de Sua revelação de Si mesmo para nós. Isso significa, em parte, que as missões temporais do Filho e do Espírito nos revelam a maneira como eles se relacionam eternamente um com o outro. Abraham Calov expressa isso de forma sucinta: "Uma pessoa divina não é enviada no tempo, exceto por alguém de quem essa pessoa eternamente sai [procedit]."29 Não há nada de enganoso no fato de o Filho enviar o Espírito.

26

John Meyendorff, A Study of Gregory Palamas (Crestwood, NY: St. Vladimir's Seminary Press, 1998), 232. Veja também Vladimir Lossky, In the Image and Likeness of God (Crestwood, NY: St. Vladimir's Seminary Press, 1985), 71-96.

Amphilokios Radovic escreve: "Com base na manifestação da Trindade no mundo, não podemos chegar a nenhuma conclusão sobre o modo de existência eterna de Deus". A. Radovic, "Le 'Filioque' et l'énergie incréée de la Sainte Trinité selon la doctrine de S. Grégoire Palamas," Le Messager de l'Exarchat du patriarche russe en Europe occidentale, 89-90 (1975), 19, citado em Yves Congar, I Believe in the Holy Spirit, trans. David Smith (Nova York: Crossroad, 2013), 3:17.

Consulte também o n. 1 acima.

27 Os ortodoxos demonstram esse ponto dizendo que as Escrituras também atribuem ao Espírito o envio do Filho (Is 61.1 LXX). É o Espírito que é colocado sobre o Filho em Seu batismo, que O conduz deserto e que O devolve à Galileia (Mt 3.16; 4:1; Lc 4.14). Se o envio e o prosseguimento estiverem alinhados, também poderemos dizer que o Filho procede do Espírito. Os teólogos latinos responderam que o Filho é tanto Deus quanto homem. O envio do Filho pelo Espírito pertence à Sua humanidade e corresponde à habitação do Espírito em todos os crentes.

28 Lewis Ayres, Augustine and the Trinity (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), 183, 247.

29 Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1659), 3:813, citado em Bruce Marshall, "The Defense of the Filioque in Classical Lutheran Theology", Neue Zeitschrift für systematische Theologie und Religionsphilosophie 44:2 (2002): 164.

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Tanto o Pai quanto o Filho enviam o Espírito no tempo por causa da ordem eterna que prevalece entre as pessoas, uma ordem que reflete seu modo único de existência, o que, por sua vez, nos permite distinguir as pessoas. Além disso, isso tem a ver com o modo como conhecemos Deus. É o Espírito de Cristo que nos leva a Cristo, que, por sua vez, nos dá a as pessoas do Pai e do Espírito Santo.

Muitos dos Pais não distinguiram a origem eterna e a missão temporal como os teólogos ortodoxos posteriores fariam. Analisar suas declarações de acordo com a Trindade imanente e econômica ou o que pertence a Deus na eternidade ou a Deus no tempo é lê-los deliberadamente através das lentes de categorias e julgamentos teológicos posteriores.30 Infelizmente, isso acontece frequentemente. Este não é o lugar para oferecer uma leitura extensa de como os Pais expressaram a relação eterna do Filho e do Espírito, mas devemos oferecer pelo menos uma pequena amostra. Dois exemplos serão suficientes para mostrar como os Pais se moviam para frente e para trás do que mais tarde seria distinguido como expressões econômicas e imanentes. Como já dissemos que isso é verdade para a tradição latina, usaremos dois exemplos de escritores gregos.

Atanásio conecta a procedência do Espírito do Pai com o envio do Espírito do Filho: "[O Espírito] é dito que procede do Pai, porque o Espírito brilha [ἐκλάμπει], e é enviado, e é dado pela Palavra, que é confessada como sendo do Pai."31 Atanásio então diz que o Filho é enviado do Pai e o Espírito do Filho, e isso corresponde ao Filho glorificando o Pai (Jo 17.4) e o Espírito glorificando o Filho (Jo 16.14), o 30

André de Halleux, "Towards an Ecumenical Agreement on the Procession of the Holy Spirit and the Addition of the Filioque to the Creed", em Spirit of God, Spirit of Christ: Ecumenical Reflections on the "Filioque" Controversy ed. Lukas Vischer (Londres: Lukas Vischer). Lukas Vischer (Londres: SPCK, 1981), 80. Depois de revisar as declarações dos padres gregos, Halleux conclui: "Limitar essas e outras afirmações do mesmo teor à missão e deixar de fora a fonte eterna e as raízes essenciais da economia na Trindade imanente seria o mesmo que impor ao ponto de vista dos Padres dos séculos IV e V uma dicotomia ainda estranha a eles."

31 Athanasius Letters to Serapion 1.20.5 (PPS, 85).

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Filho declarando o que Ele ouviu do Pai (Jo 8.26) e o Espírito recebendo do Filho (Jo 16.14), e o Filho vindo em nome do Pai (cf. Jo 5.43) e o Espírito vindo em nome do Filho (Jo 14.26). Atanásio dirá mais tarde que, assim como o Filho é próprio da substância do Pai porque Ele é dEle, o Espírito, que é de Deus, é próprio da substância do Filho.32 Atanásio não participa da controvérsia que envolve o filioque. Ele é um teólogo bíblico que usa a linguagem e o padrão das Escrituras para confessar a coigualdade e a consubstancialidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Por essa razão, ele faz uso de expressões que a igreja mais tarde dividirá entre teologia propriamente dita e economia, entre Deus em si mesmo e Deus revelado a nós na criação e na redenção. Para Atanásio, essas descrições se completam. Quando estudiosos patrísticos posteriores desconsideram a linguagem de Atanásio dizendo que ele está preocupado principalmente com a nossa salvação e, portanto, fala em termos da Trindade econômica, eles oferecem uma interpretação de Atanásio fundamentada em uma distinção teológica posterior.

Epifânio de Salamina, outro teólogo grego do século IV, escreve: "O Espírito Santo, a quem a Sagrada Escritura chama de Paráclito, deve sua existência ao Pai por meio do Filho."33 Quando ele passa a discutir a origem eterna do Espírito, ele combina Jo 15.26 (o Espírito "procede" do Pai) com Jo 16.14-15 (o Espírito "recebe" do Filho) ao falar sobre relação do Espírito com o Pai e o Filho: "Se acreditarmos que Cristo, como 'Deus de Deus', é do Pai, e que seu Espírito é de Cristo ou de ambos - como Cristo diz, 'que procede do Pai' (Jo 15.26), e, 'Ele receberá de mim' (Jo 16.14) então conheço o Mistério que me redime pela fé”.34 Para Epifânio, esses textos indicam que "o Espírito Santo é de ambos (παρ᾽ ἀμφοτερων), como Espírito do Espírito."35 A objeção é logo levantada: isso significa que há dois Filhos? Epifânio diz que não e depois esclarece seu ponto: Se Deus chama Aquele que vem Dele, o Filho, e Aquele que 32

Athanasius Letters to Serapion 1.25.2 (PPS, 92).

Epiphanius Panarion 73.16; The Panarion of Epiphanius of Salamis, trans. Frank Williams (Leiden: Brill, 1994), 450.

34 Epiphanius Panarion 74, 4 (Williams, 476).

35 Epiphanius Panarion 74, 7 (Williams, 482). Para outros exemplos dessa expressão, veja Epiphanius Ancoratus 8, 9, 67, 70-72 e 75.

33

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é de Ambos, o Espírito Santo - coisas compreendidas somente pelos santos, pela fé - coisas que são luz, que dão luz, que têm o poder de iluminar e criam uma harmonia de luz com o próprio Pai! [Se assim for, senhor, ouça com fé que o Pai é o Pai de um Filho verdadeiro e é toda luz, e que o Filho é o Filho de um Pai verdadeiro e é luz da luz, [e] não meramente em nome, como são os artefatos ou as coisas criadas. E o Espírito Santo é o Espírito da verdade, uma terceira luz, do Pai e do Filho.36

Epifânio retorna novamente a Jo 15.26 e Jo 16.14. Ele continua a colocá-los lado a lado e parece entendê-los como apontando para a mesma realidade. Ele escreve: Ora, se o Espírito procede do Pai e, como diz o Senhor, deve receber "de mim", atrevo-me a dizer que, assim como "Ninguém conhece o Pai senão o Filho, nem o Filho senão o Pai", ninguém conhece o Espírito senão o Filho, de quem ele procede, e do Pai, de quem ele procede. E ninguém conhece o Filho e o Pai, exceto o Espírito Santo, que verdadeiramente os glorifica, que ensina todas as coisas, que testifica do Filho, é do Pai, é do Filho, é o único guia para a verdade, o expositor das leis sagradas, instrutor na lei espiritual, preceptor dos profetas, professor dos apóstolos, iluminador com as doutrinas do Evangelho, eleitor dos santos, verdadeira luz da verdadeira luz.37

A dificuldade com o ensino de Epifânio sobre a origem do Espírito, a razão pela qual ele parece confuso para muitos estudantes de teologia posteriores, é que ele não consegue distinguir as missões temporais do Filho e do Espírito de suas origens eternas da maneira defendida por muitos hoje. Para Epifânio, assim como para os Pais latinos, a missão temporal, a maneira pela qual Deus se revela a nós para nossa salvação, informa nossa compreensão da origem eterna das pessoas.

Isso não significa que as duas coisas se confundem, mas também não 36 37

Epiphanius Panarion 74, 8 (Williams, 482).

Epiphanius Panarion 74, 10 (Williams, 485).

365

significa que rejeitamos a congruência entre elas.

A MONARQUIA DO PAI

Se dissermos que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, estamos postulando duas fontes ou causas na divindade? Essa é a grande preocupação dos ortodoxos. O ensinamento das Escrituras sobre o modo de existência foi expresso pelos Pais gregos em termos de causa. Embora essa linguagem de causalidade possa soar excessivamente filosófica para alguns, ela procede da piedade e tem como objetivo expressar a relação eterna do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Para nossos propósitos, ela esclarecerá consideravelmente por que o filioque ofende tão profundamente os cristãos ortodoxos até hoje. Tendo em mente o modo único de existência das três pessoas da Trindade, podemos dizer que o Pai, que não foi gerado, não tem causa. Ele é a fonte sem fonte, o princípio sem princípio. O Filho é gerado pelo Pai e o Espírito procede do Pai. Isso significa que o Pai é a causa ou o princípio do Filho e do Espírito Santo.

Quando os ortodoxos ouvem os cristãos ocidentais confessarem no Credo Niceno que o Espírito Santo "procede do Pai e do Filho", eles acham que queremos dizer que há duas fontes ou princípios de divindade na Trindade, o Pai e o Filho. Em outras palavras, o Pai é a fonte da divindade do Espírito, mas o Filho também o é. Portanto, deve haver duas fontes ou princípios de divindade na Trindade, o Pai e o Filho. Portanto, deve haver duas fontes ou princípios, e isso significa dois deuses e pode significar dois Espíritos, um do Pai e outro do Filho. Da perspectiva deles, o filioque deve negar a Trindade e inevitavelmente cai no absurdo e na blasfêmia. É claro que nenhum cristão ocidental que usa o filioque pensa assim. Além disso, a tradição latina e nossos pais luteranos sempre aliviaram essa preocupação - se é que essa é a maneira correta de colocar a questão, já que Agostinho disse isso antes que houvesse qualquer controvérsia desse tipo - enfatizando que o Espírito procede principalmente do Pai. Agostinho baseia seu argumento para o filioque na insistência das Escrituras de que o Espírito é o Espírito do Pai e o Espírito do Filho.

366

Além disso, tanto o Pai quanto o Filho enviam o Espírito Santo.38 Para Agostinho, a economia revela a ordem das pessoas e suas relações eternas.39 Pelo fato de o Pai ter dado todas as coisas ao Filho, o Espírito procede de ambos. Isso significa que há duas fontes de origem para o Espírito? Agostinho diz que não: "A fonte de toda divindade ou, se você preferir, de toda divindade, é o Pai. Assim, o Espírito que procede do Pai e do Filho é rastreado, em ambos os casos, até aquele de quem o Filho nasceu.40 O Espírito procede do Pai e do Filho, ou como Agostinho sugere aqui, do Pai do Filho. Não há duas fontes de divindade, mas apenas uma, o Pai. Agostinho enfatiza esse ponto dizendo que o Espírito procede principaliter do Pai. Ele escreve: E, no entanto, não deixa de ser verdade que, nesta tríade, somente o Filho é chamado de Palavra de Deus, e somente o Espírito Santo é chamado de dom de Deus, e somente o Pai é chamado de aquele de quem a Palavra nasce e de quem o Espírito Santo procede principalmente. Acrescentei "principalmente", porque descobrimos que o Espírito Santo também procede do Filho. Mas isso também foi dado ao Filho pelo Pai - não lhe foi dado quando ele já existia e ainda não o tinha; mas o que quer que o Pai tenha dado ao seu Verbo unigênito, ele o deu ao gerá-lo. Ele o gerou de tal forma que os dois foram gerados por ele. Ele o gerou de tal forma que o dom comum deles também procederia dele, e o Espírito Santo seria o Espírito de ambos.41

Essas poucas frases de Agostinho definem a posição latina sobre o filioque. O Espírito é o Espírito do Pai e do Filho, o Espírito de ambos.

Tudo o que o Pai tem, o Filho tem. O Espírito procede principalmente

38

Augustine The Trinity IV.29 (WSA I/5, 174).

Augustine The Trinity books II–IV. Cf. Joseph Lienhard, “Augustine and the Filioque,” in Tolle et Lege: Essays on Augustine and Medieval Philosophy in Honor of Roland J. Teske, S.J., ed. Richard C. Taylor, David Twetten, and Michael Wreen (Marquette, WI: Marquette University Press, 2011), 137–54.

40 Augustine The Trinity IV.29 (WSA I/5, 174).

41 Augustine The Trinity XV.29 (WSA I/5, 419).

39

367

do Pai, mas também do Filho, a quem foi dado como o unigênito do Pai. Agostinho conclui isso de forma sucinta no final de sua obra: "O Espírito Santo procede principalmente do Pai, e pela dádiva totalmente atemporal do Pai, de ambos (o Pai e o Filho) conjuntamente."42 A preocupação dos teólogos gregos posteriores é aqui abordada por Agostinho. O Pai é a principal fonte do Filho e do Espírito Santo. A linguagem de Agostinho sobre o Pai como a fonte é repetida por toda a tradição ocidental e, particularmente, por nossos pais luteranos. Lutero escreve: "O Pai é a fonte (ursprung), ou o manancial (quelle) (se é que podemos usar esse termo como os pais o fazem) da Divindade (Gottheit), que o Filho deriva Dele e que o Espírito Santo deriva Dele e do Filho, e não vice-versa."43 Esse mesmo tipo de linguagem aparece em todos os escritos dos dogmáticos.44 O ponto defendido por Agostinho e por nossos pais luteranos também pode ser encontrado em Gregório de Nissa. Mais uma vez encontramos a dificuldade do testemunho patrístico sobre a questão do filioque e como as categorias posteriores se mostram insuficientes para descrever seus esforços. Embora Gregório afirme claramente a monarquia do Pai, ele também enfatiza o papel do Filho na procedência do Espírito e a dependência do Espírito em relação ao Filho. Em seu debate com Eunômio, Gregório reconhece a ordem das pessoas nas Escrituras e diz que isso tem a ver com a forma como pensamos sobre a relação do Espírito com o Filho. Ele escreve: "Assim como o Filho está unido ao Pai, e tendo seu ser a partir dele, não vem depois na existência, assim também o Espírito Santo se mantém próximo ao unigênito, que somente em termos de causa é considerada como anterior à hipóstase do Espírito. . . Assim, com exceção da ideia de causa, a Santíssima Trindade

42

Augustine The Trinity XV.47 (WSA I/5, 433).

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:309; WA 54:64.4–5). See also AE 15:316; WA 54:69.20–21.

44 Johann Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §2 (ed. Cotta, 223): o Pai é "a origem da Trindade (origo Trinitatis), gerando o Filho e com o Filho gerando um Espírito Santo". Gerhard usa expressões semelhantes em outros lugares. O Pai é o fons Trinitatis (4/2, §4, 224); o Pai é o fons et origo Trinitatis (4/2, §9, 225).

Similarmente, Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 327: o Pai é fons et principium.

43

368

não tem nenhuma variação em si mesma."45 Gregório explica a distinção com relação à causalidade em outro lugar. Ele enfatiza especialmente a dependência do Espírito em relação ao Filho, o que não diz nada mais do que o fato de que o Espírito procede do Pai, mas nunca separado do Filho.

Ele escreve: Embora reconheçamos que a natureza é indiferenciada, não negamos uma distinção com relação à causalidade. Essa é a única maneira pela qual distinguimos uma Pessoa da outra, acreditando, isto é, que uma é a causa e a outra depende da causa. Novamente, reconhecemos outra distinção com relação àquilo que depende da causa. Há aquilo que depende da primeira causa e aquilo que é derivado do que depende imediatamente da primeira causa. Assim, o atributo de ser unigênito, sem dúvida, permanece com o Filho, e não questionamos o fato de o Espírito ser derivado do Pai. Pois a mediação do Filho, embora guarde sua prerrogativa de ser unigênito, não exclui a relação que o Espírito tem por natureza com o Pai.46

Para Gregório, o Filho depende do Pai, e o Espírito é derivado do Pai e do Filho. Por essa razão, Gregório também pode dizer que "o Espírito Santo . . . depende (ἤρτηται) do Filho com quem ele é indivisivelmente apreendido". Além disso, o Espírito é conhecido somente "depois do Filho e com ele".47 John Behr, um teólogo ortodoxo, comentando esses textos, escreve: "Gregório afirma claramente a mediação do Filho na procedência do Espírito, pois o Espírito procede 45

Gregory of Nyssa Contra Eunomium I.691 (PG 45, 464), trans. Stuart G. Hall, El ‘Contra Eunomium I’ (Pamplona: Universidad de Navarra, 1988), 135.

46 Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius, trans. E. R. Hardy, The Christology of the Later Fathers (Filadélfia: Westminster, 1954), 266. Esses dois textos de Gregório são comentados em Brian Daley, "Revisiting the Filioque: Roots and Branches", 43-44.

47 Gregory of Nyssa, Letter 35, 4d (Silvas, 253). Usei a tradução de John Behr desse texto (The Nicene Faith [Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 2004], vol.

2, part 2, 419). Cf. Khaled Anatolios, Retrieving Nicaea (Grand Rapids: Baker Academic, 2011), 223.

369

não simplesmente de Deus, mas do Pai do Filho e, portanto, sempre em relação ao Filho".48 POR QUE ENSINAR O FILIOQUE?

Precisamos ser cuidadosos ao responder a essa pergunta.

Ensinamos o filioque porque as Escrituras o ensinam. Não o ensinamos porque o encontramos confessado no Credo Atanasiano e no Credo Niceno. Tampouco o ensinamos por causa de alguma racionalização teológica posterior que dá sentido ao filioque. Se estivermos convencidos de que as Escrituras não ensinam o filioque, seremos obrigados a parar de ensiná-lo e a removê-lo de nossos credos, hinos e orações. A base de nossos argumentos deve ser sempre a Escritura. Há uma maneira melhor de expressar essa pergunta: por que as Escrituras nos revelam que a pessoa e a vida do Espírito procedem tanto do Pai quanto do Filho? Por que as Escrituras fazem questão de identificar o Espírito como o Espírito do Pai e o Espírito do Filho? De fato, declarando ainda mais, o Espírito é o Espírito de Cristo, o Espírito de Jesus, e esse é o mesmo Espírito que dá testemunho com nosso espírito de que somos filhos de Deus e coerdeiros de Cristo (Rm 8.16-17).

A necessidade do filioque e seu significado teológico estão na relação que prevalece entre Cristo e o Espírito e o lugar da igreja na entrega da salvação de nosso Deus Triúno a nós. O Pai quer que O conheçamos somente no homem Jesus; Jesus quer que O conheçamos, O confessemos e nos conquistemos a salvação adquirida por Ele somente através do Espírito Santo. Além disso, o Espírito Santo vem a nós por meio da Palavra e do Sacramento, por meio dos meios de graça divinamente instituídos. Conhecemos esse Espírito como o Espírito Santo por conhecê-Lo primeiro como o Espírito de Cristo, o Espírito que nos leva sempre e para sempre a Cristo e nos sustenta em Cristo durante toda a nossa vida. O "espírito" que nos afasta de Cristo, mesmo que piedosamente tente nos levar ao Pai sem Seu Filho, é o espírito do anticristo. O espírito que se opõe a Cristo sempre se opõe ao Pai, que conhecemos somente em Cristo, e se opõe ao Espírito do Pai e do Filho, 48

Behr, Nicene Faith, vol. 2, part 2, 434.

370

que nos enviam Seu Espírito para que possamos conhecer e nos deleitar somente em Cristo para a glória do Pai. David Scaer explica: Como o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão presentes e operando nos meios de graça, eles refletem o relacionamento eterno de uma pessoa divina com a outra.

O Pai gera eternamente o Filho, que torna os crentes Seus filhos no batismo (Jo 1.12-13) e co-herdeiros de Jesus (Rm 8.17). A regeneração é completada e realizada pelo Espírito (Jo 3.8), que procede do Pai e do Filho e é enviado ao mundo por eles. Assim como o Pai é a origem eterna dentro da Trindade, o Espírito é a sua conclusão eterna. O que foi iniciado pelo Pai e realizado pela redenção do Filho é levado à conclusão pela fé gerada pelo Espírito Santo nos crentes.

As coisas, as palavras e as ações humanas, que são as formas externas dos meios de graça, são coberturas para a Trindade, na qual Ele vem para perdoar os pecadores e declará-los justos. A teologia sacramental não é uma seção independente ou autônoma na dogmática, mas flui de uma compreensão prévia de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, que está trabalhando em Sua criação para a salvação do homem.49

Trindade e salvação andam juntas. A Trindade salva. Não ocorreu aos Pais separar a chamada Trindade iminente da Trindade econômica, porque nunca lhes ocorreu falar sobre o Deus da Bíblia além de Sua criação e redenção.

Terminamos nossa unidade sobre a identidade bíblica do Pai, do Filho e do Espírito Santo com uma discussão sobre o filioque. Há algo de apropriado nisso. No mínimo, o filioque nos mostra que o Pai, o Filho e o Espírito Santo nunca se separam um do outro; Eles não apenas habitam mutuamente um no outro, mas também se dão a conhecer a nós de tal forma que nossos pensamentos sempre se movem de uma pessoa para a 49

David Scaer, Law and Gospel and the Means of Grace, Confessional Lutheran Dogmatics vol. 8 (St. Louis: Luther Academy, 2008), 144-45; para toda a sua discussão sobre o Espírito e os sacramentos, veja 143-55.

371

outra em um número oito sem-fim. Gregório de Nissa capta isso muito bem. Ele escreve: Não devemos pensar que o Pai esteja sempre separado do Filho, nem procurar o Filho separado do Espírito Santo.

Assim como é impossível subir ao Pai, a menos que nossos pensamentos sejam elevados até lá por meio do Filho, também é impossível dizer que Jesus é Senhor, exceto pelo Espírito Santo. Portanto, o Pai, o Filho e o Espírito Santo devem ser conhecidos somente em uma Trindade perfeita, na mais estreita consequência e em um ambiente de paz. O Pai é sempre Pai, e nEle o Filho, e com o Filho o Espírito Santo.50

A Parte 3, para a qual nos voltaremos agora, mostrará como os Pais e os Reformadores confessaram, esclareceram e protegeram a identidade bíblica da Trindade. O que não podemos perder de vista, no entanto, é o compromisso deles com as Escrituras, com a salvação realizada para nós pela Trindade e com o contexto litúrgico de nosso conhecimento e confissão da Trindade.

50

Gregory of Nyssa On the Holy Spirit (NPNF, second series, V, 319).

372

CONTEÚDO

PARTE TRÊS: REFLEXÃO DOGMÁTICA DA IGREJA Os fiéis confessam que há três pessoas eternamente distintas - Pai, Filho e Espírito Santo – e estão unidas inseparavelmente em uma única essência.

A maioria dos problemas trinitários que surgem ao longo da história da igreja decorre dessa maneira de falar. Quando os fiéis confessam que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, mas que há um Deus e não três deuses, eles precisam encontrar alguma forma de expressar como o Pai, o Filho e o Espírito Santo são e não são os mesmos.

Caso contrário, eles serão questionados por que descrevem Pai, Filho e Espírito Santo como três, mas expõem a repetição de Deus com Pai, Filho e Espírito Santo como um. Por que não dizer também três deuses?

Alternativamente, por que insistir que Pai, Filho e Espírito Santo são pessoas reais, eternamente distintas umas das outras, em vez de três expressões do único Deus? Nossas respostas a essas perguntas nunca começam com credos ou argumentos persuasivos. Em vez disso, não dizemos três deuses porque as Escrituras não dizem três deuses. Nossa confissão de três pessoas que compartilham igual e indivisivelmente uma essência - de fato, que são uma essência - procede da doutrina sadia e verdadeira que nos foi transmitida nas Escrituras. Falamos desta maneira sobre a Trindade porque somente as Escrituras determinam nossa confissão.

Os Pais refletiram longamente sobre essa questão profunda e sobre a unidade em sua confissão e defesa da identidade bíblica de Deus.

Ao longo de sua caminhada, eles desenvolveram uma linguagem apropriada para expressar o que era comum entre os três e o que os distinguia uns dos outros. Confessamos Pai, Filho e Espírito Santo como três quando falamos em termos de pessoa, subsistência ou hipóstase, mas contamos apenas um quando falamos em termos de natureza, essência, substância ou ousia. O Pai não é nem o Filho nem o Espírito; o Filho não é nem o Pai nem o Espírito; o Espírito não é nem o Pai nem o Filho. Mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus. A terminologia 373

mostrou-se útil para transmitir como as Escrituras apresentam as pessoas divinas como essencialmente idênticas, mas pessoalmente distintas.

A distinção correta entre Pai, Filho e Espírito Santo, a expressão correta da singularidade de Deus, deve sempre encontrar seu complemento na afirmação da unidade inseparável e indivisível dos três, a singular unidade dos três. Outra dificuldade enfrentada pela igreja diz respeito à unidade essencial das pessoas divinas. O problema tem a ver com seus atos ou obras em relação à criação. Confessamos corretamente que o Pai cria, o Filho cria e o Espírito Santo cria. Isso significa que o Pai cria à parte do Filho e do Espírito, o Filho à parte do Pai e do Espírito, e o Espírito à parte do Pai e do Filho? Se argumentarmos que Eles criam separados um do outro ou que cada um contribui com uma parte para o ato da criação, comprometemos nossa confissão de Sua unidade e simplicidade. A Igreja explicou essa questão complicada afirmando a indivisibilidade das obras da Trindade em relação à criação (opera Trinitatis ad extra indivisa sunt). Isso significa que toda ação das três pessoas ad extra é numericamente uma e procede de sua unidade de vontade e poder.

Quando o Pai age, o Filho e o Espírito Santo também participam do mesmo ato.

Os dois problemas acima foram analisados em conjunto pelos Pais, pelos Teólogos Medievais e Reformadores. Para fins de clareza, vamos separá-los. Nossos dois primeiros capítulos da parte 3 discutirão o primeiro problema e mostrarão como os teólogos da igreja distinguiram as pessoas da Trindade. Após esses dois capítulos, abordaremos o segundo problema descrito acima. Lá mostraremos como esses mesmos teólogos discutiram as obras da Trindade em relação à criação e como certos títulos ou nomes podem ser atribuídos a uma das pessoas. Nesse ponto, também abordaremos mais explicitamente os atributos divinos.

Embora tenhamos discutido os atributos divinos ao longo dos capítulos deste livro, evitamos algumas questões mais incômodas relacionadas a eles. Quando abordarmos a questão das obras da Trindade ad extra, estaremos em condições de discuti-las mais adequadamente.

374

CONTEÚDO

12 DISTINGUINDO AS PESSOAS: PERCEPÇÕES PATRÍSTICAS Quando Gregório de Nissa defendeu a divindade do Espírito Santo contra os chamados detratores do Espírito Santo de sua época (pneumatômacos), ele se concentrou longamente em como formamos ideias teológicas e as expressamos. Gregório observou que as pessoas usam a palavra "Deus" de forma diferente. Seus oponentes, que se consideravam cristãos, operavam com um amplo conceito de Deus. Eles podiam distinguir entre um chamado de um Deus qualquer e outro chamado do Deus verdadeiro.1 A linguagem deles não deriva das Escrituras, mas de suas próprias ideias peculiares. Para Gregório, a Escritura não apenas normatiza a sã doutrina, mas também estabelece nossa gramática da fé, os padrões de discurso que usamos para confessar Deus. Ele explica, Não consideramos correto fazer do costume que prevalece entre eles [os pneumatômacos] a lei e a regra da sã doutrina.

Pois se o costume é válido como prova de solidez, certamente nós também podemos apresentar em nossa defesa o costume que prevalece entre nós e, se eles o rejeitarem, certamente não precisaremos seguir o deles.

Portanto, deixemos que as Escrituras inspiradas por Deus decidam entre nós, e o veredicto da verdade certamente irá para aqueles cujos ensinamentos estiverem em harmonia com as palavras divinas.2 1

Um paralelo seria as controvérsias eucarísticas do século XVI, em que falar do corpo de Cristo na Ceia do Senhor era diferente de falar do corpo verdadeiro de Cristo na Ceia do Senhor, que, por sua vez, tornou-se diferente de falar do corpo verdadeiro e essencial de Cristo na Ceia do Senhor. A presença real de Calvino é realmente diferente da presença real de Lutero. FC DS VII.2-11.

2 Gregory of Nyssa Letter 33 (Ad Eustathium de Sancta Trinitate) 3b em Gregory of Nyssa: The Letters, trans. Anna M. Silvas (Leiden: Brill, 2007), 238; GNO 3.1, 5-6.

375

A regra aqui é simples: As Escrituras tanto garantem quanto determinam o discurso da igreja sobre Deus.3 Fizemos essa afirmação de diferentes maneiras ao longo das partes 1 e 2 deste livro. Na parte 3, vamos nos concentrar especialmente em como a igreja proclama e guarda o conteúdo de forma segura da fé que nos foi dado nas Escrituras sobre a identidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Quando pregamos o evangelho, pregamos a Trindade porque a salvação vem a nós por meio do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A pregação dessa salvação suscita perguntas e preocupações dos fiéis sobre a identidade revelada da Trindade e levanta objeções por parte daqueles que estão fora da fé. A resposta dos fiéis da igreja a essas perguntas e objeções forma a gramática da fé preservada para nós através dos credos e nas obras dogmáticas da igreja. Um ponto importante precisa ser aqui enfatizado. As formas próprias de tratar sobre a Trindade, os pontos mais finos da doutrina trinitária transmitida pela igreja, procedem da certeza inabalável da igreja de que confessar corretamente a identidade bíblica do Deus Triúno tem a ver com nossa salvação, nosso batismo, nossa liturgia, nossas orações, nossa vida cristã. Essa forma prática de pensar sobre a Trindade pode ser vista na maneira como os Pais sempre conectam sua confissão da Trindade ao batismo e à salvação. Francis Pieper observou essa mesma preocupação com o Credo Niceno. Os Pais confessam a Trindade em um credo batismal que ressalta a salvação realizada por Cristo e entregue pelo Espírito Santo na igreja.4 Confessar a Trindade nunca está separado de confessar a salvação.

3

Martin Chemnitz, Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:100. Chemnitz reflete sobre o uso da linguagem teológica na igreja e reconhece que muitas dessas palavras são tiradas da linguagem comum do povo e não das Escrituras. A igreja usa esses termos comuns, mas de uma forma responsável do ponto de vista bíblico. Nesse sentido, a igreja ajusta o significado desses termos comuns para refletir a verdade das Escrituras. Ele escreve: "A igreja, por razões boas e suficientes, de tempos em tempos deve adotar certos termos e fazer mudanças em seu significado. [Como a igreja fala sobre coisas que são desconhecidas para nossa razão, ela usa essas palavras em um sentido um pouco diferente." Chemnitz tem em mente os termos trinitários "essência" e "pessoa".

4 Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:406.

376

Os capítulos seguintes discutem a terminologia eclesiástica e os padrões preferidos de discurso usados ao longo da história da igreja para transmitir a revelação da Trindade contida nas Escrituras. Embora essa linguagem não seja absolutamente necessária para a confissão correta da identidade trina de Deus, ela não deve ser desprezada nem abandonada com muita facilidade.5 Quando confessamos que Deus é uma ousia e três hipostases,6 que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são consubstanciais e que as pessoas divinas se distinguem por suas propriedades pessoais e relações de oposição, não estamos apenas tomando emprestada a linguagem teológica da história da igreja. Estamos unindo nossas vozes à linguagem e aos esforços dos fiéis. Nossa garantia para falar dessa forma sobre a Trindade vem das Escrituras e encontra sua relevância contínua na liturgia, nas orações e nos hinos da igreja. Se a linguagem e a gramática encontradas nos próximos capítulos parecerem pouco familiares, o desejo 5

Philipp Melanchthon, Loci Communes, trans. J. A. O. Preus, 2d ed. (St. Louis: CPH, 2011), 16: "Omitiremos todos os argumentos sobre palavras e simplesmente manteremos o significado da igreja e usaremos as palavras que já foram usadas e aceitas na igreja sem qualquer ambiguidade". Novamente, p. 28: "Cabe ao piedoso, em prol da harmonia, falar de acordo com a igreja. E não foi sem boas razões que a igreja antiga aprovou algumas maneiras de falar e rejeitou outras. Evitemos, então, o zelo pela cavilação e retenhamos as formas recebidas com autoridade pesada e verdadeira." Para um sentimento semelhante, veja Pieper, Christian Dogmatics 1:417-18, "Essa terminologia não é um jargão sem sentido, mas um aparato teológico necessário. [Essa terminologia] está de pleno acordo com o ensino das Escrituras In Na realidade, essa terminologia expressa a fé simples que todo cristão acredita com base em passagens claras das Escrituras, mesmo que ele nunca tenha ouvido falar desses termos. Todo cristão acredita que o Filho é o Unigênito do Pai e que o Espírito Santo é o Espírito do Pai e do Filho. Portanto, ele acredita implicitamente no actus personales (geração e espiração), no proprietates personales (paternidade, etc.) e no supostamente sem sentido notiones personales (innascibilidade, etc.)."

6 Os estudiosos frequentemente se referem à frase "uma ousia, três hipóstases" (μία οὐσια τρεῖς ὑποστάσεις como o assentamento capadócio. Essa frase exata nunca ocorre nos escritos dos pais da Capadócia. Ela é encontrada na obra de Agostinho The Trinity 5.8.10 (CCSL 50.216-17): "Dicunt quidem et illi ὑποστάσιν, sed nescio quid volunt interesse inter οὐσίαν et ὐποστάσιν ita ut plerique nostri qui haec graeco tractant eloquio dicere consuerint μία οὐσια τρεῖς ὑποστάσεις, quod est latine, unam essentiam, tres substantias." Cf. Basil of Caesarea Letter 214 (LCL, 3:234).

377

dos fiéis deve ser a catequese, não o afastamento dessas questões. Os Pais e os reformadores usavam essa linguagem na adoração e na pregação. Nós também deveríamos. Esse uso, no entanto, exige que se reaprenda a maneira da igreja de confessar a identidade bíblica da Trindade e o valor dessa linguagem compartilhada, desse vernáculo eclesiástico, entre fiéis de geração em geração.

CONHECENDO DEUS

Quando falamos sobre Deus, devemos ter clareza inicial sobre o que podemos saber e o que não podemos saber. Basílio, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, os Capadócios, como são chamados coletivamente, argumentavam que conhecemos Deus pelas coisas que Ele faz, por Suas obras ou atividades no mundo, desde a criação até a salvação e Sua providencial ordenação e cuidado de nossas vidas. Eles fizeram uma distinção entre conhecer Deus em Si mesmo (theologia) e conhecer Deus por meio de Seus atos (oikonomia). Embora saibamos coisas sobre a essência de Deus, sobre Deus em Si mesmo, não podemos conhecê-Lo total ou completamente nesta vida. Esse tipo de conhecimento nos escapa. A essência de Deus é infinita e, portanto, está além de nossa inteligência e capacidade criadas e finitas.7 A essência de Deus excede nossas conceituações, inclusive o conceito de ser, porque Ele não é nenhum tipo específico de ser que possamos identificar. É por isso que os Pais e todos os teólogos ortodoxos depois deles insistiram que Deus estava além do ser, o que significava além da definição, além dos limites de nossos conceitos humanos, transcendendo todas as categorias disponíveis para nossas mentes e fala.

Já vimos em capítulos anteriores como Gregório de Nissa a considera como especulação ociosa para atribuir qualquer conceito discreto ao que está acima de qualquer conceito.8 Da mesma forma, Agostinho declara à sua congregação: "Estamos falando de Deus; então, 7

Para uma discussão semelhante sobre isso, consulte Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1655), 2:191-95.

8 Gregory of Nyssa Letter 35, 3e (Silvas, 252); cf. Carta 24, 5: "Mas sua substância, seja ela qual for - pois é inexprimível em palavras e não pode ser apreendida em pensamento" (Silvas, 193).

378

por que se surpreender se você não consegue entender isso? Quero dizer, se você consegue entender, não é Deus. Vamos preferir fazer uma devota confissão de ignorância, em vez de uma impetuosa profissão de conhecimento."9 Novamente Agostinho prega: "Então, o que devemos dizer, irmãos, sobre Deus? Pois se você entendeu completamente o que quer dizer, não é Deus. Se você foi capaz de compreendê-lo, você compreendeu outra coisa em vez de Deus. Se você acha que foi capaz de compreender, seus pensamentos o enganaram."10 O avanço da Reforma de Lutero libertou Deus de nossa tentativa incessante de conceituá-Lo, de limitar Suas possibilidades e de moldá-Lo de acordo com nossas melhores ideias. A insistência de Lutero para que deixemos Deus ser Deus significa que não buscamos mais invadir o céu para conhecer o Deus das Escrituras, mas que O recebemos pela fé quando Ele vem a nós na Palavra e no Sacramento.11 Esse ponto básico apresentado de diferentes maneiras pelos Capadócios, Agostinho e Lutero rejeita todas as tentativas de teísmo ao depositar nas Escrituras a revelação de Deus sobre Si mesmo.

Devemos fazer uma pausa aqui para que não surjam malentendidos. Quando os Pais e os Reformadores afirmam a incompreensibilidade de Deus, eles não estão dizendo que não conhecemos Deus. Em vez disso, eles estão dizendo que não podemos reduzir Deus a um único conceito ou definição acima do qual nós estamos. Oferecer uma definição de algo é delimitar essa coisa, marcar completamente e, portanto, declarar sem ambiguidade o que é essa coisa.

Só podemos fazer isso com algo finito, algo suscetível a limites, a definições. Podemos definir um livro de forma correta e coerente. Um livro pode ser descrito sob as categorias de forma, tamanho, peso, cor etc.

9

Augustine Sermon 117.5 (WSA III/4, 211).

Augustine Sermon 52.6 (WSA III/3, 57). Cf. Credo Atanasiano: "O Pai incompreensível, o Filho incompreensível e o Espírito Santo incompreensível...

Como não existem três seres incriados nem três Incompreensíveis, mas um Incriado e um Incompreensível" (TLH, 53).

11 Cf. Martin Luther, “First Christmas Sermon: Christmas Eve Service (Titus 2:11– 15),” in The Complete Sermons of Martin Luther, trans. John Nicholas Lenker (Grand Rapids: Baker Books, 2000), vol. 3.2, 116–17; Disputation on Scholastic Theology, 1517 (AE 31:10, thesis 17; WA 1:225.1–2); Robert Kolb, “Luther on the Theology of the Cross,” Lutheran Quarterly 16 (2002): 455, 459.

10

379

Também podemos dizer que um livro contém capa e contracapa e uma lombada que une as páginas entre as capas. Podemos discutir o propósito ou o uso de um livro; também podemos extrapolar coisas sobre o fabricante de um livro, as habilidades exigidas e os recursos necessários para produzir tal coisa. Da mesma forma, descrevemos cadeiras, mesas e as várias coisas que encontramos com nossos sentidos. Uma definição pode indicar tanto o que uma coisa é quanto o que ela não é. Um livro não é uma cadeira e nós não temos a capacidade de definir o que é uma coisa. Um livro não é uma cadeira e podemos dar muitas razões para isso.

Essas razões serão expressas de forma positiva ou negativa; por exemplo, um livro é 'x' ou um livro não é 'x'.

Nem tudo o que avaliamos com os sentidos tem um limite conhecido ou uma fronteira definida. Sabemos que há vento porque o sentimos, ouvimos seu farfalhar nas folhas e o vemos mover os galhos das árvores. E, no entanto, não conhecemos os limites do vento; não sabemos, como Jesus nos lembra, "de onde ele vem nem para onde vai" (Jo 3.8). Há um aspecto do vento que é incompreensível para nós. Sim, sabemos muito sobre ele; podemos descrevê-lo de forma proveitosa, mas ainda há aspectos que nos escapam. Nós o conhecemos com certeza, não porque podemos realmente ver algo chamado vento, mas porque vemos os efeitos ou as atividades do vento. Nesse sentido, só conhecemos o vento quando ele vem até nós, quando faz algo conosco ou ao nosso redor, quando se torna conhecido por nossos sentidos.

Quando os Pais e os Reformadores afirmam a incompreensibilidade de Deus, quando dizem que Ele está além de qualquer definição e excede nossas conceituações, eles não estão dizendo que não podemos conhecer Deus ou falar corretamente sobre Ele. O Deus Triúno das Escrituras não é o totalmente outro do platonismo. O incompreensível se fez conhecer verdadeira e realmente na pessoa de Cristo e pelas ações ou operações da Trindade no mundo. Conhecemos Deus e falamos sobre Deus conforme Ele Se revelou a nós. Ninguém conhece o Pai sem o Filho e ninguém conhece o Filho sem o Espírito Santo. A Parte 2 deste livro mostrou detalhadamente como as Escrituras nos revelam o único Deus verdadeiro de Israel, que é três pessoas 380

eternamente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.

Johann Gerhard, no espaço de apenas algumas páginas, afirma que Deus está além de qualquer definição, mas também é perfeitamente conhecido por nós. Se buscarmos conhecer a essência de Deus, para defini-la, buscaremos o que não está disponível para nós. Gerhard escreve: "Nesta vida, não podemos contemplar a essência de Deus com nossos olhos, compreendê-la com nossa mente ou falar dela com nossos lábios. Como, então, seríamos capazes de defini-la perfeitamente?"12 E, no entanto, Deus se tornou conhecido para nós nas Escrituras. Gerhard declara ainda que o conhecimento de Deus que temos das Escrituras pode ser considerado perfeito porque é suficiente para a salvação e porque vem de Deus.13 Portanto, quando nos perguntam quem é Deus, proclamamos aquele que nos foi revelado nas Escrituras. Gerhard escreve: [Deus é] o Pai, que desde a eternidade gerou Seu Filho, Sua imagem, e que criou e preserva todas as coisas por meio do Filho no Espírito Santo; o Filho, que foi gerado pelo Pai desde a eternidade, que na plenitude dos tempos assumiu a natureza humana e nela realizou a obra da redenção; o Espírito Santo, que procede inefavelmente do Pai e do Filho desde a eternidade, que foi derramado visivelmente sobre os apóstolos e ainda hoje é enviado invisivelmente aos corações dos crentes, e que, por meio da pregação do Evangelho, reúne a Igreja de toda a raça humana e a santifica para a glória do nome de Deus e a salvação eterna daqueles que creem.14

A proclamação de Gerhard sobre quem é Deus segue os instintos dos Pais. Ele confessa a identidade do Deus Triúno no contexto da igreja e a salvação por ela proclamada. A descrição de Deus feita por Gerhard está longe dos filósofos e das especulações da razão; é uma confissão 12

Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and On the Trinity, trans. Richard Dinda (St. Louis: CPH, 2007), Exegesis II, §89, 93.

13 Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis II, §90, 95.

14 Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis II, §94, 98.

381

eclesiástica que segue humildemente as palavras sólidas das Escrituras.

DISTINGUINDO AS PESSOAS Capadócios

A preocupação urgente da igreja primitiva era como distinguir corretamente as três pessoas divinas umas das outras sem prejudicar sua unidade essencial. As duas grandes heresias da igreja primitiva não conseguiram fazer isso. O sabelianismo afirmava a unidade de Deus às custas de três pessoas coiguais e eternamente distintas. O arianismo argumentava que o verdadeiro Deus era somente o Pai e não o Filho ou o Espírito. Os arianos acreditavam que houve um tempo em que o Filho não existia, que Ele foi criado pelo Pai para criar todas as outras coisas, inclusive o Espírito. Para os arianos, o Filho era mais elevado do que os anjos, mas mais baixo do que Deus. Nas palavras do Credo Atanasiano, os sabelianos confundiam as pessoas; os arianos dividiam a essência.15 Os Pais rejeitaram e condenaram tanto o sabelianismo quanto o arianismo.

Eles concentraram seus esforços em encontrar maneiras apropriadas de expressar a distinção entre as pessoas e a unidade da essência sem cair nos erros de nenhum dos dois grupos acima.

Os Capadócios usavam a linguagem de "propriedades distintivas" ou "marcas distintivas" para falar sobre as pessoas divinas. Essa linguagem procedia de uma distinção entre o que é dito de Deus em termos de Sua essência e o que é dito de Deus em referência às pessoas entre si. Quando as coisas são ditas de Deus em termos de Sua essência, elas são ditas de todas as três pessoas divinas, de forma igual e indivisível. Quando as coisas são ditas de Deus em termos da relação entre as pessoas, elas são ditas com referência à outra pessoa. Por exemplo, quando dizemos que Deus é eterno, estamos falando de uma propriedade essencial que o Pai, o Filho e o Espírito Santo compartilham indivisivelmente como um só Deus. Quando dizemos Pai ou Filho, estamos usando termos relacionais.

Usamos corretamente a palavra eterno com Pai, Filho e Espírito Santo de 15

Cf. Thomas Aquinas, Commentary on the Gospel of John, 1451 (Lander, WY: The Aquinas Institute, 2013), 2:63.

382

forma equivalente. Não os termos Pai e Filho de forma equivalente. O Pai é sempre Pai e nunca Filho; o Filho é sempre Filho e nunca Pai. E quanto a termos como não gerado e gerado? Esses termos se referem a Deus como Ele é em Seu ser eterno ou se referem a relações? Quando dizemos que o Pai não foi gerado ou não tem origem e que o Filho foi gerado ou tem origem, estamos falando em termos de essência ou de relação? Essa pergunta deixou muitos na igreja primitiva perplexos e está por trás de muitos dos debates do século IV sobre a Trindade. A resposta a essa pergunta pelos Pais gregos e latinos produziu ricas distinções trinitárias que ajudam a modelar a linguagem de nossa fé, liturgia e orações.

Eunomius de Cyzicus achava que sabíamos tanto sobre a essência de Deus quanto Deus. O nome da essência de Deus, ele, era unbegotten (não gerado). Se a essência de Deus é não gerada, então claramente o Filho não poderia ser Deus da mesma forma que o Pai é Deus, porque as Escrituras dizem que Ele é gerado. Portanto, pensou Eunômio, quando a Escritura declara que Jesus é o Filho unigênito de Deus, ela claramente diferencia a essência do Filho da essência do Pai. Eunômio não era o único a pensar dessa forma; Asterius, o Sofista, pensava de forma bastante semelhante. Ambos estavam convencidos de que não gerado ou não originado indicava a essência de Deus e, portanto, o Filho era necessariamente diferente do Pai em essência. Os teólogos ortodoxos dos séculos IV e V argumentaram que "unbegotten" ou "unoriginate" não são termos substanciais, palavras que descrevem a essência de Deus, mas termos relacionais, termos que distinguem o Pai de algo ou de alguém.

Sua concordância consiste em ver esses termos como relacionais. No entanto, eles expressam de forma diferente o que era essa relação.

Atanásio argumenta que "unoriginate" é usado para Deus a fim de marcá-Lo como diferente do resto da criação. O termo é usado não em referência ao Filho, pois não está relacionado ao Filho, mas com as coisas criadas pelo Pai por meio do Filho.16 O termo Pai, por outro lado, 16

Athanasius Orations Against the Arians I.33, em William Rusch, The Trinitarian Controversy, Sources in Early Christian Thought (Filadélfia: Fortress Press, 1980), p. 96. Atanásio mostra como o Filho também pode ser chamado de nãooriginado quando a palavra é usada para marcar o Filho como diferente do resto 383

é usado em referência ao Filho e distingue a Primeira Pessoa da Trindade da Segunda Pessoa. Além disso, o termo Pai indica adequadamente a coeternidade e a coigualdade do Filho. Quando as pessoas se referem a Deus como não criador, elas O destacam da perspectiva da criação, de Suas obras. Deus não tem origem, o que significa que Ele não foi feito, não foi criado. Quando as pessoas se referem a Deus como Pai, elas O distinguem da perspectiva do Filho, por meio de quem somente elas conhecem o Pai. Embora ambas as designações sejam verdadeiras, as Escrituras preferem a linguagem de Pai e Filho. Atanásio escreve: "'Não originado' foi descoberto pelos gregos, que não conhecem o Filho. Mas 'Pai' era conhecido por nosso Senhor, e ele se alegrava com isso."17 Atanásio ressalta que Jesus não nos ensinou a orar "Nosso não criador”, mas "Nosso Pai". Da mesma forma, não nos foi ordenado que batizássemos em nome do não criador, mas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Basílio de Cesaréia adota uma abordagem mais sutil para chegar a um ponto semelhante. Ele argumenta que a "incompreensão", quando aplicada ao Pai, não para nós "o que Ele é", mas sim "como Ele é".18 Basílio faz essa distinção para combater a alegação de Eunômio de que "incompreendido" é um termo que indica essência. Basílio argumenta que o termo não funciona dessa forma. "Unbegotten" não nos diz o que Deus é, mas sim como Ele é "de ninguém" ou "de nenhuma fonte".19 O termo não descreve a essência de Deus, mas a origem de Deus. Quando falamos de seres humanos e dizemos que essa pessoa vem daquela pessoa, não indicamos "o que essa pessoa é", mas "de onde essa pessoa vem". Basílio apela para a genealogia de Lucas. Quando Lucas diz que Sete veio de Adão, ele nos diz de onde Sete vem, não o que Sete é em termos de da criação: Orations Against the Arians I.31; De Decretis 29-30. Um ponto semelhante é feito por Gregory of Nazianzus Or. 39, 12 em Gregory of Nazianzus, trans. Brian Daley (Nova York: Routledge, 2006), 133.

17 Athanasius Orations Against the Arians I.34 (Rusch, 97); cf. De Decretis 31.

18 Basil of Caesarea Against Eunomius 1.15 (Fathers of the Church, 114).

19 Basil of Caesarea Against Eunomius 1.15 (Fathers of the Church, 114). Cf. Gregório de Nazianzo Or. 29.11 (PPS, 79): "Não gerado significa que ele não tem pai ou mãe. Não declara sua natureza, mas simplesmente o fato de que ele não foi gerado".

384

essência. Ser "de alguém" indica fonte e relação. A fonte de Sete é Adão.

Portanto, Sete está em relação a Adão como aquele de quem ele vem, ou, como diríamos, como filho para o pai ou como criança para seus pais.

Basílio mostra ainda como usamos nomes próprios para distinguir uma pessoa de outra. Não usamos nomes próprios para distinguir essências ou "humanidades", mas para distinguir pessoas. Sete é diferente de Adão por seu nome como uma pessoa distinta, mas não como uma essência diferente. Assim também Pedro se distingue de Paulo por seu nome. Basílio insiste nesse ponto para fazer uma distinção importante para nossa linguagem teológica. Identificamos Pedro por suas marcas distintivas: ele é o filho de Jonas, o homem de Betsaida, o irmão de André.20 O único nome "Pedro" expressa todas essas coisas para nós. Da mesma forma, identificamos Paulo como o homem de Tarso, que foi discípulo de Gamaliel e que se tornou o apóstolo dos gentios. O único nome "Paulo" engloba todas essas coisas e o como a pessoa específica que possui essas marcas distintivas. Nós nunca usaríamos o nome Pedro para identificar aquele de Tarso que estudou com Gamaliel e que se tornou o apóstolo dos gentios. Não se trata de Pedro, diríamos, mas de Paulo. Quando discutimos suas marcas ou propriedades distintivas, os nomes não são substituíveis ou intercambiáveis.

Raciocínio semelhante se aplica aos nomes do Pai e do Filho.

Basílio escreve: "Tanto no caso de 'Pai' quanto no de 'Filho', os nomes não comunicam a substância, mas revelam as marcas distintivas."21 Isso significa que a unidade deles diz respeito ao que eles têm em comum, e a diferença reside no número e nos traços distintivos que caracterizam cada um deles.22 Um traço distintivo do Pai é que Ele é "não gerado", o que significa que Ele não tem origem. Quando dizemos que o Filho é gerado, confessamos que Ele é gerado pelo Pai. A fonte de Sua divindade é o Pai. Quando dizemos que Pai é a fonte do Filho, estamos marcando suas relações distintas. O Pai não tem fonte; Ele não é gerado. O Filho vem do Pai na eternidade; Ele é eternamente gerado.

20

Basil of Caesarea Against Eunomius 2.4 (Fathers of the Church, 134–35).

Basil of Caesarea Against Eunomius 2.5 (Fathers of the Church, 136).

22 Basil of Caesarea Against Eunomius 1.19 (Fathers of the Church, 120).

21

385

Isso significa que há "ordem" (τάξις) em Deus? Se dissermos que sim, isso significa que o ordenado (nesse caso, o Filho) está em um ponto posterior no tempo do que o ordenador (nesse caso, o Pai)? Os arianos achavam que qualquer discussão sobre ordem significava isso. Eles argumentavam que a ordem é secundária em relação àquele que ordena e, portanto, o Filho é secundário em relação ao Pai e não é Deus da mesma forma que o Pai é Deus.23 Para Basílio, há diferentes maneiras de criar certa ordem. Há uma ordem que é natural e outra que surge por deliberação. A ordem natural pode ser vista em coisas como números: um precede dois e ambos precedem o número três. Essa ordem ou sequência é natural e nunca pode ser desfeita sem cair no absurdo. Também podemos dizer que a ordem é relacional. Um implica dois e dois pressupõe um. Mas nunca inverteríamos a ordem e contaríamos dois, um, três. Também podemos dizer que um é a causa de dois. Sem o um, a ordem é interrompida e não chegamos ao dois. O que não é o caso, entretanto, é que um e dois diferem no que são. Pode parecer um pouco estranho dizer isso, mas o um não é mais um número do que o dois e o dois não é menos um número do que o um, apesar da ordem e da sequência naturais que se estabelecem eternamente entre eles.

O segundo tipo de ordem vem de nós e de nossa discussão sobre as coisas. Nós impomos uma ordem e uma distinção entre duas coisas que são naturalmente ordenadas ou sequenciadas. Basílio dá o exemplo do fogo e da luz. Há uma ordem natural entre o fogo e a luz estabelecida por nossas mentes. Primeiro há o fogo, assim pensamos, e depois há a luz.

Supomos que haja um "intervalo" entre o fogo e a luz, mas esse intervalo não existe na ordem natural. Assim que há fogo, há luz. Basílio usa essas percepções e as aplica ao Pai e Filho. Ele escreve: "Dizemos que o Pai é classificado antes do Filho em termos da relação que as causas têm com o que vem delas, não em termos de uma diferença de natureza ou de uma preeminência baseada no tempo."24 A diferença em termos de causalidade não toca na questão da essência ou do tempo, mas da relação. O Filho está relacionado ao Pai de forma semelhante à relação entre o número

23 24

Basil of Caesarea Against Eunomius 1.20 (Fathers of the Church, 121).

Basil of Caesarea Against Eunomius 1.20 (Fathers of the Church, 121).

386

dois e o número um. Há uma sequência ou ordem natural que distingue um do outro, mas não no sentido de natureza ou tempo. Não há diferença na natureza e não há intervalo ou fissura entre eles.

Basílio reúne os pontos acima ao considerar um texto preferido usado pelos arianos, Jo 14.28: "O Pai é maior do que eu". O que Cristo quer dizer quando faz essa afirmação? A resposta está nas palavras cuidadosamente escolhidas por Cristo. Como Cristo diz Pai e não Deus, Ele quer dizer apenas que "o Pai" é maior "na medida em que é Pai".25 Basílio explica: "Ele é a causa e o princípio daquele que foi gerado por ele."26 Basílio entende as palavras de Cristo em termos de relação. Quando Cristo diz: "O Pai é maior do que eu", Ele nos aponta para a relação eterna que existe entre o Pai e Ele mesmo. Basílio não está sozinho nessa visão exegética. Atanásio já havia interpretado esse texto como se referindo à geração eterna do Filho a partir Pai.27 Gregório de Nazianzo reconhece que alguns tomam esse texto como se referindo à economia do Filho: o Pai é maior do que o Filho considerado como homem. Essa interpretação é verdadeira, mas é superficial. Como diz Gregório, todos sabem que Deus é maior do que o homem. O que Cristo está querendo dizer aponta para o Pai como Sua causa. A linguagem de "maior" nos aponta para o Pai como o princípio e a causa do Filho.28 Precisamos nos deter por um momento nessa linguagem de causa.

Muitas pessoas hoje em dia se preocupam com o fato de a linguagem da causalidade se distancia das Escrituras e se aproxima da filosofia. Embora seja verdade que esta linguagem deriva das escolas filosóficas, a necessidade dela vem das Escrituras. A linguagem e a lógica das Escrituras levaram os Pais a distinguirem as pessoas em termos de seu modo ou maneira de existência (τρόπος τῆς ὑπάρξεως). Uma declaração repetida em todas as Escrituras é que o Filho é o unigênito (Sl 2.7 [Hb 1.5]; Jo 1.14, 18; Jo 3.16, 18 KJV). O significado dessa linguagem pode ser visto no Credo Niceno, onde o único Senhor Jesus Cristo é qualificado da seguinte 25

Basil of Caesarea Against Eunomius 1.25 (Fathers of the Church, 127).

Basil of Caesarea Against Eunomius 1.25 (Fathers of the Church, 127).

27 Athanasius Orations Against the Arians I.58.

28 Basil of Caesarea Against Eunomius 1.25 (Fathers of the Church, 127).

26

387

forma: "O Filho unigênito de Deus, gerado por Seu Pai antes de todos os mundos... gerado, não feito, sendo de uma só substância com o Pai".

Embora as Escrituras não digam explicitamente que o Pai é unigênito, isso estava implícito para os Pais (e seus oponentes) a partir da maneira como as Escrituras nos orientam a pensar no Filho. Se o Filho foi gerado pelo Pai, o que dizer do Espírito? De acordo com a linguagem do Evangelho de João, o Espírito Santo procede do Pai (Jo 15.26). O Filho é gerado e o Espírito procede. Essa maneira de distinguir as pessoas se torna padrão para os Pais. João de Damasco coloca a questão de forma sucinta: Pois o Pai não tem causa nem é gerado, porque Ele não provém de nada, mas tem Seu ser de Si mesmo e não tem de nenhum outro qualquer coisa que Ele tenha. Pelo contrário, Ele mesmo é o princípio e a causa pela qual todas as coisas existem naturalmente como existem. E o Filho é gerado pelo Pai, enquanto o Espírito Santo também é gerado pelo Pai - embora não por geração, mas por procedência. Agora, aprendemos que há uma diferença entre geração e procedência, mas não aprendemos qual é a maneira dessa diferença. Entretanto, a geração do Filho e a procedência do Espírito Santo a partir do Pai são simultâneas.29

O Pai não foi gerado, o Filho é gerado e o Espírito Santo é aquele que procede do Pai e do Filho. Esses três modos de existência, expressos em termos de causalidade, são derivados do testemunho das Escrituras. É essa percepção que permite que os Pais respondam ao problema de como diferenciar as pessoas quando a natureza que elas compartilham é impossível de ser diferenciada. Gregório de Nissa explica: "Embora reconheçamos que a natureza é única, não há uma distinção com relação

29

John of Damascus An Exact Exposition of the Orthodox Faith 1.8 (Fathers of the Church, 184). O ponto final de João sobre a diferença entre ser gerado e proceder vem de Gregório de Nazianzo. Veja Gregory Or. 31.8. Veja também Pieper, Christian Dogmatics, 1:418, "Todo teólogo sábio confessará: 'Quid sit nasci, quid processus, me nescire sum professus.'"

388

à causalidade".30 Distinguimos as pessoas divinas entendendo que uma é a causa e a outra depende dessa causa. Ao colocá-lo dessa maneira, começamos a ver que a linguagem da causa se expressa em termos de relação, não de essência. O Pai é a causa ou o princípio do Filho e do Espírito Santo. O modo de existência do Filho (τρόπος τῆς ὑπάρξεως) é o fato de Ele ter sido gerado pelo Pai. O modo de existência do Espírito Santo é que Ele procede do Pai e do Filho. O modo de existência do Pai é que Ele não foi gerado, Ele não tem fonte ou princípio de Sua divindade.

Para que não surjam mal-entendidos nesse ponto, Gregório de Nissa esclarece seus termos. Ele escreve: Quando falamos de uma causa e daquilo que depende dele, não nos referimos à natureza com essas palavras. Pois ninguém diria que causa e natureza são idênticas. Ao contrário, indicamos uma diferença no modo de existência [τὸ πὼϚ εἶναι]. Pois ao dizer que um é originado e o outro não é originado, não dividimos a natureza pelo princípio da causalidade, mas apenas explicamos que o Filho não existe sem geração, nem o Pai por geração.31

A linguagem de Gregório é precisa. Para afirmar que algo existe é uma coisa e dizer como algo existe é outra. Dizer que algo existe sem geração é dizer apenas como essa coisa existe; não é dizer nada sobre o que essa coisa é. Gregório oferece o exemplo de uma árvore. Se você vir uma árvore e perguntar ao proprietário se ela foi plantada ou cresceu naturalmente e ele responder que foi plantada, tudo o que você aprendeu foi a maneira ou o modo de existência dessa árvore.32 De maneira semelhante, dizer que o Pai não foi gerado, que o Filho foi gerado e que o Espírito procede indica para nós o modo de existência deles. O Pai não depende de nenhuma fonte ou princípio; o Filho depende do Pai; e o Espírito depende do Pai e do Filho.

30

Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius em Christology of the Later Fathers, ed., Edward R. Hardy (Philadelphia, Westminster, 1954), 266. Edward R. Hardy (Filadélfia: Westminster, 1954), 266.

31 Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius, 266.

32 Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius, 267.

389

Outro ponto precisa ser destacado aqui: a ordem da Trindade segue seu modo de existência. Por essa razão, dizemos Pai, Filho e Espírito Santo. Não confundimos a ordem, dizendo Filho, Pai, Espírito ou Espírito, Pai, Filho. A ordem das pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo - revela-nos suas características distintas, suas marcas distintivas. O nome Pai expressa Sua característica distintiva de não ter sido gerado e possuir paternidade; o nome Filho expressa Sua característica distintiva de ter sido gerado e possuir filiação. Basílio explica: Os traços distintivos, que são como certos caracteres e formas observados na substância, diferenciam o que é comum por meio dos caracteres distintivos e não separam a semelhança da substância em sua natureza. Por exemplo, a divindade é comum, enquanto a paternidade e a filiação são marcas distintivas: a partir da combinação de ambas, ou seja, do comum e do único, chegamos à compreensão da verdade.33

O Pai é eternamente distinto do Filho por Sua paternidade; o Filho é eternamente distinto do Pai por Sua filiação. Gregório de Nissa acrescentará à declaração de Basílio que o Espírito Santo se distingue do Pai e do Filho por Sua procedência. Embora ele não diga que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, Gregório insiste que o Espírito nunca procede do Pai sem o Filho.34 Escritores gregos posteriores expressariam a inseparabilidade do Filho e do Espírito dizendo que o Espírito procede do Pai por meio do Filho.

Gregório de Nazianzo adverte os fiéis para que não demonstrem 33

Basil of Caesarea Against Eunomius 2.28 (Fathers of the Church, 174). Essa passagem de Basílio é citada por quase todos os escritores medievais e da Reforma que discutem a distinção de pessoas.

34 Para Gregório, a procedência do Espírito a partir do Pai envolve intimamente o Filho. O Espírito depende (ἤρτηται) do Filho e é conhecido após o Filho e com o Filho. Veja Gregory of Nyssa Letter 35, 4d (Silvas, 253). Cf. John Behr, The Nicene Faith (Crestwood, NY: St. Vladimir's Seminary Press, 2004), vol. 2, parte 2, 434: "Gregório afirma claramente a mediação do Filho na procedência do Espírito, pois o Espírito procede não simplesmente de Deus, mas do Pai do Filho e, portanto, sempre em relação ao Filho".

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tanta devoção ao Pai a ponto de roubá-Lo de Sua paternidade ou tanta devoção a Cristo a ponto de negligenciar Sua filiação.35 Deus Pai está eternamente em relação a Deus Filho e, portanto, nunca pode ser separado Dele. Como Basílio disse, a paternidade é coextensiva com a eternidade do Pai.36 O Pai não é Pai sem o Filho; o Filho não é Filho sem o Pai. As identidades eternas do Pai e do Filho exigem uma à outra. Da mesma forma, os fiéis não devem separar o Filho do Espírito. O Filho envia o Espírito, que procede do Pai, a nós para que possamos conhecer o Filho. O Espírito enviado a nós pelo Filho nos aponta sempre para o Filho, que, por sua vez, nos revela o Pai. Basílio explica: "Nunca separamos o Paráclito de Sua união com o Pai e o Filho. Pois nossa mente, sendo iluminada pelo Espírito, olha para o Filho e, Nele, como em uma imagem, contempla o Pai."37 Assim que contemplamos o Pai, nossa mente vai para o Filho e seu Espírito. Gregório de Nissa escreve: "Aquele que pensou no Pai e pensou nele como ele é em si mesmo, também abraçou o Filho em seu entendimento, e aquele que o recebeu não separa o Espírito do Filho."38 Quem menciona o Espírito confessa aquele de quem ele é o Espírito. Já que Ele é, observa Gregório, o Espírito de Cristo (Rm 8.9) e o Espírito de Deus Pai (1Co 2.12), então pensar no Espírito é também pensar no Filho e no Pai.39 Da mesma forma, pensar no Pai é pensar também em Seu Filho e Espírito.40 Basílio de Cesaréia e Gregório de Nissa argumentam que não há intervalo ou interstício (διάστημα) entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.41 Embora distintos e conhecidos por nós por suas propriedades distintivas, Eles também estão intimamente ligados um ao outro: "Eu estou no Pai e o Pai está em mim" (Jo 14.10). A inseparabilidade do Pai e do Filho também é verdadeira para o Filho e o Espírito. As pessoas permanecem 35

Gregory of Nazianzus Or. 2, 38 (NPNF, ii, VII, 212).

Basil of Caesarea Against Eunomius 2.12 (Fathers of the Church, 146).

37 Basil of Caesarea Letter 226 (LCL, 3:339).

38 Gregory of Nyssa Letter 35, 4j (Silvas, 254).

39 Gregory of Nyssa Letter 35, 4k (Silvas, 254).

40 Gregory of Nyssa Letter 35, 4m (Silvas, 255).

41 Cf. Basil of Caesarea Against Eunomius 2.12 (Fathers of the Church, 146); Gregory of Nyssa Letter 35, 4i (Silvas, 254).

36

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unidas e estão ligadas uma na outra. Fulgêncio de Ruspe expressa isso com especial clareza: "Todo o Pai está no Filho e no Espírito Santo, e todo o Filho está no Pai e no Espírito Santo, e, também, todo o Espírito Santo está no Pai e no Filho."42 Mais tarde, a igreja chamaria isso de perichoresis ou circumcessio, a interpenetração mútua ou correlação entre as pessoas. As pessoas estão intimamente unidas sem confusão e residem mutuamente uma na outra sem qualquer mistura ou mescla, sem mudança ou divisão.43 Como João de Damasco diria mais tarde, o Filho está no Pai e no Espírito, o Espírito está no Pai e no Filho, e o Pai está no Filho e no Espírito, e isso sem fusão, mistura ou confusão.44 Agostinho

Agostinho faz eco a grande parte da linguagem apresentada acima e, por meio de Agostinho, o Ocidente latino continuou nessa maneira de tratar a Trindade durante os períodos Medieval e da Reforma. Agostinho pensa no termo "não gerado" de forma diferente de Atanásio e Basílio e prefere a interpretação "simples" de Jo 14.28 rejeitada por Gregório de Nazianzo.45 Apesar dessas diferenças, as conclusões tiradas por Agostinho sobre os pontos que estamos discutindo coincidem com os teólogos gregos acima e devem ser vistas como complementares.

42

Fulgentius of Ruspe To Peter on the Faith 4 (Fathers of the Church, 62).

John of Damascus An Exact Exposition of the Orthodox Faith 1.8 (Fathers of the Church, 187).

44 John of Damascus An Exact Exposition of the Orthodox Faith 1.14 (Fathers of the Church, 202).

45 Para a discussão de Agostinho sobre Jo 14:28, veja The Trinity 1.15 (WSA I/5, 75); 2.3 (WSA I/5, 98). Uma importante razão exegética para sua interpretação pode ser vista em The Trinity 2.11 (WSA I/5, 104). Cf. também The Trinity 6.5 (WSA I/5, 208). Hilário de Poitiers favorece a interpretação grega. Tomás de Aquino prefere a exegese de Agostinho, mas reconhece a legitimidade da interpretação de Hilário e, portanto, também dos pais gregos. Thomas Aquinas , Gospel of John, 1970-71, 2:273-74. Os luteranos seguem Agostinho. Cf. Melanchthon, Loci Communes, 29; Chemnitz, Loci Theologici 1:159. Chemnitz está ciente da exegese de Gregório de Nazianzo e a considera sutil demais, afastando-se da simplicidade da fé. Para uma interpretação ocidental moderna desse texto que favorece a leitura grega, consulte Bernard Lonergan, The Triune God: Doctrines (Toronto: University of Toronto Press, 2009), 489.

43

392

Agostinho começa afirmando uma série de pontos cruciais que estabelecem a diferença entre o Pai e o Filho e enfatizam sua unidade. Ele faz isso em termos de "regras" que devem governar nossa leitura das Escrituras e, portanto, também nossa fala. Depois de insistir no ponto de que as obras do Pai e do Filho ad extra são inseparáveis, Agostinho afirma que a obra do Filho é "do Pai", assim como Ele próprio é "do Pai".46 Ele então escreve: Portanto, essa, é a regra que rege muitos textos das Escrituras, com a intenção de mostrar não que uma pessoa é menor que a outra, mas apenas que uma é da outra. No entanto, algumas pessoas extraíram dela o sentido de que o Filho é menor que o Pai. [Esta regra] não nos diz que o Filho é menor que o Pai, mas que ele é do Pai. Isso não implica em nenhuma falta de desigualdade, mas apenas em seu nascimento na eternidade.47

Agostinho se volta para os textos bíblicos que indicam que o Filho é o unigênito do Pai e que o Espírito procede do Pai.48 Ele ressalta ainda que "a fonte de toda divindade, ou se preferir, de toda deidade, é o Pai."49 Isso nós reconhecemos e confessamos quando dizemos que o Filho é gerado pelo Pai e que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Essa linguagem não indica "qualquer desigualdade, disparidade ou dissimilaridade de substância entre as pessoas divinas", mas sim enfatiza que "o Pai é a fonte e a origem de toda a divindade."50 Além disso, essa linguagem distingue corretamente as pessoas para nós: "O Pai gerou o Filho e, portanto, aquele que é o Pai não é o Filho; e o Filho é gerado pelo Pai e, portanto, aquele que é o Filho não é o Pai."51 Agostinho evita deliberadamente a linguagem do não gerado até 46

Augustine The Trinity 2.3 (WSA I/5, 99).

Augustine The Trinity 2.4–5 (WSA I/5, 99–100).

48 Augustine The Trinity 4.29 (WSA I/5, 174).

49 Augustine The Trinity 4.29 (WSA I/5, 174).

50 Augustine The Trinity 4.29 (WSA I/5, 177).

51 Augustine The Trinity 1.7 (WSA I/5, 69). Agostinho faz esse comentário no início de sua obra, indicando o que ele demonstrará.

47

393

que tenha estabelecido tudo o que foi dito acima. Somente depois de mostrar como distinguimos as pessoas sem implicar em desigualdade de substância, ele levanta a questão de como entendemos os termos unbegotten e begotten. Os arianos, ele nos diz, afirmam que essas são palavras de substância. Portanto, o Pai e o Filho são de substâncias diferentes porque um é não gerado e o outro gerado.52 Agostinho dirige sua atenção para o modo como os arianos leem as Escrituras. Eles não conseguem entender como a Escritura atribui coisas a Deus; eles não entendem a gramática da Escritura. A Escritura diz algumas coisas em termos de substância e outras em termos de relação. Quando se trata de coisas ou pessoas que não sejam Deus, as Escrituras também dizem coisas em termos de modificação, refletindo mudanças nessas coisas ou pessoas. Como Deus não muda no sentido de se tornar algo que não era, as Escrituras nunca falam de Deus em termos de modificação. Isso nos deixa com apenas duas maneiras pelas quais as Escrituras falam sobre Deus: em termos de substância ou em termos de relação.53 As palavras Pai e Filho são ditas em termos de relação. Pai é dito com referência ao Filho e Filho com referência ao Pai. Como não há modificação em Deus, esses termos relacionais indicam relacionamentos eternos. O Pai é sempre Pai e o Filho é sempre Filho.

Nunca houve um tempo em que o Pai não fosse Pai do Filho nem um tempo em que o Filho não fosse Filho do Pai.54 E quanto aos termos unbegotten (não gerado) e begotten (gerado)?

Agostinho observa que os dois termos funcionam de forma diferente.

Uma pessoa pode ser pai sem ser não gerado, da mesma forma que alguém pode ser não gerado sem ser pai. Os dois termos não requerem um ao outro.55 Uma pessoa, entretanto, não pode ser filho sem ser gerado. Esses 52

Augustine The Trinity 5.4 (WSA I/5, 191).

Augustine The Trinity 5.6 (WSA I/5, 192).

54 Cf. João de Damasco An Exact Exposition of the Orthodox Faith 1.8 (Fathers of the Church, 178): "Pois o Pai nunca existiu quando o Filho não existia, mas o Pai e o Filho gerado por Ele existem juntos simultaneamente, porque o Pai não poderia ser chamado assim sem um Filho. Agora, se Ele não era Pai quando não tinha o Filho, e mais tarde se tornou Pai sem ter sido Pai antes, então Ele foi mudado de não ser Pai para ser Pai, o que é a pior de todas as blasfêmias."

55 Cf. Gregório de Nazianzo Or. 29.3 (PPS, 71): "'Ser não-originado' necessariamente implica 'ser eterno', mas 'ser eterno' não implica 'ser não53

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dois termos requerem um ao outro. Além disso, enquanto não gerado requer uma relação (o não gerado não precisa gerar), gerado pressupõe gerador e, portanto, pressupõe relação.56 Agostinho conclui: "Duas noções distintas são transmitidas por 'gerador' e 'não gerado'. Ambas, de fato, são ditas de Deus, o Pai."57 O que, então, esses termos significam?

Quando a Escritura diz que o Filho é gerado, ela usa redundância. Gerado e filho significam a mesma coisa. Ser filho é uma consequência de ser gerado. A palavra unbegotten, a forma privativa de begotten, gramaticalmente não significa nada mais do que "não filho".58 Podemos dizer "unbegotten" ou "not begotten" e significar a mesma coisa. As regras da linguagem, lamenta Agostinho, não nos permitem dizer "unson" (infilius), mas é isso que "unbegotten" ou "not begotten" significa.59 Agostinho já demonstrou que Pai e Filho são termos relacionais.

Gerado e filho designam a mesma realidade, e ambos são usados de forma relacional. Gerado e não gerado negam uma relação particular e, nesse sentido, ambos também são usados de forma relacional. Agostinho explica: Eu afirmo em termos de relacionamento quando digo "filho", já que me refiro ao pai; eu nego em termos de relacionamento quando digo "Ele não é filho", já que estou referindo a negação ao pai, desejando declarar que ele não tem um pai. Mas se o que significa dizer "filho" pode ser dito da mesma forma que dizer "gerado", como observei acima, então pode-se dizer "não filho" da mesma forma que dizer "não gerado". Agora, negamos o relacionamento quando dizemos "não filho"; portanto, negamos o relacionamento quando dizemos "não gerado". E o que significa não criado, mas não gerado? Portanto, não deixamos a predicação de relacionamento quando dizemos não gerado.

E o que é afirmado em termos de originado', desde que o Pai seja referido como origem."

Augustine The Trinity 5.7 (WSA I/5, 192).

57 Augustine The Trinity 5.7 (WSA I/5, 192).

58 Augustine The Trinity 5.8 (WSA I/5, 193).

59 Augustine The Trinity 5.8 (WSA I/5, 193).

56

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relacionamento não designa substância. Portanto, embora begotten seja diferente de unbegotten, isso não indica uma substância diferente, porque assim como filho se refere a pai, e 'não filho' a 'não pai', gerado deve se referir a gerador, e 'não gerado' a 'não gerador'.60

Não devemos pensar que a ênfase na relação de Agostinho equivale apenas a uma maneira particular de falar sobre as pessoas divinas.

A linguagem tem significado ontológico. O Pai realmente é Pai, e isso sempre ocorreu por causa do Filho; o Filho sempre é Filho, e isso por causa do Pai. Em seus tratados sobre João, Agostinho aborda esses mesmos pontos. Ele escreve: O Pai é vida, não por "nascer" [non nascendo]; o Filho é vida por "nascer" [nascendo]. O Pai não provém de nenhum pai, o Filho provém de Deus Pai. O Pai, que é, não provém de ninguém; mas o fato de ser Pai o é por causa do Filho [propter Filium]. Mas para o Filho, tanto o fato de ele ser o Filho é por causa do Pai [propter Patrem] quanto o fato de ele ser, ele é do Pai [a Patre].61

Aqui vemos que a linguagem de Agostinho para relação é muito mais do que uma maneira lógica de falar sobre o Pai e o Filho. Ela diz respeito a quem Eles são eternamente. Isso significa que, mesmo à parte de nossa fala e pensamento, essas relações são reais. O Pai é Pai, propter Filium; o Filho é Filho, e isso em relação ao Pai.62 Novamente Agostinho escreve: "Mas verdadeiramente Deus Pai é Pai em direção a outro [ad aliquid], isto é, ao Filho; e Deus Filho é Filho em direção a outro [ad aliquid], isto é, ao Pai."63 A distinção de Agostinho entre predicação substantiva e relativa 60

Augustine The Trinity 5.8 (WSA I/5, 194).

Augustine In Johannis Evangelium Tractatus 19.13 (PL 35, 1550); cf. Augustine Homilies on the Gospel of John 19.13 (WSA III/12, 346–47).

62 Sobre esse ponto, veja Lewis Ayres, Augustine and the Trinity (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), 245-47.

63 Augustine In Johannis Evangelium Tractatus 20.9 (PL 35, 1683); cf. Augustine Homilies on the Gospel of John 39.4 (WSA III/12, 588).

61

396

em nosso discurso sobre Deus se torna sua contribuição mais significativa para a teologia trinitária e a lógica trinitária. Lutero e os dogmáticos luteranos nunca se cansam de usá-la. Embora Agostinho tome um caminho diferente dos teólogos gregos para chegar à sua conclusão, ambos insistem na distinção entre substância e relação na linguagem das Escrituras sobre Deus. Além disso, todos eles apelam para o modo de existência ou causalidade para distinguir as pessoas. O Pai é a causa ou origem do Filho e do Espírito Santo. Agostinho escreve: "Ele é chamado de Pai em termos de relacionamento, e é chamado de origem em termos de relacionamento".64 O Pai é a origem com referência ao Filho porque Ele O gera e com referência ao Espírito porque Ele O dá. Também se pode dizer, continua Agostinho, que o Pai e o Filho são ambos a origem do Espírito Santo, mas não de tal forma que sejam duas origens.65 Os Capadócios e Agostinho empregam a linguagem de causa ou origem para expressar o modo de existência exclusivo de cada pessoa. Esse modo único distingue as pessoas umas das outras e revela suas propriedades pessoais para nós.

TERMINOLOGIA

Os Pais se esforçaram para chegar a termos que transmitissem adequadamente a unicidade e a trindade de Deus. A linguagem técnica da igreja, que se encontra nos grandes credos da igreja, tinha o objetivo de trazer clareza de expressão ao testemunho das Escrituras sobre a Trindade e, ao mesmo tempo, expor todos os hereges e falsos mestres que buscavam enfraquecer esse testemunho. O uso contínuo dessa linguagem técnica na liturgia, especialmente nas orações e no prefácio apropriado para a época da Trindade, une as vozes dos fiéis de geração em geração.

Como essa linguagem serve para preservar o significado das Escrituras, não há como fugir dela. Fazer isso expõe uma pessoa ao perigo sempre presente de obscurecer o testemunho das Escrituras guardado através desta linguagem.

No Concílio de Nicéia (325), os bispos declararam que o Filho era 64 65

Augustine The Trinity 5.14 (WSA I/5, 198); cf. The Trinity 6.3 (WSA I/5, 206).

Augustine The Trinity 5.15 (WSA I/5, 199).

397

"da ousia" do Pai (ἐκ τῆς οὐσίας), o Filho era homoousios (consubstancial) com o Pai, e, nos anátemas anexados ao Credo, o concílio condenou qualquer um que ensinasse que o Filho era "de uma hipóstase ou ousia diferente do Pai".66 Aqueles que estão familiarizados com a maneira de falar da igreja acharão esse anátema surpreendente e confuso. O anátema serve como um lembrete útil de que a linguagem é fluida e o significado das palavras muda. No Concílio de Nicéia, hypostasis e ousia eram sinônimos. Dizer que a hipóstase do Filho era eternamente distinta da hipóstase do Pai era anátema; após o Concílio de Constantinopla (381), para não dizer isso era anátema. Os termos-chave de Nicéia (ousia, homoousios, hypostasis) ocuparam a atenção de todos os teólogos durante todo o quarto e até o quinto século. Os termos eram confusos tanto para os teólogos gregos quanto para os latinos. Alguns escritores gregos continuaram a pensar em hipostase e ousia como sinônimos, recusando-se a dizer que havia mais de uma hipostase em Deus; outros distinguiram os termos de tal forma que Deus era uma ousia e três hipostases. A tradução dessas palavras gregas para o latim se mostrou quase impossível. Mesmo trinta anos após o Concílio de Constantinopla, Agostinho expressa confusão e frustração. A frase grega "uma ousia e três hipostases” é traduzida para o latim como "uma essentia e três substantiae."67 A palavra ousia significa ser e Agostinho pode usar essentia para traduzi-la, mas a maneira mais típica, ele nos diz, seria usar substantia.68 Ouvir alguém dizer que Deus é "uma substância e três substâncias" beira o absurdo e corre o risco de heresia.69 Agostinho não se saiu muito melhor com a palavra hipóstase ou 66

Para o grego do Credo e uma boa discussão de seus termos, veja T. Herbert Bindley, The Oecumenical Documents of the Faith, rev. F. W. Green (Oxford Oxford Press, 1950), 26-49. F. W. Green (Oxford: Oxford University Press, 1950), pp. 26-49. Veja também J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds, 3d ed. (Londres: Longman, 1972), 231-62; e R. P. C. Hanson, The Search for the Christian Doctrine of God (Grand Rapids: Baker Academic, 2005), 181-207.

67 Augustine The Trinity 5.10 (WSA I/5, 196).

68 Augustine The Trinity 5.9 (WSA I/5, 196).

69 Cf. William Alston, “Substance and the Trinity,” in The Trinity, ed. Steven T. Davis, Daniel Kendall e Gerald O'Collins (Oxford: Oxford University Press, 1999), 179-201, especialmente 181-89; H. A. Wolfson, The Philosophy of the Church Fathers (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1956), 317-22. A linguagem da ousia deriva de Aristóteles. Ele distinguiu entre ousia primária e ousia 398

pessoa. Ele declarou a famosa frase: "Quando você pergunta: "Três o quê?", a fala humana se debate com uma grande escassez de palavras.

Portanto, dizemos três pessoas, não para dizer isso com precisão, mas para não sermos reduzidos ao silêncio."70 Os Pais não começaram suas discussões sobre a Trindade com termos técnicos, mas terminaram com eles. Os termos serviam como marcadores do que havia sido demonstrado nas Escrituras e explicado de acordo com o raciocínio piedoso deles. Embora esse ponto seja um tanto óbvio, ele merece ser enfatizado. Os termos implantados ainda não possuíam significado suficiente para confessar a Trindade. Os termos tinham de ser cristianizados, redefinidos e adequadamente empregados de acordo com o testemunho das Escrituras. Mesmo que possamos rastrear a origem desses termos até as escolas filosóficas antigas, não conseguiremos entender seu uso pelos teólogos pró-nicenos se restringirmos seu significado a essas escolas antigas. Além disso, os termos técnicos só funcionam quando concordamos em usá-los da mesma forma. Se alguns usam hypostasis como ousia e outros usam esses termos para se referir a duas coisas diferentes, a confusão surge necessariamente e as Escrituras são distorcidas. Como luteranos, somos muito bons em transmitir o significado bíblico de palavras como pecado, graça, fé e justificação. Nossos ouvidos são treinados para detectar o menor desvio do significado das Escrituras no uso dessas palavras.

Quando surge uma confusão, não hesitamos em esclarecer melhor essas palavras, mesmo que isso signifique afastar-se da formulação exata das Escrituras (por exemplo, justificado somente pela fé ou distinguindo justificação objetiva e subjetiva). Apesar da confusão resultante, os Pais reunidos em Nicéia tentaram fazer a mesma coisa com a palavra homoousios. Atanásio explica: secundária. A ousia primária se referia ao indivíduo portador de uma essência, e a ousia secundária se referia à essência que torna o indivíduo o que ele é. Com isso em mente, seria possível que alguém familiarizado com Aristóteles dissesse que a Trindade é "três ousiai e uma ousia", e quisesse dizer com isso "três hipóstases e uma ousia", como a fórmula acabaria sendo declarada. Orígenes é um exemplo de alguém que falou assim.

70 Augustine The Trinity 5.9 (WSA I/5, 196). Cf. Augustine Homilies on the Gospel of John 39.3 (WSA III/12, 588).

399

Mas, uma vez que a geração do Filho a partir do Pai é diferente daquela que pertence à natureza dos seres humanos e ele não é apenas semelhante [homoios], mas também inseparável da essência [ousia] do Pai e ele e o Pai são um, como ele mesmo disse (Jo 10.30), e a Palavra está sempre no Pai e o Pai na Palavra (Jo 10.38) - assim como o brilho em relação à luz (pois é isso que a frase significa) - o conselho, entendendo tudo isso, escreveu apropriadamente "um em essência" [homoousion].71

Os bispos reunidos em Nicéia usaram a palavra homoousios ou consubstancial para transmitir o significado das Escrituras. O Pai e o Filho, que são eternamente distintos um do outro, são da mesma substância. O que quer que signifique para o Pai ser Deus, também significa para o Filho.72 Cada palavra bíblica usada e cada texto produzido para transmitir esse significado foi distorcido por aqueles que rejeitaram a coigualdade e a coeternidade do Pai e do Filho. A palavra que expôs seu falso ensino era homoousios, e por isso foi usado.73 Devemos nos preocupar com o fato de que essa palavra não vem das Escrituras? Atanásio responde: No entanto, que seja conhecido por qualquer um que deseje aprender que, mesmo que as palavras não sejam como tais nas Escrituras, ainda assim, como foi dito antes, elas contêm 71

Athanasius De Decretis 20 (Anatolios, 198). Cf. Basil of Caesarea Letter 52 (LCL, 1:327–37).

72 Basil of Caesarea Letter 226 (LCL, 3:337): "Aquele sínodo santo e amado por Deus [sustentou] que tudo o que o Pai é em substância deve ser entendido também do Filho. Pois assim explicaram aqueles mesmos homens quando disseram: 'Luz da Luz'".

73 Os estudiosos continuam discutindo sobre como essa palavra surgiu nos debates em Nicéia. Uma possibilidade pode ser encontrada em Ambrósio de Milão. Segundo ele, no Concílio, Eusébio de Nicomédia afirmou: "Se de fato chamarmos o Filho de Deus de 'incriado' , estaremos no caminho de confessar que ele é homoousios com o Pai". Os bispos podem ter gravitado em torno dessa palavra por causa da forte aversão a ela por parte daqueles que se reuniam em torno da posição teológica de Ário. Para esse argumento e a citação de Ambrósio, veja Rowan Williams, Arius: A Heresy and Tradition, 2d ed. (Londres: SCM, 2001), 68-70.

400

o sentido (dianoian) das Escrituras e expressam esse sentido e o comunicam àqueles que têm ouvidos íntegros e ouvem a piedade.74

Como regra geral, as melhores palavras disponíveis para transmitir o significado das Escrituras vêm das Escrituras. A persistência do falso ensino, entretanto, exige que os fiéis esclareçam o significado da Escritura apelando para outras expressões ou palavras como justificação objetiva ou homoousios.75 Acima, vimos como Basílio de Cesaréia expressou a identidade e a distinção das pessoas refletindo sobre o ensino das Escrituras. Basílio também defendeu ousia e hipostase para expressar o que as pessoas tinham em comum e o que as distinguia.76 Confessamos corretamente as pessoas da Trindade quando acrescentamos o particular, a propriedade distintiva, ao que é comum. Por exemplo, quando entendemos a ousia como comum e distinguimos a paternidade como particular, combinamos essas coisas e confessamos "Creio em Deus Pai". Da mesma forma, quando distinguimos a filiação como o particular, confessamos "Creio em Deus, o Filho".77 Gregório de Nissa elaborou o insight de Basílio em uma breve carta a seu irmão Pedro. Ele começa com um exemplo de nossos assuntos cotidianos e ensaia os insights que observamos acima. Quando usamos o termo geral "homem", nós o usamos para indicar a natureza comum de todas as pessoas. O termo não indica Pedro mais do que indica André, João ou Tiago. Pedro é "homem" da mesma forma que André é "homem". Ambos são humanos, e um não é mais humano do que o outro.

74

Athanasius De Decretis 21 (Anatolios, 199). Cf. Martin Luther, On the Councils and the Church, 1539 (AE 41:83; WA 50:572.20–26):"É certamente verdade que não se deve ensinar nada fora da Escritura com relação a assuntos divinos, como Santo Hilário escreve em Sobre a Trindade, Livro I[.18], o que significa apenas que não se deve ensinar nada que esteja em desacordo com a Escritura. Mas que não se deve usar mais ou outras palavras além daquelas contidas na Escritura - isso não pode ser seguido, especialmente em uma controvérsia e quando os hereges querem falsificar as coisas com truques e distorcer as palavras da Escritura."

75 Cf. Chemnitz, Loci Theologici 1:96–98.

76 Basil of Caesarea Letter 246 (LCL, 3:401).

77 Basil of Caesarea Letter 246 (LCL, 3:403).

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Os nomes Pedro e André, por outro lado, significam não a natureza comum, mas uma expressão individual dessa natureza. Distinguimos Pedro de André identificando certas propriedades individuais que pertencem a um e não ao outro. Gregório aplica termos técnicos ao que ele observa aqui. Usamos a palavra hipóstase para indicar aquilo de que se fala individualmente.78 A palavra "homem" designa algo geral, algo abstrato. Nesse caso, "homem" indica o tipo de ser (ousia) de que estamos falando, mas não qualquer instância particular desse ser. A hipóstase serve a esse propósito. A hipóstase expressa as propriedades individuais, as particularidades de Pedro, André, João ou Tiago.

Nesse ponto, Gregório se volta para a Trindade. Se pegarmos essa compreensão básica do que é comum e do que é particular em nossos assuntos e aplicarmos essas percepções ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, expressaremos melhor nossa fé na Trindade.79 O que quer que pensemos da ousia do Pai, devemos pensar também no Filho e no Espírito Santo. Como nunca podemos chegar a um "conceito" ou conhecimento exaustivo do ser de Deus, Gregório usa deliberadamente termos negativos para ilustrar seu argumento. O princípio do "incompreensível" e "incriado" permanece um e o mesmo, quer consideremos o Pai, o Filho ou o Espírito Santo.80 Um não é mais incompreensível e incriado e outro menos.81 Gregório volta-se, em seguida, para a distinção de pessoas conforme apresentada pela Escritura.82 Ele usa o exemplo de como as coisas boas vêm a nós por Deus. As Escrituras dizem que o Espírito Santo "opera todas as coisas em 78

Gregory of Nyssa Letter 35, 3a (Silvas, 251).

Gregory of Nyssa Letter 35, 3e (Silvas, 252).

80 Gregory of Nyssa Letter 35, 3f (Silvas, 252).

81 O Credo Atanasiano incorpora esse ponto de Gregório. Depois de declarar que a Divindade do Pai, Filho e Espírito Santo é uma, a glória é igual e a majestade é coeterna, o Credo declara (TLH, p. 53): "Tal como o Pai é, tal é o Filho, e tal é o Espírito Santo. O Pai é incriado, o Filho é incriado e o Espírito Santo é incriado. O Pai é incompreensível, o Filho é incompreensível e o Espírito Santo é incompreensível. E ainda assim não são três Eternos, mas um Eterno. Como não há três Incriados nem três Incompreensíveis, mas um Incriado e um Incompreensível".

82 Gregory of Nyssa Letter 35, 4 (Silvas, 252).

79

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todos" e distribui a cada um como Ele quer (1 Co 12.6,11). Se perguntarmos ainda se essas coisas boas vêm somente do Espírito Santo, as Escrituras nos direcionam ao Filho, "o Deus unigênito" (Jo 1.18), por meio de quem todas as coisas vieram a existir (Jo 1.3). Além disso, esse Filho, que é unigênito, vem do Pai, que não tem geração nem origem. Isso significa que as coisas boas distribuídas pelo Espírito Santo vêm do Pai por meio do Filho.

Gregório faz duas observações sobre a maneira como as Escrituras descrevem as atividades das três pessoas. Primeiro, distinguimos as pessoas pela maneira como as Escrituras revelam sua origem. O Espírito procede do Pai, mas não de forma a excluir o Filho; o Filho unigênito procede do Pai; o Pai sozinho não tem nenhuma causa.83 Essas marcas distintivas identificam as três pessoas para nós, e a palavra hipostase designa aquilo que possui a marca distintiva. Em segundo lugar, conhecemos o Filho somente pelo Espírito Santo e o Pai somente pelo Filho.84 Conhecemos as pessoas de acordo com sua ordem (taxis), a ordem de como elas estão em relação umas às outras (ordem do ser) e a ordem pela qual elas nos levam a conhecê-las e a participar de sua vida divina (ordem do conhecer).85 Gregório de Nazianzo segue um curso semelhante, mas com uma ênfase diferente. Ele enfatiza a importância de reconhecer o que é um em Deus e o que são três: "A divindade é uma em três, e os três são um aqueles três em quem a divindade existe ou, para ser mais preciso, que são a divindade."86 As Escrituras deixam claro para nós que o Pai é Pai e não tem fonte; o Filho é Filho e vem do Pai por geração; o Espírito é verdadeiramente Espírito e vem do Pai por procissão.87 Além disso, o Pai 83

Gregory of Nyssa Letter 35, 4 (Silvas, 253).

Cf. Augustine The Trinity VI.9 (WSA I/5, 211): "É certo que não é fácil ver como se pode falar do Pai sozinho ou do Filho sozinho, uma vez que o Pai está sempre e inseparavelmente com o Filho e o Filho com o Pai; não que ambos sejam Pai ou ambos Filho, mas que eles estão sempre um no outro e nenhum está sozinho."

85 Gregory of Nyssa Letter 35, 4 (Silvas, 254).

86 Gregory of Nazianzus Or. 39, 11 (Daley, 133).

87 Gregory of Nazianzus Or. 39, 12 (Daley, 133).

84

403

é sempre Pai, o Filho é sempre Filho e o Espírito é sempre Espírito. Suas propriedades distintivas são inalteráveis e incomunicáveis. A paternidade do Pai pertence somente a Ele; a filiação do Filho, a Ele; e a procedência do Espírito, somente a Ele. O que é importante para os fiéis é que eles compreendam corretamente essa unicidade e essa profundidade da Trindade. Gregório escreve, Quando eu falar de Deus, deixem-se envolver por um lampejo daquela luz que é uma só e três: três em propriedades, ou de fato em hipóstases, se quisermos chamá-las assim, ou de fato em "pessoas" - pois não nos envolveremos em uma batalha sobre nomes, desde que as sílabas apontem para a mesma noção - e uma com relação ao conceito de substância, ou de fato divindade.88

Gregório expressa tudo isso em um discurso sobre o batismo.

Aqui os fiéis aprendem a gramática da fé da igreja, a maneira pela qual podemos confessar e orar a verdade da identidade bíblica de Deus à medida que passamos a participar de Sua vida trina. Os crentes passam a conhecer o Filho pelo Espírito Santo e, ao conhecer o Filho, conhecem o Pai. Esses três são distinguidos, de acordo com as Escrituras, por suas propriedades pessoais, e expressamos isso com a palavra hipóstase ou pessoa, qualquer que seja a palavra que melhor expresse para nós a revelação de Deus sobre Si mesmo.

Os três capadócios procuraram padronizar a maneira pela qual a igreja confessava sua fé na Trindade a fim de expressar o testemunho das Escrituras e proteger essa verdade de falsos ensinamentos. Eles empregaram ousia para marcar aquilo que era comum aos três e hipostase para marcar as propriedades que distinguiam os três. Em Deus havia uma única e infinita realidade, substância ou natureza e, no centro dessa única realidade, três hipóstases irredutíveis.89 A igreja incorporaria esse vocabulário em suas obras dogmáticas e credos. Os fiéis modelariam seu discurso na adoração e na oração com esses termos, e os pastores 88

Gregory of Nazianzus Or. 39, 11 (Daley, 132).

Brian Daley, “Introduction,” Gregory of Nazianzus (New York: Routledge, 2006), 46.

89

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pregariam de acordo com eles. Com o Credo Atanasiano, eles confessaram a unidade na Trindade e a Trindade na unidade; confessaram três pessoas e um só Deus e Senhor, sem confundir as pessoas nem dividir a substância.

E quanto à confusão expressa acima feita por Agostinho?

Embora a maneira da igreja tratar sobre a Trindade procure expressar o comum e o particular de uma maneira fiel às Escrituras, a linguagem ainda permanece obscura e tensa. Os termos têm um uso e um significado únicos quando aplicados à Trindade.90 Embora "essência", "substância" e "natureza" possam ser usadas tanto para Deus quanto para o homem, eles têm significados diferentes. Isso é verdadeiro para hipóstase ou pessoa.

Na linguagem comum, três pessoas são três seres humanos separados, e cada um individualmente tem três de tudo o que diz respeito a ser humano, por exemplo, poder, vontade, trabalho etc. Aqui entramos no mistério que é a Trindade. Pai, Filho e Espírito Santo são três pessoas com uma essência, um poder, uma vontade e um trabalho na criação. Sua essência é uma só, e essa essência única pertence total e completamente, verdadeira e realmente, sem divisão ou separação, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. A palavra "pessoa" também funciona de forma diferente.

As noções modernas de personalidade enfatizam a autoconsciência e a autodeterminação. A liberdade de afirmar o eu e a própria individualidade estão no cerne do que muitos pensam que significa ser uma pessoa autêntica hoje.91 Quando esse entendimento moderno de pessoa é aplicado à Trindade, acabamos com algo parecido com o tri teísmo. Por essa razão, nossas Confissões declaram explicitamente que a palavra "pessoa" deve ser usada como os Pais a usaram e não como a cultura predominante o faz.92 Acima, observamos que Agostinho usou essa palavra "pessoa" não tanto porque ela expressava o mistério dos três, mas para não ficar em silêncio. Lutero diz algo bastante semelhante. Ele escreve: 90

Pieper, Christian Dogmatics 1:410–13; Chemnitz, Loci Theologici 1:100–103.

Para uma discussão mais aprofundada sobre as noções modernas de pessoa no pensamento trinitário contemporâneo, consulte a Conclusão.

92 CA I.3–4.

91

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Considerando que Cristo nasceu do Pai, ele deve ser uma pessoa distinta do Pai. Você pode usar o termo que quiser, nós usamos o termo pessoa. Percebemos, é claro, que nossa terminologia é inadequada e, na verdade, é apenas uma gagueira. Mas não podemos fazer justiça a essa verdade, pois não temos um termo melhor.93

A linguagem técnica da igreja tinha o objetivo de marcar o que as Escrituras diziam sobre a unicidade e a espessura de Deus. Os Pais ou reformadores nunca consideraram a linguagem totalmente satisfatória, mas também nunca a consideraram dispensável. O imperador Graciano disse a Ambrósio: "Falamos sobre essas coisas não da maneira que devemos, mas da maneira que podemos."94 Reconhecemos o mesmo quando usamos esses termos e, com Agostinho e Lutero, continuamos a usá-los para que não fiquemos em silêncio e surja a confusão.

Os insights dos Pais sobre como distinguir as pessoas, a distinção entre essência e relação, e a terminologia técnica usada para marcar o Pai, o Filho e o Espírito Santo como um e três, chegaram aos nossos pais luteranos por meio dos teólogos medievais. Embora critiquemos, com razão, elementos dessa herança medieval, não há como entender os compromissos trinitários de nossos pais luteranos à parte dos trabalhos piedosos dos escolásticos. O próximo capítulo mostrará essas duas coisas: os padrões tradicionais de discurso usados para discutir a Trindade por nossos pais luteranos e sua dívida com os teólogos medievais.

93

“On Trinity Sunday, first sermon, 1535,” 11 in Luthers Sämtliche Schriften, ed.

J. G. Walch (St. Louis: CPH, 1904), 669; quoted in Francis Pieper, Christian Dogmatics 1:409.

94 Essa é a paráfrase de Chemnitz do comentário de Graciano a Ambrósio.

Chemnitz, Loci Theologici 1:102. Cf. Ambrósio, Ep. 1, em Saint Ambrose Letters (Fathers of the Church, 5): "Você [Graciano] observou, além disso, que, sendo fraco e frágil, não pode louvá-Lo de modo a exaltar a Divindade com suas palavras. Mas você O pregará de acordo com sua capacidade, não de acordo com o que a Divindade garante."

406

CONTEÚDO

13 DISTINGUINDO AS PESSOAS: REFLEXÕES MEDIEVAIS E DA REFORMA

A gramática e o padrão do discurso trinitário descritos no capítulo anterior chegam ao luteranismo por meio dos escolásticos medievais. O engajamento luterano com o pensamento trinitário medieval resulta tanto em uma dívida quanto em uma distância crítica dos padrões medievais de discurso e das formas de conceber a Trindade. Lutero e nossos dogmáticos conheciam as regras da lógica e os padrões semânticos explorados pelos escolásticos. Eles se moviam facilmente dentro desse ambiente intelectual e empregavam as percepções técnicas dos escolásticos quando necessário e útil. Lutero nunca deixou de ensinar esses conhecimentos em sala de aula. Os dogmáticos luteranos e os livros didáticos de dogmática dos séculos XIX e XX mantiveram esses insights medievais em suas próprias discussões sobre a Trindade.1 A partir dessa perspectiva, a teologia trinitária luterana permanece firmemente comprometida com a maneira da igreja de confessar a Trindade.

Embora a teologia trinitária luterana deva muito aos escolásticos, os luteranos receberam essa tradição de forma crítica. Duas questões amplamente discutidas durante o período medieval ilustram bem a recepção equilibrada de Lutero e dos dogmáticos: se as relações de oposição (relationes oppositiae) distinguem as pessoas da Trindade e se em Deus a essência gera essência (essentia generet essentiam)? Embora essas perguntas sejam técnicas, elas lançam uma luz considerável sobre como 1

Por exemplo, John William Baier, Compendium Theologiae Positivae, ed. C. F. W. Walther (St. Louis: CPH, 1879), I, §29–47; Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:406–63; Adolf Hoenecke, Evangelical Lutheran Dogmatics, trans. James Langebartels and Richard Krause (Milwaukee: Northwestern Publishing House, 2009), 2:49–209.

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falar e pensar corretamente sobre a identidade bíblica de Deus. Nossos dogmáticos luteranos, especialmente Johann Gerhard e Abraham Calov, consideraram o ensinamento sobre relationes oppositiae útil para distinguir as pessoas da Trindade e para explicar o ensinamento bíblico sobre o filioque. Depois de apresentar o que os escritores medievais tinham a dizer sobre as relações de oposição, vou me voltar para Gerhard e Calov e mostrar como eles incorporaram essas percepções em suas discussões sobre a Trindade, analisando particularmente a questão do filioque.

A segunda pergunta, sobre se a essência pode gerar, apresenta problemas. O Concílio de Latrão IV (1215) não respondeu a esta pergunta, mas condenou qualquer um que afirmasse algo contrário. A partir dessa perspectiva, a questão foi decidida pela igreja medieval. Lutero estava ciente dessa história e rejeitou a decisão do Concílio. Sua rejeição ao Concílio de Latrão IV apenas alimentou ainda mais as polêmicas com os teólogos romanos dos séculos XVI e XVII que eram contrários à sua doutrina trinitária.2 A seguir, analisarei brevemente a questão do Concílio de Latrão IV e, em seguida, abordarei a surpreendente afirmação de Lutero sobre essentia generet essentiam.3 A resposta de Lutero especialmente se concentra em como a linguagem é articulada e na maneira pela qual nossas palavras tratam o assunto. Os argumentos semânticos desempenham um papel importante na teologia trinitária. Como o Credo Atanasiano nos impressiona, precisamos saber o que podemos e o que não podemos dizer sobre a Trindade. A discussão de Lutero sobre essa questão específica, algo que saiu da sala de aula de Wittenberg e, portanto, algo ensinado por Lutero para futuros pastores, nos ensina lições importantes sobre como proclamamos através de nossos momentos de adoração e de oração a identidade bíblica da Trindade.

2

Para algumas críticas feitas contra os compromissos trinitários de Lutero pelos católicos romanos, veja Johann Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §3 (ed.

Cotta, 185); Gerhard, Confessionis Catholicae (Jena, 1634), II, 501.

3 A afirmação de Lutero forçou os dogmáticos a explicar o que Lutero quis dizer quando afirmou essentia generet. Veja Johann Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §176-78 (ed. Cotta, 291); Leonard Hutter, Loci Communes Theologici (Wittenberg, 1619), 104-5; e Jesper Rasmussen Brochmand, Universae Theologiae Systema (Ulm, 1638), I, 144.

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RELAÇÕES DE OPOSIÇÃO

A maior divisão entre os pensadores sobre a Trindade do final da Idade Média tinha a ver com o fato de as pessoas serem distinguidas por causa da emanação ou da relação.4 Eles perguntavam, por exemplo, se o Pai é Pai porque Ele gera ou se Ele gera porque é o Pai.5 Se você afirma que Ele é Pai porque gera, você coloca a ênfase na geração e mantém em destaque a emanação para a distinção das pessoas.6 Boaventura defendeu essa visão, e ela se tornou padrão para a maneira franciscana de conceber a Trindade. A outra visão vem de Agostinho e foi defendida por Tomás de Aquino. Para Tomás, o Pai gera porque Ele é o Pai. Essa forma de conceber a Trindade ficou associada aos dominicanos. A discordância entre os dominicanos e os franciscanos partiu de um grande embate sobre a estrutura básica do pensamento trinitário.7 Eles concordavam, por exemplo, que havia duas emanações em Deus (geração e inspiração), três hipóstases (Pai, Filho e Espírito Santo) e três propriedades pessoais (paternidade, filiação e procedência).8 A discordância era sobre como 4

A apresentação mais clara dessas duas formas de conceber a Trindade é feita por Russell Friedman, Medieval Trinitarian Thought from Aquinas to Ockham (Cambridge: Cambridge University Press, 2010). Para uma discussão mais detalhada, consulte Russell Friedman, Intellectual Traditions at the Medieval University, 2 vols. (Leiden: Brill, 2012).

5 Bonaventure, Commentarius in I Librum Sentiarum, d. 27, p. 1, a.un., q. 2 in Opera Omnia, (Quaracchi, 1882), 1:468–69; Thomas Aquinas, Scriptum super libros Sententiarum, lib. 1, d. 27, q. 1, a. 2, ed. R. P. Mandonnet (Paris: P. Lethielleux, 1929), 650–52.

6 O termo emanação poderia ser usado para todas as três pessoas no seguinte sentido. O Pai é inassimilável, o que significa não emanado; a emanação do Filho é a geração; a emanação do Espírito é a inspiração. As três pessoas são emanacionalmente distintas, mas essencialmente idênticas. Ver Friedman, Medieval Trinitarian Thought, 17.

7 Friedman enfatiza que a disputa entre Boaventura e Tomás tinha a ver com a maneira como eles "concebiam" as propriedades pessoais, como emanações ou relações, e não com o que as propriedades são. Eles concordavam com as propriedades. Ver Friedman, Medieval Trinitarian Thought, 19-20.

8 Cf. Boaventura, Breviloquium, I, 3, em Works of St. Dominic Monti (St. Bonaventure, NY: The Franciscan Institute, 2005), 33-36. Para Tomás, veja as referências abaixo. A essa lista eles também acrescentariam quatro relações e cinco noções ou características.

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organizar essas verdades logicamente. Boaventura acha que faz mais sentido passar da emanação para a pessoa e para a relação, ou seja, geração, Pai, paternidade.9 A geração estabelece o Pai como Pai e o Filho como uma pessoa distinta do Pai. Somente depois disso é que temos as relações opostas de paternidade e filiação, relações dependentes das pessoas, que, por sua vez, dependem da emanação, uma gerando e a outra sendo gerada. Tomás achava que essa forma de pensar não fazia sentido.

Os agentes agem. Você não pode ter o "ato" da geração precedendo o agente ou, nesse caso, a pessoa divina. Essa forma de pensar é bem o contrário, conceitualmente falando.

Embora os dominicanos e os franciscanos discutissem longamente sobre como deveríamos conceber as pessoas que estão sendo constituídas, seja por relação ou emanação, e isso acabou levando-os a posições que não eram tão facilmente conciliáveis,10 eles concordavam que as propriedades pessoais propriamente ditas são as mesmas que as pessoas umas das outras.11 Nossos pais luteranos mostraram pouco 9

Bonaventure, Disputed Questions on the Mystery of the Trinity, in Works of Saint Bonaventure, vol. 3, ed. Zachary Hayes (St. Bonaventure, NY: The Franciscan Institute, 2000), 39–43; Friedman, Medieval Trinitarian Thought, 25.

10 Os franciscanos fundiram seu relato de emanação da distinção pessoal com uma forte visão do modelo psicológico da Trindade. A segunda metade de The Trinity, de Agostinho, investigou a arquitetura e as atividades da mente humana a fim de esclarecer a dimensão e a unidade da Trindade. Os franciscanos e até mesmo os dominicanos, em menor escala, usaram o modelo psicológico para explicar a distinção das pessoas divinas. Por exemplo, o Filho como Verbo foi identificado com o intelecto e o Espírito Santo foi identificado com a vontade. A emanação do Filho era por natureza ou intelecto e a emanação do Espírito era por vontade. A forte ênfase do modelo psicológico falha em aspectos significativos. Ela interpreta a emanação de perto com atributos divinos e, portanto, compromete o que a igreja sempre afirmou sobre a simplicidade divina. Em segundo lugar, ele retém apenas com dificuldade o ensino bíblico sobre o filioque e a inseparabilidade do Filho e do Espírito. Nem a ênfase forte nem a fraca dessa maneira de pensar sobre a Trindade oferece muito. Embora Lutero e os dogmáticos luteranos ocasionalmente façam referência a ela, eles hesitam em usá-la de qualquer construtiva. Para uma explicação detalhada do modelo psicológico usado franciscanos e dominicanos, veja Friedman, Medieval Trinitarian Thought, 50-132.

11 Bonaventure, Disputed Questions, 42–43.

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interesse no debate sobre relação versus emanação. Gerhard achava que os escolásticos se preocupavam demais com essa questão e não conseguiam chegar a nenhum acordo entre si.12 Nossos pais luteranos, no entanto, acolheram o insight de que as propriedades pessoais estão em oposição umas às outras e fornecem uma maneira significativa de distinguirmos as pessoas. Três nomes aparecem com frequência na discussão dessa questão pelos dogmáticos: Boécio, Anselmo e Tomás de Aquino.

Em seu De Trinitate, Boécio esclarece a maneira pela qual a relação deve ser entendida quando usada em relação a Deus. Ele argumenta que a "relação" predica as circunstâncias de uma coisa.13 Quando duas pessoas estão ao lado uma da outra, dizemos que uma pessoa está à esquerda da outra e a outra à direita da outra. A posição à esquerda ou à direita descreve a circunstância do relacionamento entre elas. A circunstância indica uma relação "real", mas não afeta a essência das duas pessoas.

Quando entendida dessa forma, a relação diz algo real sem alterar, mudar ou perturbar a essência de alguma.14 As relações, portanto, não são acidentes, não são algo adicionado à essência ou herdado da essência (contra Aristóteles). Boécio usa essa percepção para entender melhor o que as Escrituras proclamam sobre as três pessoas divinas, suas relações pessoais e a unidade essencial do único Deus verdadeiro. A igreja confessa que o Pai está relacionado ao Filho por Sua relação de paternidade e o Filho ao Pai por filiação. Paternidade e filiação são as propriedades pessoais ou marcas distintivas que separam o Pai e o Filho pessoalmente, não essencialmente.15 As Escrituras nos dizem que essas são relações reais: o Pai é sempre Pai; o Filho é sempre Filho; o Pai nunca é Filho e o Filho nunca é Pai. Eles são distintos relacionalmente, mas unidos essencialmente. Boécio coloca isso de forma sucinta: "A substância 12

Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §42 (ed. Cotta, 201). Gerhard faz um resumo preciso do que Boaventura e Tomás pensavam sobre essa questão. É revelador, eu, que essa é a única vez, até onde posso dizer, que Gerhard menciona Boaventura em seu trabalho de três partes sobre a Trindade (Locus 4/1, 4/2, 4/3). Por outro lado, ele cita Tomás extensivamente por toda parte.

13 Boethius De Trinitate V (LCL, 25–27).

14 Boethius De Trinitate V (LCL, 27).

15 Boethius Utrum Pater et Filius (LCL, 37).

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preserva a unidade, a relação multiplica a Trindade."16 Os teólogos medievais e nossos dogmáticos luteranos nunca se cansam de usar essa declaração de Boécio.

Uma declaração ou regra igualmente influente vem de Anselmo.

Em seu tratado sobre a procedência do Espírito Santo, Anselmo ensaia uma série de maneiras pelas quais os fiéis tratam sobre a Trindade.

Dizemos que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus.

Não dizemos, entretanto, que a mesma coisa é designada por Deus e por Pai, Filho ou Espírito Santo. Nas expressões acima, Deus se refere à sua essência compartilhada; os nomes se referem às suas relações.17 Também dizemos que o Filho é Deus a partir de Deus Pai por geração; o Espírito Santo é Deus a partir de Deus Pai por procedência. Anselmo insiste nesse ponto. Dizemos que o Filho é de Seu Pai, de Deus que é Pai, mas não dizemos isso dessa forma para o Espírito Santo. O Espírito Santo não vem de Deus como Seu Pai (o Espírito não é outro filho), mas de Deus que é Pai.18 Anselmo continua com muitos outros exemplos do que podemos dizer e do que não podemos dizer. Seu argumento é que o discurso dos fiéis deve refletir o que Deus é como um e quem Deus é como três, distinguindo corretamente entre o que é o quem na forma como nossas palavras são usadas. Os fiéis distinguem diligentemente entre a essência e as pessoas em seu discurso, para que não dividam a unidade ou confundam as pessoas. Anselmo resume esse insight: “A unidade nunca deve perder sua consequência, exceto quando uma oposição relacional se interpõe no caminho.”19 A igreja abreviaria a declaração de Anselmo na seguinte regra: “Em Deus tudo é um sendo que não há oposição de relação."20 As pessoas da Trindade são 16

Boethius De Trinitate VI (LCL, 28, 30): “Ita igitur substantia continent unitatem, relatio multiplicat trinitatem.”

17 Anselm, On the Procession of the Holy Spirit, in Anselm of Canterbury: The Major Works, ed. Brian Davies and G. R. Evans (Oxford: Oxford University Press, 1998), 390.

18 Anselm, Procession of the Holy Spirit, 391.

19 Anselm, Procession of the Holy Spirit, 393.

20 O Concílio de Florença, do século XV, cita a regra dessa forma. Ver Decrees of the Ecumenical Councils, ed., Norman P. Tanner (Washington, D. C.: Gegetown University Press, 1990), 1:571.1-2. Norman P. Tanner (Washington, D. C.: 412

corretamente distinguidas por essas relações opostas, e é isso que governa o discurso dos crentes.

Tomás de Aquino usa essas percepções de Boécio e Anselmo em sua apresentação própria das pessoas divinas. Tomás enfatiza que essas relações são reais. Elas não são algo acidental, algo inerente à substância divina. Tampouco são meramente formulações lógicas e conforme nossa maneira de falar e entender as coisas. Tampouco dependem de algo fora de Deus. Essas relações reais são intrínsecas às pessoas divinas e, portanto, eternas. Tomás deseja evitar qualquer sugestão de sabelianismo em sua discussão sobre as relações divinas.21 Para fazer isso de forma satisfatória e para evitar as armadilhas da insistência de Aristóteles de que as relações são acidentais, Tomás argumenta que a relação e a essência não diferem uma da outra quando se discute uma pessoa em particular. O argumento de Tomás é sutil. Há duas maneiras de considerar a relação nas pessoas divinas. Quando a relação é dita em comparação com a essência, não há distinção real, pois estamos comparando a relação com ela mesma.

Ou seja, não existe distinção entre o Filho como Filho e o Filho como Deus quando estamos falando apenas do Filho. A única distinção seria uma distinção lógica feita por nós para facilitar a discussão sobre o Filho.

Neste ponto, Tomás insiste para que não pensemos que as relações são inerentes à essência. Não há composição de relação e essência. É por isso que devemos dizer, argumenta Tomás, “em Deus, relação e essência não diferem uma da outra, mas são uma e a mesma coisa”.22 Georgetown University Press, 1990), 1:571.1-2.

Cf. Thomas Aquinas ST I.28.1 sed contra and ST I.28.3 sed contra.

22 Tomás de Aquino ST I.28.2c. O argumento de Tomás expande a observação de Agostinho: "Não é uma coisa que Deus seja e outra que ele seja uma pessoa, mas [ambos são] completamente a mesma coisa" (The Trinity, VII.11, WSA I/5, 228).

Cf. Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and On the Trinity, trans. Louis: CPH, 2007), Exegesis II, §134, 137-38: "Não afirmamos que a essência divina seja realmente distinguida das pessoas. Em vez disso, afirmamos que a essência de Deus e as três pessoas da Divindade são real e simplesmente uma. Portanto, não há composição aqui. As propriedades pessoais não multiplicam a essência divina nem são compostas porque uma e a mesma essência divina está no Pai, no Filho e no Espírito Santo - no Pai como não gerado, no Filho como gerado, no Espírito Santo como procedente ... A pessoa do Pai não é um composto de essência e propriedade pessoal como de duas coisas 21

413

Quando a relação é dita em relação a outra, que é a característica particular da relação, essas relações reais distinguem as pessoas para nós.

Quando a relação é expressa dessa maneira, argumenta Tomás, “não diz respeito à essência, mas sim ao seu termo oposto”.23 Dependendo de nossa perspectiva, a relação e a essência não diferem e, ainda assim, essas relações são distinguidas umas das outras.24 Nesse ponto, Tomás se volta para Boécio e cita sua declaração acima: "A relação multiplica a Trindade."

Tomás continua: "Se as relações não fossem realmente distinguidas umas das outras, não haveria trindade real em Deus, mas apenas uma trindade ideal, que é o erro de Sabélio."25 A partir daqui, Tomás mostra que, nas pessoas divinas, essas relações reais envolvem oposição e constituem as pessoas.26 Como demonstrado por Boécio e Aristóteles antes dele, a relação é sempre expressa em direção a outra (ad aliquid ou πρόϚ τι). Nesse sentido, podemos dizer que toda relação é realmente distinta daquilo a que se refere. Tomás expressa isso com a linguagem de "princípio" e "o que é do princípio", ou mais simplesmente declarado, sujeito e termo.27 realmente diversas, mas a essência e a incompreensão são realmente uma no Pai". Veja também Johann Andreas Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 326.

23 Thomas Aquinas ST I.28.2c. Sobre esse ponto, veja ainda Friedman, Medieval Trinitarian Thought, 13- 14.

24 Sobre esse ponto, veja também Thomas Aquinas ST I.39.1c: "Segue-se que em Deus a essência não é realmente distinta de pessoa; e ainda que as pessoas são realmente distinguidas umas das outras. Pois pessoa, como afirmado acima (ST I.29.4), significa relação como subsistente na natureza divina. Mas a relação como referida à essência não difere dela realmente, mas apenas em nosso modo de pensar; enquanto, como referida a uma relação oposta, ela tem uma distinção real em virtude dessa oposição. Assim, há uma essência e três pessoas". Cf. Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §60-61 (ed. Cotta, 205-6).

25 Thomas Aquinas ST I.28.3 sed contra.

26 Thomas Aquinas ST I.28.3-4 e ST I.30.2 ad 1. Tomás acrescenta ainda que há cinco noções ou atos nocionais que tornam as pessoas conhecidas: innascibilidade, paternidade, filiação, espiração e processão (ST I.32.2-3). Todas essas distinções eram conhecidas e usadas pelos dogmáticos luteranos. Para um exemplo particularmente claro, veja Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1 §46 (ed. Cotta, 202).

27 Thomas Aquinas ST I.28.4c e ST I.36.2c. Tomás explica isso de forma mais 414

Para nós, as relações opostas marcam e distinguem as pessoas quando sujeito e termo se correlacionam de tal forma que nenhuma pessoa é tanto sujeito quanto essência.28 Por exemplo, o Pai é sempre Pai e nunca Filho; o Filho é sempre Filho e nunca Pai. A propriedade que identifica o Pai é paternitas; a propriedade que identifica o Filho é filiatio. Como dizemos que o Pai é sempre Pai e nunca Filho, então nós também dizemos o Pai sempre possui paternitas e nunca filiatio; o Filho sempre possui filiatio e nunca paternitas. A geração eterna do Filho a partir do Pai mostra essas relações opostas e complementares. Quando o Pai é sujeito, o Filho é o termo de paternidade. Quando o Filho é sujeito, o Pai é o termo de filiação. Essas relações são básicas. O Pai sempre envolve o Filho; o Filho sempre envolve o Pai. Além disso, essas relações distinguem irredutivelmente o Pai e o Filho e mostram sua interdependência mútua.

O Pai nunca é o Filho; o Pai nunca é o sujeito da filiação, mas sempre a essência. O Filho nunca é o Pai; o Filho nunca é o sujeito da paternidade, mas sempre a essência. Assim também, o Pai nunca está separado de Seu Filho; o Filho nunca está separado de Seu Pai: sempre Pai, sempre Filho.

Igualmente esta estrutura se aplica ao Espírito Santo. O Espírito procede do Pai e do Filho, os quais, por sua vez, inspiram o Espírito Santo. A inspiração passiva do Espírito se opõe à inspiração ativa do Pai e do Filho.

Para Tomás, a oposição relativa expressa de forma útil a distinção entre as pessoas que subsistem.29 Os dogmáticos luteranos e os escritos dos manuais de dogmática dos séculos XIX e XX incorporam em suas discussões sobre a Trindade os insights descritos acima de Boécio, Anselmo e Tomás de Aquino.

Johann Gerhard emprega a terminologia acima dos Pais e dos escolásticos em suas três obras sobre a Trindade: Sobre os Três Elohim, Sobre Deus Pai e Seu Filho Eterno e Sobre o Espírito Santo. Gerhard usa a gramática completa na Summa Contra Gentiles IV.24.7-11.

Thomas Aquinas ST I.30.2c e ST I.32.2c. Sobre esse ponto e para o que se segue, veja Bruce Marshall, "The Defense of the Filioque in Classical Lutheran Theology", Neue Zeitschrift für systematische Theologie und Religionsphilosophie 44:2 (2002): 160-61.

29 Thomas Aquinas ST I.30.2c. Para uma discussão muito clara sobre a oposição relativa e a ação do Espírito procede do Pai e do Filho, ver Thomas Aquinas, Gospel of John, 2062-65 (Lander, WY: The Aquinas Institute, 2013), 2:311-13.

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do Credo Atanasiano para expressar a distinção de pessoas: "O Pai é alius, o Filho é alius e o Espírito Santo é alius, mas o Pai não é nem o Filho nem o Espírito Santo."30 Pai, Filho e Espírito Santo são um em essência, mas não em pessoa. O Pai não é nem o Filho nem o Espírito Santo. O que explica a distinção entre eles? Gerhard direciona seu leitor para as propriedades pessoais: A razão para essas distinções pessoais depende de propriedades distintas, noções ou relações de origem, pelas quais uma pessoa é verdadeira e realmente distinguida de outra. A propriedade pessoal do Pai é a não geração ou a irascibilidade o Pai não é feito de ninguém, nem criado nem gerado. A propriedade pessoal do Filho é gerada; o Filho é somente do Pai, não feito nem criado, mas gerado. A propriedade pessoal do Espírito Santo é a procedência; o Espírito Santo é do Pai e do Filho, não feito, nem criado, nem gerado, mas procedente.31

A propriedade pessoal do Pai é a não geração ou a sem geração que os escolásticos chamam de inascibilidade.32 Gerhard cita a definição de Basílio em Against Eunomius: "Não gerado significa não ter nenhuma

30

Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §46 (ed. Cotta, 202). Gerhard está bem ciente da linhagem patrística dessa distinção. Ele indica ao leitor dois textos de Agostinho e Gregório de Nazianzo. Agostinho escreve: "Ora, o Espírito é outro (alius) que o Pai e o Filho, pois não é nem o Pai nem Filho. Mas eu disse 'outro' (alius) e não 'algo outro' (aliud), porque é igualmente simples e é igualmente o bem imutável e coeterno." Agostinho De Civitate Dei 11.10 (WSA I/7, 11; CCSL 47, 330). Gregório de Nazianzo usou os termos gregos para mostrar como Cristo é uma coisa e outra (ἅλλο καὶ ἄλλο), mas não um sujeito e outro (ἄλλος καὶ ἄλλος). As pessoas da Trindade são (ἄλλος καὶ ἄλλος καὶ ἄλλος). Gregório de Nazianzo Ep. 101 (PG 37, 180). Da mesma forma, Lateranense IV escreveu: "Embora, portanto, o Pai seja uma pessoa (alius), o Filho outra (alius) e o Espírito Santo outra (alius), eles não são aliud (realidades diferentes)". Decretos dos Concílios Ecumênicos, 1:232, 14-15. Sobre tudo isso, veja Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §63 (ed. Cotta, 206-7).

31 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §46 (ed. Cotta, 202). As palavras em itálico são do Credo Atanasiano.

32 Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §5 (ed. Cotta, 224).

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outra fonte" (principium).33 O termo "não gerado" designa o modo único de existência do Pai. Não designa, como pensou Eunômio, Sua substância.34 Essa propriedade pessoal do Pai não pertence nem ao Filho, que é gerado do Pai, nem ao Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho.35 A propriedade pessoal do Filho é não criada e gerada; Ele é eternamente gerado pelo Pai.36 A propriedade pessoal do Espírito é a procedência; Ele procede inefavelmente do Pai e do Filho.37 As propriedades pessoais distinguem as pessoas umas das outras na unidade íntima de sua essência.38 Novamente Gerhard escreve: O Pai é outra pessoa [alia persona], que gera, e o Filho é outra pessoa [alia persona], que é gerado. O mesmo pode ser dito do Espírito Santo, que procede do Filho. Portanto, o Espírito Santo é outra pessoa [alia persona] que não o Filho, que, com o Pai, em uma só inspiração, gera o Espírito Santo.

Assim, o Espírito Santo é verdadeiramente outra pessoa [alia persona] que procede do Pai e do Filho.39

As propriedades pessoais e as relações de origem distinguem verdadeira e realmente as pessoas umas das outras: o Pai gera, o Filho é gerado, o Espírito procede do Pai e do Filho.

E quanto às relações de oposição? Para Gerhard, elas demonstram que Pai, Filho e Espírito Santo são "pessoas verdadeira e realmente distintas".40 Frequentemente, Gerhard cita Boécio ao discutir a 33

Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §5 (ed. Cotta, 224); Basil Against Eunomius 1.15 (Fathers of the Church, 114).

34 Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §5 (ed. Cotta, 225).

35 Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §5 (ed. Cotta, 224–25).

36 Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §153 (ed. Cotta, 283).

37 Gerhard, De Spiritu Sancto, Locus 4/3, §59 (ed. Cotta, 319). Gerhard discute longamente a procissão do Espírito a partir do Pai e do Filho. O que está em jogo na afirmação da procedência do Espírito é a ordem das pessoas e a distinção do Espírito do Filho: "Se for negado que o Espírito Santo procede do Filho, a ordem das pessoas da Trindade seria incerta e qualquer relação do Filho com o Espírito Santo seria absurda" (Locus 4/3, §82, 326).

38 Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §153 (ed. Cotta, 283).

39 Gerhard, De Deo Patre, Locus, 4/2, §182 (ed. Cotta, 292).

40 Gerhard, De Deo Patre, Locus, 4/2, §182 (ed. Cotta, 293). Gerhard já havia 417

oposição relativa. Boécio disse: "Somente a relação multiplica as pessoas da Trindade."41 A declaração de Boécio deve ser entendida no seguinte sentido: "A propriedade do Pai - a não geração - e a relação - a paternidade e a inspiração - estão realmente no Pai e, nesse sentido, o Pai é distinguido das outras pessoas pela relação.”42 Gerhard então cita Tomás: “Não há distinção real a menos que exista relativa oposição” (ST I.30.2c). Gerhard escreve: "Paternitas e filiatio são relações opostas; spiratio e processio são relações opostas; portanto, elas se referem a duas pessoas."43 As propriedades pessoais pertencem apenas a uma pessoa, constituem essa pessoa e a distinguem de outra. Mantemos a unidade de Deus e a distinção das pessoas quando seguimos a regra de Anselmo: "Em Deus tudo é um onde não há oposição de relação" (relationis oppositio).44 Gerhard e os outros dogmáticos apelam para as relações de oposição como uma forma útil de distinguir as pessoas e como uma forma de explicar o que a Escritura diz sobre o filioque. Como demonstramos no capítulo sobre a procedência do Espírito Santo, o ensino da igreja sobre o filioque deriva das Escrituras. Nossos dogmáticos luteranos se debruçam levantado brevemente a questão das relações opostas em sua discussão de como as pessoas são distintas, mas intimamente presentes na outra. Veja De Tribus Elohim, Locus 4/1, §29 (ed. Cotta, 197). Para discussões semelhantes, veja Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 336-37; BaierWalther, Compendium Theologiae Positivae, I, §43. Abraham Calov frequentemente apela para relações opostas. Veja, por exemplo, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1659), 3:108 (com referência ao Pai e ao Filho); 3:161 (com referência à Trindade); 3:836 (com referência ao filioque); 3:862 (com referência ao Filho e ao Espírito).

41 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §51 (ed. Cotta, 203). Embora ele nem sempre faça isso, Gerhard aqui acrescenta a palavra "sozinho" à declaração de Boécio. É provável que ele tenha obtido essa formulação de Tomás de Aquino ST I.40.2 sed contra.

42 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §51 (ed. Cotta, 203).

43 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §51 (ed. Cotta, 203).

44 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §51 (ed. Cotta, 203). Gerhard introduz pela primeira vez a regra de Anselmo em Locus 4/1 §43 (ed. Cotta, 201). Os dogmáticos nem sempre atribuem essa regra a Anselmo. Abraham Calov simplesmente a chama de regra dos escolásticos e Baier de regra dos teólogos.

Veja Calov, De Spiritu Sancto, em Systema Locorum Theologicorum 3:836; BaierWalther, Compendium Theologiae Positivae, I, §43.

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sobre o ensino bíblico antes de se voltarem para a oposição de relações como uma forma de pensar sobre a ordem das pessoas e o filioque.45 Os dogmáticos enfatizam que o Espírito é chamado de Espírito do Pai, Espírito de Deus, Espírito do Filho e Espírito de Cristo. Nunca vemos as Escrituras dizendo o Cristo do Espírito ou o Filho do Espírito. Por que as Escrituras não inverteriam essa relação? Todos os nossos dogmáticos concluem que isso tem a ver com a ordem das pessoas e seu relacionamento eterno entre si. Abraham Calov escreve: Assim como Ele é chamado de "o Espírito do Pai" (Mt 10.20) . . . e o Espírito "de Deus" (Is 44.3; Rm 8.9) porque Ele é soprado pelo Pai e vem do Pai por procedência eterna, assim também Ele é igualmente chamado de Espírito "do Filho" (Gl 4:6) e o Espírito "de Cristo" (Rm 8.9; Fp 1.19).

Ele é igualmente chamado de Espírito "do Filho" (Gl 4.6) e Espírito "de Cristo" (Rm 8.9; Fp 1.19) (...) porque é igualmente proveniente do Filho por procissão eterna e é soprado pelo Filho de Deus, assim como pelo Pai.46

Se a linguagem das Escrituras "do Pai" significa algo, então a linguagem "do Filho" e "de Cristo" também deve significar. O mesmo deve acontecer com a maneira como as Escrituras modelam nossa linguagem para expressar a ordem das pessoas. Vemos isso especialmente no batismo: o Pai é o primeiro, o Filho o segundo e o Espírito Santo o terceiro. Calov explica: Uma vez que o Pai não provém de ninguém, Ele é a primeira pessoa; o Filho, que provém do Pai, é a segunda; e, portanto, 45

Os argumentos padrão dos dogmáticos são bíblicos. Cf. Calov, De Spiritu Sancto, em Systema, 3:811. Calov diz que a procedêncua do Espírito é provada pela aceitação do testemunho bíblico de que o Espírito vem do Filho, Ele é chamado de Espírito do Filho, o Filho é consubstancial ao Pai (portanto, tudo o que o Pai tem, o Filho tem, Jo 16.14-15), pela ordem das pessoas trinitárias, do rio "procedente" do trono do Cordeiro (Ap 22.1), pela missão do Espírito Santo vinda do Filho e pelo julgamento unânime da igreja antiga. Exceto por esse comentário final, todas as provas de Calov vêm das Escrituras.

46 Calov, De Spiritu Sancto, in Systema, 3:812. Cf. Marshall, “Defense of the Filioque,” 158.

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o Espírito Santo é a terceira pessoa da Divindade na medida em que provém do Pai e do Filho. Se o Espírito Santo não fosse do Pai e do Filho, não haveria razão para que fosse chamado de terceira pessoa da Santíssima Trindade.47

O uso bíblico de genitivos na apresentação das pessoas e a ordem bíblica das pessoas revelam ainda mais a relação eterna que existe entre as pessoas, permitindo-nos distingui-las umas das outras. Tão logo que Calov se expressa dessa maneira, ele antecipa uma objeção. Qual ordem?

Será que ela implica em subordinação? Calov aborda essa preocupação de maneira semelhante à dos Pais. Ele escreve: "Se você considerar a essência e a natureza em si mesmas, então, não, não há ordem de antes e depois."

48 E, no entanto, a Escritura apresenta uma ordem das pessoas.

Novamente, a Escritura diz "Espírito do Pai" ou "Espírito do Filho", mas nunca "Pai do Espírito" ou "Filho do Espírito". Como devemos entender essa ordem? Ela claramente não se aplica à essência compartilhada por eles. Aqui há a maior unidade, a maior unicidade, de fato, como Calov diz em outro lugar, a unicidade deles é, como Lutero habilmente colocou, "uníssima", que seria traduzida como "um-ser" ou "a mais única unicidade".49 Não há unidade mais unificada ou nenhuma unicidade mais una do que a deles. Se a ordem não pertence à sua natureza ou essência, que é una, ela deve apontar para suas relações. Calov explica: "Portanto, a ordem deve ser encontrada nas pessoas por causa de suas características pessoais ou hipostáticas."50 Se a ordem diz respeito às relações, como devemos entender a ordem das pessoas? Isso significa, explica Calov, que o Pai é a Primeira Pessoa da Trindade porque Ele é o "principium fons", a fonte principal do Filho e do Espírito.51 O Filho é a Segunda Pessoa não por causa da origem - mas, enfatiza Calov, porque Ele está depois do Pai ou antes do Espírito 47

Calov, De Spiritu Sancto, in Systema, 3:813.

Calov, De Spiritu Sancto, in Systema, 3:813.

49 Calov, De Sancta Trinitate, in Systema Locorum Theologicorum 3:139. Cf. Martin Luther, Lectureson Genesis, 1535–45, “most perfect unity” (AE 1:12; WA 42:10.20–22), and “most single singleness” (AE 1:17; WA 42:14.10–11), 50 Calov, De Spiritu Sancto, in Systema, 3:813.

51 Calov, De Spiritu Sancto, in Systema, 3:837.

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temporalmente. O Espírito é a Terceira Pessoa porque Ele tem Sua origem tanto no Pai quanto no Filho. Embora o Filho seja do Pai, Ele não é menos do que o Pai em essência nem mais tarde do que o Pai no tempo.

O Pai e o Filho são coiguais e coeternos. Isso se aplica quando falamos sobre o Filho e o Espírito. O Espírito não é menor do que o Filho em natureza, majestade, dignidade, tempo ou qualquer outra coisa.52 A única diferença é a de origem e propriedade pessoal. Calov apela a Gregório de Nissa para defender seu ponto de vista: "Uma vez que o Espírito Santo ... depende do Filho com quem ele é compreendido inseparavelmente, e tem seu ser do Pai como causa [ut principio], de quem ele procede [procedit], a marca distintiva de sua hipóstase é que ele é conhecido depois do Filho [i.e., em termos de ordem] e com ele [post Filium et cum ipso]."53 Johann Gerhard ofereceu um argumento semelhante ao apresentado por Calov. Gerhard enfatizou a ordem das pessoas e o que essa ordem significa e não significa. Gerhard escreve: "O Pai é a primeira pessoa não por causa do tempo (as três pessoas são coeternas), nem por causa da natureza ou essência (elas são homoousios), nem por causa da dignidade (elas são de igual glória e majestade), mas por causa da origem ou produção."54 O Filho e o Espírito Santo existem a partir do Pai, mas não depois dele. O Pai é a Primeira Pessoa da Trindade "porque Ele não vem de ninguém e porque Ele é a origem da Trindade [origo Trinitatis].

Gerando o Filho e com o Filho espirado um só Espírito Santo.”55 A ordem das pessoas não indica tempo, natureza ou majestade.56 Como 52

Calov, De Spiritu Sancto, in Systema, 3:837.

Calov, De Spiritu Sancto, em Systema, 3:837-38; Gregório de Nissa, Carta 35.4 em Gregory of Nyssa: The Letters, trans. Anna M. Silvas (Leiden: Brill, 2007), 253.

Calov atribui a carta a Basílio, mas a maioria dos estudiosos agora a atribui a Gregório.

54 Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §1 (ed. Cotta, 223).

55 Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §2 (ed. Cotta, 223). Gerhard usa expressões semelhantes em outros lugares. O Pai é o fons Trinitatis (4/2, §4, 224); o Pai é o fons et origo Trinitatis (4/2, §9, 225). Cf. David Chytraeus, In Genesin Enarratio (Wittenberg, 1576), 25-26: "Pater est principium et fons totius divinitatis."

56 Cf. Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 327, teses 17 e 18: "A distinção real das pessoas divinas surge de sua ordem, tanto na subsistência quanto na atividade. E ainda assim devemos distinguir entre ordem de natureza, ordem de tempo, ordem de dignidade e ordem de origem e relação 53

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confessamos no Credo Atanasiano, "Ninguém é antes ou depois do outro, ninguém é maior ou menor que o outro."57 A ordem entre as pessoas é de acordo com a origem, não com a natureza. Para Gerhard, tudo isso se relaciona especialmente com a procedência do Espírito. Ele escreve: "Se for negado que o Espírito Santo procede do Filho, a ordem pessoas da Trindade seria incerta e qualquer relação do Filho com o Espírito Santo seria absurda."58 Da mesma forma, Calov, usando as palavras de Tomás de Aquino, afirma: "Se o Espírito Santo não tivesse procedido do Filho, ele não seria distinto dele, o que seria contrário à fé."59 É exatamente nesse ponto que tanto Gerhard quanto Calov apelam para as relações de oposição apresentadas por Tomás. Se o Espírito Santo não procede do Filho, Ele não poderia ser distinto Dele.

As pessoas não são distinguidas em nenhum sentido absoluto, uma vez que tudo o que é dito pertence absolutamente à unidade da essência.

Gerhard continua parafraseando Tomás: "Portanto, as pessoas são distinguidas apenas por relações e as relações são distinguidas apenas na medida em que são opostas."60 Tomás argumenta que um par de relações opostas deve existir entre o Filho e o Espírito para que eles sejam distintos um do outro. Aqui os dogmáticos luteranos seguiram Tomás. Bruce (originis et relationis). Não atribuímos nenhuma ordem de natureza às pessoas divinas porque elas são homoousios, da mesma natureza e essência. Tampouco atribuímos uma ordem de tempo porque elas são consubstanciais e coeternas, nem uma ordem de dignidade porque elas são da mesma honra. Mas atribuímos a Eles uma ordem de origem e relação porque o Pai não vem de ninguém, o Filho vem do Pai e o Espírito Santo vem de ambos. "A ordem de subsistência entre as pessoas divinas é demonstrada somente por meio da procissão ou emanação de uma pessoa de outra. Se o Pai não procede de ninguém, mas tem sua essência de si mesmo, como fonte e origem (fons et principium) da Santíssima Trindade, se Filho tem sua essência do Pai por meio da geração eterna, se o Espírito Santo tem sua essência do Pai e do Filho por meio da inspiração eterna, então seguese que o Pai é o primeiro, o Filho o segundo e o Espírito Santo a terceira pessoa e essa ordem é imutavelmente fixada em sua natureza e claramente demonstrada na fórmula batismal (Mt 28.19; 1 Jo 5.7)."

57 Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §2 (ed. Cotta, 223).

58 Gerhard, De Spiritu Sancto, Locus 4/3, §82 (ed. Cotta, 326).

59 Calov, De Spiritu Sancto, in Systema, 3:844. Calov is paraphrasing Thomas Aquinas Summa Contra Gentiles IV.24.

60 Gerhard, De Spiritu Sancto, Locus 4/3, §83 (ed. Cotta, 326).

422

Marshall resume a lógica da posição deles: Seguindo Aquino, os teólogos luteranos normalmente sustentam que as relações de oposição só podem surgir em Deus quando há um ato que origina uma pessoa. Portanto, para que o Espírito seja distinto do Filho, ou o Espírito tem que se originar do Filho, ou o Filho tem que se originar dele.

Considerando as suposições que ambos os lados aceitam sobre a taxis ou ordem das pessoas divinas, o Filho não pode se originar do Espírito. Portanto o Filioque: o Espírito tem que se originar do Filho para ser uma pessoa distinta do Filho, assim como ele tem que se originar do Pai para ser uma pessoa distinta do Pai.61

O argumento para o filioque procede das Escrituras. Nossos dogmáticos luteranos mostram seu compromisso com as Escrituras em suas longas discussões sobre a Trindade. O mérito teológico da visão da igreja sobre as relações de oposição é que ela expressa de forma útil o que a Escritura revela sobre as pessoas, suas propriedades distintivas e como essas propriedades se opõem umas às outras e separam as pessoas divinas umas das outras. O filioque realiza exatamente isso para os dogmáticos ele marca o Espírito Santo como uma hipóstase distinta do Pai e do Filho.

Longe de indicar qualquer inferioridade do Espírito em relação ao Filho, o ensino bíblico e a afirmação do credo mostram tanto sua distinção quanto sua inseparabilidade. Aqueles que não conseguem ver isso correm o risco de colapsar o Filho e o Espírito juntos, confundindo a distinção de pessoas conhecidas nas Escrituras. Calov afirma claramente: Aqueles que negam a procedência do Espírito Santo a partir do Filho não são capazes de preservar uma distinção real [realis distinctio] do Espírito Santo do Filho, porque as pessoas divinas não são distinguidas exceto por oposições relativas. Não há oposição relativa entre o Filho e o Espírito Santo, a menos que o Espírito proceda do Filho, pois não há outras relações opostas em Deus, exceto as relações de

61

Marshall, “Defense of the Filioque,” 161.

423

origem.62

Para nossos pais luteranos, as percepções dos escritores medievais sobre as relações divinas os ajudaram a expressar o testemunho das Escrituras de forma cuidadosa e clara sobre as pessoas divinas e a maneira pela qual elas se relacionam umas com as outras.

MARTINHO LUTERO E A UTRUM ESSENTIA GENERET ESSENTIAM

Qualquer pessoa preocupada em confessar adequadamente a Trindade deve, em algum momento, investigar o significado das palavras que usamos para fazer isso. Os teólogos não podem se restringir apenas a falar sobre Deus; eles também devem falar sobre as palavras que usamos para falar sobre Deus. Um exemplo muito básico seria a palavra Deus.

Quando usamos a palavra Deus, estamos falando da essência ou da pessoa? Estamos falando de uma pessoa ou de todas as três pessoas? Essa palavra deve ser usada de forma substantiva e relativa, ou apenas substantiva ou apenas relativa? Quando confessamos no Credo Niceno que Jesus Cristo é Deum ex Deo, Deus de Deus, como a palavra Deus está sendo usada? Ela se refere à substância, à pessoa, a ambas? Somente quando esclarecemos o que queremos dizer com as palavras que usamos em casos específicos é que nosso discurso trinitário pode ter significado e evitar mal-entendidos. A preocupação dos teólogos com questões semânticas e com o que certas circunstâncias linguísticas nos permitem dizer ou não dizer que pode parecer ao leitor moderno como algo trivial, como algo que obscurece mais do que esclarece, ou como um jogo de palavras. A atenção dada pelos Teólogos Medievais e da Reforma a como falamos de Deus de forma fiel e responsável visa exatamente o oposto.

Sua atenção a essas questões demonstra uma preocupação piedosa com o padrão do discurso correto em nossa abordagem sobre Deus. Não se trata de jogos de palavras que estipulam arbitrariamente a referência de termos a fim de estabelecer compromissos previamente assumidos. São esforços para entender por que dizemos as coisas de uma forma e não de outra.

Todos os crentes demonstram esse tipo de preocupação quando 62

Calov, De Spiritu Sancto, in Systema 3:862. Observe o uso que Calov faz da regra de Anselmo nessa citação. Cf. De Spiritu Sancto, in Systema 3:836–37.

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confessam que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, mas eles não são três deuses.

A provocadora rejeição de Lutero ao Concílio de Latrão IV sobre a questão de se a essência gera essência demostra a importância de entender corretamente nossas palavras teológicas. O Concílio de Latrão IV condenou qualquer um que afirmasse que a essência gera essência.

Após o Concílio, os Teólogos Medievais concentraram seus esforços em argumentos metafísicos e semânticos para mostrar uma certa correção da conclusão do Concílio. Lutero se destaca dessa tradição. Os primeiros trabalhos teológicos que temos dele já demonstram hesitação com a autoridade do Concílio e com o argumento de Pedro Lombardo, que levou à decisão do Concílio. No final de sua vida, essa hesitação desaparece. Lutero rejeita explicitamente a decisão do Concílio e a posição de Lombardo contra essentia generat essentiam. O que se segue é uma breve revisão da questão e uma consideração do que Lutero tem a dizer e por que ele afirma o que diz.

A questão de saber se a essência gera provém do livro das Sentenças de Pedro Lombardo.63 Pedro pergunta se o Pai gera a essência divina, se a essência divina gera o Filho ou se a essência gera a essência.64 É essa última maneira de colocar a questão que se torna padrão em todo o período medieval. A resposta de Lombardo a todas essas perguntas é não.

Depois de conduzir o leitor por seus vários argumentos, Lombardo 63

Sobre essa questão entre os teólogos medievais veja Bruce Marshall, "Utrum Essentia Generet: Semantics and Metaphysics in Later Medieval Trinitarian Theology", em Trinitarian Theology in the Medieval West, ed. Pekka Kärkkäinen (Helsinque: Luther-Agricola-Society, 2004). Pekka Kärkkäinen (Helsinque: Luther-Agricola-Society, 2004), 88-123. Veja também Bruce Marshall, "Aquinas the Augustinian? On the Uses of Augustine in Aquinas' Trinitarian Theology", em Aquinas the Augustinian, ed. Michael Dauphinais, Barry David, e outros. Michael Dauphinais, Barry David e Matthew Levering (Washington, D.C.: Catholic University of America Press, 2007), pp. 41-61; Bruce Marshall, "In Search of an Analytic Aquinas: Grammar and the Trinity", em Grammar and Grace, ed., Robert MacSwain e Jeffrey Marshall, "In Search of an Analytic Aquinas: Grammar and the Trinity". Robert MacSwain e Jeffrey Stout (Londres: SCM Press, 2004), 55-74.

64 Lombard, Sentences, I, 5, 1.1 in Peter Lombard, The Sentences, trans. Giulio Silano (Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 2007), 30.

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escreve: "A essência divina não gerou uma essência. Uma vez que a essência divina é uma e a coisa mais elevada, se a essência divina gerou uma essência, então a mesma coisa gerou a si mesma, o que não é de forma alguma possível. Mas somente o Pai gerou o Filho, e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho."65 Lombardo baseia sua conclusão na impossibilidade metafísica de a essência divina gerar a si mesma.

Joaquim de Fiore rejeitou a conclusão de Lombardo e levantou preocupações sobre sua ortodoxia trinitária.66 O Quarto Concílio de Latrão em 1215, um concílio ecumênico para a igreja romana, apoiou Lombardo e condenou a opinião de Joaquim. O IV Concílio de Latrão fez duas distinções ao responder a essa pergunta que se originam dos comentários de Lombardo. Primeiro, há uma realidade suprema (una quaedam summa res) que são o Pai, o Filho e o Espírito Santo.67 Quer as pessoas sejam consideradas juntas ou separadamente, elas são essa realidade suprema, que é a substância, essência ou natureza divina.68 Segundo, essa realidade suprema (res) não gera, nem é gerada, nem procede.69 Por essa razão, dizemos que "o Pai gera, o Filho é gerado e o Espírito Santo procede, de modo que a distinção está nas pessoas e a unidade na natureza".70 A decisão de Latrão IV encerrou todo o debate durante o período medieval sobre como a pergunta deveria ser respondida.

Durante todo o período medieval, os teólogos empregaram argumentos metafísicos e semânticos para explicar por que é errado dizer que a essência gera. Eles se depararam com vários problemas. Uma dificuldade decorreu do Credo Niceno e do que queremos dizer com 65

Lombard, Sentences I, 5, 1.6 (Silano, 31–32).

A obra de Joachim contra Lombardo, se é que tal obra existiu, não existe mais.

Para uma sugestão de qual poderia ter sido seu argumento, ver Marshall, "Utrum Essentia Generet", 93-94.

67 Decrees of the Ecumenical Councils, 1:232, 6–8; cf. Bernard Lonergan, The Triune God: Systematics (Toronto: University of Toronto Press, 2007), 264–68.

68 Decrees of the Ecumenical Councils, 1:232, 10.

69 Decrees of the Ecumenical Councils, 1:232, 11–12.

70 Decrees of the Ecumenical Councils, 1:232, 12–14.

66

426

Deum ex Deo. Se podemos dizer "Deus de Deus" e isso significa que Deus gera Deus, por que não podemos afirmar também que a essência gera a essência? Até mesmo Agostinho parece ter se expressado dessa forma.

Depois de estabelecer a diferença entre a predicação substantiva e a relativa na Trindade, entre o que é de Deus ad se e o que é dito ad aliquid, Agostinho escreve: "Assim, Pai e Filho são juntos uma sabedoria porque são uma essência [una essentia], e um a um eles são sabedoria da sabedoria, assim como são essência da essência [essentia de essentia]."71 A "essência da essência" de Agostinho parece se aproximar bastante do que Lombardo rejeitou e o Concílio de Latrão IV condenou. Isso não passou despercebido por Lombardo. Depois de dar sua opinião sobre a questão de saber se a essência gera, ele se voltou para uma série de passagens difíceis de Hilário de Poitiers e de Agostinho que parecem dizer que sim.

Depois de analisar vários desses textos, Lombardo afirma simplesmente: "Essas palavras nos perturbam fortemente".72 Os Teólogos Medievais se viram na incômoda posição de afirmar o Concílio de Latrão IV e, ao mesmo tempo, ter de explicar como a essentia de essentia de Agostinho não contradizia o concílio.

Uma maneira de responder à aparente contradição entre Latrão IV, por um lado, e o Credo Niceno e Agostinho, por outro, foi refletir sobre o significado das palavras Deus e essência. Tomás de Aquino abordou essas preocupações diretamente.73 Ele começou com a distinção entre o modo de significação (modus significandi) e a coisa significada (res significata). Termos diferentes podem se referir à mesma coisa (res significata), mas de maneiras diferentes (modus significandi). Tanto Deus quanto a essência significam a divindade, mas o fazem de maneiras diferentes. Deus significa concretamente e a essência abstratamente.

Como diz Tomás, Deus significa a essência divina "naquele que a possui", 71

Augustine The Trinity 7.3 (WSA I/5, 221), tradução ligeiramente alterada.

Tanto Pedro Lombardo quanto Tomás de Aquino destacam esse texto como particularmente irritante. Lombard, Sentences, I, 5, 1.7 (Silano, 32); Tomás de Aquino ST I.39.5 obj. 1.

72 Lombard, Sentences, I, 5, 1.17 (Silano, 36).

73 O que se segue é baseado em Tomás de Aquino ST I.39.4c e 39.5c. Para uma análise útil e detalhada da posição de Tomás, consulte Marshall, "Utrum Essentia Generet", 103-9.

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mas a essência não pode representar uma pessoa divina porque significa a essência "como uma forma abstrata".74 Refletimos essa distinção quando dizemos que Deus gera ou que Deus é gerado. O Deus que gera é o Pai; o Deus que é gerado é o Filho.75 Quando o Credo confessa Deum ex Deo, significa que o Filho vem do Pai. As propriedades distintivas das pessoas podem ser expressas com a palavra concreta Deus de uma forma que não podem ser expressas com o termo abstrato essência. Portanto, quando dizemos que Deus gera, estamos falando da pessoa divina a quem pertence a propriedade pessoal de gerar, a saber, o Pai. Se disséssemos que a essência gera, estaríamos falando abstratamente da essência, à parte das pessoas. Para Tomás, essa maneira de falar não tem significado ou verdade. O que fazer então com a esessentia de essentia de Agostinho? Tomás simplesmente diz que Agostinho falou de forma imprecisa e não deve ser imitado. Em vez disso, sua linguagem deve ser explicada de maneira mais adequada.76 Lutero escreveu suas notas marginais sobre as Sentenças de Pedro Lombardo de 1509 a 1511.77 Embora ele concorde com Lombardo nessas notas marginais, ele já expressa hesitação com as conclusões de Lombardo. Lutero concorda que Deus pode ser tomado para se referir às pessoas divinas, mas há muitos mal-entendidos. Se for dito que "Deus Pai gera Deus", uma afirmação que pode ser corretamente entendida, conforme demonstrado por Pierre d'Ailly, alguns podem entender que isso significa que Deus gera outro Deus (alium deum) e começam a pensar que há mais de um Deus.78 Por essa razão, a igreja evita esse tipo de linguagem. Lutero retorna uma segunda vez à questão de se Deus pode ser entendido relativamente. Ele observa que Lombardo parece dizer duas coisas diferentes. Por um lado, Lombardo afirma a legitimidade de confessar o "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro" que encontramos no 74

Thomas Aquinas ST I.39.5c.

Thomas Aquinas ST I.39.4 ad 3.

76 Thomas Aquinas ST I.39.5 ad 1.

77 Pekka Kärkkäinen, “Martin Luther,” in Mediaeval Commentaries on the Sentences of Peter Lombard, ed. Philipp W. Rosemann (Leiden: Brill, 2010), 2:471–94.

78 Zu den Sentenzen des Petrus Lombardus, 1510 (WA 9:34.10–16).

75

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Credo. Aqui devemos entender que Deus, o Pai, gera Deus, o Filho. Nesse sentido, é correto dizer que Deus gera Deus.79 Isso intriga Lutero. Se Deus pode ser tomado relativamente, como visto no Credo e concedido por Lombardo, por que não também a essência? Por que não tomar a essência da mesma forma que tomamos a luz de luz?80 Nesse ponto, Lutero diz simplesmente que os argumentos contra isso não são conclusivos, mas que o Espírito Santo falou à igreja em Latrão IV. Portanto, o que o Concílio disse é verdade.81 Em dezembro de 1544, Lutero presidiu a disputa de doutorado de Georg Major. As teses para a disputa de Major diziam respeito à Trindade. Das vinte e seis teses, as onze finais abordam a questão de saber se a essência gera.82 Encontramos um Lutero muito diferente nessas teses - não em termos de substância teológica, mas na maneira como ele agora fala sobre a tradição. A Tese 15 diz: "O Mestre das Sentenças [Pedro Lombardo] não ensinou suficientemente bem que a essência divina não gera nem é gerada."83 Além disso, o Concílio de Latrão IV não conseguiu nada com seu cânone sobre a Trindade (Tese 17). O argumento das teses se move rapidamente. Como Agostinho podia dizer "substância da substância" e "sabedoria da sabedoria", Lombardo deveria saber que se 79

Lombard, Sentences, I, 4, 1.1–2 (Silano, 27–28).

Zu den Sentenzen des Petrus Lombardus, 1510 (WA 9:34.35–35.2).

81 Zu den Sentenzen des Petrus Lombardus, 1510 (WA 9:35.3–5).

82 Sobre a questão da essentia generat em Lutero, veja Graham White, Luther as Nominalist (Helsinki: Luther- Agricola-Society, 1994), 181-91, mas também 192230 para o uso que Lutero faz de Agostinho, William Ockham e Pierre d'Ailly sobre essa questão. Lutero está particularmente em dívida com d'Ailly nessa questão, como ele indica nas teses. Graham White é especialmente útil ao mostrar a facilidade de Lutero com a teoria semântica e as regras da lógica medieval. Com muita frequência, acredita-se que Lutero esteja afastado desse tipo de escolasticismo; as disputas posteriores mostram que ele não estava.

Sobre a questão da essentia generat em Lutero, veja também Simo Knuuttila e Risto Saarinen, "Luther's Trinitarian Theology and Its Medieval Background," Studia Theologica- Nordic Journal of Theology 53:1 (1999): 3-12; e Dennis Bielfeldt, Mickey L. Mattox e Paul R. Hinlicky, The Substance of the Faith: Luther's Doctrinal Theology for Today (Minneapolis: Fortress, 2008).

83 Die Promotionsdisputation von Georg Major und Johannes Faber, 1544 (WA 39/2:287.31).

80

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poderia dizer que a essência gera a essência de maneira semelhante (Tese 18-19). Reconhece-se nas teses que esse modo de falar pode dar origem à falsa ideia de que há duas ou três essências (Tese 21) ou dois ou três deuses (Tese 22). Mas, uma vez que tanto Hilário de Poitiers quanto Agostinho usam os termos substância (substantia), sabedoria e natureza, entre outros termos, de forma relativa (relative) em assuntos divinos (Tese 24), não há razão para que Lombardo não pudesse ter tomado a essência (essentia) de forma relativa também (Tese 25).

A discussão das teses começa destacando os perigos inerentes ao afirmar que a essência gera.84 Isso não sugere que a essência gera a si mesma? Major diz que não. A essência divina não gera a si mesma, mas outra, outra pessoa, o Filho. Essa resposta leva a uma segunda pergunta: se Deus gera o Filho, isso significa que Ele gera outro deus (alium deum)?

Novamente, Major diz que não. Aquele que é gerado é a Sua própria imagem, o Filho, que é um Deus com o Pai. As perguntas feitas a Major lembram as preocupações expressas por Lutero em suas notas marginais sobre as Sentenças. Nesse ponto, Lutero interrompe: Esse é o argumento que perturbou o Mestre [Pedro Lombardo], de modo que ele negou essa proposição. Mas não deveria ter negado que a essência relativamente [relativa] gera uma pessoa, especialmente quando viu Agostinho dizer que Deus foi gerado de Deus, que a Luz foi gerada da Luz. Uma vez que ele concedeu essas expressões, ele não deveria ter negado uma expressão semelhante usando a essência.85

Para Lutero, tudo depende de como a palavra essência é usada, como ela é usada como referência. Se ela for usada de forma absoluta (absolute), então é errado dizer que a essência gera. Se for usada relativamente (relative), então é correto dizer que a essência gera. Esse era o problema de Lombardo. Ele queria usar "essência" apenas 84

Para o que se segue, consulte Die Promotionsdisputation von Georg Major und Johannes Faber, 1544 (WA 39/2:291.10–18).

85 Die Promotionsdisputation von Georg Major und Johannes Faber, 1544 (WA 39/2:291.19–292.2). Lombardo faz essas concessões em Sentences, I, 27, 5.2 (Silano, 150–51).

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"absolutamente" e não "relativamente", e, portanto, pensou que afirmar essentia generat significava afirmar mais de um deus.86 Lutero continua: "Contra o Mestre e o papa, dizemos que essência, sabedoria e luz podem ser tomadas relativamente."87 Como Hilário e Agostinho tomaram essas palavras relativamente, nós também podemos.

Ao longo da disputa, Lutero revisita as evidências patrísticas, mostrando como essas palavras podem ser interpretadas de forma relativa. Em um ponto, ele repete a pergunta de suas notas marginais anteriores sobre as Sentenças. Ele pergunta: "Se pode ser dito que a sabedoria gera sabedoria, por que não a essência a partir da essência?"88 Embora Lutero tenha reconhecido em suas notas marginais que os argumentos contra isso eram fracos, ele parou antes de oferecer sua própria resposta sobre o Concílio de Latrão IV. Uma vez que o Concílio e sua decisão sobre o assunto não o constrangem mais, ele oferece uma resposta: "A essência, é certo, não gera absolutamente [absoluta], mas tomada relativamente [relative], ela certamente gera."89 Esse sentimento surge como consenso na disputa. Em uma conversa particular, Johann Bugenhagen, Georg Major e Lutero afirmam a distinção entre predicação absoluta e relativa sobre essa questão.90 A utilidade da regra usada em toda a disputa traz maior clareza sobre como distinguimos as pessoas umas das outras sem prejudicar sua unidade substancial. Por exemplo, Major é questionado sobre como a seguinte afirmação está errada: "Se a essência divina é dita para gerar adequadamente, segue-se que todas as pessoas geram".91 A pergunta feita a Major é muito mais difícil de ser respondida do que pode parecer à primeira vista. Se dissermos que a essência gera, então parece que estamos dizendo que uma propriedade da essência é que ela gera. Se esse for o caso, então todos aqueles que possuem a essência devem ser considerados 86

Die Promotionsdisputation von Georg Major und Johannes Faber, 1544 (WA 39/2:295.13–15).

87 Die Promotionsdisputation …, 1544 (WA 39/2:295.15–16).

88 Die Promotionsdisputation …, 1544 (WA 39/2:316.19–20).

89 Die Promotionsdisputation …, 1544 (WA 39/2:316.20–21).

90 Die Promotionsdisputation …, 1544 (WA 39/2:312.18–313.29).

91 Die Promotionsdisputation …, 1544 (WA 39/2:307.17–19).

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geradores. Se o Filho possui a mesma substância que o Pai, então o Filho também deve gerar; se o Espírito possui a mesma substância que o Pai e o Filho, então também se deve dizer que Ele gera. Se esse for o caso, todas as três pessoas geram e não haverá fim para o número de pessoas divinas.

A alternativa parece ser o arianismo: as três pessoas não possuem a mesma substância. Ambas as conclusões são contrárias à fé.92 Como, então, devemos entender a frase "a essência gera" e a confissão de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são consubstanciais um sem também admitir que "gerar" pertence a todos os três, pois todos os três são consubstanciais?

Major elimina essa preocupação afirmando cuidadosamente a distinção entre predicação absoluta e relativa. Ele responde, De fato, a essência [essentia] é comum a todas as três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo. Mas quando dizemos “ser gerado”, não entendemos isso 'absolutamente' [absoluto], mas 'relativamente' [relative], na medida em que o Pai é uma pessoa e a Escritura só atribui a geração ao Pai e não ao Filho e ao Espírito Santo.93

Major, como Lutero e outros ao longo da disputa, insiste na distinção entre predicação relativa e absoluta. A frase essentia generat oferece a ocasião para explorar essa distinção e mostrar sua utilidade para fazer afirmações verdadeiras sobre a Trindade.

As outras disputas de Lutero no final de sua vida nos mostram a preocupação com a maneira adequada ao discutir assuntos divinos como parte integrante do ensino em Wittenberg. Dois pontos precisam ser enfatizados aqui. Por um lado, Lutero reconheceu a ambiguidade da linguagem. Se o orador pretende que uma palavra se refira a uma determinada maneira, mas o ouvinte interpreta a referência de forma diferente, ideias falsas podem ser extraídas do que uma pessoa diz. Isso seria prejudicial à fé. Em suas notas marginais sobre as Sentenças, Lutero 92

Esse cenário é explorado por Bugenhagen em outra parte da disputa. Ele considera ambas as opções como blasfêmia. Veja Die Promotionsdisputation von Georg Major und Johannes Faber, 1544 (WA 39/2:312.5-11).

93 Die Promotionsdisputation von Georg Major und Johannes Faber, 1544 (WA 39/2:307.20–23).

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hesitou em dizer que a essência gera porque ele temia que essa linguagem fosse mal interpretada, pois tomaria de forma absoluta quando a intenção era relativa. Essa preocupação permanece para o falecido Lutero, e é uma lição que ele imprimiu em seus alunos. Alguns anos antes da disputa de doutorado de Major, Lutero conduziu uma disputa sobre Jo 1.14. A disputa levantou a questão da essência geradora e permitiu que Lutero enfatizasse a necessidade de cuidado em nossa linguagem teológica. Todas as perguntas padrão foram levantadas. Como entendemos "Deus de Deus" e "Luz de Luz"? Por quê? Lombardo e os teólogos que o seguiram rejeitaram a proposição de que a essência gera? Lutero adota uma abordagem cautelosa. Ele adverte que se dissermos que a essência gera e usarmos a palavra absolutamente, afirmaremos mais de um deus. Lutero continua: "Portanto, é mais apropriado, e uma confissão teológica mais segura e melhor, dizer que o Pai gera em vez de que a essência ou a Trindade gera."94 Lutero ainda tem em mente a distinção entre predicação absoluta e relativa, mas se expressa de forma mais clara e cautelosa ao dizer que o Pai gera.

A questão da linguagem teológica e de como as palavras se referem surge novamente no exame de doutorado de Petrus Hegemon.

Lutero explora a distinção das pessoas trinitárias e enfatiza os limites de nossa linguagem e recursos conceituais. Ele reflete especialmente sobre a predicação absoluta e relativa e a relação entre a teologia e a filosofia. A questão da predicação procede da maneira que vimos acima. Quando a pergunta é feita sobre como entendemos a palavra Deus na frase "Deus de Deus", Lutero enfatiza como as palavras se referem. Ele escreve: "Se considerarmos Deus pessoalmente [ou seja, relativamente], então é verdade que Deus gera Deus. Se considerarmos Deus essencialmente [ou seja, absolutamente], então Deus não gera a si mesmo nem outro Deus.

A essência não gera, mas uma pessoa sim."95 Lutero repete brevemente suas preocupações anteriores e mostra como nossa linguagem teológica fala corretamente sobre a Trindade.

Outra questão abordada na disputa de Hegemon diz respeito à 94 95

Die Disputation de sententia: Verbum caro factum est, 1539 (WA 39/2:18.6–8).

Die Promotionsdisputation von Petrus Hegemon, 1545 (WA 39/2:370.8–14).

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relação entre filosofia e teologia. O ponto básico apresentado por Lutero é que a teologia e a filosofia funcionam de forma diferente e chegam à verdade de forma diferente. O que é verdade na filosofia não é necessariamente verdade na teologia. A fé recebe a verdade de Deus (teologia), esteja ela de acordo com nossa maneira de raciocinar ou não (filosofia). Vemos essa diferença quando se trata das relações divinas.

Aqui a teologia aceita algo que a filosofia não pode aceitar. As teses 11, 12 e 13 insistem nessa questão.96 Uma "relação" é diferente entre as criaturas e entre as pessoas divinas (Tese 11). Entre as criaturas, a relação não constitui a pessoa; ela não subsiste por si mesma, mas é acidental (Tese 12). Isso funciona de forma diferente para as pessoas divinas: "Tese 13. Em matéria divina, a relação é uma res, isto é, uma hipóstase e subsistência. Na verdade, é o mesmo que a própria divindade; pois há três pessoas, três hipóstases e coisas subsistentes."97 A discussão dessa tese destaca as dificuldades encontradas acima com Major: como distinguir as pessoas e manter sua unidade de ser?

Os limites e as dificuldades de nossa linguagem humana surgem exatamente nesse ponto. Se dissermos que a relação constitui a pessoa, marcamos duas coisas que pertencem a ela para cada pessoa: relação e essência. Mas, assim que dizemos isso, queremos afirmar que a relação não é algo acrescentado à essência. Lutero responde na disputa que há duas coisas em cada pessoa: "Duas coisas para se formar uma pessoa.

Uma pessoa é constituída da natureza divina e de uma relação".98 A linguagem marca duas coisas, essência e relação, mas as pessoas divinas não são compostas. Lutero reconhece uma dificuldade aqui e os limites de nossa linguagem, mas não tem a sutileza de Tomás. Embora digamos que as pessoas são constituídas a partir da essência e da relação, essa maneira de falar é inadequada (improprius). E, no entanto, quando procuramos explicar a distinção das pessoas, temos de recorrer a esse modo de falar: "A relação é uma coisa, a essência é uma coisa, [são duas coisas] que constituem uma pessoa". Isso é dito de forma muito inapropriada. Mas o que se pode fazer? Não somos capazes de falar 96

Die Promotionsdisputation von Petrus Hegemon, 1545 (WA 39/2:339.26–340.5).

Die Promotionsdisputation von Petrus Hegemon, 1545 (WA 39/2:340.3–5).

98 Die Promotionsdisputation von Petrus Hegemon, 1545 (WA 39/2:363.16–18).

97

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perfeitamente sobre esses assuntos e, no entanto, é assim que devemos falar. Isso se chama crer."99 Lutero demonstra sua frustração ao alternar entre o latim e o alemão em sua resposta.

A continuidade entre os comentários marginais nas Sentenças e as declarações de Lutero em suas disputas posteriores, separadas por mais de trinta anos, mostra a importância duradoura da lógica medieval e da teoria semântica para Lutero e seus ensinamentos. É importante como falamos sobre Deus e como entendemos a referência de nossas palavras.

A atenção a essas questões determina o valor de verdade de nossas proposições e o padrão de palavras sólidas a serem usadas pelo teólogo.

Por essa razão, Lutero enfatiza, ao longo das disputas, que a fé confessa a verdade do que Deus revela na melhor linguagem disponível. Nosso discurso segue certas regras, e a confissão adequada atende a essas regras.

Os crentes sabem que as pessoas são três e a essência é uma, que o Pai é Pai e nunca o Filho ou o Espírito, que somente o Pai não foi gerado, o Filho foi gerado e o Espírito procede. Essas coisas nós sabemos pelas Escrituras. A linguagem usada para proteger essa verdade deve ser bem considerada. Também reconhecemos os limites e a inadequação de nossa linguagem, mas nunca às custas de deixar de confessar o que as Escrituras tornam conhecido.

CONCLUSÃO

Nossos pais luteranos conheciam bem a história da reflexão trinitária desde a igreja primitiva até o período medieval. Eles conheciam a exegese tradicional da igreja, a importância da terminologia técnica e os padrões de discurso usados para discutir a Trindade na sala de aula e para confessá-la na liturgia, nas orações e nos hinos da igreja. Embora às vezes 99

Die Promotionsdisputation von Petrus Hegemon, 1545 (WA 39/2:384.9-22). Cf. Robert Preus, The Theology of Post-Reformation Lutheranism (St. Louis: CPH, 1972), 2:123: "Quando consideramos que as Três Pessoas da Divindade diferem umas das outras como pessoas realiter e ainda assim permanecem uma essência divina indivisa, percebemos a inadequação de nossa gagueira e até mesmo da terminologia mais cuidadosa; pois nos deparamos aqui com o mistério inefável e inescrutável da Trindade, e a igreja só pode fazer o melhor que pode ao falar sobre isso com base na revelação e evitar toda heresia."

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criticassem os Pais e os escolásticos medievais, ao mesmo tempo eram profundamente devedores de suas reflexões sobre a Trindade. Não há caminhos fáceis para pensar com responsabilidade sobre a Trindade. A consideração cuidadosa de como as pessoas divinas devem ser distinguidas ou como dizemos o que dizemos sobre a Trindade pode parecer a muitos hoje como excessivamente especulativo e até supérfluo.

Nossos pais luteranos não compartilhavam desses sentimentos. Eles ensinaram na sala de aula e pregaram do púlpito essas percepções da igreja em um esforço para esclarecer e proteger a identidade bíblica da Trindade.

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CONTEÚDO

14 UNIDADE NA TRINDADE: OPERA AD EXTRA As Escrituras afirmam tanto a Unidade como a Trindade de Deus. As três pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito Santo, são indivisivelmente uma. Em termos de essência, ser, substância, natureza ou divindade, como você quiser se expressar, o Pai e o Filho, juntamente com o Espírito Santo, são indivisivelmente um. Sua unidade é diferente de qualquer outra unidade que conhecemos; unissima, como Lutero colocou, a mais una ou a mais única unidade.1 A unissima de Lutero não é um mero detalhe retórico, nenhum gesto piedoso em relação ao mistério da Trindade, mas uma confissão real e necessária que procede do testemunho da Escritura da unidade indivisível da Trindade. Essa unidade é sempre a Trindade. A unidade de Deus é sempre conhecida e confessada em três pessoas irredutíveis, Pai, Filho e Espírito Santo - três subsistências ou hipóstases irredutivelmente únicas, que são inseparáveis, habitam mutuamente uma na outra e, ainda assim, são eternamente distintas. Embora sejam três, eles não são três deuses, mas um só Deus. Aqui reside a principal dificuldade de confessar a Trindade: confessamos em nossa liturgia, orações e hinos que três pessoas divinas são indivisivelmente um Deus. Essa dificuldade, esse mistério, levou os Pais e os Reformadores a refletirem sobre os padrões de um discurso apropriado e responsável, segundo as Escrituras, para dar testemunho sobre as três pessoas e a unidade da Trindade. Em nossos capítulos anteriores, observamos os compromissos linguísticos da igreja para distinguir Pai, Filho e Espírito Santo uns dos outros. Neste capítulo, abordaremos com mais detalhes a unidade indivisível da Trindade. Os Pais demonstraram a unidade da Trindade ao refletir sobre os atos e atributos das pessoas divinas. Os atos, obras ou atividades da Trindade em relação à criação demonstraram sua unidade, seu poder

1

WA 42:10.20–22 (Lectures on Genesis, 1535–45, AE 1:12, “most perfect unity”) and WA 42:14.10–11 (AE 1:17, “most single singleness”). (OS 12).

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compartilhado e, portanto, sua natureza compartilhada. O reconhecimento de que as obras da Trindade em relação à criação (ad extra) são indivisíveis, o que significa que pertencem igual e inseparavelmente às três pessoas, constitui um dos mais amplos pontos de consenso entre os Pais. Essa premissa teológica tornou-se uma máxima do pensamento trinitário ortodoxo em toda a tradição e foi apelidado de regra de Agostinho. Ao mesmo tempo, esse reconhecimento das Escrituras levanta possíveis problemas.

O primeiro problema tem a ver com as obras em si. Se as obras da Trindade para a criação são numericamente uma, mas as pessoas da Trindade são numericamente três, então como distinguir as pessoas divinas em suas obras ou mesmo saber que há três pessoas para distinguir?

Se não podemos distingui-las em suas obras, parece que as distinguir pertence à revelação de Deus como Trindade, mas tem pouco significado para nós ao considerar as obras ou atividades de Deus para nós.2 Os Pais e os reformadores resolveram essa dificuldade sustentando que as pessoas são distinguíveis em sua ação econômica da mesma forma que são eternamente distinguíveis umas das outras. As características distintivas ou propriedades pessoais únicas do Pai, do Filho e do Espírito Santo permitem que o leitor das Escrituras veja tanto a mutualidade quanto a distinção nas ações da Trindade em relação à criação. Neste exato ponto, nossos dogmáticos luteranos corrigem um possível mal-entendido da regra de Agostinho, conforme formulada pelos educadores medievais, e trazem à tona as propriedades pessoais e a ordem das pessoas divinas nas obras externas.

Um problema relacionado diz respeito à maneira como os credos e os fiéis confessam as obras da Trindade. Por um lado, dizemos que o Pai cria, o Filho cria e o Espírito Santo cria, mas eles não são três criadores, mas um único criador. Algo semelhante ocorre com todos os atributos essenciais de Deus. Dizemos que o Pai é sábio, o Filho é sábio e o Espírito Santo é sábio, mas não são três sabedorias, mas uma só. Da mesma forma, eles não são três poderes, mas um poder, não são três 2

Bruce Marshall, “Action and Person: Do Palamas and Aquinas Agree about the Spirit,” St. Vladimir’s Theological Quarterly 39/4 (1995): 394–95.

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eternos, mas um eterno, não são três bons, mas apenas um bom etc. E aqui precisamos fazer perguntas. O que significa o fato de as Escrituras se referirem ao Filho como a "sabedoria de Deus" e o "poder de Deus"?

Da mesma forma, no Catecismo Maior, Lutero escreve: "O Credo pode ser resumido nestas poucas palavras: Creio em Deus Pai, que me criou; creio em Deus Filho, que me redimiu; creio no Espírito Santo, que me santifica".3 Se o Pai, o Filho e o Espírito Santo criam, salvam e santificam, o que significa atribuir essas obras mais particularmente às pessoas divinas? Mais uma vez, Lutero escreve: "Assim como o Pai é chamado de Criador e o Filho é chamado de Redentor, então, por causa de sua obra, o Espírito Santo deve ser chamado de Santificador, Aquele que santifica."4 Se esses atos (criação, redenção, santificação) e atributos (sabedoria, poder) pertencem igual e indivisivelmente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, por que os atribuir mais particularmente a uma pessoa? A igreja se refere a isso como apropriação ou atribuição. A doutrina da apropriação nos ajuda a conceber as pessoas divinas em suas ações para conosco.

Lutero argumentará ainda que a apropriação proporciona de forma útil nossa adoração ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Por fim, o último grande problema, e talvez a questão que se esconde por trás de todos os problemas acima, diz respeito à confissão da igreja sobre a simplicidade de Deus. Os Pais e os Reformadores nunca hesitaram em afirmar a doutrina da simplicidade divina. Aqui encontramos uma das grandes peculiaridades das Escrituras que é esquecida com muita frequência. Deus se revela a nós nas Escrituras, adaptando-se à nossa compreensão decaída e à linguagem humana. Como seres finitos, nossos pensamentos e palavras estão necessariamente em conformidade com nosso contexto temporal e espacial. Embora usemos palavras como eterno ou infinito, elas funcionam principalmente como palavras que marcam o que algo não é. Ou seja, essas palavras negam principalmente realidades conhecidas e vivenciadas por nós. Somos finitos, somos criaturas limitadas, mas Deus não é. Assim, dizemos que Ele é infinito, não finito. Da mesma forma, somos limitados pelo tempo,

3 4

CM II.7.

CM II.36.

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tanto em nossos pensamentos quanto em nossas palavras, mas Deus não é. Ele é eterno, ou seja, Ele é eterno, o que significa que Ele escapa das restrições e limitações temporais que nos afetam. Com isso em mente, também confessamos que Deus é simples. Ele não é composto de partes (CA I). Ele não é circunscrito ao espaço (1Rs 8.27) ou pelo tempo (Sl 90.2). Ele não se torna algo que não é; Ele não muda (Ml 3.6; Tg 1.17). E, no entanto, para conhecer Deus e confessar as coisas verdadeiramente sobre Ele, Ele se revelou a nós de tal forma que se adapta aos nossos modos de pensar e falar. Embora a essência e os atributos de Deus não sejam separados, não sejam duas coisas diferentes, de modo que não devemos dizer que Deus é sábio na medida em que participa da sabedoria ou bom na medida em que participa da bondade, Ele se revelou a nós de tal forma que podemos numerar Seus atributos e falar sobre eles separadamente.

Os três problemas brevemente expostos acima nos ocuparão nos próximos dois capítulos. No que se segue, discutiremos detalhadamente as obras indivisíveis e a ação inseparável da Trindade. Nossas conclusões aqui confirmarão nosso tratamento dos dois problemas finais. No próximo capítulo, discutiremos a apropriação, os atributos e a simplicidade.

TRINDADE E UNICIDADE

Antes de nos voltarmos para as obras externas da Trindade, precisamos dizer algo brevemente sobre a relação entre a Trindade e a Unidade de Deus, e se uma delas deve necessária e logicamente preceder a outra em nossas apresentações dogmáticas. Desde o período medieval, a tradição teológica ocidental tem preferido começar com uma discussão sobre a unidade de Deus e Seus atributos (de deo uno), ou o que é comum às três pessoas, antes de passar para uma discussão sobre a Trindade, ou o que é próprio das três pessoas (de deo trino). Durante o século XVI, nossos pais luteranos se afastaram dessa ordem medieval e discutiram a Trindade primeiro. Eles não ofereceram nenhuma doutrina de Deus além de seus ensinamentos sobre a Trindade e consideraram os atributos divinos no contexto da discussão sobre quem Deus é (Trindade) e o que Deus faz (obras). Por várias razões, isso mudou com Johann Gerhard no 440

século XVII.5 Gerhard retornou à ordem medieval de tópicos e discutiu longamente a essência e os atributos de Deus em um local separado antes de se voltar para a Trindade. Os dogmáticos que seguiram Gerhard continuaram essa ordenação medieval de tópicos e a defenderam.

Johannes Quenstedt explica: A consideração de Deus é dupla: uma é absoluta e a outra é relativa. A primeira é ocupada com Deus considerando a essência sem tratar sobre as três pessoas da Divindade; a última é ocupada com Deus caracterizado pessoalmente. A primeira apresenta tanto a essência quanto os atributos essenciais de Deus; a segunda explica as pessoas da Santíssima Trindade e os atributos pessoais de cada uma delas.6

A razão pela qual Gerhard segue a organização medieval dos tópicos pode ter mais a ver com a defesa de Deus contra os antitrinitarianos e com o esclarecimento de uma compreensão adequada dos atributos contra várias ideias reformadas. Quenstedt, por outro lado, fundamenta sua decisão na lógica e na razão. Para ele, a maneira mais ordenada e lógica de proceder começa com a essência e os atributos e prossegue para as pessoas e as obras. Os teólogos medievais pensavam de forma semelhante. Eles achavam que primeiro era preciso saber algo sobre a divindade, o que ela é e o que implica, antes de discutir a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Os escolásticos argumentavam que, de acordo com nossa maneira de pensar, o que é próprio pressupõe o que é comum e, portanto, devemos primeiro entender "Deus" antes de considerar as características próprias das pessoas divinas. Essa distinção também permitiu que os escolásticos discutissem sobre o conhecimento natural de Deus e o que pode ser conhecido sobre Deus pelos filósofos ou pela razão humana, além de Sua revelação como Trindade. Gerhard e os dogmáticos que o seguiram, incluindo o Compêndio de Baier-Walther,

5

Para uma discussão e crítica desse movimento de Gerhard, veja Robert Preus, The Theology of Post-Reformation Lutheranism (St. Louis: CPH, 1972), 2:15-17 e 2:54-55.

6 Johann Andreas Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 284.

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seguem uma abordagem muito semelhante.7 Francis Pieper se afastou da ordem de apresentação encontrada nos dogmáticos posteriores. Ele fez isso para enfatizar a diferença fundamental entre o conhecimento cristão de Deus e o conhecimento natural - uma diferença, segundo ele, quase universalmente ignorada em sua época.8 Os dogmáticos posteriores estavam errados ao seguir os escolásticos em sua apresentação da doutrina de Deus e da Trindade? A resposta é tanto sim quanto não. Qualquer confissão responsável da Trindade requer a confissão da singularidade de Deus e da singularidade da unidade de Deus. As Escrituras exigem ambas as formas de falar sem prejudicar uma em detrimento da outra. Nem os escolásticos nem os dogmáticos pensavam que sua discussão sobre Deus estava separada de sua discussão sobre a Trindade.9 Ambas as discussões andavam juntas. A partir dessa perspectiva, pouco importa se você discute a unidade de Deus antes de Deus como Trindade ou Deus como Trindade antes da unidade de Deus. E, no entanto, a forma como você faz isso é muito importante.

Nossos capítulos que discutem a maneira pela qual os Pais e os reformadores distinguiram as pessoas divinas também trataram longamente da unidade da Trindade, dos atributos divinos e das obras externas da Trindade. Da mesma forma, nossa discussão sobre a unidade de Deus terá referência constante às pessoas divinas. Não há como contornar isso para o teólogo das Escrituras. As Escrituras deixam bem claro que o único Deus verdadeiro é formado por três pessoas eternas: Pai, Filho e Espírito Santo. Isso significa que não há realidade anterior ou separada do Pai, que eternamente gera Seu Filho coigual e coeterno e que, 7

O De Natura Dei de Johann Gerhard, Locus 3 (ed. Cotta, 91-159) difere ligeiramente de Theological Commonplaces: On the Nature of God and on the Trinity, trans. Louis: CPH, 2007), Exegesis II. O Locus 3 começa com uma consideração sobre o conhecimento de Deus e argumentos de conhecimento natural para Deus (91-98). Em seguida, Gerhard considera os nomes de Deus (98102) e os principais termos trinitários (102-4). O restante de sua discussão se concentra na unidade de Deus e nos atributos divinos (105-59).

8 Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:428.

9 Sobre a unidade dos artigos de fé, veja Abraham Calov, De Articulis Fidei, em Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1655), 1:773.

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juntamente com o Filho, sopra Seu Espírito coigual e coeterno. Além disso, é esse mesmo Espírito que pesquisa as coisas profundas de Deus e que nos leva a conhecer e a participar da vida divina do Filho, o único que, por sua vez, nos dá a conhecer o Pai e o Espírito como o Espírito do Pai e o Espírito do Filho. Não existe uma essência divina abstrata que os fiéis procuram contemplar ou na qual repousam. Existe apenas - se é que essa palavra pode ser usada de forma proveitosa aqui - o Pai que é conhecido por meio Filho pelo Espírito Santo.

Francis Pieper se preocupava com o fato de que a diferença entre o conhecimento natural de Deus e sua noção genérica de um ser supremo e perfeito e a revelação da Santíssima Trindade nas Escrituras estava se tornando cada vez mais tênue em sua época. Temos motivos para nos preocupar com o fato de que as coisas só pioraram em nossos dias. Muitos pensam equivocadamente que judeus, cristãos e muçulmanos adoram o mesmo Deus, que eles identificam como o Deus de Abraão. Em nossos dias, os filósofos debatem incessantemente a existência de Deus, a doutrina da simplicidade divina e os atributos de Deus, além das pessoas divinas, como se estivessem falando sobre o Deus revelado pelas Escrituras e confessado pelos cristãos. Por essas e outras razões, é especialmente irresponsável, em nossos dias, que um teólogo cristão prossiga com uma discussão sobre Deus, Sua essência e Seus atributos, à parte de Sua identidade eterna como Pai, Filho e Espírito Santo. É irresponsável, por um lado, porque não é possível segundo as Escrituras, mas, por outro lado, é suspeito no mais alto grau, porque não pode haver nenhuma compreensão proveitosa dos atributos de Deus à parte das pessoas divinas, que são esses atributos, e suas obras.10 E é nesse sentido que os últimos dogmáticos luteranos não deveriam ter começado com a doutrina de Deus e Seus atributos antes de discutir as pessoas divinas.

Voltaremos a essa questão em nossa discussão sobre os atributos divinos no próximo capítulo. Com tudo isso em mente, pode-se dizer, sem muito exagero, que este capítulo e o próximo, mais do que qualquer outro na Parte 3, abordam algumas das questões mais mal compreendidas e 10

Essa é a posição de Martin Chemnitz e a maneira pela qual ele discute a Trindade. Veja especialmente Martin Chemnitz, Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:68-69.

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disputadas sobre a Trindade em nossos dias e, por isso, há muita coisa em jogo quando se pensa corretamente nos atos atributos e simplicidade da Trindade.

OPERA AD EXTRA

Distinguir corretamente o Pai, o Filho e o Espírito Santo, expressando corretamente a singular e inseparável Trindade de Deus, sempre implica a afirmação adicional da unidade indivisível dos três, a singular unidade dos três. Na igreja primitiva, perguntou-se por que não confessamos três deuses. Já que dizemos que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, por que não dizemos também que esses três são três deuses? Por que considerar o Pai, o Filho e o Espírito Santo como três, mas não a repetição da palavra Deus? Essa questão de nomes e números tornou-se tão urgente durante o século IV que Basílio de Cesaréia, em um momento de frustração, declarou: "Quando o Senhor nos ensinou a doutrina do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Ele não fez da aritmética uma parte desse dom!"11 Na visão de Basílio, aqueles que persistem nesse tipo de questionamento voltaram nossa capacidade de testemunhar contra a fé, honrando a matemática mais do que a natureza divina revelada. Basílio continua: "Há um só Deus e Pai, um só Filho Unigênito e um só Espírito Santo. Declaramos que cada Pessoa é única e, se tivermos de usar números, não permitiremos que uma aritmética estúpida nos leve à ideia de muitos deuses."12 Muitos anos depois, Agostinho enfrentou um problema semelhante. Quando as pessoas ouvem que o Pai não é o Filho, o Filho não é o Pai e o Espírito Santo, o Espírito do Pai e o Espírito do Filho, não é nem o Pai nem o Filho, elas acham que devem dizer três deuses porque o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três.13 Mais uma vez, o problema tem a ver com a contagem.

Agostinho responde: Se três, três o quê? A contagem não funciona. Assim, Deus não se recusa a ser contado nem se submete a ser contado.

11

Basil of Caesarea On the Holy Spirit 18.44 (PPS, 71).

Basil of Caesarea On the Holy Spirit 18.44 (PPS, 72).

13 Augustine Homilies on the Gospel of John 39.2 (WSA III/12, 587).

12

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Como eles são três, parece que estão contando; se você perguntar três o quê, a contagem não funciona. É por isso que se diz: "Grande é o nosso Senhor e grande é a sua força, e não se pode contar a sua sabedoria" (Sl 146.5 Vulg.).

Quando você começa a pensar sobre isso, começa a contar; quando você conta, não pode dizer o que contou. O Pai é o Pai, o Filho é o Filho, o Espírito Santo é o Espírito Santo.

Veja bem, esse número três só se insinua na relação deles, e não na relação um com o outro, não no que cada um é para si mesmo.14

A dificuldade que está por trás da pergunta, se podemos dizer que há três deuses e as respostas incisivas de Basílio e Agostinho, tem a ver com a unidade essencial, a unicidade única das pessoas divinas. No entanto, não foi apenas a aritmética que levou à questão de se devemos ou não dizer três deuses. O problema tem a ver com os atos ou obras das pessoas divinas em relação à criação.

As Escrituras deixam claro que o Pai cria, o Filho cria e o Espírito Santo cria. Como devemos entender isso? Isso significa que o Pai cria sem o Filho e o Espírito, o Filho sem o Pai e o Espírito Santo? O que significa que cada um contribui para a obra da criação de tal forma que uma parte é feita pelo Pai, outra parte pelo Filho e outra parte pelo Espírito Santo?

Significa que cada um contribui para a obra da criação de tal forma que uma parte é feita pelo Pai, outra parte pelo Filho e ainda outra parte pelo Espírito Santo? Se qualquer uma dessas afirmações for verdadeira, então a confissão da igreja sobre a unidade e a simplicidade da Trindade seria falsa e, de fato, deveríamos dizer três deuses. Os Pais explicaram essas questões difíceis mostrando, com base nas Escrituras, que as obras da Trindade na criação são inseparáveis e indivisíveis. Essa conclusão teológica ficou conhecida durante o período medieval como a regra de Agostinho: opera Trinitatis ad extra indivisa sunt. Essa regra afirma que toda ação das três pessoas em direção ao exterior (ad extra), ou seja, toda obra externa ou toda obra em direção à criação é numericamente uma e procede de sua unidade de vontade e poder. Quando o Pai age, o Filho e 14

Augustine Homilies on the Gospel of John 39.4 (WSA III/12, 588–89).

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o Espírito Santo também agem no mesmo ato pelo mesmo poder de sua natureza comum.

Os Pais demonstraram a unidade indivisível da Trindade ao mostrar como as Escrituras atribuem a mesma atividade ou obra ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. A igreja confessa que a Trindade é santa e perfeita. Isso significa, explica Atanásio, que a natureza da Trindade é indivisível e "tem uma só atividade".15 Aqui Atanásio dá voz a um lugar comum entre os Pais: atividade e natureza andam juntas. A atividade comum indica a natureza comum e a natureza comum produz a atividade comum. O argumento segue um insight básico. Toda natureza possui o poder de fazer as coisas que pertencem a essa natureza. Uma vez que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, são uma essência ou natureza simples, segue-se que Eles são um poder e que um poder age na criação a partir do Pai por meio do Filho no Santo. Essa teologia de uma natureza, um poder, uma atividade (ἐνεργία, operatio) é enfatizada por todos os escritores ortodoxos da igreja primitiva. Antes de se voltar para as Escrituras, Atanásio resume seu argumento: "O Pai faz todas as coisas por meio da Palavra através do Espírito Santo. Dessa forma, a unidade da Santíssima Trindade é preservada e, dessa forma, o Deus único é pregado na Igreja".16 Vemos a obra comum da Trindade na obra da criação, na graça e nos dons concedidos a nós pela Trindade. As Escrituras deixam bem claro que a criação é obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O prólogo de João mostra que o Pai cria por meio da Palavra. Os Salmos testemunham que o Pai cria ao enviar Seu Espírito (Sl 104.30) e, além disso, que a Palavra e o Espírito criam inseparavelmente (Sl 33.6).17 Essas Escrituras ensinam que "o Pai cria todas as coisas por meio da Palavra no Espírito."18 Da mesma forma, Paulo ensina a unidade da Trindade aos coríntios ao discutir os dons espirituais: "Ora, há distribuições de dons, mas o Espírito é o mesmo; e há distribuições de serviço, mas o Senhor é o mesmo; e há 15

Athanasius Letters to Serapion 1.28.2 (PPS, 97).

Athanasius Letters to Serapion 1.28.2 (PPS, 97).

17 Athanasius Letters to Serapion 2.13.4–14.1 (PPS, 123–24).

18 Athanasius Letters to Serapion 2.14.1 (PPS, 124); cf 1.24.5–6 (PPS, 91).

16

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distribuições de atividades, mas é o mesmo Deus que as opera em todos" (1Co 12.4-6). Atanásio explica: "Os dons que o Espírito distribui a cada um são concedidos pelo Pai por meio da Palavra. Pois tudo o que o Pai tem é do Filho. Assim, o que é dado pelo Filho no Espírito é um dom do Pai."19 O que recebemos de Deus, o Pai, chega até nós por meio do Filho no Espírito. Atanásio apela para uma de suas analogias bíblicas favoritas para expressar isso (cf. Hb 1.3). Onde há luz, há o brilho da luz, e onde há o brilho da luz, há a atividade e a graça luminosa desse brilho.20 Esses três, como a atividade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, são inseparáveis e, ainda assim, distintos.

Atanásio observa o mesmo padrão na segunda carta de Paulo aos Coríntios: "A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todas vós” (2Co 13:14). Atanásio escreve: "Essa graça e dom concedidos na Trindade são dados pelo Pai por meio do Filho no Espírito Santo. Assim como a graça dada por meio do Filho vem do Pai, também não podemos ter comunhão com o dom a não ser no Espírito Santo. Pois é quando participamos do Espírito Santo que temos o amor do Pai e a graça do Filho e a comunhão do próprio Espírito."21 A graça e o dom dados são dados pela Trindade. É a mesma graça e o mesmo dom que nos é dado pelo Pai por meio do Filho no Espírito Santo. Quando participamos do Espírito Santo, temos a graça da Palavra, e quando temos a graça da Palavra pelo Espírito, temos o amor do Pai.22 Aqui vemos, conclui Atanásio, "uma atividade da Trindade."23 Essa única atividade, uma graça, mostra a indivisibilidade da Trindade.24 A insistência de Atanásio na atividade única da Trindade fica mais clara com Dídimo, o Cego. Dídimo usa a mesma passagem de 2 Coríntios.

Paulo mostra nessa passagem que há "uma única recepção da Trindade", 19

Athanasius Letters to Serapion 1.30.4 (PPS, 100).

Athanasius Letters to Serapion 1.30.5 (PPS, 100). Para uma analogia semelhante no contexto trabalho inseparável da Trindade, veja Augustine Homilies on the Gospel of John 20.13 (WSA III/12, 370).

21 Athanasius Letters to Serapion 1.30.6–7 (PPS, 100).

22 Athanasius Letters to Serapion 2.15.1 (PPS, 125).

23 Athanasius Letters to Serapion 1.31.1 (PPS, 100).

24 Athanasius Letters to Serapion 2.15.1 (PPS, 125).

20

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pois quem recebe a graça de Cristo a recebe tanto pela administração do Pai quanto pela concessão do Espírito.25 Nunca devemos pensar que a graça dada pelo Pai difere daquela dada pelo Filho. É uma e a mesma coisa. Paulo deixa isso explícito no início de sua carta aos Romanos: "Graça a vocês e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo" (Rm 1.7). Aqui Paulo trata de uma graça singular e de uma paz singular que recebemos do Pai e do Filho. É essa mesma graça do Pai e do Filho que é aperfeiçoada pelo Espírito Santo. Dídimo explica: "Não é o caso de o Pai dar uma graça e o Salvador outra, visto que Paulo escreve que a graça dada e pelo Senhor Jesus Cristo é aperfeiçoada pela comunhão do Espírito Santo”.26 Para que não pensemos que a graça que recebemos do Pai por meio do Filho está separada do Espírito Santo, Dídimo imediatamente direciona nossa atenção para a insistência das Escrituras de que essa mesma graça vem a nós pelo Espírito Santo. De acordo com as Escrituras, aqueles que desprezam o Filho de Deus, profanando o sangue da aliança, ultrajam "o Espírito da graça" (Hb 10.29). É esse mesmo Espírito, proclamado pelos profetas, que seria derramado sobre o povo de Deus (Jl 2.28), o Espírito de YHWH (Ez 39.29), o Espírito da graça (Zc 12.10). Dídimo explica: "Sempre que alguém recebe a graça do Espírito Santo, ele a recebe como um dom de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, o fato de haver uma única graça do Pai e do Filho aperfeiçoada pela atividade do Espírito Santo demonstra que a Trindade é de uma só substância."27 Dídimo se aprofunda em mostrar como as Escrituras apresentam a unidade da Trindade em Suas obras em nosso favor. Ele retorna à passagem da segunda carta de Paulo aos Coríntios. Paulo recomenda "o amor de Deus" aos cristãos de Corinto (2Co 13.14). O amor que Paulo recomenda é concedido e sustentado pela Trindade. Jesus explica: "Quem tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama. E aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele" (Jo 14.21). O amor de Jesus com o qual Ele ama é diferente do amor do Pai, que ama para salvar: "Porque Deus amou o mundo de tal maneira 25

Didymus the Blind On the Holy Spirit 75 (PPS, 166).

Didymus the Blind On the Holy Spirit 75 (PPS, 166–67).

27 Didymus the Blind On the Holy Spirit 76 (PPS, 167).

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que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3.16). O amor com o qual amamos é o fruto Espírito Santo (Gl 5.22) derramado em nossos corações (Rm 5.5).28 Da mesma forma, observa Dídimo, a graça de nosso Senhor Jesus Cristo e o amor de Deus Pai - a mesma graça e o mesmo amor - trazem a nossa comunhão no Espírito Santo (2Co 13.14).29 A comunhão trazida pelo Espírito Santo é a mesma comunhão para a qual o Pai nos chama em Seu Filho: "Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à comunhão de seu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor" (1Co 1.9). Da mesma forma, João escreve que Deus é luz e, se andarmos na luz, teremos comunhão com Ele (1Jo 1.7), e essa comunhão é a comunhão que temos como crentes "com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo" (1Jo 1.3). Dídimo conclui: Portanto, uma vez que quem tem comunhão com o Espírito Santo tem imediatamente comunhão tanto com o Pai quanto com o Filho, sempre que alguém tem o amor do Pai, ele o tem como um dom do Filho por meio do Espírito Santo. Além disso, sempre que alguém participa da graça de Jesus Cristo, ele tem a mesma graça como um dom do Pai por meio do Espírito Santo.30

Todos os itens acima demonstram que a atividade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é numericamente a mesma. E isso, explica Dídimo, é como as Escrituras apresentam a unidade da Trindade: "Aqueles que têm uma única atividade também têm uma única substância."31 As passagens das Escrituras acima corroboram para Atanásio e Dídimo as atividades compartilhadas do Pai, do Filho e do Espírito Santo e a indivisibilidade de sua substância. Atanásio conclui: "A Trindade é indivisível, e há uma única divindade da Trindade. Essa é a fé da igreja católica".32 Da mesma forma, Dídimo escreve: "A partir desses textos, concluímos que a substância da Trindade é indivisível, e que o Pai é 28

Didymus the Blind On the Holy Spirit 77–78 (PPS, 167–68).

Didymus the Blind On the Holy Spirit 78–79 (PPS, 168).

30 Didymus the Blind On the Holy Spirit 78–79 (PPS, 168).

31 Didymus the Blind On the Holy Spirit 81 (PPS, 168).

32 Athanasius Letters to Serapion 2.15.4 (PPS, 125).

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verdadeiramente o Pai do Filho, e que o Filho é verdadeiramente o Filho do Pai, e que o Espírito Santo é verdadeiramente o Espírito do Pai e de Deus, e especialmente o Espírito da Sabedoria e da Verdade, isto é, do Filho de Deus. Portanto, esta é a salvação para aqueles que creem".33 A unidade da Trindade procede do testemunho da Escritura sobre a ação das pessoas divinas para nossa criação e redenção. Os Pais começaram com as Escrituras, não com compromissos filosóficos anteriores sobre o que a unidade ou a simplicidade implicava, e mostraram a natureza única, o poder único e a atividade única do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Embora as Escrituras deixem clara a atividade compartilhada das pessoas divinas em suas obras da criação, continuaram a ser levantadas questões sobre como entendemos seu trabalho autêntico. Quando dizemos, por exemplo, que o Pai trabalha por meio do Filho no Espírito Santo, estamos dividindo o trabalho entre os três? Estamos apenas dizendo que o Filho e o Espírito Santo são agentes da atividade do Pai? Em que sentido o trabalho deles é igual e inseparável? Essas perguntas mais específicas são abordadas por Gregório de Nissa. Desde o início, Gregório insiste que não pensemos na obra própria da Trindade da mesma forma que pensamos nas obras humanas. Por exemplo, dizemos que aqueles que cultivam a terra ou criam animais são fazendeiros.

Embora usemos o plural para agricultores, nos referimos ao trabalho comum deles no singular - cultivar. O que torna o trabalho deles comum?

Embora possamos dizer que dois agricultores fazem o mesmo trabalho, queremos dizer apenas que eles se envolvem no mesmo tipo de trabalho.

Não queremos dizer que eles trabalham inseparavelmente no mesmo trabalho. A ação de um fazendeiro pertence somente a ele e a ação de outro pertence somente a esse. Nesse sentido, podemos contar as ações separadas desses dois fazendeiros e ainda dizer que elas pertencem ao trabalho comum da agricultura. Isso não é, de forma alguma, o que as Escrituras ensinam sobre o trabalho inseparável e mútuo da Trindade.

Gregório explica: Por outro lado, com relação à natureza divina é diferente.

Não aprendemos que o Pai faz algo por conta própria em 33

Didymus the Blind On the Holy Spirit 103 (PPS, 175–76).

450

que o Filho não coopera. Ou ainda, que o Filho age por si mesmo sem o Espírito. Em vez disso, toda operação que se estende de Deus à criação e é designada de acordo com nossas diferentes concepções sobre ela tem sua origem no Pai, prossegue por meio do Filho e alcança sua conclusão pelo Espírito Santo. É por essa razão que a palavra para a operação não é dividida entre as pessoas envolvidas. Pois a ação de cada uma em qualquer assunto não é separada e individualizada. Mas o que quer que ocorra, seja em referência à providência de Deus para conosco ou ao governo e constituição do universo, ocorre por meio das três Pessoas, e não são três coisas separadas.34

Gregório insiste que não se pode dividir as obras da Trindade "de acordo com o número de hipostases".35 Nenhuma atividade é distinguida entre as pessoas divinas (hipostases) como se fosse feita individualmente ou separadamente por uma pessoa e não pelas outras duas.36 Gregório dá o exemplo do batismo e do dom da vida que recebemos do Pai, do Filho e do Espírito Santo em nosso batismo. De acordo com as Escrituras, esse dom único vem a nós das três pessoas. Não devemos, entretanto, contar a obra como contaríamos as pessoas: "Embora tenhamos como certo que há três Pessoas e nomes, não imaginamos que três vidas diferentes nos são concedidas - uma de cada uma das pessoas."37 É por isso que não chamamos aqueles que produzem essa única vida de "três doadores de vida". Isso se aplica a todos os seus outros atos e atributos. O Pai é bom, o Filho é bom e o Espírito é bom, mas não dizemos que eles são "três bons".38 Gregório aborda uma última questão. Se o Pai age por meio do

34

Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius in Christology of the Later Fathers, ed.

Edward R. Hardy (Philadelphia: Westminster Press, 1954), 261–62 (GNO 3.1, 47.21–48.8).

35 Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius 262 (GNO 3.1, 48.21–22). A tradução inglesa obscurece o grego.

36 Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius 263 (GNO 3.1, 50.17–20).

37 Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius 262 (GNO 3.1, 48.14–16).

38 Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius 262 (GNO 3.1, 49.1–4).

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Filho no Espírito Santo "conjuntamente, inseparavelmente e mutuamente", isso significa que Eles também trabalham simultaneamente?39 A resposta é sim. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma essência, um poder e uma vontade simples e indivisíveis.

Portanto, tudo o que o Pai faz por meio do Filho pelo Espírito Santo ocorre sem sequência ou intervalo. Suas obras não estão relacionadas em série. Não devemos pensar em nenhum atraso, escreve Gregório, "no movimento da vontade divina do Pai através do Filho e para o Espírito Santo."40 A confissão dos fiéis é que as pessoas divinas trabalham inseparavelmente e mutuamente sem sequência ou separadamente. Nisso reside sua unidade única, sua unissima, conforme nos é dada a conhecer pelas Escrituras e confessada por nós por meio de nossa liturgia, orações e hinos.

A DISTINÇÃO ENTRE PESSOAS E OBRAS COMUNS

O insight trinitário descrito acima - básico para a tradição da igreja - está sendo examinado em nossos dias. O problema tem a ver com a forma como o significado de três pessoas quando insistimos que qualquer ação feita por uma delas é feita pelas outras duas também. Se as ações de Deus permanecem indivisíveis ad extra, como podemos distinguir as pessoas? Existe algum motivo para distinguir as pessoas? Será que a distinção eterna de Pai, Filho e Espírito Santo é uma verdade revelada por Deus nas Escrituras, mas que não tem relação com Sua obra no mundo e, portanto, não tem significado para os fiéis? Dito dessa forma, não é pouca coisa que afirmamos as duas coisas seguintes: as obras da Trindade ad extra são indivisíveis e a distinção eterna das três pessoas não anula a identidade numérica de suas ações.

De alguma forma, ao longo da tradição da igreja, várias estratégias têm sido empregadas para explicar as preocupações do parágrafo anterior.

A compreensão da ação e da diferença entre o que o Pai, o Filho e o Espírito Santo fazem na conclusão de qualquer ação individual por parte deles procede da ordem das pessoas. Como vimos em nossos capítulos 39 40

Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius 262 (GNO 3.1, 49.6–7).

Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius 264 (GNO 3.1, 51.19–20).

452

anteriores, os fiéis modelam sua liturgia e orações de acordo com a ordem das pessoas divinas que nos é dada nas Escrituras. Gregório de Nissa escreve: Por isso, somos batizados como nos foi transmitido, no Pai e no Filho e no Espírito Santo, e cremos como somos batizados - pois convém que nossa confissão seja de uma só voz com nossa fé - e damos glória como cremos, pois não é natural que a adoração faça guerra contra a fé, mas como cremos, assim também damos glória. Ora, visto que nossa fé está no Pai, no Filho e no Espírito Santo, a fé, a adoração e o batismo estão de acordo um com o outro.41

A ordem das pessoas revelada nas Escrituras testemunha do batismo, da adoração e da oração. Nós batizamos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; cantamos a doxologia ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo; fazemos o sinal da cruz em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Nunca batizamos em nome do Espírito, do Pai e do Filho; nunca cantamos a doxologia em nome do Filho, do Pai e do Espírito; nunca fazemos o sinal da cruz em nome do Pai, do Espírito e do Filho.

Por quê? Os padrões de fala das Escrituras, nossa adoração, nossas orações são de uma forma que corresponda à relação eterna e à identidade das pessoas.

Como a ordem das pessoas divinas, conforme revelada nas Escrituras, testemunha sua ação única por nós? Para começar, a ordem das pessoas corresponde ao seu modo de origem e propriedades pessoais únicas, conforme revelado nas Escrituras. Somente o Pai não foi gerado, o Filho é o unigênito, e o Espírito procede do Pai e do Filho. Em nossos dois capítulos anteriores, mostramos como os Pais e os Reformadores distinguiram as pessoas divinas umas das outras fundamentando-se nas suas propriedades distintivas (não criado, gerado, procedente) e propriedades relativas (paternidade, filiação, processão).42 Da mesma 41

Gregory of Nyssa Letter 24, 8–9 in Gregory of Nyssa: The Letters, trans. Anna M. Silvas (Leiden: Brill, 2007), 194.

42 Não se trata de dois conjuntos de propriedades, mas sim de duas maneiras de ver as propriedades pessoais únicas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Cf. Basil 453

forma, eles usaram essas mesmas percepções bíblicas para entender a diferença entre as pessoas em suas obras indivisíveis. As pessoas divinas agem de maneira ordenada de acordo com suas propriedades pessoais e suas relações originais. Por exemplo, o Pai é a principal fonte e origem do Filho e do Espírito. Isso significa que o Filho e o Espírito dependem do Pai para existir e para realizar seus atos e atributos. Jesus diz: "Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer por si mesmo, mas somente o que vê o Pai fazer. Pois tudo o que o Pai faz, o Filho também o faz" (Jo 5.19). Jesus continua com exemplos. O Pai dá vida e o Filho também dá vida (Jo 5.21). Da mesma forma, o Espírito Santo "dá vida" (Jo 6.63). Além disso, Jesus diz: "O Espírito da Verdade (...) não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, pois tomará o que é meu e o anunciará a vocês. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso eu disse que ele tomará o que é meu e o anunciará a vocês" (Jo 16.13-15). A ação ordenada das pessoas divinas pertence a suas relações eternas entre si. O Filho provém do Pai e o Espírito provém do Pai e do Filho. Isso significa que o Pai age por meio do Filho no Espírito Santo. Cabe ao Pai agir por meio do Filho no Espírito Santo; cabe ao Filho ser aquele por meio de quem o Pai age; e cabe ao Espírito Santo ser aquele em quem e por quem o Pai e o Filho agem. Essas passagens do Evangelho de João mostram a ação inseparável do Pai, do Filho e do Espírito Santo de acordo com suas relações de origem. Conforme mostrado em nosso capítulo anterior com Calov e Gerhard, essa linguagem de dependência refere-se apenas ao modo de origem conforme revelado nas Escrituras. Gerhard escreve: O Pai é a primeira pessoa não por causa do tempo (as três pessoas são coeternas), nem por causa da natureza ou essência (são homoousios), nem por causa da dignidade (são de igual glória e majestade), mas por causa da origem ou ação.43

of Caesarea Against Eunomius 2.28 (Fathers of the Church, 174) and especially Gregory of Nazianzus Or. 39, 11–12 in Gregory of Nazianzus, trans. Brian Daley (New York: Routledge, 2006), 132–33.

43 Johann Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §1 (ed. Cotta, 223).

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O Filho e o Espírito Santo vêm do Pai, mas não depois dele. O Pai é a Primeira Pessoa da Trindade "porque não provém de ninguém e porque é a origem da Trindade (origo Trinitatis), gerando o Filho e com o Filho gerando um Espírito Santo".44 O Pai é eternamente distinto do Filho por Sua paternidade (paternitas); o Filho é eternamente distinto do Pai por Sua filiação (filiatio); e o Espírito Santo é eternamente distinto do Pai e Filho por Sua procedência (processio). Essas propriedades distintas e relativas não apenas distinguem as pessoas divinas umas das outras, mas também descrevem sua ação única e inseparável. Por exemplo, Atanásio afirma que a única vontade ou poder divino da Trindade procede do Pai por meio do Filho no Espírito Santo. Tudo o que é feito procede do Pai como princípio ou fonte, é mediado pelo Filho e é manifestado ou aperfeiçoado no Espírito.

Atanásio explica: O Pai faz todas as coisas por meio da Palavra no Espírito Santo. Dessa forma, a unidade da Santíssima Trindade é preservada, e dessa forma o único Deus é pregado na Igreja, que está acima de tudo, através de tudo e em tudo [Ef 4.6] acima de tudo, como Pai, como princípio, como fonte; através de tudo, por meio da Palavra; em tudo, no Espírito Santo. Não se trata de uma Trindade apenas no nome e na expressão linguística, mas na verdade e na existência real.45

Da mesma forma, Gregório de Nissa diz: "Há um único movimento e disposição de boa vontade que procede do Pai, por meio do Filho, para o Espírito."46 Martinho Lutero continua essa maneira de falar dos Pais. Lutero escreve: As Escrituras nos ensinam que toda a criação é obra de um só Deus, ou de toda a Divindade; e, no entanto, na medida em que fazem uma distinção entre as três pessoas da única 44

Gerhard, De Deo Patre, Locus 4/2, §2 (ed. Cotta, 223). Cf. Baier-Walther, Compendium Theologiae Positivae, I, §44.

45 Athanasius Letters to Serapion 1.28.3 (PPS, 97).

46 Gregory of Nyssa An Answer to Ablabius 262 (GNO 3.1, 48.22–49.1).

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Divindade, podemos dizer adequadamente que tudo teve sua origem, tudo existe e continua, no Pai como a primeira pessoa; por meio do Filho, que é do Pai; e no Espírito Santo, que procede tanto do Pai quanto do Filho; os três, no entanto, estão compreendidos na única essência indivisa.47

A obra da criação é uma, não três. Não temos uma criação do Pai, outra do Filho e ainda outra do Espírito Santo. A obra única da criação procede do Pai como a Primeira Pessoa, por meio do Filho do Pai, e no Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho.

Agostinho

Em sua maior parte, as ideias acima chegaram aos nossos pais luteranos por meio da tradição agostiniana. E, no entanto, como veremos a seguir, os dogmáticos expressam certa insatisfação com a maneira pela qual os escolásticos medievais preservaram o ensinamento de Agostinho sobre a ação inseparável da Trindade e, portanto, os insights recebidos dos Pais. Agostinho escreve: "Embora assim como o Pai, o Filho e o Espírito Santo sejam inseparáveis, eles também atuam inseparavelmente.48 Agostinho faz das obras inseparáveis da Trindade uma característica principal de sua teologia trinitária - tanto que a regra escolástica, opera Trinitatis ad extra indivisa sunt, repetida em toda a tradição teológica ocidental como a regra de Agostinho, visava resumir suas percepções exegéticas sobre as obras externas da Trindade.

Agostinho apresenta um argumento semelhante ao encontrado acima em Atanásio, Dídimo e Gregório de Nissa. Pai, Filho e Espírito Santo são uma Trindade indivisível. Eles são um só Deus e não três deuses: "Um Deus de tal forma que o Filho não é o Pai, que o Pai não é o Filho, que o Espírito Santo não é nem o Pai nem o Filho, mas o Espírito

47

Martin Luther, “Sermon for Trinity Sunday on Rom 11:33–36 (1537),” in Complete Sermons of Martin Luther, trans. John Lenker (Grand Rapids: Baker Books, 2000), 4.2:24.

48 Augustine The Trinity I.7 (WSA I/5, 70). See also Augustine Sermon 52, 2 (WSA III/3, 51).

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do Pai e do Filho."49 Esses três agem inseparavelmente e em todas as ações em direção à criação de acordo com sua única vontade e poder divinos.50 Além disso, sua ação corresponde ao seu relacionamento eterno um ao outro. Uma vez que o Filho é do Pai, Ele existe e atua a partir do Pai; uma vez que o Espírito Santo é do Pai e do Filho, Ele existe e atua a partir do Pai por meio do Filho.51 Agostinho usa o exemplo da criação.

Ele escreve: O que um fez, o outro também fez. O Pai fez o mundo, o Filho fez o mundo, o Espírito Santo fez o mundo. Se três deuses, três mundos; se um Deus - o Pai, o Filho e o Espírito Santo - então um mundo foi feito pelo Pai por meio do Filho no Espírito Santo.52

Agostinho defende dois pontos importantes. Por um lado, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são verdadeira e plenamente um só Deus. Tudo o que significa ser Deus é verdadeiro para Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo de forma igual e indivisível. Por outro lado, o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão em um relacionamento eterno um com o outro.

Como enfatizamos acima e afirmamos ao longo deste livro, não há realidade anterior ou separada do Pai, que eternamente gera Seu Filho coigual e coeterno e que, juntamente com o Filho, sopra Seu Espírito coigual e coeterno. Esses dois pontos estão relacionados ao entendimento de Agostinho sobre a atuação ad extra da Trindade.

Agostinho demonstra o que foi dito acima com Jo 5.26 ("Porque, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também concedeu ao 49

Augustine Sermon 52, 2 (WSA III/3, 51).

Augustine Homilies on the Gospel of John 20.4 (WSA III/12, 360–61).

51 Augustine Homilies on the Gospel of John 20.4 (WSA III/12, 361): "Portanto, como o poder do Filho vem do Pai, é por isso que a substância do Filho também vem do Pai; e como a substância do Filho vem do Pai, é por isso que o poder do Filho também vem do Pai". Veja também 20.8 (WSA III/12, 365).

52 Agostinho In Johannis Evangelium Tractatus 20.9 (PL 35, 1561): "Quae ille, haec et ipse: mundum Pater, mundum Filius, mundum Spiritus sanctus. Si tres dii, tres mundi: si unus Deus Pater et Filius et Spiritus sanctus, unus mundus factus est a Patre per Filium in Spiritu sancto". Cf. Augustine Homilies on the Gospel of John 20.9 (WSA III/12, 366).

50

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Filho ter a vida em si mesmo").53 O Pai não tem Sua vida de outro lugar, Ele não a deriva de outro, Ele não participa dela ou a toma emprestada, mas a tem de Si mesmo.54 De fato, a própria vida é para Ele o mesmo que Ele mesmo. O Filho, gerado pelo Pai, "é" vida por ser gerado. Agostinho continua: O Pai é vida, não por "nascer" [non nascendo]; o Filho é vida por "nascer" [nascendo]. O Pai não provém de nenhum pai, o Filho provém de Deus Pai. O Pai, que é, não provém de ninguém; mas o fato de ser Pai o é por causa do Filho [propter Filium]. Mas para o Filho, tanto o fato de ele ser o Filho é por causa do Pai [propter Patrem] quanto o fato de ele ser, ele é do Pai [a Patre] ... Portanto, o Pai permanece vida e o Filho permanece vida. O Pai tem vida em si mesmo [semetipso], não do Filho; o Filho tem vida em si mesmo [semetipso], mas do Pai.55

O Pai é sempre Pai do Filho e o Filho é sempre Filho do Pai.56 O Pai do Filho é a vida em Si mesmo em direção ao Filho; o Filho do Pai é a vida em Si mesmo a partir do Pai. Embora confessemos corretamente a unidade indivisível do Pai e do Filho, nunca fazemos isso às custas de distinguir as pessoas ou negligenciar a ordem das pessoas conforme conhecida pelas Escrituras. Sua igualdade, sua unidade única, nunca se separa de sua realidade eterna como Pai e Filho. Agostinho explica: Pois, embora de fato digamos e acreditemos que o Filho é

53

Sobre o que se segue, veja Lewis Ayres, Augustine and the Trinity (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), 245-46.

54 Augustine Homilies on the Gospel of John 19.11 (WSA III/12, 343). John 5:26 Vulg. reads: “Sicut enim Pater habet vitam in semetipso sic dedit et Filio vitam habere in semetipso” (PL 35, 1548).

55 Augustine In Johannis Evangelium Tractatus 19.13 (PL 35, 1550–51); cf.

Augustine Homilies on the Gospel of John 19.13 (WSA III/12, 346–47).

56 Augustine Homilies on the Gospel of John 39.4 (WSA III/12, 589). Aqui Agostinho acrescenta o Espírito Santo à discussão. O Pai está sempre em referência ao Filho, o Filho em referência ao Pai e o Espírito Santo em referência ao Pai. 458

igual ao Pai, e que não há diferença de natureza ou substância entre eles, e que não houve intervalo de tempo entre o gerador e o gerado, mesmo assim, com isso sendo assegurado e mantido, ainda dizemos que um é o Pai, o outro é o Filho. Um não seria o Pai a menos que tivesse um Filho; o outro não seria o Filho a menos que tivesse um Pai. No entanto, o Filho é Deus a partir do Pai, enquanto o Pai é Deus, mas não a partir do Filho. O Pai do Filho não é Deus a partir do Filho, enquanto o outro, o Filho do Pai, também é Deus a partir do Pai. O Senhor Cristo, lembre-se, é chamado [no Credo Niceno] de 'Luz de Luz'. Portanto, há uma Luz que não vem da Luz [o Pai], e uma Luz igual que vem da Luz [o Filho], juntas uma Luz, não duas Luzes.57

Quando estamos falando sobre a unidade indivisível de Deus, estamos, como Agostinho enfatiza aqui, também sempre e só tratando sobre o Pai, Filho e Espírito Santo. Da mesma forma, quando estamos tratando sobre as obras inseparáveis da Trindade ad extra, também estamos sempre tratando sobre suas relações de origem e a ordem das pessoas conforme revelado nas Escrituras. O Pai é sempre o Pai que eternamente gera Seu Filho coigual e coeterno e que, juntamente com o Filho, sopra Seu Espírito coigual e coeterno. O Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus. E, no entanto, insiste Agostinho, "apesar de tudo isso, o Pai não é quem o Filho é, nem o Filho é quem o Pai é, nem o Espírito Santo do Pai e o Espírito do Filho são nem o Pai nem o Filho."58 Mais uma vez, o Pai não vem de ninguém, o Filho vem do Pai e o Espírito Santo vem do Pai e do Filho. Essas relações eternas, essas relações eternas irredutíveis, nos permitem confessar tanto a inseparabilidade de suas obras quanto reconhecer a distinção daqueles que trabalham inseparavelmente.

Martinho Lutero

A discussão de Martinho Lutero sobre a ação inseparável da 57

Augustine Homilies on the Gospel of John 29.5 (WSA III/12, 492). See also Homilies 31.4 (WSA III/12, 506).

58 Augustine Homilies on the Gospel of John 39.3 (WSA III/12, 587).

459

Trindade segue de perto Agostinho. Ele também usa o exemplo da criação. Lutero apela para o Salmo 33: "Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o seu exército pelo sopro da sua boca" (Sl 33.6).59 Esse versículo descreve as três pessoas distintas - Senhor, Palavra e Sopro - que fazem a mesma obra. O Senhor não age à parte de Sua Palavra, e a Palavra não age à parte de Seu Sopro. Assim como o Senhor cria, a Palavra cria e o Sopro cria: "É uma só essência que cria, e é uma só criação que todas as três Pessoas criam."60 Esse versículo também nos ensina a não misturar as pessoas em uma só pessoa, nem dividir e separar a única essência divina em três pessoas. Lutero explica: "Se eu atribuir a cada Pessoa uma obra externa distinta na criação e excluir as outras duas Pessoas dessa ação, então eu dividi a única Divindade e formei três deuses ou criadores. E isso é errado. Novamente, se eu não atribuir a cada Pessoa dentro da Divindade, ou fora e além da criação, uma distinção especial não apropriada às outras duas, então misturei as Pessoas em uma só Pessoa. E isso também é errado."61 Quando discutimos as obras externas da Trindade, estamos tratando tanto da essência indivisível quanto das pessoas inseparáveis. Nesse ponto, Lutero faz referência à "regra de Santo Agostinho", que afirma, de acordo com Lutero, que as obras da Trindade ad extra são indivisíveis (opera Trinitatis ad extra indivisa sunt). A regra de Agostinho nos impede de dividir as obras externas da Trindade e, assim, separar as pessoas.

A regra de Agostinho, conforme citada por Lutero, não vem de Agostinho, mas dos escolásticos medievais. Embora a regra represente o pensamento de Agostinho, ela faz uma mudança sutil no latim de Agostinho. Agostinho prefere dizer que as obras da Trindade são inseparáveis (opera inseparabilia sunt).62 A regra escolástica substitui indivisível (indivisa sunt). Dizer que as obras da Trindade são indivisíveis coloca ênfase na unidade essencial da Trindade. A inseparabilia de Agostinho, por outro lado, tem a vantagem de direcionar nossa atenção 59

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:301; WA 54:56.30–31). Citei o Salmo 33 conforme aparece em AE. 60 On the Last Words of David, 1543 (AE 15:302; WA 54:57.20–21).

61 On the Last Words of David, 1543 (AE 15:302; WA 54:57.28–31).

62 Augustine In Johannis Evangelium Tractatus 20.3 (PL 35, 1557) et passim.

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para a ação mútua das pessoas. Ou seja, em vez de se concentrar na unidade de ação que procede de sua natureza comum, a linguagem preferida de Agostinho nos incentiva a considerar como três agentes - Pai, Filho e Espírito Santo - agem inseparavelmente e igualmente em uma ação. Em outras palavras, como três agem de tal forma que sabemos que há três agindo, ainda assim, há apenas uma ação? Pensar sobre as obras externas da Trindade dessa maneira nos força a considerar como as propriedades pessoais únicas das pessoas divinas e suas relações de origem demonstram suas obras. Lutero parece reconhecer isso. Depois de citar a regra de Agostinho, ele continua sua explicação mostrando como entendemos corretamente a diferença entre Pai, Filho e Espírito Santo em sua ação inseparável. Como os Pais gregos acima e como Agostinho, Lutero dirige a atenção do leitor para o modo de origem das pessoas divinas. As Escrituras ensinam que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são distintos dentro da única Divindade indivisível e eterna, e essa distinção diz respeito às suas relações de origem. Lutero explica: A diferença é que Ele é o Pai e não deriva Sua Divindade do Filho ou de qualquer outra pessoa. O Filho é uma pessoa distinta do Pai na mesma e única divindade paterna. A diferença é que Ele é o Filho e não tem a divindade de si mesmo, nem de ninguém além do Pai, uma vez que Ele nasceu do Pai desde a eternidade. O Espírito Santo é uma Pessoa distinta do Pai e Filho na mesma e única Divindade.

A diferença é que Ele é o Espírito Santo, que procede eternamente tanto do Pai quanto do Filho, e que não tem a Divindade de Si mesmo nem de qualquer outra pessoa, mas do Pai e do Filho, e tudo isso de eternidade a eternidade.63

As obras da Trindade para a criação são indivisíveis e sua ação mútua está de acordo com suas propriedades pessoais únicas. Ao manter essas duas percepções juntas, evitamos dividir a substância ou misturar as pessoas.64 Lutero aplica esse insight à sua obra de criação em termos que

63

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:303; WA 54:58.19–28).

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:304; WA 54:59.9–10 and AE 15:309; WA 54:63.30–31).

64

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soam muito próximos aos de Agostinho acima. Confessamos que o Pai cria, o Filho cria e o Espírito Santo cria. Além disso, insiste Lutero, falamos de sua criação mútua de acordo com suas relações de origem. Isso significa, por exemplo, que o Filho é Deus e Criador, como o Pai, mas Ele é isso a partir do Pai. Lutero continua: O Pai não deve nada pelo fato de que Ele é Deus e Criador do Filho, mas o Filho deve algo pelo fato de que Ele é Deus e Criado pelo Pai. E o fato de o Pai e o Filho serem Deus e Criador não é devido ao Espírito Santo; mas o Espírito Santo deve pelo fato de ser Deus e Criador ao Pai e ao Filho... O Pai é a fonte, ou o manancial (se é que podemos usar o termo como os pais o fazem) da Divindade, que o Filho deriva Dele e que o Espírito Santo procede Dele e do Filho, e não vice-versa.65 Quando se trata das obras externas da Trindade, devemos sempre ter em mente que estamos falando de Pai, Filho e Espírito Santo. Não existe nenhuma realidade anterior chamada "Deus" além de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Seu único modo de existência e suas relações de origem nos permitem distinguir corretamente as pessoas e entender corretamente a unidade indivisível de suas obras externas. Em termos simples, isso significa que o Pai trabalha ou age por meio do Filho no Espírito Santo; o Filho é aquele por meio de quem o Pai age; o Espírito Santo é aquele em quem e por quem o Pai e o Filho agem. Por habitarem mutuamente um no outro, o Pai, o Filho e o Espírito Santo agem inseparavelmente e igualmente em uma única ação. As percepções de Lutero tornaram-se um ponto de ênfase para os dogmáticos luteranos.

O ADENDO LUTERANO À REGRA DE AGOSTINHO

A regra escolástica atribuída a Agostinho é boa até onde se expressa. Lutero reconheceu que os Pais, e particularmente Agostinho, foram além do que a regra afirma, e incorporou essas percepções em sua discussão sobre as obras externas da Trindade. Os dogmáticos luteranos seguem Lutero de perto e transmitem suas percepções alterando 65

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:309–10; WA 54:63.35–64.7).

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explicitamente a regra escolástica atribuída a Agostinho. Isso começa com Melanchthon, mas se torna explícito com Chemnitz e Quenstedt, entre outros. Melanchthon aborda a questão das obras externas da Trindade em sua explicação inacabada do Credo Niceno. Ao final de sua discussão sobre o Segundo Artigo do Credo, Melanchthon responde a uma série de objeções cristológicas. Alguns se perguntaram se a salvação é a obra comum da Trindade ou somente de Cristo. Ele começa com um silogismo: As obras da Trindade ad extra são indivisíveis.

A salvação é uma obra ad extra.

Portanto, o Pai, o Filho e o Espírito Santo agem da mesma maneira [para nossa salvação] e é dito impropriamente a respeito de Cristo: "Ele esmagou a cabeça da serpente" (Gênesis 3.15).66

Como a salvação é uma ação externa e como todos concordam que as obras externas da Trindade são indivisíveis, deve ser o caso de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo operam nossa salvação da mesma maneira (eodem modo). Isso imediatamente apresenta um problema.

Somente o Filho assumiu a natureza humana. Somente Ele sofreu e morreu na cruz. Não se pode dizer que nem o Pai nem o Espírito Santo tenham feito isso. Ao expor o problema dessa maneira, Melanchthon se alinha com Agostinho, que já havia discutido essa mesma questão em mais de uma ocasião.67 Melanchthon começa esclarecendo a regra escolástica. Ele escreve: "As obras da Trindade ad extra são indivisíveis, preservando, é claro, as propriedades de cada pessoa."68 Sim, a obra da salvação é comum à Trindade, como a própria regra afirma. Mas é preciso dizer mais do que isso. Nossa compreensão dessa obra comum não pode obscurecer a 66

Philipp Melanchthon, Explicatio symboli Niceni, CR 23:374.

Augustine Sermon 52, 6 (WSA III/3, 53). Discutiremos esse texto em detalhes no próximo capítulo.

68 Melanchthon, Explicatio symboli Niceni, CR 23:374: “Opera trinitatis ad extra sunt indivisa, scilicet servata cuiusque personae proprietate.”

67

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distinção das pessoas, suas propriedades pessoais únicas, nem a ordem da Trindade. Em outras palavras, não devemos reduzir a obra comum da Trindade à sua essência comum e simplesmente dizer que esses atos ou essas obras são realizados pela natureza divina. Só existe o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que agem inseparavelmente e igualmente pelo poder comum de sua natureza. Não existe uma natureza comum que atue à parte das pessoas divinas. Além disso, essas pessoas divinas agem como Pai, Filho e Espírito Santo, como o Pai que eternamente gera Seu Filho e sopra o Espírito Santo, como o Filho que é eternamente gerado por Seu Pai e com Seu Pai sopra o Espírito Santo, e o Espírito Santo que eternamente procede do Pai e do Filho. Para deixar isso claro, Melanchthon acrescenta a cláusula final à regra de Agostinho: "preservando, é claro, as propriedades de cada pessoa".

Melanchthon explica brevemente como devemos entender o acréscimo à regra de Agostinho. Três coisas devem ser lembradas com a questão em si: o Filho assumiu sozinho a natureza humana, o Pai enviou o Filho e o Espírito Santo e, finalmente, "o Filho não age por si mesmo, mas através de si mesmo" (agit Filius non a se sed per se).69 Melanchthon acrescenta muito em poucas palavras. Todas as três declarações são expressões abreviadas que apontam para compromissos trinitários maiores. Sim, a salvação é a obra comum da Trindade, mas essa verdade bíblica não ignora a distinção de pessoas. Na questão específica na questão sobre a obra salvadora do Filho, devemos sempre ter em mente que somente Ele assumiu a natureza humana e não outra pessoa.70 Além disso, o Pai enviou o Filho e o Espírito Santo. Esse envio tem a ver com suas relações eternas um com o outro e com a maneira pela qual entendemos seu trabalho mútuo e inseparável. Esse é o ponto que enfatizamos acima.

O comentário final de Melanchthon requer mais explicações. A distinção entre a ação do Filho por meio de si mesmo e não a partir de si mesmo vem de Hilário de Poitiers. Hilário escreve: 69

Melanchthon, Explicatio symboli Niceni, CR 23:374.

Melanchthon, Explicatio symboli Niceni, CR 23:374. Melanchthon não explica melhor a relação entre a Encarnação e as obras da Trindade. No próximo capítulo, veremos como Agostinho e Lutero abordam essa questão.

70

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O Filho age por meio de si mesmo de tal forma que não age por si mesmo, e não age por si mesmo de tal forma que age por meio de si mesmo. Compreenda o fato de que o Filho age e o Pai age por meio dele. Ele não age por si mesmo, uma vez que temos de tornar conhecido como o Pai permanece nele. Ele age por meio de si mesmo quando ele mesmo faz as coisas que agradam ao Pai, de acordo com a natureza de seu nascimento como Filho.71

Pedro Lombardo incorporou o comentário de Hilário em suas Sentenças. Lombardo é provavelmente a fonte de Melanchthon. Lombardo observa que alguns usam a afirmação de Hilário para dizer que "o Filho age por meio de si mesmo, mas não por si mesmo" (Filius agit per se sed non a se).72 Alguns teólogos usaram a distinção de Hilário para explicar o que significa dizer que o Filho é sábio. O Filho não é sábio por si mesmo ou a partir de si mesmo; ao contrário, Ele é sábio pelo Pai e a partir do Pai. Sua sabedoria, assim como Seu ser e poder, provêm eternamente do Pai. Como o Pai e o Filho são um em essência, não se pode dizer que o Filho é sábio "por si mesmo", pois isso dividiria a essência. Em vez disso, o Filho é sábio por meio de Sua essência divina, que Ele recebe eternamente do Pai. Como tratamos em nosso capítulo anterior, os argumentos semânticos desempenham um papel importante nas discussões trinitárias dos escolásticos e reformadores. Aqui, o discurso deles é padronizado de acordo com a maneira pela qual as Escrituras distinguem as pessoas divinas para nós: o Pai não vem de ninguém; o Filho não vem de si mesmo, mas do Pai; e o Espírito Santo não vem de si mesmo, mas do Pai e do Filho. Esse padrão confirma como entendemos os atos e atributos das pessoas divinas. O Pai é a principal fonte e origem do Filho e do Espírito. Isso significa que o Filho e o Espírito dependem do Pai para existir e, portanto, também para seus atos e atributos. Assim como o Filho recebe eternamente Seu ser do Pai, Ele também recebe eternamente Seus atos e atributos do Pai; assim como o Espírito Santo recebe eternamente Seu ser do Pai e do Filho, Ele também recebe eternamente Seus atos e 71

Hilary of Poitiers De Trinitate 9.48 (Fathers of the Church, 370), alterado.

Lombard, Sentences, I, 32, 3.3 in Peter Lombard, The Sentences, trans. Giulio Silvano (Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 2007) 177.

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atributos do Pai e do Filho. O Pai opera por meio do Filho no Espírito Santo, o Filho é aquele por meio de quem o Pai opera, o Espírito Santo é aquele em quem e por quem o Pai e o Filho operam.

A afirmação de Melanchthon de que o Filho não age por si mesmo (a se), mas por meio de si mesmo (per se) alerta o leitor para esse compromisso escolástico e patrístico mais amplo de distinguir corretamente as pessoas e observar suas obras inseparáveis. O Filho nunca age separado do Pai ou do Espírito Santo. Com isso em mente, continua Melanchthon, dizemos corretamente que o Pai salva e vivifica por meio do Filho (per Filiium)73. Essa ordem de ação, que corresponde à ordem das pessoas, preserva suas propriedades pessoais e demonstra nossa compreensão de sua ação mútua e inseparável. Melanchthon termina com três textos da Escritura que demonstram isso para ele. Paulo escreve: "Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Cor 15:57). Mais uma vez, Paulo escreve: "Cristo foi feito por Deus [o Pai] para nós sabedoria, justiça e redenção" (1 Cor 1:30). Por fim, o próprio Senhor diz: "Ninguém vem ao Pai senão por mim" (Jo 14.6 )74 Quando Melanchthon faz uso da regra de Agostinho, conforme transmitida pelos escolásticos, ele sempre retorna aos pontos acima. Ele esclarece que a regra deve ser usada de forma a preservar as propriedades únicas e a ordem das pessoas.75 Além disso, ele lembra ao leitor que o Filho não opera por si mesmo, mas por meio de si mesmo.76 Como os Pais frequentemente colocam, as obras externas da Trindade vêm do Pai por meio do Filho no Espírito Santo. O acréscimo de Melanchthon à regra de Agostinho assegura esse entendimento das Escrituras e se torna um elemento fixo nas obras dos dogmáticos.

73

Melanchthon, Explicatio symboli Niceni, CR 23:374.

Melanchthon, Explicatio symboli Niceni, CR 23:374. Os versículos das Escrituras são traduzidos de acordo com o texto de Melanchthon.

75 Melanchthon, Explicatio symboli Niceni, CR 23:511: “servata cuiusque personae proprietate, vel servato ordine personarum.”

76 Melanchthon, Explicatio symboli Niceni, CR 23:511: “Unde et regula Augustini tradita est: Agit Filius non a se, sed per se.”

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Martin Chemnitz reúne os pensamentos de Lutero e Melanchthon e transmitiu aos dogmáticos a declaração definitiva sobre as obras externas da Trindade.77 Chemnitz afirma duas regras da tradição. A primeira é a regra de Agostinho de que as obras ad extra da Trindade são indivisíveis. A segunda afirma que as obras internas da Trindade (opera ad intra) são divididas. Essa segunda regra mostra como a ordem das pessoas e suas propriedades pessoais as distinguem umas das outras. Somente o Pai gera o Filho, somente o Filho é gerado pelo Pai, e somente o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Depois de levantar possíveis objeções a essas regras, Chemnitz resume porque elas são importantes para nós.

As pessoas se distinguem não apenas por diferenças internas, como o fato de que uma gera, outra é gerada e a terceira procede, mas também por diferenças externas... Pois nas obras externas [opera ad extra] as três pessoas estão juntas e agem juntas, e ainda assim com uma certa ordem e com as propriedades de cada pessoa preservadas.78 Como vimos acima com os Pais e com Lutero, as marcas distintivas das pessoas informam nossa compreensão de suas obras externas. Chemnitz afirma essa verdade ao incorporar a cláusula de Melanchthon.79 A garantia bíblica para esse adendo vem de Rm 11.36: "Porque dele, e por ele, e nele, são todas as coisas; a ele seja a glória e a honra". Chemnitz explica: Porque, como o apóstolo está falando de obras externas, ele 77

Francis Pieper direciona o leitor a Chemnitz para entender as obras ad extra e o adendo luterano. Veja Pieper, Christian Dogmatics 1:424 n. 57.

78 Chemnitz, Loci Theologici 1:107–8.

79 Chemnitz não menciona Melanchthon aqui. Em vez disso, ele credita a Agostinho essa linguagem. Embora a obra citada por Chemnitz tenha circulado sob o nome de Agostinho, ela vem de Vigílio de Thapsus. Veja ps-Augustine (Vigilius of Thapsus), Contra Felicianum 3 (PL 42, 1159): "nam dum utrumque unum dico, substantiam veri Patris ac veri Filii ex toto non separo: et dum non eumdem Patrem quem Filium predico, utriusque personam servata uniuscuiusque proprietate discerno. Itaque si substantiam quaeris, ipsa Trinitas unus est Deus; si personam, alter est Filius." Vigilius não está falando sobre as obras externas da Trindade, mas sim sobre a coigualdade do Pai e do Filho e suas propriedades pessoais únicas.

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menciona a única essência eterna: "A ele seja dada honra", e não "a eles". E, no entanto, assim como há uma essência sem confusão de pessoas, essa essência realiza as obras exteriores em comum para as três pessoas, sem confusão, mas sugerindo a diferença de pessoas - 'dele, nele e por ele'. . . Em resumo, assim como acreditamos na unidade da essência e, no entanto, não devemos permitir a confusão das pessoas, também devemos entender esta regra: as obras externas são comuns às três pessoas, mas de tal forma que as diferenças e propriedades das pessoas não sejam confundidas.80

Para Chemnitz, essas duas regras se complementam e nos mostram como confessar de forma adequada e responsável nossa fé na Trindade.81 A Escritura molda nossa linguagem de tal forma que reconhecemos as obras externas da Trindade sem dividir a substância ou misturar as pessoas. E isso nós fazemos quando esclarecemos corretamente a regra de Agostinho. Chemnitz termina sua discussão afirmando enfaticamente a importância dessas regras para os fiéis: "Não fique com a noção de que essas observações são sutilezas tolas. Mas porque Deus deseja ser conhecido, invocado e proclamado por nós como Ele se revelou, portanto, devemos fazer todo o esforço para acreditar de uma maneira piedosa nesses grandes mistérios e falar reverente e sobriamente sobre eles."82 Johann Andreas Quenstedt oferece um resumo conciso do argumento feito por Lutero, Melanchthon e Chemnitz. É também por 80

Chemnitz, Loci Theologici 1:108.

Johann Gerhard também enfatiza esse adendo. Perto do final de seu locus sobre a interpretação das Escrituras, Gerhard introduz uma série de obscuridades bíblicas que tocam nos artigos de fé. Uma dessas obscuridades diz respeito a um entendimento correto do trabalho inseparável da Trindade. Ele escreve: "No artigo sobre Deus, o seguinte axioma deve ser observado: as obras da Trindade ad extra são indivisíveis, preservando, no entanto, a ordem e a distinção das pessoas." Gerhard, De Interpretatione Scripturae Sacrae, Locus 2, §191 (ed. Cotta, 83). Gerhard faz a mesma observação em sua discussão de como a Escritura distingue as pessoas da Trindade: De Tribus Elohim, Locus 4/1, §52 (ed. Cotta, 203).

82 Chemnitz, Loci Theologici 1:109.

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meio de Quenstedt, até onde eu sei, que o adendo à regra de Agostinho passa para as discussões trinitárias do século XX.83 Quenstedt enfatiza que a distinção das pessoas divinas diz respeito não apenas à relação entre elas, à ordem das pessoas e às suas relações de oposição, mas também às suas obras externas: "A diferença real das pessoas divinas surge de sua ordem, tanto na subsistência quanto na atividade."84 Como vimos com Gerhard e Calov, Quenstedt esclarece imediatamente o que ele quer dizer com ordem. Entre as pessoas divinas não há ordem de natureza, tempo ou dignidade, mas apenas uma ordem de origem e relação: "O Pai não vem 83

Veja, por exemplo, Herman Bavinck, Reformed Dogmatics, ed., John Bolt (Grand Rapids: Baker Academic, 2004), 2:318: "As obras de Deus ad extra são indivisíveis, embora a ordem e a distinção das pessoas sejam preservadas. John Bolt (Grand Rapids: Baker Academic, 2004), 2:318: "As obras de Deus e extra são indivisíveis, embora a ordem e a distinção das pessoas sejam preservadas".

Bavinck oferece isso como uma citação, mas nenhuma referência é dada. O mesmo texto é dado por Emil Brunner e vem de Quenstedt. Emil Brunner, The Christian Doctrine of God: Dogmatics, trans. Olive Wyon (Filadélfia: Westminster Press, 1950), 1:234: "A afirmação que, do ponto de vista da teologia trinitária, foi estabelecida como uma 'regra' e que foi repetida inúmeras vezes: opera trinitatis ad extra sunt indivisa, deve, portanto, ser usada com extrema cautela."

Brunner argumenta que essa regra não pode ser usada "sem a 'cláusula agostiniana': servato discrimine et ordine personarum". Brunner faz referência ao Kopendium de Luthardt e dá a impressão de que essa declaração vem de Luthardt. Não é verdade. Luthardt está oferecendo uma longa citação de Quenstedt. Veja Christoph Ernst Luthardt, Kopendium der Dogmatik (Leipzig, 1866), 80. Quenstedt, por meio de Luthardt, parece ser a fonte tanto para Bavinck quanto para Brunner. Ambos, é claro, poderiam ter recorrido a fontes reformadas para esse ensinamento. O exemplo reformado mais próximo que encontrei é Christoph Pezel, Argumentorum et Obiectionum De Articulis Doctrinae Christianae (Neustadt an der Weinstrasse, 1591), 100: "Agostinho diz: 'assim como as pessoas são inseparáveis, elas também atuam inseparavelmente'. No entanto, esta restrição deve ser acrescentada: preservar a ordem das pessoas e suas propriedades pessoais". Pezel lecionou na Universidade de Wittenberg e, em 1569, era o líder de sua faculdade de teologia.

Pezel ensinava uma visão espiritualizada da Ceia do Senhor e alinhava com os filipistas moderados. Parece provável que ele tenha aprendido esse adendo com Melanchthon. Para declarações semelhantes, veja as seleções de Gulielmus Bucanus, Johannes Alstedius e Johannes Marckius em Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics, trans. G. T. Thompson (Grand Rapids: Baker Book House, 1950), 112, 116-18.

84 Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 327, thesis 17.

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de ninguém, o Filho vem do Pai e o Espírito Santo vem de ambos."85 A Escritura reflete ainda mais a ordem de atividade de acordo com a ordem de origem e relação. Quenstedt, assim como Chemnitz acima, apela para Rm 11.36. Quenstedt explica: "De acordo com os santos Pais, a preposição 'de' refere-se ao Pai, 'através' do Filho, e 'no' Espírito Santo.

No entanto, essas preposições não introduzem nenhuma desigualdade entre as pessoas divinas na obra da criação, mas revelam sua ordem na obra".86 Para Quenstedt, a regra de Agostinho enfatiza a unidade das pessoas em suas obras externas.87 A regra, no entanto, não transmite suficientemente a plenitude do testemunho das Escrituras e, portanto, devemos dizer mais do que a regra faz. Quenstedt escreve: "Devemos acrescentar esta cláusula à regra de Agostinho: a ordem e a distinção das pessoas são preservadas". As obras da Trindade na criação são uma só e estão de acordo com a ordem e as propriedades pessoais das pessoas.

Quenstedt explica: "Uma vez que o Pai tem sua essência a partir de si mesmo, ele age a partir de si mesmo, o Filho age e atua a partir do Pai, e o Espírito Santo age e atua a partir de ambos."88 Jesus reflete essa verdade quando diz: "Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer por si mesmo, mas somente o que vê o Pai fazer. Pois tudo o que o Pai faz, o Filho também o faz" (Jo 5.19). As obras indivisíveis da Trindade ad extra seguem o modo de existência (τρόποςὑπάρξεως). Quenstedt explica: "O Filho, assim como não existe por si mesmo, mas tem sua essência do Pai através da geração eterna, assim também não tem o poder de agir a partir de si mesmo nem age a partir de si mesmo, mas a partir do Pai. No mesmo sentido, como o Espírito Santo procede também do Filho, ele não fala de si mesmo, mas fala o que recebe de Cristo, como é dito em João 16.13-14."89 Quando Quenstedt se volta para a criação, ele retoma sua 85

Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 327, thesis 18.

Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 327, thesis 19.

87 Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 328, thesis 21.

88 Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 328, thesis 21.

89 Quenstedt, Systema Theologicum, I, 9 (Wittenberg, 1691), 328, thesis 21.

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discussão sobre a opera ad extra. As obras da Trindade na criação são uma só e isso reflete sua unidade essencial. No entanto, observa Quenstedt, "o modo e a ordem de sua ação são distintos". Essa distinção diz respeito à ordem das pessoas divinas e suas propriedades pessoais.

Quenstedt explica: "Na medida em que o Pai tem sua essência a partir de si mesmo, ele age a partir de si mesmo. Além disso, o Filho age e atua a partir do Pai e o Espírito Santo age e atua a partir do Pai e do Filho.

O Pai atua por meio do Filho e do Espírito Santo e não de outra forma."90 Quenstedt então oferece a regra de Agostinho, mas desta vez deixa o nome de Agostinho de fora e inclui o adendo como parte da regra. Ele escreve: " fato de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo criaram o mundo é provado pela regra teológica comum de que 'as obras da Divindade ad extra são indivisíveis e a ordem e a distinção das pessoas são preservadas na obra comum de todas as três pessoas'."91 O adendo luterano agora se tornou parte da regra teológica comum.

CONCLUSÃO

Os Pais e os Reformadores insistiam que as obras da Trindade na criação são indivisíveis. Se formos descrever, então devemos dizer que as ações são compartilhadas numericamente. Elas são uma, assim como o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um. Qualquer que seja a ação, nós a contamos como uma, numericamente uma, assim como contamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo como um só Deus. As três pessoas divinas possuem um poder, não três poderes, da mesma forma que possuem uma essência, não três essências. Por essa razão, o Pai não realiza nenhuma ação em relação à criação sem o Filho e o Espírito; o Filho não realiza nenhuma ação em relação à criação sem o Pai e o Espírito; o Espírito não realiza nenhuma ação sem o Pai e o Filho. Seguem-se dois pontos importantes, porém difíceis. Primeiro, não podemos contar as ações contando as pessoas. Três pessoas não equivalem a três ações. Segundo, 90

Quenstedt, Systema Theologicum, I, 10 (Wittenberg, 1691), 416, thesis 7.

Quenstedt, Systema Theologicum, I, 10 (Wittenberg, 1691), 416, tese 10. Para a modificação da regra de Agostinho em dogmáticos posteriores, consulte David Hollaz, Examen Theologicum Acroamaticum, I, 3, Q. 4 (Leipzig, 1763), 351.

Embora Hollaz não mencione Quenstedt, ele o cita quase palavra por palavra.

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a ação compartilhada não anula a distinção das três pessoas. Não há como passar por trás das pessoas para alguma realidade anterior que poderíamos chamar de Deus. O Pai é Deus Pai, o Filho é Deus Filho e o Espírito Santo é Deus Espírito Santo.

Os Pais e especialmente os dogmáticos luteranos argumentam ainda que a ação ou obra das pessoas divinas corresponde à singularidade das pessoas. Uma vez que o Pai é sempre Pai e nunca Filho e o Filho é sempre Filho e nunca Pai, segue-se que a obra comum do Pai e do Filho é realizada de uma forma que corresponde às propriedades distintivas dessa pessoa. O Pai age de uma forma que se distingue do Filho, mas não de uma forma que prejudique a identidade numérica de sua obra. Isso significa que não apenas a ordem das pessoas divinas, conforme revelada nas Escrituras, influencia essa questão das obras ad extra, mas também a incomunicável singularidade das próprias pessoas divinas. E tudo isso tem como objetivo confessar a unidade única, a unissima de Lutero, das pessoas divinas. Essa unidade é sempre a Trindade.

As percepções dos Pais e dos reformadores fornecem as ferramentas necessárias para melhor entender as obras e os atributos da Trindade, conforme conhecidos nas Escrituras. Embora suas obras sejam comuns, embora trabalhem de forma inseparável, as Escrituras atribuem certas obras ou atributos a certas pessoas. Como podemos entender corretamente essas duas verdades? Por que as Escrituras atribuem sabedoria ao Filho, chamando-O de sabedoria de Deus, quando a sabedoria pertence igual e indivisivelmente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo? Muito relacionada a essa está a questão mais ampla de como entendemos os atributos de Deus. Qual é a relação entre um atributo e outro? Se a essência de Deus é simples, como a tradição sempre confessou, o que significa distinguir entre a misericórdia de Deus e a justiça de Deus ou a justiça de Deus e a santidade de Deus? Se a misericórdia é diferente da justiça e ambas são diferentes da justiça e da santidade, então o que significa afirmar a unidade e a simplicidade de Deus? Os argumentos da parte 3 nos prepararam para abordar essas questões complicadas.

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CONTEÚDO

15 UNIDADE NA TRINDADE: APROPRIAÇÃO, ATRIBUTOS E SIMPLICIDADE DIVINA

A regra de Agostinho afirma claramente que as obras externas da Trindade são indivisíveis. A igreja tem confessado consistentemente que não se deve atribuir uma obra externa a uma pessoa com a supressão da outra. Não podemos dizer que o Pai cria sem o Filho e o Espírito Santo, nem que o Filho redime sem o Pai e o Espírito Santo, nem que o Espírito Santo santifica sem o Pai e o Filho. Mas, o Credo Apostólico afirma exatamente o que a igreja diz que não deve acontecer. Lutero escreve: "O Credo pode ser resumido nestas poucas palavras: Creio em Deus Pai, que me criou; creio em Deus Filho, que me redimiu; creio no Espírito Santo, que me santifica."1 Será que o resumo de Lutero do Credo Apostólico divide as obras da Trindade? Por que atribuir a criação, a redenção e a santificação a pessoas específicas quando as Escrituras afirmam claramente que essas obras pertencem igual e inseparavelmente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo?

Da mesma forma, se Deus é um e os atributos essenciais do Pai pertencem ao Filho e ao Espírito Santo de forma igual e indivisível, por que as Escrituras dizem que Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus? O que significa identificar o Espírito Santo como o Espírito de santidade ou o Espírito da verdade? Se os atributos essenciais, assim como os atos externos da Trindade, pertencem igual e indivisivelmente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como a igreja corretamente confessa, por que as Escrituras e nossos credos às vezes os atribuem mais particularmente a uma pessoa? A explicação dada pelos Pais e pelos Reformadores foi que os atos externos e os atributos essenciais de Deus podem ser apropriados ou atribuídos mais particularmente a uma pessoa 1

CM II.7.

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a fim de revelar mais plenamente as pessoas da Trindade aos nossos modos de pensar de criatura. Essa doutrina da apropriação nos auxilia conceitualmente e visa a concentrar nossas orações e adoração nas pessoas divinas. A seguir, mostraremos as diferentes maneiras pelas quais a igreja tem discutido essa doutrina e destacaremos especialmente a importância prática dela.

Nossa discussão sobre a apropriação fornecerá o contexto adequado para discutirmos mais formalmente os atributos essenciais de Deus. Começaremos com uma pergunta bastante básica. Onde deve ocorrer uma discussão sobre os atributos essenciais? Nossos pais luteranos estavam divididos quanto a essa questão. Os primeiros dogmáticos não designaram nenhuma área de sua dogmática para uma discussão sobre os atributos. Em vez disso, eles os discutiam no contexto das obras de Deus, o que envolvia toda a sua dogmática. Os dogmáticos posteriores abordaram os atributos em um locus separado sobre a natureza de Deus antes de se voltarem para uma discussão sobre a Trindade.

Embora uma série de razões explique essa mudança através dos dogmáticos posteriores, nossa preferência permanece com os primeiros dogmáticos. Qualquer discussão sobre os atributos essenciais precisa atender ao assunto desses atributos - Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo - e às obras feitas pela Trindade que nos dão a conhecer esses atributos. Ao adotar essa abordagem, que nossos pais luteranos do século XVI destacaram, toda a dogmática se torna uma reflexão sustentada sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Apesar da diferença entre os dogmáticos quanto à colocação dos atributos em sua dogmática, eles concordavam em várias questões metafísicas e lógicas difíceis. Qual é a relação entre os atributos e a essência de Deus? Qual é a relação entre os múltiplos atributos de Deus? Eles são diferentes uns dos outros? A diferença está nos atributos e, portanto, em Deus, ou está em nós e em nosso modo de conceber e falar sobre "a simples multiplicidade" da essência de Deus?2 Em um nível mais básico, como devemos entender a correspondência entre os atributos atribuídos a Deus pelas Escrituras e nossa própria posse de atributos? Deus é amor e nós amamos. Nosso 2

Augustine The Trinity VI.6 (WSA I/5, 209).

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amor corresponde ao amor que Deus é? Será que entendemos o amor de Deus refletindo primeiro sobre o nosso amor? Da mesma forma, Deus é e nós somos. Nosso ser corresponde ao ser de Deus?

Essas questões apresentam dificuldades porque a confissão da igreja sobre a unidade da Trindade, a unicidade de Deus, pressupõe a simplicidade de Deus. Muitos em nossos dias evitam as difíceis questões acima levantadas, abandonando o ensino tradicional da igreja sobre as apropriações divinas e a simplicidade divina. Eles argumentam que o ensinamento sobre a simplicidade, desconhecido das Escrituras, é incoerente e reduz "Deus" a uma propriedade.3 Em outras palavras, a doutrina da simplicidade divina, afirmada em toda a tradição cristã desde os Pais até os Reformadores, é estranha às Escrituras e é uma confissão cristã não adequada de Deus. Argumentaremos a seguir que essa rejeição da simplicidade procede de um falso entendimento do ensinamento conforme encontrado nos Pais e nos Reformadores, e esse falso entendimento leva às questões aparentemente intransponíveis acima.

APROPRIAÇÃO DIVINA

Por que as Escrituras e o Credo dos Apóstolos atribuem certos atributos ou obras ao Pai, ao Filho ou ao Espírito Santo? A explicação da igreja para esta prática é a apropriação. Embora esse ensinamento nos conduza aos Pais, a terminologia é medieval. Tomás de Aquino definiu a apropriação como a extração de um desenho de atributo essencial comum a todas as três pessoas em direção ao que é exclusivo de cada pessoa (commune trahere ad proprium), ou em direção ao que tem uma semelhança maior com os propria de uma pessoa do que com os propria de outra.4 Por 3

Alvin Plantinga, Does God Have a Nature? (Milwaukee: Marquette University Press, 1980); Richard J. Plantinga, Thomas R. Thompson e Matthew D. Lundberg, An Introduction to Christian Theology (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), 104: A doutrina da simplicidade divina não tem "nenhuma base bíblica real e, de fato, trabalhou para derrotar os recursos de um trinitarianismo completo". Para uma crítica do argumento de Alvin Plantinga de que a doutrina da simplicidade divina reduz Deus a uma propriedade, veja William Mann, "Divine Simplicity," Religious Studies 18 (1982): 451-71.

4 Thomas Aquinas De Veritate 7, 3c.

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exemplo, o poder tem a natureza de um princípio e o Pai é o princípio da Divindade. Portanto, o poder tem uma certa semelhança com os propria do Pai e é adequadamente atribuído a Ele. Da mesma forma, a sabedoria tem semelhança com o Filho, que é a Palavra, e "a palavra nada mais é do que o conceito de sabedoria".5 Assim também a bondade, como a natureza e a semelhança do amor, pode ser atribuída de forma mais adequada ao Espírito Santo. Nesse sentido, a tríade de poder, sabedoria e bondade corresponde ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Essas apropriações iluminam ainda mais nossa compreensão das obras externas da Trindade. Como atribuímos poder ao Pai e esse poder é demonstrado principalmente na criação, "é atribuído a ele ser o Criador".6 Os escolásticos exploraram longamente a apropriação de atributos essenciais pelas pessoas divinas. Ao Pai atribuíam eternidade, unidade e poder; ao Filho atribuíam forma, igualdade e sabedoria; e ao Espírito Santo atribuíam uso, concórdia e bondade. Além disso, mostraram como a linguagem de Paulo de "dEle, por meio dEle e nEle" (Rm 11.36) corresponde a Pai, Filho e Espírito Santo.7 Em cada caso, eles buscaram a lógica subjacente para explicar por que um atributo essencial pode ser atribuído mais adequadamente a uma pessoa divina do que à outra. Embora suas explicações muitas vezes pareçam excessivamente especulativas e, às vezes, inteligentes demais, seu objetivo era piedoso.

Eles buscavam manifestar a verdade da Trindade.8 O propósito da apropriação era revelar a distinção das pessoas aos nossos padrões de pensamento de criaturas. Os argumentos escolásticos para a apropriação nunca foram arbitrários. Regras foram seguidas para demonstrar apropriações adequadas. Por exemplo, seus argumentos atendem consistentemente às propriedades pessoais únicas das pessoas divinas e à 5

Thomas Aquinas ST I, 39.8c.

Thomas Aquinas ST I, 45.6 ad 2.

7 As quatro tríades tradicionais são apresentadas nas Sentenças de Pedro Lombardo I, 31, 2 (Silano, 166-69): eternidade, forma, uso; I, 31, 2-3 (Silano, 16970): unidade, igualdade, concórdia; I, 34, 3-5 (Silano, 191-93): poder, sabedoria, bondade; I, 36, 3-5 (Silano, 200-202): dele, por meio dele, nele (Rm 11.36). The Sentences, trans. Giulio Silano (Toronto: Pontifício Instituto de Estudos Medievais, 2007).

8 Thomas Aquinas ST I, 39.7c e ad 1. Tomás segue Alberto Magno nesse ponto.

6

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ordem e origem do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Esse é um ponto importante a ser enfatizado. As apropriações divinas não são as propriedades pessoais do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Embora o poder seja atribuído ao Pai, esse atributo essencial é compartilhado de forma igual e indivisível pelo Pai, Filho e Espírito Santo. Portanto, o Pai é Todo-Poderoso, o Filho é Todo-Poderoso e o Espírito Santo é TodoPoderoso; eles não são três Todo-Poderosos, mas um Todo-Poderoso.

Nenhuma apropriação jamais é declarada de modo a excluir as outras duas pessoas. As propriedades pessoais são reais e eternamente distinguem as pessoas de nós. As apropriações divinas, por outro lado, são marcadores conceituais que auxiliam nossa compreensão de criaturas a entender melhor as três pessoas divinas e sua unidade essencial.

Lutero e nossos dogmáticos luteranos pertencem a essa tradição escolástica, mas são mais reservados ao discutir as várias tríades postuladas pelos Pais e Escolásticos. Embora você possa encontrar as tríades tradicionais nas obras de nossos dogmáticos, suas discussões tendem apenas a resumir os insights escolásticos. Apesar dessa reserva, nossos pais luteranos concordam plenamente com os escolásticos que as apropriações divinas ajudam a revelar as pessoas divinas para nós. Os escolásticos tendiam a mostrar isso apelando para os atributos essenciais.

Nossos dogmáticos luteranos se concentram mais nos atos externos de criação, redenção e santificação. Ao fazer isso, eles concentram seus esforços na linguagem das Escrituras e do Credo Apostólico e, por extensão, nos comentários de Lutero sobre o Credo no Catecismo Maior.

Como vimos em nossos capítulos anteriores, as breves reflexões de Lutero sobre essas questões trinitárias exercem considerável influência sobre os dogmáticos. Vemos novamente sua influência sobre essa questão da apropriação e, particularmente, sua maneira um tanto indireta de mostrar as apropriações divinas.

O insight de Lutero sobre o propósito das apropriações divinas procede de sua reflexão sobre as obras externas indivisíveis da Trindade.

O batismo de Cristo forneceu a base bíblica para ambas as discussões. A escolha de Lutero dos textos das escrituras não foi arbitrária. O batismo de Cristo serviu como um importante texto de prova trinitária para os Pais 477

e os Reformadores. Johann Gerhard escreve: "Assim como os antigos devotos diziam: 'Se você não acredita na Trindade, acompanhe João até o Jordão e você a verá.'"9 Embora o batismo de Cristo mostre a Trindade com bastante clareza, ele também apresenta dificuldades para o leitor atento. No batismo de Cristo, as Escrituras distinguem o Pai, o Filho e o Espírito Santo fazendo três coisas diferentes. A voz do Pai vinda do céu é diferente do Filho sendo batizado por João, e ambos são diferentes do Espírito Santo descendo corporalmente na forma de uma pomba.

Ninguém menos que Agostinho, a quem se atribui a regra da igreja sobre as obras indivisíveis da Trindade, observa essa dificuldade em um sermão sobre o batismo de Cristo: "Eu me atrevo a dizer (digo timidamente, mas ainda assim me atrevo a dizer), temos os três aparentemente separáveis . . . Esses três são aparentemente separados por lugar, separados por função, separados por ação."10 Assim que Agostinho diz isso, ele se antecipa às fortes objeções da congregação. Eles lhe dirão: Lembre-se de que você está falando como católico, falando para católicos. Nossa fé, afinal de contas, ou seja, a fé verdadeira, a fé correta, a fé católica, que não é um feixe de opiniões e preconceitos, mas um resumo de testemunhos bíblicos, não repleta de temeridade herética, mas fundamentada na verdade apostólica - nossa fé insiste nisso.

Isso é o que sabemos, isso é o que acreditamos; isso, mesmo que não o vejamos com nossos olhos, nem mesmo com nosso coração, enquanto estivermos sendo purificados pela fé, isso, mesmo assim, nós mantemos com a fé mais firme e ortodoxa, que Pai, Filho e Espírito Santo são uma trindade ou tríade inseparável; um Deus, não três deuses; mas um 9

Johann Gerhard, Theological Commonplaces: On the Nature of God and On the Trinity, trans. Richard Dinda (St. Louis: CPH, 2007), Exegesis III, §81, 338. Essa parece ser a paráfrase do próprio Gerhard de uma longa citação de Epifânio, conforme citado por Martin Chemnitz em sua própria discussão sobre o batismo de Cristo. Martin Chemnitz, Harmoniae Evangelicae, cap. 17 (Genebra, 1628), 190. Cf. Epifânio, Panarion, 62, 5.1-6.5 (Against Sabellians) em The Panarion of Epiphanius of Salamis, Books II and III De Fide, trans. Frank Williams, 2a ed.

(Leiden: Brill, 2013), 126-27.

10 Augustine Sermon 52, 2 (WSA III/3, 51).

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Deus de tal forma que o Filho não é o Pai, que o Pai não é o Filho, que o Espírito Santo não é nem o Pai nem o Filho, mas o Espírito do Pai e do Filho.11

Depois de apresentar essa resposta de sua congregação, depois de reconhecer que as Escrituras parecem identificar três pessoas agindo separadamente e, ainda assim, a fé nos obriga a confessar três pessoas que agem inseparavelmente, para que não dividamos a essência, Agostinho simplesmente pergunta: "Então, o que devemos fazer?"12 Nosso capítulo anterior mostrou o compromisso da igreja com as obras externas inseparáveis e indivisíveis da Trindade. Todas as obras externas da Trindade vêm do Pai por meio do Filho no Espírito Santo.

Esse é o primeiro ponto apresentado por Agostinho em seu sermão. Ele começa com o que as Escrituras dizem sobre a criação. Vimos em nossos capítulos anteriores que a criação pertence somente a Deus. As Escrituras marcam a identidade única de YHWH no Antigo Testamento, atribuindo a criação ao Pai, ao Filho/Palavra e ao Espírito/Respiro. O Novo Testamento declara inequivocamente a identidade divina de Cristo ao afirmar que "todas as coisas foram feitas por intermédio dele" (Jo 1.3) e "nele todas as coisas subsistem" (Cl 1.17). Agostinho ensaia tudo isso e conclui: "Assim, o Pai nada faz sem o Filho, e o Filho nada faz sem o Pai."13 Eles trabalham inseparavelmente para a criação. E aqui surgem problemas. Isso significa que também devemos dizer que o Pai nasceu da Virgem Maria, sofreu sob Pôncio Pilatos, morreu, ressuscitou e subiu ao céu? Agostinho responde: "De modo algum. Não dizemos isso porque não acreditamos nisso."14 Agostinho admite que isso parece contraditório.

Por um lado, ele demonstrou, de acordo com as Escrituras, que o Pai não faz nada sem o Filho, nem o Filho sem o Pai. Por outro lado, ele também demonstrou, de acordo com as Escrituras, que o Filho, e não o Pai, nasceu da Virgem Maria, sofreu sob Pôncio Pilatos, morreu, ressuscitou e ascendeu ao céu. Então, qual é a verdade? Eles agem de forma inseparável 11

Augustine Sermon 52, 2 (WSA III/3, 51).

Augustine Sermon 52, 3 (WSA III/3, 51).

13 Augustine Sermon 52, 5 (WSA III/3, 52).

14 Augustine Sermon 52, 6 (WSA III/3, 53).

12

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ou não? A resposta não é escolher um em detrimento do outro, mas sim entender corretamente o que ambos significam. Ele explica: O Filho, de fato, e não o Pai, nasceu da Virgem Maria; mas esse nascimento do Filho, e não do Pai, da Virgem Maria foi obra tanto do Pai quanto do Filho. Não foi o Pai, mas o Filho que sofreu; no entanto, o sofrimento do Filho foi obra tanto do Pai quanto do Filho. Não foi o Pai que ressuscitou, mas o Filho; contudo, a ressurreição do Filho foi obra tanto do Pai quanto do Filho.15

Agostinho recorre imediatamente às Escrituras para apoiar essas afirmações. De acordo com as Escrituras, o nascimento do Filho foi obra do Pai: "Mas quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para redimir os que estavam sob a lei, a fim de recebermos a adoção como filhos" (Gl 4.4-5). Da mesma forma, as Escrituras atribuem o nascimento do Filho ao Filho: "Cristo Jesus, que, embora fosse em forma de Deus... esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo, nascendo à semelhança dos homens" (Fp 2.5-7). Da mesma forma, quando a Virgem Maria perguntou ao anjo Gabriel como ela daria à luz, Gabriel respondeu: "O Espírito Santo descerá sobre você, e o poder do Altíssimo envolverá com sua sombra; portanto, a criança que nascerá será chamada de santa - o Filho de Deus" (Lc 1.35). Agostinho mostra como as Escrituras também falam sobre a paixão e a ressurreição do Filho.16 Observando as Escrituras, vemos a distinção das pessoas e sua ação inseparável. Somente o Filho, e não o Pai ou o Espírito, nasceu da Virgem Maria e, ainda assim, o nascimento foi obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Martinho Lutero usa o batismo de Cristo e os insights de Agostinho para explicar como as pessoas divinas agem inseparavelmente, mas também permanecem distintas.17 O Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma corpórea, como uma pomba, e a voz do Pai foi ouvida do 15

Augustine Sermon 52, 8 (WSA III/3, 53–54).

Augustine Sermon 52, 12–13 (WSA III/3, 55–56).

17 On what follows see On the Last Words of David, 1543 (AE 15:304–5; WA 54:59.12–60.15).

16

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céu. O leitor deve entender que somente o Espírito Santo é a pomba; somente o Pai fala do céu; e somente o Filho é o homem batizado por João, sobre quem a pomba desce e sobre quem a voz declara: "Este é o meu Filho amado". Lutero ensaia uma série de declarações adequadas e impróprias com relação a essa verdade. Quando se trata da pomba, você não pode dizer que ela é Deus Pai ou Deus Filho. Você pode dizer apenas que é Deus, o Espírito Santo. Da mesma forma, quando se trata da voz, você não pode dizer que é Deus o Filho ou Deus o Espírito Santo. Você pode dizer apenas que é Deus, o Pai. Novamente, quando se trata do homem, você não pode dizer que é Deus Pai ou Deus Espírito Santo.

Você pode dizer apenas que é Deus, o Filho. E, no entanto, as obras da Trindade permanecem indivisíveis. Isso significa, explica Lutero, que a pomba, como criatura, é criada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo.

Assim também a voz, como algo criado, é criada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, e da mesma forma a humanidade de Cristo. Assim, Gabriel diz: "O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra" (Lc 1.35). Aqui Gabriel nomeia o Espírito Santo, o Pai, que é o Altíssimo, e o Filho, o poder do Altíssimo (1Co 1.24).

Lutero resume seu ponto: "Assim, toda a Trindade está presente aqui como um Criador que criou e fez a única obra, a humanidade. E, no entanto, foi somente a Pessoa do Filho que se uniu à natureza humana e se encarnou, não o Pai nem o Espírito Santo."18 O batismo de Cristo demonstra, tanto para Agostinho quanto para Lutero, a distinção de pessoas e sua ação inseparável. Além disso, e ao ponto deste capítulo, as Escrituras nos mostram como discernir corretamente o trabalho comum da Trindade e distinguir as pessoas nessa ação comum. Se falharmos nesse ponto, corremos o risco de dividir a substância ou misturar as pessoas. Lutero retorna ao batismo de Cristo para mostrar como as Escrituras atribuem certos atos a determinada pessoa da Trindade. Ele começa com uma série de perguntas difíceis: por que a Escritura atribui atos ou obras mais particularmente a uma pessoa divina quando a igreja confessa que os atos e obras da Trindade são indivisíveis? Por que o Credo dos Apóstolos atribui a criação ao Pai, a 18

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:305; WA 54:60.12–15).

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redenção ao Filho e a santificação ao Espírito Santo? Por que diferenciar as obras externas da Trindade, atribuindo-as mais particularmente a uma pessoa, quando a igreja confessa que essas obras são comuns e inseparáveis? Lutero admite que a resposta a estas perguntas podem ser sutis demais para os cristãos simples, mas, ainda assim, a resposta é necessária para proteger a fé do falso ensino.19 A primeira coisa a ser observada, explica Lutero, é que podemos conhecer Deus somente por meio de Sua própria revelação. Ele nos instrui ao se dar a conhecer a nós: "Deus quer ser conhecido por nós, aqui na terra pela fé, externamente pelos olhos, que Ele é um só Deus e ainda assim três Pessoas. E, de acordo com João 17.3, essa é a nossa vida eterna."20 Deus faz isso acomodandose à nossa condição de criatura e revelando-se por meio de elementos visíveis em Sua criação.

Quando consideramos a criatura, como usada por Deus para revelar-Se a nós, ou a obra realizada por Deus para nós, devemos vê-las de duas maneiras distintas e complementares. Devemos ver essas obras de forma absoluta e relativa. Quando vistas de forma absoluta, entendemos que a criatura ou obra é a atividade única de todas as três pessoas.21 Quando consideramos a pomba, a voz ou a humanidade de Cristo de forma absoluta, confessamos que são criações da Trindade.

Aqui encontramos nossa confissão das obras inseparáveis da Trindade.

Por outro lado, quando vemos a criatura ou a obra relativamente, em sua relação conosco, observamos a função particular da coisa criada usada por Deus. Lutero explica isso com a pomba.

Aqui Deus toma Sua criatura, que todas as três Pessoas como um só Deus criaram, e a usa como uma imagem, forma ou figura, na qual Ele se revela e na qual Ele aparece.

Aqui surgem imagens, formas e revelações distintas das três Pessoas separadas. Assim, Deus emprega a pomba para se tornar uma imagem ou revelação do Espírito Santo. Essa é uma imagem distinta, que não retrata o Pai ou o Filho, mas 19

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:306; WA 54:61.13–17).

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:306; WA 54:61.17–19).

21 On the Last Words of David, 1543 (AE 15:307; WA 54:61.27–32).

20

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apenas o Espírito Santo. O Pai, o Filho e o Espírito Santo querem que a pomba retrate e revele distintamente apenas a pessoa do Espírito Santo, para nos assegurar que a única essência de Deus é definitivamente três Pessoas separadas desde a eternidade. É por isso que Lucas 3.22 afirma: "O Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como uma pomba".22

A mesma percepção se aplica à humanidade de Cristo e à voz do Pai. Embora a humanidade de Cristo seja a única criação do Pai, do Filho e do Espírito Santo, "é a forma e a revelação peculiar e especial somente do Filho."23 Da mesma forma, somente o Pai nos é revelado na voz. A voz, como uma coisa criada, é a única obra da Trindade, mas a voz não nos revela nem o Filho nem o Espírito Santo, mas somente o Pai. Novamente, a pomba, a humanidade e a voz nos mostram a obra inseparável da Trindade quando vista de forma absoluta e sua distinção como Pai, Filho e Espírito Santo quando vista de forma relativa.

Depois de estabelecer o que significa ver a atividade da Trindade de forma absoluta e relativa, Lutero passa para as questões mais difíceis descritas no Credo Apostólico. A unidade e a distinção das pessoas divinas, como visto na pomba, na humanidade de Cristo e na voz, nos mostram como entender a atribuição da criação ao Pai, da redenção ao Filho e da santificação ao Espírito Santo. Quando refletimos sobre a criação, a redenção e a santificação, podemos fazer isso de forma absoluta ou relativa. Sob o ponto de vista absoluto, a criação, a redenção e a santificação pertencem à Trindade: o Pai cria, o Filho cria, o Espírito Santo cria; o Pai salva, o Filho salva, o Espírito Santo salva; o Pai santifica, o Filho santifica e o Espírito Santo santifica. Em termos relativos, confessamos com a Escritura e o Credo Apostólico, que Lutero chama de credo das crianças, o Pai como criador, o Filho como redentor e o Espírito

22

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:307; WA 54:61.34–62.6).

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:307; WA 54:62.11-12). A humanidade é eternamente assumida pelo Filho. A pomba e a voz não são eternamente assumidas pelo Espírito e pelo Pai. Sobre esse ponto, veja AE 15:308-9; WA 54:63.8-13.

23

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como santificador.24 Lutero explica: Quando confessamos no Credo das crianças: "Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra", não queremos dizer que somente a Pessoa do Pai é o Criador e Pai Todo-Poderoso. Não, o Filho também é TodoPoderoso, Criador e Pai. E o Espírito Santo também é Todo-Poderoso, Criador e Pai. E, no entanto, não há três criadores e pais todo-poderosos, mas apenas um Criador e Pai todo-poderoso do céu e da Terra e de todos nós. Da mesma forma, o Pai é nosso Salvador e Redentor, o Filho é nosso Salvador e Redentor, e o Espírito Santo é nosso Salvador e Redentor, e ainda assim não há três salvadores e redentores, mas apenas um Salvador e Redentor. Da mesma forma, o Pai é o nosso Deus, o Filho é o nosso Deus e o Espírito Santo é o nosso Deus, e ainda assim não há três deuses, mas apenas um Deus. Da mesma forma, o Espírito Santo santifica a cristandade, assim como o Pai, assim como o Filho, e ainda assim não há três santificadores, mas apenas um Santificador etc.25

Quando consideramos as atividades ou atos externos de Deus de forma absoluta, confessamos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo criam, redimem e santificam de forma igual e inseparável; quando consideramos essas atividades ou atos de forma relativa, atribuímos, seguindo o padrão das Escrituras, a criação especialmente ao Pai, a redenção especialmente ao Filho e a santificação especialmente ao Espírito Santo. O Pai cria por meio do Filho (Cl 1.15-16; Hb 1.2) e do Espírito Santo (Sl 33.6); o Filho se tornou homem, redimiu-nos da maldição da lei, sofreu, morreu e 24

Cf. CM II.36: "Assim como o Pai é chamado de Criador e o Filho é chamado de Redentor, o Espírito Santo, por causa de sua obra, deve ser chamado de Santificador, Aquele que torna santo."

25 Sobre as Últimas Palavras de Davi, 1543 (AE 15:309; WA 54.63.14-27). Sobre o uso do nome pai para a essência divina, veja ainda AE 15:310-12 (WA 54:64.2265.37); Martin Chemnitz, Loci Theologici, trans. J. A. O. Preus (St. Louis: CPH, 2008), 1:109; Hollaz, Examen Theologicum Acroamaticum, I, 2, Q. 21 (Leipzig, 1763), 301-2; e John Theodore Mueller, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1934), 157.

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ressuscitou (Jo 1.14; 1Tm 2.6; Gl 3.13, 1Co 15.3-5); e o Espírito Santo, o Espírito de santidade e de adoção, convence o mundo, glorifica a Cristo e nos guia em toda a verdade (Rm 8.15- 17; Jo 16.8-14).26 Ao observarmos as Escrituras e a maneira pela qual Deus se revela a nós, aprendemos com certeza o que a razão considera impossível e contraditório. Lutero conclui sua discussão sobre apropriações com este insight: "Tudo isso foi dito para que possamos reconhecer e acreditar em três Pessoas distintas na única Divindade e não misturar as Pessoas nem dividir a essência."27 Para Lutero, tudo isso diz respeito à nossa compreensão correta de quem Deus é e à nossa adoração adequada a Ele.28 O ponto de vista de Lutero lembra os Pais e sua compreensão dessas apropriações. Leão, o Grande, explica: A divindade imutável dessa Santíssima Trindade é una em substância, indivisa em obra, unida em vontade, a mesma em poder, igual em glória. Quando a Sagrada Escritura fala assim e dá em atos ou em palavras algo que parece pertencer a Pessoas separadas, a fé católica não é perturbada, mas instruída. Através do significado apropriado da palavra ou da ação, a verdade da Trindade é trazida para nós, e a mente não divide o que a audição estabelece. Certas coisas chegam até nós sob o nome do Pai, do Filho ou do Espírito Santo, de modo que o reconhecimento dos fiéis na Trindade não pode errar. Embora seja inseparável, nunca se saberá que se trata de uma Trindade se ela for sempre mencionada sem diferenciação. Essa dificuldade de expressar claramente por meio da fala atrai nosso coração para o poder de discernimento e, por meio de nossa fraqueza, a doutrina celestial nos ajuda, pois na divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo não se deve nem a singularidade nem a diversidade. A verdadeira unidade e a verdadeira Trindade podem ser apreendidas 'ao mesmo tempo' pela mente, mas

26

Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: CPH, 1950), 1:422.

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:309; WA 54:63.29–31).

28 On the Last Words of David, 1543 (AE 15:311; WA 54:65.23–24).

27

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não podem ser produzidas ao mesmo tempo pelos lábios.29

Ao atender ao padrão das Escrituras, conforme refletido nos credos, as pessoas divinas são vistas por nós de acordo com suas propriedades pessoais distintas. As apropriações divinas pressupõem essas propriedades distintas e têm como objetivo manifestar ainda mais as pessoas divinas para nós e concentrar nossa adoração ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Tudo isso é feito por Deus, conclui Lutero, "para nos assegurar que a única essência de Deus é definitivamente três Pessoas separadas desde a eternidade".30 Embora a tradição dogmática luterana continue a enfatizar os pontos levantados por Lutero, há uma variedade de ênfases e essa variedade é em si mesma instrutiva. Embora Lutero mostre cuidadosamente como entender a apropriação de certas obras às pessoas, como descrito especialmente no Credo dos Apóstolos, Chemnitz faz isso apenas com reserva. Ele prefere enfatizar a ação mútua de todas as três pessoas divinas na criação, redenção e santificação, e só raramente usa a linguagem da apropriação ao discutir essas obras externas. Por exemplo, na única vez em que ele apresenta o Credo dos Apóstolos e a atribuição da criação ao Pai, ele imediatamente esclarece como devemos entender isso: "Assim, no Credo, o Pai é chamado de Criador, mas não com a exclusão do Filho ou do Espírito Santo." Chemnitz fornece uma série de textos das Escrituras mostrando a obra do Filho e do Espírito Santo na criação. Ele conclui: "Assim, a providência, a sustentação e a conservação das coisas são frequentemente atribuídas a uma pessoa, e, no entanto, é a obra comum de toda a Trindade."31 Em outro lugar, ele adverte contra olhar com muita curiosidade para a diferença das pessoas em suas obras externas: "Agora não devemos nos envolver em argumentos motivados meramente pela curiosidade quanto à diferença das pessoas na obra da criação, mas nos contentar com a revelação de que todas as coisas foram criadas pelo Pai eterno por meio do Filho com a ajuda do Espírito

29

Leo the Great, Sermon 76.2 (Fathers of the Church, 335–36).

On the Last Words of David, 1543 (AE 15:307; WA 54:62.3–4).

31 Chemnitz, Loci Theologici 1:105.

30

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Santo."32 Onde Chemnitz é hesitante, Gerhard é ousado. Gerhard discute tanto a apropriação de obras externas a pessoas específicas quanto as tríades mais especulativas sobre os atributos essenciais explorados pelos pesquisadores medievais.33 Apesar dessa variedade de ênfase e conteúdo, há muito a aprender tanto com Chemnitz quanto com Gerhard. Chemnitz coloca sua consideração sobre a apropriação dentro do contexto mais amplo do ensino das Escrituras sobre a Trindade. Aqui vemos especialmente seu conservadorismo. Chemnitz identifica quatro pontos que devem ser compreendidos e confessados pelos fiéis ao discutir Pai, Filho e Espírito Santo.34 Primeiro, reconhecemos a consubstancialidade das pessoas e sua ordem. O Pai é a Primeira Pessoa, o Filho é a Segunda Pessoa e o Espírito Santo é a Terceira Pessoa da Trindade. Em segundo lugar, cada pessoa tem Sua propriedade pessoal única pela qual Ele se distingue das outras duas pessoas. A propriedade do Pai é gerar, a do Filho é ser gerado e a do Espírito Santo é proceder do Pai e do Filho. Esses dois primeiros pontos compreendem o chamado adendo luterano à regra de Agostinho discutida em nosso capítulo anterior. Como Chemnitz coloca, "Nas obras externas [opera ad extra] as três pessoas estão juntas e agem juntas, e ainda assim com uma certa ordem e com as propriedades de cada pessoa preservadas."35 Lembraremos que para Chemnitz a garantia bíblica para esse adendo era Rm 11.36, "Porque dele, e por ele, e nele, são todas as coisas; a quem seja a glória e honra." Esse texto serviu como a quarta tríade para as apropriações divinas nas discussões dos estudiosos medievais. Chemnitz deixa de lado as outras tríades mais especulativas e se concentra nesse texto das Escrituras para mostrar a apropriação de certas obras externas às pessoas. Este se torna seu terceiro ponto principal na discussão sobre as pessoas divinas. Chemnitz escreve: "Cada pessoa tem certas propriedades em Suas obras externas [opera ad extra], como nas palavras: 'Dele, por Ele e Nele.36 O quarto e último ponto enfatiza a 32

Chemnitz, Loci Theologici 1:267.

Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §53 (ed. Cotta, 203–4).

34 Chemnitz, Loci Theologici 1:112–14.

35 Chemnitz, Loci Theologici 1:108.

36 Cf. Chemnitz, Loci Theologici 1:267–68.

33

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importância prática das apropriações. Elas nos ajudam a identificar os benefícios de cada pessoa para a igreja.

Depois de identificar os quatro pontos acima, Chemnitz mostra como eles se aplicam ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.37 Aqui nos deparamos com um excelente resumo dogmático e pastoral dos principais pontos do pensamento trinitário. O Pai (1) é a Primeira Pessoa da Divindade; (2) que não é gerado nem procede de outro, mas que gera o Filho e, com o Filho, sopra o Espírito Santo; (3) que, com o Filho e o Espírito Santo, cria, sustenta, preserva e governa todas as coisas; (4) e que, por amor indescritível, envia o Filho como Redentor e o Espírito Santo como Santificador. O Filho (1) é a Segunda Pessoa da Divindade; (2) eternamente gerado pelo Pai; (3) por meio de quem o Pai cria, redime e santifica; (4) que se tornou homem por nós, nos redime e nos envia Seu Espírito Santo. O Espírito Santo (1) é a Terceira Pessoa da Divindade; (2) procede eternamente do Pai e do Filho; (3) Nele o Pai, por meio do Filho, cria, preserva e governa todas as coisas; (4) e foi enviado pelo Pai, por meio do Filho, aos apóstolos e ao coração dos fiéis para os santificar por meio da Palavra e do sacramento.

O resumo de Chemnitz mostra como as pessoas divinas são eternamente distinguidas umas das outras e como elas agem de forma distinta e, ainda assim, inseparável para a criação e em favor da igreja.

Quando temos em mente (1) a ordem das pessoas, (2) suas propriedades distintivas internas, (3) suas propriedades distintivas externas, (4) e os benefícios de cada pessoa para conosco, discernimos corretamente as pessoas e ordenamos adequadamente nossas orações e adoração. Os dois primeiros pontos resumem como as Escrituras distinguem as pessoas 37

A importância dessa seção para Chemnitz não pode ser exagerada. Ele dedica dois parágrafos cada ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. O primeiro está em latim e o segundo em alemão. O parágrafo em alemão não é uma tradução do latim, mas sim uma reafirmação mais longa de seus pontos principais. Meu resumo a seguir combina as percepções dos parágrafos em latim e em alemão. Para o que se segue, consulte Chemnitz, Loci Theologici 1:113-14. Para o significado contínuo desses parágrafos de Chemnitz, veja Leonard Hutter, Compendium Locorum Theologicorum (Berlim, 1855, 1ª ed. 1610), 7-8. A apresentação de Hutter sobre Pai, Filho e Espírito Santo parafraseia essa seção de Chemnitz.

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umas das outras. Essas características eternas têm relação com nossa compreensão da ação externa da Trindade. Esse é o ponto insistido por Lutero, Melanchthon e toda a tradição dogmática luterana. Os dois últimos pontos mostram a maneira pela qual Chemnitz prefere refletir sobre a doutrina da apropriação ou os atos externos da Trindade. A Escritura atrai nossas mentes para o Pai como nosso criador, que cria por meio do Filho e no Espírito Santo. Da mesma forma, nossas mentes são atraídas para o Filho, que foi enviado pelo Pai para nos redimir e que, com o Pai, envia o Espírito Santo para nos santificar por meio da Palavra e do sacramento. Se quisermos atribuir a criação ao Pai, só poderemos fazer isso de forma responsável confessando a ação inseparável do Filho e do Espírito Santo. É o Pai do Filho que cria por meio do Filho e pelo Espírito, o Espírito do Pai e o Espírito do Filho. O mesmo padrão se aplica à redenção e à santificação. A ênfase de Chemnitz está sempre em ver tanto a distinção quanto a inseparabilidade das pessoas em suas obras externas em nosso favor. Além disso, essa ação externa sempre reflete a ordem das pessoas e suas propriedades pessoais únicas.

Embora Johann Gerhard enfatize esses mesmos pontos, ele também mostra uma disposição maior para explorar as sugestões mais especulativas dos pesquisadores sobre a apropriação de atributos essenciais. Seria enganoso, no entanto, concentrar-se no interesse de Gerhard nessas apropriações especulativas e em sua diferença com Chemnitz. Gerhard começa sua discussão de maneira semelhante a Lutero. A Escritura distingue o Pai com a voz no batismo de Cristo e na Transfiguração; o Filho como aquele que é batizado e transfigurado; e o Espírito Santo que desce na forma de uma pomba e se manifesta na nuvem brilhante na Transfiguração.38 Gerhard oferece vários outros exemplos da Escritura que distinguem Pai, Filho e Espírito Santo um do outro. Em seguida, ele se volta para suas propriedades internas e mostra 38

Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §41 (ed. Cotta, 200). Para uma extensa discussão sobre o batismo de Cristo, veja Gerhard, Theological Commonplaces, Exegesis III, §§75-84, 332-42. A fusão de Gerhard entre o batismo e a Transfiguração deriva de Chemnitz, Harmoniae Evangelicae, cap. 17 (Genebra, 1628). 17 (Genebra, 1628), 189-94. Para uma discussão patrística semelhante, veja Fulgentius To Peter on the Faith 52 (Fathers of the Church, 92-93).

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como eles são distinguidos uns dos outros por suas propriedades pessoais incomunicáveis: o Pai não é gerado, o Filho é gerado e o Espírito Santo procede.39 As pessoas também podem ser distinguidas por suas propriedades pessoais externas. Aqui chegamos à discussão de Gerhard sobre apropriação. Ele explica: "As pessoas divinas são distinguidas não apenas por propriedades pessoais internas, mas também externamente por suas obras e benefícios para com as criaturas, especialmente para com a igreja."40 É por isso que, explica Gerhard, a criação é atribuída (tribuitur) ao Pai, a redenção ao Filho e a santificação ao Espírito Santo. Isso não significa que o Filho e o Espírito Santo estejam excluídos da obra da criação. Gerhard apela para o adendo luterano. As obras externas da Trindade são indivisíveis, e ainda assim suas propriedades pessoais e a ordem de ação são preservadas.41 Gerhard reúne as duas verdades: "O Pai cria e Ele cria e preserva todas as coisas por meio do Filho no Espírito Santo." O mesmo pode ser dito sobre a redenção e a santificação. Somos redimidos pelo Filho, mas isso não exclui o Pai ou o Espírito Santo; somos santificados pelo Espírito Santo, mas isso não exclui o Pai ou o Filho.

Gerhard se expressa em termos que soam bem próximos aos de Chemnitz. Ele escreve: "Da obra de santificação, nem o Pai nem o Filho são excluídos. O Pai santifica ao enviar o Espírito Santo, em nome do Filho, ao coração dos crentes, por meio do qual eles são santificados."42 Depois de estabelecer como entendemos as obras externas de criação, redenção e santificação, Gerhard continua com uma discussão sobre os atributos essenciais. Ele explica: " A partir daí, certos atributos essenciais são atribuídos a cada pessoa pelos escritores eclesiásticos; no entanto, os atributos essenciais são comuns às três pessoas por causa da identidade de essência."43 Gerhard mostra a apropriação dos atributos essenciais, resumindo a discussão de Tomás de Aquino.44 Gerhard não se esquiva de discutir a apropriação dos atributos essenciais. Para ele, a apropriação 39

Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §§46–51 (ed. Cotta, 202–3).

Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §52 (ed. Cotta, 203).

41 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §52 (ed. Cotta, 203).

42 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §52 (ed. Cotta, 203).

43 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §53 (ed. Cotta, 203).

44 Gerhard, De Tribus Elohim, Locus 4/1, §§53–54 (ed. Cotta, 203–4); Thomas Aquinas ST I.39.8.

40

490

distingue utilmente as pessoas para nós e ordena nossos pensamentos e adoração. Isso pode ser visto tanto com os atos externos quanto com os atributos essenciais.

Os educadores medievais refletiram sobre os atributos essenciais de Deus para mostrar como a doutrina da apropriação poderia nos ajudar a distinguir as pessoas e entender melhor sua unidade. Embora Lutero e nossos dogmáticos luteranos também reflitam sobre a apropriação, eles preferem, em sua maior parte, concentrar-se nos atos externos da Trindade, na criação, redenção e santificação. O foco luterano nas obras externas indica melhor como conhecemos Deus perfeitamente. Nós O conhecemos por Seus atos, pelas coisas que Ele faz em relação à criação, conforme registrado para nós nas Escrituras. Um ponto apresentado ao longo da parte 1 deste livro é que os Pais buscaram conhecer Deus pelas coisas que Ele fez. Não há outro acesso a Deus. Isso significa ainda que os atributos de Deus nunca são conhecidos de forma abstrata, nunca são conhecidos à parte do Deus que age e, portanto, nunca são conhecidos à parte da atividade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Quando refletimos sobre Deus, Seus atos e atributos, só podemos refletir sobre o Deus que se revela a nós em Sua Palavra, de fato, aquele que se mostra e se entrega a nós. Esse Deus, o único Deus verdadeiro, YHWH nosso Elohim, é Pai, Filho e Espírito Santo. Por essa razão, não podemos discutir de forma proveitosa os atributos divinos antes de discutirmos as pessoas divinas.

Podemos argumentar ainda que esses atributos divinos, mostrados nos atos externos da Trindade, podem ser corretamente conhecidos somente na igreja, onde encontramos os meios de graça, os próprios meios designados e usados por Deus para nos levar a um conhecimento adequado Dele e a uma participação em Sua vida divina.

ATRIBUTOS DIVINOS E DOGMÁTICA LUTERANA

A tradição dogmática luterana discutiu a doutrina de Deus de duas maneiras distintas. Durante o século XVI, nossos pais luteranos se afastaram da ordem dos tópicos teológicos usados pelos pesquisadores medievais. Os professores medievais começaram com o conhecimento natural de Deus, as provas da existência de Deus e uma discussão sobre a essência e os atributos de Deus. Depois disso, o conhecimento revelado 491

de Deus e as pessoas divinas. Sua lógica era bastante simples. Muitas coisas podem ser conhecidas sobre Deus e Sua existência pela razão humana. Depois de estabelecer essas percepções naturais e de discutir o que é comum a Deus (essência e atributos), eles se voltaram para o conhecimento sobrenatural de Deus que nos foi dado a conhecer nas Escrituras (Trindade). Antes de Johann Gerhard, nossos dogmáticos luteranos se afastaram dessa ordem de tópicos.45 Por essa razão, eles oferecem discussões limitadas sobre o conhecimento natural de Deus, muitas vezes passam por cima de uma discussão sobre as provas filosóficas da existência de Deus e combinam sua discussão sobre a unidade e a Trindade, sobre o que é comum e próprio do único Deus verdadeiro. Martin Chemnitz é um bom exemplo disso.

Chemnitz sabia que os escolásticos faziam uma distinção entre o que é comum e o que é próprio de Deus, e ordenou suas discussões de acordo com isso. Ele não contestou a distinção lógica entre o comum e o próprio, entre o essencial e o pessoal, como os escolásticos fizeram. Em vez disso, ele discordava de como eles usavam essa distinção para ordenar sua dogmática. A ordem preferida de Chemnitz é bastante conservadora e evita as curiosidades frívolas da razão humana que sobrecarregavam os escolásticos medievais. Chemnitz escreve: "Não devemos ter outros pensamentos sobre Deus além dos que Ele nos revelou na Palavra que nos deu."46 A Escritura serve como nosso limite e nos impede de especulações desnecessárias. Mais especificamente, as Escrituras se concentram em duas coisas para nós: quem é Deus e o que Ele faz. Se tivermos que fazer uma distinção em nossas discussões dogmáticas sobre Deus, ela deve ser entre a coeternidade e a coigualdade do Pai, do Filho e do Espírito Santo (unidade e Trindade) e a vontade de Deus, conforme revelada em Sua criação e preservação de todas as coisas e, especialmente, em Seus benefícios especiais para o bem de Sua igreja.47 Seguindo essa visão, Chemnitz discute tanto a Trindade quanto as obras da Trindade em seu locus sobre Deus e em toda a sua dogmática. Robert Preus explica: 45

Robert Preus, The Theology of Post-Reformation Lutheranism (St. Louis: CPH, 1972), 2:16.

46 Chemnitz, Loci Theologici 1:69.

47 Chemnitz, Loci Theologici 1:68.

492

"Para Chemnitz, a teologia revelada deve começar com a doutrina da Trindade, que nos diz quem é o verdadeiro Deus e nos leva diretamente ao que Deus fez."48 Como todo o empreendimento dogmático envolve esses dois pontos, a apresentação de Chemnitz é centrada na Trindade.

Novamente, Preus escreve: "Para Chemnitz, todos os artigos de fé estão centrados no artigo da Trindade".49 A ordenação da discussão de Chemnitz mostra bem a abordagem luterana da Trindade e produz ricos insights teológicos para nossa análise dos atributos divinos. Para começar, qualquer discussão sobre os atributos deve levar-se em conta as obras de Deus. Não podemos saber quem Deus é à parte de Sua própria revelação de Si mesmo para nós.50 Isso significa, como explica Preus, que "qualquer discussão sobre os atributos divinos está submissa ao locus da Trindade ou das obras de Deus, que incluem toda a dogmática."51 Poderíamos colocar a questão da seguinte forma: quando falamos sobre os atributos de Deus? A resposta é quando falamos sobre quem Deus é e as coisas que Ele faz. Em uma obra sobre dogmática, isso deve constituir em todos os assuntos da dogmática. Essa abordagem integrada é bíblica e privilegia a Trindade em todas as nossas discussões dogmáticas. A abordagem de Chemnitz contorna ainda mais o discurso arbitrário sobre Deus e a teologia do ser perfeito que assola a modernidade. Se quisermos falar sobre os atributos essenciais de acordo com as Escrituras, devemos falar sobre a Trindade, sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo que criam, redimem e santificam. Aqui discernimos corretamente o poder de Deus, o amor de Deus, a santidade de Deus, a eternidade de Deus, a verdade de Deus, a graça e a misericórdia de Deus, e assim por diante.

Johann Gerhard se afastou da abordagem de Chemnitz e alinhou mais estreitamente com os escolásticos medievais. Ele começou, como eles, com o conhecimento natural de Deus e as várias provas da existência 48

Preus, Theology of Post-Reformation Lutheranism 2:55.

Preus, Theology of Post-Reformation Lutheranism 2:55.

50 Chemnitz, Loci Theologici 1:71: "É uma certeza absoluta que Deus deseja ser conhecido e invocado da mesma forma que Ele se revelou."

51 Preus, Theology of Post-Reformation Lutheranism 2:55.

49

493

de Deus. A partir daí, Gerhard procedeu de maneira ordenada e lógica.

Ele discutiu os nomes divinos de Deus como uma forma de entender melhor a essência de Deus. Em seguida, ofereceu uma consideração completa sobre a unidade e os atributos de Deus. Depois de estabelecer o que era comum a Deus (unidade e atributos), ele se voltou em seu próximo locus para uma longa consideração sobre a Trindade. A discussão de Gerhard sobre a Trindade é excepcional e foi usada extensivamente ao longo deste livro. Gerhard começa sua discussão sobre a Trindade com um exame cuidadoso do Antigo e do Novo Testamento. Ele apresenta de forma clara e concisa as maneiras pelas quais a igreja guardou esse testemunho das Escrituras, destacando a gramática da igreja e os padrões salutares de discurso (Locus 4/1). Ele dedica um locus separado para o Pai e o Filho (Locus 4/2) e outro para o Espírito Santo (Locus 4/3).

Por que a abordagem de Gerhard, que influencia quase todos os dogmáticos que o seguem, deveria ser problemática? Não podemos simplesmente ver sua abordagem como uma apresentação alternativa do mesmo tópico? Não é como se Gerhard e aqueles que o seguem dissessem algo contrário às Escrituras ao se discutir a Trindade. Precisamos ser cuidadosos nesse ponto. Nossa preocupação com Gerhard, e com os dogmáticos posteriores que o seguiram, tem menos a ver com o que é dito e mais com a forma como é dito. O problema não é, por exemplo, com os comentários de Gerhard sobre os nomes divinos ou sobre os vários atributos. Gerhard traz à tona uma grande quantidade de textos das Escrituras sobre esses tópicos e sempre ressalta o valor prático e o conforto desses ensinamentos.52 O problema com a discussão de Gerhard sobre a unidade de Deus e os atributos divinos é que ele a separa de sua discussão sobre a Trindade. Gerhard faz distinção onde Chemnitz diz que não deve haver distinção.53 A ordenação de Gerhard se torna a regra para 52

Veja, por exemplo, Johann Gerhard, Schola Pietatis, vol. 1, trans. Elmer Hohle (Malone, TX: Repristination Press, 2006), parte 1. Gerhard oferece uma meditação sobre os atributos divinos a fim de incentivar o crente na piedade.

53 Cf. Hutter, Compendium Locorum Theologicorum, 5: "Locus II. Deo Uno et Trino". Hutter discute tanto a unidade de Deus quanto a Trindade de pessoas juntas. O Compêndio de Hutter, um manual popular de teologia luterana, apresenta os artigos de fé enfatizando as Escrituras e as Confissões Luteranas.

Sua breve discussão sobre a Trindade demonstra bem os compromissos de 494

os dogmáticos que o seguem. Embora já tenhamos citado o raciocínio de Quenstedt no capítulo anterior, vale a pena repetir aqui. Quenstedt escreve: A consideração de Deus é dupla: uma é absoluta e a outra é relativa. A primeira é ocupada com Deus considerado essencialmente e sem respeito às três pessoas da Divindade; a última é ocupada com Deus visto pessoalmente. A primeira expõe tanto a essência quanto os atributos essenciais de Deus; a segunda explica as pessoas da Santíssima Trindade e os atributos pessoais de cada uma delas.54 Como Robert Preus observou, a lógica de Quenstedt vai contra os instintos de Chemnitz.55 A separação de Quenstedt da essência e dos atributos de Deus das pessoas divinas, que são esses atributos, embora se sinta à vontade na discussão dos escolásticos, trai os compromissos de Chemnitz e a abordagem bíblica dos primeiros dogmáticos. A própria ideia de que podemos falar sobre Deus "sem respeito às três pessoas" deve deixar qualquer teólogo bíblico desconfortável.

A distinção de Quenstedt entre uma consideração absoluta e relativa de Deus molda a maneira como ele distingue os atributos. Aqui vemos o declive escorregadio da reordenação de tópicos de Gerhard. Para Quenstedt, há duas categorias de atributos. A primeira, os atributos absolutos ou imanentes, são verdadeiros para a essência divina, independentemente da criação e das obras externas de Deus. A segunda, os atributos relativos ou operativos, descrevem a essência divina com referência às obras de Deus.56 Aqui vemos destacadamente os perigos de separar uma discussão sobre a essência e os atributos de Deus de quem Deus é (unidade e Trindade) e Suas obras. De acordo com Quenstedt e os dogmáticos posteriores, há atributos que pertencem a Deus em Si mesmo, absolutamente, e, portanto, à parte de Seu envolvimento com a Lutero e Chemnitz e é um bom exemplo da abordagem luterana da doutrina de Deus.

54 Johann Andreas Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 284.

55 Preus, Theology of Post-Reformation Lutheranism 2:55.

56 Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 285.

495

criação. Robert Preus critica duramente esse movimento. Preus achava altamente questionável se alguém deveria falar de atributos absolutos em Deus, à parte de qualquer relação com as criaturas, de Deus per se como distinto de Deus ad hominem.57 O problema é duplo. Os dogmáticos posteriores fazem uma distinção onde nenhuma distinção pode existir.

Além disso, só sabemos sobre esses chamados atributos absolutos porque Deus os revelou a nós. Preus conclui que "quando os teólogos luteranos, em seu locus de Deo, procuram falar de Deus à parte de Suas obras, eles estão tentando o impossível; e eles estão bem cientes e da caricatura grotesca que resultaria se eles fossem bem-sucedidos em sua tentativa".58 A vantagem de discutir os atributos no contexto das obras externas da Trindade significa que toda a dogmática, e não apenas um ou dois loci, diz respeito ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Ao perceber esse ponto básico, começamos a nos libertar do fardo moderno de reduzir a Trindade a uma doutrina ou a um artigo de fé e começamos a vê-la como o horizonte de toda a teologia, de todo o nosso discurso, nosso orar e nosso testemunho sobre Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.

Dito isso, devemos fazer mais uma observação cautelosa. Apesar das deficiências da maneira como Gerhard e Quenstedt, entre outros, organizaram sua doutrina de Deus, eles abordaram uma série de questões difíceis sobre os atributos divinos que ficaram sem resposta em Chemnitz e pelos primeiros dogmáticos. Podemos dizer que os primeiros dogmáticos não falaram o suficiente sobre os atributos divinos e os dogmáticos posteriores falaram demais. É por isso que Robert Preus, que estudou essa questão entre os dogmáticos mais do que qualquer outra pessoa, escreve: "Em suma, devemos dizer que a doutrina de Deus, conforme apresentada pela ortodoxia evangélica, é uma das menos satisfatórias."59 Não basta simplesmente adotar a abordagem de Chemnitz ou de Gerhard e Quenstedt. Precisamos de todos eles juntos. Precisamos dos insights da ordem de Chemnitz, dos instintos pastorais de Gerhard e da minúcia e rigor de Quenstedt.

57

Preus, Theology of Post-Reformation Lutheranism 2:63 and 2:17.

Preus, Theology of Post-Reformation Lutheranism 2:17.

59 Preus, Theology of Post-Reformation Lutheranism 2:16.

58

496

ATRIBUTOS DIVINOS

Observamos acima uma série de questões difíceis que surgem em qualquer discussão sobre os atributos divinos. Qual é a relação entre os atributos e a essência de Deus? Qual é a relação entre os múltiplos atributos de Deus? Eles são diferentes uns dos outros? Antes de abordarmos essas questões difíceis, devemos declarar duas verdades básicas desde o início que influenciam diretamente a forma como pensamos sobre os atributos. Primeiro, os atributos de Deus são os atributos de Deus. As Escrituras deixam isso bem claro. Quando falamos sobre o poder divino, estamos falando sobre o poder de Deus. Isso se aplica à sabedoria de Deus, ao amor de Deus, à bondade de Deus, à justiça de Deus e a todos os outros atributos essenciais que possamos citar. As Escrituras fazem a mesma afirmação quando declaram o Espírito como o Espírito de santidade ou Cristo como o Senhor da glória. A santidade e a glória pertencem a Deus; elas são de Deus. Qualquer discussão responsável sobre os atributos divinos deve ter isso em mente. Deus é o sujeito dos atributos divinos que nos são dados a conhecer nas Escrituras.

Isso significa que não podemos abstrair os atributos divinos da Trindade.

Não podemos discutir a verdade, a vida, o amor, a retidão ou qualquer outro atributo essencial à parte das pessoas divinas que são esses atributos.

Duas razões insuperáveis impedem isso. Primeiro, Deus não participa da verdade e da vida ou de qualquer outro atributo essencial. Deus é a Sua verdade. Deus é Sua vida. Mais neste ponto, as Escrituras dizem que o Pai é a verdade; Jesus, o eterno Filho de Deus, é a verdade; o Espírito é a verdade. Da mesma forma, as Escrituras dizem que o Pai é vida; o Filho é vida; e o Espírito Santo é vida. A unidade única de Deus e a habitação mútua das pessoas divinas significam que elas não são três verdades ou três vidas, mas uma verdade e uma vida, de forma igual e indivisível.

Em segundo lugar, não podemos abstrair esses atributos para não os reduzir a conceitos unívocos que pertencem tanto a Deus quanto ao homem. Muitos fizeram isso, e o resultado é sempre a resposta para nossos maiores medos e ansiedades. Deus se torna a maior e melhor coisa que existe. Por exemplo, começamos com o amor ou a justiça e determinamos, com base em nossa sabedoria coletiva e lealdades culturais, 497

o que achamos que são o amor e a justiça. Em seguida, projetamos essas noções em Deus. O amor de Deus se torna o que achamos amável; a justiça de Deus se torna o que achamos que é justo. Isso reduz Deus a um ídolo, a uma projeção do tipo de "deus" que desejamos ser. Nada disso está de acordo com as Escrituras. Em vez disso, Deus é o Seu amor; Deus é a Sua verdade; Deus é a Sua justiça. Quando nosso amor é ordenado pela graça de Deus, pode-se dizer que ele é análogo ao amor de Deus. No entanto, nosso amor é mais naturalmente desordenado por nosso pecado e, portanto, evoca a ira e o julgamento de Deus. Na verdade, nossos amores são ordenados e desordenados porque somos santos e pecadores.

Conhecemos o amor de Deus pelo que Ele fez por nós em Cristo Jesus, e isso sabemos somente pela obra de regeneração e renovação do Espírito por meio dos meios da graça. Quando o Pai derrama Seu amor em nosso coração por meio do Espírito Santo, Ele nos leva à fé em Cristo Jesus, o verdadeiro Filho de Deus, em quem somente somos justificados pela fé e temos paz. A Trindade salva e, nessa salvação, conhecemos o amor, a verdade e a justiça de Deus e proclamamos e nos regozijamos em Sua glória. Sem essa salvação, sem os meios da graça, andamos às apalpadelas em uma escuridão criada por nós mesmos e fazemos o que é mais natural para nós: criamos ídolos (Sl 115.4-8).

Qualquer compreensão que tenhamos dos atributos essenciais de Deus requer a revelação de Deus e, mais especificamente, Suas obras em nosso favor. Requer, exatamente, a manjedoura, a cruz, a pia batismal e o altar. As coisas profundas de Deus são conhecidas somente pelo Espírito Santo, o próprio Espírito derramado em nosso coração pelo Pai por meio do Filho. O Espírito vem a nós por meio da Palavra e do Sacramento, falando-nos as palavras de Cristo, que são as palavras do Pai. Essas palavras de vida eterna trazem arrependimento e vida nova. Elas nos libertam de nós mesmos e de nossos ídolos. Nessa liberdade do Espírito, nós nos encontramos em Cristo para a glória do Pai. E aqui, neste exato lugar, olhamos para a manjedoura e a cruz e contemplamos o amor de Deus, a misericórdia de Deus, o poder de Deus, de fato, a glória de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Essa é a sabedoria do alto. Qualquer coisa menos do que isso nos leva de volta à fábrica de ídolos.

498

Essa maneira de conhecer Deus tem base na justiça de Cristo e na revelação de nosso Deus Triúno que nos foi dado a conhecer em Cristo.

A Parte 1 deste livro discutiu esses pontos longamente, e eles se relacionam diretamente com nossa consideração dos atributos divinos.

De fato, sem muito exagero, poderíamos dizer que é precisamente aqui, em uma discussão sobre os atributos de Deus, que nossos compromissos luteranos são testados. Por exemplo, na parte 1, mostramos a necessidade do evangelho e da justificação pela fé como a lente adequada por meio da qual conhecemos e confessamos corretamente a Trindade. Conhecemos corretamente Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, pela graça, por meio da fé, e essa fé - a fé salvadora - não pode ser obtida à parte da imputação da justiça de Cristo, pela qual somos com o Pai. A fé justificadora nos dá a conhecer o Filho pelo Espírito Santo, o Espírito de Cristo, e por meio do Filho conhecemos o Pai. O que isso significa? Em resumo, significa o que Irineu declarou há muito tempo: sine Deo non cognosci Deum, sem Deus ninguém conhece Deus.60 Deus fez isso em lugares inesperados. Na avaliação da razão e da sabedoria humanas, a manjedoura e a cruz são lugares improváveis para encontrar o Senhor da glória e, no entanto, é nesses lugares que a fé contempla Deus. Lutero escreve: "Vamos até a criança deitada no colo de Sua mãe Maria e até a vítima sacrificial suspensa na cruz; lá realmente contemplaremos Deus, e lá olharemos para o Seu próprio coração.”61 Quer estejamos discutindo o conhecimento natural de Deus, os atributos essenciais de Deus, ou qualquer coisa que tenha a ver com o Deus que nos foi dado a conhecer nas Escrituras, não podemos permitir que haja nenhuma barreira entre conhecer a Trindade e o ser revestido da justiça de Cristo. A manjedoura e a cruz revelam duas coisas inseparáveis: quem é Deus e o que é Deus. Mais uma vez, como argumentamos na primeira parte, se conhecer o Pai é conhecer Sua glória, e Sua glória é conhecida somente por meio da paz trazida pela obra salvadora do Filho e entregue pelo Espírito Santo pelos meios da graça, então conhecer o Pai corretamente sempre implica conhecer a salvação realizada por Cristo por meio de Sua encarnação, sofrimento, morte, 60

Irenaeus Adversus Haereses IV, 6, 4; cf. Johann Gerhard, De Natura Dei, Locus 3, §6 (ed. Cotta, 92).

61 Lectures on Genesis, 1535–45 (AE 3:276–77; WA 43:73.4–6).

499

ressurreição e ascensão. E esse conhecimento envolve as pessoas divinas, os atributos essenciais e as obras externas que as tornam conhecidas para nós. David Scaer escreve: Na cruz é que Deus realmente chega à sua expressão mais plena e completa: o Filho é gerado por Deus, que é o amor eterno e, portanto, Ele compartilha plenamente do amor do Pai. Por causa desse amor divino, o mundo foi criado e, também por causa dele, o Filho foi enviado pelo Pai para a redenção do mundo. A crucificação, mais do que qualquer outro momento na história do mundo, de Israel ou mesmo da vida de Jesus, é a maior manifestação da essência de Deus.62

O amor de Deus em Cristo Jesus não pode ser conhecido à parte da cruz e da fé que se apodera dessa cruz, uma fé transmitida pelo Espírito Santo por meio dos meios de graça divinamente instituídos. Portanto, para conhecer Deus é necessário termos Deus e Sua igreja. Requer o ofício divinamente instituído do ministério; requer a Palavra e o Sacramento; requer a lei e o evangelho; requer o arrependimento e a fé, a oração e a doxologia; requer, em suma, o serviço divino.

ATRIBUTOS, ESSÊNCIA E SIMPLICIDADE

Qual é a relação entre os atributos e a essência divina? Quando as Escrituras declaram que Deus é amor, qual é a relação entre Deus e Seu amor? Dizer que Deus é amor significa que a essência de Deus é amor?

Em caso afirmativo, isso se aplica à retidão, à verdade ou a qualquer outro atributo essencial que possamos nomear? Essas perguntas nos levam a outra pergunta difícil. Qual é a relação entre os diferentes atributos? Se Deus é amor, retidão e verdade, e esses atributos pertencem à essência de Deus, de modo que Deus não participa de algo chamado amor, retidão ou verdade que esteja separado Dele mesmo, então como entendemos a relação entre os próprios atributos? Existe diferença? Há identidade? Se for identidade, isso significa que o amor de Deus é justiça e ambos são 62

David Scaer, Christology, Confessional Lutheran Dogmatics, vol. 6 (St. Louis: Luther Academy, 1989), 75.

500

verdade?

As perguntas acima apresentam dificuldades porque a confissão da igreja sobre a unidade da Trindade, a unicidade de Deus, pressupõe a simplicidade de Deus. Como nossas Confissões Luteranas afirmam, Deus é indivisível (impartibilis), ou mais literalmente, sem partes (ohne Stücke).63 Por essa razão, não podemos dizer que a essência de Deus é uma coisa e Seus atributos são outra. Agostinho escreve: "Para Deus é a mesma coisa ser [esse] e ser poderoso ou justo ou sábio ou qualquer outra coisa que possa ser dita sobre sua simples . . . substância."64 Isso significa que o ser de Deus é Seus atributos. Não há diferença entre o que Deus é e o que se diz que Deus tem: a natureza divina é simples porque "é o que tem" (quod habet hoc est).65 Se esse é o caso, por que a Escritura distingue para nós a grandeza de Deus, o poder de Deus, a bondade de Deus e a sabedoria de Deus? Embora a Escritura distinga esses atributos para nós, e de fato eles são, de acordo com a Escritura, em algum sentido distintos, de modo que o amor de Deus não é a ira de Deus, a igreja, no entanto, confessa que esses atributos não são distintos uns dos outros nem distintos da essência de Deus. Por quê? Porque Deus é indivisível e sem partes. Isso significa que também devemos dizer, como faz Agostinho, que "grandeza é o mesmo que poder, bondade e o mesmo que sabedoria"?66 Essas questões espinhosas nos levam mais uma vez à unissima de Lutero, a unidade única de Deus que é diferente de qualquer unidade que conhecemos.

Tanto Gerhard quanto Quenstedt abordam essas questões difíceis sempre retornando à confissão fiel da simplicidade única de Deus.67 Os atributos essenciais são real e completamente uno com a essência divina.68 Os atributos não são acidentes nem algo acrescentado à essência. Deus não é como os anjos ou homens ou qualquer outra coisa criada para a qual 63

CA I.2.

Augustine The Trinity VI.6 (WSA I/5, 209).

65 Augustine The City of God XI.10 (WSA, I/7, 11); Mann, “Divine Simplicity,” 451.

66 Augustine The Trinity VII.1 (WSA I/5, 217).

67 Da mesma forma, Abraham Calov escreve: "Da unidade de Deus procede a simplicidade de Deus, de acordo com a qual Deus está livre de qualquer composição real". Calov, Systema Locorum Theologicorum (Wittenberg, 1655), 2:284.

68 Gerhard, De Natura Dei, Locus 3, §47 (ed. Cotta, 108).

64

501

os atributos e qualidades diferem da essência.69 Os atributos divinos existem inseparavelmente em Deus.70 Isso significa que Deus é a própria vida, a própria luz e a própria bondade, e que Deus é Sua vida, Sua luz e Sua bondade.71 Por que, então, a Escritura distingue esses atributos para nós? Gerhard explica, Embora os atributos divinos não sejam distintos na realidade entre si nem da essência divina, nossa fraqueza intelectual exige que os tratemos separadamente. Agostinho diz: "Deus desce até nós para que possamos subir até ele". Portanto, como somos homens, Deus nos fala de maneira humana.72 Na realidade, os atributos divinos não estão separados da essência divina. E, no entanto, Deus, em Sua sabedoria e misericórdia, revelou-Se a nós de tal forma que podemos conhecê-Lo em parte (1Co 13.9) e, portanto, falar sobre Ele. Se tivermos tudo isso em mente, não pensaremos erroneamente sobre os atributos ou a essência divina.

Quenstedt, seguindo Gerhard, enfatiza especialmente nossas limitações intelectuais na compreensão de Deus. Ele escreve: Os atributos nada mais são do que concepções inadequadas da essência divina. Uma vez que nosso intelecto finito não pode conceber adequadamente a essência infinita e absolutamente simples de Deus por meio de uma única concepção adequada, ele, portanto, apreende a mesma por meio de concepções distintas e inadequadas que representam apenas inadequadamente a essência divina.

Essas concepções inadequadas são chamadas de propriedades e atributos de Deus, propriedades porque têm a ver com a essência divina e a denotam, atributos porque são atribuídos a ela por nosso intelecto.73 69

Gerhard, De Natura Dei, Locus 3, §47 (ed. Cotta, 108).

Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 296–97.

71 Gerhard, De Natura Dei, Locus 3, §§48–49 (ed. Cotta, 108–9).

72 Gerhard, De Natura Dei, Locus 3, §51 (ed. Cotta, 109). See also Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 300.

73 Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 284; citado em Preus, Theology of Post-Reformation Lutheranism 2:56. Observe especialmente 70

502

Quenstedt enfatiza cuidadosamente que os atributos divinos não são meros nomes que damos à essência divina; eles são reais e pertencem a Deus, independentemente de nossa própria conceituação deles.74 No entanto, nomeamos como múltiplo o que existe em Deus de forma simples e unida, mas entre nós, na medida em que também conhecemos esses atributos nas criaturas, eles são divididos e multiplicados.75 Explicar a simplicidade e os atributos de Deus, sem, por um lado, colapsar os atributos e, por outro, separá-los da essência, continua sendo uma impossibilidade para nós. Tomando emprestado de Lutero nesse ponto, confessamos que não somos capazes de falar perfeitamente sobre esses assuntos e, no entanto, é assim que devemos falar. E isso é o que chamamos de crer.76 CONCLUSÃO Este capítulo abordó algunas de las preguntas más incómodas que debe enfrentar cualquiera que quiere discutir la doctrina de Dios en nuestros días. También es cierto que este capítulo sigue siendo en parte inadecuado e insatisfactorio, por cuanto el tema de estudio en sí siempre eludirá nuestras mejores palabras y pensamientos. Conocemos a Dios parcialmente, y a pesar de eso buscamos hablar y pensar más allá de esto, más allá de lo que es accesible a nosotros como creaturas caídas. Con nuestras palabras y pensamientos de creaturas buscamos hablar acerca de uno que habita en luz inaccesible. La posibilidad de hablar acerca de Dios, de describir a Dios, surge de la misericordia y la gracia de Dios mismo. Él se nos abre y se acerca, nos libra de nuestros ídolos e idolatrías, de la servidumbre de nuestro pecado y de la debilidad de nuestros pensamientos, para que podamos ser participantes en su vida divina, en su bondad y majestad, descansando en Él y hallando nuestro gozo solo en Él. Desde la humildad de la fe confesamos como mejor podemos hacerlo la particular unicidad y triplicidad de nuestro Dios, una o comentário de Preus sobre o sentido de inadaequatus.

Quenstedt, Systema Theologicum, I, 8 (Wittenberg, 1691), 296.

75 Tomás de Aquino ST I.13.12c: "Deus . . . é totalmente uno e simples, mas nosso intelecto O conhece por diferentes concepções porque não pode vê-Lo como Ele é em Si mesmo. No entanto, embora O compreenda sob diferentes concepções, sabe que um único e mesmo objeto simples corresponde às suas concepções."

Veja também ST I.13.4c.

76 Die Promotionsdisputation von Petrus Hegemon, 1545 (WA 39/2:384.9-22).

74

503

unicidad distinta de cualquier unicidad que conocemos, y una triplicidad distinta de cualquier triplicidad que conocemos.

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CONTEÚDO

CONCLUSÃO: TRINITARISMO MODERNO

Os teólogos sistemáticos geralmente descrevem o século XX como um período de interesse renovado na doutrina da Trindade. Atribui-se a Karl Barth e Karl Rahner o retorno da Trindade ao centro da vida e do pensamento cristãos, tanto para os protestantes quanto para os católicos romanos. No século XIX, Friedrich Schleiermacher colocou sua discussão formal sobre a doutrina da Trindade no apêndice de sua enorme teologia dogmática, The Christian Faith. O argumento de Schleiermacher era claro: a doutrina da Trindade da igreja não tinha relevância para o cristão comum. A experiência provou isso. Os crentes dão pouca atenção à coigualdade e à coeternidade das pessoas divinas em suas vidas diárias.

Schleiermacher foi além. Ele rejeitou a doutrina ortodoxa da Trindade, declarando-a incoerente e desconhecida das Escrituras. Karl Barth respondeu tanto estrutural quanto dogmaticamente. Barth começou sua Church Dogmatics de forma substancial com a Trindade. Onde se esperaria um prolegômeno, temos a Trindade. O argumento de Barth era igualmente claro: a Trindade torna possível a teologia cristã. Cada aspecto da fé cristã dá testemunho disso. Rejeite a Trindade e você rejeitará o cristianismo.

Por que a Trindade passou por momentos tão difíceis durante a modernidade? Karl Rahner achava que parte do problema era uma separação entre a doutrina de Deus e a doutrina da Trindade. Sua principal contribuição para o interesse renovado na Trindade pode ser reduzida a um insight metodológico orientador. A regra de Rahner, como é frequentemente chamada, afirma: "A Trindade 'econômica' é a Trindade 'imanente' e a Trindade 'imanente' é a Trindade 'econômica'."1 Rahner enfatizou que o mistério da Trindade é o mistério da salvação para nós.

Ao recuperar essa percepção, evitamos reduzir a Trindade a uma mera 1

Karl Rahner, The Trinity, trans. Joseph Donceel (New York: Crossroad, 1997), 22.

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doutrina.2 A correlação de Rahner entre a Trindade imanente e a Trindade econômica tem sido amplamente celebrada e fortemente criticada. Yves Congar considera o insight de Rahner como "a contribuição contemporânea mais original para a teologia da Trindade".3 Por outro lado, Bruce Marshall considera a formulação de Rahner trivial ou absurda.4 Marshall ressalta que ninguém jamais pensou em negar que a Trindade imanente é a Trindade econômica. Ninguém, por exemplo, postula seis pessoas, três que compõem a Trindade imanente e três que compõem a Trindade econômica.5 Por outro lado, se essa regra for tomada como significando que uma correspondência estrita vale entre a Trindade imanente e a Trindade econômica, então somos forçados a dizer que "ser encarnado pertence ao Filho imanente e economicamente, ser derramado sobre toda a carne pertence ao Espírito imanente e economicamente, e assim por diante."6 Independentemente de como você avalia as contribuições feitas por Barth e Rahner, não se pode negar sua considerável influência na forma e no interesse da teologia sistemática no século XX. Teólogos tão 2

A essência da regra de Rahner havia sido articulada por teólogos antes dele.

Karl Barth e Friedrich Schleiermacher disseram algo muito semelhante. Karl Barth, Church Dogmatics, I/1, ed., G. W. Bromiley e T. F. T. Rahner. G. W. Bromiley e T. F. Torrance (Nova York: T & T Clark, 2010), 548; Friedrich Schleiermacher, The Christian Faith (Edimburgo: T & T Clark, 1986), 748 (§172): "Não temos nenhuma fórmula para o ser de Deus em si mesmo como distinto do ser de Deus no mundo." Schleiermacher nos mostra, no mínimo, que a regra de Rahner não pode garantir a ortodoxia.

3 Yves Congar, I Believe in the Holy Spirit (Nova York: Crossroad, 2013), 3:11.

Embora Congar aceite a regra de Rahner, ele limita seu caráter absoluto (3:1317).

4 Bruce Marshall, Trinity and Truth (Cambridge: Cambridge University Press, 2000), 264.

5 Embora, como observa Marshall, "as estranhas observações de Barth sobre o Deus Triúno fazendo uma 'cópia' (Nachbild) de si mesmo no mundo dão uma pausa". Barth, Church Dogmatics, III/2, 218-19; Marshall, "Trinity", em The Blackwell Companion to Theology, ed. Gareth Jones (Oxford: Blackwell Companion to Theology). Gareth Jones (Oxford: Blackwell, 2004), 201 n. 21.

6 Marshall, Trinity and Truth, p. 265. Para uma crítica semelhante, veja Miroslav Wolf, "'The Trinity Is Our Social Program': The Doctrine of the Trinity and the Shape of Social Engagement", Modern Theology 14:3 (1998): 407.

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diversos quanto Wolfhart Pannenberg, Jürgen Moltmann, Walter Kaspar, Robert Jenson, Leonardo Boff, John Zizoulas, Catherine LaCugna e muitos outros escreveram obras significativas sobre a Trindade que tanto rejeitaram compromissos trinitários de longa data, especialmente como articulados na tradição ocidental, quanto apresentaram novas propostas para o pensamento trinitário atual.7 Ao fazer isso, eles continuaram a trajetória estabelecida por Barth e Rahner, que procuraram reconfigurar certos aspectos da tradição. Os estudiosos têm se dividido quanto ao valor dessas obras trinitárias recentes. Em nossos capítulos anteriores, concordamos e discordamos de certas coisas ditas pelos Pais e pelos escolásticos. Essa mesma abordagem é necessária para a teologia trinitária contemporânea. Compartilhamos a preocupação de colocar a Trindade no centro da teologia cristã; nós também nos preocupamos com o fato de que uma discussão sobre a essência e os atributos de Deus, à parte das pessoas divinas que são esses atributos, seja problemática. Essas preocupações, como mostramos, fazem parte da própria tradição e não são novidade do século XX. Embora possamos compartilhar essas posições mais gerais, não aceitamos a maneira como elas foram desenvolvidas por muitos teólogos contemporâneos. O ponto que deve ser insistido é que o interesse renovado na Trindade não conta como um renascimento da doutrina em si.

Embora muitas obras continuem a ser publicadas em nome dessa chamada renovação trinitária, há uma quantidade igualmente significativa de literatura questionando a ortodoxia dessa literatura. Bruce Marshall escreveu um relato claro e conciso dos principais pontos apresentados por aqueles que contribuíram para a chamada renovação trinitária do século XX.8 Marshall considera que muitas dessas ideias não têm a novidade que alegam ou são simplesmente implausíveis. Ele conclui: "A reflexão do século passado sobre a Trindade, sem dúvida, incorpora não tanto a 7

Há muitos resumos desses teólogos. Ted Peters, God as Trinity: Relationality and Temporality in Divine Life (Louisville, KY: Westminster/John Knox, 1993); John Thompson, Modern Trinitarian Perspectives (Oxford: Oxford University Press, 1994); Stanley Grenz, Rediscovering the Triune God: The Trinity in Contemporary Theology (Minneapolis: Fortress Press, 2004).

8 Marshall, “Trinity,” 183–203.

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renovação, mas o obscurecimento da teologia trinitária como uma tradição contínua de investigação."9 Stephen Holmes, uma vez persuadido pela novidade do trinitarismo moderno, ofereceu uma crítica ainda mais forte.

Em nossos relatos de um reavivamento trinitário, pouco ou nada queríamos ter a ver com essas restrições [ou seja, o trinitarianismo patrístico]. Como resultado, partimos por conta própria para oferecer uma doutrina diferente e, acreditávamos, melhor... Chamamos o que estávamos fazendo de "reavivamento trinitário"; futuros historiadores talvez queiram perguntar por quê?10

Na avaliação de Holmes, os estudiosos que se alinham com esse chamado reavivamento leem as Escrituras como os gnósticos e os arianos, pensam sobre a essência divina como Eunômio e Scotus, e rejeitam a simplicidade divina, como os antitrinitarianos da Reforma. A crítica de Holmes é devastadora: aqueles que se identificam com o "renascimento trinitário" do século XX estão ao lado dos grandes hereges da igreja e contra os Pais e os reformadores. Holmes não é o único a oferecer uma forte crítica à recente teologia trinitáriana. Kevin Giles argumenta que muitos dos mais importantes teólogos evangélicos americanos do século XX reinventaram a Trindade e abraçaram o arianismo.11 Francesca Murphy, por razões bastante diferentes, argumenta que grande parte do pensamento trinitário recente está atolado em método, narrativa e conversa sobre conversa. A diversidade encontrada entre os que contribuem para a renovação da teologia trinitária é igualada pela diversidade dos que criticam. É especialmente aqui que entramos no mundo confuso da atual crítica da recente teologia trinitária. Murphy acha que Robert Jenson é um "modalista cinematográfico"; George Hunsinger

9

Marshall, “Trinity,” 200.

Stephen Holmes, The Quest for the Trinity (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2012), 200.

11 Kevin Giles, Jesus and the Father: Modern Evangelicals Reinvent the Doctrine of the Trinity (Grand Rapids: Zondervan, 2006).

10

508

acha que Jenson é um triteísta.12 Como é possível fazer avaliações tão radicalmente diferentes de Jenson? Murphy tem uma resposta: "O modalista moderno se parece com um triteísta para o agostiniano moderno."13 A cultura teológica do século XX deve muito à modernidade, e isso moldou de forma decisiva o renascimento do interesse acadêmico pela Trindade. Uma das características mais marcantes do pensamento trinitário moderno é o uso pragmático da doutrina da Trindade. Não é mais suficiente afirmar que a importância da doutrina da Trindade é o ser eterno do Deus que nos foi dado a conhecer nas Escrituras. No século XX, a doutrina da Trindade foi colocada em ação. A Trindade se tornou a resposta para preocupações políticas, econômicas, éticas e sociais.14 Dizem que a Trindade inclusiva nos ajuda a entender a nós mesmos, nossas comunidades eclesiais e nosso trabalho missionário. Alguns chegaram a ponto de sugerir que a doutrina da Trindade é nosso programa social.15 Alinhar a Trindade com essas preocupações sociais e políticas urgentes levou ao desenvolvimento mais significativo do pensamento trinitário moderno. A ontologia clássica adotada pelos Pais e Reformadores para garantir um entendimento bíblico adequado da Trindade foi totalmente reconfigurada. Se houve alguma conquista ecumênica no século XX, foi exatamente nesse ponto. Teólogos protestantes, católicos romanos e ortodoxos, de todos os matizes e convicções políticas, insistem que Deus deve ser reconcebido em termos 12

Francesca Murphy, God Is Not a Story: Realism Revisited (Oxford: Oxford University Press, 2007); George Hunsinger, “Robert Jenson’s Systematic Theology: A Review Essay,” Scottish Journal of Theology 55 (2002): 193–95.

13 Murphy, God Is Not a Story, 262.

14 Naturalmente, existe pouco consenso sobre como a Trindade informa a política e a economia. Alguns acham que a doutrina da Trindade produz o capitalismo e outros, o socialismo. Michael Novak, The Spirit of Democratic Capitalism (Nova York: American Enterprise Institute, 1982); Leonardo Boff, Trinity and Society, trans. Paul Burns (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1988).

15 O teólogo ortodoxo russo Nicholas Fedorov argumentou que "o dogma da Trindade é nosso programa social". A proposta de Fedorov é discutida e criticada por Wolf, "'The Trinity Is Our Social Program', 403-23. Wolf se distancia da linguagem do programa social e prefere ver a doutrina da Trindade como moldando nossa visão social.

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de relacionalidade.16 Essa preocupação é expressa entre os teólogos contemporâneos sob o nome de trinitarianismo social ou ontologia relacional.17 O trinitarianismo social insiste em um entendimento diferente de "pessoa" ao falar sobre a Trindade. Aqui vemos especialmente a dívida do século XX com pressupostos modernos. Para a modernidade, a personalidade foi reconcebida em termos de liberdade, dignidade e direitos humanos.18 Ser uma pessoa autêntica é ser autodeterminado, ser nos seus próprios termos, independentemente de restrições políticas e morais.19 Quando aplicamos essa noção moderna de pessoa à Trindade, acabamos com três subjetividades distintas, três pessoas autênticas e autodeterminadas, que coexistem livre e voluntariamente na unidade.

Acabamos com um triteísmo que soa sofisticado.20 Muitos trinitarianos sociais aliviam esse resultado insistindo que a "pessoa" seja entendida principalmente em termos relacionais. Uma compreensão de pessoa que tende ao individualismo extremo é defeituosa; uma compreensão adequada de pessoa envolve o outro, envolve relacionamento. O "eu" e o "tu" precisam um do outro. Nas palavras de Jürgen Moltmann, a liberdade social de uma pessoa é aberta por meio da comunidade.21 Cornelius Plantinga traz essas duas preocupações. Ele pensa nas pessoas divinas como uma "família perfeita", segundo a qual devemos modelar nossas vidas juntos. Plantinga explica:

16

Peters, God as Trinity, 34.

Para uma pesquisa de teólogos protestantes, católicos, ortodoxos, da libertação, feministas, evangélicos e de processo que adotam um modelo social da Trindade, consulte John Gresham, Jr., "The Social Model of the Trinity and Its Critics", Scottish Journal of Theology 46 (1993): 325-43.

18 Peters, God as Trinity, 35.

19 Karl Rahner, Grundkurs des Glaubens (Freiburg im Breisgau: Herder, 1976), 140. Rahner diz que para ser uma pessoa, diferente de outra pessoa, significa que "há um centro de ação independente, livre e auto disponente no conhecimento e na liberdade, diferente dos outros; e que a pessoa é constituída por esse mesmo fato". Citado em Jürgen Moltmann, The Trinity and the Kingdom, trans. Margaret Kohl (Minneapolis: Fortress Press, 1993), 145.

20 Peters, God as Trinity, 35.

21 Moltmann, Trinity and the Kingdom, 145. Cf. Boff, Trinity and Society, 89.

17

510

Por "analogia social" ou, alternativamente, "trinitarismo forte", quero dizer qualquer teoria na qual (1) Pai, Filho e Espírito são concebidos como pessoas em um sentido pleno de "pessoa", ou seja, como centros distintos de amor, vontade, conhecimento e ação intencional (todos os quais exigem consciência) e (2) que são concebidos como relacionados uns aos outros de algumas formas centrais análogas, ainda que sublimemente superiores, às relações entre membros de uma sociedade de três pessoas humanas.22

Para esses teólogos, a maneira como idealmente pensamos em nós mesmos como pessoas, no sentido pleno dessa palavra, e como pensamos em nossas comunidades ideais informam nossa compreensão da Trindade. Pai, Filho e Espírito Santo tornam-se para nós o que desejamos ser para nós mesmos e para os outros.

Os trinitarianos sociais geralmente localizam suas percepções no trabalho dos Pais gregos, especialmente Gregório de Nissa. Os teólogos sistemáticos costumam dizer aos leitores que a tradição latina ou ocidental começou as discussões sobre a Trindade com a unidade de Deus e depois passou para a Trindade, enquanto a tradição grega ou oriental começou com as pessoas divinas e depois passou para a unidade de Deus. Esse modelo latino e grego pode ser visto especialmente com Agostinho e os capadócios. Agostinho começa com a unidade de Deus e prefere analogias psicológicas; os capadócios começam com as pessoas divinas e preferem analogias sociais. Agostinho, mais do que qualquer outra figura na história da igreja, surgiu como a fonte de quase todos os erros infelizes associados ao pensamento trinitário ocidental.23 Os teólogos sistemáticos celebram

22

Cornelius Plantinga, Jr., “Gregory of Nyssa and the Social Analogy of the Trinity,” The Thomist 50 (1986): 325 n. 1. Cf. Cornelius Plantinga, Jr., “The Perfect Family: Our Model of Life Together Is Found in the Father, Son, and Holy Spirit,” Christianity Today 32 (4 March 1988): 24–28.

23 Michel René Barnes, “Augustine in Contemporary Trinitarian Theology,” Theological Studies 56 (1995): 237–50.

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os insights dos capadócios e lamentam os erros de Agostinho.24 Embora a distinção entre a teologia latina e a grega tenha se tornado comum na literatura contemporânea sobre a Trindade, ela é historicamente indefensável.

A leitura errônea da teologia trinitária patrística e, particularmente, da teologia pró-Niceno, resultou em outra grande onda de estudos trinitários. Michel René Barnes, um estudioso da patrística, mostrou a localização histórica da chamada distinção trinitária latina e grega ou ocidental e oriental. Théodore de Régnon, um jesuíta francês do século XIX, foi quem primeiro postulou a existência dos paradigmas trinitários.25 Barnes mostrou como a tese e os textos de prova de Régnon apareceram em livros e artigos sobre a Trindade ao longo do século XX, muitas vezes sem qualquer atribuição. A distinção entre os modelos trinitários latino e grego feita na maioria dos livros didáticos atuais não pode ser apoiada pelos escritos dos Pais. Os estudiosos da patrística mostraram isso produzindo vários estudos especializados sobre os debates trinitários do século IV.26 Esses estudiosos ofereceram leituras historicamente sensíveis e responsáveis das obras dos Pais que reforçaram nossa compreensão da teologia pró-nicena e forneceram uma crítica necessária às suposições trinitárias modernas.27 Para os Pais, a reflexão trinitária envolve a leitura cuidadosa e a contemplação das Escrituras, a sensibilidade ao discurso humano sobre Deus, a oração e a vida litúrgica da igreja.28 Nosso volume sobre a Trindade participou da crítica acima sobre 24

For a particularly clear example of this see Robert Jenson, Systematic Theology (Oxford: Oxford University Press, 1997), 1:110–14.

25 Michel René Barnes, “De Régnon Reconsidered,” Augustinian Studies 26:2 (1995): 51–79.

26 Entre outros, veja especialmente Lewis Ayres, Nicaea and Its Legacy (Oxford: Oxford University Press, 2004); Lewis Ayres, Augustine and the Trinity (Cambridge: Cambridge University Press, 2010); e Khaled Anatolios, Retrieving Nicaea (Grand Rapids: Baker Academic, 2011).

27 Sobre esse ponto, veja especialmente, Ayres, Nicaea and Its Legacy, 384–429; Anatolios, Retrieving Nicaea, 1– 13 and ix–xiv (Brian Daley’s foreword).

28 Para um exemplo disso, veja Carl L. Beckwith, Hilary of Poitiers on the Trinity (Oxford: Oxford University Press, 2008).

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o trinitarismo moderno, mostrando como os Pais e os reformadores discutiram a Trindade e protegeram o ensino bíblico de Pai, Filho e Espírito Santo. Além disso, demonstramos expressivamente a exegese trinitária conhecida e confessada pelos Pais e Reformadores em seus comentários e sermões. A abordagem luterana da Trindade está centrada em Cristo e em Sua obra. Se quisermos conhecer a Trindade, devemos colocar nosso olhar em Cristo, o único que nos revela o Pai. Confessamos Cristo pelo Espírito Santo para a glória do Pai, e isso especialmente como os fiéis reunidos no serviço divino. Aqui, com Basílio de Cesaréia, "oferecemos a confissão de nossa fé de acordo com nosso batismo, e a doxologia de acordo com nossa fé, glorificando o Espírito Santo com o Pai e o Filho".29 A Trindade salva. É por isso que nossas Confissões insistem que "a principal adoração a Deus é a pregação do Evangelho".30 Vivemos em um mundo que tem muito a dizer sobre Deus.

Mostramos ao longo deste livro que tudo o que uma pessoa diz sobre Deus tem relação direta com o que ela pensa sobre si mesma e sobre o mundo ao seu redor. Isso significa, no mínimo, que qualquer discussão sobre a Trindade envolve muito mais do que um único artigo de fé. As Escrituras deixam isso claro ao correlacionar o conhecimento correto de Deus com a adoração e a ética. A Trindade, o evangelho, a adoração e a ética estão todos juntos. Estamos enganados se pensarmos que os debates sobre adoração e ética não têm relação com o evangelho e com a Trindade. Gregório de Nissa, como Basílio, argumentou que nossa confissão da Trindade procede de nossa fé batismal. Essa fé, Gregório ainda insistiu, reflete nossa adoração: "Não é natural que a adoração faça guerra contra a fé, mas assim como cremos, também damos glória. Agora, como nossa fé está no Pai, no Filho e no Espírito Santo, a fé, a adoração e o batismo estão de acordo um com o outro".31 Seguimos as percepções bíblicas dos Pais e reformadores em 29

Basílio de Cesaréia, Letter 159 (LCC 2:395-97), tradução ligeiramente alterada.

ApdaCA XV.42. A Triglota acrescenta: "Agora, se essa adoração é omitida, como pode haver conhecimento de Deus, a doutrina de Cristo ou o Evangelho?"

31 Gregory of Nyssa, Letter 24.8 in Gregory of Nyssa: The Letters, trans. Anna M. Silvas (Leiden: Brill, 2007), 194.

30

513

nossa resposta às amplas questões e preocupações da modernidade.

Explicamos nossos compromissos epistemológicos e soteriológicos para discutir e confessar adequadamente a Trindade. Demonstramos a revelação da Trindade nas Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Familiarizamo-nos com os padrões tradicionais de discurso da igreja para proteger e proclamar essas percepções bíblicas. Somos herdeiros e guardiões de uma rica tradição. Com essa herança em mãos, juntamos nossas vozes de forma crítica e construtiva às conversas trinitárias de nossos dias. E fazemos isso, em primeiro lugar e acima de tudo, pregando com ousadia o puro evangelho de Jesus Cristo, porque não há outra maneira de conhecer, adorar e glorificar a Santíssima Trindade.

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CONTEÚDO

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