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NAVEGANDO COM JORGE OLIMPIO BENTO
"As armas e os barões assinalados / Que da ocidental praia Lusitana / Por mares nunca de antes navegados / Passaram ainda além da Taprobana / Em perigos e guerras esforçados / Mais do que prometia a força humana / E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram".
A consagração do direito a uma vida digna, realizada no caminho de perseguição da felicidade, implica a presença acrescida do desporto, a renovação das suas múltiplas práticas e do seu sentido. Sendo a quantidade e qualidade do tempo dedicado ao cultivo do ócio criativo (do qual o desporto é parte) o padrão aferidor do estado de desenvolvimento da civilização e de uma sociedade, podemos afirmar, com base em dados objetivos, que nos encontramos numa era de acentuada regressão civilizacional. Este caminho, que leva ao abismo, tem que ser invertido urgentemente.
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TEMPO DE FOGUEIRAS E MARIONETAS
O baú das memórias dá muito jeito para compreender a conjuntura. No período do Estado Novo, os funcionários públicos tinham que ler, no ato de posse, uma declaração de adesão às orientações básicas do regime. Isto não fazia deles fascistas; e também não o eram os que não afrontavam a situação. Quem possui cu tem medo; e este convida à prudência, que não pode ser confundida com cobardia. Quando chegou o 25 de abril de 1974, lecionava no Liceu D. Manuel II, posteriormente batizado como Rodrigues de Freitas. Talvez por naquela altura ser primavera, nasceu do nada uma chusma de oportunistas arvorados em revolucionários. Teve imediatamente lugar uma assembleia geral da escola, visando sanear o reitor e a sua equipa. Escrevi e li então uma posição contra essa medida. Passados poucos dias, foi convocada uma reunião dos professores de educação física da região do Porto, realizada na sede provisória do Sindicato de Professores, instalada num edifício ao cimo da Rua Padre Cruz. Novamente surgiram inflamados inquisidores com uma lista de docentes que deviam ser saneados. A proposta foi aprovada pela maioria acossada e manipulada. Pertenci à escassa minoria que se ergueu vivamente contra a insanidade. Os nomes dos saneáveis e dos discordantes da canalhice seguiram para uma entidade de Lisboa. Alguns dos capatazes da depuração de outrora encontram-se agora acostados a partidos da direita e extrema-direita. Estou hoje como sempre estive, onde me manda estar o exame de consciência, sabendo que nunca serei inteiramente livre. Não sou imune às circunstâncias, nem tenho vocação e coragem para herói. Mas também não mato voluntariamente a verdade; e sou avesso a dar facadas no pensamento. A vivência do passado permite-me afirmar que o tempo das fogueiras e das marionetas está de volta. Em vez de a manter fechada, é assim que se abre a Caixa de Pandora.
COMENSAIS DO BANQUETE DA GUERRA
A guerra, disse o Papa Francisco, representa o fracasso da política, o eclipse, o abismo e a capitulação vergonhosa da Humanidade, a derrota clamorosa e aviltante do bem pelo mal. Como se isto não fosse suficientemente tenebroso, a guerra alimenta o negócio mais lucrativo e sórdido da nossa era. Conhecemos esta realidade abjeta, mas não nos mobilizamos contra ela. Preferimos manter afinidade com a crueldade e selvajaria; e até nos sentamos à sua mesa. Figuramos, pois, no extenso rol da acusação; e não limpamos a culpa com gestos de aparente indignação. Convivemos tranquilamente com as diversas formas da violência, com as mortes que sangram e com as depressões e exaustões que também matam. Não teremos perdão, enquanto estivermos amarrados à inação e não partirmos as grilhetas que aprisionam a consciência e a razão. Urge cortar cerce a cumplicidade com tão hedionda depravação.
QUANTO VALE A VIDA?
A vida é o valor supremo. Logo, uma vida, uma só que seja, não tem preço. Sentado em frente do televisor, no conforto de casa, provocam-me arrepios o nome e a imagem do criminoso frio e sanguinário que manda invadir e matar quem não se verga e se lhe opõe. Sinto horror pelo inferno e também pela elegia da morte. Não consigo aplaudir a mobilização de jovens e adultos (18-60 anos) para enfrentar armas arrasadoras. Tenho medo de mim, de cair na tentação de banalizar a carnificina, de enaltecer o martírio, de olhar o outro, que não me é familiar, como carne para canhão. Nenhum fim justifica o sacrifício da vida. Esta não é um meio, mas causa primeira.
NOVA ERA
A passagem final do romance ‘Crime e Castigo’, de Dostoievski, vale como metáfora dos dias presentes e vindouros. Após dois dos nove anos de trabalhos forçados num presídio da Sibéria, Raskólnikov liberta-se do niilismo, em que se tinha afundado há muito tempo. Surge assim o “princípio de uma nova história, a história de renovação gradual de um homem”, geradora de tanta felicidade que o prisioneiro toma por sete dias os sete anos da pena por cumprir. Ele “nem sequer pressentia que a nova vida não lhe seria entregue de mão beijada, que teria de pagar caro por ela, pagar com grandes provas futuras…” Eis o desafio que se nos depara. Estamos disponíveis para o assumir?
O VALOR DA EUROPA
A Europa nunca valeu tanto como hoje. Estarei a descambar para uma posição regionalista e a perder a visão universalista? Não, não estou. Ao invés, estou a saudar e valorar o seu ressurgimento como bandeira dos princípios cimeiros da convivência universal, nesta era sombria. Essa responsabilidade caiu sobre os seus ombros; temos que a renovar e transportar. Ela exige que doravante sejamos mais coerentes e consequentes. Assim o esperam os atentos olhos do mundo.
SOLIDARIEDADE COM A UCRÂNIA: PORQUÊ?
Ao longo da nossa existência como Nação e País, fomos recorrentemente invadidos. Por exemplo, em 1580 as tropas de Filipe II de Espanha tomaram conta de Portugal, com a conivência e traição da nobreza comprada e vendida. A sorte não nos desamparou para sempre. No dia 1 de dezembro de 1640, o grupo de conjurados respondeu ao clamor da pátria sufocada. Quais teriam sido as consequências da continuidade do jugo espanhol? Hoje o nosso idioma seria um dialeto clandestino; e nos países, onde é falado, imperaria o castelhano. Ou seja, não existiria a língua que nos afeiçoa a alma e perfaz a identidade. O nome sagrado de Portugal não constaria no mapa mundi, e a gesta dos descobrimentos teria outra narrativa: ficaria na história não como feito lusitano, mas como obra espanhola. Para não falar na perda do modo de ser e estar, de conviver e relacionar, traduzido pela música, poesia, culinária e por tudo o que constitui a nossa idiossincrasia. Somos quem somos; e somos também a perceção das ameaças à nossa independência e soberania. As ameaças não estão arredadas do presente, nem do futuro. Não é, pois, preciso um espírito internacionalista e universalista para afirmar a solidariedade com a Ucrânia nesta hora. Basta ser patriota e decente.
ODE AO DESPORTO E À PAZ
1. No alto da margem pitoresca do lago de Genebra, numa campa singela do cemitério de Lausanne, jaz o barão Pierre de Coubertin. O seu coração encontrou a última morada longe dali, no bosque de Olímpia, lugar tranquilo e predisponente à meditação. Sempre que aqui é acesa a chama olímpica, o pensamento evoca o seu nome. Coubertin, após a sua morte, não suscitou apenas admiração, respeito e fervor. Para os pedagogos ele não foi suficientemente racional e cientista, para os historiadores foi demasiado idealista, para os políticos foi longe de mais na exigência de desporto para todos, para os de direita excedeu-se em humanismo e liberalidade, para os de esquerda não se libertou da aristocracia e do conservadorismo. De tudo o que ele fez permanece o reconhecimento unânime pelo relançamento dos Jogos Olímpicos, muito embora esse crédito não passe, muitas vezes, de uma gratidão platónica. Mas, pelo menos todos os quatro anos, o mundo recorda-o. A bandeira por ele esboçada é desfraldada, soam os coros por ele inscritos no programa olímpico, e a juventude irrompe em festa pela ágora desportiva por ele reinventada.
Os Jogos poderão desencadear paixões, críticas e reflexões preocupantes; conservam, no entanto, a essência da finalidade original, apontada como da máxima relevância pelo visionário. Continuam a ser palco, motivo e estímulo do entendimento entre os povos; perduram como pilar sólido do utópico templo da paz. Realmente os Jogos consubstanciam uma ‘Pedagogia da Fraternidade Universal’, um corpo de ambições e exigências, de princípios e valores de alto teor humanista. Importa repeti-los, proclamá-los e aclamá-los, não só de quatro em quatro anos, para renovar o juramento de fidelidade que as contingências dos tempos vão corroendo.
2. Contra a adulteração e instrumentalização do desporto para duvidosas finalidades, extrínsecas à matriz original, ergue-se a advertência de Coubertin: “O esforço é a alegria suprema; o sucesso não é um objetivo, mas apenas um meio de visar mais alto.” O desporto é momento e fator de expressão da felicidade ínsita no esforço despendido e no êxito alcançado; congrega, em igual medida, competição e cooperação, oposição e respeito, dureza e sensibilidade, sonho e dramatismo, força e beleza, vontade de ganhar e capacidade de perder, regozijo e exultação na vitória e aceitação serena da derrota. É para fazer criaturas de bem, de boa vontade e reta intenção que Coubertin concebe o desporto. Foi a pensar nelas que escreveu a ‘Ode ao Desporto’, inspirado na ‘IX Sinfonia’ de Beethoven e no ‘Hino à alegria’ de Schiller, contido no andamento final. A dita peça musical foi considerada por Coubertin a “sinfonia olímpica por excelência”, por expressar, de modo exemplar, o poder, as aspirações e a alegria da juventude e por nos dar alento e resiliência na luta pela paz e pelo bem da humanidade. É contra o embotamento da consciência dos humanos que Coubertin compôs a Ode de enaltecimento do sentido maior do desporto. Na ‘estrofe V’ procura, com um grito de alerta e repreensão, acordar a nossa indiferença e insensibilidade:
“Ó desporto, Tu és a honra! Dados por Ti têm elogio e testemunho pleno valor, Porque ganhos apenas em verdadeira honradez. Competição desleal e truque ilícito São rigorosamente proibidos E seria castigado com desprezo
Aquele que quisesse conquistar a palma apenas com manha e ludíbrio.” A ‘estrofe VI’ arranca-nos de uma existência entorpecedora e lança-nos na senda da festa e da espiritualização do corpo e da vida:
“Ó desporto, Tu és a alegria! Logo que o Teu grito ressoa estremece o corpo em glória, Os olhos brilham e o sangue irrompe tempestuosamente pelas veias, As ideias voam claramente em direção ao etéreo, A alma liberta-se de toda a pressão E rejubila ruidosamente no gozo pleno da vida.”
Eis-nos perante o desporto como exaltação e exercitação do Homem maiúsculo, das suas aptidões, de todos os sentidos e perspetivas de realização plena da tarefa da vida! Por isso a ‘estrofe VIII’ configura-o como um cinzel escultor e sublimador do rascunho e projeto de Homem-atleta que mora dentro de cada um de nós:
“Ó desporto, Tu és o progresso! Aquele que se quer mostrar dignamente ao Teu serviço Tem que se melhorar continuamente no corpo e na alma...”
Este convite ao aprimoramento, à superação e afirmação individual integra-o Coubertin num contexto mais lato de enobrecimento e qualificação: “O indivíduo possui valor apenas no quadro de toda a humanidade.” O triunfo é assim concebido como alicerce do vínculo do sujeito ao grupo, sendo recusada toda a confusão com uma moral vã, com sofrimento exótico e masoquista, com uma pequena mística de aventura amputada de sociabilidade. Era, por isso, inevitável que Coubertin idealizasse o cenário olímpico como santuário de oração pela paz e de consagração da igualdade dos povos. O que é formulado de modo inequívoco na ‘estrofe IX’:
“Ó desporto, Tu és a paz! Tu entrelaças com um fio os povos, Que se sentem irmãos no culto conjunto Da força, da ordem e do autodomínio.”
Coubertin recusa o Panegírico veemente de Isócrates, pronunciado por Isócrates em Olímpia no ano de 380 a.C., conclamando para a retomada do combate contra os persas sob a direção de uma Atenas de casas brancas, que escondia a chaga social e a miséria moral da imensa legião de oprimidos e humanamente desqualificados. Rejeita a noção curta da amizade, que atribuía aos Jogos o papel de evidenciar a superioridade cultural e política das cidades gregas face às não gregas. Avisado e em jeito de premonição, Coubertin coroa a ‘estrofe IX’ com palavras simples e belíssimas, que plasmam a ideia da paz numa exortação à aprendizagem do respeito e da valorização das diferenças:
“Por Teu intermédio aprende a juventude a respeitar-se E a apreciar e avaliar Também as qualidades de carácter de outros povos. Medir-se e ultrapassar-se reciprocamente, este é o objetivo: Uma competição na paz.”
Será isto uma utopia plenamente factível ou, pelo contrário, uma alienação? É ainda a Coubertin que vamos buscar uma mensagem de otimismo: “Os dias da história são longos. Sejamos pacientes e permaneçamos cheios de confiança.”
MUNDO PÓS-PANDEMIA: O 'NOVO NORMAL'
O tão aguardado mundo pós-pandemia já chegou. Está aí diante da nossa vista. A espera foi em vão para quem adormeceu na ilusão de que ele viria ao som de trombetas festivas e desfilaria em alamedas de oliveiras. Não temos de que nos queixar, porquanto veio tal como foi encomendado pela sonolência cúmplice da maioria dos cidadãos, sem novas atitudes éticas, sem novas metas económicas e práticas políticas. Veio acompanhado do estrondo das infernais máquinas de guerra. Afinal, o 'novo normal' do mundo é bélico, brutal e assustador; suspendeu a reflexão, o tempo, a esperança e a vida. Canto a Humanidade, a Ágora convivial, todos os povos e a Terra inteira. Choro a Ucrânia iludida e traída pelos intérpretes da ‘Realpolitik’ hipócrita e financeira. Da Casa Europeia, outrora sonhada, restam as cinzas de uma fogueira.
JURAMENTO DE FIDELIDADE
Trago a sagrada Terra transmontana agarrada aos pés e impressa na alma, no rosto e no sangue, como agridoce condenação. Na boca ela adquire a forma de hino e oração. Canto e rezo à resiliência e ao pão e ao vinho que o suor põe na mesa da fartura e gratidão. E recito poemas aos calos floridos da sublimação. Aqui é o reino da esperança. Para aquecer os dias apagados e frios, do cume dos montes escorre até aos vales a lava de um vulcão. E para iluminar as noites escuras e longas, o céu tem miríades de estrelas que irradiam um fulgurante clarão. Seria trair as origens, se não seguisse em frente, com sorrisos por dentro e espadas de luz em cada mão.
COM ADMIRAÇÃO E AMOR
Tens mãos de fada. Magia nos dedos. Suavidade nos gestos. Mel nos lábios, bravura e firmeza nas palavras. Fascínio, luz e ternura no rosto. Milagres de esperança nos olhos. Candura e lágrimas no riso. Sonhos nos cabelos ondulantes. Do teu ventre nascem estrelas. E com o nada e a míngua fazes pães multiplicados. És mãe criadora do mundo, e configuras a Humanidade sublimada. Tudo quanto é elevado fica aquém do mistério que em ti mora. Oh Mulher rendeira!
DA LUZ
Que maravilha a luz! A luz do sol e da lua, que abre a porta ao dia e mostra caminhos na noite. A luz do espírito, dos ideais, princípios e valores, das palavras, atitudes e exemplos, que nos arranca do abismo do pasmo e atrai para o resplendor das alturas. A luz dos faróis, que traz a casa as embarcações perdidas na vastidão do mar. A luz das candeias e das velas acesas nos lares e altares, que evoca memórias e implora bênçãos. A luz coada do inverno, prenúncio da primavera, das flores e frutos que hão de vir. A luz de uma lágrima, que acusa a perversidade e fertiliza a Humanidade. A luz do riso das crianças, que incendeia de esperança o mundo. A luz da beleza e da bondade, que ofusca a feiura do ódio e da maldade. A luz da admiração e da gratidão, que fulmina a inveja e a traição. A luz de quem mora no coração, o ilumina, aquece e faz pulsar. A luz das tuas mãos dadas às minhas, semeadora de estrelas no chão da nossa vida. A luz dos olhos meus, que vem do brilho dos teus. A luz de ti infusa em mim. A luz da Adriana, radiosa e mágica, alumiando suavemente o crepúsculo!
JÁ ESTAMOS TODOS EM GUERRA?
Os comentadores encantados e encantadores dizem que não. Romantizam-na e tecem elegias à morte, não importando que muitos sejam obrigados a caminhar para ela e haja atos genocidas. Torcem pela continuação da guerra, apostam num vencedor e afirmam que, na parte ocidental, estamos em paz. Ora a realidade mostra que, na melhor das hipóteses (veja-se o horror desta formulação!), nos encontramos numa zona escura e pantanosa, encostada à primeira e afastada da segunda. Como assim? As guerras de agora não revestem só as formas de outrora. Para abrir conflitos e estes serem violentos, não é preciso disparar canhões. Entram em cena outras armas. Elas não causam mortes cruentas, mas também matam. Morre-se dos dois lados; não se sabe quem morre mais. E os sobreviventes ficam errantes na terra arrasada, sem pontes para ultrapassar os rios do ódio que estava represado e entretanto se soltou.
Sim, estamos em guerra. Uma vergonha para a Europa do Humanismo e Iluminismo, dita civilizada e cristã, porém incapaz de a evitar! O que pode esperar dela o mundo? Nada. A conduta hipócrita dos seus líderes envenenou-lhe as entranhas. Está a morrer. Haverá alguém que lhe acuda e a restitua à vida?
A PROPÓSITO DA EXCLUSÃO DE ATLETAS E SELEÇÕES
Aos atletas e seleções de dois países está vedada a participação em eventos organizados pelo COI e por várias Federações Internacionais. Sou sensível aos argumentos aduzidos para fundamentar a proibição; porém não me satisfazem e tranquilizam de todo. Sendo o assunto tão difícil e grave, a análise devia dispensar a ligeireza, acolher mais dúvidas e menos certezas, implicar reflexão aturada e não decisão apressada. Esta hora transborda de gente assertiva e corajosa. Noutras alturas, a coragem bate-lhe à porta e encontra este aviso escrito em letras garrafais: “Ausente, de férias, em parte incerta.” São destarte os habituais fugitivos da tomada de posição contra qualquer um dos males que assolam o mundo. Mas põem-se em bicos de pés nos momentos propícios à subida de degraus na escaleira oferecida pelo populismo. Causa-me inquietude a cruzada de exclusão, proclamada por entidades sempre alheias às agruras humanas. Não compagino a sanção com o Humanismo e a Paz, porquanto estas grandezas advogam a inclusão de todos, não excluem ninguém. Vejo o desvario à solta. Pôr nos ombros dos desportistas a culpa das loucuras cometidas por outrem traduz mesquinhez e miopia. É pura hipocrisia exigir-lhes responsabilidades que nós não assumimos. O que é que sucede aos cidadãos, residentes em países sujeitos a autocracias ou ditaduras, que ousam erguer a voz da discordância pública? Já caiu no esquecimento o que se passou entre nós na era do Estado Novo? Qual é, afinal, o regime vigente na Rússia? Pode alguém posicionar-se contra ele, sem sofrer as consequências? Como disse o capitão da seleção russa de futebol, é muito fácil dar palpites a partir das luxuosas mansões de Londres (ou da segurança das nossas casas). Obviamente, o desporto não é politicamente neutro. Por exemplo, a Palestina foi, no final de 2008, invadida pelas tropas de Israel. Na ocasião Muhammed Aboutrika, jogador da seleção egípcia, após marcar um golo, mostrou a t-shirt com um apelo à solidariedade em relação à população, submetida a grande sofrimento. A FIFA puniu-o e justificou assim a punição: “Não se pode misturar o futebol com política.” A mudança de outrora para agora é deveras significativa. Os tempos mudam, tal como a consciência, a sensibilidade e as atitudes. Ainda bem. Espera-se que a medida faça doutrina doravante, independentemente do nome e poderio do país violador da paz ou de outro direito fundador da Humanidade. Se a cruzada da depuração for levada à risca, muitos serão excluídos do estádio olímpico. Em dias incertos como os atuais, é crucial defender o sentido ecuménico do desporto e enfrentar a pusilanimidade alimentada pela besta da ignorância da história. Precisamos de vias para superar e não agravar a tragédia; ora não me parece que a solução, adotada para responder a pressões mediáticas, contribua para esse fim. Anna Arendt advertiu que o totalitarismo se origina em elites e ganha consolidação com a subjugação das massas pela propaganda. Tenho medo da involução em cena. Persisto em sonhar com o ideário desportivo, com a Casa Comum da Humanidade, com a União Europeia estendida de Sagres até Vladivostoque, com a Terra assente nos pilares da Fraternidade e Universalidade. Não à perversão do desporto e à diabolização do Outro! Para nos desacreditar face aos povos com olhos esperançosos e sonhadores, postos na velha Europa, basta a sujeira dos mercados e negócios a que se entregaram os dirigentes da UE nos últimos vinte anos. Trocaram ideais, princípios e valores por interesses; agora rasgam as vestes e soltam lágrimas de crocodilo, para branquear a conduta e manter o poder. Não voltarão ao mesmo, quando a tempestade amainar? E nós?
CIDADE DO FUTEBOL
A Federação Portuguesa de Futebol é uma 'instituição': institui, promove e irradia princípios e valores, visando elevar o índice ético e estético do jogo e dos seus agentes. Mais, não se exime a dar um contributo para a melhoria da sociedade, particularmente pertinente em dias tão sombrios como os atuais. É nesta conformidade que se inscreve o curso "Desporto e Responsabilidade Social", iniciado ontem ao final da tarde. Sinto-me deveras privilegiado por ter proferido a aula inaugural. Estou, pois, profundamente grato ao Professor André Seabra, ao Presidente Dr. Fernando Gomes e à sua equipa. Bem hajam, em todo o tempo e lugar!
DAS EXPRESSÕES ‘EDUCAÇÃO FÍSICA’ E ‘ATIVIDADE FÍSICA’
Herdamos dos gregos (a partir de Platão), não do judaísmo, a noção difundida pelo cristianismo: de um lado o corpo orgânico, do outro o espírito e mente. A separação não tolhe a reflexão filosófica, apostada em lançar a ponte da harmonia entre os dois modos de manifestação da pessoa. O transcendente ilumina o transcendido; este é res extensa e manus longa, palco e ator daquele. Todavia, a dicotomia afeta a noção e a valoração sociocultural dos ofícios. É o caso do Professor de Educação Física. A designação ‘Educação Física’ faz parte do acervo vocabular, pedagógico e social. Não há volta a dar. Embora pouco adiante mudá-la, convém não olvidar que configura uma visão dicotómica e é epistemologicamente insustentável, tal como a corrente expressão ‘atividade física’. Esta não possui qualquer fundamento concetual. Nenhuma atividade tem apenas dimensão física; nenhuma recebe o nome dos meios da execução, mas dos fins que persegue. Na exercitação corporal, a componente física é a menor; a substância é essencialmente anímica, volitiva, ética e estética. O corpo é sede do EU, um espírito incarnado; ou seja, a nossa identidade é corpórea e nela cabe tudo quanto nos anima e examina por dentro e por fora: ideais, princípios, valores, conceitos, saberes, noções de deveres, habilidades, bitolas comportamentais, etc. A existência ou modalidade do existir precede e determina a essência do Ser. Induzimos esta cultivando a aparência (o aparato visível); chegamos à profundidade laborando e dando raízes à superfície. O que é, pois, o Professor de Educação Física? Qual a função? A resposta alonga-se na tentativa de superar o âmbito limitador, ínsito na designação. O mesmo não sucede com o Professor de Português, Matemática ou de outra disciplina, cuja denominação provém da matéria que leva à cena do ensino e aprendizagem. Aquele está obrigado ao exercício constante da legitimação; os segundos, dada a evidência instrumental e utilitária do seu múnus, herdaram uma bula que os isenta da justificação e do autoquestionamento. Na investidura de responsabilidades académicas e institucionais procurei contribuir para a superação da tradição dicotómica, focando o desporto como categoria antropológica, como arte performativa, polissémica e polimórfica, como facto e ato total. A alteração do nome da Faculdade e das áreas disciplinares serviu esse intuito. Será satisfatório o resultado? Salva-se a intenção.
VENCEDORES DA GUERRA
Os senhores das armas já ganharam - e com goleada! Têm fortes razões para festejar e se banquetear. Vai ser aumentada – e muito! – a percentagem do orçamento destinada ao armamento dos países. A cultura, a educação, a saúde, a segurança social e afins não estavam bem; doravante irão de mal a pior. Vencedores são igualmente os inquisidores-mores. Abriu a caça ao Outro e acendem-se fogueiras para o queimar. Seja, pois, prudente como as serventes. Deite fora os livros e obras musicais, de escritores e compositores de um certo país. Tenha cuidado; evite escrever ou pronunciar o nome deste, porquanto é o bastante para o comprometer e levar ao cadafalso. Também estão a ganhar as forças de extrema-direita. Além de verem branqueada a sua ação, beneficiam da desatenção e condescendência dos olhares e entram, com pés de lã, nos parlamentos e governos de países e regiões.
Vencedores são ainda os professores de história. Não precisam de se dar ao trabalho de explicar o que foi a Idade Média. Ela ressuscitou pujante e ocupa as páginas dos jornais, as pantalhas da televisão e as redes sociais. Não por último, o vaticínio de Gandhi (1869-1948) alcançou o pódio: “Olho por olho, e o mundo acabará cego.” A Caixa de Pandora está aberta; e os anjos da esperança são escassos e medrosos. Ficam assim à vontade os tartufos que elegem a guerra como saída cobarde para os problemas da paz. Entretanto os pais enterram os filhos.
VERY BRITISH!
Ah como me encanta tudo quanto vem do reino de Sua Majestade! Aprecio, sobretudo, o padrão da democracia, da coerência e sinceridade. Olhem bem! Os lordes descobriram que um oligarca russo era dono do Chelsea e correram logo com ele. Vão fazer o mesmo, mal descubram que as ‘democracias’ dos Emiratos e da Arábia Saudita, dois areópagos onde refulgem os direitos humanos, são donas do Manchester City e do Newcastle. Mais, a bolsa de Londres vai igualmente ser limpa da sujeira dos capitais russos. Obviamente, a França não quer ficar atrás; apresta-se para retirar a posse do PSG aos ‘democratas’ do Qatar. Há palmas e foguetes, e hossanas na boca dos papalvos. Bravo!
VIVENDO…
Muito do que nos galvaniza ainda não se realizou, nem tampouco chegou. Está sendo, está vindo, dando a mão à esperança e fazendo o caminho. Se vier e quando vier, nunca chegará de uma vez, inteiro, pleno. Essa vinda não existe para aquilo que mais está faltando. Somente vem o que a falta vai encomendando e trazendo, enquanto vamos esperando, invocando, sonhando. Passam os dias e as noites e fenecem as rosas; ficam os nomes lembrando e as palavras falando e rezando. A vida sem finitude cumpre-se no gerúndio, andando e subindo, jamais concluindo, sempre aguardando.
DA UNIVERSIDADE COMO INSTITUIÇÃO DA FELICIDADE
Celebra-se hoje o Dia da Universidade do Porto. Parece-me uma boa oportunidade para focar a atenção na Universidade como instância potenciadora da felicidade. Quando revejo a trajetória de estudante e docente, concluo que a Universidade acendeu em mim o destino da liberdade e felicidade. Antes tinha ouvidos e olhos, conhecia de cor o alfabeto e os números, mas não sabia escutar e observar, ler e entender, escrever e contar, perguntar e responder, avaliar e valorar. Nela adquiri instrumentos para a laboração da razão. Aprendi a pensar, a libertar a mente, a argumentar e formular ideias e conceitos, a descobrir e alargar horizontes e perspetivas, a tecer e sonhar com ideais e utopias. Percebi que estamos mais ligados ao invisível do que ao visível. Consegui ir além da epiderme das coisas, tocar na sua substância e viver o presente na dimensão do eterno. Com isso virei costas ao conformismo e à autossatisfação; atrevi-me a desassossegar a consciência, a questioná-la de modo permanentemente renovado, impondo-lhe metas, desafios e normativos exigentes. Pouco a pouco, deparei-me com a ética e a estética, aprimorei o gosto, as formas de expressão, a palavra dita e escrita, o verbo pronunciado e o calado, tentando preencher o vazio interior e edificar um espírito de bom tamanho. E confirmei que a existência precede a essência, que a maneira do estar condiciona e configura a modalidade do ser. Ademais conheci pessoas encantadoras, e enamorei-me delas. Encontrei outras assaz distintas de mim, importantes e fantásticas, que me levaram a compreender o teor da alteridade, a valorizar as diferenças, a ampliar e afinar a consideração e sensibilidade, a partilhar causas, paixões e projetos, a confiar nos outros, a revelar-lhes desejos, desditas e ansiedades, a firmar compromissos, cumplicidades, amizades e fraternidades.
Li livros, manuais e tratados, e familiarizei-me com nomes célebres, cientistas, filósofos e sábios, que me mostraram lados ignorados e sublimes da vida e apontaram vias para a salvação. E deixei-me seduzir por crenças e mitos que nos incitam à transcendência, a invocá-la e a viver à sua altura. Sem estas próteses, continuaria acorrentado às diversas formas de hemiplegia espiritual e moral. Alegro-me pelo quanto já andei, ciente de que a caminhada é longa e infindável. Dentro de mim ouço nitidamente vozes de falta, insuficiência e penúria; sinto-me bem em dialogar com elas. Deste jeito o poder de conhecer tornase atração pelo gozo e sabor do saber, sempre pouco e aquém da necessidade, porém bastante para fazer germinar o grão da felicidade. Nesta conjuntura de angústias e apertos, não permitamos que seja retirado do cerne da missão da Universidade o inestimável contributo para a felicidade. Não esqueçamos que esta se funda na ilusão; quem a quiser roubar, destruir e substituir por uma realidade dura e crua é agente da amargura, da infelicidade e desumanidade. Sim, nascemos, estudamos e trabalhamos para existir num nível superior, para esgotar as possibilidades de ser feliz, sabendo que este ideal é um impossível necessário. É esta a nossa verdadeira identidade, cuja procura devemos ousar, no pressuposto de que ela nunca seja plenamente encontrada, sob pena do encanto acabar e o mistério se perder para sempre. Continuemos portanto a perseverar na busca da felicidade. Não nos cansemos de crer e laborar em impossíveis, em feitos, grandezas e prodígios, como Natália Correia:
Creio nos anjos que andam pelo mundo, Creio na deusa com olhos de diamantes, Creio em amores lunares com piano ao fundo, Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, Creio num engenho que falta mais fecundo De harmonizar as partes dissonantes, Creio que tudo é etéreo num segundo, Creio num céu futuro que houve dantes, Creio nos deuses de um astral mais puro, Na flor humilde que se encosta ao muro, Creio na carne que enfeitiça o além, Creio no incrível, nas coisas assombrosas, Na ocupação do mundo pelas rosas, Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.
SELVAJARIA E HORROR
Para que o inferno acabe, é preciso querer o fim dele. A barbárie não pode continuar a aprofundar a involução civilizacional. Urge travar as duas. Como? A situação é trágica; não é altura para exacerbações idealistas, mas para procurar soluções realistas: são milhões de vidas destroçadas e uma nação arrasada. Não ouso, pois, engrossar as fileiras dos ‘tudólogos’ que comentam nos telejornais e agitam as redes sociais, sabem tudo, embora ignorem o essencial. Recolho-me em meditação e oração. Peço aos dirigentes envolvidos e implicados que exercitem a coragem de pôr termo à ferocidade e loucura em cena. É uma vergonha para a Europa, o Mundo e a Humanidade. Os vindouros julgar-nos-ão severamente pela incapacidade de superar e sublimar esta hora insana.
DOR AGUDA
Observo as circunstâncias com acrescida inquietação. A visão leva-me a tirar conclusões impossíveis de calar. A política internacional é guiada pela falsidade e mentira. O mundo tem vindo, nos últimos anos, a apodrecer de maneira acelerada. O martírio, que agora acontece na Ucrânia, é a culminância da podridão.
Assisto a tudo com a amarga convicção de que não chego à verdade essencial. Hoje esta não interessa absolutamente nada à maioria das pessoas; muito menos à comunicação social que falta deliberadamente ao encontro com ela. Vamos, pois, continuar na senda para o desastre universal, com a pose de gado alegre e bem ataviado. Isto dói-me, ainda mais do que a realidade.
GUERNICA NOVAMENTE
Pablo Picasso vivia exilado em Paris, quando o exército alemão ocupou a França. Um dia foi intimado para prestar declarações numa esquadra da SS – Schutzstaffel. Compareceu no local; e então um oficial nazi colocou diante dele o quadro sobre o arrasamento de Guernica e disparou esta pergunta: Foi o senhor que fez isto? O pintor respondeu de forma intrépida: Não. Foram os senhores. A destruição de cidades voltou à ordem do dia. A civilização tem que acusar os criminosos e aplicar-lhes a pena máxima, insuficiente para castigar tamanha barbárie.
ADEUS, MÃE EUROPA!
O grito de dor e desalento saiu da boca e das entranhas de Vinícius de Moraes: “Tão cedo não te quero ver. Teus olhos se endureceram na visão de muitas guerras. Tua alma se perdeu. Teu corpo se gastou. Adeus, velha argentária. Guarda os teus tesouros, os teus símbolos, as tuas catedrais. Quero agora dormir em berço esplêndido, entre meus vivos e meus mortos, ao som do mar e à luz de um céu profundo…” Adeus, velha Europa, esquecida de Prometeu e do Evangelho do Galileu, ignorante dos filósofos da Modernidade e veneradora de agentes da falsidade! Levas ao pódio figurões banais e desprezas os heróis ancestrais. Abjuras a transcendência e a altura da sublimação, e comprazes-te com a violência e o arruinamento da razão. Adeus, criatura empedernida, desmerecedora da proteção de São Bento! Trais as artes da salvação e reinstalas as fábricas do sofrimento. Para onde caminhas com esse gibão encardido e enferrujado? Não te acompanho; prefiro ficar órfão e deserdado. Fecho os ouvidos para não ouvir a mentira das declarações de equidade, nos direitos, deveres e sacrifícios, que espalhas no vento. O teu amor à Humanidade parece o de uma rameira do fingimento.
SE ÉS POETA...
Onde quer que vás, fala do tormento do outro, nomeia o teu irmão que vive em baixo, submerso na incerteza e tristeza. Entreabre-lhe, com a tua palavra, a porta da coragem de seguir em frente e da esperança de encontrar a alegria. Lembra-te, não és proprietário dos versos que crias, dizes e escreves. Pertencem a quem deles precisa. Se não és poeta, tens o dever de o ser.
CUIDADO COM OS IDEALISTAS E SONHADORES!
Desejoso de vingar o pai (Dario I), derrotado pelos atenienses na Batalha de Maratona, travada em 490 a.C., Xerxes I da Pérsia (518-465 a.C.) decidiu invadir de novo a Grécia. Reza a lenda que o imperador ouviu os conselheiros antes da invasão. Um deles ter-lhe-á dito o seguinte: “Cuidado! Olha que esses indivíduos, contra os quais nos levas a lutar, são muito difíceis de vencer! Eles não lutam por dinheiro; competem por causas, ideais e sonhos de superioridade.” O soberano não lhe deu ouvidos. O seu exército derrotou os gregos em várias batalhas, nomeadamente a das Termópilas, devastou cidades e monumentos, incluindo a Acrópole de Atenas. Mas a armada persa acabou destroçada pelas trirremes de Temístocles no embate naval
de Salamina, em 29 de setembro de 480 a.C. Xerxes viu-se forçado a regressar à Pérsia com o rabo entre as pernas; e os soldados, que deixou em solo heleno, foram escorraçados no ano imediato. A lição é eloquente. Os sonhadores podem perder combates; porém os ideais nunca perdem a guerra. Não há machado que lhes corte a raiz e os impeça de crescer e avançar para o futuro. Têm asas, voam sobre a terra e os mares até ao infinito.