Jornal Tabaré #05

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portoalegre setembro 2011 #5 porcos • onze de setembro • pavilhão • liga os pontos MATAM MENINOS espremequesaisangue

Na “Revolução dos Bichos”, de George Orwell, os humildes animais de uma fazenda desencadeiam um processo revolucionário depois da morte do ditatorial fazendeiro humano. Dois porcos, por serem os mais cultos e inteligentes, arquitetam o novo sistema político e social da propriedade, onde todos os animais terão os seus direitos garantidos através da constitucionalização de sete leis. A última delas reza o seguinte: “Todos os animais são iguais.”

Em princípio, a organização social recém instituída demonstra ser tão igualitária quanto o possível. No entanto, com o passar do tempo, os líderes suínos percebem as vantagens que estão ao seu alcance justamente por administrarem todo o funcionamento da fazenda. Os porcos governantes, então, passam a gozar de certos privilégios, o que fere o mandamento que garante a equidade entre os suínos, os bovinos, os caninos, as aves, etc. Dessa forma, os porcos encontram uma solução – digamos – conveniente:

TABARÉ

mudam o sétimo mandamento que passa a expressar que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.”

Depois do aumento sistemático do salário da classe política iniciada no ano passado no Congresso Nacional, a fábula de Orwell provou que se mantém atualíssima. Em 2010, os deputados federais elevaram em 61,8% a sua remuneração, enquanto que os deputados estaduais do Rio Grande do Sul elevaram em 73%; já os vereadores de Porto Alegre almejam 73,3%. Ora, mesmo considerando a inflação de cerca de 20% desde 2007 (quando houve o último reajuste), trata-se de um incremento exorbitante em relação ao valor que se costuma passar às classes trabalhadoras. No começo de 2011, os funcionários públicos da Capital gaúcha, por exemplo, receberam 2,55% de ganho real para ser pago em dois anos. Por que aqueles recebem muito mais que esses? Privilégios?

Todavia, a discrepância entre o reajuste dos agentes políticos e dos trabalhadores “comuns”

tem uma explicação razoável. Acontece que aqueles que administram a máquina pública regulam o próprio salário. E esse auto-arbítrio está previsto na Constituição de 1988, que define que um vereador pode ganhar até 75% do que ganha um deputado estadual que, por sua vez, pode ganhar até 75% do que recebe um deputado federal. Ademais, vale ressaltar que a Constituição foi formulada pelos próprios legisladores, logo após o falecimento da ditadura militar brasileira. Haveria, então, alguma semelhança com os porcos da “Revolução dos Bichos”?

Ora, como se pode ver, parecem existir muitas semelhanças entre os porcos de Orwell e os legisladores brasileiros. Enquanto os suínos formularam os sete mandamentos da fazenda, os nossos políticos formularam a Constituição; enquanto os suínos governavam a fazenda, nossos políticos governam o Estado; enquanto os suínos se agraciavam com regalias, nossos políticos se concedem generosos aumentos salariais. Santo deus, será que alguns são mais iguais que outros?

Projeto Gráfico: Martino Piccinini

Capa: Maíra Oliveira

Colaboradores: Carlos Latuff, tiele B.

Tiragem: 2 mil exemplares

Contatos: comercial@tabare.net tabare@tabare.net facebook.com/jtabare @jornaltabare

tabare.net

Ariel Fagundes, Chico Guazzelli, Dani Botelho, Felipe Martini, Gabriel Jacobsen, Guilherme Dal Sasso, Jessica Dachs, Júlia Schwarz, Juliana Loureiro, Leandro Hein Rodrigues, Luciana Bênia, Luísa Hervé, Luna Mendes, Maíra Oliveira, Matheus Chaparini, Marcus Pereira, Martino Piccinini, Michele Oliveira, Natascha Castro Faculdades • Fabico • Famecos • Instituto de Artes UFRGS • Xerox da Clê • Lojas • Palavraria • Espaço Contraponto • Bares • Alumiar • Café Cantante Comitê Latino-americano • Ocidente • Tutti Giorni • Centros culturais • Casa de Cultura Mario Quintana • Instituto NT [Luísa Hervé]

O homem

que comeu o salsichão do outro

Um jovem russo de 21 anos admitiu ter comido outro homem, de 32, que havia conhecido em um site de relacionamentos para homossexuais. A questão é que ele comeu o cara no sentido literal, por isso foi preso. Segundo a polícia local, a única intenção do rapaz era provar carne humana. Pelo visto tava bem bom, o canibalzito disse que picou a vítima e fez salsichões e croquetes. As iguarias renderam cerca de uma semana.

Em tempo

Na Porto Alegre das antiga tu nem precisava matar o vivente, era só comprar a linguíça pronta na rua do Arvoredo.

Se apalpá paga

Um chinês foi multado por apalpar os seios de uma mulher enquanto dirigia em uma estrada da província de Sichuan. O carinhoso motorista se defendeu dizendo que estava apenas massageando a moça. Não teve jeito, a câmera flagrou e o motora tomou um prejú de cerca de 30 pilas. Resta saber quem vazou a imagem na internet.

Rastreador de suvaco

A cirurgia já havia acabado e tudo parecia bem quando Michael Woolman percebeu um sangramento embaixo do braço. Ao consultar os médicos ele descobriu: haviam implantado, sem autorização, um rastreador GPS em sua axila.

CARTAS @tabare.net

Woolman abriu um processo na corte federal de Dallas contra o hospital Baylor Health & Bryan LGH. O rapaz estava internado apenas para retirar gânglios das amígdalas e das mamas.

Filmes brasileiros vetados na China

O governo chinês vetou metade dos filmes do 2º Brazil Film Festival. Das 18 películas selecionadas para a mostra, nove tiveram exibição proibida nas salas de cinema. Pelo menos ela s poderão passar em alguns centros culturais. O festival acontece em novembro em Pequim e Xangai. Em contrapartida, a

Fiquei muito surpreendida com tudo, desde o conteúdo dos textos, a diagramação (gostei do aspecto meio retrô, me lembrou um pouco as revistas de manifesto do modernismo...), as fotos...tudo parece se complementar ao propósito da revista, e fez ela sair muito do padrão. Quero muito ler as próximas edições! Parabéns, de verdade! Acho que tem muito futuro. Passei pro meu irmão ler e ele tá bem concentrado nela!

Grazielle Portella, designer Retro é tendência, beibe.

E jornal com bar no meio é feio? Só pra quem é meio. Pra quem é bar, não é. Guilherme Chagas, pajador Viajou, magrão...

Rios verdes passam na minha frente, quando chove mergulho neles, lá no fundo encontro pedras azuis celestes... uma delas é você... correntes me levam a novos caminhos e o amanhã nunca será como antes, sejam bem vindos, abraço.

Ubirajara Sanches, mesmo Que teto, Ubi.

organização do evento planeja um festival de cinema chinês no Brasil em 2012.

Em tempo

Na época dos milico, os cineastas eram censurados aqui mesmo. Hoje, têm que ir até a China. É a tal da globalização...

Levaram os patos do Parcão

Numa manhã dessas, como em qualquer outra, os funcionários da Prefeitura contavam a bicharada do parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Foi aí que perceberam a tragédia. Seis dos onze patos que por ali residiam haviam sumido. E não foi a primeira vez. Dois anos atrás, cinco aves foram surrupiadas do mesmo parque. A hipótese mais provável é de que os animais tenham ido parar em alguma panela - e aí por diante.

Em tempo

O Tabaré não apóia a caça aos patos, mas se tu já roubou e já matou o bicho, vai a dica!

Primeiro - óbvio - tu tira as penas, limpa, essas coisas... Daí tu tempera o pato com alho, sal, pimenta do reino, uma folho de louro, meia xícara de suco de limão e meia de vinho tinto. Deixa tomar gosto dum dia pro outro. Tira do tempero e escorre bem. Dá uma untada legal de manteiga na ave, principalmente no peito. Toca-le no forno quente e vai regando com suco de laranja a cada uns dez minutos. Deixa assar e tá pronta a bóia! Decora com uns gomos de laranjota e chama os morto-de-fome que o banquete embucha uma meia dúzia.

Aprovou mas não levou

A Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou recentemente o aumento de 73,3 % dos salários... deles, é claro. O ordenado engordaria de dez mil trezentos e pocos pra catorze mil oitocentos e tantos. Engordaria - porque o Tribunal de Contas do estado emitiu decisão cautelar acabando com a brincadeira. Os vereadores - que tiveram reajuste em fevereiro - se baseiam em uma lei de 2008 que vincula o seus salários aos dos deputados.

Em tempo

Quando foi teu último aumento?

O que a sífilis poupou será devastado pela imprensa.

Karl Kraus, aforista Que que tem a ver o cu com as calça?

y en fin me canso y espero que vos también te canses pero es imposible inimaginable

una vez que el alma se abre a través de la iris nadie quiere dejar de [contemplarse.]

Un remanso poético para mi periodico favorito

Un saludo rioguaibense a este lector tan tierno.

Sensacional! Sensacional! Vai te fudê! Vai te fudê! Márcio Petracco, músico desbocado Olha a malagueta.

[...]Porrãn, e ouvi boatos de que eu estava numa pior.

Carou S

Se Deus está conosco, quem está contra nós?

setembro/2011 #5
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[Luísa Hervé]

Qual 11 de setembro?

Ademocracia foi atacada.” Foi o que o então presidente dos Estados Unidos George W. Bush declarou em 11 de setembro de 2001, quando o grupo terrorista Al-Qaeda precipitou a catastrófica chuva de aviões contra a nação norte-americana. No entanto, em 11 de setembro de 1973, outra democracia não só foi atacada, como também foi usurpada por uma das ditaduras mais atrozes conhecidas pela America Latina. Trata-se da República do Chile, onde o governo da Unidade Popular (UP) de Salvador Allende (1970-1973) – eleito através do voto – foi apunhalado pelas Forças Armadas chilenas, comandadas pelo general Augusto Pinochet (1973-1990).

Segundo documentos divulgados pelo serviçosecreto norte-americano durante o governo de Bill Clinton (1993-2001), o golpe militar no país latino-americano1 foi assessorado e financiado pelos EUA. Na época, auge da Guerra Fria, o republicano Richard Nixon (1969-1974) governava o país e quem acompanhava os acontecimentos no Chile era o conselheiro nacional de segurança, Henry Kissinger. Numa transcrição de um diálogo dos dois, no dia em que Allende se suicidou,

Kissinger se dirigiu a Nixon com certa perplexidão: “Presidente, os jornais estão sangrando por causa da derrubada de um governo pró-comunista. Quer dizer, ao invés de celebrarem o feito. No tempo de Eisenhower, seríamos considerados heróis. (...) Não fizemos aquilo. Quer dizer, nós ajudamos.”

Tanto o 11 de setembro sofrido pelos Estados Unidos quanto o 11 de setembro promovido pelos Estados Unidos deixaram um número oficial de cerca de 3 mil mortos. Todavia, nem sempre as informações divulgadas pelas autoridades condizem com a verdade. Por exemplo, sabe-se que muitos cidadãos nova-iorquinos morreram meses depois da queda do World Trade Center por complicações causadas pela aspiração da nuvem de poeira repleta de amianto, mercúrio e combustível de avião. Por outro lado, hoje o governo do Chile já reconhece que o regime da Junta Militar respaldado pelos EUA vitimou cerca de 60 mil chilenos, entre presos políticos, torturados, desaparecidos e assassinados2. Ainda assim, estima-se que esse número seja muito maior.

Mesmo assim, desde 2001, a mídia insiste em mandar a sua coroa de flores para os escombros do marco zero - muitas vezes sem sequer mencionar o golpe militar no Chile. O que me lembra um amigo

chileno, o socialista trotskista Rafael Eugenio Mieville Loyola, que figurou entre os corredores do Palácio de La Moneda entre 1970 e 1973. Ele ocupava o cargo de inspetor de educação – grau 17, e era responsável por implantar as políticas educacionais do governo da Unidade Popular. A respeito do foco das condolências midiáticas, ele mantém certa desconfiança:

–Parece que hoje há um movimento para tentar apagar da história alguns fatos importantíssimos. A direita quer fazer como o Stálin, que apagou o Trotski das fotos oficiais da União Soviética. Querem apagar da história o governo da unidade Popular. Só que, assim como o Trotski não foi esquecido, o governo do Allende também não será.

DuranTe a uniDa De PoPuLar

Rafael nasceu em 17 de maio de 1948, na cidade de Viña Del Mar. Aos 14 anos entrou para o Partido Socialista do Chile (PSC), depois da iniciação política no Partido Comunista do Chile (PCC). Aos 21 anos, inicia o curso de Engenharia Econômica na Universidad de Chile, mas interrompe os estudos no segundo ano de faculdade para ajudar o PSC a costurar uma aliança com o PCC, o Partido Radical e o Partido Social-Democrata. O resultado seria

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OgovernodaUnidadePopularnoChile,segundoquemparticipou
[Júlia Schwarz]

a exitosa coalizão da Unidade Popular (UP). –O Partido Comunista era o mais forte. Por isso, quando se formou a UP, o candidato escolhido para concorrer à presidência foi o Pablo Neruda. Só que ele acabou renunciando a sua candidatura em prol da candidatura de Allende, mas disse que se ganhássemos as eleições, ele queria ser embaixador na França. Foi o que aconteceu. Em 4 de setembro de 1970, Salvador Allende venceu as eleições com 36,6% dos votos. O segundo colocado, o direitista Jorge Alessandri, do Partido Nacional, obteve 34,8%. E o terceiro, Rodomiro Tomic, da Democracia Cristã, alcançou 27% da votação. De acordo com as regras eleitorais do Chile na época, quando um candidato não obtinha a maioria absoluta nas urnas (mais de 50% dos votos), os dois candidatos mais votados eram submetidos à apreciação do Congresso em uma sessão conjunta entre os 150 deputados e os 50 senadores. No dia da votação, o Legislativo chileno foi cercado por uma multidão, e Salvador Allende foi confirmado como o presidente da República do Chile por 153 votos contra 35, tendo ainda 7 abstenções, numa sessão que contou com a presença de 197 legisladores. Contudo, a direita – maioria no Congresso –solicitou algumas “garantias constitucionais” para sabatinar o presidente socialista. O famoso Estatuto de Garantias Democráticas exigia, entre outros itens, a liberdade de atividade para os partidos de oposição, a liberdade de expressão, a conservação do sistema eleitoral vigente, o desarmamento da população e a não indicação do chefe das Forças Armadas pelo presidente – este último inclusive era inconstitucional, pois a própria Constituição previa que o presidente escolheria o comandante das Forças armadas. –Depois de se reunir com as lideranças dos partidos da Unidade Popular, Allende concordou com as exigências, exceto àquelas que eram contra a própria Constituição. Mas as exigências constitucionais só provaram como aquela direita odiosa era demagoga. Porque, depois do golpe de estado em 1973, o Pinochet

foi contra todas as exigências que eles fizeram à gente. E, mesmo assim, eles apoiaram3 a ditadura no Chile. Quer dizer, no fundo, não estavam querendo garantir a democracia, estavam querendo se manter no poder. Inclusive, eles já estavam planejando a derrubada do Allende. O chefe das Forças Armadas do Chile, General René Schneider, nos alertou ainda em outubro de 1970 que o golpe estava sendo tramado. Tinham convidado o General Schneider para tomar parte e ele se recusou. Mas, quando ele nos contou aquilo, a maioria achou que ele estava louco. No dia 22 de outubro, fuzilaram o carro do Schneider e mataram ele. Aí, ficou mais claro as intenções da direita quando exigiu o desarmamento do povo.

De 1970 até o golpe militar, Salvador Allende comandou o Chile em meio a críticas severas da imprensa (sobretudo, do jornal El Mercurio), em meio a ofensivas do poder Judiciário, em meio a ataques terroristas (principalmente do grupo Pátria y Liberdad e do Comando Rolando Matus), em meio a conspirações de setores do Exército e de alas direitistas assessorados pelo serviço de inteligência norte-americano... Para se ter idéia, só em março de 1973, ocorreram 30 atentados dos grupos direitistas – entre eles um atentado contra o Ministro da Agricultura, Rolando Calderón; e contra o chefe de polícia de Santiago, Jaime Faivovich. Isso explica porque, ao longo de três anos, Allende teve que alterar 12 vezes seu gabinete de ministros.

No último ano antes do golpe, quando indústrias multinacionais já haviam sido encampadas, a turbulência beirou a uma guerra civil. Foi quando houve a greve dos transportes, em que caminhoneiros eram pagos para ficarem parados com os caminhões carregados ou se livrar das mercadorias. Em resposta, o governo – em parceria com os sindicatos de operários – organizaram o que ficou conhecido como os “cordões industriais”, que nada mais eram que a escolta armada da produção chilena. Rafael chegou a comandar um deles.

–A produção industrial crescia e, paradoxalmente, começaram a faltar produtos nas cidades. Então,

fomos investigar. Ficamos escondidos na saída da fábrica. Quando saiu o caminhão carregado, nós o seguimos. Aí, o caminhão pegou um caminho diferente de onde ele tinha que ir, que era a cidade, os supermercados. Ele foi até um cais, onde os produtos foram embarcados em um navio. Quando o navio chegou em alto-mar, os produtos foram jogados na água. Aí, nós chamamos a polícia chilena para dar uma batida lá e eu os trabalhadores começamos a escoltar o transporte até a cidade.

Em 11 de setembro de 1973, o recém nomeado chefe das Forças Armadas, General Augusto Pinochet, traiu o governo de Salvador Allende e comandou o golpe de estado. O presidente da UP, então, discursou pela última vez à nação chilena. Depois se suicidou. Começava então a perseguição aos correligionários de Allende.

Rafael permaneceu nas lutas de resistência até 1974. Nesse meio tempo, encaminhou à Junta Militar o pedido de demissão do seu antigo cargo. No entanto, o pedido, não só foi negado, como ele foi convocado a se apresentar aos militares, pois estava sendo acusado de “participar ativamente da tomada de estabelecimentos.”

–Os militares não aceitaram minha demissão. E a luta armada ia mal. A Operação Condor estava no auge e o pessoal estava assustado com as notícias da Caravana da Morte. Quando eu vi que, de 50 companheiros só haviam restado 5, resolvi sair do país. Aí, como eu estava casado desde 1973 com uma brasileira, que é minha esposa até hoje, vim para Porto Alegre. Aqui, também fui perseguido por muitos anos. Mas, é como o Allende falou: “minhas palavras não têm amargura, apenas decepção.” As minhas também.

1 Em 2003, o argentino Hector Pavon lançou o livro 11 de Setembro … de 1973 (Edições Danger Public). A obra é baseada em documentos da CIA liberados durante o governo Clinton. Alem disso, conta com inúmeros depoimentos de ex-colaboradores de Pinochet.

2 Dados da Comisión Asesora para a Calificación de Detenidos Desaparecidos, Ejecutados Políticos e Víctimas de Prisión Política y Tortura. O órgão chileno tem investigado os casos de perseguição política durante a ditadura de Pinochet. www.comisionvalech.gov.cl

3 “O Supremo Tribunal a que tenho a honra de presidir, acolhe com satisfação e otimismo a vossa subida ao poder, e altamente o seu significado histórico e jurídico”, saúda o presidente do Supremo Tribunal do Chile, Enrique Urrutia, numa carta enviada ao general Pinochet em 1974. Citado em Chile :a Legislação do Fascismo, de P. Gricháev e S. Tchibiriáev (Moscovo, 1980).

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Passaportevermelho,queeradeusoexclusivodoaltoescalãodogovernochileno,foiusadoparafugirdaditadura [Arquivo pessoal]
“De 50 companheiros só haviam restado 5

A VALA COMUM

No dia 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) proferiu sentença declarando responsável o Estado brasileiro por crimes contra a humanidade no período da ditadura militar. O caso diz respeito ao “desaparecimento forçado” de integrantes da Guerrilha do Araguaia, composta por então militantes do PCdoB e camponeses, constituindo violação dos direitos à vida, à integridade e à liberdade pessoal, estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A decisão só confirmou algo já há muito sabido: vivemos durante anos sob um Estado de exceção. A luta pelo direito à memória sempre enfrentou resistência dentro do Brasil. Mas seria um erro colocar os crimes de Estado como mera questão de memória, pois ainda vivemos sob um Estado terrorista. É o que revela o Mapa da Violência de 2011, que coloca em xeque algumas dicotomias constantemente usadas para tratar da história recente do país, como Ditadura x Democracia, Estado de Exceção x Estado de Direito, etc.

A luta pelo direito à memória sempre enfrentou resistência dentro do Brasil. Mas seria um erro colocar os crimes de Estado como mera questão

de memória, pois ainda vivemos sob um Estado de exceção. É o que revela o Mapa da Violência de 2011, que coloca em xeque algumas dicotomias constantemente usadas para tratar da história recente do país, como Ditadura x Democracia, Estado de Exceção x Estado de Direito, etc.

A violência de um país pode ser medida de diferentes formas, porém os números se tornam assombrosos quando representam pessoas. Centralizados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), os dados mostram que, apesar da taxa de mortalidade dos brasileiros ter caído cerca de 10% entre 1980 e 2004, a taxa de mortalidade juvenil manteve-se estável no período.

Segundo o IBGE, em 2008 havia 34,6 milhões de brasileiros entre 15 e 24 anos. Nessa faixa, quase 40% das mortes ocorrem por homicídio de acordo com o Mapa da Violência 2011, realizado pelo Ministério da Justiça com o Instituto Sangar, baseado nos dados do SIM. Essa pesquisa apurou que existem estados (como Alagoas, Espírito Santo e Pernambuco) em que mais da metade dos jovens que morrem são assassinados. Os homicídios registrados pelo SIM em todo Brasil aumentaram de 41.950 para 50.113 de

1998 a 2008 e são mais frequentes entre pessoas dos 15 aos 24 anos. Considerando o tamanho da população, a taxa de homicídios nessa faixa etária aumentou 76% de 1980 para 2008.

Para Onir Araújo, advogado e integrante do Movimento Negro Unificado, o quadro é alarmante: “O Brasil não tem pena de morte! Aí tu pega os dados do Ministério da Justiça: de 1997 a 2007, foram 512 mil assassinados. Estatisticamente, de 70 a 80% das vítimas eram jovens negros, na faixa etária de 14 a 25 anos, sem passagem pela polícia. E são dados parciais, porque 30% dos homicídios não vão pros dados oficiais, entram pros famigerados autos de resistência (ver box), precedidos, às vezes, de desacato.”

É certo que nem todas essas mortes são de responsabilidade direta do Estado, mas suas ações e omissões são causas inevitáveis do descontrole da violência no país. Conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do RJ, a polícia carioca justificou a morte de 10.216 pessoas como autos de resistência. Espécie de licença para matar, essa ferramenta jurídica é outra herança dos tempos da ditadura militar que se configurou como prática constante no “combate ao crime”, ao melhor estilo Tropa de Elite.

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por Guilherme Dal Sasso e Luna Mendes [Martino Piccinini]

O resultado é a garantia de impunidade aos algozes: “No Brasil, os policiais matam tanto em serviço como fora de serviço e nenhuma investigação é feita já que todos os índices se justificam a partir de ‘autos de resistência’ ou ‘mortes em confronto’”, conforme declarou o relator da ONU para execuções sumárias e extrajudiciais, Philip Alston, em visita ao Rio de Janeiro. É por isso que o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro Orlando Zaccone afirma que “quem mata é a polícia, mas quem enterra é o Judiciário”. Em entrevista para a revista Caros Amigos, ele sintetizou a ideologia que possibilita essas taxas de homicídio por agentes de Estado: “O que vai definir o arquivamento dos autos ou o processo dos policiais pela morte da vítima é se a vítima está ou não definida como ‘inimigo’, gerando uma ‘legitimidade’ na ação da polícia”. Os autos de resistência são figuras-chave para entendermos como a estrutura policial do Brasil é fundamental na produção da violência. Eles se configuram como o ponto extremo dessa prática, onde a fronteira legal/ilegal é imprecisa, e revelam toda uma política de Estado. Para Onir, a estrutura policial foi historicamente constituída para ser um instrumento de controle social: “A legislação penal foi construída primeiro para controle dos escravos. [Atualmente] é de controle e extermínio. As operações que são feitas nos territórios populares são bárbaras e ilegais. São operações militares de intimidação a uma parcela da população, não pra pegar bandido e traficante”.

a Ba L a T em en Dereço

Além de jovens, as vítimas do genocídio têm gênero, cor e classe social: homem (92% das vítimas pertencem ao sexo masculino), negro e pobre. A criação e veiculação desse estereótipo do inimigo são essenciais para que a política de extermínio se dê sem resistências – e até mesmo sob aplausos – de grandes setores da sociedade e da mídia.

Como afirma Moysés Pinto Neto, professor de Direito da ULBRA, “a projeção dessa representação (bandido/traficante) se sobrepõe à materialidade da pessoa, do humano, na sua concretude”. O professor faz até uma comparação, chocante, mas que na prática se confirma: o holocausto só foi possível a partir desse método. Projeta-se sobre uma população inteira (judia

OS AUTOS DA MORTE

A origem dos autos de resistência como ferramenta jurídica remonta aos tempos da ditadura militar.O termo tem origem na Ordem de Serviço “N”, nº 803, de 2/10/1969, da Superintendência da Polícia Judiciária, do antigo estado da Guanabara, ainda que já estivesse previsto no artigo 292 do Código de Processo Penal de 1943. Em tese, tais textos nunca permitiram qualquer tipo de execução arbitrária, pois desrespeitaria a Constituição. Porém, na prática, se tornou uma garantia de “legalidade” do homicídio. Na ditadura, os autos eram utilizados para justificar a morte de suspeitos que “resistiam” a prisão em suposto conflito com a autoridade responsável. Pouco mudou desde então: a maioria dos autos nunca é (nem foi) investigada, responsabilidade que seria da Corregedoria da Polícia ou do Ministério Público. Durante pelo menos duas décadas, os autos de resistência permaneceram como esse mecanismo produtor de mortes anônimas, mas começaram a ganhar notoriedade no final da década de 90 no Rio de Janeiro. Em 1998, último ano do governo de Marcello Alencar (PSDB) no estado, iniciou-se a divulgação dos autos. Em grande parte porque, em 1995, ano de início de seu mandato, o governador criou por decreto o que ficou conhecido como “gratificação faroeste”. A medida consistia em bônus salariais por “atos de bravura” aos

na Alemanha nazista, negra no Brasil) uma identidade, uma representação moral, que justifica a priori toda violência que se venha a cometer. Não é a toa que notícias como “polícia mata traficante” são recebidas com entusiasmo por parte da opinião pública, enquanto pouco se lê “polícia mata João da Silva, x anos, pai de x filhos...”. Trata-se de um jogo no qual mídia e recepção são cúmplices inconscientes.

A produção de modelos de marginais também cumpre seu papel numa visão moralista da

policiais que “melhor combatessem o crime”. Detalhe: o secretário de segurança pública à época era ninguém mais ninguém menos que Nilton Cerqueira, Major do Batalhão do Exército responsável pelo assassinato de Carlos Lamarca e seus companheiros no Araguaia.

Em 2007, uma pesquisa encomendada pela Assembleia Legislativa do RJ apontou que o resultado da tal gratificação foi uma explosão na letalidade das ações policiais. Comparados dois períodos, um anterior (janeiro de 1993 à abril de 95) e outro posterior à lei (maio de 95 e julho de 96), verificou-se que a média mensal de mortos em operações da polícia passou de 16 para 32 mortos. E o índice de letalidade passou de 1,7 para 3,5 mortes por ferido.

Não bastasse, contrariando o artigo 292 citado acima, observou-se que 83% dos autos desse último período não contaram com testemunhas. Em média, cada vítima possuia 4,3 perfurações; 61% dos mortos apresentavam pelo menos um tiro na cabeça; e 65% tinham recebido pelo menos um tiro pelas costas. Mesmo assim, dos 301 inquéritos encontrados pelos pesquisadores, 295 foram arquivados sem julgamento. Se ainda considerarmos os números da presente década, entre 2003 e 2008, na cidade do Rio de Janeiro, que concentra 65% dos casos, a cada 3,27 homicídios, um era por “resistência”. Nesse período, a polícia carioca matou 2 pessoas por dia.

sociedade. Reduzindo o problema da violência a algo alheio à sociedade, a visão de “nós como bem, eles como mal” se fortalece. Obviamente, “nós” é o grupo ao qual pertence o cidadão de bem, enquanto o “eles” é facilmente projetado sobre a população pobre, em sua maioria negra. Gislei Lazzarotto, professora de Psicologia da UFRGS e coordenadora do grupo EstaçãoPSI (Estudo e Ação em Políticas de Subjetivar e Inventar), chama a atenção para essa maneira simplista de abordar a questão da violência: “A violência deixa de ser, assim, um fenômeno social que tem raízes na desigualdade e em modelos de exclusão”, afirma. O discurso hegemônico insiste em tratar a violência como algo estranho à sociedade, e não como um produto dela. Desse modo, o jovem marginalizado é a origem e não a vítima da violência. Em vez de entender a violência enquanto fenômeno social, individualizase, patologiza-se e judicializa-se. “Sendo a violência um fenômeno social, não teríamos de repensar nosso modelo econômico, nosso modelo de sociedade?”, questiona Gislei.

n eGros a Lvos

Se entre a juventude em geral os dados são alarmantes, para sua parcela negra, a situação é ainda pior. De 2002 a 2008, o número de homicídios na população branca caiu de 18.852 para 14.650, mas entre negros esse índice subiu de 26.915 para 32.349 no mesmo período. Ou seja: para cada branco assassinado em 2008, morreram mais de dois negros nas mesmas circunstâncias.

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[Carlos Latuff]
“ 65% tomaram tiro pelas costas

Onir Araújo afirma que isso é uma herança cultural: “A gente vive numa sociedade que tem 511 anos e, em 3/4 deles, nós vivemos numa sociedade escravocrata. Não existe sociedade no mundo ocidental moderno que tenha tido um tempo tão longo de não-reconhecimento de uma parcela significativa de sua população enquanto seres humanos. Isso tá nos nossos genes, tá no cimento que permeia as nossas cabecinhas e todas as instituições”.

Eis que surge a pergunta óbvia: como a população marginalizada pode ser responsável pela violência se ela é a principal vítima? Moysés aponta para os mecanismos alucinatórios: “Problemas estruturais e relações interpessoais são reduzidos a uma questão moral e disciplinar”. Não somente o principal grupo vitimado se torna o culpado pela violência, como sobram críticas aos Direitos Humanos e ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Como culpar os Direitos Humanos e o ECA se eles mal são aplicados?”, questiona Moysés.

Mesmo longe da aplicação ideal, o ECA é fundamental na afirmação dos direitos do jovem brasileiro, pois, como visto, este é a principal vítima dessa chacina. Entre a população não jovem, apenas 1,8% das mortes são causadas por homicídio. Onir diz não ter dúvidas de que as agressões ao ECA fazem parte da estratégia de controle.

PoLíTiCa assassina

O clamor pela repressão chega ao seu auge quando nos voltamos para a política de drogas. A proibição não funciona apenas como mecanismo de criminalização da pobreza, mas cria a imagem do traficante. “É essa despersonificação que viabiliza o aparato policial, as máquinas automatizadas e burocráticas de assassinato”, comenta Moysés. Alguém lembra da fuga dos

traficantes da Vila Cruzeiro por uma estrada de chão batido e a multidão que implorou por uma chacina em tempo real transmitida pela Globo?

Segundo o professor, “a guerra às drogas traz de maneira muito forte um vocabulário bélico, que tem implicações simbólicas e práticas”. Ele lembra a situação do país latino-americano que tem levado a cabo o combate mais radical: o México e seus 30 mil cadáveres em menos de 5 anos. O jargão bélico não apenas cria a figura do inimigo comum, mas legitima sua morte. Moysés cita o filósofo italiano Giorgio Agamben, que elabora o conceito de Estado de Exceção: “É fundamental deixarmos de ver o Estado como ele quer ser visto. Tenta-se passar a ideia de que existe uma estrutura jurídico-política assentada num Direito liberal que funciona, mas tem suas falhas. No entanto, sempre que o Estado de Direito e o Estado de Exceção colidem, prevalece o de Exceção. Essas ‘falhas’, o controle e o genocídio, são, na verdade, a regra”.

são a regra

No entanto, Gislei vê de outro modo: “o Estado é fruto das relações público-privadas. Existem tensões por dentro das políticas públicas, tensões entre modos de pensar, ser, agir”. Desse modo, é difícil tratar o Estado como algo uno, pois ele mesmo é permeado por contradições que refletem as lutas do campo social. O Estado que ora mata, ora deixa morrer, também é o que garante o ECA, por exemplo. Assim sendo, passa a ser campo de disputa. De modo geral, uma coisa fica clara: não apenas o Estado, mas outros sistemas e instituições que sustentam a desigualdade estão em xeque. Isso Gislei deixa claro, ao dizer que a hierarquização das diferenças é fundamental na produção de violência. No que Moysés completa: “É totalmente impossível sustentar um enriquecimento ilimitado encoberto por um aparato de segurança cercado de miséria. A estrutura hierárquica do Brasil, que se recusa a ver-se como marginalizante, gera violência, pois nem sempre o pacto de exclusão é aceito”.

Este é o relato de um jovem de 24 anos, branco, morador da periferia da Zona Sul de Porto Alegre. Sua história é uma gota no oceano de sangue que escorre das estatísticas. Números não bastam para explicar a dor; palavras tentam:

Sem querer mentir... Já levei mais de dez atraques na minha vida, mas que eu apanhei acho que foram uns seis. No que eu mais apanhei, comecei a apanhar no bar Zé Latinha e parei no terminal de ônibus [a 20 metros de distância].

Tinha dado uma briga e chamaram a polícia. Eu tava ali só separando, me bateram porque eu tava bêbado. Até que o fiscal do terminal mandou parar. Não cheguei a desmaiar, mas fiquei com os braços e as pernas roxos. Três brigadianos bateram em mim ao mesmo tempo, cassetete e chute. Me derrubaram e, quando eu caí, começaram a me pisar com as botas. Pisaram na minha perna e eu fiquei com ela machucada por três dias. Eu era de menor ainda. Me derrubaram pra trás de uma

mureta onde ninguém via nada e ficaram me chutando contra a parede, me pisando com aquelas botinas e me xingando. Eram cinco policiais, três batendo em mim e dois ficaram com os outros. Depois me mandaram embora.

No Beira Rio, porque me acharam com uma seda, me levaram pra uma salinha, me bateram e me fizeram até ficar pelado pra ver se eu não tinha nada escondido. Me humilharam porque acharam que eu tinha entorpecente. Uma vez nos acharam com maconha.

Nos bateram a noite toda.

Ficaram três horas com a gente numa delegacia do Centro. Bateram em mim e no meu primo.

Os outros dois eram de menor e não apanharam.

Chegam numa viatura e já descem batendo. Às vezes chegam perguntando o nome e, se tu tenta explicar, já apanha. Eles acham que são os poderosos. Várias vezes chegam dando tapas. Às vezes o cara só tá ali pegando um sol e, se tu tenta te explicar, apanha mais ainda. Ou então botam um no teu bolso e querem te prender. Aconteceu uma vez no Centro, chegaram e eu tava bêbado, não aceitei, xinguei eles. Falaram que eu tava muito

macho, me levaram e disseram que eu tava com maconha. E a maconha não era minha, era deles. Sem fazer nenhum crime, sem fazer nada. Até porque se tivesse cometendo algum crime, eu teria que estar preso e não apanhando. Todas as vezes que apanhei foi sem justificativa. Aqui, pra falar a verdade, quase todo mundo já apanhou da policia, já levou pelo menos um tapa, um chute. Quem anda pela rua provavelmente já passou por isso. Todo jovem: estudante, trabalhador... Por isso que eu não confio na polícia. No beco, na praça, se tu sair perguntando por aí é difícil achar alguém que nunca tenha levado um tapa da policia. O procedimento padrão é chegar batendo. Eles são autoridade, eles falam. Se tu tenta te explicar, isso, pra eles, é desacato à autoridade. “Tu tá me desacatando, então tu vai apanhar”, eles dizem. Mesmo que tu não esteja desacatando, esteja só falando a verdade, já dizem que é desacato e te batem. É melhor ficar quieto.tu tenta te explicar, falar com eles, aí já apanha. Eles são autoridade, eles falam. Se tu tenta te explicar, isso pra eles é desacato à autoridade. “Tu tá me desacatando, então tu vai apanhar”, eles dizem. Mesmo que tu não esteja desacatando, esteja só falando a verdade, já dizem que é desacato e te batem. É melhor ficar quieto.

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“ Controle e genocídio
“ Aqui quase todo mundo já apanhou da polícia
2002 2006 2008 18.852 26.915 15.661 28.230 14.650 32.349
BRANCOS E NEGROS ASSASSINADOS NO BRASIL Fonte:MapadaViolência2011

Mais que um Pavilhão

‘Um vazio assombroso: a história oficial ignora o futebol. Os textos da história contemporânea não o mencionam nem de passagem em países onde o futebol foi e continua sendo um símbolo primordial de identidade coletiva!’

Não precisa gostar de futebol para conhecer o autor do trecho acima. Eduardo Galeano é um dos maiores pensadores da América Latina e esse vazio assombroso de que fala o uruguaio se nota mesmo dentro da nossa cultura futebolística. A cada novo ídolo produzido pelo futebol, o passado perde um pouco de sua glória.

O que se segue é uma entrevista com o maior camisa 3 que já fardou o uniforme do Grêmio, Airton Ferreira da Silva. O jogador ganhou o apelido de Pavilhão quando foi comprado do time Força e Luz pelo Tricolor, por um conjunto de arquibancadas do antigo estádio do Grêmio. Nos anos 50, cresceu junto com a rivalidade Gre-Nal... e virou mito.

Um raro caso de um zagueiro goleador, jogou no Santos-de-Pelé e foi campeão pan-americano com a Seleção em 1956, quando gaúchos raramente eram convocados. Construiu um pavilhão de lembranças e ajudou a moldar o amor dos gaúchos pelo futebol.

Aos 76 anos, Airton Pavilhão nos recebeu em sua casa - azul - a meia dúzia de passos do pórtico do Estádio Olímpico. Da poltrona de sua sala, não se levantou uma só vez durante toda a entrevista. Culpa da perna direita quase paralisada, a mesma que não cansou de desmoralizar atacantes por mais de 20 anos.

***

Tabaré: Tua vinda do Força e Luz para o Grêmio envolveu a troca por um pavilhão de arquibancadas, além de uma boa quantia financeira...

a irton Pavilhão: Não foi muito grande, mas era um dinheiro bom...

Como foi sair do Força e Luz para jogar no Grêmio, com 20 anos? Foi difícil pra mim, um garoto pobre. O Grêmio era mais elite. Não sei o que deu que eu acabei no Grêmio. Mas no segundo ano já deu pra me acostumar, sendo colorado e tendo que jogar no Grêmio.

e ia assistir ao inter no antigo estádio eucaliptos? Eu ia, cansei de ver...

Como eram as concentrações na tua época? Isso aí é o que tira tua vida. No Grêmio, o jogo era domingo e a gente ia lá na quinta-feira. Metade da tua vida. E eu tinha medo de avião ainda. Foi uma pena, podia ser conhecido no mundo inteiro e parei aqui. Tá certo que consegui ser o melhor, né?

Como era o salário na época?

No nosso tempo, era mais calmo. Hoje qualquer um ganha 200 mil. Se eu tô jogando hoje em dia, tô com 700 mil!

Tu lembra o que fez com o primeiro salário? Bah, se lembro! Fiquei louco! Eles me deram 3 mil por mês. Eu disse: ‘aqui ó, mãe’! E ela: ‘meu filho, o que tu fez!?‘ (risos). No mesmo ano, eles passaram meu salário pra 7 mil, aí foi loucura.

e lembra de alguma loucura que fez com o dinheiro?

O que todo jogador faz e depois se arrepende: comprar um carro. Comprei um DKV, aí depois comprei uns imóveis. Carro é a primeira coisa que jogador quer. Ai começa a se dar mal, vende apartamento, e fica com o carro.

muitos dos jogadores da tua época tiveram muitas doenças, como hepatite, diabetes... Tinham essas coisas, né? Nosso médico era otorrino! Então, faziam muita coisa errada, as agulhas... Minha defesa morreu tudo. E eu, tão tentando me convocar lá em cima, mas tô lutando.

e o senhor se arriscou em outras posições?

Na ponta direita, por causa do Tesourinha! Aí eu fui crescendo, fui pra centromédio e acabei na minha posição. Quem me colocou na defesa foi o Oswaldo Rolla, o Foguinho [ver box 1]. Ele tirou o melhor jogador, o Enio Rodrigues, e botou pro outro lado. Eu fui o único zagueiro até hoje que fez 120 gols. Depois da Copa [de 1958] veio aquele negócio de um ponteiro recuar, aí mandaram meu lateral ficar. Agora os caras só vão [pro ataque] no escanteio. Tinha um treinador que ficava brabo, mas eu ia. Treinador tem medo de perder o emprego.

Tem uma história que tu teria desarmado o Pelé com um chapeuzinho...

É mentira! Isso aí é mentira. Na jogada, eu pensei assim: ‘vou ver se esse negão vai cair’, né? Aí eu dei meio metro pro lado e deixei ele sair. Pensei: ‘ele não vai cair nessa’! Aí, quando ele saiu pro lado, eu dei de letra [ver box 2]. O estádio queria vir abaixo. Balãozinho eu não dei porque é uma jogada boba, não dá em nada.

Tinha algum adversário específico que te deixava preocupado?

Joguei contra tanta gente. Flavio Minuano (Inter), Puskas (Real Madrid)... uma turminha boa! Teve um cara que veio me entrevistar e disse: ‘naquela época não tinha craque, né?’ Eu digo: ‘Não, só tinha Puskas, Pelé...’ Pergunta boba, né? Não tinha craque... e como era a relação com o presidente do Grêmio na tua época, o rudi a rmin Petry?

Era um presidente de bom papo. Não podia sair jogador da concentração. Era proibido. Aí eu

setembro/2011 #5 9

dizia, vou lá em casa, é pertinho, e ele, ‘então tu vai, mas não diz que eu te vi’. Mas naquela época, quase sempre a gente jogava bem. Ninguém falava. Tem que ganhar jogo, não adianta ser bonzinho e não ganhar jogo.

Como foi ver na década de 70 aquela geração do i nter que ganhou tudo do Grêmio?

Ah é. Quando o gato sai, os ratos tomam conta... (risos). Fica ruim, porque eu moro aqui na frente. Às vezes os caras saem brabos, chorando porque o Grêmio perdeu e falam: ‘tu também é culpado’! Por que eu? É muita doença: os caras chutam, brigam... No nosso tempo não tinha essa briga. Hoje os caras se matam. Se tu perde, tu apanha, a torcida invade o campo...

Como é jogar um Gre- n al?

Tu não ouve nada do que falam, tanta gente que o barulho não deixa tu ouvir. E tu sabe que, se tu ganha, tu é um Deus! O dinheiro é bom, mas não é tão bom como tu chegar e dizer: esse cara foi o cara. Nêgo leva a sério o dinheiro, mas não é tudo.

e como foi a tua passagem pelo santos do Pelé, em 1960?

Fui emprestado. Quando terminou o empréstimo, vim-me embora. O Santos veio aqui me buscar e eu disse: ‘ah, não vou... Pegar avião toda semana? Eu não aguento’. Porque o Santos não parava de viajar. e quando tinha excursão do Grêmio pela europa, como tu superou o medo de avião?

Era obrigado a ir, senão eles não pagavam, eu era o jogador mais famoso. Eu tomava uns negócio pra dormir, comecei a beber uns uísques... Não adiantava. Às vezes, ainda me convidam pra viajar com o Grêmio... mas não vou!

Durante tua carreira, teve alguém amarelando em jogo, contra ti ou mesmo pelo Grêmio? É que tu pega adversários que não são bobos...

Teve um diretor do Inter que falou uma vez: ‘não adianta, enquanto esse negão tiver no Grêmio, a gente não vai ganhar’. E eu quase assinei com o Inter na volta do Santos pelo dobro, mas fiquei no Grêmio. Agora tô arrependido, pelo menos podia ser mais conhecido. Podia ter ido embora depois.

1. DOZE EM TREZE

Nos anos 40 o Inter viveu uma das suas melhores fases com o ‘Rolo Compressor’ que ganhou tudo entre 1940 e 1948. Nesta época o Inter tinha craques que entraram para a história como Abigail, Carlitos, Tesourinha, Alfeu, Ilmo e Nena. Nos anos 50 o Grêmio continuou a sofrer nos gramados, desta vez com o ‘Rolinho’, comandado pelo treinador Teté, e que contava com craques como Oreco, Bodinho e Larry. Foi então que surgiu mais uma virada na história da rivalidade da dupla Gre-Nal. Tudo começou com a construção do Estádio Olímpico pelo Grêmio. O time em campo correspondeu às expectativas do novo estádio e, sob comando do treinador Oswaldo Rolla e com grandes jogadores como Ortunho, Everaldo, Joãozinho, Gessi, Alcindo, Volmir e, claro, Aírton “Pavilhão”, quebrou a hegemonia vermelha conquistando o penta estadual de 56 a 60 e o hepta (inédito à época) de 62 a 68. Foi um dos períodos mais vitoriosos da história do Grêmio.

e a tua relação com o Grêmio como ficou depois que tu parou de jogar futebol?

Eu sou conselheiro. Quando tem jogo bom, eu vou. Quando tá na metade do jogo e tá ruim, vou embora.

m as não chegou a ser um torcedor fanático?

Não. Se tiver um Gre-Nal, eu quero que o melhor time ganhe.

Tu mora bem em frente ao o límpico. Como vai se sentir com a destruição do estádio e a inauguração da a rena?

Ah, isso aí é mesma coisa que perder um filho! Eu vi isso aí nascer. Meu campo ali em cima [mostrando foto na parede da sala] é o do Força e Luz. Ali foi onde eu nasci, fui ali com 10 anos.Tu vê, destruíram aquilo ali... Agora quando destruírem o do Grêmio...

A famosa finta, hoje chamada de ‘toque de letra’, era empregada como recurso técnico por Airton para passes em situações complicadas e até em desarmes. Até hoje o ‘drible de Charles’, como chamavam os antigos, é marca registrada de Airton Pavilhão.

Qual foi a coisa mais difícil que tu teve que fazer como capitão?

Sempre tem um jogador que tem, não sei se é... ciúme. Então, existia um que tinha. Ele era famoso também, jogava lá na frente. Ainda bem que era só ele.

Dá pra falar o nome?

Não porque ainda tá vivo (risos). Mas é fogo o futebol. Quando cheguei no Santos, eu digo: ‘Ué? Todo mundo em cima do Pelé? E eu?’. Ninguém queria tirar foto. Tu vai te sentindo mal, aqui eu era o cara. E o negão Pelé era o rei. E diziam: ‘te acostuma’. ‘Ah, não me acostumo...’ Aí eu digo: ‘não vou ficar aqui’. Mas o neguinho era uma liderança. O único que mandava nele era o Zito, que era capitão. Esse o Pelé respeitava mais.

o que te marcou mais na tua carreira?

Eu era pobre e vim jogar em time grande, fugia do colégio pra ver jogo e depois consegui ir pro meu maior adversário e ser o melhor jogador de todos os tempos, como toda hora falam, né? É uma glória pro cara. E eu vou morrer e não vou ver um zagueiro tão bom...

e tem outro zagueiro que tu via com admiração? No meu tempo tinha o Florindo (Inter), Pipoca (Grêmio), Domingos da Guia... Hoje em dia tu põe [os zagueiros] no mano a mano [com os atacantes], e eles ficam loucos. Teve um que veio pro Grêmio, lá do Panamá, o Baloy, e teve um conselheiro que disse: ‘É o novo Airton!’. Aí me perguntaram o que ele tinha de parecido comigo. Eu disse: ‘Sinceramente? Só o 3 da camisa’.

Tu é sempre lembrado nas seleções que fazem do Grêmio...

É! E teve uma dessas na internet que eu perdi pro Adílson. Brincadeira, tinha uma perna ruim, não cabeceava, não tinha pique... aí eu fiquei mal.

Qual jogador te dava alegria de ver jogar?

O Pelé. Teve um jogo que ele veio aqui e tava difícil. E o negão sozinho, sem o treinador mandar, foi pro outro lado, pro do meu amigo [Áureo] e ele fez o gol.

e o Garrincha?

Ah, era uma criança! Ele bebia desde de manhã... mas gostava de passarinho. Era uma criança, mas com a bola era um Deus! Mas era mais como o Ronaldinho, mais espetáculo. Botavam dois pra marcar e ele tocava pro outro... e dava gol.

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“Vou morrer e não vou ver um zagueiro tão bom

Há 175 anos em Tabaré (11/09/1836)

Proclamação da r e P ública r io-grandense

EXCLUSIVO! Tabaré TEm aCESSO à CarTa dE Um SOLdadO da prImEIra brIgada dO EXér LIbEraL, rEVELandO dETaLhES SObrE a prOCLamaçãO da rEpúbLICa rIO-grand

Bagé, 11 de Setembro de 1836

Fue muy linda a peleia, china mía! Pechamo os esclavos del império no Seival e eram três vez mais que nós. O coronel Netto ordenou: não quero ouvir um só tiro, acabamos com isso a lança e espada. Os cariocas recuaram pruma coxilha e puseram a infantaria entre duas alas de cavaleiros. Na hora certa, desviamos pela esquerda, demos a volta na cavalaria e pegamos os atiradores por detrás. Matamos quase duzentos dos soldados de D. Pedro, fora uns cem presos e mais uns feridos. Tinhas que ver. Que lindeza!

Depois do confronto, todos muy contentes, foi uma grande comemoração. Churrasco de carne gorda e trago de canha à vontade por conta da patronage. O clima era de festa e lá pelas tantas o coronel se passou

e foi deitar. Diz que foi o seu Manoel Lucas de Oliveira e mais o seu Joaquim Pedro Soares que tiveram na barraca dele pra le dizer que tomasse as rédea da situação. Disseram que lá por Viamão o Bento ia bem mal das pernas e não durava muito. Sei não, minha prenda... Tenho pra mim que isso inda dá merda. É quebra de hierarquia, se fosse um preto, matavam.

Antes do sol sair, o Netto ajuntou as tropas tudo no campo dos Menezes, à margem do Jaguarão. Agora somos um país livre, minha flor! Até que enfim nos livramos do convívio desse povo ao norte. Viva a República Rio-Grandense!

Ps.: Só acho que aquele nosso passeio em Santa Catarina fica pruma próxima. Mas, bueno, Quintão não é tão mal assim.

setembro/2011 #5 11 NOTABARE!tabare@tabare.netANUNCIANOTABARE!tabare@tabare.netANUNCIA
res P os T as D a e D iç Ã o an T erior : 1. Praça do Portão 2. Ilhota 3. Alto da Bronze 4. Rua da Praia
[tiele B.] tieleb.wordpress.com
5. Arroio Dilúvio 6. Rua do Arvoredo LIGA OS PONTOS
[GabrielJacobsen,MartinoPiccininieMicheleOliveira] “Murobranco,povocalado” TABARÉ

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