Cidade Composta

Cida de post

Com Andrade

a

Leandro

O exercício era um tipo de desenho espontâneo e colaborativo criado por Rowe, Hoesli, Hejduk e Slutzky na School of Architecture in Austin [Texas, EUA]. Hejduk recorda: “durante o intenso calor do Texas, Colin, Bernhard, Bob e eu jogávamos esse jogo. Acho que foram Colin e Bernhard que o inventaram. Pegávamos uma grande folha de papel de desenho em branco e começávamos a desenhar plantas de edifícios, fossem históricos ou outros. Colin pedia que eu desenhasse a planta da Villa Madama e que Bernhard desenharia a planta da Gage House de [Frank Lloyd] Wright, e assim por diante. Seguíamos durante toda a noite, e já nas primeiras horas da manhã, o papel estava cheio de plantas de todos os tempos, e também muitas coisas híbridas No final, Colin estava diabolicamente divertido e encantado. Em retrospecto, quem teria pensado que tais projetos, trazidos do Classicismo, do Neoclassicismo, do Construtivismo Moderno e da arquitetura contemporânea, seriam como que o código genético para os monstros arquitetônicos que se seguiram?”

Caragonne, 1993

Alguns apontamentos sobre Collage City (1978), obra paradigmática em que Colin Rowe e Fred Koetter cunharam o que eu penso ser uma das mais instigantes abordagens sobre a cidade compreendida no curso de sua evolução.

Ao longo do livro, os autores elaboram, além daquela que dá título à obra, três metáforas muitíssimo imaginadoras: a ideia de um teatro da memória (referindose à cidade antiga que acumula seus tempos no espaço); a ideia de um teatro da profecia (que aborda desde a utopia clássica até o projeto da cidade moderna, como representações de “futuros”); e a hipótese interpretativa da cidade colisiva – gerada por embates entre suas partes, no espaço e no tempo – construída através de fragmentos que se justapõem ou se sobrepõem formando um mosaico de formas e espaços entre formas.

Ou seja, muito antes da palavra cenário se tornar um termo usual no campo do projeto urbano, os autores já olhavam a cidade como “grande dramaturgia” da condição humana.

Mesmo que, por agora, não haja tempo para fazer a atenta leitura desta obra, fica a dica: ela é essencial para quem gosta de pensar a cidade, como história e projeto. E o leitor não ficará surpreso com minha afirmação de que é com o conceito de escala que poderemos melhor entender as implicações dessa abordagem.

CARAGONNE, Alexander (1993), The Texas Rangers: Notes from the Architectural Underground.

Cambridge MA and London: MIT Press.

ROWE, C., KOETTER, F. (1978).

Ciudad Collage.

Barcelona: Gustavo Gili.

Conquanto a ideia de collage pareça bem compreendida, enfatizemos com a noção de colisão. E penso que a melhor ilustração para isso é a montagem realizada em 1976 por David Griffin e Hans Kollhoff, então estudantes de pós-graduação na Cornell University, intitulada City of composite presence, reproduzida ao fundo. A celebridade alcançada pela composição de Griffin e Kollhoff deve-se, em grande medida, ao fato de ter sido incluída nas primeiras páginas de Collage City. Mas, como espero demonstrar, há ótimos motivos para isso.

1

Ao me virar, vi além dos limites do conjunto, no final da GunterStrász, entre os prédios de tijolos sujos. Lixo se movia no vento. Podia ser qualquer lugar. Uma senhora de idade caminhava devagar, se afastando de mim num passo vacilante. Ela virou a cabeça e olhou para mim. Fiquei incomodado com o movimento, e olhei nos olhos dela. Fiquei me perguntando se ela queria me dizer alguma coisa. No meu olhar captei suas roupas, seu jeito de andar, de se segurar e de olhar.

MIÉVILLE, C. A cidade e a cidade.

São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

Com um grande susto, percebi que ela não estava na GunterStrász, e que eu não a devia ter visto. Imediatamente, e agitado, desviei o olhar, e ela fez o mesmo, com a mesma velocidade. Levantei a cabeça, na direção de uma aeronave em sua descida final. Depois de alguns segundos, quando voltei a olhar para cima, sem reparar na velha que se afastava rapidamente, olhei com cuidado, em vez de para ela em sua rua estrangeira, para as fachadas da próxima e local GunterStrász, aquela zona depressiva.

China Miéville. A cidade e a cidade O atlas revela essa qualidade: revela a forma das cidades que ainda não tem forma. Há a cidade com a forma de Amsterdam, semicírculo voltado para o setentrião, com canais concêntricos (…); há a cidade com a forma de York, engastada em elevadas estepes (…); há a cidade com a forma de Nova Amsterdam, também chamada Nova York, repleta de torres de vidro e aço sobre uma ilha oblonga entre dois rios, com ruas perfeitamente retas como canais profundos, exceto a Broadway.

CALVINO, I. As cidades invisíveis.

São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

O catálogo de formas é interminável: enquanto cada forma não encontra a sua cidade, novas cidades continuarão a surgir. Nos lugares em que as formas exaurem as suas variedades e se desfazem, começa o fim das cidades. Nos últimos mapas do atlas, diluíam-se retículos sem início nem fim, cidades com a forma de Los Angeles, com a forma de Kioto-Osaka, sem forma.

Italo Calvino, As cidades invisíveis

Em A cidade e a cidade, o escritor inglês China Miéville brinda ao leitor uma obra que é a justa medida entre romance noir e ficção científica distópica. A intriga, muito bem urdida, que começa quando o corpo de uma jovem desconhecida é encontrado em um parque da periferia, se constrói tendo como cenário (ou cenários?) um paradoxo: tudo o que acontece, acontece em duas cidades que ocupam o mesmo lugar, no espaço e no tempo.

Os habitantes de uma e outra, todavia, são educados para desver, isto é, estão proibidos de ver e reconhecer aquela outra cidade: a cidade outra que deve se manter escondida.

Já em As cidades invisíveis, o oulipiano Italo Calvino torna Marco Polo, o herói explorador veneziano do século XIII, embaixador de Kublai Kahn, imperador dos tártaros. E a Marco, personagem de ficção, cabe a tarefa de visitar as muitas cidades do Império, retornando, após cada viagem, para narrar suas descobertas. Ou suas invenções.

Por vezes, diante de um tabuleiro de xadrez, Kublai põe em dúvida a veracidade dos relatos, eis que são de tal forma minuciosos e vívidos que talvez sejam fruto da imaginação. Ou Marco apenas deixa-se vagar por suas memórias, recordando a sereníssima Veneza, sua cidade natal.

Embora tão estruturalmente distintas, as duas narrativas se encontram na condição desse vir-a-ser cidade, ou cidades, como cenários sofisticados em que se desenrolam as tramas da ficção. E Calvino é afirmativo, quando diz que: CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

(…) Se meu livro La citta invisibili continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas; e também porque consegui construir uma estrutura facetada em que cada texto curto está próximo dos outros numa sucessão que não implica uma conseqüencialidade ou uma hierarquia, mas uma rede dentro da qual se podem traçar múltiplos percursos e extrair conclusões multíplices e ramificadas. (Calvino, 1990: 85-6)

2

Mas mudemos de perspectiva: estamos, agora, em Austin, no Texas, e um grupo de jovens professores de arquitetura reúne-se para, noite adentro, jogar um inusitado jogo que, para ser jogado, exige, dos protagonistas, um grande conhecimento sobre a história da arquitetura e das cidades. Em torno de uma grande folha de papel em branco, eles desafiam, uns aos outros, para que desenhem esboços de plantas-baixas de edifícios memoráveis. E, assim, divertem-se até o amanhecer.

Mas a brincadeira pode ser coisa muito séria e a técnica da colagem é uma espécie de chave analógica para entendermos o pensamento de Colin Rowe: sua extraordinária cultura histórica sobre arquitetura e cidade, mas também sua insurgente proposta de subversão do fluxo temporal para reunir, em um mesmo cronotopo, os Uffizi de Florença e a Unité de Marselha, por exemplo. Esta chave está, justamente, no manejo escalar das formas e tipologias edilícias que se ajustam de modo a criar novas relações. Ao mesmo tempo, Rowe está muitíssimo interessado na decifração gestáltica dos mapas de fundo-figura que, em suas práticas de ateliê, se tornam ferramentas analíticas essenciais.

Em 1976, David Griffin e Hans Kollhoff, então estudantes de pós-graduação na Cornell University, orientados por Rowe, fizeram uma colagem em que surgem, justapostas, as plantas-baixas de vários edifícios, clássicos e modernos, resgatando, assim, a ideia daquele jogo de colisões, e chamaram a obra de City of composite presence.

A montagem, penso, ilustra perfeitamente a metáfora roweana da cidade colagem e, quando caminho pelos quarteirões do Campus Central da UFRGS, penso que habito essa cidade alegoria da ideia de colisão.

Ou é apenas minha fértil imaginação?

City of Composite Presence. David Griffin e Hans Kollhoff,1976

Campus Central, UFRGS. Porto Alegre, BR

3

O exercício que desenvolvo aqui trata de juntar tudo isso através de um conjunto de colagens digitais que justa e sobrepõem fragmentos de diferentes cidades.

Escolhi, sem um critério mais rigoroso do que minha intuição, algumas cidades, mundo afora: Cairo, Brasília, São Paulo, Paris e Roma, e de cada uma capturei um elemento, seja primário ou monumental, seja típico da conformação do tecido urbano, ou as duas coisas. Além disso, trouxe para o exercício, a memória de nossa experiência recente com percursos urbanos, na disciplina Percepção Ambiental e Urbanismo, de modo que há cinco fragmentos de Porto Alegre, cada um deles, representativo dos percursos de realizamos (a Redenção, a Vila IAPI, um recorte do Centro Histórico, por exemplo).

Mas não há nenhuma hierarquia entre os fragmentos, e despreocupei-me em contar quantas vezes este ou aquele aparecem no conjunto das colagens. De fato, lancei-me a uma quase livre experimentação, como simulando, solitariamente, o jogo dos jovens professores da School of Architecture in Austin [Texas, EUA].

Mas com ferramentas digitais e um bocado de tecnologia do século XXI. E, como mencionei, trata-se de um exercício “quase livre”. Porque, em seu próprio desenvolvimento, certos conceitos, e alguns constrangimentos, emergiram da prática.

Parece-me especialmente importante destacar a questão da escala, seja como conceito, seja como ferramenta analítica e projetual. Começo, neste sentido, com o que nos ensina Robert Smithson:

SMITHSON, R. (1972). Spiral Jetty. In: FLAM, J. (1998).

The Collected Writings.

Oakland: University of California Press.

O tamanho determina o objeto, mas é a escala que determina a arte. Uma rachadura em uma parede, se vista em termos de escala, não de tamanho, poderia ser chamada de Grand Canyon. Um cômodo poderia ser projetado para assumir a imensidão do sistema solar. A escala depende da capacidade da pessoa de estar aberta à percepção.

Quando alguém recusa a distinção entre a escala e o tamanho [das coisas], se fixa em um objeto, ou uma linguagem, que parece determinado. Para mim, a escala opera através da incerteza. Robert Smithson, 1972

Eis que, enquanto a questão do tamanho de um objeto pode ser “objetivada” através de alguma forma de medida (seu comprimento, área, volume, peso, etc.), a questão da escala é da ordem da percepção dos sujeitos, seja de um observador qualquer (nós, enquanto caminhamos pela cidade, por exemplo), seja do projetista (nós, enquanto envolvidos no processo de projeto urbano). Ou seja, escala é uma questão de “ponto de vista”, mas ponto de vista que, porque aqui falamos em projeto, implica na intencionalidade do método mas, também, na indeterminação.

ANDRADE, L. M. V. A.. (2022).

O desenho é uma forma de escuta: notas para uma epistemologia do projeto.

Porto Alegre: Jiboia Arte Editorial

De todo modo, a intenção deste introdutório projeto de desenho digital é, enquanto as formas dos distintos fragmentos são destacadas e relacionadas com outras formas, pensar, através da colagem como técnica de composição, a interface, tanto teórica quanto operatória, entre Arquitetura e Artes Visuais, retomando os apontamentos que reuni em torno da ideia de uma epistemologia do projeto*.

De fato, certos teóricos das artes visuais, ao se referirem à colagem, já não o fazem circunscrevendo a palavra à técnica dos recortes colados, justa ou sobrepostos, coisa que se associa, amiúde, ao surreal, posto que, na sua forma usual, naturalmente transgressiva, há algo de transcendência do real na composição fragmentada (há algo de fantasmagórico e de fantástico no mundo collage – um topos delirante endereçado ao pensamento). Eles o fazem no sentido de um princípio de composição e de uma operação interior: um procedimento insurgente de transliteração da imagem.

criação e produção

Jiboia arte editorial