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CAPÍTULO.02


CONTRA O INIMIGO ONIPRESENTE

CAPÍTULO.02

ESCRITO POR: ANDRÉ FERRERA REVISADO POR: MAIRA VERAS


DOIS - Minha mãe chegou. Tchau. O carro estava estacionado na porta da escola. Era um modelo 91 que quase não dava pra ver por causa da pequena multidão que estava se formando ao redor dele. João Pedro, de 10 anos, mesmo magrinho, ainda teve que se espremer para chegar até a porta do carro, e nem foi visto por nenhuma daquelas pessoas que insistiam em chegar perto do veículo e falar com sua mãe. - Parabéns, Doutora! - era o que diziam os passantes e admiradores, moradores de Arapiraca, cidade de pouco menos de duzentos mil habitantes, no interior das Alagoas. Dra. Graça, como era conhecida por seus pacientes, mãe de João Pedro, era a médica mais famosa da cidade. Gostava de ajudar os pobres e tinha carinho especial por idosos e crianças. Vivia irritando os dirigentes do hospital pelo número de remédios que doava aos pacientes. Conta-se até que certa vez estava ainda na rua, quando um adolescente veio falar baixinho com ela sobre uma suposta doença venérea que tinha adquirido. Ela, depois de ter lhe dado um sermão bem alto, na frente de todos, mandou que aguardasse na fila, em tom ameaçador, para pegar o remédio. Foi vereadora e, com o mesmo ímpeto de sempre, usava o poder que tinha para continuar ajudando quem mais precisava. Era assim: uma mulher guerreira que cuidava do povo e lutava por ele. Por isso, desde que saiu da escola e ainda no caminho pra casa, o povo insistia em parabenizá-la e lhe acenar. Era um dia muito especial para todos, a mulher mais querida da comunidade tinha confirmado, após a contagem dos votos no dia anterior, que seria a nova prefeita de Arapiraca. Joãozinho entrou no carro e, como não era de falar muito, apenas entregou para sua mãe uma flor branca que carregava consigo desde a hora que a aula terminou. Graça também não falou nada, apenas retribuiu o gesto com um beijo na testa do filho. Depois de algum tempo em silêncio, o menino falou: - A professora quer falar com a senhora amanhã. – Joãozinho nem parecia preocupado.


- Comigo? E o que foi que você fez? – A mãe, sim, estava preocupada. - Hoje ela me mandou buscar uns papéis lá na sala da diretora. Eu perguntei por que, e ela me respondeu que era porque ela estava mandando. Então eu não fui. Dra. Graça tentou esconder o leve sorriso que lhe saltou do rosto quando ouviu aquilo e pensou: - Não é por menos que seu pai vive falando que você se parece comigo... - Ela ainda saiu da sala dizendo que eu era muito mal-educado. – completou Joãozinho. - Muito pelo contrário, meu filho, você é muito bem-educado. Não se sai por aí obedecendo a ordens apenas por obedecer. Quando fizer alguma coisa, você deve, no mínimo, saber o porquê de estar fazendo. A essa altura, o carro já estava parado em frente à casa, esperando que alguém viesse abrir o portão da garagem. Era 16 de outubro de 1996, e não se tinha desses portões eletrônicos que se abrem com apenas um toque no botão do controle remoto. O pai de Joãozinho, Seu Elias, um policial civil também muito respeitado na região, foi quem veio abrir o portão, o menino nem esperou o carro estacionar direito e já desceu correndo para ir ao banheiro. Seu Elias ainda estava fechando o portão quando um carro preto e sem placa freou bruscamente em frente à casa, três homens encapuzados desceram armados e começaram a atirar. O primeiro tiro foi no peito de Seu Elias, que caiu, e fazia de tudo para se levantar. Graça ouviu o tiro e, quando pensou em correr em direção ao marido, viu um dos homens vindo em sua direção, tentou correr para o outro lado, recebeu um tiro na nuca e outros dois nas costas. Um dos homens ainda olhou para dentro da casa, tentando encontrar mais alguém. A única pessoa que restou estava dentro do banheiro, muito assustado para conseguir se mexer. Os vizinhos, em silêncio, dentro de suas casas, ouviram o carro cantar pneus acelerando com força e indo embora. Ainda assustados, começaram a sair e a correr para ver o que havia acontecido na casa da Dra. Graça. O primeiro vizinho a chegar quase caiu assustado: Elias estava


sem respiração deitado ao lado do carro que estava cheio de marcas de bala. Na porta da casa, que dava pra varanda, estava o menino Joãozinho, imóvel, quase não respirava, boquiaberto e com os olhos cheios de lágrimas. Estava olhando, ainda sem entender direito, sua mãe caída sobre uma poça de sangue, sem vida e ainda com a flor branca, que ele tinha dado, apertada em sua mão. Era o primeiro dia de JP, chamado assim pelos poucos amigos, no seu primeiro emprego. Nem havia terminado o curso de Ciências da Computação e já havia sido aprovado com facilidade, num concurso para o Ministério Público de São Paulo, cidade onde cresceu, com seus tios. Era um rapaz muito reservado, pensativo e calado. Nunca havia se apaixonado na vida, não tinha tempo pra isso. Com 23 anos, ao contrário da maioria, já tinha planejado todo o seu futuro. Ia à academia todos os dias e, quando não estava trabalhando, gastava seu tempo ainda na frente do computador ou desenhando. Sua fisionomia parecia sempre preocupada, e seus momentos em silêncio transpareciam estar planejando algo. E realmente estava, o primeiro salário estava por vir, e ele já sabia o que faria com cada centavo. 16 de outubro de 2009. O então presidente da Câmara dos Vereadores de Arapiraca, Chico Lira, acaba de presidir uma sessão especial em homenagem a uma amiga de infância, muito querida, morta de forma brutal há traze anos. Dra. Graça, como ele mesmo citou no discurso, emocionado, “foi uma mártir”, “um exemplo para os políticos alagoanos”. Após um dia tão cheio, o vereador Chico Lira estava ansioso por chegar a sua casa, ainda a tempo de assistir às notícias do jornal local, queria se ver emocionado, prestando toda aquela homenagem à mulher amada do povo arapiraquense. Achou as chaves, destrancou a porta, e a única coisa que sentiu foi uma pancada certeira no nariz. Desmaiou. Acordou assustado, tossindo, sem ar. Estava em pé, encostado à parede da cozinha. Seus braços estavam abertos e amarrados, assim como suas pernas e sua cintura. Não conseguia se mover. Havia gosto de sangue na boca, suas narinas estavam tampadas para estancar o


sangramento e, antes mesmo de abrir os olhos, sentiu uma dor imensa que tomava conta de toda a sua cabeça. Ainda meio tonto, tentava organizar os pensamentos se perguntando sobre o que lhe havia acontecido. Estava tudo escuro a não ser pela luz que saía da TV, sintonizada exatamente no telejornal local que estava querendo ver. Ouviu uma voz: - Já deve estar para começar a matéria que vai mostrar o senhor chorando no discurso de hoje na câmara. Foi realmente lindo. O ato de amizade mais bonito que eu já vi nesta cidade. A voz estava abafada, e o vereador, mesmo em silêncio, não sabia de onde vinha. - Olha lá, começou. Que coisa legal, vereador, essa mulher deve ter sido muito importante para o senhor. Chico não conseguia falar nada, estava confuso, ainda não tinha se recuperado do susto e agora também estava com medo. Ele reconheceu o barulho quando ouviu a cadeira da mesa de jantar sendo arrastada em sua direção. O medo aumentou, o coração disparou ainda mais. Viu o homem que arrastava a cadeira; era alto e estava todo de preto, usava calça comprida, tênis, um casaco com capuz e uma mascara de gás cobrindo todo o rosto. Agora tremia de medo e estava quase chorando, prevendo seu fim. O homem sentou a sua frente, olhando pra ele, apoiando os cotovelos no encosto da cadeira. - Oi, Chico. Não achei que estaria tão velho. O vereador sentiu uma coisa pontuda e gelada em sua barriga. Era o facão que usava para tratar a carne dos churrascos que sempre fazia com os amigos. - O que você quer comigo? – perguntou desesperado. - Quero que me diga como consegue viver sabendo que traiu uma família que o tinha como parte dela. Como traiu uma mulher que o considerava irmão desde a infância. Como consegue viver com isso? - Eu, eu...eu – Chico tentou falar, mas não tinha argumento algum. A essa altura, parecia uma criança aos prantos, de tanto medo. - Renunciar a prefeitura depois da morte dela foi muito inteligente para evitar suspeitas. O melhor amigo e vice-prefeito eleito não poderia levar vantagem com o crime. Não é mesmo? Que louvável, vereador. Que


homem de caráter... Como foi o esquema? O senhor quer me contar ou quer morrer aqui? - Foi o Barbosa quem armou tudo. Se eu renunciasse, ainda daria tempo de se fazer uma nova eleição e então ele ganharia dessa vez. Ele tinha planos de usar a prefeitura, e a Graça estava atrapalhando tudo. - O que você ganhou com isso? - Eu não queria viver à sombra dela. O Barbosa me prometeu apoio nas eleições seguintes, e eu teria crédito suficiente com o povo para me eleger para o que eu quisesse. - Muito bem. O seu crédito com o povo acaba hoje. O policial de plantão na delegacia acordou às 4:40h da manhã, assustado. Lá fora um homem gritava desesperado por socorro. - Mas o que é isso? – apesar dos anos de experiência, o policial, ainda esfregando os olhos, não acreditava no que estava vendo. Havia um homem amarrado ao poste, na calcada da delegacia. Estava um pouco ensanguentado e parecia exausto. A cena era ainda mais esquisita: tinha um envelope vermelho amarrado às mãos e, tatuada em seu peito, uma frase que dizia: “Eu matei Graça Oliveira.” JP estava sentado numa cadeira desconfortável no saguão do aeroporto, esperando a chamada para o seu voo. Parou de ler seu livro e observou as pessoas paradas e espantadas em frente à televisão. Alagoas Urgente. O presidente da Câmara dos Vereadores de Arapiraca, Chico Lira, foi encontrado nu, amarrado a um poste em frente à delegacia da cidade, com uma tatuagem no peito que dizia: “Eu matei Graça Oliveira”. A redação do programa recebeu uma fita que parece ter sido gravada na própria casa do vereador, onde ele confessa o esquema armado para matar Dra. Graça. Chico foi, na época, eleito vice-prefeito junto com Graça mas renunciou o cargo após sua morte. A polícia investiga o caso. - Atenção, passageiros do voo 171 para São Paulo: queiram dirigir-se ao portão de embarque. JP já estava perto do portão quando olhou pela janela e viu um


pássaro enorme, pousado ao chão, em pé num jardim não muito distante. - É uma águia? – perguntou para a aeromoça sorridente. - Não, senhor. É um carcará.


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