LIVE Cardiovascular 20 - Entrevista com Olga Azevedo

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Reportagem ao Serviço de Cardiologia do CH de Trás-os-Montes e Alto Douro notícia

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Cardiovascular diretor: José Alberto soares Quadrimestral | Jan.-Abr. 2019 Ano 6 | Número 20 | 3 euros

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Olga Azevedo, cardiologista do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães:

“para mim, a medicina não é apenas uma profissão, é uma forma de ser e de estar”


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Olga Azevedo, cardiologista do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães:

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entrevista “Vive e respira Medicina”, não conseguindo dissociá-la da sua vida pessoal. Define-se como uma nerd e considera-se uma pessoa muito feliz e cheia de sorte. Olga Azevedo, cardiologista do Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães, dedicou-se, desde cedo, à ecocardiografia e às doenças do miocárdio, tendo assumido já vários cargos de responsabilidade nesta área. A médica conta-nos um pouco da sua história de vida e do percurso profissional que tanto a tem realizado.

Just News (JN) – É cardiologista, coordenadora do Centro de Referência Nacional e Europeu de Doenças de Sobrecarga do Lisossoma, diretora do Laboratório de Ecocardiografia e responsável pela Consulta de Doenças do Miocárdio e Pericárdio do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães, investigadora no Registo Fabry Outcome Survey… Por que se sente tão atraída pelas doenças do miocárdio e pericárdio e pelas doenças raras? Olga Azevedo (OA) – Fui para Cardiologia essencialmente pela paixão que sentia por todas as doenças cardiovasculares, mas não escondo que a área das miocardiopatias é especial para mim! Sempre gostei das doenças do miocárdio porque há um desafio maior nessa área, tanto no diagnóstico como no tratamento. Muitas destas doenças estão subdiagnosticadas e, mesmo depois de feito o diagnóstico, não é fácil chegar à verdadeira causa da miocardiopatia. Sempre gostei de desafios e acabei por me sentir atraída por essa área. Também gosto de investigação e, no que respeita às miocardiopatias, não há ainda muito conhecimento, o que me levou a sentir mais interesse.

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JN – Como é que se organiza com tantos cargos de responsabilidade? OA – Pois… Não é fácil! Há uma grande carga de trabalho, quer do ponto de vista

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entrevista (Continuação da pág. 5) assistencial, quer de investigação, e ainda de organização e coordenação. Gosto de todas as tarefas, tanto de ser médica – enquanto clínica e investigadora, porque ser médico é as duas coisas – como dos cargos de gestão, que nos permitem organizar a forma como os cuidados de saúde são providenciados aos doentes e melhorar a sua qualidade. Os processos que levam à melhoria da qualidade dos cuidados de saúde aos doentes são muito interessantes, mas reconheço que não são fáceis. Porém, tudo é simplificado se for feito em equipa e eu tenho a sorte e o privilégio de trabalhar com pessoas que constituem comigo equipas de excelência, muito qualificadas. Tanto no que respeita ao Centro de Referência de Doenças Lisossomais de Sobrecarga, em que temos uma equipa multidisciplinar composta por mais de 20 profissionais de saúde – médicos de todas as especialidades, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais, como noutras áreas da Cardiologia, nomeadamente no Laboratório de Ecocardiografia, onde trabalho com pessoas muito competentes do ponto de vista profissional, mas que são também muito humanas e minhas amigas. Pessoas com quem gosto de estar e trabalhar. Quando é assim, tudo se torna muito mais fácil. JN – Qual o estado da arte do diagnóstico e tratamento destas doenças em Portugal? OA – Em Portugal, seguimos as recomendações internacionais para o diagnóstico e tratamento destas doenças, nomeadamente as guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia. No entanto, numa área em que não há tanto conhecimento em termos de diagnóstico e de tratamento, as guidelines não nos dão respostas para todas as questões. Logo, tudo depende muito do clínico que segue os doentes e da sua capacidade de investir, de ser resiliente e de procurar investigar a verdadeira causa de cada miocardiopatia e de que forma pode ajudar a melhorar a qualidade de vida e a sobrevida de cada um dos seus doentes. JN – O que falta para que haja mais investigação e mais aposta nesta área? OA – Não é só nesta. A investigação é muito necessária em todas as áreas. Claro que implica que haja investimento dos profissionais em termos de dedicação de tempo e de energia, mas também investimento financeiro, porque nada se

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faz sem apoios. Tudo isto só é possível se o médico for encarado não só como clínico, mas também como investigador. É muito importante que se reconheça, cada vez mais, que nos horários profissionais tem de ser incluída uma parcela de tempo para investigação. Caso contrário, torna-se muito difícil conciliar as duas tarefas. Penso que esta é umas das razões para não haver tanta investigação quanto deveria haver. O Grupo de Estudos de Doenças do Miocárdio e do Pericárdio da Sociedade Portuguesa de Cardiologia criou um prémio no sentido de estimular a investigação nesta área. Todos os anos concorrem vários trabalhos de investigação e são premiados os três melhores, com um valor monetário que serve de estímulo para manter a investigação. Claro que quando mais iniciativas deste género houver melhor! JN – Em termos de estruturas e consultas organizadas, considera que, em Portugal, os doentes têm o apoio e seguimento de que necessitam? OA – A área das doenças do miocárdio começou mais tarde no que diz respeito à formação de consultas especializadas. Devido à elevada prevalência e morbimortalidade e ao facto das opções terapêuticas terem começado a ser mais sofisticadas para a doença coronária, a Cardiologia sempre esteve muito virada para essa área. Em relação às doenças do miocárdio, embora existam consultas bem constituídas a nível nacional, a sua prevalência justifica que haja cardiologistas dedicados a esta área e que se desenvolvam consultas especializadas de doenças do miocárdio em cada hospital. Porém, existem ainda muitas instituições que não as têm e onde os doentes são seguidos em consultas de Cardiologia geral. Obviamente, todos os cardiologistas estão habilitados a acompanhar estas patologias. No entanto, sabemos que quando há uma dedicação a determinada área os cuidados são melhores, tanto no que respeita ao diagnóstico como ao tratamento. Por isso é que toda a Medicina evolui nesse sentido. JN – Em que altura da sua vida percebeu que o seu futuro seria a Medicina? OA – Quando estava no ensino secundário. Sempre estudei por gosto. Sempre gostei de aprender e de ser uma verdadeira nerd. Tinha várias áreas de interesse, mas a certa altura tive de optar por uma. Pensei bem nas hipóteses que tinha, ponderei tendo em conta a minha personalidade e achei que Medicina podia ser uma boa escolha. Hoje, vejo que foi a melhor opção que tomei. Para mim, a Medicina

não é apenas uma profissão. É uma forma de ser e de estar. Faz parte intrínseca da minha personalidade. Não me imagino a ser outra coisa que não médica. JN – Como é que lida com os seus doentes e com os medos que têm devido à sua patologia cardíaca? OA – Eu sou muito maternal. Sou um pouco mãezinha de todos eles! Gosto

muito da relação médico-doente, é do mais gratificante que pode haver. Obviamente que o mais importante é ver o doente melhorar com os nossos cuidados de saúde, mas perceber que gostam de vir à consulta, de interagir comigo, também o é. Tenho muito boa relação com os meus doentes, acho que eles sentem que sou mesmo um bocadinho “mãezinha” deles. Preocupo-me e acho que percebem isso. JN – Mas consegue não levar essas preocupações para casa?

OA – Não consigo! E é exatamente isso que quero dizer, quando me refiro à Medicina como uma forma de ser e de estar e não apenas uma profissão. Não me consigo desligar, chegar ao fim do dia de trabalho, ir-me embora e deixar tudo no hospital. JN – Isso acaba por lhe causar instabilidade, preocupação...

OA – Preocupação, sim. E talvez possa não ser bom para mim, no sentido em que não esqueço o trabalho e quando nunca desligamos verdadeiramente… Mas isso faz parte da minha vida e eu assumo com naturalidade. JN – Teve alguma influência de familiares ou amigos chegados na altura em que optou por Medicina? OA – Foi mais ao contrário! Eu venho de uma família de professores. Na altura, não tinha ninguém na Medicina e a minha família também nunca me pressio-


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entrevista nou a nada. Os meus pais sempre quiseram que escolhesse o que me fizesse feliz. Obviamente, quando perceberam que optei por Medicina, ficaram contentes, porém, ainda mais quando viram que isso me fazia feliz. Percebem-no todos os dias, o que acaba por ser uma razão de felicidade também para eles. Creio que fui eu que acabei por ser a influência, porque passámos a ter mais médicos

intercorrências. Tenho um irmão mais novo, os meus pais são espetaculares e a minha família é a melhor do mundo. JN – Como era a relação com o seu irmão? OA – A diferença de idades é de quase 9 anos. Eu era como uma segunda mãe dele. O engraçado é que a relação que temos agora é mais de irmãos do que a

altura é muito engraçado! Ele era uma criança e eu já era adulta. JN – Licenciou-se em 2003 pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Como foi a vida académica? Teve de ir para o Porto… AO – Foi uma mudança. Não gosto muito de mudanças, mas adapto-me rapidamente, o que é um pouco paradoxal. Fui na expectativa de ver como seriam as coisas… Eram outros tempos! Eu tinha 17 anos, nunca tinha saído da casa dos meus pais, não havia telemóveis… Quer dizer, havia, mas eu não tinha. Só passei a ter no 3.º ano da faculdade. Eram tempos, tecnológica e socialmente, muito diferentes. Muita coisa aconteceu nos últimos 20 anos! Mas fui muito feliz também nessa fase! Vivi intensamente os meus tempos académicos. Fui muito bem-sucedida em termos da minha formação e de ter confirmado que a Medicina era realmente a minha paixão. Além disso, sempre tive muitos amigos na faculdade, participei da vida académica, fiz parte das tunas, das comissões de curso… De tudo! Foi muito bom. Guardo muito bons momentos! A ligação entre nós era tão forte que fizemos um jantar de comemoração de 10 anos de saída da faculdade e estiveram presentes cerca de 75 pessoas! Foram tempos muito bonitos. JN – Já namorava com 17 anos. Quando foi para a faculdade? OA – Pois… essa foi outra consequência da vida académica! Quando entrei para a faculdade não tinha namorado. No entanto, a altura das praxes é sempre uma boa forma de conseguirmos chegar ao conhecimento da pessoa com quem queremos falar. Ou, pelo menos, foi o que o Miguel pensou, ao tornar-se o meu padrinho de praxe! Foi uma forma muito eficaz de travar conhecimento comigo e de estabelecer uma relação que depois acabou por evoluir para um namoro que se mantém até hoje.

na família, pessoas mais novas, os meus primos. Já temos uma quantidade de médicos, estamos a tentar preencher as várias especialidades! JN – Nasceu em Guimarães, a 26 de dezembro de 1979. Como foi a sua infância? OA – Muito feliz! Acho que sou uma pessoa de muita sorte. Obviamente, todos temos coisas menos boas na nossa vida. Porém, tenho sido muito feliz durante toda a minha vida. Tive uma infância e uma adolescência calmas, sem grandes

que tínhamos antes. A diferença de idades era muito grande e notava-se mais. Agora somos os dois adultos, temos uma relação de irmãos e não tanto de mãe para “criancinha”, que também é bonita, mas é diferente. Estou a redescobrir uma nova relação com o meu irmão, que também me deixa muito feliz. JN – Era protetora? AO – Sim! Imagine, quando o meu irmão conheceu o meu namorado, o meu atual marido, era uma criança. Lembrar-me disso e das conversas que tivemos na

JN – Passou a correr tudo muito melhor assim. Custou-lhe menos a saída de casa… OA – Sim, sempre foi um apoio grande para mim na faculdade. JN – Também é médico? OA – É. E trabalhamos no mesmo hospital. É neurologista. JN – É de Guimarães? OA – É de Braga. Também estudou no Hospital de São João e depois foi con-

quistado por Guimarães e veio viver para cá. Não podia ser o contrário, obviamente…. (risos) Provavelmente, já ouviu dizer que os vimaranenses são muito bairristas… É isso mesmo! JN – Em casa fala-se muito sobre Medicina? OA – Fala-se muito sobre Medicina! É como lhe disse, para mim a Medicina não é uma profissão, não é algo à parte. Eu vivo e respiro Medicina. JN – Quando percebeu que a sua especialidade seria a Cardiologia? OA – Durante o curso temos oportunidade de contactar com as várias especialidades. Eu sempre gostei mais da área médica. A cirúrgica nunca me atraiu, acho que é uma arte, mas não me identifico. E dentro da área médica, a Cardiologia sempre foi uma especialidade de que gostei e pela qual me senti atraída. Lembro-me perfeitamente de ter passado pela Cardiologia no 4.º ano e de ter gostado imenso das aulas teóricas e práticas. Fiquei sempre com esse gosto. Felizmente, tive notas que me permitiram escolher o que queria e optei por Cardiologia em Guimarães. JN – Gosta muito de Guimarães. Como é viver aqui? OA – É espetacular! É a melhor cidade do mundo! Guimarães é muito bonita, tem património histórico… Tenho muita sorte por poder viver numa cidade tão bonita como é Guimarães e que tem a vantagem de não ter o trânsito que as cidades grandes têm, entre outros aspetos. Por outro lado, consegue equilibrar bem em termos de ofertas culturais. Se olharmos para o panorama nacional, à exceção de Lisboa e do Porto, as ofertas culturas não chegam a muito lado, infelizmente. Mas Guimarães sempre apostou muito na cultura e temos também essa sorte. Além disso, é onde vive a minha família e é um privilégio vivermos junto de quem amamos. JN – O que gosta de fazer nos tempos livres, em termos culturais? OA – Não me lembro muito bem o que são tempos livres! Gosto de viajar. Quando não estou no hospital, estou a viajar. Já o faço desde muito nova, sempre tive muita sorte também nesse aspeto, porque os meus pais adoram viajar e desde cedo que me levavam com eles. A partir de certa altura da vida, os meus pais apostaram em viajar e conhecer o

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entrevista (Continuação da pág. 7) mundo e eu e o meu irmão tivemos a felicidade de poder partilhar isso com eles. Cresci a adorar viajar. Já fui a muitos países e continuo sempre a querer descobrir mais países, cidades, praias, montanhas… É o que gosto de fazer. JN – Consegue eleger um local onde tenha estado? OA – Muito difícil! Já fui a sítios muito bonitos… Mas, há algumas viagens que nos ficam mais no coração e isso tem a ver, não só com a beleza do sítio, mas também com as experiências e vivências que tivemos nesses lugares. Há muitos sítios maravilhosos que poderia enumerar, mas guardo no coração uma viagem

que fiz às Ilhas Galápagos, no Equador. Gosto muito de animais e, nesse aspeto, este é dos melhores sítios. Quando chegámos, os guias disseram-nos para termos atenção e mantermos sempre uma distância de cerca de três metros dos animais. De facto, avisaram os humanos, mas esqueceram-se dos animais, que como não têm medo de nós – porque sempre viveram numa reserva, onde o ser humano nunca constituiu perigo –, aproximam-se. Ficam curiosos! Foi o único sítio do mundo em que pude

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estar descontraidamente sentada, com animais ao meu lado, a interagir comigo. Os pássaros não fogem, continuam na vida deles, como se fossemos mais um. E eu acho isso extraordinário! Tivemos oportunidade de ver imensas coisas giras, como, por exemplo, os albatrozes a aprender a voar, sem se deixarem intimidar minimamente connosco, ou os gansos patolas de patas azuis a fazer o ninho. Para quem gosta de animais é fabuloso. Recomendo vivamente. JN – Qual a próxima viagem? OA – Já ando a dizer isto há algum tempo, mas há uma série de situações a impedir que tenha acontecido. A minha próxima viagem é, sem dúvida, à Austrália e Nova Zelândia. É a minha viagem de

“Em Portugal, seguimos as recomendações internacionais para o diagnóstico e tratamento destas doenças.”

sonho. Tenho feito outras pelo meio, mas essa tem vindo a ser sucessivamente adiada. Também por precisar de mais tempo para conhecer aquela região, o que nem sempre é fácil de conciliar com a vida profissional. Espero conseguir fazê-la já este ano ou no próximo. JN – E, ainda em relação a Guimarães, por que nos trouxe ao centro histórico da cidade? OA – Todos os vimaranenses se orgulham do seu centro histórico. É bonito e reconhecido mundialmente pela Unesco, como Património Cultural da Humanidade. Faz parte da nossa vida. Eu nasci e vivi praticamente sempre cá, portanto, todas as minhas memórias de infância e de adolescência estão na cidade de Gui-

marães e no seu centro histórico, onde sempre vivi. As boas recordações que tenho até ao momento – os passeios com o meu namorado e com a minha família e as aventuras com os amigos – fazem parte e estão intrinsecamente ligadas ao centro histórico. Daí ser um lugar especial. JN – Há quanto tempo está ligada a este serviço hospitalar? OA – Formei-me em 2003 e comecei a trabalhar como médica em 2004. Nes-

sa altura, quis voltar para Guimarães e fiz cá o internato geral. Em 2005, entrei na especialidade de Cardiologia e decidi continuar cá. JN – Fale-me um pouco do seu percurso profissional. Como surgiu a oportunidade de criar a consulta e de ter estes cargos de responsabilidade? OA – Já durante o Internato de Cardiologia que tinha interesse pelas doenças do miocárdio e exerci muita atividade nesta área. Apesar de fazer uma consulta de Cardiologia geral, acumulei muitos doentes com estas patologias. Tornei-me cardiologista no início de 2011. E já enquanto especialista, sabendo que me queria dedicar a esta área, pensei que seria interessante criar uma consulta específica de doenças do miocárdio e pericárdio, algo que veio a concretizar-se no início de 2012. A área das doenças do miocárdio está muito ligada à da Imagem cardíaca e, durante o meu internato, especializei-me em ecocardiografia avançada. Fiz um estágio de diferenciação na Unidade de Imagem Cardiovascular do Hospital Clínico de San Carlos, em Madrid. Quando me tornei cardiologista, passei a ter um horário específico dedicado à ecocardiografia. Trabalhava com a colega que dirigia o laboratório, a quem sucedi após a sua ida para outra instituição. Eu já estava há muito tempo na área e a minha evolução para coordenadora do laboratório foi algo natural. É uma posição muito privilegiada no que respeita às doenças do miocárdio, porque tenho acesso preferencial a todos os doentes da Cardiologia. Estas patologias estão muitas vezes subdiagnosticadas e são detetadas aquando do ecocardiograma. A partir daí, faz-se logo referenciação direta para consulta de miocardiopatias, para podermos continuar a seguir esses doentes. Isto constitui uma mais-valia no diagnóstico e no tratamento dos doentes. É um casamento feliz. A área das doenças lisossomais de sobrecarga surge porque, dentro das miocardiopatias, a doença de Fabry era mais prevalente na região de Guimarães. Iniciei este trabalho ainda durante o meu internato, em 2008. Quando me tornei cardiologista já tínhamos um volume grande de doentes de Fabry no hospital, que passaram a ser seguidos na Consulta de Doenças do Miocárdio e Pericárdio, aquando da sua criação. Algum tempo depois, justificou-se a criação de uma Consulta Especializada de Doenças


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entrevista Lisossomais de Sobrecarga. Em 2013, foi criado o Centro de Excelência de Doenças Lisossomais de Sobrecarga, que, em 2016, passou a Centro de Referência de Doenças Lisossomais de Sobrecarga. Atualmente, seguimos cerca de 300 doentes de Fabry e somos um dos maiores centros de doença de Fabry a nível mundial.

O Centro de Referência não funciona apenas a nível nacional, mas também europeu. Estamos integrados na MetaERN, uma Rede Europeia de Referenciação de Doenças Hereditárias do Metabolismo, e outro dos nossos objetivos é continuar a colaborar, cada vez mais, no sentido de desenvolver uma rede verdadeiramente a nível europeu,

equipa. Gostava de atrair mais alguém para esta área e é algo que estou a tentar fazer. Do ponto de vista do Laboratório de Ecocardiografia, teremos de fazer também um reforço dos recursos humanos e tenho esperança de que brevemente tenhamos mais colegas médicos. A ecocardiografia é um exame transversal a

todas as patologias cardíacas e fundamental para todos os doentes. Precisamos de ter mais recursos humanos para podermos continuar a fazer ecocardiografia como temos feito até à data: com qualidade e com boa resposta em tempo útil. Em termos de resposta em tempo útil, não estamos mal, mas gostaria que estivéssemos melhor.

JN – Qual o espaço que a docência ocupa na sua vida? OA – Sou preletora convidada da Escola de Medicina da Universidade do Minho, onde dou aulas teóricas de Cardiologia desde 2007. No hospital dou aulas práticas aos alunos das residências de Cardiologia. É uma experiência de que gosto muito, talvez porque venha de uma família de professores. Gosto de ensinar e acho que os alunos também gostam das aulas. Brinco com eles. É interessante desafiar as mentes mais jovens e creio que isso é enriquecedor para ambas as partes. JN – Quais as principais ideias que lhes tenta transmitir sobre ser médico? OA – Sobretudo a paixão pela Medicina de uma forma geral – mas creio que já todos eles a têm –, pela Cardiologia em particular e, obviamente, pelas áreas das doenças do miocárdio e da ecocardiografia. Tento transmitir-lhes também a importância do sentido crítico, de usarmos a nossa inteligência e de nos desafiarmos e nos perguntarmos o porquê das coisas. Incentivá-los para a investigação, passar-lhes a importância de ter sentido crítico, tanto enquanto clínico, não aceitando passivamente tudo aquilo que leem, como enquanto investigadores. Têm de ter sentido de rigor, de objetividade, manter sempre o espírito científico e praticar medicina baseada na evidência. JN – Projetos para o futuro? OA – No que respeita ao Centro de Referência das Doenças Lisossomais de Sobrecarga, é um desafio constante conseguirmos manter a excelência dos cuidados que oferecemos aos doentes, assim como a melhoria contínua da sua qualidade e mantermos a investigação sempre ativa. Temos um potencial muito grande por termos uma amostra de doentes única e vasta e, por isso, sinto que temos, para com a comunidade científica, o dever de manter uma investigação de excelência e de contribuir para o conhecimento destas doenças.

quer no que diz respeito ao aconselhamento clínico virtual, quer também na parceria a nível internacional em projetos de investigação. E ainda em registos, nomeadamente no Registo Europeu de Doenças Hereditárias do Metabolismo e também em projetos de formação direcionados para as doenças hereditárias do metabolismo. Quanto às doenças do miocárdio e pericárdio, um dos meus objetivos é continuar a expandir a consulta, que cresceu muito desde a sua formação. Terminámos 2018 com 978 consultas, num total de cerca de 570 doentes, um volume muito grande. Há muitas miocardiopatias na zona de Guimarães, pelo que se justifica evoluirmos no sentido de criar uma equipa também nesta área. Tenho assumido sozinha a consulta. Contudo, considero que já atingiu uma dimensão que, para mantermos a qualidade dos cuidados, precisamos de trabalhar em

Curiosidades JN – Para além de Medicina, o que mais gosta de ler? OA – Sou tão nerd que só leio mesmo artigos científicos. JN – Uma vez que viaja muito, qual a gastronomia de que mais gosta? OA – A comida portuguesa é a melhor. Temos uma gastronomia de fazer inveja a muitos países. JN – Faz o estilo de vida que recomenda aos seus doentes? OA – Não faço grandes excessos. Não bebo café, nem álcool, não fumo, mas sou uma verdadeira “chocoólica”. É o meu maior pecado! JN – Filosofia de vida, em que é que acredita? OA – Nos valores morais e éticos, segundo os quais procuro guiar a minha vida. Em ser uma melhor pessoa, porque acredito que isso traz felicidade não só a mim, mas também aos outros. Na felicidade dos outros encontro a minha. JN – Hobbies? OA – Cinema. Gosto muito de histórias.

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