Jornal de Fato

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2 OPINIÃO

DOMINGO, 3 DE OUTUBRO DE 2021

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: CLAUDER ARCANJO

DIÁRIOS PERIGOSOS: GONCOURT E MACHADO VERA LÚCIA DE OLIVEIRA

Carol Caminha

Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-DF) veraluciaoliveira@hotmail.com

Ler diários, secretos ou não, costuma ser uma experiência excitante. Nada como espreitar a vida dos outros por uma fresta, apropriar-se da intimidade alheia como um voyeur, bisbilhotar os escondidos. Talvez seja esse o segredo e o sucesso desse gênero de literatura indiscreta que nunca se esgota ou sai de moda. Quanto mais célebre o autor, mais interesse desperta no leitor. E não foi diferente com a reedição do Diário – Memórias da vida literária (trechos selecionados), (SP: Editora Carambaia, 2021), dos irmãos Goncourt, intelectuais franceses que dominaram a cena literária em Paris e em toda a França no século19 e que se tornaram nome de academia e do prêmio mais famoso do país. E de estação de metrô na amada Paris. Nada escapou à dupla. De acontecimentos muito relevantes, a exemplo da censura draconiana a jornais e escritores no período de Napoleão III, o pequeno (como o chamou Victor Hugo), ou publicações de livros, até fofocas, incluindo as piores grosserias e crítica virulenta aos amigos como Flaubert, Sainte-Beuve, Gautier, Zola, Dumas, Renan, Mallarmé, Verlaine, Turguêniev, Daudet, George Sand, princesa Mathilde e muitos outros, o Diário relata os acontecimentos que vão de 1851 a 1896. Todos esses autores foram vítimas da maledicência dos irmãos. O mais velho, Edmond (1822-1896), passou pela dor profunda da perda do caçula e alma gêmea Jules (1830-1870), oito anos mais novo, que faleceu precocemente. Artistas ambos, iniciaram carreira na pintura, depois abraçaram a literatura, com peças teatrais, romance e crítica literária. Amados e temi-

dos pelos amigos com quem partilhavam mesa no restaurante Magny, lugar de liberdade de pensamento, em jantares regados a bons vinhos e excelente comida, tornaram esses encontros o centro da vida cultural francesa que roça a má educação e ofensa, diziam o que lhes vinha à boca, sem pejo. Vale investigar até que ponto não havia inveja oculta na crítica ácida a obras que se tornariam mais tarde icônicas na literatura francesa e mundial, como Madame Bovary, de Flaubert – ou Os miseráveis, de Victor Hugo, nas quais a dupla só viu defeitos, a ponto de afirmar que as personagens de Hugo eram estátuas de mármore e não gente. Como se vê, erros de julgamento podem ocorrer em qualquer época, mesmo porque jamais se saberá o que a posteridade vai eleger como seu clássico. Mas, voltando à morte de Jules, triste episódio que faz Edmond mergulhar em profunda tristeza e mudar um pouco o tom dos diários, revelando sua dor e solidão, a falta do irmão tão querido, seu companheiro de todas as horas, sua alma gêmea, deixou-o quase incapacitado, pois escreviam a quatro mãos e agora só lhe restaram duas. Nesse momento de intenso sofrimento pessoal, acrescenta-se a invasão de Paris pelos prussianos de Bismarck, em 1871. A cidade, agora sitiada, sofre autoritariamente a fome. Todos recebem igualmente a ração de 300g de carne de cavalo para duas pessoas a cada três dias. O caos se instala na capital cultural do mundo. Edmond anota suas impressões de escritor, artista e homem politicamente conservador, sobretudo quando assiste à explosão da Comuna de Paris. Em meio a bombardeios, a vida social não é mais a mesma. Nem poderia. Restaurantes não têm o que servir, tudo é precário e desanimador. Os jantares históricos do Magny, onde trocavam abraços e farpas, ficaram na saudade. Assim vai o leitor acompanhando o retrato de homens e mulheres tal como os irmãos os perceberam, a vida literária e política, e os acontecimentos sociais e históricos que mudaram o mundo. E parece que que esses diários dos Goncourt fizeram escola. Na mesma época, no Brasil, Machado de Assis escreve um conto “Galeria póstuma”, de Histórias sem data (1884), que

principalmente de imagens, de frases translatas. Os “dentes da calúnia” e outras expressões, surradas como colchões de hospedaria, são os seus encantos. (...) JOÃO BRÁS. – Nem tolo nem bronco. Muito atencioso, embora sem maneiras. Não pode ver passar um carro de ministro; fica pálido e vira os olhos. Creio que é ambicioso; mas na idade em que está, sem carreira, a ambição vai-se-lhe convertendo em inveja. (...) E muito mais, pois nem o sobrinho escapou:

surpreende o leitor de hoje pela duplicidade do personagem Joaquim Fidélio, homem querido dos amigos e que morre subitamente. Estamos em 1878. O que vai fazer a virada da história é o diário que ele escrevia secretamente, agora encontrado pelo sobrinho. Tudo o que este não queria ler estava ali. Todo tipo de maledicências! Vamos a ele. Ao voltar de um baile de madrugada, Joaquim Fidélio faz as anotações de praxe nos seus cadernos, mas jamais poderia supor que morreria daí a pouco. A morte desse homem tão amado consternou todo o bairro. Homem instruído, educado, rico e generoso, letrado, viúvo, vivia com um sobrinho, o Benjamim, filho de uma irmã, órfão desde pequeno. O narrador poderia dizer como Brás Cubas: “Uma flor esse Joaquim Fidélis!” Pois foi dessa flor, cuja morte foi muito chorada, que veio o pior. Após a missa de sétimo dia, o sobrinho, inventariando as gavetas do escritório do tio, na presença dos amigos chegados, deu com “alguns cadernos manuscritos, numerados e datados. “– Um diário! Disse Benjamim.” Sim, eram as memórias secretas do tio. Enquanto liam, encantavam-se com as finas reflexões filosóficas e políticas, até que interromperam; ainda bem, porque o pior estava por vir: eram retra-

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tos terríveis, verdadeiras caricaturas desses mesmos amigos, dos quais pinçaremos as pérolas seguintes. A começar pela anotação do baile, suas últimas palavras: Em suma, baile chinfrim; uma velha gaiteira obrigou-me a dançar uma quadrilha; à porta um crioulo pediu-me as festas. Chinfrim! Dos amigos inseparáveis, disse: ELIAS XAVIER. – Esse Elias é um espírito subalterno, destinado a servir alguém com desvanecimento, como os cocheiros de casa elegante. Vulgarmente trata as minhas visitas íntimas com alguma arrogância e desdém; política de lacaio ambicioso. (...) GALDINO MADEIRA. – O melhor coração do mundo e um caráter sem mácula; mas as qualidades do espírito destroem as outras. Empresteilhe algum dinheiro, por motivo de família, e parece que não me fazia falta. Há no cérebro dele um certo furo, por onde o espírito escorrega e cai no vácuo. Não reflete três minutos seguidos. Vive

Este meu sobrinho, dizia o manuscrito, tem vinte e quatro anos de idade, um projeto de reforma judiciária, muito cabelo, e ama-me. Eu não o amo menos. Discreto, leal e bom, – bom até a credulidade. Tão firme nas afeições como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no direito o vocabulário e as fórmulas. Os diários do tio Joaquim Fidélio, bem como os dos irmãos Goncourt, relatos e ficção, respectivamente, têm o mesmo poder de fazer rir e indignar o leitor; o dos irmãos franceses, por isso mesmo, só foram publicados na íntegra, com suas 4.500 páginas, cinquenta anos após a morte de Edmond, conforme testamento. O Diário é o testemunho dos irmãos que dedicaram a vida totalmente à literatura: não casaram nem construíram família. Viveram para a arte. Em ambos o que se vê, no entanto, é o copo meio vazio, ou a caixa registradora que só acusa os prejuízos. Mas hoje podemos ver também o outro lado, o que mostra os escritores como seres humanos com defeitos e qualidades de simples mortais. E ainda o que deve ser condenado: a misoginia, o chauvinismo dos autores, o antissemitismo, a banda podre da sociedade da época. Mas não poderíamos encerrar sem registrar a bela edição do Diário, caprichadíssima, numerada, obra de colecionador exigente, e com ótima tradução e introdução esclarecedora de Jorge Bastos. Já o nosso Machado é pura diversão do humor do mau humor. Clássicos ambos.

Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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