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OPINIÃO
from Jornal de Fato
ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS
Organização: CLAUDER ARCANJO
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DIÁRIOS PERIGOSOS: GONCOURT E MACHADO
VERA LÚCIA DE OLIVEIRA
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-DF) veraluciaoliveira@hotmail.com
Ler diários, secretos ou não, costuma ser uma experiência excitante. Nada como espreitar a vida dos outros por uma fresta, apropriar-se da intimidade alheia como um voyeur, bisbilhotar os escondidos. Talvez seja esse o segredo e o sucesso desse gênero de literatura indiscreta que nunca se esgota ou sai de moda. Quanto mais célebre o autor, mais interesse desperta no leitor. E não foi diferente com a reedição do Diário – Memórias da vida literária (trechos selecionados), (SP: Editora Carambaia, 2021), dos irmãos Goncourt, intelectuais franceses que dominaram a cena literária em Paris e em toda a França no século19 e que se tornaram nome de academia e do prêmio mais famoso do país. E de estação de metrô na amada Paris.
Nada escapou à dupla. De acontecimentos muito relevantes, a exemplo da censura draconiana a jornais e escritores no período de Napoleão III, o pequeno (como o chamou Victor Hugo), ou publicações de livros, até fofocas, incluindo as piores grosserias e crítica virulenta aos amigos como Flaubert, Sainte-Beuve, Gautier, Zola, Dumas, Renan, Mallarmé, Verlaine, Turguêniev, Daudet, George Sand, princesa Mathilde e muitos outros, o Diário relata os acontecimentos que vão de 1851 a 1896. Todos esses autores foram vítimas da maledicência dos irmãos. O mais velho, Edmond (1822-1896), passou pela dor profunda da perda do caçula e alma gêmea Jules (1830-1870), oito anos mais novo, que faleceu precocemente. Artistas ambos, iniciaram carreira na pintura, depois abraçaram a literatura, com peças teatrais, romance e crítica literária. Amados e temidos pelos amigos com quem partilhavam mesa no restaurante Magny, lugar de liberdade de pensamento, em jantares regados a bons vinhos e excelente comida, tornaram esses encontros o centro da vida cultural francesa que roça a má educação e ofensa, diziam o que lhes vinha à boca, sem pejo. Vale investigar até que ponto não havia inveja oculta na crítica ácida a obras que se tornariam mais tarde icônicas na literatura francesa e mundial, como Madame Bovary, de Flaubert – ou Os miseráveis, de Victor Hugo, nas quais a dupla só viu defeitos, a ponto de afirmar que as personagens de Hugo eram estátuas de mármore e não gente. Como se vê, erros de julgamento podem ocorrer em qualquer época, mesmo porque jamais se saberá o que a posteridade vai eleger como seu clássico.
Mas, voltando à morte de Jules, triste episódio que faz Edmond mergulhar em profunda tristeza e mudar um pouco o tom dos diários, revelando sua dor e solidão, a falta do irmão tão querido, seu companheiro de todas as horas, sua alma gêmea, deixou-o quase incapacitado, pois escreviam a quatro mãos e agora só lhe restaram duas. Nesse momento de intenso sofrimento pessoal, acrescenta-se a invasão de Paris pelos prussianos de Bismarck, em 1871. A cidade, agora sitiada, sofre autoritariamente a fome. Todos recebem igualmente a ração de 300g de carne de cavalo para duas pessoas a cada três dias. O caos se instala na capital cultural do mundo. Edmond anota suas impressões de escritor, artista e homem politicamente conservador, sobretudo quando assiste à explosão da Comuna de Paris. Em meio a bombardeios, a vida social não é mais a mesma. Nem poderia. Restaurantes não têm o que servir, tudo é precário e desanimador. Os jantares históricos do Magny, onde trocavam abraços e farpas, ficaram na saudade. Assim vai o leitor acompanhando o retrato de homens e mulheres tal como os irmãos os perceberam, a vida literária e política, e os acontecimentos sociais e históricos que mudaram o mundo.
E parece que que esses diários dos Goncourt fizeram escola. Na mesma época, no Brasil, Machado de Assis escreve um conto “Galeria póstuma”, de Histórias sem data (1884), que surpreende o leitor de hoje pela duplicidade do personagem Joaquim Fidélio, homem querido dos amigos e que morre subitamente. Estamos em 1878. O que vai fazer a virada da história é o diário que ele escrevia secretamente, agora encontrado pelo sobrinho. Tudo o que este não queria ler estava ali. Todo tipo de maledicências!
Vamos a ele.
Ao voltar de um baile de madrugada, Joaquim Fidélio faz as anotações de praxe nos seus cadernos, mas jamais poderia supor que morreria daí a pouco. A morte desse homem tão amado consternou todo o bairro. Homem instruído, educado, rico e generoso, letrado, viúvo, vivia com um sobrinho, o Benjamim, filho de uma irmã, órfão desde pequeno. O narrador poderia dizer como Brás Cubas: “Uma flor esse Joaquim Fidélis!” Pois foi dessa flor, cuja morte foi muito chorada, que veio o pior. Após a missa de sétimo dia, o sobrinho, inventariando as gavetas do escritório do tio, na presença dos amigos chegados, deu com “alguns cadernos manuscritos, numerados e datados. “– Um diário! Disse Benjamim.” Sim, eram as memórias secretas do tio. Enquanto liam, encantavam-se com as finas reflexões filosóficas e políticas, até que interromperam; ainda bem, porque o pior estava por vir: eram retratos terríveis, verdadeiras caricaturas desses mesmos amigos, dos quais pinçaremos as pérolas seguintes. A começar pela anotação do baile, suas últimas palavras:



Em suma, baile chinfrim; uma velha gaiteira obrigou-me a dançar uma quadrilha; à porta um crioulo pediu-me as festas. Chinfrim!
Dos amigos inseparáveis, disse:
ELIAS XAVIER. – Esse Elias é um espírito subalterno, destinado a servir alguém com desvanecimento, como os cocheiros de casa elegante. Vulgarmente trata as minhas visitas íntimas com alguma arrogância e desdém; política de lacaio ambicioso. (...)
GALDINO MADEIRA. – O melhor coração do mundo e um caráter sem mácula; mas as qualidades do espírito destroem as outras. Empresteilhe algum dinheiro, por motivo de família, e parece que não me fazia falta. Há no cérebro dele um certo furo, por onde o espírito escorrega e cai no vácuo. Não reflete três minutos seguidos. Vive principalmente de imagens, de frases translatas. Os “dentes da calúnia” e outras expressões, surradas como colchões de hospedaria, são os seus encantos. (...)
JOÃO BRÁS. – Nem tolo nem bronco. Muito atencioso, embora sem maneiras. Não pode ver passar um carro de ministro; fica pálido e vira os olhos. Creio que é ambicioso; mas na idade em que está, sem carreira, a ambição vai-se-lhe convertendo em inveja. (...)
E muito mais, pois nem o sobrinho escapou:
Este meu sobrinho, dizia o manuscrito, tem vinte e quatro anos de idade, um projeto de reforma judiciária, muito cabelo, e ama-me. Eu não o amo menos. Discreto, leal e bom, – bom até a credulidade. Tão firme nas afeições como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no direito o vocabulário e as fórmulas.
Os diários do tio Joaquim Fidélio, bem como os dos irmãos Goncourt, relatos e ficção, respectivamente, têm o mesmo poder de fazer rir e indignar o leitor; o dos irmãos franceses, por isso mesmo, só foram publicados na íntegra, com suas 4.500 páginas, cinquenta anos após a morte de Edmond, conforme testamento. O Diário é o testemunho dos irmãos que dedicaram a vida totalmente à literatura: não casaram nem construíram família. Viveram para a arte. Em ambos o que se vê, no entanto, é o copo meio vazio, ou a caixa registradora que só acusa os prejuízos. Mas hoje podemos ver também o outro lado, o que mostra os escritores como seres humanos com defeitos e qualidades de simples mortais. E ainda o que deve ser condenado: a misoginia, o chauvinismo dos autores, o antissemitismo, a banda podre da sociedade da época.
Mas não poderíamos encerrar sem registrar a bela edição do Diário, caprichadíssima, numerada, obra de colecionador exigente, e com ótima tradução e introdução esclarecedora de Jorge Bastos. Já o nosso Machado é pura diversão do humor do mau humor. Clássicos ambos.

DI RE ÇÃO GE RAL: Cé sar San tos DIRETOR DE REDAÇÃO: César Santos GE REN TE AD MI NIS TRA TI VA: Ân ge la Ka ri na DEP. DE ASSINATURAS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.
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