Jornal Contramão 32

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EDITORIAL Conexões, experiências, transferências e imersões urbanas. Convidamos você, nesse número, para uma viagem pelas entranhas de Belo Horizonte, suas ruas, suas gentes, suas histórias, seus cheiros e seus delírios, dos mais silenciosos aos mais ruidosos. O Núcleo de Convergência de Mídias (NuC), responsável pela produção do jornal Contramão investe no diálogo com as experiência conceituais e metodológicas desenvolvidas para reportagens do curso de Jornalismo Multimídia. Nosso objetivo é intensificar um mergulho de fôlego na cidade em seu aspecto plural e intensificar as práticas textuais e visuais de forma dialógica. Acreditamos que as produções laboratoriais devem investir numa ação transformadora, assim, os alunos e alunas, em seu percurso acadêmico, e em sua estada no Instituto de Comunicação e Artes (ICA), se defrontam com um horizonte de possibilidades. Nesse contexto, somos incentivadores de ideias e orientadores de um processo criativo consciente, em termos de interdisciplinaridade, e de ações que tencionam o lugar do próprio jornalismo. Por esse viés, incorporamos as experiências de observação do cotidiano que tiram a prática da reportagem do lugar conhecido e formatado, comum aos jornais-laboratórios e à grande imprensa, e nos permitimos entrar em outras searas para olhar a cidade, seus problemas e suas histórias. A inquietação nos permite ser e estar no mundo. Boa parte das reportagens produzidas são provenientes experimentações reflexivas e práticas do Trabalho Interdisciplinar Dirigido (TIDIR), assim, as pautas aqui apresentadas tem desdobramentos na internet (são sempre indicados a cada página). Nossa meta é incorporar no jornal as práticas desenvolvidas nas disciplinas, faremos isso, a cada número, para valorizar as produções de nossos alunos e alunas e fomentar a construção de seus portfólios. É por isso que essa viagem apenas começa aqui. Dentre os destaques da edição 32, temos a reportagem assinada por Alex Bessas que empreende a incursão num remanescente dos tradicionais cinemas pornôs de rua da capital mineira. O traço do autor não abre concessões, o naturalismo explorado em sua linguagem proporciona ao leitor a experiência de flanar pelos darkrooms, durante uma madrugada insone de outono. Já na reportagem sobre a avenida Oiapoque, Bessas mergulha no cotidiano

e nas histórias das pessoas que transitam por essa via urbana com apenas 300 metros de extensão, no centro de BH. Com fotos de Diogo Fabrin, o registro de uma manhã chuvosa na Oiapoque revela os contrastes da cidade. A reportagem é proveniente do TIDIR 5, sob orientação da professora Tatiana Carvalho, que mapeou e pesquisou as ruas da cidade cujos nomes são de procedência indígena. O resgate de nossas origens diversas. O Edifício Maletta é a personagem da matéria de Pedro Abranches e Moyara Benitez. Temos aqui, outra produção desenvolvida no curso, no TIDIR 2, sob orientação do professor Roberto Reis. A ideia é pesquisar os grupos urbanos de BH e o papel que desempenham na construção de uma Belo Horizonte complexa e diversificada. O jornal também vive de música e Gabriel da Silva entrevistou duas bandas e um cantor que ascendem no cenário cultural da cidade. Para comemorar os 50 anos do Setor de Braille da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, Victor Barboza visitou as dependências que reúne quase 3000 títulos para atender 500 deficientes visuais cadastrados, além de disponibilizar 400 voluntários para leituras. A edição se encerra com poema em prosa de Alexandre Rodrigues que tem por musa a avenida Oiapoque ao rio que atravessa o estado do Amapá. A nossa experiência continua…

EXPEDIENTE Jornal laboratório do curso de Jornalismo Multimídia do - Instituto de Comunicação e Artes - Centro Universitário UNA Reitor: Átila Simões Diretor do ICA/ UNA: Prof. Lélio Fabiano dos Santos. Coordenadora do curso de Jornalismo Multimídia: Tatiana Carvalho Costa. Contramão. Coordenação: Reinaldo Maximiano (MTb 06489). Téc. de Laboratório: Ana Sandim (18727/ MG). Revisores: Ana Sandim, Reinaldo Maximiano e Renata Louise. Estagiários: Camila Lopes Cordeiro, Gabriel da Silva, Julia Guimarães, Marina Rezende, Raphael Duarte, Renata Louise, Victor Barboza e Yuran Khan. Tiragem: 2.000 exemplares. Impressão: Sempre Editora. Diagramação: Gabriel da Silva, Marina Rezende, Reinaldo Maximiano, Cyro Villela e Luiz Lana.

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4 contramao.una.br Em 1918, Arcângelo Maletta, imigrante italiano que se estabeleceu em Belo Horizonte, comprou o antigo Grande Hotel por 300 contos de réis. O local consolidou-se após a inauguração do novo proprietário do “Bar do Grande Hotel” e tornou-se o ponto de encontro também da boemia da cidade. Até a década de 1950, personalidades da Semana de Arte Moderna de 1922, como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, vieram a convite de Juscelino Kubitscheck para participarem em 1944 da Exposição de Arte Moderna, em Belo Horizonte. O Grande Hotel foi vendido aos filhos de Arcângelo Maletta, em 1957, que optaram pela demolição do imóvel. O novo edifício se tornou referência não somente para os frequentadores de seus bares, mas também para a cidade, ainda que de modos distintos. Com a derrubada do Grande Hotel, o “colosso de cimento armado”, como era chamado na época, começa a ser construído, em 1957. O projeto desenvolvido pelo arquiteto, Oswaldo Santa Cruz Nery, anunciava um empreendimento que abrigaria “uma cidade dentro de outra cidade”. O edifício foi batizado de Arcângelo Maletta. O prédio tornou-se o mais procurado para as repúblicas de estudantes e instalação de escritórios. Como acontecia na época do Grande Hotel, o saguão se converteu em ponto de encontro de artistas, como a turma do Clube da Esquina, com Milton Nascimento e o saudoso Fernando Brant, além de estudantes e intelectuais, o que contribuiria para a abertura de novos bares.

Revitalização Nos últimos cinco anos, o Maletta passou por uma revitalização. O público se transformou, assim como a própria cidade e o país, acompanhando as demandas por modernidade. A criticada e também elogiada gourmetização da varanda começou quando o argentino, Santiago Calonga, 35, abriu o primeiro estabelecimento do local, o Arcângelo Caffe e Bar. “Corremos atrás de algum proprietário de loja, porque na varanda eram praticamente todas fechadas, desse lado tinham duas abertas, do outro tinha uma ou duas, praticamente nada. Com

muita dificuldade conseguimos achar um dos proprietários de uma loja e foi mais difícil ainda alugá-la, pois o proprietário dizia que iríamos falir”, explica. Além do Arcângelo, outros bares se destacam: o Objetoria, Café Biografias e Dub são exemplos dessa nova fase. Do outro lado, os bares Olympia Coop Bar, uma cooperativa de serviços e o Mestre Maletta, um buteco à moda antiga, também são exemplos da diversidade que é marca registrada do Edifício. Mas o Maletta não se resume aos bares mais recentes. Ainda no segundo andar, o Bar Lua Nova passou por várias fases e, hoje, resiste à concorrência forte, oferecendo o tradicional da casa com muita qualidade: PFs, cerveja gelada, petiscos e muita simpatia, na figura do dono, Juventino da Paz, 65. Ele adquiriu o famoso buteco em 1993, depois de ter passado por outros dois proprietários. A força do passado contribui para a manutenção do Lua Nova. Nele, muitos jornalistas, intelectuais, músicos, poetas e escritores se encontravam para jogar conversa fora e, claro, fazerem arte e política.

Sebos Bem ao lado, os sebos continuam resistindo aos efeitos da internet. Com acervos primorosos, que vão desde vinis antigos a objetos de decoração exóticos, eles continuam sendo procurados, porém com mais frequência pelas pessoas ligadas à arte. Sebastião Nascimento, 55, há 15 é dono do Sebo Vila Rica, no prédio. O gosto por objetos motivou a abertura do seu sebo. Sobre o Maletta, ele relata, inconformado: “era pra ser tombado, mas o governo não está nem aí”. No primeiro andar, impossível não citar

a Cantina do Lucas, inaugurada em 1962. Patrimônio Histórico e Cultural, em 9 de dezembro de 1997, teve no seu quadro de funcionários o garçom mais famoso do Edifício Maletta, o Sr. Olympio Perez Munhoz. Ele faleceu em 2003, aos 84 anos, e ficou conhecido pelo jeito irreverente com que tratava os clientes. No auge da Ditadura Militar, defendeu e escondeu vários amigos no sótão para que agentes do regime não os prendessem. Esquerdista confesso, ele foi símbolo de um período de repressão. O conjunto habitacional e comercial ícone do centro, entre as Avenidas Augusto de Lima e Rua da Bahia, foi imortalizado nas páginas do livro Maletta, do jornalista Paulinho Assunção. Frequentador assíduo, ele relata, em 87 páginas, sua relação com o prédio e os bares por onde passou, muitos deles citados nessa matéria. Em uma passagem de seu livro, ele diz: “a história do Edifício Maletta é uma superposição de imagens e acontecimentos, e cada um que venha a contá-la, cada qual que venha a recontála expressará uma versão pessoalíssima, intransferível, não raro contraditória, não raro incongruente, muitas vezes hiperbólica, exagerada, versão em muitos casos fictícia, em tantos outros heroica, deprimente, dolorida, eufemística e, também, à boca pequena, quase em segredo para não ferir as suscetibilidades do dia com os exageros (e ponha exageros nisso) cometidos na noite”. Juventino, dono do Bar Lua Nova, acrescenta: “quem não conhece o Maletta não conhece Belo Horizonte”.


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Texto: Moyara Benitez, Pablo Abranches e Vanderlan Ornelas Foto: Moyara Benitez Arte: Cyro Villela e Gabriel da Silva

DE GRANDE HOTEL A

ARCÂNGELO MALETTA Reportagem produzida para o Trabalho Interdisciplinar Dirigido 2 – turma de Jornalismo Multimídia, que tem como temática os Grupos Urbanos de Belo Horizonte. Blog – entrelinhasdomaletta.wordpress.com


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cidadania

LEITURA PARA

TODOS Texto: Victor Barboza Foto página 6: Juninho Mota/Agência Minas Fotos página 7: Victor Barboza Arte: Gabriel da Silva

500 deficientes visuais têm acesso à leitura em setor de Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa O segundo andar da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte, possui o Setor Braille, que, neste ano, completa 50 anos de existência. O setor possibilita o acesso à informação e à literatura para cerca de 500 usuários, além de contar com 400 voluntários que orientam deficientes visuais em pesquisas e leem livros ainda não disponíveis em modo adaptado (em Braille ou audiolivros). De acordo com Glicélio Ramos, deficiente visual e coordenador do Setor Braille desde julho de 2014, a leitura e o estudo podem aumentar a autoestima dos leitores. “Através da cultura e do aprendizado, os deficientes visuais se sentem inseridos e úteis na sociedade”, afirmou o coordenador.

Acessibilidade No local, são desenvolvidas atividades informativas e culturais, como Cine Braille - exibição de vídeo com audiodescrição; Clube de Leitura; Hora do Conto e da Leitura; Clube do Xadrez; palestras; grupos de estudos para concursos públicos, com os temas Português, Direito e Raciocínio Lógico; exposições acessíveis, visitas a diversos museus e outras atividades inclusivas.


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Sérgio Gomes Viana é deficiente visual, estudante de Direito e usuário do setor há oito anos. Para ele, o espaço é mais do que especial. “O curso de Direito, como todos os outros, exige muita leitura, então, como não existem livros de Direito em Braille, tenho que recorrer ao setor para estudar com os voluntários”, declarou o estudante. Para Viana, o deficiente visual é pouco lembrado. “Nossa cidade está engatinhando em termos de acessibilidade, cultura e educação, principalmente para os deficientes visuais”, avalia. De acordo com Ramos, na capital mineira, o setor é o único espaço que consegue fornecer informação e literatura aos cegos. “Acredito que a cidade está melhorando em termos de acessibilidade aos deficientes visuais, mas ainda está muito aquém do que poderia ser. Temos aqui no setor cerca de 2.500 a 3 mil títulos adaptados para esse tipo de público. Em toda a Biblioteca, temos cerca de 260 mil títulos. Talvez seja 2% ou 3% do material que temos disponível para as pessoas que enxergam que esteja adaptado para as pessoas que não enxergam”, comparou.

Alfabeto Braille estampado em uma das paredes do setor.

Ledores: leitores voluntários O Setor Braille conta com o apoio de voluntários, também chamados de “ledores”, que trabalham com leitura viva voz, transcrições de textos e gravações. De acordo com o coordenador do projeto, Glicélio Ramos, a maior demanda do setor é a leitura voltada para concurso público. “Estamos com grupos grandes estudando para esses concursos. Temos de 10 a 15 pessoas procurando o setor todos os dias para fazer esse tipo de estudo. Além disso, a procura por obras literárias em Braille e áudio vem crescendo”, avalia. Segundo a assessoria de comunicação da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, por meio do trabalho voluntário, foram feitos mil atendimentos em 2014. “Muitos visitantes descobrem que a biblioteca tem um setor braile, outros já ouviram falar do setor em algum momento e acaba vindo pedir informações. Falamos sobre o serviço dos ledores e muitos visitantes acabam se tornando voluntários aqui”, informa Ramos. Para a voluntária, Rejane Pereira, 58, a atividade de ledora traz a oportunidade de estudar e aprender mais. ”Sempre podemos ajudar com coisas que para nós são simples, mas que para eles são de grande valia. Trabalhei com um estudante, deficiente visual, que vinha de Nova Lima para a biblioteca, bem cedo, para estudar apenas 2 horas aqui no setor. Essa relação entre voluntário e o usuário do setor é muito rica e interessante”, explica a voluntária.

Glicélio Ramos, coordenador do Setor Braille: 400 voluntários

LUIZ DE BESSA: Escritor e servidor público português que nomeia a biblioteca desde 1961.

Para se tornar voluntário, é necessário comparecer ao setor e preencher um formulário próprio. Os voluntários são convidados a contribuir de acordo com a disponibilidade de tempo e demanda dos leitores. Para se cadastrar no Setor Braille, é necessário apresentar: • RG (Registro Geral). No caso de criança, trazer também o RG ou a certidão de nascimento do menor e do responsável. • Comprovante de residência recente. • Contribuição de R$ 3 (três reais).

Sérgio Gomes Viana, estudante de Direito e usuário do setor há 8 anos.


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O PORNÔ ALÉM DA PROJEÇÃO Parafilia, 12 horas de curtição, a rota e os códigos nos cinemas de pegação em BH Texto: Alex Bessas Fotos: Galleria dell’Accademia in Florence, Workshop Tourism & Culture e The Whirlwind Traveler Arte: Reinaldo Maximiano


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cultura Cinema. Com a internet, a pirataria, o Netflix e o Popcorn Time não é todo mundo que se dispõe a pagar coisa de R$ 15 para assistir um filme na telona. Aliás, antes mesmo da ascensão da web, já haviam minguado os cinemas de rua, concentrando, hoje, suas salas em shoppings. Sim, os blockbusters ainda arrastam multidões. O pornô, bem, o pornô também tem sua multidão de adeptos. Há, até mesmo, aqueles que dizem que a pornografia é o motor da internet e, se consumir putaria de casa é praxe comprovado pela força dos X-Videos, Pornohub e suas variações, há quem saia de casa para assistir o pornô em salas de cinema. E há algumas para esse propósito em Belo Horizonte. Se é difícil sair de casa para ver um blockbuster no cinema, então, para abandonar toda a privacidade e, na maioria das vezes, a gratuidade do pornô na internet e pagar para assistir um longa pornográfico na telona, com um monte de gente ao redor, imagina-se que a razão deva ser bem forte. Claro, tem quem vá assistir aquela enfadonha comédia romântica só pela esperança de conseguir uma boa foda. A diferença essencial é que no cines pornôs isso é um pouquinho mais óbvio. Conversamos com o calejado Senhor F*. e com o experimentado Antônio Carlos* para entender o que se passa nesse universo tão peculiar das salas de cinema. O Senhor F. não vive a querer ser Senhor X., não tem e nem sonha em ter olhos azuis e está muito certo sobre as suas vontades. Principalmente quando vai ao cinema pornô. “Sexo fácil e rápido, só”, pontua. Já Antônio Carlos usa óculos de grau com armação de metal dourada, camisa social xadrez e tem carinha de seminarista, embora seja ateu. Ele sai de casa para curtir uma sessão de pornô no telão motivado pela “estética ímpar dos filmes e sua linha narrativa consistente”. Mentira? Sim, “claro que é o sexo com várias pessoas”. Os rapazes comungam da predileção por uma mesma sala de cinema na capital mineira. Eles já frequentaram alguns cines privês e cabines eróticas na região central e elegeram, por unanimidade, a melhor sala de BH. Senhor F. explica que, apesar de gostar do Cine Regina, tem preguiça de ir até lá, optando, na maioria das vezes, pelo G World, que ganha pontos pelo bar e por estar melhor localizado: as salas ficam no contorno da praça Raul Soares, que é um conhecido point gay na noite de belohorizontina. “G World é o meu cinemão do meu tum tum”, completa Antônio Carlos.

“O cinemão

do meu

tum

tum” O G World tem porta de vidro duplex escuro, quase preto. Um cartaz velho anuncia que mulheres entram de graça de segunda a quinta-feira  — pelo estado de conservação do cartaz publicitário, mulheres devem ter entrada gratuita há um bom tempo. O lugar é decorado em preto e vermelho e DVDs de filmes pornôs estão expostos e à venda, afinal, ninguém deve procurar filmes da Disney nesse lugar. Uma catraca divide os espaços: antes dela, duas mesas, iluminação baixa, um banheiro sem tranca na porta e com marcas de sola de sapato na louça branca do vaso. Não é preciso pagar para ficar ali, mas pelo menos consuma algo. A garrafa de Brahma, por exemplo, custa R$ 7, mesmo preço dos bares da redondeza. Depois da catraca, o horizonte é mais extenso e, para o Senhor F. e Antônio Carlos, excitante: lá estão as salas de cinema. Para chegar a elas, deixe R$ 20, isso de segunda a quarta-feira, ou R$ 22, de quinta até domingo, com o atendente do bar, que é o mesmo responsável pela catraca. Ele pode ser um homem de baixa estatura, gordinho e com barba grisalha mal feita, ou mesmo uma mulher, também baixinha, e magra, com cabelos pretos na altura dos ombros; em comum, eles são sisudos e monossilábicos. Feito o pagamento, escolha entre a sala de filmes hétero no primeiro piso ou suba degraus para ver um pornô gay no segundo. Então, existe sala de cinema para héteros? “O quê? Se existe cinema para hétero? Me amarrota que eu tô passada”, debocha Antônio Carlos. Há duas escadas que dão acesso às salas, uma externa  —  que vai direto ao segundo andar  —  e outra que liga as duas. Assim, dá até pra sacar qual é o ambiente mais movimentado sem ter que dar muitas voltas. Todas as paredes são pintadas de preto

fosco e quase não há luz, nem mesmo nas escadas. Na verdade, o único lugar mais claro são os banheiros, com suas lâmpadas incandescentes e azulejos brancos. Bem, se fossem escuros não daria para ver, por exemplo, que um dos mictórios estava entupido, ostentando um restinho de mijo naquela louça clara. Cada sala de cinema tem um pequeno cômodo adjacente, onde, nas palavras do lanterninha, “todo mundo fica mais à vontade”. Conhecidos como dark rooms, esses quartinhos possuem uma bancada, uma espécie de assento, que também serve para se deitar, e há uma abertura retangular na parede, permitindo que, mesmo de lá, você consiga ver o filme. Afinal, você pagou pra isso, não foi? Uma das vantagens do G World é que o bar é desvinculado do cinema, explica o Senhor F. Ele já até levou caras héteros para lá. “Uma vez fui só com amigos héteros. Eles ficaram no bar externo bebendo e eu entrei, foi jogo rápido, coisa de duas horas”, relembra. Ele pontua que costuma ir com amigos, mas prefere não acompanhar turmas muito grandes. “Não gosto de levar muita gente. Vira uma turminha, fica chato e até espanta os caras, porque turma em um cine pornô, que tem tudo quanto é tipo de homem, vira zoeira”, justifica. Antônio Carlos também é habituado a frequentar os cines sozinho, mas, às vezes, vai de “mulão”, pra se divertir, ou pra fazer gangbangs. “É quando um passivo é penetrado por vários ativos”, explica.


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cultura

horas de

cinema

Como toda pessoa muito ocupada para uma sessão de cinema durante o dia, como todo assalariado que tem o computador do trabalho bloqueado para palavras de baixo calão ou de cunho sexual, Senhor F. e Antônio Carlos costumam ir ao cinema e consumir pornografia, à noite ou na madrugada. A diferença é que eles fazem as duas coisas juntas. Numa dessas idas, o Senhor F. chegou à marca de 12 horas dentro de um cine privê. Mas calma, não foi tão louco como se imagina. “Cheguei seis da manhã de um domingo e saí seis da tarde. Mas quero deixar claro que não passei 12 horas transando: eu dei uma boa dormida e meu amigo também. A gente foi acordado por volta das 11 horas por um segurança que queria fechar a conta do bar, porque ia ter mudança de turno. O cine estava vazio e não queríamos sair, pois estava de dia e a praça Raul Soares estava movimentada. A gente foi ficando lá, afinal a entrada nos dá o direito de ficar lá até 24 horas”, explica. O relato deve frustrar as expectativas de alguns leitores e dar certo alívio para outros. Para surpresa do Senhor F., “entre meio-dia e uma hora da tarde teve movimento, até mais que de madrugada”. Sinal que a pausa do almoço pode significar mais que um PF? Que pode até ser bem mais prazerosa que as idas às agências bancárias pra regularizar a sua situação financeira? Questionamentos à parte, um fato notável é a mudança de perfil dos frequentadores, muito diferente da galera da madrugada. A turma do vespertino está na casa dos 30, já no turno da noite tem mais quarentões e jovens recém saídos da adolescência, que têm uns 18, 20 anos. As 12 horas no cinema renderam até um namoro para o amigo do Senhor F.  — que,  infelizmente, durou menos de dois meses.

Quem sai em busca de sexo fácil e rápido e/ou com várias pessoas quer um lugar onde isso possa acontecer. É para isso que servem as cabines eróticas. Há, inclusive, algumas só para héteros, que ficam no centro de BH. Entretanto, a maior parte é mista. Na verdade, “ninguém nem mesmo pergunta sobre a sua sexualidade: você só compra a ficha e vai para onde quer. Nesses estabelecimentos, há cabines que têm e outras que não têm glory hole, que é um buraco redondo que você pode deixar aberto ou fechado”, explica o Senhor F. O orifício na parede nesse tipo de lugar é autoexplicativo, portanto, é desnecessário entrar em detalhes. Outra opção de pegação são os corredores com pouca luz. “Os caras ficam lá se oferecendo, e outros mais tímidos deixam a porta da sua cabine entreaberta e tal”, descreve e em seguida dá o alerta: “Nesses espaços você tem que ficar alerta, tem muito mão leve. Já roubaram um celular meu, isso em 2011, nem percebi. Não voltei mais em nenhuma. Nos cines, você tem guarda-volume e só paga o que consome quando sai”.

“Só não se vire no bar,

porque também são

necessários

limites”

Nos cinemas, existe um código de pegação. Dentro da salas, a escolha das poltronas é estratégica: se você ficar nas últimas fileiras, nas cadeiras que ficam perto da parede, significa que quer algo; no meio é um talvez; nas primeiras, o sinal é de “não estou a fim”. O mais comum dentro da sala é que o espectador fique apenas (apenas?) na punheta ou, no máximo, no sexo oral. “Já vi gente transando nas cadeiras, mas isso é bem atípico”, comenta o experiente Senhor F. Outro espaço para os mesmos fins são os darks rooms. “Lá funciona assim: se quiser ficar só com um cara, você não deixa, literalmente, ninguém te tocar; quando você quer todos é só seguir o fluxo”. Fácil assim, mas atenção: “sempre fique no controle da situação, se juntar homens demais saia imediatamente! Ninguém vai te estuprar, mas vira uma bagunça e é escuro, você não vê nada”, alerta. E se nenhum desses lugares servir, você ainda tem os banheiros, que, nas palavras do Senhor F., “são um nojo, o cheiro é terrível”. Já Antônio Carlos, ora, não tem muito problema com o “onde”, pois o foco está mais na pegação mesmo. “Bem, você se vira na cadeira, ou nas paredes, ou nos dark rooms, ou nos banheiros. Só não se vire no bar, porque também são necessários limites…”, resume.


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cultura Nesse vale tudo, duas situações foram classificadas como bizarras pelo Senhor F. “Uma foi quando um cara me entregou uma luva descartável: ele queria ser fistado  —  que é literalmente colocar o punho dentro do ânus do sujeito. Fiquei assustado, devolvi a luva e vazei”, garante. “Na outra, estava com um cara e fomos para o dark. Lá, ele parou do nada e disse que se eu quisesse continuar tinha que pagar 50 conto. Falou de forma agressiva, eu fiquei assustado. Disse que não ia pagar por algo que tenho de graça. Ele não gostou, mas foi retirado do cinema porque alguém o denunciou lá na portaria”. Resumindo: ir a um lugar onde o sexo acontece natural e gratuitamente para dar uma de michê não é uma boa ideia. Ser agressivo, então, é melhor nem cogitar. “O cinema é mais seguro, por isso todo mundo lá se vigia e se ajuda”, assegura. Quando a conversa é com Antônio Carlos, as definições de bizarro devem ser atualizadas  — o alerta é do próprio. “Teve um cara que mijou na minha boca, o que foi bem interessante. Fazia algum tempo que ninguém fazia isso, vie de merde”, rememora saudoso. “Teve um que me botou pra chupar ele, enquanto o cara que estava chupando ele passou a me chupar. Ele era agressivo, foi muito bom”, explica. Por fim, e não menos incomum: “uma vez rolou um gangbang. De repente, eu estava com duas pirocas na boca e tinha uma de cotonete. Parece que as pessoas não entendem que orelha não é muito boa pra chupar”. Acabou? Não. “O mais desagradável é quando gozam no meu olho. Pô, eu tenho 1,75 m, tem muito espaço pra gozar que não seja meu olho”.

Use

camisinha

Com tantas possibilidades transantes é esperado que, no mínimo, os cinemas tenham alguma política de prevenção as DSTs. E tem! A política se resume a uma placa de “use camisinha” e à venda delas no local. “Quem vai nesses locais tem que ser cuidadoso. Como já disse, dá de tudo, então: camisinha no sexo oral e anal”, aconselha o Senhor F. Ele, no passado, chegou a fazer sexo sem usar o preservativo e depõe sobre a aflição que foi esperar o resultado do teste de HIV. Que fique claro: ele nunca contraiu nenhuma DST e nem pretende.

“Se eu quisesse

continuar

tinha que pagar

50 conto”

*O nome do Senhor F. não começa com a letra F e ele não é um senhor. O pseudônimo rolou durante a redação ouvindo essa música dos Mutantes. *Antônio Carlos também é um nome fictício e só foi usado por sua sonoridade cair bem ao texto.

contramao.una.br Veja o Mapa da Pegação Dentro da Sala de Cinema e a Rota dos Cines Pornôs de BH, no Google Maps, por Franciele Carvalho.


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cultura

MÚSICA MINEIRA PAUTADA PELO AUTORAL Texto:Gabriel da Silva Arte: Gabriel da Silva

Ledjembergs

Foto: Carlos Henrique Reinesch

Artistas de Belo-Horizonte figuram cenário musical independente com obras próprias. Instrumentos musicais variados, microfones, talento, dedicação e, no mínimo, um fundo de garagem. Esses elementos, essenciais para se produzir música, são indispensáveis para que bandas se formem e cantores ganhem identidade. Em Belo Horizonte, com os festivais de música e casas de show que recebem artistas autorais, esse cenário tem se tornado cada vez mais animador. A recém-criada A Autêntica, localizada na região centro-sul da capital mineira, preza por apresentar ao público os músicos que produzem seu próprio conteúdo. “O objetivo é ter um espaço em BH onde o público possa sair pra se divertir e conhecer novos sons que estão acontecendo na cidade, no país e no mundo”, explica o sócio-proprietário da casa, Bernardo Dias. Indagado sobre a existência de espaços suficientes que abriguem artistas autorais, Dias, que também é músico, diz que essa falta é a demanda em aberto que a A Autêntica trabalha. “A consequência disso é que criamos para os artistas uma nova possibilidade de se apresentarem e encontrarem um público sedento por novidade”.

Apesar de o sucesso com o grande público ser centralizado em poucos artistas, a representatividade na música e o reconhecimento são importantes para o autoral. “Por mais que apenas 1/10 dos artistas consiga chegar ao ápice da carreira musical, toda elevação na produção cultural enriquece a cultura local, além de empresas que vivem disso, como estúdios, escolas de música, etc.”, declara Diane Paschoal (Dihleeall), publicitária e produtora visual. Para ela, “há bandas e projetos artísticos acontecendo em garagens, colégios e faculdades, e, com isso, mais pessoas têm contato com a arte”. “Isso é esplêndido: todo país de primeiro mundo tem aulas de música e teatro no high school, completa. A cena musical belo-horizontina ainda é movimentada por coletivos e projetos culturais que incentivam a produção artística independente. O Variável 5, por exemplo, funciona como plataforma de financiamento

coletivo

(crowdfunding)

assim como a Benfeitoria, que estimula uma cultura mais colaborativa. O Retalho Cult, projeto de artistas da cidade, também é figura importante nesse meio.

A banda Ledjembergs, que figura a cena musical mineira, é formada pelos amigos Lucas Ucá (voz, violão e Ukulelê), Adriano Queiroga (voz, guitarra e violão) e Rafael Costa Val (guitarra e bandolim). Eles, que já participaram da abertura de shows como o da banda canadense Simple Plan, em BH, já ganharam visibilidade nacional com uma versão livre das músicas Construção e Deus lhe pague, de Chico Buarque, que, inclusive, compartilhou em suas redes. Em entrevista, os músicos afirmaram que “ter uma banda independente (e autoral) é muito bom, mas ao mesmo tempo é um pouco complicado pela questão dos recursos”. “Tem que ter um trabalho maior, um afinco maior, um esmero maior em relação às produções porque, se você quiser entrar para o mercado, você tem que ter um produto de qualidade, tanto com vídeos, gravações, etc. Esse é o grande desafio: gerar esses recursos e tentar buscá-los fazendo shows, parcerias, colaborações”, declara Adriano Queiroga.


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cultura

Foto: Rafael Sandim

Foto: Rafael Sandim

Site Retalho Cult é relançado Idealizado por Tiago Tereza, Luísa Gontijo e Luan Nobat, o site Retalho Cult foi relançado no último dia 1º de junho e é uma ferramenta para a difusão cultural e apoio a artistas dos mais variados segmentos. O CONTRAMÃO entrevistou Luísa Gontijo, fotógrafa, musicista, videomaker, produtora cultural e historiadora.

Nobat Luan Nobat, citado anteriormente como um dos idealizadores do site Retalho Cult, é músico e já tem muito tempo de estrada. Prestes a lançar o álbum O Novato, que conta com parcerias como, as de Daniel Nunes, baterista da banda Constantina, e de Jonathan Tadeu, o cantor nos conta como enxerga o autoral num contexto belohorizontino. Perguntado sobre Belo Horizonte estar criando espaços para que artistas independentes se apresentem, Nobat destaca que “nos dois últimos anos, foram várias e várias casas que surgiram”. “Isso inflama o cenário independente inteiro, e não somente oferece espaço para os artistas daqui, como possibilita artistas de outros lugares virem para cá e se conectarem e conhecerem a cena belo-horizontina”, completa. Para o cantor, “a música autoral disponibiliza para as outras pessoas uma parte do seu universo, da sua cabeça”. “É uma maneira de conversar muito ampla, muito justa e muito honesta. A música independente tem essa característica mais visceral porque ela não tem amarras, não tem compromissos com estruturas organizacionais. Tem uma avenida gigantesca para você desfilar todas suas ideias, criatividade e toda sua vontade artística”.

LEIA NA ÍNTEGRA EM NOSSO SITE

Foto: Alexandre Costa

Aldan Marcus Vinícius Evaristo (guitarra e voz), Davi Brêtas (guitarra), Bruno Carlos (bateria e voz) e Fernando Bones (baixo e voz) formam, desde 2006, a banda Aldan. Esse nome, segundo Marcus Vinícius, foi dado pelos integrantes fazendo uma referência ao medicamento Haldol, utilizado no tratamento de problemas psquiátricos. A banda lançou recentemente o clipe da música Capote, feito em parceria com o Jonathan Tadeu. Capote abusa de

TODAS AS ENTREVISTAS COMPLETAS EM ÁUDIO, VÍDEO E TEXTO, ESTÃO EM NOSSO SITE:

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“O grande objetivo do Retalho Cult é e sempre foi registrar e dar luz às manifestações artísticas, afim de promovê-las, destacá-las e, consequentemente, fomentá-las.”

efeitos psicodélicos de áudio e vídeo e, apresentando aos apreciadores desse tipo de música uma nova fase da Aldan, chega com o lançamento de um novo álbum.

O vocalista, Marcus Vinícius, em entrevista, afirma que produzir música autoral em BH é desafiante. “Há vários desafios: a relação com a imprensa, com as casas (de show), etc. Acho que a gente já avançou muito no que se diz respeito às conversas entre bandas e artistas. Hoje em dia, os artistas se conhecem”. Indagado sobre qual era o papel que a arte independente exerce sobre as pessoas, Marcus diz que a arte é responsável por nos dar dimensão do que é o mundo. “Para que colocar nossa cara na capa de um disco sendo que pode ter uma obra de arte ali?”, finaliza.


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DO OIAPOQUE AO CHUÍ É UMA QUESTÃO DE

METROS Texto: Alex Bessas Foto: Diogo Fabrin Arte: Gabriel da Silva

Com 20 anos de Oiapoque, Sandra Regina vende garrafinhas de água, atende cerca de 150 carros, por dia, e trabalha até 13 horas de pé. Reportagem produzida para o Trabalho Interdisciplinar Dirigido 5, que tem como temática o cotidiano das ruas de BH. Lucas Von, Alexandre Breja, Diogo Fabrin, Alex Bessas e Franciele Carvalho. Belo Horizonte, junho de 2015.


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cidades “Aqui para você ir do Oiapoque ao Chuí é só atravessar a avenida”, brinca dona Regina, enquanto calcula e devolve o troco para uma cliente do seu estacionamento. Há 20 anos, a empresária transformou o galpão onde funcionava uma serralheria em um depósito de galões d’água. “A gente era um dos únicos distribuidores em BH. Buffets, hospitais, hotéis compravam com a gente. Até que foi dando esse enxame de fornecedores de água. Aí eu comecei a diversificar”, recorda. A oportunidade veio com a fundação do shopping Oiapoque. “Tem uns 11 anos que abri o estacionamento. Eu já parava carros aqui, mas era para os comerciantes das ruas próximas. Agora que ficou essa loucura de muitos carros, dessa rotatividade”. Ainda hoje, dona Regina vende garrafinhas de água mineral. A garagem e comércio de água ganhou o nome de Chuí e fica ao lado do shopping Xavantes e em frente ao Oiapoque, de onde vêm seus principais clientes. Logo na entrada, está seu escritório, resumido a uma bancada simples, ornada pelas imagens de santos, tirinhas pró Atlético Mineiro recortadas de jornais e legendas indicando seus votos na última eleição. Católica, atleticana até no voto e vaidosa, Sandra Regina Alves Costa é uma sexagenária que mantém seus cabelos tingidos em um tom de castanho escuro. Usa quatro brincos, dois nos lóbulos de cada orelha e um cordão discreto com um pequeno crucifixo dourado. Os óculos de grau com armação Rayban descem e sobem sempre que ela precisa tomar nota de algum carro que entre ou que saia da garagem. Na parede, um espelho e dois relógios marcando a mesma hora. “É que se a pilha de um acabar, tenho o outro para consultar”, explica.

Aproximadamente 5 mil pessoas circulam todos os dias na avenida Oiapoque. Nos sábados, esse número chega a 10 mil. Somadas duas décadas trabalhando na avenida Oiapoque, dona Regina é testemunha do boom que a fundação do shopping Oi levou para a avenida. “Antes haviam os camelôs, já tinha comércio.

Eu vendia água principalmente para esses comerciantes, e alguns estacionavam seus carros aqui. Mas o movimento não era tão grande”. Agora é comum ver a placa de lotado no portão. Comportando, no máximo, 22 carros, cerca de 150 passam pelo galpão todos os dias. O fluxo de clientes é tão intenso que Regina praticamente não se senta, trabalhando até 13 horas seguidas de pé, segunda a segunda. A administradora se dá folgas ocasionais. “Se o shopping não abrir, não adianta vim não, sabe?”. É o que acontece todo carnaval, afora isso, há 20 anos ela não se permite merecidas férias. “O aluguel aqui é muito alto”, justifica o pouco descanso e atesta: “eu gosto dessa correria”. Regina intercala a conversa com o atendimento aos clientes. Sua fala é constantemente interrompida. Ela anota a placa e o horário dos carros que entram. Volta à conversa sem perder o fio da meada. Quando um carro sai, é Regina quem procura pela sua ficha, calcula o valor a ser pago, recebe o dinheiro e devolve o troco para o cliente. Tudo sem lançar mão de uma calculadora. E em seguida retoma a conversa do ponto em que tinha parado. Se discorre mais uma história sobre a avenida, passeia os olhos pelo galpão para deixar tudo em ordem: diz para um ajudante colocar a placa de lotado, outrora informa que não cabem mais caminhonetes e que agora já pode liberar a entrada de mais dois carros. “Tem que manter o raciocínio rápido, é bom para não ter Alzheimer”, se gaba. Há tanto tempo na avenida, a empresária é velha conhecida dos lojistas da região. Ela se orgulha de ter clientes fiéis, gente que ela trata por nome: “Metade deles é aqui de Belo Horizonte, o resto é do interior. Tem muito comerciante do interior que vem fazer compras aqui”. Amigos também são os policiais militares, que sempre passam por lá para beber água ou usar o banheiro. “Polícia eu conheço, eu brinco que aqui é o QG (Quartel General) deles. A gente dá um suporte, né?”. Dos ambulantes, conhece só alguns. “Eles mudaram muito, porque a fiscalização fica sempre em cima, né?”, expõe.

“Tem que manter o raciocínio rápido. É bom para não ter Alzheimer.”

No dia dos namorados, os fiscais da Prefeitura de BH e policiais militares resolveram deixar o amor de lado para “comemorar” os 240 anos da PM. “Segurança não tem em lugar nenhum, se você olhar bem. Aqui o policiamento é muito bom. 100% de segurança não existe em lugar nenhum, né? Mas aqui tem os guardas, eles estão sempre por aqui”, elogia dona Regina. Apesar do policiamento, ela diz que há pelo menos dois crimes muito comuns na avenida. “Esse pessoal que pega celular, correntinha é meio complicado, né? É o que mais tem: ladrão de correntinha, ladrão de celular”, alerta. Consciente dos crimes que mais acontecem na região, a empresária procura aconselhar seus clientes a ficarem atentos e precavidos. “Quando vem gente aqui que eu vejo que tá com correntinha, eu falo: tira a correntinha, não atende o celular na rua”. Com ela, no entanto, ninguém mexe. “Eles já me conhecem né? Com a gente aqui eles não mexem não”, diz sorridente.

Há 18 anos trabalhando na regional, sendo que em nove estava na inteligência da Polícia Militar, cabo Filho falou sobre as principais ocorrências na Avenida Oiapoque e fez um diagnóstico do tráfico de entorpecentes.


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Do norte eu cheguei, e nesse lugar vislumbrei um Belo Horizonte. Na correria do dia a dia eu e muitos passamos, rápidos, para outros lugares ou em busca daquilo e daquela, daquele carinho. Tudo começa cedo. Os carros e ônibus andam lentos e barulhentos o dia inteiro, competindo com a melhor promoção. Sonhos e devaneios passageiros que se cortam, em diversas tribos e rostos. O nome me carrega de volta para casa. Me faz lembrar do ar quente e úmido. Onde eu nasci, passa um rio. Esse rio não corre onde estou, mas é nessa diferente Oiapoque que encontro um pouco das lembranças do que o norte ainda há de guarda.

ALEXANDRE RODRIGUES


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