Olhares Literários - Uma Antologia - Volume 2

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OLHARES LITERÁRIOS - Uma Antologia Volume 2


Organizadores Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo Prof ª. Dr ª. Suyanne Tolentino de Souza

OLHARES LITERÁRIOS Uma Antologia volume 2


©2021, Paulo Roberto Ferreira de Camargo, Suyanne Tolentino de Souza 2021, Pulp Edições Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa por escrito da Editora. Projeto Interdisciplinar dos Cursos de Jornalismo, Design Gráfico e Letras das Escolas de Belas Artes e de Educação e Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR PULP EDIÇÕES Reitor Waldemiro Gremski Vice-Reitor Vidal Martins Pró-Reitora de Graduação Renata Werneck Decana da Escola de Belas Artes Angela Leitão Decano da Escola de Educação e Humanidades Ericson Falabretti Conselho Editorial - Graduação em Jornalismo Prof.ª Ms. Celina do Rocio Paz Alvetti Prof.ª Ms. Lenise Aubrift Klenk Prof.ª Ms. Luana Assis Navarro Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo Prof. Ms. Rafael de Oliveira Andrade Prof. Ms. Renan Colombo Prof.ª Dr.ª Suyanne Tolentino de Souza

Edição Prof.ª Drª Rosane de Mello Santo Nicola Edição de arte Yasmin Mayer Equipe de revisores Amabille Isabel dos Santos Mattozo Amanda Januário Ana Caroline Hunzicker Ferreira Bruna de Oliveira Gomes Gabriele Seguro Gustavo Ferreira Mazepa Jeniffer Gabriele Cardoso da Cruz Mariana de Campos Camargo Willian Freitas Rodrigues Capa e projeto gráfico Yasmin Mayer Coordenação de Diagramação Paulo D’Assumpção Zaniol e Ericson Straub Diagramadora Yasmin Mayer


Escrito e projetado graficamente por mulheres.



SUMÁRIO 8-9

Apresentação

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Prefácio

12 - 61

I.Mundo Invisível:

Histórias da Pandemia 13

Brilhantes como o sol e importantes como a água Bruna Colmann

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Aviões de papel ainda voam - Brunna Gabardo

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Entre a espera e a triagem - Gabrielly Dering

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Na ponta do nariz - Isadora Deip

33

A militância como ponte entre o campo e a cidade Isadora Mendes

38

O ano da enfermagem - Jéssica Pretto

43

Vendedor da pipoca e do mundo cor-de-rosa - Laura Luzzi

48

Sufocada - Rebeca Trevizani

52

Encontros da fé em tempos de pandemia - Stephanie Spredemann Friesen

57

Flores de história desabrocham no campo de saudade - Sabrina de Ramos


62 - 122

II.Perfis

63

O que se passa na cama ao lado - Laura Luzzi

69

Pelo direito de estudar - Gabrielly Dering

75

Horizontes de uma vida vertical - Lorena Rohrich Ferreira

81

Todos os caminhos levam à sala de aula - Mariana Scavassin

87

Educando viado - Sarah Guilhermo

94

Ser humano e muito mais - Bruna Colmann

99

Lá vem o noivo... - Hellena Cesar Oliveira

105

Não é o que a vida faz com você, é o que você faz com ela - Raissa Micheluzzi Ferreira

112

O doce som de sua voz - Stephanie Spredemann Friesen

118

Uma vida bem vivida - Jéssica Pretto


123 - 182

III.Gonzo

124

A nova Boca Maldita - Brunna Gabardo

131

Ágora curitibana - Isadora Deip

138

Uma manhã chuvosa no Mercado Municipal - Jessica Pretto

143

Bike Night: pedais de um cardume de ferro - Lorena Rohrich Ferreira

149

Novos olhares por velhos caminhos - Mariana Scavassin

154

Com vista para o mar e as montanhas - Nathalia Miguel Brum

158

Tesouros escondidos - Rebeca Trevizani

163

Uma festa nada tradicional no Largo da Ordem Sabrina de Ramos

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Curitibano é frio? Nem tanto! - Stephanie Spredemann Friesen

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Com cheirinho de família - Laura Luzzi


APRESENTAÇÃO Escrever a apresentação de um livro é muito bom, e a do segundo, da mesma coletânea, é ainda melhor. Mostra que nosso trabalho se consolida e que o ato de contar histórias, que é a essência da profissão do jornalista, se faz cada vez mais necessário. Esta obra, produzida na disciplina de Jornalismo Literário do Curso de Jornalismo da PUCPR, traz a construção de narrativas com um tratamento estético da linguagem que se presta a discursos humanos, permitindo-nos ler o outro por meio de textos profundos e, com um olhar delicado, trazer histórias de vida. E como é bom poder lê-las e conhecer pessoas, histórias, “o que o outro tem para dizer” neste contexto que passamos em 2020 e que se alastra em 2021! Momentos difíceis que precisam ser ouvidos, escutados, contados, relatados, para que possamos saber um pouco mais sobre o mundo e para que o mundo possa conhecer um pouco da escrita dessas futuras jornalistas que têm muito talento. Aliás, essa é uma informação que destacamos nesta obra: temos apenas estudantes mulheres na autoria e na edição gráfica. Já na edição de linguagem e de conteúdo desta obra, baseados nas práticas sociais do mundo do trabalho, estudantes de curso de Letras interagiram, nos papéis de preparadores de originais e revisores de provas, com os estudantes de Jornalismo, como autores, e o de Design Gráfico, como criador do projeto gráfico e diagramador. E, além de revisão de superfície de texto (grafia e aspectos gramaticais), eles aprenderam aspectos discursivos de reportagem e crônica jornalística, identificaram sua atuação e o limite de intervenção, por meio do diálogo com o autor para a solução dos problemas de edição. Paralelamente, os diálogos entre os professores dos três cursos se tornaram frequentes, ampliando-se os conhecimentos sobre a atividade profissional de editoração e edição da cadeia produtiva do livro. Essa perspectiva da formação interprofissional na educação superior faz mais sentido, pois rompe com a centralidade em disciplinas e perfis profissionais específicos, para preparar revisores que atuarão com autores e diagramadores, e vice-versa. No interprofissionalismo, é possível formar melhores profissionais porque aprendem desde a formação inicial a atuar e compartilhar com um parceiro de profissão. Unir conhecimentos de áreas afins em verdadeira integra-


ção de estudantes e professores aproximou a todos de um resultado melhor e mais completo. Dito de outra forma, essa integração possibilitou a cocriação para que fosse possível atingir um resultado impecável de maneira ágil, integrada com conhecimentos de alto nível e estrategicamente mais econômica. A concepção visual da obra é fruto da criatividade, inquietude e interferência captadas nas discussões e reuniões com as áreas envolvidas. Fazendo parte desse núcleo interprofissional acadêmico, entende-se que os serviços que têm por objetivo a comunicação podem e devem inspirar o estudante para um conhecimento de qualidade entre áreas e prepará-lo como profissional do concorrido ambiente de negócios atual. E foi assim, nesse cenário de busca, de fazer diferente, de se aproximar do outro na distância, que consolidamos uma parceria ainda maior, que foi além da sala de aula. Esta obra que você lê agora, foi feita por muitas mãos e trouxe um aprendizado singular. Estudantes de três cursos – Jornalismo, Letras e Design –, de duas escolas, Belas Artes e Educação e Humanidades, com a colaboração de professores e coordenadores, entenderam que, por meio da relação entre as pessoas e as áreas de conhecimentos, é possível fazer projetos incríveis. Essa integração foi fantástica e o resultado está em suas mãos ou em alguma tela que você lê agora. Pelos belos encontros e pelas boas leituras! Prof. Luiz Fernando Fonseca Kasprzak Coordenador do Curso de Design da PUCPR

Prof.ª Rosane de Mello Santo Nicola Professora do Curso de Letras da PUCPR

Prof.ª Suyanne Tolentino de Souza

Coordenadora do Curso de Jornalismo da PUCPR

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Apresentação


PREFÁCIO Olhares Literários: uma Antologia Vol. II dá sequência a uma experiência didática intensa e desafiadora, iniciada em 2019, na disciplina de Jornalismo Literário que ministro aos alunos do quarto período do curso de Jornalismo da PUCPR. Naquele ano, foram produzidos os textos integrantes do livro inicial desta coleção, que agora chega a um segundo tomo.Trata-se de uma reunião das melhores reportagens produzidas pelos estudantes que cursaram a disciplina no segundo semestre de 2020 em circunstâncias muito diversas e adversas, em plena pandemia de Covid-19. Os alunos e as alunas, desta vez, foram desafiados não apenas a desenvolver novas habilidades jornalísticas, como observação atenta, escuta ativa, descrição de cenas, elaboração de personagens mais complexos e busca de pautas para além dos limites do factual. Devido às regras sanitárias e de distanciamento social, tiveram de buscar maneiras alternativas, e ainda mais criativas, de fazer suas apurações, sem se exporem à contaminação. Foram produzidos, como no primeiro volume, três ciclos de reportagens: “Mundo Invisível”, “Perfis” e “Gonzo”. No primeiro, cuja proposta didática é exercitar a escuta e a observação, eu os desafiei a elaborarem pautas a partir de um tema específico: “Histórias da Pandemia”. A ideia foi encontrar, no seu dia a dia, fatos ou situações que, de alguma forma, documentassem para a posteridade, em variados aspectos, a excepcionalidade e o drama do momento, humanizando-o e trazendo para perto dos leitores. Os relatos selecionados constituem um mosaico diverso e comovente sobre estes tempos pandêmicos. No segundo ciclo, denominado “Perfil”, a proposta foi agregar mais uma das habilidades essenciais à linguagem do jornalismo literário: o desenvolvimento de personagens, por meio de entrevistas em profundidade com os perfilados e as pessoas que com eles partilham o convívio. A dificuldade foi, sem que muitas vezes os encontros presenciais pudessem ocorrer, essas conversas não resultassem superficiais. Nos perfis, os indivíduos retratados, sejam eles anônimos ou célebres, foram capturados em toda a sua complexidade, o que demonstra o esforço redobrado dos futuros repórteres nessa missão de conhecê-los


mais a fundo e trazer as suas essências para os textos. No terceiro e último ciclo, intitulado “Gonzo”, os estudantes receberam pautas, com o objetivo de vivenciarem experiências de imersão participativa, assumindo o papel de narradores-repórteres, protagonistas de suas próprias reportagens. Em virtude da pandemia, foi necessária uma adequação da atividade, para que não fossem expostos a quaisquer situações de risco. Como o propósito era trazer aos textos o que vivenciaram na própria pele, escrevendo em primeira pessoa, os futuros jornalistas tiveram de buscar maneiras ainda mais criativas de mergulhar de forma segura nas pautas. Não foram poucos os percalços, acreditem. Um conselho editorial, formado por professores do curso de Jornalismo da PUCPR, foi incumbido de selecionar as dez melhores reportagens produzidas em cada ciclo, após minha pré-seleção no processo de correção. O resultado presente neste livro, que reúne 30 reportagens de fôlego, atesta a criatividade, o talento, a resiliência e a bravura de nossos estudantes, que, como bons jornalistas literários, foram à luta para registrar este momento único, e tão duro, na história recente da humanidade. Prof. Paulo Roberto Ferreira de Camargo

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Prefácio


I.Mundo Invisível: Histórias da Pandemia


Brilhantes como o sol e importantes como a água Bruna Colmann


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

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Bruna Colmann


Bancos que há pouco tempo recebiam fiéis, hoje acomodam majestosos raios solares que participam da missa, evidenciando a cor amadeirada dos assentos, que ganham grandes manchas de solidão durante a pandemia do novo coronavírus. A claridade invade as paredes indecisas entre os tons rosa e bege da capela anexa ao Convento das Irmãs Carmelitas de Nossa Senhora da Assunção e São José, localizado no bairro Guabirotuba, em Curitiba. Destemidos, os raios do sol adentram a pequena igreja, atravessando seus vitrais verdes, azuis e transparentes, que deixam de ser apenas vidraças para se tornarem o início de uma passarela. Percorrendo uma linha na diagonal, os feixes iluminados desfilam até o lado direito do altar enquanto a missa acontece. Eles enfrentam, sem medo, as grades de cor creme pastel com formas ovais interligadas, como se estivessem determinados a levar brilho e um pouco de vitamina D para as 18 Irmãs Carmelitas que vivem enclausuradas no mosteiro. Observado pelas freiras e em meio a sete vasos de plantas distribuídos pelo altar, o padre Rafael celebra a missa. O sacerdote espanhol, de 1,65m, cabelos grisalhos e olhos miúdos protegidos por um par de óculos sem aro, há 20 anos celebra missas no convento, partilhando sentimentos de familiaridade com as Irmãs Carmelitas. Segun15

Brilhantes como o sol e importantes como a água


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

do ele, não existem classes de cristãos, portanto a partilha da fé segue sendo a mesma, tanto entre as monjas quanto entre os leigos. As palavras ditas durante a celebração pelo padre com um sotaque castelhano decolam de suas cordas vocais e pousam nos atentos ouvidos de cada freira presente. Nos Ritos Eucarísticos, as freiras unem suas vozes em uníssono, delicado e amplo o suficiente para preencher a Capela. Após a missa, enquanto as irmãs realizam um momento de oração, Vera se levanta e vai até o altar. Delicadamente, ela apaga as duas velas posicionadas ao lado da mesa, uma à direita e outra à esquerda. Há 17 anos, a simpática mineira de cabelos castanho-claros, com corte chanel médio, vive na parte externa do convento, acompanhando as irmãs quando precisam sair, fazendo compras de mantimentos e auxiliando nas necessidades do local. Desde o dia 19 de março não ocorrem mais celebrações com público na capela. A diferença é notável: o pequeno espaço da igreja fica imenso com os bancos vazios. A Irmã Margarete de Jesus Ressuscitado sente falta de enxergar os fiéis por meio das grades e percebe um silêncio maior do que o comum, causado não apenas pela clausura. “A solidão ao nosso redor aumentou. Parece que devemos preenchê-la com mais amor e oração.” Com uma voz que abraça cada ouvinte, olhos verdes que enxergam o coração e bochechas rosadas, a monja alterna seus tons de voz dependendo da seriedade de cada assunto. Seus planos, quando jovem, eram totalmente diferentes. “Eu queria fazer Direito, não sei por que eu queria fazer Direito”, comenta, rindo. Após conhecer mais sobre a vida contemplativa, os caminhos da sorridente Irmã Margarete foram modificados aos poucos, até chegarem ao Convento no Guabirotuba, lugar onde ela vive há 22 anos. O mosteiro de Nossa Senhora da Assunção e São José está completando seis décadas de fundação em 2020 e é um dos 56 conventos da ordem Carmelita no Brasil. O Carmelo possui princípios de uma vida fraterna em comunidade, juntamente à oração, contemplação, silêncio e solidão. Os pioneiros dos Carmelitas Descalços foram Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, que possuem imagens representadas no altar da pequena capela curitibana. Santa Teresa de Jesus está à esquerda, São João da Cruz está à direita e uma imagem de Jesus Crucificado está no centro. O convento possui aproximadamente 8.000 m² de silêncio 16

Bruna Colmann


e paz. Ali, a mão direita se une à mão esquerda apenas para gestos de reverência ou oração. As palmas são evitadas, para que a calmaria do local seja mantida. Apesar disso, em dois momentos do dia a quietude pode ser flexibilizada. Entre os horários de orações, trabalhos manuais, ofícios, estudos e refeições, existem os recreios, momentos em que o silêncio pode ser interrompido e as palavras adormecidas podem despertar, encontrando pares para uma boa conversa. As atualidades também são mencionadas, para que todas saibam o que está acontecendo no mundo exterior. Os silenciosos raios solares e as barulhentas gotas de chuva no telhado não são formalmente convidados, mas, dependendo do dia, adentram o convento. Existem situações e momentos que acontecem independentemente de qualquer tipo de isolamento. Brilhantes como o sol e importantes como a água, as Irmãs Carmelitas seguem orando pelas dores do mundo, escutando as experiências externas e as vivenciando de acordo com seus limites. Para elas, isolamento não é fenômeno novo, mas uma forma de vida contemplativa muito antiga.

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Brilhantes como o sol e importantes como a água


Aviões de papel ainda voam Brunna Gabardo


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Aviões de papel ainda voam


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

A altura alcançada no que chamam de “voo de cruzeiro” é de 30 mil a 41 mil pés. Altitude na qual, graças à baixa densidade do ar, usa-se menor quantidade de combustível, sendo possível alcançar maior velocidade. O afastamento das pessoas dos bairros, das metrópoles, das avenidas, deveria ter surtido o mesmo efeito: quanto antes nos afastássemos, mais rápido voltaríamos a nos abraçar. Os aeroportos devem ter permanecido em um estranho vazio desde março. Por ora, as janelas dos condomínios, dos arranha-céus, e das casas tentam suprir a falta do toque tão perto do azul, aquele que apenas os aviões são capazes de proporcionar. A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária contabilizou 6.502.746 passageiros em 2019 no Aeroporto Afonso Pena. Foram 6.310.413 embarques e desembarques. Os números dessa chegada a Curitiba agora são bem mais sutis. Os toldos azuis não cobrem os carros. As vozes dos guias dos estacionamentos, antes numa cacofonia aconchegante, gritando os preços e mostrando o caminho para a corrida das pessoas contra o tempo, estão presas na garganta. Cinco cães descem a ladeira que leva à parte superior do aeroporto, perambulando onde antes os carros disputavam vagas. 20

Brunna Gabardo


Por trás de janelas seguras de um automóvel ou da estação tubo sentido Boqueirão, observadores encaram os corredores vazios, limpos até demais, bancos desocupados, portas completamente fechadas e escuras. Os relógios nas entradas, um para cada uma delas, ainda marcam as horas. O tempo ainda passa, agora sem pressa alguma. Os ponteiros indicam 15h17. A Infraero recomenda que vão aos aeroportos apenas passageiros. Por isso, escrevo de longe. Os rostos estão encobertos, distantes uns dos outros, sem despedidas e sem reencontros. Na região metropolitana de Curitiba, em São José dos Pinhais, próximo aos portos da região sul do país, como Paranaguá, Antonina, São Francisco do Sul e Itajaí, o Aeroporto Internacional de Curitiba se mostra de forma diferente. Os avisos de sinalização e orientação conversam em amarelo e vermelho, às vezes, azul. Faixas com medidas de contenção, avisos em áudio e vídeo nos painéis de voos, e diversos cartazes pelos terminais. Uma linguagem silenciosa de cuidado. No penúltimo domingo de agosto, quando os táxis brancos e azuis de São José dos Pinhais descansam, passa um rapaz com uma bagagem na mão e uma mala de viagem no chão. Ele também passa por duas funcionárias e as cumprimenta. Não se veem rostos, mas flores vermelhas nas janelas. Uma garotinha, de braços dados com a mãe, brinca nos bancos desocupados, e vai direto para a borda do pátio de onde é possível ver os aviões sendo preparados para os voos. Há apenas um avião visível e estático no solo. Ela permanece na ponta dos pés e olha para baixo, os tirando levemente do chão, sua mãe a chama e elas vão embora. Um dia depois, duas figuras se mostrariam à espreita da cabeceira do aeroporto. A rua, que mais parece uma faixa de pedestre, é, na realidade, orientação para os pilotos. Olhos curiosos e apaixonados por uma mesma coisa: aviões. Mas não há nenhum no céu. Cuidadosamente, um deles fotografa as máquinas em flagrante, e o outro, com cabelos grisalhos, tenta memorizar as asas, a cauda, o trem de pouso e o esqueleto da aeronave, como olhos de uma criança, espremendo-se para espiar os motores que começam a ranger, até os perder de vista no céu pela primeira vez. São entre 80 e 90 desenhos. Guido Saavedra, de 74 anos, é natural da Bolívia, e o caminho para o Brasil é o único trajeto pelos céus que recorda. Ele não se lembra da sensação de estar lá em cima. Desde então, os centímetros feitos em escalas encaixados dentro do 21

Aviões de papel ainda voam


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

papel foram a forma de manter sua paixão perto de seus olhos, e agora mais do que nunca, do toque. Com uma foto 15x21, ele transfere a exatidão dos traços para um papel A3. Vendo seus desenhos, mesmo que por uma tela de computador ou celular, é possível sentir o cheiro do grafite do lápis de cor. Uma nostalgia mecânica e automática. “Minha inspiração sempre foi meu filho. Ele traz as fotografias e eu faço esse movimento” - fazendo referência à reprodução quase que natural de suas linhas. Seu filho Diogo o lembra das janelas, que parecem portinholas, possibilitando ver os aviões pelo vidro, subindo e descendo. Apesar do leve Alzheimer, Guido se lembra dos bistrôs, dos pequenos restaurantes ou bares que, provavelmente, não devem ter freguesia alguma agora. “Quero me aprofundar nas técnicas, apesar de achar que eles são bem perfeitos, modéstia à parte”, conta com um sorriso. Pendurados na parede, os contornos coloridos e caprichados com precisão, já chamaram a atenção do próprio Aeroporto Afonso Pena, que compartilhou sua história como se fosse um lembrete da beleza daquelas máquinas que trazem e levam gente para todo canto. E que continuam, mesmo sem o medo de não chegar a tempo do voo, pois, não há multidões nas filas. Assim como não há beijos nem abraços. Guido desenha aviões para lembrar. Seja para trazer memórias que lhe escaparam com os anos, seja para se enxergar novamente cara a cara com cada detalhe que agora pertence ao papel, e não mais a ele. Agora seus novos desenhos serão lembranças de uma vez em que as pessoas permaneciam em suas casas e os aviões estavam vazios.

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Brunna Gabardo


Entre a espera e a triagem Gabrielly Dering


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

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Gabrielly Dering


Como em qualquer outro entardecer de temperaturas tipicamente julinas em Curitiba, o Hospital Evangélico Mackenzie opera com seu pronto atendimento cheio, no Sistema Único de Saúde (SUS). Ali, mais de 90% dos atendimentos totais – cerca de 83 mil em urgência e emergência até hoje – são realizados pelo sistema de saúde público e gratuito do governo. “Acompanhantes esperam fora, nessas cadeiras aí”, informa o senhor de pele morena e olhar austero, porteiro e segurança do pronto socorro, a todos que ali chegam: “Regra da casa, culpa do Covid.” A capital paranaense passa pelo pior momento de pandemia registrado: a bandeira que tremula com o vento gélido e brilha como o sol é de cor laranja. No Hospital, 97% dos leitos exclusivos para o coronavírus na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) estão ocupados; isso significa que só sobrou um leito. Assim, uma questão silenciosa paira entre os pacientes: quem será a pessoa suficientemente adoecida para ocupar a última vaga? Na sala de espera, a princípio, todos usam máscara. Alguns cumprem o distanciamento, anunciado como aviso fixado com fita adesiva nas cadeiras avermelhadas. Outros não têm opção, senão ficarem em pé ou burlarem as orientações e sentirem menos dor enquanto 25

Entre a espera e a triagem


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

aguardam. A falta de janelas e a luz artificial das lâmpadas fluorescentes gritam aos olhos. Há 40.329 casos de coronavírus confirmados no Estado. Segundo a assessoria de comunicação do hospital, quem precisa de atendimento em decorrência da doença, não passa por essa mesma recepção, sendo redirecionado para um local mais isolado. Após cerca de 20 minutos de espera para fazer uma ficha de cadastro, um homem, em uma cadeira de rodas e sem máscara, toma conta do local. “Alguém me atende, me dá medicação, pelo amor de Deus”, suplica esse homem. O rapaz pardo, de camiseta e bermuda surradas geme alto, se contorce e faz com que sua acompanhante o repreenda. “Doutor, me salva”, esbraveja ao avistar um jovem branco de jaleco passando com pressa. Quando ouve que precisa se acalmar, completa: “Vou te meter porrada quando estiver melhor, doutorzinho.” O médico não se afeta e segue seu caminho. Os olhares e sussurros curiosos cessam quando uma enfermeira o leva rapidamente para dentro da sala de atendimento e, quando o silêncio se instaura, uma senhora magra e de cabelos grisalhos exclama: “Imagina se eles engravidassem e tivessem que dar à luz.” As atendentes do cadastro acenam com a cabeça, concordando. O diretor-médico do hospital, Dr. Jean Francisco, já havia ressaltado que as semanas seriam desafiadoras: “Estamos prevendo um mês de julho difícil, a taxa de ocupação dos leitos está alta”, declarou por meio da assessoria de comunicação. Mais 20 minutos se passam e a voz robótica da televisão grudada a uma das paredes esbranquiçadas esganiça meu nome, indicando a triagem. Nenhum funcionário está na sala. Logo, um senhor de olhos azuis amedrontados e cabeça envolta por bandagens ensanguentadas adentra o lugar sem ser convocado pelo sistema na tevê. Preocupada, eu o questiono: “O senhor precisa de ajuda urgente, né? Vou ver se chamam a enfermeira”. No balcão de cadastro, nenhuma atendente parece surpresa ao ouvir a descrição do que ocorre no cômodo ao lado. Alguns pacientes se contorcem, o que se vê do rosto atrás das máscaras, ao observarem a poça de sangue que se forma no chão. Uma funcionária baixinha de uniforme azul se aproxima e coloca um pano aos pés do idoso para conter o líquido que escorria. Confuso com a situação e relatando pouco, me disse: “Nem sei o que aconteceu. Tava trabalhando mais cedo e caí, bati numa pedra. Só ficou ruim de tardezinha”. 26

Gabrielly Dering


E as vozes abafadas que observam a cena de longe, pela porta estreita da salinha, finalmente, têm um assunto que não seja o coronavírus. Os tecidos das bandagens e do pano passam de amarelo para escarlate; a tez e as mãos do senhor aflito mancham ao passo que o sangue escorre por sua cabeça, bochechas, queixo e, finalmente, cai no chão. O homem chega a ficar cerca de dez minutos em pé, aguardando, muito quieto e sem jeito com o que ali ocorre. Enfim, uma enfermeira de cabelos e olhos escuros se aproxima e o conduz com destreza para o atendimento, livrando-o dos olhares insólitos e da angústia. Para voltar a seu posto em frente ao computador na sala da triagem, a mulher desvia do sangue que ainda está por todo o piso e sinaliza para que eu faça o mesmo. Ao ser questionada, suspira: “Nada demais. É só mais uma noite de plantão. Me diga, você tem algum sintoma gripal?”

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Entre a espera e a triagem


Na ponta do nariz Isadora Deip


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Na ponta do nariz


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

É com uma camiseta do Hulk e um sorriso curioso no rosto que Elyzandro Bissoni, de 11 anos, atende à ligação por vídeo da palhaça Pipoca. Apesar da roupa que veste, o herói número um no coração do menino é o Flash. E Pipoca é tão veloz quanto seu ídolo ao tirar uma galinha de borracha das costas e usá-la como fantoche, dizendo que, para ela, não há ninguém como a Mulher-Maravilha. A palhaça exibe para a câmera uma tesoura tamanho família, alegando trabalhar como cabeleireira, e pergunta o que Elyzandro sonha em ser quando crescer, além de gente grande. O menino diz que quer ser veterinário. Eluana Bissoni, mãe de Elyzandro, acompanha as risadas do filho em uma alegria quase uníssona. O sorriso do garoto aos poucos se alonga e chega mais perto das orelhas. Eluana percebe então, a importância dos palhaços do Projeto Semeando Amor no dia de seu filho, que passava por um quadro de forte depressão. Ao contrário de Elyzandro, Sthefany Rodrigues, de 7 anos, ainda não sabe o que vai ser quando crescer. Talvez venha a usar um jaleco ou um blazer, mas no momento da videochamada com a palhaça Pipoca, ela mostra seu estilo usando um par de óculos cor-de-rosa e uma blusa com estampa de abacaxis. Quando perguntada sobre o que 30

Isadora Deip


deseja às pessoas, responde: — O bem — como se a resposta lhe fosse inata. Ryan dos Santos tem 4 anos, é de Francisco Beltrão, mas está em Curitiba para tratamento hospitalar. A palhaça Pipoca mostra para o menino sua lupa gigante, como se quisesse analisar de perto o motivo pelo qual ele parece tão tímido. Na hora de se despedir, é quase uma brincadeira de esconde-esconde, na qual Ryan é campeão. O Projeto Semeando Amor germinou em 2013, mas foi em 7 de julho de 2012 que a semente foi plantada, quando Letícia Witzki, a palhaça Pipoca, foi voluntária em um hospital pela primeira vez. Em 8 de julho de 2012, seu avô faleceu, quando tratava de um câncer. Seu Antônio Witzki, com um otimismo inato, foi a maior inspiração para que Letícia tomasse o voluntariado como um ministério em sua vida. Atualmente, o Semeando conta com 19 palhaços, uma equipe de apoio com 4 programadores, um social media e uma psicóloga. A faixa etária dos palhaços varia de 24 a 51 anos, e todos passaram por um treinamento inicial. Após um período de inscrições, são feitas entrevistas para explicar o funcionamento do projeto e conhecer o aspirante a voluntário, sua maneira de pensar e como entende a arte da palhaçaria. Todo mês são feitos os chamados “enclowntros”, reuniões para os palhaços aperfeiçoarem suas técnicas. Em 16 de agosto de 2020, Pipoca e mais seis palhaços fizeram uma videoconferência sobre as adaptações que precisariam ser feitas para a pandemia. Cartinhas para profissionais da saúde, fortalecimento das redes sociais, conversas com pacientes por meio de um robô. Esses foram alguns caminhos encontrados pelo Semeando para passar uma rasteira no COVID-19. Nas palavras de Aluísio Carvalho: “O show não pode parar”. Mais conhecido como palhaço Mocorongo, pertence à operação Sória, do Mato Grosso, e orientou a reunião do Semeando. — A visita online tem que ter muita troca. Tenho uma ficha com perguntas divertidas: “O que você gosta de comer? E beber? Faz xixi na cama ou no bidê?” Se eu perguntar para que time torce e responder Palmeiras, já entoo o hino do Corinthians. Vira aquela palhaçada. A psicóloga infantil Amanda Ferraz aponta o aumento da ansiedade infantil devido à perda da rotina escolar. Segundo ela, o entretenimento das videochamadas libera serotonina, o hormônio responsável pela felicidade. Já a psicóloga infantil Andressa Dalmarco explica que a quarentena afeta a socialização e a autoestima das crianças. 31

Na ponta do nariz


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

O Semeando sempre soube que contar piadas não é nem um centésimo do que a palhaçaria representa. Mas é propósito. Esse termo resume melhor o que fazem, e a pandemia deixou isso evidente. É na vulnerabilidade que palhaço se reinventa. Nas palavras de Mateus Carvalho, o palhaço Pipoco: — Quando acontece alguma coisa que te derruba, o que sobra daquilo tudo é você de verdade. Mesmo que tudo pare, o amor não pode parar. Esse é o legado que o Semeando Amor deseja deixar. Não importa o quão treinados para o sucesso sejamos. Blindados e maquiados. Podemos correr atrás de objetivos, mas que não nos esqueçamos de potencializar a humanidade. A máscara pode até encobrir o nariz e o sorriso do palhaço, mas jamais o despirá de seu otimismo. Talvez falte um pouco de palhaçaria em nossa vã filosofia...

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Isadora Deip


A militância como ponte entre o campo e a cidade Isadora Mendes


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

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Isadora Mendes


Antes das 9 horas do sábado, o dia de Everson Soares e Viviane Lara já começou. Os alimentos orgânicos produzidos pela Cooperativa Terra Livre são entregues na casa da família, no Xaxim, e todos organizados onde, em dias normais, é a sala de estar. Num primeiro momento, a organização na residência tinha sido feita improvisadamente. Colocaram as caixas de alimentos no chão, mas, após alguns meses, a cada sábado aprendiam novas formas de se organizarem. O sofá, agora sem as almofadas, foi escolhido para apoiar as caixas plásticas. Restavam os pallets de madeira do móvel, pintados por Everson com uma tinta resistente, antes de ele saber que passariam por aquilo, e a tinta ainda resistia mesmo com o peso. Nada é feito sozinho, já sabiam disso. E então, precisaram de ajuda de algumas pessoas que, como eles, estivessem envolvidas o bastante naquele projeto e com aqueles valores. Viviane conta com a ajuda de Fabiana Avanzo e Lucas Correia, que organizam tudo em planilhas, seguindo o planejamento semanal de entrega de todos os produtos. O grupo de organizadores não era grande, mas suficiente para que todos os pedidos fossem atendidos da melhor forma possível. Enquanto os pedidos são conferidos, Viviane diz que o projeto foi inicialmente pensado pelo marido, Everson, quando ele soube 35

A militância como ponte entre o campo e a cidade


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

que muitos produtores de alimentos orgânicos que conhecia, no começo da pandemia do COVID-19 no Brasil, temiam perder toneladas de seus produtos, pois o isolamento social ficava cada vez mais potente. Mas o professor Everson não deixaria isso acontecer. Então, em pouco tempo, pensou como poderia trazer aqueles alimentos da Lapa para Curitiba, podendo, ao mesmo tempo, comercializá-los e ajudar toda uma rede de trabalhadores. Por volta das 10 horas, quando muito trabalho já foi feito, algumas pessoas começam a chegar na casa da família para retirarem suas cestas de alimentos. Cada um tem uma história diferente para contar – como conheceram Everson e Viviane, a importância daquele consumo e a relação de confiança naquele projeto. Quando vão a outros lugares, como a grandes mercados, encontram alimentos de diversas formas, muitas vezes, não tão bonitos quanto os daquelas caixas. É nessa qualidade que se cria uma relação de confiança! A maior demonstração desse sentimento a ser testemunhada é quando, ao chegar para receber seus alimentos, uma cliente ouve de Fabiana: — Não vou te entregar sua berinjela porque ela não está bonita. Coisas que não se ouve em nenhum supermercado, mas são ouvidas na sala da casa daquela família, pois não estão dispostos a entregar algo que não beire a perfeição para seus clientes. Alguns até reclamam de serem chamados de clientes, pois se sentem mais que isso. São colaboradores e amigos, laços criados antes da pandemia. O grupo de pessoas que chega e sai da casa é diverso, mas após alguns minutos de conversa e observação, é possível notar que têm coisas em comum. A principal delas é a compreensão do papel social de seus atos. Quando optam por consumir produção familiar e sem agrotóxicos, pensando na importância desse alimento numa grande cadeia social, o ato de consumir passa a ser ainda mais relevante e consciente. A consciência social e a militância, bases do projeto, podem ser vistas nas paredes da sala que recebe os alimentos e as pessoas. Fotos de líderes militantes se misturam a fotos da família, juntando suas histórias até serem apenas uma. Os olhos de Everson brilham ao falar sobre o que o projeto representa para ele e o que essa ação pode fazer pelas pessoas. Viviane se emociona ao saber que seus atos fazem diferença no mundo. Naquela casa moram sonhadores, mas que diariamente se levantam para batalhar pelo que acreditam. O trabalho, que inicialmente era pensado 36

Isadora Mendes


para a pandemia, já tinha planos de continuar acontecendo mesmo após o fim do isolamento social. São hábitos criados para mudar a sociedade não só agora, mas para o futuro. Quintana tem razão: “Lembra que o que importa é tudo que semeares colherás. Por isso, marca a tua passagem, deixa algo de ti”.

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O ano da enfermagem Jéssica Pretto


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O ano da enfermagem


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É por volta das 13h que a enfermeira Paula Aparecida Vieira faz seu intervalo de almoço. Após retirar os EPIs (equipamentos de proteção), ela vai até o estacionamento, entra no carro e abre a marmita ali mesmo. Com apenas uma cozinha sendo compartilhada com vários funcionários, o mais seguro é almoçar isolada. Há seis meses, a rotina não é a mesma. Ela chega no trabalho e vai direto a uma salinha reservada nos fundos, pendura suas roupas em um cabide e veste o pijama cirúrgico, avental, máscara N95, escudo facial, touca e luvas. “Depois de se paramentar, se der vontade de ir ao banheiro tem que segurar o que puder”, relata a enfermeira. Já se tornou comum ter o rosto marcado pela máscara N95, mas não poder abraçar a filha de 8 anos quando chega em casa não é algo a que ela consegue se acostumar. Paula carrega, diariamente, o medo de contrair a doença e transmitir para a família. Patrícia Camilo Ferreira, de 46 anos, é técnica em enfermagem e viu o medo se tornar realidade. Ela testou positivo para o novo coronavírus. Com sintomas fortes, ficou internada por oito dias. “Não sabia como meu organismo iria reagir e o 40

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receio de não sair do hospital tomou conta de mim”, conta Patrícia. Curada e de volta ao trabalho, lamenta por quem não teve a mesma sorte. “O pessoal da enfermagem é quem fica o dia todo com o paciente, faz a higiene e cuidados. Acabamos sendo os que mais pegam a doença e também os que mais morrem”. O Brasil é o país onde mais morrem profissionais da enfermagem por conta do vírus. Segundo o Conselho Federal de Enfermagem, em três meses, o número de enfermeiros e técnicos mortos pela Covid-19 triplicou. Eles se contaminam três vezes mais do que os médicos. O risco de contaminação é proporcional às atividades que a categoria exerce, já que são responsáveis pela assistência direta ao paciente. Por coincidência, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou 2020 como sendo o ano internacional da enfermagem e obstetrícia, o que foi designado pela Assembleia Mundial da Saúde de 2019. O objetivo da iniciativa é reconhecer o trabalho desses profissionais e defender investimentos que melhorem as condições de trabalho e o desenvolvimento pessoal dessa categoria. Segundo a OMS, o mundo precisa de mais 9 milhões de enfermeiras(os) e parteiras para atingir a meta de cobertura universal de saúde até 2030. A enfermeira Carmen da Silva caminha pelos corredores do hospital, até chegar na sala onde realiza a triagem dos pacientes. Ela se senta, abre a lista de pessoas na fila e, assim, começa mais um plantão. Recentemente, ela perdeu uma colega de trabalho, que morreu após ficar um mês internada por conta do coronavírus. “Nós trabalhávamos juntas há mais de dez anos. É muito triste chegar aqui e saber que não terei mais a companhia dela”, relata. Mesmo com a tristeza e angústia, ela segue sua rotina de trabalho. “Minha profissão é essa, que eu escolhi e segui com dedicação. E nesse momento que mais precisam do meu trabalho, apesar das dificuldades, é gratificante saber que estou sendo responsável por ajudar muitas pessoas”. Antes da pandemia, a técnica em enfermagem Fernanda da Costa Dias saía do trabalho e ia tomar um café na casa dos pais, idosos. Hoje ela vai direto para sua casa, onde mora 41

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I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

sozinha. O contato com a família é pelas chamadas de vídeo. A solidão virou realidade e é um desafio diário. “Estamos toda hora vendo a doença de perto: gente internada, morrendo. Depois ir pra casa, sem poder ver a família, o psicológico fica abalado”, afirma Fernanda. Ao fim de um plantão de doze horas, ela suspira de alívio. “Hoje o cansaço bateu, foi difícil. Mas penso que é menos um dia de luta, e mais um dia perto do fim dessa pandemia”, desabafa. Como diz o grande Guimarães Rosa, “o que a vida quer da gente é coragem”.

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Vendedor da pipoca e do mundo cor-de-rosa Laura Luzzi


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Laura Luzzi


As pessoas passam apressadamente pela Praça da Árvore, centenas entram e saem da estação de metrô em um ritmo frenético. No meio da praça, alguns trabalhadores da Prefeitura de São Paulo aparam as árvores, que deram origem ao nome do local, e varrem as ruas ao redor. A grande maioria das pessoas que passam por ali diariamente não deixa de cumprimentar “seu Chico” – ou “seu Francisco”, para os menos chegados. Exibindo seu belo par de sapatos pretos, meias sociais da mesma cor, calça bordô slim, uma camisa puída da igreja, vários anéis e corrente de cor prata no pescoço para completar o look moderninho, o ambulante joga conversa fora com os comerciantes locais. A alegria não é à toa. Há quase cinco meses, o pipoqueiro não podia levar seu carrinho até o lugar onde estivera desde 1975, sem faltar um dia sequer e sempre com muito bom-humor. Com a reabertura do comércio de rua na capital do estado de São Paulo em agosto, ele finalmente pode voltar à sua casa. Sim, casa. Porque para seu Chico, a rua é seu lar. Francisco, de 64 anos, brinca: “Tô bão demais. Tenho meia quatro, mas ninguém diz”, conta ele passando a mão do 45

Vendedor da pipoca e do mundo cor-de-rosa


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tronco à cintura, esbanjando saúde e mostrando seus escassos fios de cabelos brancos. O ambulante é de São Bernardo e chegou à capital com 12 ou 14 anos, não lembra muito bem. Desde então, foi trabalhar nas ruas. Logo que casou, mudou-se para a rua de trás da Praça da Árvore e, por ali, está até hoje, sem nunca ter deixado atrasar o aluguel do cantinho. Dois filhos, uma neta e 45 anos depois, seu Chico se orgulha da história que construiu. “Eu e meus irmão tudo temo imóvel ali na Marechal, no centro de São Bernardo, e só falta um ano pra eu aposentar.” Ele diz que depois da aposentadoria, vai trabalhar ainda mais, já que o valor não dá para quase nada, mas ainda sonha em voltar a morar na cidade em que cresceu, perto do restante da família e no imóvel que descreve com tanto carinho que fica na tal Marechal. Na tarde daquele último dia de agosto, o carrinho do seu Chico só tinha conseguido vender R$ 10 e, enquanto ele contava quantas lojas haviam fechado no quarteirão por falirem durante a quarentena, um trabalhador que passava de bicicleta comprou mais dois pacotinhos de amendoim, a R$ 2,50 cada. “Antes, a gente chegava a tirar R$ 500 ou R$ 600 em um dia, agora, tô me batendo pra tirar R$ 100”, seu Chico reclama. De repente, uma moto para no canto da rua e alguém lhe pergunta se o frango estava bom, o homem deseja uma boa tarde e sai apressadamente. O motoqueiro é seu filho mais velho, que trabalha como entregador de aplicativo e havia passado horas antes para entregar uma quentinha para seu Francisco. Durante os quase cinco meses em que seu Chico não podia abrir o carrinho, ele ajudou o pai com as contas de casa, uma vez que as entregas aumentaram e o dinheiro que caía na conta também. O ambulante paga R$ 400 mensalmente à Prefeitura pela concessão do espaço onde estaciona seu carrinho azul. “A única coisa que os filhos da mãe [Prefeitura] reduziram foi nosso horário. Se pelo menos dessem até dezembro pra gente [sem pagar a taxa]”. Para ele, a dificuldade das vendas é aumentada pela redução no horário de funcionamento, que foi alterado por conta do novo coronavírus. Antes, ele começava às 8 horas e ia até as 46

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23h, e agora funciona apenas das 10 às 18h, e não pode mais abrir nos fins de semana. Outro motivo é a redução do número de pessoas que circulam pelo local. Apesar da movimentação, seu Chico diz que, em comparação com o que era antes, aquela praça parecia mais um cemitério. Pelos cálculos feitos a olho por aquele trabalhador experiente, ele estima que houve uma queda de 70% no movimento. No entanto, o senhor de pinta mais jovem da Avenida Bosque da Saúde busca não desanimar: “Quebrou os 70%? Quebrou. Mais ainda tem os 30% que tô em cima”. A variedade de produtos do carrinho é enorme. Pipoca salgada, pipoca doce cor-de-rosa, batata chips, todos os tipos de amendoim e balas que puder imaginar. Com uma mão na cintura e a outra ajeitando repetidamente sua máscara camuflada, explica que não tem medo do vírus, porque quem cresceu na rua já está com o corpo acostumado. Apesar da aparente valentia, Seu Francisco assume que só sai de casa por necessidade e sempre tomando muito cuidado. Não conseguindo deixar a vaidade de lado, ele conta que máscara virou roupa, sempre quer comprar e usar uma mais bonita. Independentemente das dificuldades de agora, seu Francisco faz questão de reiterar que o que importa é ter saúde: “a gente fica nessa choradeira, mas Deus é grande”. O pipoqueiro conta que, durante todos estes meses que passou sem trabalhar, diversas pessoas doaram alimentos e cestas básicas. “Não preciso de nada, não. Mas se quiser dar de coração, tô pegando”. Seu Chico, sua esposa e seu filho mais novo ganharam tantas doações que até repassaram a outras famílias necessitadas, porque “quem é bom de coração sempre tem sobrando”. Todos os dias naquela esquina, seu Chico vende bem mais do que pipoca cor-de-rosa. É alguém que tem prazer no que faz, mantém vivos os seus sonhos, encontra motivos para ser grato e solidário.

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Vendedor da pipoca e do mundo cor-de-rosa


Sufocada Rebeca Trevizani 48

Nome da Autora


O ponteiro do relógio marca 6h32. A chaleira apita. Antidepressivos, ritalina, chá e biscoitinhos. “E na hora que o Bento acordar, um copo de Coca pra aguentar o furacão”, pensa Ivana. Ivana Bahls, aos 36 anos, leciona a disciplina de arte na Escola Estadual Arnaldo Jansen, em São José dos Pinhais. Os dias que antecederam a pandemia ainda permeiam sua mente como um suspiro profundo. Para a maioria dos professores, o isolamento social começou em 16 de março, mas, para Ivana, o contato com os alunos já havia sido pausado em meados de novembro de 2019, por conta de um procedimento cirúrgico. − Como você se sentia antes da quarentena? − Eu podia ser inteira dentro da escola. Agora, em casa, preciso me dividir. Com o trabalho, a família e a mente para organizar, a tarefa de se manter sã torna-se cada vez mais problemática. Desde cedo, às voltas com o filho Bento, de 2 anos e meio, aulas online, o trabalho do esposo e um apartamento. A família está se mudando para uma casa justamente por essa razão: fugir da falta 49

Sufocada


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de espaço de um apartamento, já que todas as atividades cotidianas agora são feitas somente dentro de casa. “Preciso de um pedaço de céu”, é o que Ivana sentia. Em suas aulas de trabalhos manuais, ela fez uma bonequinha presa dentro de um vidro para representar o que sente durante o isolamento: “Sufoco”, disse ela. A falta de ar representa a separação e a falta de contato com os alunos. A perda do sentimento de liberdade em sala de aula. Sem um ambiente propício, sem troca, sem olho no olho. A quarentena não atingiu apenas a maneira como se faz aula, mas também a mente e o físico dos professores: depois de cinco dentes quebrados, Ivana agora precisa fazer uso de uma placa para bruxismo (doença que a faz ranger os dentes durante o sono) enquanto trabalha. As aulas remotas permanecem funcionando de maneira online, mas não funcionam tão bem assim para os professores: E-mail lá pelas 3h da madrugada, ligação fora do horário de expediente, mensagem de aluno às 22h15. “É desgastante”, diz Glacy Camargo de Oliveira, que também é professora de arte da rede pública do Estado do Paraná. Em seu apartamento de paredes creme, recheadas de quadros, a família de oito gatos, todos nomeados em homenagem às estrelas de Hollywood, é a principal companhia de Glacy nos dias de isolamento. Na companhia de Will Smith e Nicole Kidman, que estão sempre ao redor da mesa, o sol emanando da janela e iluminando o espaço de trabalho; com uma fatia de pão integral, um cafezinho e muito serviço, ela lida, principalmente, com a dificuldade de se adaptar com a tecnologia, agora necessária para lecionar. Na última sexta-feira, Glacy realizou sua primeira chamada de vídeo com os alunos via Google Meet. “Me arrumei igual vou pra festa, passei até batom”, disse com os olhos marejados, transbordando a saudade que já não cabe mais dentro de si. Glacy, de 64 anos, nasceu e cresceu em São José dos Pinhais, cidade da região metropolitana de Curitiba, na qual reside e trabalha até hoje. Sua residência, localizada em frente a um 50

Rebeca Trevizani


supermercado, facilita a saída para comprar itens essenciais. Mas em tempos de pandemia, a saúde mental da professora se tornou prioridade: “No começo, a morte rondou muito meu pensamento”. Hoje, quase sete meses depois do início da quarentena, ela tem feito acupuntura como forma de tratamento. Mas o sufoco ronda até aos que dele tentam fugir. Depois de 40 anos de profissão, seus pensamentos se voltaram para a ideia da aposentadoria. − Não sei o que vou fazer sem dar aulas. Antes de ser artista, sou professora - afirmou Glacy, mais uma vez com voz embargada. O desafio dos profissionais da área da educação tem sido aprender a se manterem próximos dos alunos e, ainda que a distância, lidar com aqueles que não fazem o esperado: fazê-los entender, mesmo por meio da aula de outro professor, e estimular a interação, uma vez que os alunos também estão sofrendo. Todos estão sofrendo. “Sou do time dos que estão abalados”, disse Ivana. Como romper a resistência dos alunos quando eles também se encontram abalados? Como sobreviver à profissão do contato quando ele não é mais possível?

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Sufocada


Encontros da fé em tempos de pandemia Stephanie Spredemann Friesen


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Encontros da fé em tempos de pandemia


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

Escuro como breu, o dia ainda parecia noite quando Gerda Warkentin desceu a vazia Rua Heinrich Löwen, no Xaxim, localizada na região do Boqueirão, em Curitiba. Ali, ela seguiu em direção à casa dos amigos, na faixa leste da cidade. A previsão do tempo no dia anterior prometera frio e, naquela manhã de 20 de agosto, o termômetro marcava 3°C. Por força do hábito, a senhora de 74 anos parou na esquina da Rua Osni Silveira e, sob a máscara, seus olhos observaram os dois lados da rua antes de atravessar. O destino estava logo à frente: a casa branca, que era a única com luz acesa. Sem precisar tocar a campainha, Arno Seifert abriu o portão e a convidou a entrar. Na sala, havia quatro cadeiras de alumínio, um banco em frente ao piano, um sofá e duas poltronas vermelhas, tudo organizado em círculo. No piano, estava a partitura da canção “Ele veio a este mundo, o Senhor Jesus veio nos libertar”. Waltraud, esposa de Arno e professora de piano, entrou na sala arrastando as pantufas no chão de madeira recém-encerado. Assim que ela se sentou em uma das cadeiras, Paul Dück, de 58 anos, vice-líder da Fundação Educacional Menonita, entrou na sala e cumprimentou os 54

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presentes, sentando-se no lugar habitual, em frente do instrumento. Waltraud oferece álcool gel para os irmãos da fé. “Esses dias descobriram falsificadores de álcool gel”, lembra Gerda horrorizada enquanto passa o desinfetante nas mãos. Paul franze a testa e comenta: “Onde tem chance, o homem se deixa usar”. A conversa continua, passando à gravidade da falta de água no Paraná. Quem chega, tira um dos casacos e a máscara do rosto, engatando na conversa enquanto aguardam o início do encontro. Somente Gerda e Victor Friesen permanecem com as máscaras em seus rostos. Como em quase todas as quintas-feiras dos últimos três anos, aquelas sete pessoas acordaram às 5h40 para se encontrarem em comunhão com Deus antes do trabalho. “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles”, Mateus 18:20. Não eram pessoas em reunião social, eram uma comunidade. Os fiéis da Igreja Evangélica Irmãos Menonitas do Boqueirão são parte dos 10 mil menonitas que habitam a capital. Eles são descendentes dos fiéis agrupados por Menno Siemens, na Prússia, que se estabeleceram na Rússia e fugiram para a América Latina após o golpe de Stalin em 1930. Na época, se estabeleceram como cooperativa no litoral catarinense, mas encontraram dificuldade para plantar, então, dividiram-se em três localidades: Witmarsum, Bagé e Curitiba. O grupo de denominação cristã é biblicista e anabatista. Ou seja, eles seguem os ensinamentos de Jesus, que estão na Bíblia, e compreendem ser necessário crer para ser batizado após a infância. Enfrentando dificuldades e fugindo da guerra, os menonitas aprenderam a viver unidos. E, atualmente, mantêm o senso de comunidade por meio dos encontros de fé – como a participação na igreja e nas rodas de oração. Os grupos de oração da Igreja dos Irmãos Menonitas foram suspensos por seis semanas durante a pandemia, mas, com a sinalização de bandeira amarela na cidade, voltaram a acontecer. Juntos, eles intercedem por aqueles que precisam. “Cremos no 55

Encontros da fé em tempos de pandemia


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poder da oração e na unidade. Quando conversamos com Deus, nos mobilizamos a ajudar outros”, explica Paul, o líder. Os passarinhos lá fora acordam e pipilam as melodias matinais. Na casa, o encontro começa com a leitura do estudo do momento: o versículo de Filipenses 4:9. Seis deles sacam os celulares e abrem os aplicativos, mas Victor pega sua Bíblia e a ajeita no colo. Ele mal percebe que a máscara escorrega de seu rosto e balança perigosamente, segurada agora por apenas uma das orelhas. “O que também aprendestes, recebestes, ouvistes e vistes em mim, isso fazei; e o Deus de paz será convosco”, diz o versículo. “Devemos aprender a viver no contentamento. Mas será isso possível em época de pandemia?” – pergunta o líder, relembrando aos irmãos os mais de 5 milhões de casos de coronavírus no país. Os menonitas, que vivem em comunidade, tiveram sua fé abalada por não poderem mais ir à igreja. Eles necessitam do contato face a face, e agora, o medo constante os abala. É uma época para mudarmos os valores. Eles concluem que o vírus é uma chance para se reaproximarem de Deus e afirmam: “Deus é soberano e tem a solução para tudo”. Os irmãos comentam os pedidos de oração, relembrando as necessidades da comunidade. Concentrados, fecham os olhos e clamam ao invisível pela vida de amigos e familiares, além de agentes da saúde e governantes. Victor enxuga algumas lágrimas durante a oração e Gerda ajeita a máscara que escorregou um centímetro nariz abaixo. O encontro chega ao fim e Arno e Waltraud se despedem dos irmãos. A mensagem para a semana é que, sem Deus, falta algo para nos preencher. O sol nasceu e o movimento começou nas ruas. Mascarados, os fiéis se juntam aos outros, iniciando o trabalho em mais um dia abençoado.

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Flores de história desabrocham no campo de saudade Sabrina de Ramos


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Uma tarde de sol com algumas nuvens no céu azul de Curitiba. O aspecto típico de um dia quente, mas fazia frio. Na noite anterior, caíram alguns flocos de neve em certos pontos da cidade, até mesmo próximos daqui. O forte vento move, demasiadamente, os cata-ventos de papel colorido das lápides. Ao​contrário dos cinzentos túmulos comuns de concreto, este cemitério é um jardim. Logo na entrada, um cartaz “Plantão de vendas” recepciona aqueles que buscam pelas ausências. A atmosfera é uma fusão de alecrim e crisântemo. Incontáveis nomes e datas nas pequenas placas de granito. Pessoas centenárias e bebês que não viveram sequer um dia. Lápides bem cuidadas e ornamentadas, outras esquecidas pelo tempo com registros ilegíveis, tomadas por ferrugens e líquens, que apagam as últimas linhas de um epílogo. Penúltimo sábado de agosto, Dia do Folclore. Apenas hoje, houve um total de 15 óbitos em decorrência do COVID-19, segundo a Secretaria Municipal da Saúde. Um desses sepultamentos acabara de acontecer nesse berço de lembranças. Os coveiros ocultos dos pés à cabeça por macacões. 59

Flores de história desabrocham no campo de saudade


I.MUNDO INVISÍVEL: HISTÓRIAS DA PANDEMIA

Apenas três pessoas sob uma tenda de lona verde, velando o corpo já enterrado. Há três cadeiras plásticas dispostas diante da cova, mas o pequeno grupo permanece junto em pé. Cinco minutos se passam e partem abraçados. Às 15h24, ocorre mais um sepultamento. Uma senhora de 97 anos, desta vez apenas vítima do tempo. Dezesseis pessoas acompanham separadamente. Treze minutos depois, todos se despedem de um senhor grisalho com um abraço curto. Desde março, início da pandemia, vela-se o corpo rapidamente. Apesar da limitada experiência devido à possibilidade de contágio, até hoje em Curitiba, 906 pessoas nem sequer puderam se despedir assim. Alguns circulam isoladamente pelo vasto gramado, pintado de várias cores vivas. Três funcionários trajados com uniformes verdes, quase apagados no cenário, acomodam-se em um assento estreito de um transporte singular. Uma espécie de carroça com um motor movido a manivela, carrega folhas secas, pás e carrinhos de mão no compartimento de carga. A plantonista de vendas se acomoda em um container abafado de 20 pés − o equivalente a 12m² −, onde há duas mesas e quatro cadeiras no espaço, mas ela está sozinha. O plano funerário que vende varia conforme a família, cada idade é um preço. Para quatro pessoas dos 20 aos 58 anos, são cento e vinte parcelas de R$ 53,70. O plano comporta os preparos, o velório e o acesso às capelas. Apenas o lote de terra custa R$ 25 mil. Do outro lado dos muros com trepadeiras bem podadas e cerimônias elegantes, o cenário é outro. O paredão é bruto, sem nenhuma demão de tinta, colorido apenas por algumas pixações. Mortos-vivos se acomodam nos casulos entre a parede e as árvores. A grama não é bem cortada, é apenas mato. Os restos das folhagens mortas do jardim enfeitam o campo dos abandonados. Como dizia o poeta João Cabral de Melo Neto: “É a parte que te cabe neste latifúndio”. Não há calçada para quem transita na rua ao lado. A rua é extensa e a luminosidade durante a noite é baixa. Na metade desse trecho, fica a entrada dos funcionários, instalada no fun60

Stephanie Spredemann Friesen


do do cemitério. O lado de fora do portão aloja três caçambas de entulhos e uma lixeira de metal verde, do mesmo tom dos uniformes. Ao lado da lixeira, um banco de concreto improvisado, numa roda de chão batido, acomoda alguns funcionários durante os intervalos. O jardineiro de fala modesta e olhar acanhado, cultiva 22 anos de terra... aos 58 anos, quase não consegue explicar como acontecem os sepultamentos nos últimos meses. “Eles usam roupa branca.” É apenas o que narra enquanto desvia o olhar e esfrega duas moedas entre os dedos. Ele confere o relógio de pulso e levanta-se apressado. Cruza a entrada dos esquecidos e retorna ao trabalho.

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Flores de história desabrocham no campo de saudade


II.Perfis


O que se passa na cama ao lado Laura Luzzi


II.PERFIS

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Laura Luzzi


Às vezes, de pés no chão, e às vezes, destruindo pares de tênis, no fundo da casa da tia, aos 5 anos, Larissa já travava suas batalhas. Contra três primos mais velhos, ela aprendia a driblar os primeiros adversários. Tendo que passar por entre aqueles meninos tão grandes em seu olhar de criança, ela já podia ter uma prévia de como seria sua vida dali para frente. O sorriso fácil e a simpatia são as únicas características parecidas com a Larissa que deu origem a seu nome. Aos 16 anos, Maria de Lourdes estava na praia, quando uma menininha de 4 anos, de cabelos cacheados e loiros se aproximou sorridente e desinibida. O nome dela era Larissa. E, assim, surgiu o nome da Larissa desta história, que prefere ser chamada de “Lary com y para me diferenciar”, explica. Ela nasceu dez anos após esse encontro da mãe com a pequena Larissa. Fruto de adultério por parte do pai, Lary e ele nunca tiveram proximidade. Sua mãe sempre teve muito medo de que ele levasse a menina para o Líbano, onde vive com sua outra família, e ela não pudesse ver a filha nunca mais. Sempre foi assim: mãe e filha inseparáveis. Elas se mudaram 13 vezes, mas sempre juntas. 65

O que se passa na cama ao lado


II.PERFIS

Durante todas as mudanças e dificuldades, algo nunca havia mudado: o café de sua mãe. Todos os dias, ao se levantar, Maria de Lourdes (Malu para os mais chegados) preparava o café da manhã das duas. A mãe até encontrou um novo namorado, Tino, um homem doente de quem ela cuida até hoje. Apesar de ser muito rico, nunca a ajudou em nada financeiramente. Larissa e a mãe moravam no centro de Curitiba, em um casarão de madeira que mais parecia “um lixão”, como descrevia a menina. Ali passou a maior parte da sua vida, entre os entulhos e mofo. Foram tantos anos nesse ambiente que a rinite até se acostumou. Certa vez, sua tia as visitou e, deparando-se com a situação da casa, levou Larissa para morar com ela. Foram os únicos poucos meses que mãe e filha ficaram separadas. Numa manhã que tinha tudo para ser igual a todas as outras, Larissa decidiu contar para sua mãe sobre sua sexualidade. Ela estava namorando uma menina há algum tempo, mas ainda não havia se assumido. “Mãe, eu gosto da Thais”, foi só o que ela conseguiu dizer. A partir daquele dia, tudo foi diferente. Um muro foi construído na relação, até então, inabalável. O tradicional café da manhã? Malu não deixou de fazer, mas, para a filha, o gosto havia mudado. Durante semanas, nenhuma palavra foi trocada entre as duas. Larissa sempre odiou ficar sozinha. Gostava de ter muitos amigos e pessoas ao redor o tempo inteiro. O silêncio da relação com a mãe foi avassalador. O tempo passou. Lary teve outros relacionamentos e, aos poucos, os diálogos voltaram a aparecer na rotina dentro de casa, mas nunca mais o assunto da homossexualidade foi abordado. Agora, mãe e filha dividem o quarto no apartamento de 65 m² onde moram. De vez em quando, a atual namorada da Larissa passa a noite (ou até semanas) dormindo lá, mas ainda assim Malu finge não saber o que se passa na cama à frente da sua. Ao falar sobre a filha, Maria de Lourdes não ultrapassa o limite do superficial. O silêncio nunca terminou, embora as conversas banais do dia a dia, que voltaram ao ambiente, enganem 66

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muito bem. O silêncio tem um foco, representa uma dor e é carregado de preconceito. Para a melhor amiga da Larissa, Ana Beatriz, até nisso mãe e filha são parecidas: evitam mexer no que incomoda. Lary demorou para se aceitar e hoje enfrenta a difícil missão de ser aceita. “Ambas precisam saber lidar com isso. A aceitação da família é o que falta para a Lary ser 100% feliz”, aponta Bea. A aspirante a jogadora de handebol cresceu vendo sua mãe procurando fiador e atrasando as contas de água e luz. Hoje, se tem algo que Larissa não suporta é ver algum boleto atrasado, ter seu nome sujo ou dever favores. Além de não ajudar mãe e filha, o padrasto ainda usou o nome da enteada para criar diversas dívidas evitando gastar seu próprio dinheiro, que ela conta com alegria ter conseguido quitar nos últimos meses. Sem contar que o salário que paga a Malu, sua cuidadora e namorada, é meramente ilustrativo, o que tira Lary do sério. Apesar de a ideia de seu nome ter vindo de uma menina meiga e delicada, Larissa foge desse estereótipo. Mulher forte que, aos 27 anos, está prestes a realizar um sonho: formar-se na Universidade Federal do Paraná em Educação Física. Não foi nada fácil chegar onde está. Entre reprovações nos vestibulares e alguns anos de desistência, ela finalmente entrou para a faculdade. Sem dúvida, essa foi a maior alegria de alguém que tem como único grande sonho dar uma boa condição para sua família. Desde pequena sua relação com o esporte é muito forte. Se a falta de oportunidades não permitiu que Larissa se tornasse atleta de futebol, ainda na adolescência foi convidada a compor um time de handebol de uma universidade particular da cidade. No começo achou que nunca faria amizade com aquelas meninas “riquinhas”, mas mal sabia ela que ali encontraria suas parceiras de vida com as quais viveria seus melhores momentos, inclusive uma viagem para a Suécia. Coisa que, até então, parecia impossível para a menina que focava em fechar as contas no fim do mês. A loucura da vida tornou Lary intensa e quando coloca uma coisa na cabeça, ninguém tira. Seria teimosia ou perseverança? Não sei. Fato é que ela sempre chega onde quer, do seu jeito, 67

O que se passa na cama ao lado


II.PERFIS

mas chega. Para ela não existe meio termo. Quando frequentava a Igreja, chegou a ser até catequista. Hoje, ela já acha que não existe religião certa. De camisa de flanela xadrez e cabelo raspado, frequentadora assídua de cafés de Curitiba, Larissa busca se posicionar. Sua vida até aqui foi sobre tirar os rótulos que lhe são impostos. Lary mantém o sorriso no rosto e externaliza alegria o tempo todo, mas entendeu que o riso muitas vezes, é só a forma que encontrou de esconder a depressão e se mostrar forte frente aos obstáculos que vão chegar. Os adversários externos, Lary deixa um a um para trás, mas seu ponto fraco no jogo da vida é a aceitação da Larissa que existe dentro dela, para se libertar da necessidade de aprovação de quem a enxerga pelo lado de fora.

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Laura Luzzi


Pelo direito de estudar Gabrielly Dering 69

Nome do Conto


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Gabrielly Dering


Marta* viveu uma infância típica de um brasileiro pobre nos anos de 1950. Ou quase isso, porque aprendeu o português e os costumes do Brasil só na escola. Em casa, comia muito pierogi, um tipo de pastel polonês, que é cozido ou frito, isso para aguentar o dia inteiro de trabalho na roça. “Ah, mas se forem ler essa história, vão tudo chorar. Não posso falar só da parte boa?”, diz, rindo, enquanto gesticula com as mãos cobertas de pintas pela exposição excessiva ao sol. O sonho da menina campolarguense, meio brasileira e meio polonesa, sempre foi estudar. Quando as irmãs ingressaram na escola antes dela, chorou por dias em casa, pedindo à mãe para que também pudesse ir. Fez 7 anos de idade e, finalmente, pôde começar a primeira série, já que na época não havia pré-escola. Improvisou uma sacola de pano para colocar um caderno usado, vestiu uma roupa surrada e foi toda feliz caminhar na geada, com os pés descalços e vermelhos, até o barracão onde era improvisada a sua escola. “Eu era boa nas contas. Fazia todos os exercícios e provas de ‘x’, de vezes e de cachimbo [divisão]”, conta Marta. “Mas 71

Pelo direito de estudar

*Nomes fictícios


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no começo era difícil entender a professora. Eu não falava nada de português mesmo.” Segundo ela, o que hoje chamam de bullying, vivenciou por falar um idioma diferente. Com seus olhos azuis, expressa um sentimento de dor, relembrando o que viveu na época. “Acho que a vida foi assim pra todo mundo, né? O Brasil era pobre, as pessoas eram muito sofridas.” Ao chegar na terceira série, chorava, pois não havia mais nenhum ano escolar para ser feito. Queria estudar mais, chegar ao – antigo – 2º grau, fazer faculdade. Porém, o máximo que a região onde morava e as condições financeiras permitiam, eram esses três anos iniciais. Assim, no local erguido graças à pura simpatia de um fazendeiro importante, rodeada por espigas de milhos e criação de abelhas, Marta aprendeu conhecimentos básicos de Português, Ciências, História e Matemática. Mesmo após mais de 60 anos, Marta ainda lembra com carinho o nome das três professoras que lhe ensinaram tantas novidades: Ivone, Nair e Edithe. A última é lembrada com ainda mais facilidade, já que hoje há uma escola de ensino público em Campo Largo batizada em sua homenagem: Colégio Estadual Prof.ª Edithe. Depois, enfim, voltou a trabalhar em tempo integral na roça até os 17 anos, quando sua mãe faleceu de leucemia. Na época, não havia acesso a tratamento, tampouco conhecimento acerca da doença. “Eu peço perdão a Deus por não ter cuidado dela do jeito certo. Mas a gente não sabia nada sobre isso.” Seu pai, segundo ela, “durou mais”, porque foi para a cidade logo depois de o Golpe Militar de 1964 ter tirado tudo dos pequenos chacareiros. Começou a trabalhar como doméstica e, com 24 anos, procurou mais uma oportunidade de estudo. Foram abertas aulas no período da noite nas escolas. Essa era a oportunidade perfeita para se manter trabalhando ao mesmo tempo que estudava. Não fosse um porém: o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), decretado em 1968 pelo regime militar, incluía o toque de recolher que a 72

Gabrielly Dering


impedia de andar pelas ruas sozinha após as 23h. A instituição que oferecia as aulas era longe e sua única forma de transporte eram os ônibus. Pela segunda vez, o sonho foi adiado. O rosto enrugado se enche de decepção quando a pergunta é sobre qual profissão escolheria, se pudesse. “Advogada”, conta ela. “Era isso que eu queria ser.” Sua irmã mais nova sabe muito bem o porquê do desejo de atuar nesse ramo. Com apenas 15 anos, Elisabete engravidou de seu primeiro filho. Infelizmente, a gestação foi fruto de um relacionamento abusivo no qual ela apanhava muito. Marta levou a irmã a uma delegacia para registrar queixa e exigir os direitos de Elisabete, mas o delegado pediu que fossem embora. “Ele gritou, humilhou a gente e disse que não podia fazer nada”, conta Marta. Contudo, quando um de seus irmãos chegou ao local, a conversa e o tratamento foram diferentes e um processo foi aberto. “Depois disso, a Marta colocou na cabeça que cursaria Direito para poder defender a nossa família e todas as mulheres que também precisassem.” Ainda na busca pela educação, Marta tentou, aos 30 anos, juntar algum dinheiro e ter tempo para se profissionalizar. Comprou um caminhão, associou-se a outro homem e fez alguns serviços na área de transporte. Em pouco tempo, seu único veículo foi roubado, assim como todos os seus investimentos. Assim como a oportunidade veio, esvaiu-se diante de seus olhos pela terceira vez. Seus cabelos brancos hoje não mentem: muitos anos se passaram desde que tudo ocorreu. A vida seguiu, Marta continuou a trabalhar como doméstica em casas de família e em empresas e, com 59 anos, aposentou-se. Apesar de os esforços para cumprir o sonho de estudar terem cessado, a lembrança e a vontade de realizá-lo ainda são vívidas em sua fala. Para suas duas filhas, não se trata apenas de estudo formal. “Ela colocou comida na mesa e um teto sobre nossas cabeças apesar de todas as adversidades”, diz Rosa, a mais nova. “A mãe sempre lutou por nós. Até hoje nos defende de tudo e todos.” Mesmo só tendo estudado até a terceira série, Marta 73

Pelo direito de estudar


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advogou a causa de suas filhas, de sua casa, de sua família. Ser advogada na vida é também conquistar sabedoria com nobreza.

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Gabrielly Dering


Horizontes de uma vida vertical Lorena Rohrich Ferreira


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Ana Szczodrowski. Szczodrowska em polonês: “O ‘a’ no final do sobrenome indica que se trata de uma mulher.” Assim começamos nossa conversa. Cheguei em sua casa e vi algumas caixas de papelão vazias posicionadas na entrada. Ana acabou de se mudar para um imóvel menor, no Pilarzinho, bairro curitibano mais próximo de sua família. A residência onde morava antes ficava atrás de sua clínica de fisioterapia, no Capão Raso, ela e seu falecido marido a tinham construído para alinhar moradia e trabalho próximos. Depois que ele se foi, em 2009, a casa começou a engoli-la, mas ela permaneceu. Nas entranhas de cimento. Foi um prazer enorme para mim, como repórter, mergulhar na história de seus objetos. Tive contato com Ana durante a mudança, quando cautelosamente a ajudei a instalar peças de mais de 50 anos na nova residência. Cada movimento era cuidadoso durante a lavagem das louças. E devia ser, porque eu estava sendo observada. Cada taça, prato, vasilha, tinha uma história por trás. E um futuro pela frente. Suas duas filhas inquietas diziam: “Mãe, você precisa de tanta xícara assim? Não dá para ir se desfazendo?” 76

Lorena Rohrich Ferreira


A água logo foi colocada para esquentar e, a cada passo que dava para ajeitar a mesa de café da tarde, Ana ia apontando pela cozinha: um filtro que ganhou de uma paciente há uns anos, a garrafa térmica presenteada pela sobrinha, uma xícara nova que finalmente teve coragem de usar. “Sabe, tudo que eu guardo foi dado por alguém e guarda uma lembrança”, foi logo justificando em referência à última discussão com as filhas na mudança. Sentamos para tomar o café. A toalha de mesa, já tinha, ela mesma, uma história nunca contada. Era a primeira vez que usava. Feita há 65 anos, tratava-se de uma peça bordada pela mãe de Ana, e “rebordada” por ela quando tinha seus 10 anos. E ela continuou tecendo sua história. Bom, não propriamente. Das quatro horas em que conversamos, ela se mostrou bastante interessada em incluir outros fios nesse bastidor. Começamos lá atrás. Eu conheço Ana minha vida inteira. Para mim, ela sempre foi mulher madura, forte, guerreira. Conheci outra parte dela nesta conversa. Os “pais pós-Guerra” sempre foram muito exigentes. “Eles tinham medo que as coisas faltassem”, então, desde pequena, Ana já aprendia a ajudar na horta e depenar as galinhas. A mãe, costureira, incentivava os bordados e agulhas. O pai ensinava a trocar telha e mexer com outros fios, os elétricos. Brunislau Szczodrowski, o pai, nasceu em 1817, na Polônia, em Gdansk, cidade portuária que virou campo de batalha na 1ª Guerra Mundial. Trabalhava na construção de navios quando os alemães invadiram o território. O pai teve que acompanhá-los até a França e, por conta de seu conhecimento em engenharia, foi obrigado a ajudar na construção de tanques de batalha. Depois da guerra, voltou à Polônia, casou com uma viúva, acolheu os dois filhos dela e tiveram um filho próprio. Veio ao Brasil em 1932, fascinado pela promessa de futuro no país. Queria se estabilizar e deixou sua família na Polônia para depois trazê-los, mas sua esposa acabou morrendo e os filhos já estavam estabilizados e não quiseram vir. “Quando eu 77

Horizontes de uma vida vertical


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era pequena, com uns 12 anos, eu mandava cartas para a minha cunhada”, era assim que Ana treinava sua escrita em polonês. A mãe, Sofia Anna ZIelinski Szczodrowska, nascida em 1900 em Cracóvia, chegou ao Brasil em 1927 para ajudar a cuidar dos oito filhos de sua irmã. Casou-se com 40 anos e teve 3 filhos, dois morreram quando bebês, o primeiro com 15 dias de vida, e o segundo já nasceu morto. Traços de uma época dura. Ana, desde muito cedo, tomou conta de si. O pai morreu no dia 9 de julho, com 70 anos, quando Ana tinha apenas 12 anos. Ela começou a trabalhar com 13 anos, na venda de legumes e verduras de seus tios, e parou somente agora, aos 75 anos. “E ainda quero trabalhar.” Com 14 anos, foi trabalhar como locutora de rádio: “Eu tinha até um codinome: Ana Eny”, conta entre risadas. Com 16 ou 17 anos trabalhava na Carpa, empresa que fornecia assessoria a agricultores. Nessa empresa, a mulher não podia continuar trabalhando se casasse, por isso quando foi fazer um curso em Curitiba, acabou prestando um concurso no SESC e passou. Ana entregava metade de suas economias para sua mãe e a outra metade usava para pagar a escola e comprar roupas e livros. Ao casar, sua mãe devolveu todo o dinheiro que Ana havia lhe dado, em enxoval. A história de como conheceu seu marido é um tanto quanto peculiar. A jovem Ana, com seus 17 anos, vivia na casa de sua amiga, Iara. Sempre que olhava os retratos de família da colega, brincava: “Um dia vou casar com seu tio”. Uma noite, saindo da casa da amiga, o “bonitão de novela” a abraçou pensando ser sua sobrinha, foi assim que aconteceu, ele, com seus 37 anos, ela nem com 20. Dois anos mais tarde, no dia 10 de junho de 1967, eles se casaram. O sentimento que se tem é que era para ser. Um dia, quando adolescente, Ana visitou uma cartomante. “Você casará com um homem, cujos pais terão o seu nome e de seu irmão”. E assim foi. Henrique e Ana eram, de fato, os nomes dos pais do esposo. 78

Lorena Rohrich Ferreira


Perguntei se, pela diferença de idade do casal, de alguma forma ele a impedia de fazer alguma coisa. “Meu marido era extraordinário, nunca foi de me repreender.” Por ter se casado com um homem 20 anos mais velho, Ana sempre se preocupou com sua postura. Membros da família do marido tinham medo que ela só quisesse se divertir e não se comprometer. Isso a tornou séria. “Eu não era assim”. Foi assim que sempre a enxerguei, até este momento. Quando trabalhava como assistente social, organizando os eventos de rua, diz que era durona: “Eu organizava eventos de carnaval e brigava com os milico [militantes] na rua, de madrugada, para eles arrumarem as coisas direito”, reforçou. E me disse de modo a incorporar o espírito jovem. Ficou até fácil de acreditar. “A minha mãe é uma na vertical e outra na horizontal. Na vertical, em pé, ela sempre estava cobrando, tudo tinha que ser perfeito. A minha mãe é perfeita. Com “pais pós-Guerra”, só podia ser assim. Éramos pobres, mas éramos bonequinhas, sempre com roupas costuradas e bordadas por ela de forma impecável. Mas, aos sábados, ela desvestia o jeito de durona e nos escutava. Ali ela era outra mãe. Deitava na nossa cama de manhã e ficávamos conversando”, conta. Hoje, depois de anos, uma das filhas, de 50 anos, continua tendo esse momento com Ana: “Quando ela vem dormir na minha casa, levanto de manhã e vou deitar com ela [...] Com o passar do tempo, ela tem carregado cada vez mais horizontalidades para sua vida”. Ela usa máscara. Ou talvez o véu do casamento. Ou ainda marcas de uma pós-Guerra. É despindo-a que você vai conhecendo suas camadas. É nas suas histórias que vai descobrindo o que a moldou. Forte, metódica, estratégica a olho nu. Revisitamos sua estante no final do que já virava noite. Livros de fisioterapia em sua maioria, mas também acupuntura, ginástica, yoga. Alguns dedicados ao corpo, outros à mente. Espalhadas pelas coleções, obras sobre o espiritismo, religião na qual se encontrou depois de mais velha. “Quando eu era jovem, passava por um Centro Espírita 79

Horizontes de uma vida vertical


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e nem olhava para a direção. Eu tinha medo”, conta. Passamos pelos mais diversos contos e ela nem percebia que ia abrindo o seu próprio livro para mim. Folheamos as suas mais delicadas páginas. Alguns protegidos por capa dura, outros devoramos em segundos. “Você não faz ideia por onde eu já andei.” É por onde andou que traçamos sua alma. Mulher vivida. E que quer viver. No fim da conversa, perguntei se ela tinha algum arrependimento. Pensei que pudesse quebrar a armadura que veste. Mas ela me olhou no fundo dos olhos e disse certa: “Nenhum. Eu faria tudo de novo. Nem lembro mais das coisas que deram errado”. Se a mulher que não esquece detalhes de histórias de 40, 60 anos atrás, que passou quatro horas conversando comigo sobre sua vida, já não lembra, então, por que nos apegamos tanto aos arrependimentos?

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Lorena Rohrich Ferreira


Todos os caminhos levam à sala de aula Mariana Scavassin 81

Nome do Conto


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Mariana Scavassin


Às 6h30, o despertador toca. Café da manhã. Devido ao momento, aula online. Onde? Na capela. Dar aulas no quarto era estressante. Confundia o local de trabalho com o de descanso. Resolveu então mudar sua estrutura para a pequena capela nos fundos da casa. Inconscientemente, o lugar escolhido tem o simbolismo de sua história: hoje professor, por pouco não foi padre. Em 40 anos de vida, Reginaldo Silva, nascido no distrito rural de Guarizinho, em Itapeva, interior de São Paulo, não conseguiria prever tudo que o trouxe até esse momento. Sempre católico, porém não muito fervoroso, aos 12 anos, Reginaldo resolveu ir à missa sozinho. Meio tímido entre os bancos vazios da paróquia, acabou chamando a atenção do padre. “Ele pegou nas minhas mãos, me levantou do banco e disse: coragem”, conta. “Aquilo pra mim foi uma epifania, decidi que queria ser como ele”. Durante o ensino fundamental, Reginaldo teve uma relação conturbada com a sala de aula. Quando a família se mudou do sítio para o centro da cidade, o menino teve que mudar de escola. “Foi um trauma para mim e para o meu irmão.” Juntos 83

Todos os caminhos levam à sala de aula


II.PERFIS

Juntos então, resolveram parar de frequentar as aulas. Ficaram um ano longe dos estudos até que voltaram, dessa vez, com vontade. Apesar do sonho de infância, o início de sua vida adulta, seguiu outro caminho: fez quatro anos de magistério e, em seguida, faculdade de Letras. Naquela época, Itapeva não ofertava muitas opções de carreira. Tornar-se professor era uma escolha lógica. Lecionou primeiro na pré-escola. Nunca foi uma pessoa de crianças. Identificava-se muito mais com os alunos do fundamental e do ensino médio. Passou por algumas escolas em cidades vizinhas, e depois se estabeleceu na rede estadual de ensino itapevense. Gostava de ser professor, porém no fundo, algo lhe faltava. “Ainda tinha aquela questão de querer ser padre, mas também tinha que ajudar a família”. Até que, aos 27 anos, reconheceu todo o caminho que já havia percorrido e resolveu transformar sua vida. Em setembro mudou-se para São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, e entrou para a Sociedade dos Missionários da África, a mesma congregação do padre que, há mais de uma década, havia lhe inspirado. Um mês depois veio a notícia: seria mandado para o México em janeiro. Mesmo já falando português e italiano, Reginaldo não tinha noção de espanhol, mas isso não o impediu de aceitar a viagem. Apesar das dificuldades culturais, sociais e linguísticas que toda mudança de país carrega, para ele, a parte mais difícil do processo foi em casa. “Minha mãe já não queria que eu fosse para Curitiba”, ele ri, “como é que eu daria a notícia repentina de que eu estava sendo mandado para o México?”. Depois de pensar muito, resolveu contar a novidade após um almoço com a família. “Foi a coisa mais difícil que eu fiz.” Sua mãe não esboçou reação imediata, mas durante um mês, o silêncio se instaurou na casa. Com o tempo a ficha caiu. “Eu cheguei em casa, coloquei meus livros na mesa e ela começou a chorar desesperadamente.” Daquele momento em diante a situação tornou-se real: em poucos meses, iria embora por tempo indeterminado. 84

Mariana Scavassin


Já no México, morou em Querétaro, Guadalajara, Cidade do México, Chihuahua, Veracruz e Novo León. Nesse período, fez outra graduação, Filosofia. Também conseguiu aprender o espanhol em um tempo impressionante - quatro meses -, mas não sem dificuldades. Durante a missão, a vontade de ir para a África aflorou em seu coração. Reginaldo então aprendeu francês, foi ao Canadá se especializar na língua e até mudou de congregação para seguir esse sonho. Tornou-se membro da Congregação do Santíssimo Redentor, em Guadalajara, com a certeza de seu próximo destino. “Ele era muito alegre, dinâmico e espontâneo, sempre disponível para todas as atividades que nos eram propostas”, conta Agustín Cantú, padre e amigo de Reginaldo que tinha entrado para a ordem no mesmo período que ele, em 2012. Até o dia de hoje, a viagem para África, infelizmente, não aconteceu. Ao invés disso, o mandaram para a Colômbia. “Foi o pior ano da minha vida”. Ele não sentia nenhuma familiaridade com o lugar ou a comida local. Nesse mesmo ano, desistiu do seminário por conta de algumas decepções relacionadas à organização das congregações e divergência de interesses. No total, foram seis anos longe do Brasil. De volta à Itapeva, demorou cerca de seis meses até retornar de vez a ativa como professor. Conseguiu turmas na rede municipal e, depois de um tempo, foi contratado também pela rede privada, no Colégio Anglo, onde trabalha até hoje. “Ele tem muita energia e muito conhecimento. Às vezes, até se perde no turbilhão de coisas que tem na cabeça”, aponta Andréa Pereira, atual coordenadora da escola. Para ela, a sala de aula não é a fase final da carreira de “Régis” - apelido pelo qual é conhecido por todos no colégio. Hoje, falando seis línguas, tendo visitado diversos países e ministrando aulas que vão do espanhol ao alemão, da gramática à filosofia, Reginaldo se vê realizado como docente. “O Anglo me ensinou a ser um professor melhor”, comenta. A bagagem de trajetórias faz qualquer pessoa notar a 85

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II.PERFIS

singularidade que emana de Reginaldo. Após concluir: “nenhum professor é muito certo da cabeça”, ele se mostra extremamente grato por tudo que a experiência lhe trouxe e traz até hoje. Mesmo inicialmente abalando sua zona de conforto, ela foi ponto crucial para no final, trazê-lo de volta a algo que sempre cercou sua vida: a educação.

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Mariana Scavassin


Educando viado Sarah Guilhermo 87

Nome do Conto


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Sarah Guilhermo


Não existem narrativas poéticas ou palavras aveludadas que amenizem a homofobia de uma história. Contos de fadas não começam no altar e, sim, no inferno. Um jovem que foi chamado de afeminado desde os 6 anos, Murilo Melnek, aprendeu que esse inferno foi a jornada que o trouxe ao céu. A verdade é que contos de fada não são para gente grande. Em uma noite calorenta de 2018, sentado no sofá, Murilo viria a receber prints da conversa do terceiro ano do ensino médio, na qual os alunos planejavam colocar laxante em uma bebida, entregar a Murilo e então bateriam nele. Alguém dizia nas mensagens, “bater em viado dá cadeia, então, meninas…” Em seguida, uma das meninas da sala respondia: “Eu! Eu quero! Não aguento nem a cara dele”. Foi a mãe Rafaela Melnek a primeira a perceber que algo estava errado. “Batam à vontade”, dizia outra mensagem. Ela entrou na sala e viu o filho lendo o celular, com o rosto branco, e ao perguntar o que aconteceu, recebeu como resposta: “Nada, mãe!” Rafaela não gosta de dizer que sempre soube que o filho era gay “Existe todo tipo de pessoa, e dizer que um menino é ho89

Educando viado


II.PERFIS

mossexual, porque ele não é ‘machão’ é desrespeitoso”, ela explica. “Eu nunca fui de amar o universo feminino e não sou menos mulher por causa disso.” A primeira vez que entendeu que o filho é gay foi quando Murilo, aos 13 anos, chegou nervoso e vomitou as palavras: “Mãe, eu beijei ele”. Falou com tanta rapidez que a frase parecia uma palavra só, e ela relata que o filho não se lembra de ter contado, mas havia sido o primeiro beijo da vida. Naquela noite, ela contou o acontecido ao pai, Dedé, e ambos choraram. Era um choro que não diminuía o amor pelo filho, mas temia por ele. O choro pedia um mundo melhor. A família morava em Curitiba na época, mas em 2016 mudou-se para Anápolis, no estado de Goiás. Familiares distantes disseram pelas costas que o objetivo da mudança era esconder o menino. Até então, Murilo era um adolescente popular, cheio de amigos, mas em Goiás viveu o outro lado da história. Tinha no máximo três colegas, e os outros jovens pareciam não querer se relacionar com ele. Aflito, dizia frequentemente para os pais que a turma um ano mais velha pegava em seu pé. Adolescentes se divertem provocando o caos, e era o que parecia. Ele pensava que era brincadeira de escola: todos se provocavam e trocavam indiretas, mas no fim nada passaria de uma imitação ruim de filmes americanos no ápice da cultura pop. “Meninas Malvadas” foi o exemplo usado. Enquanto Murilo buscava se encontrar, os pais tentavam junto. Rafaela ainda pensa em momentos confusos quando se via pedindo para o filho ser “menos”. Deram pequenos passos, como procurar entender o motivo de pai se incomodar tanto com o andar rebolado de Murilo. Aprenderam que não é escolha sexual, e sim orientação. “Ele nos ensinou que não escolheu ser gay”, diz a mãe. Depois, decidiram que era papel dos pais contarem para os avós. “Nós pensamos: se tiverem algum problema com isso, obrigada, mas não podemos conviver com vocês”. Os avós entenderam que o caráter do neto não se dá por quem ele ama, e sim pela educação recebida. Educação que vem de mãos firmes, de 90

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uma família que explica que o localizador no celular dos três não é obsessão, e sim proteção. Precauções foram tomadas: em nome da segurança, beijar em público só poderia acontecer em locais menos movimentados, como nas saídas de segurança do shopping ou na escadaria. Andar de mãos dadas com outro menino parecia utopia. “Eu me incomodei quando ele andava rebolando e pintava as unhas até me perguntar o porquê. Era por causa da atenção dos outros?”, pergunta o pai Dedé. “Esse incômodo é uma proteção que reprime.” Antes de receberem os prints com conteúdo homofóbico, Rafaela foi chamada na escola para assinar uma advertência. O motivo era um vídeo no qual Murilo dançava na sala de aula vazia. “É porque ele está dançando?”, perguntou a mãe. A justificativa mudou, era porque o vídeo tinha sido gravado durante o horário de almoço. “Então as outras pessoas do vídeo também levaram advertência?” Não. Na verdade, não podia usar celular na escola, mas todos os outros alunos usavam e não sofriam punições. As justificativas foram mudando até Rafaela interromper a coordenadora: “Espero que isso não seja homofobia”. Jamais! Longe disso! O Murilo é amado por todo mundo aqui! Quando os pais leram a conversa dos alunos do terceiro ano que planejavam machucar Murilo, não sabiam se ouviam o filho, que implorava para não fazerem algo, ou se ouviam a intuição. “O que você fez para eles?”, Rafaela pensou em perguntar, mas se calou. Ela se lembra da vontade de vomitar e das entranhas que pareciam estar reviradas, porque aquelas mensagens fizeram a vida real bater na porta deles. Naquele momento, piadinhas perderam a graça. Todas as outras reclamações do menino, antes absurdas, coisas de sua cabeça, passaram a fazer sentido. “As mensagens vieram de um grupo de jovens de 17 anos, classe média e alta, com acesso à boa educação e a maioria religiosos”, Rafaela desabafou. “Quem desconfiaria que jovens assim são uma ameaça para alguém?”. Apesar do colégio ser estritamente religioso, o demônio ainda parecia residir nos detalhes. A cereja do bolo foi a mensagem em meio a tantas que dizia: “A 91

Educando viado


II.PERFIS

inspetora me contou que a mãe dele veio reclamar dizendo que estão com preconceito porque ele é gay”. De acordo com o GGB (Grupo Gay da Bahia), primeira organização da sociedade civil de promoção dos direitos LGBTQ+ do país, ao menos uma pessoa é morta por homofobia a cada 16 horas. Foram 297 homicídios e 32 suicídios no ano de 2019, contabilizando 329 mortes e colaborando para que o Brasil seja um dos países que mais mata LGBTQ+. A família entrou em contato com uma advogada. Recusaram a ideia de indenização, uma retratação seria o suficiente. Uma conversa com os pais dos alunos do terceiro ano, talvez. Mas enviaram três, quatro mensagens para o colégio e nada foi resolvido. Enquanto isso, Murilo deixou de voltar da escola a pé e só podia andar de Uber. Ele passou alguns intervalos mais distante da multidão escolar e tentou evitar comportamentos que parecessem ‘provocativos’. “Eu me arrependo de não ter processado”, diz Rafaela. “Acho que doeria mais, quem sabe assim faria alguma diferença para eles.” Os alunos mais novos nunca haviam notado um silêncio tão barulhento vindo da turma considerada a mais unida da escola. O grupo de amigos do terceiro ano se separou e os olhares eram todos direcionados ao chão quando não eram de desconfiança ao próximo. Queriam descobrir quem era o impostor entre eles e a coordenação insistia em perguntar sobre quem tinha mandado os prints. A estratégia de Rafaela foi dizer que vieram de uma conta anônima, mesmo sabendo que quem mandara foi uma ex-aluna que morava a quase mil quilômetros de distância de Anápolis. A delatora havia permanecido no grupo do WhatsApp por respeito aos colegas da turma, mas saiu após enviar os prints para Murilo. O susto veio em meio ao silêncio da escola. “Um menino do terceiro entrou na minha sala e anunciou que eu fui chamado na diretoria” conta Murilo, que estava no segundo ano na época. “Não suspeitei, porque ele sempre estava lá. Depois, parou-me no corredor dizendo que era mentira sobre a diretoria e pediu perdão, mas falou para eu guardar segredo.” Os pedidos 92

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de desculpa vieram devagar. A ligação de uma voz chorosa e arrependida. Depois de um ano, mensagens no Instagram. Algumas Murilo não conseguiu ler, por raiva. Seus pais o enviaram para um intercâmbio no Texas e ele estava ocupado, tentando superar o caso. Foi difícil, porque voltou para o Brasil na época da eleição à presidência, e Anápolis teve 80% dos votos válidos para Bolsonaro, que afirmou preferir um filho morto do que gay. Não fazia sentido aceitar tal liderança sabendo que seus agressores encontraram uma voz no poder. Rafaela já havia começado a escrever sobre o tema LGBTQ+ em uma conta do Instagram chamada Educando Viado quando a família se mudou para Portugal. “O nome foi uma crítica a todos que disseram ‘educou ele tão bem e mesmo assim é viado’”, observou. A mudança foi no desespero, tudo o que queriam era sair do Brasil, daquele ambiente que já não era mais lar. A mãe só conseguiu emprego lavando carros e Murilo perdeu um ano escolar. Foi sofrido, mas depois de um dia cansativo, ela ouviu o filho dizer que andou de mãos dadas com um menino sem sentir medo dos olhares. Tais palavras tiveram o peso de um passo em direção ao paraíso.

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Educando viado


Ser humano e muito mais Bruna Colmann


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Ser humano e muito mais


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“Porra! Além de preto, ele é “viado!”. Esse foi um dos vários momentos em que Alisson Vianna teve de respirar fundo. Psicólogo, negro e homossexual, o paulista de 42 anos já teve que enfrentar muitas situações desconfortáveis como essa. Inspirar profundamente e expirar é algo que ele faz toda vez que sai de casa, pois olhares de julgamento e falas racistas e homofóbicas frequentemente acompanham-no. Muito cedo seus pais já o tinham avisado de que a vida seria assim. Sua força é muito maior que seus 1,98m de altura e sua visão de mundo não se limita às lentes dos seus óculos. Cada detalhe de seu sorriso parece ter uma parte de sua história. Apesar da infância difícil, o psicólogo guarda com muito carinho as madrugadas que passou comendo e jogando baralho com a família. As responsabilidades da vida adulta chegaram muito cedo, por isso sua adolescência foi quase inexistente. Atualmente, Alisson não se importa mais com questões materiais, tanto que suas amizades são suas maiores riquezas. Nos últimos tempos, um dos momentos mais difíceis vivenciados por ele foi colocar a mãe, que sofre da doença de 96

Bruna Colmann


Alzheimer, em um asilo. No início, a senhora de 68 anos tinha uma cuidadora, a Beth. Após uma conversa entre Alisson e sua irmã, a decisão, por questões médicas, foi de colocar a mãe em uma casa de repouso. Mesmo com a senhora já no asilo, a antiga cuidadora, Elizabeth, continua sendo funcionária de Alisson. A pernambucana de 52 anos e cabelos pretos, com madeixas iluminadas que se esticam até os ombros, comenta que Alisson é sempre muito educado e a ajuda em suas dificuldades. “Como patrão ele é 10. Como amigo é mais ainda!”. Um dos elogios que Beth fez ao patrão é que ele possui ótimos dotes culinários. O paulista adora preparar refeições. É como se ele tivesse o poder de transformar a cozinha em uma pista de dança, e automaticamente, se tornasse o professor. As comidas são as alunas dançarinas que, numa combinação perfeita, bailam e encantam todos que experimentam a mistura. Provavelmente, um dos únicos alimentos “expulsos” do baile seria o coentro. O psicólogo odeia o tempero e afirma que apenas um toque dele já é capaz de estragar o sabor dos alimentos. Toda oportunidade que ele tem de falar mal do coentro, ele está falando. Casado com Alisson há 14 anos, o contador grisalho de olhos castanhos José Roberto, mais conhecido como Beto, gosta muito de coentro, mas afirma, entre algumas risadas, que o marido é o tipo de pessoa por quem vale a pena “abrir mão” do tempero. O ‘coração de avó’, a assertividade e a emoção presentes no psicólogo, são algumas das características que fizeram Beto perceber que tinha encontrado sua alma gêmea. Não que o contador acredite muito em signos, mas ele menciona que, de acordo com a astrologia, os taurinos são muito teimosos, e Alisson não foge desse grupo. Beto vê o esposo como um planeta que, de tão querido que é, atrai vários satélites, ou seja, amigos que sempre querem estar próximos. “A pessoa não quer ficar só orbitando, ela quer sair da nave e pousar ali”, comenta. Claudiane, que estudou Psicologia com Alisson, comprova a tal “teoria dos satélites”, pois na faculdade ela costumava sentar 97

Ser humano e muito mais


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na frente e do lado esquerdo da sala para acompanhar as aulas. Já o amigo sentava no fundo e do lado direito. A psicóloga comenta que nos intervalos gostava muito de atravessar a sala na diagonal para conversar com ele. Na classe, ela era mais Skinner e Alisson era mais Freud, pensadores de diferentes áreas da Psicologia. Essa divergência gerou alguns bons debates e foi uma das coisas que aproximou os dois, além das várias conversas acompanhadas de uma xícara de café. O encontro mais recente da dupla aconteceu na Galeria dos Pães, uma padaria aconchegante de São Paulo, talvez tão aconchegante quanto o abraço do Alisson. “Em algumas situações difíceis da vida eu queria estar em apenas um lugar: no abraço do meu melhor amigo”, comenta Claudiane, enquanto tenta se fazer entender com as lágrimas encharcadas de lembranças que insistem em deslizar por suas bochechas. É perceptível que Alisson Vianna se relaciona por meio de seus cinco sentidos de uma forma muito mais humana do que ele imagina. Seus ouvidos, por exemplo, apreciam a orquestra sinfônica da chuva e também a melodia que só o silêncio sabe compor. Se seu olfato tivesse uma boca, com certeza, iria sorrir ao sentir o cheiro de pães e bolos. Seus olhos são como máquinas fotográficas que, de tantas paisagens existentes, preferem guardar um espaço para olhar as pessoas. Alisson também é muito sinestésico e gosta de ter contato físico com seres humanos. A natureza não fica de fora, pois o psicólogo ama quando uma garoa fina beija sua pele. O paladar do cozinheiro amador se encanta com as coisas mais simples, por isso abraça carinhosamente um prato de arroz, feijão, salada e ovo. Talvez a combinação de seus sentidos e sentimentos tenha como resultado o ser humano, demasiadamente humano, como são os espíritos livres descritos por Nietzsche.

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Bruna Colmann


Lá vem o noivo... Hellena Cesar Oliveira


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Hellena Cesar Oliveira


Uma chácara no meio da cidade de Curitiba. Uma clareira, rodeada de araucárias e enormes árvores verdes. Um corredor que levava a um altar circular rodeado por sua família e amigos. No meio, o sorriso largo e os volumosos cabelos cacheados de sua noiva o esperavam no altar. Essa foi a visão de Alan Cardoso, ao chegar ao seu casamento. Nervoso por estar atrasado, o jovem fotógrafo apenas traçou uma reta para chegar o mais rápido possível ao local da cerimônia. Antes que pudesse chegar mais perto e sem olhar para os lados, seu pai lhe entregou uma carta, onde estava escrito: “Você me esperou por um ano. Agora é minha vez de esperar por você”. Andou mais alguns passos e viu sua noiva. Sem entender nada, de mãos dadas com seu pai e sua mãe, as lágrimas escorriam incontrolavelmente. “Eu não sabia o que fazer... quando entrei, eu só quis olhar pra ela, eu só olhava pra ela, o tempo todo, e ela estava incrivelmente linda.” A cerimônia foi pequena, apenas com os amigos e familiares mais próximos, que realmente faziam parte da história dos dois. Com seu terno amarelo combinando com o all star nos pés, 101

Lá vem o noivo...


II.PERFIS

Alan só chorava. Quando a música começou a tocar, sua noiva Angélica o encontrou no meio do caminho. Não entendeu nada das palavras do pastor... “Foi ela que me buscou o restante do caminho, me pegou e me levou pro altar, basicamente. Eu ia olhando pros lados. Me senti uma noiva, olhando a galera e vendo todo mundo lá”. Assim como o casamento, a história de Angélica e Alan se desenrolou de uma forma bem diferente. Tudo começou com uma interação pelas redes sociais, graças ao Tudo Orna, um café curitibano. Alan sempre foi um cara muito tímido e desde pequeno preferia ficar na dele. “Eu sou muito ruim, muito ruim pra essas coisas aí. Eu não sei chegar nas pessoas”, diz. Mas algo diferente aconteceu naquele dia. Depois de uma mensagem despretensiosa, Angélica e Alan passaram a noite conversando. Tinham muita coisa em comum e logo viraram amigos, mas ele sempre soube que ela seria sua namorada. Depois de um tempo, o destino acabou separando os dois, não conversaram mais e se envolveram com outras pessoas. Alan estava trabalhando em outra cidade e recebeu uma mensagem de Angélica que, apesar de não conseguir fazê-lo acreditar nessa história, disse que teria sido a prima que tinha enviado “sem querer”. Em um piscar de olhos era ano-novo e veio o pedido de namoro. Em um instante ainda menor, exatamente um mês e cinco dias depois, Alan estava ajoelhado no café que deu início a tudo, pedindo sua namorada em casamento. Os momentos antes do casamento foram cheios de tensão para ele. Atrasado, a ansiedade, sua companheira de longa data, não o abandonou nesse momento. Na noite anterior, nervoso para o grande dia, mal conseguia escrever seus votos, que estavam em parte prontos há muito tempo. Então pediu ajuda a um padrinho, pois sequer conseguia segurar a caneta... A festa foi planejada nos mínimos detalhes pelos dois. No casamento, não podia faltar o café, plano de fundo de toda essa 102

Hellena Cesar Oliveira


história, representado pelos copos que foram usados no brinde. O local, nada muito conhecido, foi uma surpresa do destino como grande parte da história do casal, ele conta. “Foi sensacional! Foi muito nosso, foi tipo um rolezão, só que nesse eu casei.” Até porque, se tem uma coisa que Alan participou em sua vida foram cerimônias – ele é fotógrafo de casamentos. Quando era mais novo, fazia vídeos, mas nada muito produzido. Com o tempo, foi se apaixonando pelo que mais gosta na fotografia: a possibilidade de contar histórias sem palavras. “Eu gosto muito do amor, não amor só entre pessoas. Amor no geral. E onde eu mais encontro isso é com casais, porque é o mais explícito.” Mas com um pai dentista e uma mãe advogada, não foi nada fácil seguir a carreira artística de fotógrafo. Sem o apoio moral e financeiro dos pais, pediu o cartão da prima, Silvana, para conseguir comprar uma câmera. Ela lembra do dia em que ele contou do seu sonho, “ninguém acreditava nele” diz. Mas ela nunca teve dúvidas do talento e da determinação do primo. Alan pagou só a primeira parcela da câmera e não conseguiu o resto do dinheiro. Quando contou para a prima, triste, que não teria como pagar, ela entendeu tranquilamente, e foi animador. Entre trancos e barrancos, vendendo e investindo em materiais, conseguiu progredir cada vez mais no seu sonho. As lágrimas rolaram ao lembrar do momento mais especial da sua carreira. Seu pai, que sempre duvidou de seu sonho, levou-o ao aeroporto para seu primeiro trabalho fora do estado, um casamento em Belo Horizonte. No aeroporto, o orgulho do seu pai era perceptível. Tirava fotos e compartilhava com toda a família pelo celular. “Foi muito legal ver meu pai me apoiando. Daí eu vi que deu certo, sabe?”. Apesar de tudo, sua mãe sempre admirou sua criatividade e determinação. Sua esposa conta a admiração que tem pelo marido como profissional e, a explicar sobre a verdade que ele transmite nas suas fotos, ela se emociona ao falar de um momento muito forte. 103

Lá vem o noivo...


II.PERFIS

“É estranho, porque ainda não aconteceu”, conta ela, “mas uma das coisas mais lindas é visualizar a gente como família, ver ele como pai dos meus filhos.” Mesmo acostumado com tantas cerimônias, cada uma é única para Alan. Não é incomum chorar enquanto fotografa os casamentos graças à ligação que cria com cada casal que trabalha. Mas nada, nunca comparado ao seu grande dia, no qual foi o homem mais importante da cerimônia e à frente das lentes...

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Hellena Cesar Oliveira


Não é o que a vida faz com você, é o que você faz com ela Raissa Micheluzzi Ferreira 105

Nome do Conto


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Raissa Micheluzzi Ferreira


Era um sábado de madrugada, R.A. estava com uma calça jeans cara e de marca nas mãos, subindo em uma boca de fumo para trocá-la por drogas. Olhou em um pedaço de espelho quebrado no final da escada e viu seu rosto refletido. Parecia o personagem Smeagol do filme “O Senhor dos Anéis”. Emagrecido, estava com 47 kg, se assustou com sua aparência e disse para si mesmo: “Cara, se eu continuar aqui eu vou morrer.” Ali, ele teve um insight e percebeu que precisava de uma mudança em sua vida. Fez coisas que considera erradas, conheceu pessoas erradas, mas não sente vergonha. Não gosta de falar sobre essa fase, que viveu no começo de sua vida adulta, mas crê que, graças a tudo isso, é a pessoa que se tornou hoje. No início da pandemia da Covid-19, R.A., agora com 34 anos, havia se afastado do trabalho em hospitais por um tempo, mas acabou voltando para a enfermagem. Depois de se formar em um curso técnico em 2015 e de trabalhar por cinco anos em um hospital público, ele resolveu mudar de ares, trabalhando em um banco, mas o repentino desemprego fez com que ele se voltasse para aquilo que entende como um chamado. Foi contra107

Não é o que a vida faz com você, é o que você faz com ela


II.PERFIS

tado para trabalhar no ambulatório de um hospital psiquiátrico particular, onde atende uma média de 60 pacientes todos os dias. As pessoas que lá estão são jovens, adultas e idosas em quadro de surtos psicóticos, distúrbios mentais e emocionais e dependência química. O técnico em enfermagem conta com tranquilidade histórias de pacientes que chegam em estados desumanos. Diariamente, ele vê pessoas que se cortam, entram em colapso e se encontram debilitadas por conta de surtos esquizofrênicos ou do abuso de drogas e álcool. Situações nas quais o sofrimento emocional se materializa nos corpos mutilados pela dor que vem de dentro. A saída para enfrentar isso é vestir um sorriso no rosto e acolher essas pessoas da forma mais empática e responsável possível. Mesmo exposto diariamente ao sofrimento humano, ele acredita que nada disso deve afetá-lo, porque a vida deve ser encarada, sempre, com a maior positividade possível. Ele crê que só se encontra a luz se você optar por ela. A clínica psiquiátrica recebe pacientes de alto poder aquisitivo, o que diferencia o perfil de público que R.A. estava acostumado a atender. O paciente do hospital particular é mais exigente, enquanto o do serviço público agradece pelo mínimo de educação que um enfermeiro oferece. Ao oferecer uma água, o primeiro pergunta se é filtrada, ao passo que o segundo te agradece pelo gesto, quando na verdade tal ação faz parte do seu trabalho. O técnico em enfermagem conta, com orgulho e alegria, que se formou em uma sexta feira e, na segunda seguinte já estava trabalhando em duas UTI’s de um grande hospital público de Curitiba. Em menos de 15 dias ouviu médicos dizendo que ele parecia trabalhar na área por mais tempo. Em nenhum momento, R.A. demonstra estar desmotivado e cansado de sua rotina. Por mais tristes que sejam os relatos sobre seus pacientes, ele os atende com muita compaixão. Existe um brilho nos olhos e um sorriso que não se perde, fruto do amor pelo que faz expresso nas palavras compartilhadas. Ele acredita que essas pessoas que sofrem em leitos de hospitais pre108

Raissa Micheluzzi Ferreira


cisam sempre de um sorriso, um carinho e de um atendimento empático. Ele conta sobre uma cena que cortou seu coração ao ver um homem de boa aparência, de 28 anos, com família rica e a possibilidade de um bom futuro, chegar na clínica com o braço necrosado devido ao abuso de drogas injetáveis. Assistir a essas cenas fazem-no, inconscientemente, voltar a um passado sobre o qual não gosta de falar. Não por vergonha, mas pela opção de preferir sempre lembrar do que é bom e procurar a luz e a positividade em sua vida. Sabe que tem seus problemas, mas acredita que eles não podem ser superiores ao seu compromisso com a enfermagem. Durante a pandemia, R.A. não sentiu medo de contrair Covid-19. “Eu não tenho medo de covid, não tenho medo de me contaminar, desde que eu esteja fazendo tudo o que posso em prol dos outros. Se eu puder ajudar as pessoas a não se contaminarem e sobreviverem, tá tudo bem”. Diz com convicção, pois acredita que seus pacientes precisam sempre confiar nele e em seu trabalho. Esse momento de pandemia só trouxe aprendizado, a convivência no hospital melhorou e as pessoas desse “ambiente egóico”, segundo ele, estão mais simpáticas, prontas e atentas para trabalhar em equipe. V.M., de 35 anos, companheiro de R.A., também atua na área da saúde, mas como nutricionista na ala de infectologia de um hospital público. Ele concorda que o ambiente hospitalar tem disso. V.M. gosta muito de olhar com os olhos do enfermeiro que tem uma visão empática do mundo “Eu sempre fugi dos relacionamentos com pessoas da área da saúde, porque eu não queria chegar em casa e ficar debatendo sobre os egos que a gente encontra. Só que com o R.A. não tem isso! É gostoso falar com ele sobre qualquer coisa. Mesmo sendo áreas distintas dentro da saúde, dá para ter uma conversa muito boa”, diz ele. Toda a sua positividade é encontrada nos momentos 109

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II.PERFIS

em que se exercita e no seu dia a dia no trabalho. O enfermeiro aprende a cuidar de sua mente enquanto ouve os terapeutas de seus pacientes os orientando e tratando. Ele acredita que tem que estar bem para atender o outro e, mesmo tendo problemas procura criar uma barreira para no trabalho entender que está ali para os que têm problemas realmente sérios. “Se eu olhar bem, eu não tenho problemas, eu tenho saúde física e mental boa. É difícil demais. Há dias que você está sobrecarregado de problemas psiquiátricos e clínicos dentro de uma mesma estrutura, mas tem que se manter firme e otimista para fazer o melhor atendimento que puder”, conta o técnico em enfermagem. R.A. acredita que só escolheu ser como é, porque já abraçou toda a negatividade que a vida lhe ofereceu. Aos 13, perdeu seu pai e possui até hoje uma relação conturbada com a mãe, inclusive diz ver sua relação com ela como a da protagonista com a mãe em seu filme preferido, Precious (2009). Seus pais, por coincidência ou não, também atuavam na área da saúde sendo o falecido pai tisiologista e sua mãe, uma médica aposentada. A repentina morte de seu pai, e a falta de ter dito o que sempre quis dizer a ele, fazem-no sentir esse amor todo por sua profissão. Em cada paciente, R.A. vê a oportunidade de depositar carinho e palavras de afeto que gostaria de ter dito ao seu pai, quando vivo. Repete inúmeras vezes que não fala sobre isso com quase ninguém, porque pensar na sua própria história o leva para longe do agora. Saindo do Rio de Janeiro, cidade onde morou a maior parte da vida, viajou pelo Brasil pedindo carona, chegou a dormir na rua até chegar a Curitiba, onde um amigo de infância estava morando. Sempre buscou referência familiar nas famílias de seus amigos. L.M., a vizinha do primeiro andar, a quem ele chama de filhota, diz que não tem como não amar e como não ser amiga do R.A. “Ele é muito amor!”. Foram inclusive nessas relações que ele se aproximou do cotidiano de cuidado hospitalar e que veio a buscar como carreira, quando cuidou de enfermos 110

Raissa Micheluzzi Ferreira


dessas famílias afetivas como se fossem sangue de seu sangue. R.A. não se envergonha de nada, pois acredita que tudo por que passou fez dele um ser humano melhor. Ao citar uma passagem da Bíblia que leu no livro “Noites Brancas”, de Fiódor Dostoiévski, ele diz que não quer ser “o cão que volta ao vômito”, porque optou por ter uma vida positiva e esperançosa. É isso que o faz querer seguir sempre em frente.

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O doce som de sua voz Stephanie Spredemann Friesen


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O doce som de sua voz


II.PERFIS

O significado do nome já dá pistas de como são as interações com a jovem de sorriso fácil - daqueles que saem da boca, se estendem até os olhos castanhos esverdeados e fazem morada no rosto do outro. Emili Spredemann Gamaliel, a garota da fala agradável. Com sua voz levemente rouca e conjugando os verbos em tu, o papo conquista. Com sua voz, ela prega o amor de Jesus. Emili, o marido e outras 37 pessoas com idades entre 17 e 45 anos, compõem uma turma do Centro de Treinamento Missionário Vida, localizado em Belchior Alto, Gaspar. O local é gerenciado pela Igreja de Blumenau com o apoio financeiro de amigos e colegas. O centro é dividido entre as alas para as meninas solteiras, os meninos solteiros e os chalés para os casados. As aulas no campus são integrais e eles passam 24 horas juntos como uma grande família - desde o café, aos estudos sobre teologia e missão e nas aulas de libras e música. Também chamado de Casa das Nações, lá todos descobrem qual a sua vocação e aprendem a amar todas as tribos e povos. Após os estudos, estão prontos para ir ao mundo e servir. Mas a vida de Emili nem sempre foi assim. 114

Stephanie Spredemann Friesen


Nascida e criada no Morro da Palha, município de Taió, a 271 km da capital catarinense, Florianópolis, Emili tem um contato profundo com a natureza. Lembrar da infância a faz sorrir com a enxurrada de boas memórias. “Coisa boa deixa saudade”, afirma. Recorda-se das inúmeras árvores que escalou, de brincar com os primos e das tantas marcas que arranjou. Entre canelas roxas e arranhões, até hoje carrega duas cicatrizes no joelho direito: uma ganhou andando de bicicleta e a outra tentando passar por uma cerca. Emili se sente mais próxima do pai, apesar de a intimidade para contar as coisas da vida ser maior com sua mãe. Sua relação com eles foi dividida em fases, em algumas passou muito tempo com eles e em outras pouco. O pai é pedreiro e saía cedo para trabalhar. Já a mãe, faxineira no posto de saúde, chegava mais tarde que o pai, ocupada com o curso técnico em enfermagem, área na qual agora não pode atuar por falta de vagas na cidade. Quando voltavam para casa, encontravam as filhas dormindo. Assim, Emili passava mais tempo com as irmãs Bruna e Danae. “Não é fácil crescer com irmãs. Tudo vira disputa”, comenta. Mas logo perceberam que cada uma tem seu espaço e hoje se dão bem. Durante o dia, passava muito tempo com a Oma e o Opa, unindo o útil ao agradável. Agora, longe dos avós, trocam mensagens constantemente. Aos domingos reuniam a família para o famoso cafezão, com direito a tudo o que uma família descendente de alemães gosta: café passado, cuca de banana e nata, uma montanha de ovos cozidos, fatias grossas de pão caseiro, salame, chá de hortelã ou erva-doce e Schmier - ou chimia, a geléia sobre o pão. Acostumada à rotina, sentiu as pequenas mudanças em sua vida. A escola que frequentava não tinha ensino médio. Na nova escola, logo fez amizade com Lyonatã. Eram de igrejas diferentes. Na dela, Emili tocava violoncelo. E ele era professor de música. Tinham alguns pontos de vista diferentes, mas gostavam muito de conversar. Conforme se aproximaram, perceberam 115

O doce som de sua voz


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que se gostavam, porém um empecilho logo surgiu: ele se mudou para São Miguel do Oeste. Agora, o recente casal estava a 466,8 km de distância um do outro. A solução para a saudade foram os encontros intercalados. Um fim de semana por mês se revezavam para viajar e se ver. Enquanto o dia não chegava, trocavam cartas apaixonadas por meio dos amigos. Diferente do que o ditado diz, Emili sabia que ia ser difícil, mas acredita que escolhemos quem amar. Até que um então, a surpresa. Um dia, Emili viu uma foto do casal pendurada em sua porta, e seu coração já sabia o que viria antes mesmo de adentrar o quarto. Seus olhos encontraram os do namorado, em meio aos balões, doces, pétalas, fotos e um buquê de rosas. No ar, estava o amor, mas também o aroma de um jantar romântico. O sim veio com facilidade e, assim, as alianças foram trocadas. Agora, estava noiva. Havia muito a ser feito. Enquanto terminava o ensino médio, Emili organizava seu casamento. Fevereiro se aproximava, mas nem sonhavam que uma pandemia estava por vir. O primeiro caso de coronavírus no Brasil, foi confirmado no dia 26 de fevereiro. Quatro dias antes, entre cem convidados e um belo pôr do sol, o casal se aproximou mais do que nunca e o sonho da infância se realizou. A decoração do local teve um toque pessoal, eles pintaram as plaquinhas da entrada da cerimônia com textos bíblicos e frases sobre o amor. Aos 19 anos, Emili estava oficialmente casada: “O legal de casar cedo é construir as memórias juntos”. A família achou cedo, mas sempre apoiaram. “Tudo bem, eu também casei novo e sou feliz até hoje. São 28 anos de casado”, defende o pai. O coração da família apertou ao ver a caçula, carinhosamente chamada de babyzinha, sair de casa. “Deixou nóis sozinho.” Se, por um lado, ficaram tristes, por outro, sabiam que ela tinha se casado com um “rapazinho muito bom, responsável e da Igreja”. Emili saiu da casa dos pais para morar em Blumenau. O dia da mudança com toda a família reunida para a despedida é sua memória favorita. Mas, ao contrário do que diz a típica can116

Stephanie Spredemann Friesen


ção da cidade: In Blumenau ist der Himmel blau, o céu lá não era azul. Apesar de gostar mais do verãozão, ela aprendeu a gostar da chuva e do tempo nublado na marra. O que mais sente falta de morar no interior é a privacidade que tinha em sua própria casa, onde ninguém ouvia sua música alta e tinha espaço para cultivar o que comia. Substituiu as plantações por flores e suculentas, que hoje enfeitam o jardim de seu chalé salmão. Agora quando passa seu endereço, dá o do CTMVida. Lá, a proposta é ficar um ano e quatro meses estudando e fazer três meses de estágio em um local aleatório na América do Sul. “O legal é não saber onde será.” No Centro, Emili e Lyonatã cumprem seu propósito de vida: conhecer Jesus e torná-lo conhecido. “Sou parte da família de Deus”, afirma. Ela encontrou na escrita uma relação próxima do criador e seus “versos para Jesus” estão em processo de virarem livro. Através de suas ações e jeito de ser, Emili influencia as pessoas por onde passa. “Encontrar a Emili é um carinho de Deus”, comenta Ana, a pastora e conselheira dela. Já sobre o futuro, ela não sabe onde estará: “Não consigo ver um lugar, mas me vejo servindo às pessoas”. O coração deseja o Nepal, mas fará o que a voz d’Ele sugerir.

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O doce som de sua voz


Uma vida bem vivida Jéssica Pretto


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Uma vida bem vivida


II.PERFIS

Sentado em uma cadeira de praia na varanda de uma casa de fundos em uma movimentada avenida de Curitiba. É assim que Seu Ireno, hoje com 93 anos, passa a maior parte do tempo. Mas a vida dele nem sempre foi assim tão pacata... Por volta dos anos de 1960, ele tinha uma vida agitada no interior do Paraná. Cuidava da fazenda de café de seu pai e fazia parte do Clube Social de Terra Boa, cidade onde morava com a esposa e seus cinco filhos. Estava presente nos eventos da sociedade. Em 1967, foi o primeiro da região a ter uma televisão em casa: “Todo mundo ia assistir a novela Irmãos Coragem, ficava lotado”, relembra Ireno. Ireno era envolvido na política e chegou a se candidatar a vereador. O motivo? “Meu irmão era do partido contrário e ia se candidatar, então me candidatei pelo partido Arena para ele desistir”, relata. Entretanto, teve 250 votos e não foi eleito, até que um ano depois um vereador morre e ele entra como primeiro suplente. Em uma manhã de sábado, em 1975, enquanto levava seu filho mais velho para estudar em Curitiba, foi parado pela 120

Jéssica Pretto


polícia na estrada. “Eles estavam do outro lado, desci do carro e fui atravessar para entregar os documentos pra eles.”, dizia ele. Foi atropelado e arrastado por um carro do Detran. Levado ao hospital no seu próprio carro, dirigido por um policial, ficou 40 dias internado. Mas, infelizmente, este não foi o único acontecimento ruim daquele ano. Pouco tempo depois, uma geada na fazenda matou os cafezais. Então, junto com seus irmãos, vendeu a propriedade: “Comprei um sítio, comecei a cultivar outras coisas, comprei gado”, ele conta. Entretanto, o que ele sabia mesmo era cuidar dos cafezais. Acabou tentando outros investimentos que não deram certo, até que, em 1995, seguiu a ideia de um de seus filhos de ir para Curitiba. Com toda a família, vendeu tudo e chegou à capital. Comprou uma panificadora no bairro Novo Mundo, e alguns anos depois acabou falindo: “Como meus filhos já estavam encaminhados na vida e eu ganhava um salário de aposentadoria, não passamos tantas dificuldades”, conta. Foi aí que a vida do seu Ireno começou a desacelerar. Por conta da idade avançada, parou de dirigir. Na sua casa, onde antes moravam dez pessoas, ficou ele e a esposa. Uma vez por ano ia para o Mato Grosso visitar o filho mais velho que mora lá. “Ia no inverno, para fugir do frio de Curitiba.” Também fazia caminhadas e uma vez por mês pegava o ônibus para ir ao centro de Curitiba, em busca de sua aposentadoria no banco. Em uma dessas idas, quando saía do banco com o salário, acabou caindo em um golpe do bilhete premiado. Um homem o abordou dizendo que trocaria com ele um bilhete de loteria premiado pelo valor da aposentadoria. Ireno lhe entregou o dinheiro, e o homem desapareceu. Sua esposa conta que ele sentiu muita vergonha por ter sido vítima de um golpe: “Ele ficou quieto por dias, sem conversar direito. E não foi pelo valor, foi por ter sido enganado daquele jeito.” Desde então, ele começou a pedir para as filhas ou a 121

Uma vida bem vivida


II.PERFIS

neta que o acompanhassem ao banco. “A gente vai ficando velho e não consegue mais fazer as coisas sozinho”, ele comenta. As viagens para o Mato Grosso foram diminuindo, até que também não era mais possível viajar sozinho. Os dias foram se tornando mais tediosos, em casa. Poucos meses depois de completar 93 anos, caiu na frente do portão da sua casa e cortou a cabeça. Foi levado ao hospital de ambulância e ficou alguns dias na UTI. Locomover-se virou uma dificuldade e, por precaução, não fica mais sozinho em casa. A bengala virou um acessório indispensável. Muito querido por seus filhos e netos, Ireno sempre tem a companhia deles nos fins de semana. “Sempre foi um pai presente, nos incentivava a estudar. Todo dia depois das nossas aulas na escola, ele perguntava o que tínhamos aprendido e qual livro estávamos lendo”, conta sua filha Juliana. Seguindo o ciclo da vida, os papéis se inverteram e agora quem cuida dele é a sua família. Mesmo com as limitações da idade, seu Ireno segue com vontade de viver. Ele tem gosto pela vida, pela família e pelo time de futebol do coração, o Palmeiras. E espera poder viver muitos outros anos, ainda que na sua cadeira de praia na varanda de sua casa de fundos. Ainda que para refletir sobre o correr das horas e o escoar da vida...

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Jéssica Pretto


III.Gonzo


A nova Boca Maldita Brunna Gabardo 124

Nome da Autora


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A nova Boca Maldita


III. GONZO

Observar as pessoas caminhando como formigas, com uma pressa inquietante, às vezes imaginária, pela Rua XV de Novembro, no Centro de Curitiba, é quase como ver o coração bombeando sangue pelo corpo, conduzindo o ar pelos pulmões. É praticamente natural e é assim que deve ser. Meus pés tomaram forma naquelas calçadas ladrilhadas, minhas pernas esticaram e eu cresci naquele garimpo de gente, riquezas e olhares. Lá tem ipê, que em setembro fica amarelo. Mas já é final de outubro e logo virá novembro, mas não me recordo do colorido. Há todo tipo de gente, das que insistem em papéis de sorte nas lotéricas até as que vendem tapete, alfajor e engraxam sapato. Me lembro de olhos fundos, daqueles soterrados, perdidos, pareciam machucados feito joelho de criança, costas pesadas e cansadas. Mas, na Rua das Flores, sei que caminham estranhos conhecidos, que conheço pelo não-nome que lhes deram, pelo caminho que permanecem, na maldita boca. Não! Boca Maldita. Devem dizer agora: maldita doença, maldito degrau, maldito governo, maldito país etc. Para mim, ao Centro, só se vai no sábado. Então, no 126

Nome Brunna daGabardo Autora


primeiro sábado, voltei ao lugar onde aprendi a caminhar em Curitiba, e para as calçadas que me moldaram na forma da rua. Os varejos estavam nos mesmos lugares, assim como os caricaturistas perto do Palácio Avenida. Vi a rapidez, a fluidez e, também, a palidez de rostos que não viam o sol há muito tempo, inclusive o meu. Ouvi gente gritando, chacoalhando bandeiras coloridas e entregando panfletos de políticos. Afinal, faltavam duas semanas para um novo ou um reeleito prefeito. Tive um grande déjà vu. Ver os pombos despreocupados e as calçadas curtas, também mundos inteiros a serem vistos, pisoteados e roubados, se é que a pandemia já não o fez. Ver as pessoas, normalmente, depois de uma caminhada longa e demorada, sentindo falta de água e de um lugar à sombra para sentar, e que, em último caso, permaneciam mesmo sob o sol. Mas, naquele primeiro sábado, não havia sol, estava frio e garoando. As pessoas mascaradas caminhavam com olhares tristes. E, em um banco de madeira, perto do monumento formado por duas pedras de granito, encontravam-se, cada qual em um canto, dois senhores de chapéu preto e casaco bege. Faça chuva, sol, ou pandemia, lá estavam. Em 2019, eu havia encontrado quatro senhores sentados lado a lado nesse mesmo banco, naquele mesmo lugar. Pedi licença para tirar uma foto e eles posaram. Me pergunto se algum deles estaria ali, mas em seguida vou embora. No segundo sábado está quente. O clima está diferente, não apenas em relação à temperatura. As eleições marcam ainda mais a presença de tendas e panfletos na rua. Quando me direciono à Boca Maldita, esperando escutar algumas desavenças políticas, nenhum senhor está conversando ou tomando café, nem mesmo estão ali. Achei estranho, pois era difícil não os ver naquele lugar. Depois de uns dois minutos, sigo em frente. Então, sou parada por um rapaz chamado Rodrigo, que está ajudando um amigo a ser vereador, e recebo até o final da XV de Novembro cerca de cinco panfletos. As campanhas políticas têm sua mania de provocar uma estranha “desatenção” das 127

A nova Boca Maldita


III. GONZO

pessoas na rua. Elas desviam, se escondem debaixo dos casacos, olham para outro lado, e penso que é assim que funciona com as coisas importantes também. Perto da Praça Santos Andrade, meus pés começam a falhar e me arrependo por ter escolhido um tênis desconfortável. Decido voltar todo o trajeto até a Boca, para o caso de algum senhor estar lá. Mas, no caminho, grudado em um poste de luz, um folheto meio gasto dizia: “Ato na Praça Santos Andrade, 14h. #JustiçaPorMariFerrer.” O caso da influenciadora digital Mariana Ferrer, vítima de estupro no ano de 2018, em Florianópolis, repercutiu pelo país após ter sido humilhada durante a audiência divulgada por um veículo de comunicação na primeira semana de novembro. Meus pés machucados arranjam forças no mesmo instante e começo a fazer todo o caminho de novo para a praça. Já na Santos Andrade, a primeira coisa que enxergo são as dezenas de mulheres sentadas nas escadarias da Universidade Federal do Paraná, e seus olhos estão rubros, cansados e desacreditados. Sento e espero. Logo, um homem passa distribuindo dois papéis com as escrituras impressas: “Justiça Por Mari Ferrer” e “Cancioneiro Feminista”, com as palavras que seriam ditas durante a manifestação. Me levanto e pergunto a uma mulher sentada no primeiro degrau se os adesivos que estavam com ela eram de graça. Mesmo de máscara, ela sorri e me deixa pegar dois, um roxo e um rosa, que diziam: “Juntas pelo fim da cultura do estupro”. Então colo no lado esquerdo do peito. Em seguida, o grupo de mulheres da “bloca” feminista Ela Pode, Ela Vai, se reúne no lado esquerdo da praça e começam a tocar e cantar perto de onde eu estava. O coração acompanha o som dos tambores das meninas. Não sei o que dizem, mas canto junto. Meus pés acompanham seus pulos e sua batida. Eu tomo sua indignação, seu desespero e sua força para mim, e continuo acompanhando até o batuque cessar. É formado então um círculo, onde grande parte das manifestantes se reúne. Falam sobre injustiça, violência, mulheres pretas, indígenas, brancas, de cabelos curtos, grisalhos, crianças, e sinto todas elas ao meu 128

Brunna Gabardo


redor, porque as vejo também. Enxergo duas senhoras de cabelos raspados e brancos segurando um papel escrito “Estupro Culposo Não Existe”, e logo as perco de vista. Vejo um grupo de cinco mulheres indígenas, entre elas, uma criança, com os braços pintados de uma cor vermelha alaranjada e seus rostos cobertos, que também dirigem a palavra: “Estamos aqui em solidariedade”. Mulheres do grupo Slam das Gurias gritam suas poesias e o palco é delas. Mas uma poesia é recitada antes, pela designer gráfica Caroline Lemes, de 30 anos: “Eu não quero um copo d’água, muito menos me acalmar [...] Eu vou gritar é alto, sem nenhuma calma, que não somos poucas e que Estupro Culposo é uma ova!” Depois de sua fala, por coincidência, esbarro nela, um pouco mais baixa que eu, com um lenço verde cobrindo o nariz e a boca, e uma camiseta preta com a frase: “Entenda que você faz parte”. Elogiei sua poesia e perguntei se podia ver mais de seu trabalho. Caroline alcança seu celular e me mostra sua página no Instagram, completamente colorida e com a descrição “Salve Arte Salve”. Perguntei quando e como ela tinha começado a usar a arte para ser ouvida: “Eu sempre estive num lugar de muita revolta interna”, comenta. Sobre o caso de Mari Ferrer, diz: “A partir do momento em que um homem é considerado inocente de um estupro, dá precedentes para que outros homens também sejam considerados inocentes”. Concordo com a cabeça, e passados poucos minutos, nos despedimos. Mais à frente, o microfone ainda agitava vozes de mulheres e, ao fundo, as pessoas aplaudiam e assobiavam. Parei ao lado de uma menina que estava agachada escrevendo: “Não ensinem mulheres a não serem estupradas. Ensinem homens a não estuprar!” Ela chacoalha o canetão preto e a tinta atinge minha perna e meu braço. Tento tirar a mancha, mas ela seca rápido em mim e desisto de remover. Acompanho um pouco mais as falas, mas já estava ficando tarde. Dou uma última olhada para trás e vou embora. Por volta das 17h, encontro meu local de partida in129

A nova Boca Maldita


III. GONZO

vadido pelos Cavalheiros da Boca Maldita. Três homens e uma mulher estão sentados em um banco e do outro lado da rua, dois engraxam seus sapatos. Mais à frente ocupam quase todos os bancos. Olho para eles e penso na outra conversa sobre política acontecendo algumas quadras lá à frente. Penso também se não deveria ter esperado um pouco mais para falar com eles. Queria perguntar sobre os malditos que deram o nome ao lugar, como aquele ponto se tornou um símbolo da liberdade de pensamento e sobre o quê tanto eles discutem. Mas as mulheres, ao contrário dos senhores da Boca, nunca puderam falar. Concluo que estive no lugar certo. A Praça Santos Andrade, naquele momento, e em tantos outros, tornou-se a antiga Boca Maldita, com opinião expressa em prosa e verso, gritada e reclamada por vozes femininas silenciadas por muito tempo.

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Brunna Gabardo


Ágora curitibana Isadora Deip 131

Nome do Conto


III. GONZO

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Isadora Deip


Já estive na Praça Osório para experimentar o pierogi da feirinha e degustar um quentão com marshmallow. Quando mais nova, eu costumava andar pela XV em busca de roupas para minhas bonecas. Porém, em meus 19 anos, mesmo sendo uma curitibana de raiz, nunca havia parado na região em época de campanha eleitoral. No máximo havia caminhado a passos corridos para desviar dos panfleteiros ávidos por ouvintes e, quem sabe, por eleitores. Perguntei-me como reagiriam se alguém lhes desse aquilo que mais desejam: atenção. Decidi, assim, me infiltrar na multidão que passa reto pelas tendas de propaganda política. Diferentemente dos trabalhadores apressados e de alguns ansiosos adiantando suas compras natalinas, meus olhos e ouvidos estavam bem abertos. Percorri o calçadão da XV de ponta a ponta para um primeiro vislumbre do cenário. Lojas, bares e restaurantes abertos. Se não fossem pelas máscaras nos rostos (não em todos, infelizmente), poderia afirmar que são tempos normais – obviamente, com o adicional de bandeiras de partidos, panfletos e santinhos de 133

Ágora curitibana


III. GONZO

políticos. Em uma das tendas, li o nome “Jornalista Jorge Yared”. Percebi que o próprio candidato estava ali e decidi que aquela seria a primeira tenda onde eu pararia para conversar. Quando me identifiquei como estudante de Jornalismo, o candidato a vereador pelo PT já puxou uma mesa para nos sentarmos. Começou a se apresentar como se estivesse narrando um programa de rádio. “A presença na Rua das Flores é emblemática”: é a frase que usou para explicar o papel da campanha corpo a corpo. Segundo dados do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) referentes às eleições municipais de 2020, Curitiba conta com 16 candidatos ao cargo de prefeito e 1.190 candidatos a vereador. Além da XV, há pontos de campanha na Praça Rui Barbosa, na Carlos Gomes e em outros bairros. Há partidos que se empenham em fazer a propaganda presencialmente de segunda-feira a domingo. Ao ver todas aquelas tendas armadas em uma das mais tradicionais ruas curitibanas, o que eu mais pensava era se aquele tumulto todo era movido por uma vontade de aprimorar a cidade ou por mera ganância. Pergunto isso a Jorge Yared, que retruca: “O que está no coração de cada homem só Deus esquadrinha”. Andar pela XV por vezes requer que você encarne o Tom Cruise na Missão Impossível de fugir dos persistentes vendedores de alfajor. Ao percorrer a rua, ouço gritos como: “Ó o chip da TIM!” e sou abordada por um moço perguntando se quero fazer um exame de vista. Esses são alguns dos personagens clássicos da Rua das Flores. Mesmo assim, optei por conversar com a estátua humana. Pintada de branco e com um lençol ao redor do corpo, ela respondia às minhas perguntas emitindo um som de apito. Tive que segurar o riso. Questionada sobre o que achava da campanha política na XV, sua resposta veio em forma de uma cara feia, com a testa franzida. Meu próximo passo foi parar na tenda de campanha de reeleição do atual prefeito, Rafael Greca (DEM), na qual entre134

Isadora Deip


vistei Júlio César Braga, mais conhecido por JB Braga. Esta era a vigésima oitava campanha política da qual JB fazia parte. “Acho que todos temos dons. Meu dom é gostar de política.” Com palavras cheias de convicção, ele se denomina conhecedor de Curitiba e tem certeza de que Greca foi um dos melhores prefeitos dos últimos anos. “É um vício. Fazer política é vício!” Pergunto a ele sobre a importância da representatividade feminina na política curitibana. Fiquei curiosa para ver como reagiria à pergunta estando frente a uma mulher. Quando respondeu que julgava ser importantíssima, não nego que senti uma faísca de esperança. Mas, em menos de dez segundos, ela foi apagada pela explicação de JB: “Hoje em dia tem a cota, né? ‘Cê’ tem que dar 30% da cota para registrar a chapa no TRE”. Não consegui evitar que minha sobrancelha direita se erguesse de indignação. Olhando para a XV no cenário de campanha eleitoral, senti como se estivesse assistindo àquelas peças de teatro surreais em que personagens novos não param de surgir. Percebendo todas aquelas tendas de partidos com ideias tão plurais, me veio à mente o quão propício para brigas é aquele clima. Curiosamente, a resposta dos panfleteiros me provou o contrário: “Estamos todos num mesmo barco”. É o que diz Gabriele Borinelli, estagiária de 21 anos. Ela conta que muitos dos que trabalham nas campanhas estão desempregados, em busca de uma renda. Noto então que, de uma forma caótica, o ecossistema instaurado na XV funciona. Próximo ao banco Itaú, encontro Renan Pedroso da Paz, jovem desempregado que atua de forma voluntária na campanha política da candidata a vereadora pelo PT, agora eleita, Carol Dartora. Penso no quão confiante alguém deve ser nos ideais de outra pessoa para defendê-los de maneira tão dedicada. Ele então me conta sobre o racismo sofrido mais de uma vez naquela região e entendo que relatos como o de Renan provam que a XV, além de reunir estabelecimentos importantes, como toda rua principal de uma grande cidade, também escancara o que há de mais podre nas entranhas dela. 135

Ágora curitibana


III. GONZO

Aproximo-me de uma tenda escrita “Delegado Mikalovski”, do candidato a vereador pelo PSL (antigo partido de Jair Bolsonaro). Quem conversa comigo é o vigia Marcos Pinheiro, de 35 anos. Decido questioná-lo sobre a defesa de causas sociais – algo que me parece destoante das propostas do candidato. “A gente é totalmente contra o racismo”, responde, e, por um segundo, me repreendo por ter certeza de que a resposta dele seria bem diferente. “Até porque existe o racismo contra branco também, né? Se um negro chama um branco de branquelo, isso é racismo.” Neste momento, agradeço mentalmente por usar máscara e ela esconder meu riso de escárnio. “Fogo nos racistas!” é a primeira frase que eu ouço de Telma Mello, corretora de imóveis e candidata a vereadora pelo PSOL. Ela postula um cargo em uma Câmara de Vereadores na qual nunca houve uma mulher negra. Conto a ela sobre o conservadorismo que percebi no contato que tive com as campanhas. Ela acrescenta: “Curitiba é conservadora, racista e burra. Impera só essa política hereditária. Eu não tenho família de político, meu nome é Telma Mello”. Ela me conta que abandonou o movimento feminista por ele não andar de mãos dadas com a luta antirracista, como deveria. “Se as brancas realmente lutassem por igualdade, essa era a hora de abrirem mão de seus cargos políticos e apoiarem as mulheres negras!”. Falo que notei tendas com a bandeira LGBTQ+ pregada nelas e recebi panfletos que citavam a luta antirracista. Ela responde: “A galera grita ‘Marielle presente’, mas será que sabem suas pautas de justiça racial? Eu falo: ‘P*rra, cara, não seja hipócrita de gritar uma coisa que você não pratica”. Minha caminhada pelo Centro nesse dia foi bem distinta das anteriores. Voltei para casa com a bolsa lotada de santinhos e panfletos. Perguntei-me muito sobre as motivações intrínsecas daqueles que se envolvem com política. A verdade é que cada um sabe o peso de sua consciência. O poder, percebi eu, é desejado por muitos como um luxo, mas, para alguns, é questão de necessidade: precisam do poder para abrir os olhos das pessoas e, 136

Isadora Deip


quem sabe, desviar a atenção delas do próprio umbigo. Eu pensava que ali no Centro só iria ouvir politicagens e me deparar com discursos prontos. Se é mais difícil para os participantes de campanhas mentir estando de frente para o eleitor, eu não sei. Mas o olho no olho revela as verdadeiras intenções de alguém. Por isso digo que presenciar a campanha política no Centro é algo que todo eleitor deveria fazer. Isso também vale para os candidatos. Quando surgiu na Grécia Antiga, a política era discutida em praça pública, mas, infelizmente, isso se perdeu. Política não tem de ser feita dentro de escritórios. Política se faz na rua, é lá que o fogo pega.

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Ágora curitibana


NOME DO CAPÍTULO

Uma manhã chuvosa no Mercado Municipal Jessica Pretto 138

Nome da Autora


III. GONZO

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Uma manhã chuvosa no Mercado Municipal


III. GONZO

Quando eu entro no Mercado Municipal, percorro os corredores, com diferentes aromas que muitas vezes não consigo decifrar. Ao mesmo tempo me sinto extasiada com a variedade de produtos interessantes, além da diversidade de pessoas que passam por lá. Eu já fui várias vezes ao mercado, mas sempre me perco andando pelas passagens estreitas. É uma manhã de terça-feira, chove bastante. Percebo que o mercado está quase vazio, pois geralmente lota aos sábados, atestam isso as vagas disponíveis na rua para estacionar o carro. Entro e vou caminhando sem muita certeza de onde vou chegar, até que percebo que estou na frente de uma loja de peixes. Um corredor cheio de aquários com os mais variados peixes, diferentes tamanhos e cores. Paro e fico alguns minutos ali, apenas observando. Depois de dar mais alguns passos, entro no Café do Mercado, que fica logo ao lado de uma das entradas. O aroma de café me chama a atenção. Além da música e decoração antiga, que me fazem sentir como se estivesse no século passado. No cardápio, todos os tipos de cafés possíveis. Sento-me na área externa e observo uma mulher na mesa ao lado tomando um café com um pequeno copinho de água com gás ao lado. Resolvo pedir para ela alguma sugestão, e ela prontamente me diz que está tomando um café indiano. “Se você gosta de café forte, pode pedir este.” 140

Nome Jessica daPretto Autora


Roberta de Castro me conta que é apreciadora da bebida e cliente há alguns anos, porque tem um consultório próximo ao mercado, e sempre aproveita para tomar um café diferente a cada ida. “Gosto de experimentar, já provei até o que dizem ser o mais caro do mundo.” Ela fala do café Kopi Luwak. Procuro no cardápio e vejo que uma xícara com 40 ml custa R$ 45. Roberta termina seu café, despede-se e sai caminhando. Levantei-me dali e comecei a circular pelo mercado novamente. Passando pelos comércios de frutas e verduras, esbarro em um rapaz carregando mercadorias em um carrinho. É Cleberson, que trabalha há cinco anos como carregador e encaixotador. Ele me pede desculpas e eu digo que a culpa foi minha, que estava distraída fotografando o ambiente. Começamos a conversar e ele fala que vai toda semana fazer entregas. “A gente chega de manhã cedo, e vai colocando as caixas do caminhão no carrinho e trazendo pra feira. Umas 500 caixas.” Quando penso em fazer mais uma pergunta sobre a rotina dele ali, ele rapidamente retira o carrinho vazio e segue para a saída. Logo ao lado, encontro uma senhora escolhendo alguns produtos da feira. Ela me conta que sempre compra ali. “Também gosto de comprar na parte de cima, bem escondido em um cantinho perto da praça de alimentação, tem uma feirinha onde tudo é orgânico.” Ivone de Castro tem 62 anos e mora a uns 800 metros do Mercado Municipal. Observo-a enquanto ela enche sua sacola de frutas e verduras. Fundado em 1958, o Mercado Municipal de Curitiba tem mais de 350 lojas, que ofertam frutas, temperos, queijos, cafés, vinhos e muitos outros produtos. Além disso, foi o primeiro mercado do Brasil a ter um espaço exclusivo para produtos orgânicos. Os sábados costumavam ser os dias de maior movimento, diminuindo durante a pandemia. Em uma terça-feira, presencio o mercado praticamente vazio. Comerciantes tiveram que se adaptar neste período, e mais de 50 lojas começaram a ofertar serviço de delivery. Ana de Lazzari, que é dona de uma loja de alimentos no mercado, diz que as entregas foram a solução 141

Uma manhã chuvosa no Mercado Municipal


III. GONZO

no período em que o mercado ficou fechado. “Os clientes fazem a encomenda pelo nosso WhatsApp, foi o jeito que vimos de conseguir lucrar alguma coisa com as portas fechadas.” Ana fala que as entregas continuam mesmo com o mercado reaberto, porque o movimento ainda não voltou completamente. Resolvo partir para uma experiência gastronômica que já havia planejado com antecedência. Sempre tive vontade de experimentar o sorvete japonês de matcha – um dos mais populares chás verdes do Japão - no Oishii, restaurante de comida de rua japonesa que fica logo no início da entrada principal do mercado. Quando chego no balcão sou recebida com um Ohaio, que significa olá em japonês. O cardápio se destaca pelos pratos baseados no Pokémon, desenho animado famoso. Decido pedir o Taiyaki ice, um waffle em formato de peixe recheado com chocolate e o sorvete de matcha. O visual é bonito e original, e o sorvete é refrescante. Acredito que por ser um pouco antes do horário de almoço, eu sou a única pessoa tomando sorvete naquele momento. Mas, logo começa a chegar mais gente, pedindo crepes salgados, e o mercado começa a ficar mais lotado. Decido passar uma última vez por aqueles corredores. Observo atentamente o fluxo de pessoas. Cruzando com tanta gente, percebo a pluralidade de identidades e fico imaginando qual a história de cada um. Recebo alguns olhares, consigo identificar alguns cumprimentos e sorrisos por trás das máscaras de proteção. Um pouco antes da pandemia do coronavírus, andando por aqueles mesmos corredores, havia comerciantes oferecendo degustação de produtos e chamando o público para conhecer seus alimentos. Hoje observo um mercado mais retraído, mas com a mesma riqueza em cultura e oportunidades de experiências gastronômicas e sociais. Uma referência presente na maioria das cidades brasileiras, misturando tradições e lembranças transmitidas entre gerações.

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Jessica Pretto


Bike Night: pedais de um cardume de ferro Lorena Rohrich Ferreira 143

Nome do Conto


III. GONZO

Eu saí do trabalho por volta das 19h20. Na bolsa carregava a roupa que usaria para a próxima experiência que o Jornalismo me possibilitaria. Encontrei meu pai, que providenciou as bicicletas e estava, assim como eu, vestido com roupas de ciclismo. Chegamos de carro no Largo da Ordem às 19h40, estacionamos e nos preparamos para encontrar o grupo Bike Night, responsável por organizar passeios noturnos em Curitiba. Um dos participantes me explicou: todas as terças e quintas-feiras, ciclistas da cidade se encontram para passear de forma segura neste horário, disponível a todos. O Largo da Ordem mais vazio do que nunca. A pandemia tratou de me desabituar do costume curitibano. Não tenho certeza se tem sido comum que uma das ruas mais movimentadas da cidade, nessa hora do dia, se encontre tão vaga e silenciosa. Um grupo de jovens sentado na fonte do Cavalo Babão, uma van com policiais resguardados no seu interior e o motivo de nossa ida: um homem sentado em um degrau, colete amarelo, capacete na cabeça e bicicleta ao lado. Resolvemos dar uma volta na rua e quando voltamos, mais dois, três, quatro ciclistas se amontoavam no ponto de encontro. Cheguei cambaleando na bicicleta como se não quisesse nada. Não é meu costume praticar o esporte, mesmo que meu pai me convide quase toda semana para o acompanhar em seus próprios passeios. Me apresentei e dei a entender que era apenas uma jovem que havia ouvido falar do grupo e que queria participar de uma das saídas. Meu pai, induzido a colaborar com a artimanha, também se mostrou (ou tentou se mostrar) novato no exercício. Segundo o organizador do grupo Bike Night daquela noite, existe mais de um grupo que realiza este tipo de passeio: “Nas terças, em tempos normais, a prefeitura tem um passeio que sai daqui”, disse, referindo-se ao Largo da Ordem. Não consegui tirar muito da conversa, pois às 20 horas - em ponto - um participante alertou sobre o horário e todos os cinco montaram rapidamente em suas magrelas, se puseram a pedalar e me deixaram falando sozinha. 144

Nome LorenadaRohrich AutoraFerreira


Os ciclistas, com suas roupas apropriadas e luzes ligadas, se envolveram em uma harmonia. Eu e meu pai ficamos para trás, pois meu corpo não correspondia à vontade de pedalar mais rápido. Logo, a equação “descida + sinal fechado” nos deu a oportunidade de alcançar o grupo e um dos participantes nos propôs ficarmos no meio do pequeno “cardume de ferro”. A impressão que tive durante o trajeto, escolhido sempre no próprio dia pelo organizador, é que todos estão “sempre alerta” sobre o que acontece com os integrantes. Os ciclistas que lideram o passeio dão a direção e sinalizam com a mão, avisando sobre a possibilidade de atravessar ou a necessidade de parar. Em um momento, o conjunto inteiro parou preocupado com um dos ciclistas que havia ficado para trás e, surpreendentemente, não era eu. Quando o grupo se pôs a pedalar, meu pai, experiente na arte dos pedais, voltou a me orientar: “Troca a marcha para mais leve” ou “Cuidado ao atravessar”. Naquela quinta-feira, havia apenas uma mulher que participava do passeio e, em todos os momentos, ficou na frente do grupo. Cada um era respeitado por seu ritmo, mas eu senti a necessidade de pedalar cada vez mais forte a fim de não atrasar o passeio. Um pensamento lutava mais do que a respiração ofegante: o desejo de parar. Permaneci forte por uma hora, metade do tempo que o grupo normalmente pedala. O circuito do dia incluiu as ruas Westphalen, Vinte e Quatro de Maio, a Av. Presidente Kennedy e a Via Rápida. Nessa última, me dei conta de que eu precisaria voltar todo o trajeto que percorri e resolvi me despedir do grupo Bike Night com um aceno rápido. Já eram 21 horas. Aqui, posso comentar a experiência vivida. A conversa foi breve, pois o foco estava nos pedais, no trânsito e no ar que entrava, como sem efeito nos meus pulmões. Não tive a chance de voltar a pedalar com os integrantes por falta de tempo e por falta de perna. Passei dois dias sem conseguir andar direito pelas dores musculares. A bermuda de ciclista, que possui uma espuma na região da virilha, não impediu que o atrito do banco da bicicleta me causasse dores, “com tempo e experiência o corpo se 145

Bike Night: pedais de um cardume de ferro


III. GONZO

acostuma”, explicou meu pai. Eu me propus a conversar com alguns ciclistas com os quais já tinha um breve contato. Meu pai pratica o esporte desde 2011 e fez amizade com um grupo que se dispôs a discorrer abertamente sobre o assunto. O objetivo da abordagem foi entender quem são essas pessoas que praticam e por que o fazem, além de buscar captar quem são dentro e fora do grupo. Conversei com 11 participantes, de um grupo de mais ou menos 32, em sua maioria curitibanos, homens, de 19 a 60 anos, professores, empresários, gerentes, estudantes, engenheiros. Cada um está ali por um motivo, mas dão um mesmo significado à prática: o prazer. Marcelo Pereira, 53 anos, queria praticar algum esporte que lhe proporcionasse qualidade de vida: “já pensando na minha futura, e inevitável, velhice”. Alexandre Amaral de Oliveira enxerga que a prática é seu refúgio e lhe garante satisfação pessoal. Já Miguel Izepão e Pereira se animam com a possibilidade de conhecer novos lugares. Entre os pensamentos e sentimentos, o maior valor destacado pelos integrantes deste grupo é a liberdade que o ciclismo garante. Andreas Grauer, um alemão, engenheiro há 28 anos, afirma que a prática “liberta a cabeça, o pulmão e todo organismo”, e Sergio Roberto Abrahão se abre dizendo que a prática “só perde para a família, em importância”. Felipe Fernando Mainka contou que usava a bicicleta como meio de transporte, “o estilo de vida ‘ciclista’ entrou em minha vida através do trabalho. A empresa em que eu trabalhava passou a patrocinar uma equipe de ciclismo e eu fui conhecer como era e acabei pegando gosto.” Abrahão, 58, era corredor de maratona e migrou para o ciclismo quando desenvolveu problemas nos joelhos causados pela corrida. O ciclismo possibilitou que continuasse praticando um exercício sem que atingisse o problema físico. Outros explicaram que a relação com o esporte veio da amizade e da família. Segundo Sergio Abrahão, o grupo foi se encontrando, a amizade surgiu da prática e hoje muitos afirmam que o círculo 146

Lorena Rohrich Ferreira


de amizade da vida pessoal e do grupo se confunde. Entre risadas, Mainka afirma: “Nem sabia que tinha uma vida separada do ciclismo. Eu diria que a minha vida se completa com a bike e com as amizades que ela me proporciona”. As saídas são combinadas pelo WhatsApp e a maioria dos integrantes disse preferir pedalar pela manhã, mas destacam que praticam quando podem. A frequência com que realizam a prática varia conforme o tempo disponível, mas, entre eles, a maioria destacou que separa de duas a quatro vezes na semana para isso. Já Antonio Ilson Kotoviski Filho, de 44 anos, treina seis vezes na semana, pois participa de competições. O sentimento destacado por muitos deles quando perguntei sobre a primeira experiência dentro do grupo foi comum, como declarou Grauer: “Os outros estavam mais preparados que eu!” A resposta de Mainka, que afirmou que não imaginava que era capaz de pedalar tanto, me fez perceber que ambos os sentimentos vieram à tona em minha própria experiência. Apesar de me sentir despreparada, após 2h30 de pedalada, me senti capaz. Eu procurei entender nesta conversa como funciona a relação entre os grupos de ciclismo da cidade, pois em minha vivência, percebi que a gentileza circula entre os ciclistas. Ao me separar do Bike Night no passeio do qual participei, passei por outros praticantes que também desvendavam a Curitiba noturna. Não teve um que não acenou ou não fez uma mínima saudação como um breve “opa”. Ao passarmos pela feirinha do Água Verde, lá por umas 21h30 da noite, resolvemos parar para comer. Logo avistamos um outro grupo de ciclistas, de mais ou menos dez integrantes, que papeavam em uma mesa. Me surpreendi novamente: todos na mesma simpatia usaram o mesmo “opa” ou desejaram um boa noite para mim e para o meu pai. Os ciclistas com quem conversei explicaram que o respeito e a competição se mesclam: “Entre as equipes não tem conflito, pelo contrário, há incentivo para o esporte crescer. Mas é claro que, dada a largada, é competição, né? Um compete com 147

Bike Night: pedais de um cardume de ferro


III. GONZO

o outro”, afirmou Augusto Fuhrmann Baron, ciclista e dono de uma bicicletaria na cidade. Isso instigou-me a perguntar como o grupo percebe a cidade e o ciclismo atualmente. Me surpreendi com a resposta de Fernando Andrioni: “A cidade é inimiga do ciclista”. Para mim, foi denúncia pura. Os outros comentários defenderam essa luta: “Em guerra”, expressou Anderson Ferreira. Escutei também que o ciclismo está crescendo muito, que a cidade não acompanha esse ritmo e que o esporte é necessário para a diminuição do número de carros, poluição e para a melhoria da saúde da população. Segundo uma pesquisa realizada em 2018, pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, naquele ano, 151 pessoas morreram no Paraná enquanto pedalavam. O levantamento mostrou também que, no Brasil, a cada seis horas um ciclista perde a vida em um acidente de trânsito. Não é à toa que os passeios são realizados em grupo, pois são necessários no mínimo cinco ciclistas para agregar “tamanho” na rua. Durante todo o trajeto que realizei com o Bike Night, confesso que me senti pequena e desarmada. O ciclista, tão vulnerável na cadeia alimentar do trânsito, se junta ao cardume para que no coletivo se sinta menos vulnerável. Por isso, esta simples experiência convida a pensar: qual é o nosso verdadeiro tamanho, na solidão do mar de cimento e ferro?

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Lorena Rohrich Ferreira


Novos olhares por velhos caminhos Mariana Scavassin 149

Nome do Conto


III. GONZO

“Tranquilo, vou falar de um lugar que já conheço”, foi meu primeiro pensamento ao escolher a rodoviária como local desta reportagem. Alguns dias depois, veio o pânico: vou falar de um lugar que já conheço. Itapeva, São Paulo, tem 90 mil habitantes e, apesar de ser uma das maiores cidades do estado em território, possui uma área urbana de apenas 17,2 km². Difíceis são os lugares desconhecidos da cidade, e eu, tendo nascido e morado nesta cidade pelos últimos 19 anos, já fui à rodoviária mais vezes do que consigo contar. Me programei para ir ao local numa terça-feira. Era meu último dia antes de iniciar um estágio de meio período que ocuparia todas as minhas tardes dali em diante. “Tem que dar certo, só pode ser hoje” era o que passava pela minha mente enquanto me aproximava das grandes paredes de tijolo à vista. Poucos táxis esperavam no ponto, nenhum passageiro circulava por ali até então. Assim que adentrei o espaço, algo me chamou atenção: todos os bancos estavam vazios. Faixas como aquelas utilizadas para isolar cenas de crime formavam diversos “x” nos assentos, 150

Mariana Scavassin


impossibilitando o público de sentar-se ali. Bom, que público? Àquela hora, as únicas pessoas presentes eram alguns homens idosos que bebiam latinhas de Brahma sentados na lanchonete, emitindo gargalhadas altas e sem nenhuma intenção de pegar um ônibus naquele momento. Fora eles, uma fila considerável de pessoas aguardava para fazer a compra de suas passagens no guichê da Transpen. A rodoviária itapevense possui 5 companhias de transporte. Dessas, apenas a citada tinha movimento. Manoel Rodrigues, Amarelinho, Nordeste e Jodi mal pareciam abertas e em funcionamento. Logo de cara, me senti uma estranha ali. Aquele não parecia o cenário que, em tantas manhãs, fins de tarde e altas horas da madrugada, me abrigou enquanto aguardava por horas o ônibus que me levaria a Curitiba. Ou São Paulo. Ou a qualquer outro lugar que eu precisei ir nos últimos anos. Não conseguia sentir a energia singular que a rodoviária sempre me trazia: mudança. Um misto de alegria e medo em perceber, ali, de forma abrupta, que as coisas se movem, o tempo passa e as pessoas se vão. Às vezes, eu era a pessoa indo embora, às vezes estava apenas aguardando o momento em que alguém muito querido ia entrar naquele veículo enorme e ficar me observando pela janelinha. Fui embora, cerca de uma hora depois, frustrada. Sem entrevista e me perguntando que tipo de malabarismos faria para conseguir escrever mais de 2 parágrafos sobre essa experiência. Conforme os dias passavam, o incômodo desse dia ainda me acompanhava. Até que, na sexta-feira da mesma semana, resolvi fazer uma segunda visita ao local. Eram seis da tarde, mais tarde do que eu tinha ido na primeira vez e, também, mais vazio. Apenas um ônibus intermunicipal estava estacionado no primeiro ponto, porém, sem fila, sem passageiros e sem motorista por perto. Primeiramente, me direcionei ao guichê da Transpen – aquele que estava razoavelmente cheio da última vez. “Se eu te falar que hoje é meu primeiro dia de volta ao trabalho, você acredita?”, me disse o atendente assim que 151

Novos olhares por velhos caminhos


III. GONZO

expliquei o propósito de minha aproximação. “Não tenho como te contar porque não estava aqui”. Mesmo assim, insisti, perguntei a ele se os ônibus haviam parado em algum momento. “Parou por falta de demanda, não tinha passageiros, estamos voltando agora”, contou. Após essa primeira conversa, virei-me para contemplar novamente o vazio do local, quando uma única pessoa se destacou, parada entre os bancos. De uniforme azul e uma pochete preta com um maço de chaves penduradas. Regina da Glória Souza observava atentamente o movimento da rua naquele fim de tarde. A zeladora trabalhava na rodoviária há oito anos e, mesmo durante a pandemia, nunca parou. “Agora a gente trabalha um dia e folga dois, estamos trabalhando doze horas por dia.” Segundo ela, a rodoviária teve uma parada nos primeiros meses de quarentena. Para voltar à ativa, a solução foi mudar o horário de alguns ônibus, principalmente, os intermunicipais. Contrariando tudo que eu tinha observado até então, Regina aponta que o lugar tem estado bem movimentado nas últimas semanas: “Tá tendo até (horários) extras”. Os ônibus tinham voltado, mas nenhum aparecia naquele momento. A maior parte dos estabelecimentos comerciais, ali, estavam fechados. Locais que tinham como sua função principal serem práticos para os viajantes como lojas de lembrancinhas, lanches, doces e até uma barbearia se encontravam com as luzes apagadas e tinham nas portas cartazes sinalizando o uso de máscara e a necessidade do distanciamento. Aquela sensação ruim de abandono me tomou novamente. A lanchonete Rodo Lanches estava funcionando e exibia diversos salgados e refrigerantes em seu balcão. Apenas um funcionário ficava ali para atender os clientes: Robson. Me debruço sobre o balcão para conseguir compreender melhor suas falas. Assim que pergunto se a pandemia havia afetado o comércio de alguma forma, Robson aponta que a lanchonete passou 120 dias fechada, e agora funcionava por meio do aval da vigilância sanitária. “Diminuímos o quadro de 152

Mariana Scavassin


funcionários no começo, aí perdemos mais funcionários depois, e agora só fica um por período”. Além das perdas na equipe, também tiveram que custear todos os equipamentos de segurança e higiene exigidos. “Agora que os ônibus estão retornando, deu uma melhoradinha pra gente”, ele conta, “mas, no geral, uns 70% do que a gente tinha de movimento caiu”. Após as entrevistas, deixei o local. Mas, depois, percebi que só tinha entrevistado funcionários. Nenhum passageiro, nenhuma pessoa indo embora ou voltando de algum lugar. Ninguém como eu. Quantas histórias não passam mais por ali? É a prática que faz o lugar. É o uso rotineiro dele pelas pessoas que lhe dão vida social. Será que a rodoviária voltaria a ser aquele local de metamorfoses cotidianas? Será que a mudança ainda pairava entre os bancos e espaços ali, agora sentindo saudade de serem lembrados? Talvez eu volte a observar depois da pandemia.

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Novos olhares por velhos caminhos


NOME DO CAPÍTULO

Com vista para o mar e as montanhas Nathalia Miguel Brum 154

Nome da Autora


Foi andando pelos antigos e estreitos corredores do Mercado Municipal de Curitiba, que não encontrei o foco da minha reportagem. Mais de duas horas se passaram desde que comecei a “turistar” pelos inúmeros boxes, todos saturados com comidas que variavam de asiáticas a latinas. Mas, assim como na vida as coisas acontecem sem esperarmos, com fome, decidi procurar por algo que satisfizesse mais que grãos, laticínios, frutas e flores. Subi para a praça de alimentação. Os restaurantes com marcas que se podem encontrar em qualquer shopping estavam lotados. Interessante como podemos vivenciar mundos diferentes em um mesmo lugar. Resolvi procurar por algo que me fizesse sentir naqueles corredores com especiarias e manufaturados. “Sanduíche de mortadela: com queijo, raiz forte, aliche ou só na manteiga”, anunciava a placa do quiosque decorado e tão pessoal quanto uma casa, que me trouxe uma vontade que nunca tive por sanduíches socados de carne. “Simplesmente mortadela”, me explicou Maialu Barros, proprietária do Maia Box. Pedi um sanduíche de mortadela 155

Com vista para o mar e as montanhas


III. GONZO

Ceratti com raiz forte. Não fazia ideia o que era raiz forte. Experimentei. O sanduíche alto e robusto quase não cabia na boca. As expectativas estavam altas e logo descobri que deveriam estar mesmo, eram 150g de mortadela, rúcula, manteiga e Crem, a tal raiz forte paranaense. Era sensacional e diferente de qualquer coisa que tinha experimentado. Tinha gostinho de São Paulo, onde o sanduíche de mortadela é famoso no cardápio do café da manhã. A “Maia” era funcionária de uma indústria de pães e viajou para São Paulo a trabalho. Seu sonho era abrir o próprio negócio, algo que remetesse às suas memórias da infância em Curitiba e fosse tão ousado quanto a própria ideia de abrir um negócio do zero. Em São Paulo, ela foi até o mercadão paulistano e, lá encontrou a ousadia que procurava em sabor de mortadela. Um prato simples, mas desafiador de trazer para Curitiba. Maia ri ao falar do preconceito das pessoas com mortadela. “O sanduíche de mortadela é o nosso principal cardápio. E o pessoal de Curitiba é muito assim: ‘Ah preço de mortadela é coisa de pobre, é ruim, ninguém come, você fica arrotando e lembrando da mortadela’. Mas esta é muito saborosa, faz sucesso em São Paulo e eu quis trazer para cá, gosto de um desafio.” O resultado que estou comendo não é apenas paulistano, é curitibano. Para concretizar a ideia de negócio, Maia não estava sozinha. Seu falecido marido, Mauro Jourdani, que era engenheiro civil e estava se tornando, na época, um grande chef profissional por meio de um curso em São Paulo, colocou a cidade natal dos dois no cardápio. Ele desenvolveu a “raiz forte”, pasta feita do Crem (raiz paranaense que lembra gengibre), e a pasta de aliche. Juntos, o casal promoveu a linguiça Blumenau a ingrediente nobre, e homenagearam a coalhada da Schäffer, a antiga confeitaria que foi cenário da infância de gerações de curitibanos na Rua XV de Novembro. Assim foi criada uma experiência gastronômica que traz memórias afetivas das duas capitais. Com a ajuda do Matheus Henrique, funcionário e companheiro da Maia no restaurante, montei meu sanduíche. Primeiro o pão crocante, depois manteiga dos dois lados, rúcula nos 156

Nathalia Miguel Brum


dois lados, a mortadela e, por fim, juntar as duas partes. Ficou bonito para uma primeira vez. Enquanto comia a outra metade do sanduíche, que é grande ao ponto de vir partido, observava o mercado funcionando: é mágico, e a vista, lá de cima, única. “Eu brinco que você pode escolher entre a vista do mar (boxes de hortifruti) ou das montanhas (prédios) aqui. Enquanto você come, não deixa de estar vivenciando os corredores lá de baixo, você continua vendo o mercado funcionando, vivo”, explicou Maia. Entretanto, por trás do cenário lindo e de todo amor que envolve o box, há uma cicatriz, causada não só pela crise que a pandemia trouxe para os comerciantes do Mercado Municipal como um todo. Mauro faleceu recentemente, no fim de novembro de 2019. Maia assumiu e tocou o lugar praticamente sozinha, dando continuidade às receitas do chef que deu vida a tantos pratos do cardápio. Hoje, o cardápio do Maia Box é mais enxuto. São praticamente apenas ela e o Matheus no balcão, mas o box terá de novo os clientes de várias gerações diariamente. E ela, mais vezes, pedirá aos vizinhos lá embaixo, para que joguem tomates, laranjas ou limões para cima (pois os seus acabaram). E, com certeza, o sanduíche de mortadela Ceratti, criado pelo casal, vai ganhar cada vez mais o coração de Curitiba, construindo novas memórias afetivas em outras famílias – um passaporte para saborear a vida.

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Com vista para o mar e as montanhas


NOME DO CAPÍTULO

Tesouros escondidos Rebeca Trevizani 158

Nome da Autora


O dia estava ensolarado, ainda que a previsão fosse de chuva. Eu havia levado a camisa verde de mangas longas que antes pertencera a minha avó, achando que seria uma boa cobertura em caso de frio. Ainda que o clima em São José dos Pinhais seja um pouco diferente de Curitiba, a instabilidade é a mesma. A cidade não é marcada por grandes pontos turísticos ou lugares interessantes para jovens, mas é o lar de duas brechozeiras que tive o prazer de conhecer. Mariana Munaretto e Bianca Veiga foram minhas duas guias na aventura de procurar e explorar tesouros. Juntas tiramos a tarde de terça-feira para garimpar peças exclusivas em um bazar por Curitiba. As três são-joseenses em um gol G3 prata com as janelas escancaradas, única saída para os 25°C. No caminho ouvi as mais diversas histórias sobre o universo dos brechós, que tem crescido muito nos últimos tempos. O chamado slow fashion é um termo que qualifica um movimento acerca do consumo de moda de maneira consciente, valorizando produtores locais de menor escala e os tão conhecidos brechós. Para que o consumo se torne mais sustentável, 159

Tesouros escondidos


III. GONZO

ao invés de se desfazer das peças usadas, agora elas podem ser reutilizadas e reaproveitadas por outros compradores, movendo o ciclo de vida útil do produto, diminuindo assim a produção exacerbada. No Paraná os números vêm crescendo e, segundo os dados do Sebrae de 2016, o estado ocupava o 5° lugar no ranking de estados com mais brechós no Brasil. Avenida das Torres, Salgado Filho, esquerda, direita, esquerda. À margem do Rio Belém, em uma pequena porta se encontra o “Bazar da Nana”. Deparei-me com mais de 15 araras abarrotadas de roupas de todos os mais variados tamanhos, cores e formas. Todos os gostos muito bem representados. O olho chegou a se embaralhar em meio a tantas peças, e, num curioso contraste, um lindo jardim em diversos tons de verde cercam as araras. Assim como no ciclo do ouro garimpavam-se pedras em busca das preciosidades, observei as meninas buscarem seus achados perfeitos em meio as saias, calças, coletes e sapatos. As donas de brechó, principalmente dos que não possuem espaço físico e fazem suas vendas apenas online, precisam manter sua curadoria atualizada segundo a vontade de seus principais clientes. Os garimpos acontecem a cada duas semanas e Mariana gasta, em média, R$ 200,00 por compra. As peças são escolhidas de acordo com os pedidos e as preferências das clientes mais ativas, uma vez que seu brechó é online, facilitando a comunicação com as compradoras. No “Bazar da Nana”, fomos extremamente bem recebidas. Ela e seu esposo compram lotes inteiros de roupas para revender, fazendo a separação e higienização delas. Todas as araras e prateleiras sempre recheadas dos mais variados modelos e uma prosa muito agradável e divertida com os donos. Fui apresentada aos cachorros da família, dois salsichas de 1 ano de idade. Fizeram chimarrão e todas nós recebemos um mimo da Nana. Atrás do balcão, havia uma infinidade de bijuterias, óculos de sol e todo tipo de cacareco. Cada uma de nós pôde escolher uma peça específica para levarmos de “brinde”. Entre as muitas opções, deparei-me com um par de brincos em formato 160

Rebeca Trevizani


retangular com uma pedra laranja; eles me lembraram um certo requinte e ao mesmo tempo diversão por conta das cores. Saí de lá com uma saia, dois óculos, uma camisa, uma bolsa e os brincos de pedra laranja. Nana também vende potes de mel de sua fazenda e nos colocou em uma lista especial, marcando nossos nomes e telefones para nos mandar as novidades em primeira mão. O dia não parou por aí. Fomos até a Rua da Cidadania do Pinheirinho, onde estava acontecendo uma feira de bazares beneficentes. Cada barraquinha possuía um tesouro único, desde sapatos de todos os tamanhos, até louças e ferros de passar roupa antigos. Uma das barracas vendia apenas antiguidades, o que me remeteu a um mercado das pulgas ambulante. Utensílios cheios de personalidade, bolsas antigas, castiçais e pratos de inox pendurados enchiam nossa visão. Depois de uma tarde de compras, aventuras na rua e caminhadas debaixo do sol, voltamos para São José e fui até a casa de Mariana conhecer seu local de trabalho, para ver como as roupas são higienizadas, onde as fotos são feitas e tudo mais. Em suma, onde a mágica acontece. Seu brechó, com menos de 1 ano de existência, já totaliza mais de mil seguidores e vendas semanais. Em seu apartamento, Mari chega e leva as roupas do garimpo direto para a lavanderia onde elas passarão por uma primeira lavagem de água quente, bicarbonato de sódio e vinagre. Após a primeira etapa, as peças vão direto para a máquina com sabão em pó e então estão prontas para receberem os reparos necessários, caso precisem. As que já passaram pelo processo de higienização e reparos, vão para o escritório, e é lá que as peças são penduradas, separadas por cor e também é onde Mariana organiza os posts. A paleta de cores da semana era em tons de roxo, trazendo diversos garimpos. O feed do brechó é bem-organizado. As fotos são produzidas pela dona na sala do apartamento. Pude conversar com a Mari sobre o processo criativo para as postagens. Deixar o feed bonito e organizado demanda tempo e muito do senso artístico dela. Com muitas cores e luzes, as fotografias 161

Tesouros escondidos


III. GONZO

ficam lindas e cheias de autenticidade. Essa é uma das marcas do brechó, uma vez que não se trata apenas de um comércio, mas de uma oportunidade de poder levar acessibilidade e democratização à moda, além de movimentar a indústria de maneira consciente e sustentável. Ao fim do dia, pude refletir sobre as riquezas que passaram por minha mão. Riquezas que não podem ser compradas com dinheiro. Quantas histórias marcam cada uma das peças que vi. Não se trata tão somente de roupas usadas ou de uma loja online. Cada uma delas, cada objeto que outrora pertenceu a alguém, carrega a beleza de poder continuar, leva em si as histórias e os momentos. E, agora, tem o privilégio de receber mais marcas da pele e da vida de um outro alguém. Movimentando um mercado tão marcado por injustiças e abusos, moda consciente é mais que um comércio, é um estilo de vida que preza pelo que de fato importa – ajudar a salvar este planeta.

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Rebeca Trevizani


Uma festa nada tradicional no Largo da Ordem Sabrina de Ramos 163

Nome do Conto


III. GONZO

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Sabrina de Ramos


Apenas me dei conta do meu primeiro contato com a cultura védica, quando percorria o trajeto para casa, após participar de uma cerimônia no templo ISKCON, localizado no Largo da Ordem, Centro Histórico de Curitiba. No banco de carona, ouvia meu pai insistentemente falar do ex-Beatle George Harrison: − Podia ter perguntado sobre a música do George Harrison, né? − Nada a ver o George Harrison, pai! − Mas tem aquela música do Hare Krishna. Posteriormente, recordei da música e compreendi o que meu pai tanto tentava me dizer. “Que boba!”, falei para mim mesma. Na metade da música, o coro entoa o maha-mantra Hare Krishna. “Hare Krishna Hare Krishna Krishna Krishna Hare Hare Hare Rama Hare Rama Rama Rama Hare Hare”. Significa “Senhor, faça de mim seu servo humilde, ocupando-me em seu serviço”. Hare é a energia feminina de Krishna, o amor e serviço, Krishna é o todo atrativo e Rama é a fonte do prazer. Os mantras têm a função de libertar a mente e podem ser recitados por qualquer pessoa, independente do credo. Erroneamente, estava atribuindo o meu primeiro contato 165

Uma festa nada tradicional no Largo da Ordem


III. GONZO

com o movimento, à aquisição de um livro sobre a cultura védica, na Rua XV de Novembro, da mesma forma como aconteceu com a monja Vaisnava, de 24 anos, que vive no templo desde os 16. Um monge me parou no calçadão para conversar e oferecer um livro, a principal fonte de renda do templo. Na ocasião, tivemos uma breve conversa e ofereci R$ 15 que encontrei nos bolsos: − Quanto é, moço? − O quanto tocar no seu coração. De acordo com o Calendário Vaishnava, era o período de maratona de distribuição dos livros, evento que ocorre nos meses de julho e dezembro. Ao contrário da monja que, após um mês estudando o livro, foi ao templo participar de uma celebração, somente depois de aproximadamente dois anos, conheci o templo pessoalmente. Uma terça-feira fria, chego com meia hora de antecedência para a celebração, que começa às 19 horas durante a semana. Sou recepcionada gentilmente por um devoto de avental, ele me saúda com as mãos unidas, e o copio instantaneamente: − Hare Krishna! − Hare Krishna! Ele me conduz pela copa até a estreita escada, onde retiro meu calçado e subo até o espaço das celebrações. O altar, coberto por uma cortina bordô e detalhes dourados, guarda um cenário colorido, repleto de flores, quadros e estátuas das deidades - formas de Krishna, o Senhor Supremo. Sento-me em um tatame marrom no nível superior da sala, acompanhada da monja Gabrielle, de 21 anos, trocamos uma ideia até começar a cerimônia. Seu nome comum me causa uma certa estranheza, mas descubro que apenas recebem o nome espiritual após um ano na fé. A postura de Gabrielle é serena e seu tom de voz é calmo, assim como de todos os monges do templo. Ela conversa de forma muito franca e me explica que os quartos no templo são separados por gênero e os casais dormem separados. O sexo é sobretudo para procriação e apenas dentro do casamento, mas é permitido ao casal ter relações sexuais uma vez ao mês, durante o período infértil da mulher. Entretanto, os atos devem acontecer 166

Sabrina de Ramos


fora do templo. Um devoto externo chega e se acomoda em uma cadeira de plástico. Ele apresenta uma enfermidade na perna que o impede de participar ativamente do evento. A celebração começa após ouvirmos o soar do búzio. Dois monges portando mridanga e karatalas - uma espécie de tambor e pratos - posicionam-se ao lado esquerdo da sala, perante o altar, enquanto uma monja me entrega um papel plastificado com os mantras a serem cantados. Me posiciono do lado direito, junto à devota. Faço uma pergunta à monja Vaisnava, e ela me explica que a divisão de gênero ocorre para que o propósito celestial da dança permaneça imaculado. Os rituais são iniciados pelos homens e conduzidos aos demais por um devoto do mesmo gênero. A primeira etapa da celebração, a Aratik, é enérgica. Em poucos minutos, perco a timidez, dançamos freneticamente enquanto tento acompanhar o canto dos mantras, escritos em sânscrito. O pujari - monge que conduz as oferendas dentro do altar - nos joga água, cheiramos um cravo e, por último, passamos a mão direita pelas chamas do singelo castiçal dourado e a levamos até a testa. Permanecemos nessa fase por cerca de 30 minutos, ainda não consigo entoar nenhuma palavra. Contudo, meu corpo todo aquece devido ao intenso ritmo da dança. Reverenciamos o altar e seguimos para uma leitura sagrada diante da imagem de Dāmodara, forma infantil de Krishna. Dāmodara ou Kārtika também corresponde ao mês de novembro no calendário Vaishnava e é um período auspicioso. Durante esse mês, as preces e experiências têm seu valor potencializado. Todos os presentes na sala leem um trecho, e me ensinam a pronúncia correta quando chega minha vez. Em seguida, realizamos a celebração de fogo, que consiste na queima do ramo de tulasi - árvore sagrada - preparado com algodão. Após tê-lo acendido, giramos o ramo em sentido horário por sete vezes, a fim de fazer um pedido a Krishna, depois o depositamos, ainda com a chama acesa, em uma bacia com uma espécie de areia. A última etapa da celebração é o estudo do Bhagavad167

Uma festa nada tradicional no Largo da Ordem


III. GONZO

-Gita. O livro é composto por setecentos versos dispostos em 18 capítulos e narra um diálogo entre Krishna e o guerreiro Arjuna, há mais de cinco mil anos. Converso com o monge Caitanya de maneira bastante fluida e após o estudo, seguimos conversando por mais um tempo durante o jantar vegetariano. O monge me ensina que são devotos de uma cultura monoteísta personalista, pois creem que Krishna assume formas corpóreas para retornar ao nosso meio, e restaurar o equilíbrio em momentos de declínio da espiritualidade. Os monges nos servem sobremesas após um generoso prato de refeição e por volta das 21 horas, me despeço. Aos domingos, a programação é diferente e muito mais intensa. O festival começa às 17 horas e há mais devotos e visitantes participando. A recepção ainda é cordial, somos recebidos com suco de goiaba e logo começa a celebração. Na primeira etapa, o Bhajans, cantamos o maha-mantra tantas vezes, que até perco a conta. O monge responsável por conduzir o canto, muda o ritmo constantemente e todos repetimos. Por um breve momento me questiono, “Quem me vendeu o livro na XV, estaria por ali?”. Absorta em minha distração, sou convidada a conduzir a cantoria. Sem jeito, e com o rosto um pouco ruborizado, canto o mantra fora do tom, em seguida, os demais visitantes também são convidados para a condução. No segundo momento do festival, seguimos cantando e damos início a uma dança. Apesar de nos deixarem à vontade para interagir, alguns visitantes ficam retraídos. O movimento todo é efervescente, pulamos, giramos e corremos, ora em roda ora instintivamente. A sala é arejada, mas é difícil acompanhar a agitação com o rosto coberto pela máscara, essa requerida para a proteção contra o COVID-19, em uma noite quente. O suor escorre pelo meu rosto corado e alguns fios de cabelo grudam em minha testa. As palmas e batidas de tambores abafam as vozes, cada vez cantando mais alto. Em dado momento, um zumbido percorre meu ouvido, quase como se estivesse saindo de uma casa noturna. As crianças também participam ativamente da celebração, exe168

Sabrina de Ramos


cutam as mesmas práticas, e são livres para correr e brincar. Ao fim da movimentação, estou descabelada e então partimos para a palestra filosófica, a qual dura cerca de uma hora. Os próximos ritos seguem a mesma ordem de terça-feira e culminam no jantar. O momento descontraído da refeição é quando conseguimos conversar com os demais participantes. Converso com Taise e Aura. É a primeira vez da tímida designer de interiores, Taise, no templo. Acompanhou a agitação toda apenas com o olhar curioso em um canto da sala, como quem evita ser notada. Sem filhos, acompanha o sobrinho de dezessete anos em suas saídas. Já Aura é radiante e me prende na conversa com seu olhar incandescente. Mãe de uma devota, frequenta o templo uma vez na semana para visitar a filha, que mora no local. Acorda cedo todos os dias, assim como a filha. O altar é aberto às 4h30, mas ao menos meia hora antes, os devotos se levantam para os preparativos. Ainda que a hospitalidade dos devotos seja convidativa e me faça querer ficar conversando e desfrutando das sobremesas por mais um tempo, meu corpo começa a sentir o efeito da calorosa festividade. Por volta das 21 horas me despeço, e apesar do cansaço e dos pés doloridos, retorno para casa com uma vivacidade que não cabe em meu peito.

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Uma festa nada tradicional no Largo da Ordem


NOME DO CAPÍTULO

Curitibano é frio? Nem tanto! Stephanie Spredemann Friesen


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Curitibano é frio? Nem tanto!


III. GONZO

Chave, água, dinheiro, celular e guarda-chuva, afinal estou em Curitiba, a famosa ‘Chuvitiba’. Já não chove tanto, mas o tempo continua imprevisível. Procuro o sol e não o encontro. Quase saio de casa, mas lembro que ainda estamos na eterna quarentena do coronavírus, então pego máscaras, álcool gel e, na dúvida, luvas descartáveis. É estranho sair de casa após tanto tempo – fora consultas médicas, idas ao mercado e um açaí, não pisei na rua. São oito meses sem pegar ônibus, o que naquela quarta-feira se torna evidente. Quase me esqueci de estender o braço para chamar a princesa, como apelidei o 030-Interbairros III devido a seus atrasos corriqueiros. Dou um bom-dia ao motorista, que retribui. Percebo que já passa de meio-dia, então cumprimento o cobrador com um boa-tarde. Ele está separado de quem entra no ônibus por uma proteção plástica, com um furo grande o suficiente para receber os R$ 4,50 da passagem que não aumentou mais desde março de 2019 (achei que subiria devido à pandemia). Diversos cartazes estão espalhados pelo interior do veículo, como: “Em caso de dúvidas e sintomas, a melhor proteção é a prevenção”. 172

Stephanie Spredemann Friesen


Outra mudança: a primeira fileira de assentos está isolada por uma corrente plástica preta e amarela, para manter o distanciamento de 1,5 metro, indicado por órgãos oficiais. Mas no busão parece que logo esquecemos o pedido, pois é impossível não se aglomerar. Talvez com uma frota maior isso fosse possível, mas assim, a passagem aumentaria. Pelo menos todos usam máscara; já o álcool gel é raro. É impossível ignorar a tensão que há no olhar quando todos encaram quem entra. Provavelmente, procuram ver se a pessoa usa máscara, temerosos quanto a pegar coronavírus enquanto vão ao trabalho, ou resolver algo. O celular indicava 17°C, mas ao chegar ao Capão Raso e sentir o vento ignorar meu casaco, acreditei estar 13°C. Defini que pegaria o 203, chamado por todos de Santa Cândida - Capão Raso. Mas eu só consigo decorar os números. Escolhi essa linha por não a conhecer, e tive sorte: o ônibus estava parado na plataforma e, assim que entrei, iniciou seu caminho atravessando Curitiba. A rota é quase uma linha reta, ligando dois extremos da cidade. A linha passa por 10 ruas e tem 32 pontos de parada, 11 na Avenida República Argentina - atualmente em obras. Seriam 16 quilômetros em uma hora, o que achei rápido. Sentei no meio do veículo e observei: o ambiente ali era completamente diferente do 030. Mal saímos, um senhor com a máscara no queixo começou a cantar: “Coloquei meu coração no Alasca, sim!”. Após alguns minutos, recebi um papel que começava assim: “Peço um minuto de sua atenção, estou desempregado e passando por dificuldades”, acompanhado de um folheto colorido sobre Deus. Não vi quem me entregou e percebi que meus pensamentos estavam longe. O ônibus não só nos transporta de um lado para o outro, mas também nos faz viajar em nossa própria mente. O dono do papel logo voltou, em silêncio estendeu a mão para receber as moedas e os próprios papéis que havia entregado antes. Ironicamente, assim que ele se afasta, a voz automatizada dos recados se faz ouvir: “É proibido o comércio em ônibus e 173

Curitibano é frio? Nem tanto!


III. GONZO

estações tubo”. O órgão de Urbanização de Curitiba S.A (URBS) não pode apreender mercadorias e indica que a população deve denunciar as ocorrências por meio da Central 156, mas todos precisam trabalhar e cada um dá o seu jeito. Nilson, que aparenta ter 25 anos, segura quatro embalagens coloridas e espera o término da fala para gritar: “Pomada massageadora, canela de velho: aprovada por médicos e dermatologistas e recomendada por professores de Educação Física”. Enquanto ele mostra os itens milagrosos, sinto o cheiro dos componentes: óleo de argan, amêndoas e mel. Ao chegar na Avenida Paraná, um rapaz pede a atenção de todos por um instante. Para trazer “cultura e entretenimento” sem incomodar, Michel Zamarchi da Rosa pergunta se alguém está com dor de cabeça e pede que levantem a mão caso não queiram que ele toque uma batida e lance algumas rimas. “E a bolsa da moça do que é, será que o couro é crocodilo ou será que é jacaré?”, a cada frase, o jovem de 20 anos vai explorando o ônibus e interagindo com pessoas e objetos. A maioria retribui com um sorriso após receber um verso animado: “Aqui temos uma garota propaganda da Pantene. Mó bonito seus cachinhos”. O artista de rua veio do Rio Grande do Sul e rima há cinco anos, um ano e meio dentro do 203. Com “cara e coragem”, paga o aluguel do apartamento que divide com a namorada. Ela também se apresenta em ônibus. À medida que se aproxima do destino, o busão lentamente esvazia. Não conhecia o terminal e sou surpreendida por seu tamanho. O local começou a ser reformado em 2012 e, apesar de as promessas de término serem para a Copa do Mundo, a obra só ficou pronta em 2016. Agora, passam ali diariamente, 17 linhas e em média, 40 mil passageiros. Voltei às 17h26 para experienciar o horário de rush, o busão agora guiado por Nestor. Às 17h38, não há mais lugares vagos e todos começam a se apertar. Um bêbado vestindo paletó da Econet expressa a necessidade de combatermos o corona com uísque e antes de qualquer reação, desembarca. Pelas janelas semiabertas o frio de 174

Stephanie Spredemann Friesen


14°C entra e faz com que todos relembrem em que cidade estão. Agora que todos estão mascarados, às vezes, é difícil saber quem está falando. Ainda bem que nós, brasileiros, gostamos tanto de gesticular, mas alguns ficam em silêncio. É o caso de Mariana dos Santos, com cabelos rente ao ombro e olhos perdidos, que mesmo fora de expediente, passa o caminho inteiro para casa pensando em picuinhas de seu emprego administrativo em uma construtora local. Chegando ao Capão Raso, o ônibus esvazia. Entre velhos, crianças e adultos, a linha oferece uma amostra da população curitibana. Nós que somos frios no trato, combinamos com o clima. Mas se engana quem diz que a gente não dá bom-dia nem conversa, basta ter jeitinho. Para uns, é mais fácil, já outros aproveitam calados. Mas bom mesmo é ver os olhos distantes e perdidos de pessoas tão distintas voltando sua atenção para o presente e se aquecendo com um papo descontraído. Curitibano gosta de falar de si, e gostamos mesmo é de conviver.

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Curitibano é frio? Nem tanto!


Com cheirinho de família Laura Luzzi 176

Nome da Autora


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Com cheirinho de família


III. GONZO

O céu, sem dúvidas, é um fator que altera meu humor. Quando o dia amanhece ensolarado, minha família brinca que é o dia em que qualquer coisa ruim pode acontecer, pois, ainda assim, eu permanecerei feliz e otimista. De fato, eles não estão errados. Eu só não sabia, quando acordei às 5h30 naquela manhã desanimadora e nublada em Curitiba, que meu dia terminaria com um incrível fôlego para o resto da semana chuvosa que estava prevista. Apesar do tempo bem insosso pela manhã, logo no almoço saiu o sol (as tais quatro estações em um único dia que todo curitibano gosta de comentar) e, então, resolvi ir ao Mercado Municipal. A única lembrança que guardei daquele local era de quando tinha por volta de 7 ou 8 anos de idade. Meu pai precisava comprar algum ingrediente especial para o almoço do dia seguinte e me levou junto. Lembrava de um lugar enorme, cheio de pessoas passando e esbarrando umas nas outras rapidamente, nada mais. Agora, quase duas décadas depois, ao pisar no Mercado Municipal, ele já parecia bem menor do que na minha cabeça 178

Laura Luzzi


de criança. Tira a temperatura, passa álcool em gel… Esse ritual para entrar em qualquer lugar já se tornou comum. Apesar do tempo que passou, o mesmo sentimento de pequenez tomou conta de mim. Com passos firmes, como quem sabia o que queria, todos passavam por mim, que não fazia ideia nem por onde começar a visita. Eram tantos corredores que demorei para me situar. Depois de uma breve reconhecida no território, parei em uma loja que vendia produtos a granel para comprar 1kg de coco encomendado pela minha avó naquele dia. Mais algumas voltas e encontrei uma praça dentro do Mercado chamada “Praça Mario Shigue”, em homenagem a Mario Shiguemitu Yamasaki, um feirante que passou toda sua vida no Mercado Municipal de Curitiba e veio a falecer em julho deste ano por conta de complicações da diabetes, aos 65 anos de idade. Aos 5, começou a vender verduras no local com o pai, mais tarde assumiu os negócios da família, deixando para os filhos 4 bancas e dois boxes. Nos bancos daquela praça me acomodei, escorei minha bolsa e sacola ao meu lado, enquanto tentava identificar a dinâmica local. Todo mundo conhecia e conversava com todo mundo. Entre saudações aos clientes já conhecidos e pedidos de ajuda entre os comerciantes, veio em minha direção um morador de rua. Ele parou em frente à banca do meu lado e perguntou se tinha alguma fruta. O vendedor se prontificou em ver “lá atrás”. Enquanto esperava, o homem, que parecia bem vestido para um morador de rua, olhou para mim e disse: “Fruta é bom, né?! A gente tem que aproveitar tudo que pode ganhar”. Concordei com ele, mas a comunicação de máscara e com todo o barulho ambiente não era favorável para mantermos um diálogo mais longo. Logo voltou o atendente com uma caixa de papelão cheia de frutas. “Oh, jogador! Quer levar?”, disse o feirante. O homem, que devia ter uns 40 anos, pegou a caixa, agradeceu e saiu sorrindo atrás da máscara. Naquele mercado, todo mundo se conhece. Parada naquela praça, ouvia os comerciantes comentando sobre outra banca, sobre o movimento, a respeito dos preços, sobre a repo179

Com cheirinho de família


III. GONZO

sição. De vez em quando, um passava e pedia ajuda ao atendente da loja concorrente, que prontamente auxiliava. O espírito ali era bastante familiar, não sendo possível apontar uma competição. O capitalismo parecia ser deixado de lado por quem convivia diariamente naquele grande galpão. E, de repente, me senti parte daquilo. Levantei para mais algumas voltas. Loja de doces, cafés, vinhos, peixes para aquários, ingredientes, frutas, todo tipo de orgânico… Passaria horas se fosse falar cada produto que era vendido ali. A variedade era enorme. Pois bem, resolvi participar da dinâmica do lugar. A cada comerciante que passava por mim, eu desejava “boa tarde” com um sorriso, e da mesma forma era retribuída. Enquanto passava em um dos vários corredores, um cheirinho característico de cravo e mel tomou conta. Na hora parei, reconheci e procurei de onde vinha. Pão de mel é meu doce preferido e seria impossível confundir. Olhei à minha direita e vi uma lojinha simpática, com fachada de madeira e, lá dentro, encontrei prateleiras e mais prateleiras de pão de mel. Olhei a vitrine e havia panos de prato, porta-retratos. Fiquei meio confusa, sem entender o que era vendido, mas os pães de mel cheirosos não me permitiriam sair dali sem que entrasse e provasse um. A vendedora era uma senhora de meia-idade. Depois descobri que se chamava Cleide e tinha 55 anos. Ela estava atendendo uma outra cliente que desejava comprar um mini chocotone para compor as cestas de Natal que venderia. Após a encomenda anotada, Cleide veio até mim. Perguntei dos pães de mel e ela fez questão de me falar sobre a produção deles. A Empório Curitibano, loja pela qual Cleide é responsável, faz parte do Programa Empório Metropolitano, uma iniciativa criada em 1997 pela prefeitura para fomentar a economia e comércio de pequenos produtores. Cleide contou sobre os ingredientes usados pela doceira, que fabrica artesanalmente os pães de mel. O chocolate amargo de primeira qualidade, o recheio de doce de leite ou de frutas, feitos por ela. Fui convencida a comprar um de cada. A lojista, que trabalhava ali no mercado há mais de 180

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cinco anos, puxou um banquinho, sentou e começamos a conversar. Enquanto narrava suas crises como mãe de dois filhos universitários e uma filha mais velha, que não morava mais com ela, Cleide contou que a pandemia da Covid-19 está castigando os comerciantes das 273 bancas do Mercado. Além do fechamento que ocorreu dia 20 de março e foi até 7 de abril, o movimento no Mercado Municipal está muito abaixo do normal, principalmente nesta época antes do Natal que, nos outros anos, era a de maior lucro. Se antes da quarentena a Empório Curitibano tirava quase mil reais por dia, hoje, com muito custo chega na metade deste valor. Apesar da queda, esses números representam uma vitória, já que entre abril e julho, o rendimento diário estava ao redor de R$ 100. Para Cleide, essa união dos comerciantes foi fundamental neste momento de adversidade. A reabertura do Mercado só ocorreu após os donos das lojas se juntarem e montarem suas barracas na Rua da Paz para que pudessem vender seus produtos e para pressionar a prefeitura. Eu, particularmente, dou muito valor à união e sintonia das pessoas ao meu redor, talvez por ter crescido em uma casa com mais três irmãos, pais e avó. A verdade é que no Mercado Municipal de Curitiba há uma harmonia indescritível. Os compradores que entram no local com frequência já fazem parte desse contexto, e as piadas e conversas entre eles são como de amigos que se conhecem há anos e, para muitos ali, passam mais tempo uns com os outros do que com suas famílias, então, não poderia ser diferente. Para os visitantes esporádicos, por algumas horas, os presentes no Mercado dão o privilégio de participar do contexto e tratam você como se estivesse lá há anos, como eles. Por fim, o sentimento de pequenez que tomou conta de mim na entrada, não existia mais na saída. Pelo contrário, o ambiente já parecia familiar. Com sorrisos sinceros, me despedi de cada comerciante com quem cruzei no caminho até a saída principal. E com o coração cheio de vontade de voltar, tomar um café com Cleide, comendo um belo pão de mel de abacaxi, fui até o carro feliz por 181

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saber que a tarde passada ali foi o fôlego para o resto da semana chuvosa que viria.

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Há coisas e coisas. Há coisas que buscam grandes alturas para marcar e outras que encantam pelo simples e bonito. Coisas de arte. Quando se vê alguém dizendo “Foi sensacional! Foi muito nosso, (...) só que nesse eu casei” certamente estamos diante do coração. Simples e bonito. Falando da vida. Ou onde ganha a vida: “Tô bão demais. Tenho meia quatro, mas ninguém diz”. Que lição, seu Chico. Pois vá até os 100 com essa energia. Ou lá da Lapa, berço colherás. Por isso, marca a tua passagem, deixa algo de ti”. Ou “(...) quero um Aprendida com a vida. Olhares sobre a vida.

Indo em frente, tudo que rabisquei acima é para falar desta obra das nossas estudantes de Jornalismo, verdadeira obra de arte, construída a muitas mãos, ouvindo a vida acontecer, ali no chão de cada dia, na rua, no campo, em casa, no hospital, na igreja com seus bancos vazios pela pandemia. Vida nossa de cada dia de quem nos conta com pureza e faz acontecer, embutida de dureza, sol e suor. E vivida com vai você Certamente ouviram. que do alma a transmitir tes ainda, mas mestres em encontrar, de ponta a ponta, um “ser humano e muito mais”. Um (...) “ser humano demasiadamente humano como são os espíritos livres descritos por Nietzsche”. Vai lá nos OLHARES LITERÁRIOS. Vale a pena. E verá que “aviões de papel ainda voam.” Waldemiro Gremski Reitor PUCPR


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