CDM 57 - Impressa

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ano 18 - edição 57 | abril de 2020

revista corpo da matéria CURSO DE JORNALISMO PUCPR

Mais que números Por trás das estatísticas da Covid-19 existem pessoas com paixões, sonhos e planos que foram interrompidos.

More than just numbers Behind COVID-19 statistics there were people that loved, dreamed and had plans that were cut short.




Corpo da matéria Ano 18 - Edição 57 - Abril de 2021 Revista Laboratório do Curso de Jornalismo PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná R. Imaculada Conceição, 1115 Prado Velho, Curitiba PR REITOR

Waldemiro Gremski DECANA DA ESCOLA DE BELAS ARTES

Ângela Leitão

COORDENADORA DO CURSO DE JORNALISMO

Suyanne Tolentino De Souza COORDENADORA EDITORIAL

Suyanne Tolentino De Souza COORDENADOR DE REDAÇÃO/JORNALISTA RESPONSÁVEL

Paulo Camargo (DRT-PR 2569)

COORDENADOR DE PROJETO GRÁFICO

Rafael Andrade

Alunos - 6º Período Jornalismo PUCPR Lucas Nogara de Menezes Couto, Yasmin Cristina Graeml, Lucas Matheus Grassi, Paula de Araujo e Silva, Luísa Menegatti Secco, Anna Caroline Padilha de Freitas, Gabriela Küster Solyom, Carolina Bosa de Souza, Gabriela Fontana Rodrigues, Rafaelly Kudla de Oliveira, Marina Vançan Prata, Laís da Rosa Coelho, Ana Cláudia Iamaciro, Lorena Gabriella de Souza Frade, Matheus De Oliveira Koga, Mariana Meyer Campos Valore de Siqueira, Maria Cecília Marchalek Zarpelon, Julianne Fernandes Trevisani, Sofia Helena Magagnin, Carla Giovana Tortato Gai, Luana Perdoncini Roballo Cruz, Isabelli Pivovar Machado

Imagem de capa: Maria Cecília Marchalek Zarpelon 6ºP Jornalismo

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SUMÁRIO

Para cada número, uma vida inteira

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A whole life for each number

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A luta dos enfermeiros

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A incerteza na calmaria

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O legado do aprendizado

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Escola virtual

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Os heróis essenciais

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A força da arte

44

Sub-humanos: vidas à margem

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O desafio de voltar para casa

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Quando o pedido sai para a entrega

58

O jogo da vida

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Extraordinários

66

Ikigai: a razão de viver okinawana

70

Sob a luz do profeta

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Criadoras da realidade

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Resistência sempre!

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Para cada número, uma vida inteira Todos os dias, são divulgados os números de mortos pelo coronavírus, mas por trás de cada um deles, existem vidas, paixões, planos, dores e sonhos Maria Cecília Zarpelon, Marina Prata e Sofia Magagnin Imagens: arquivos pessoais

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ara os que ficam, ainda dói. Quem poderia imaginar que algo desconhecido e invisível tiraria tantas vidas? Aconteceu tão de repente, tão rápido. É difícil encontrar as palavras certas para falar sobre eles. A ficha ainda não caiu e a falta que fazem é desesperadora. Para onde foram os pais, maridos, amigos e esposas? Se referir a eles no passado tem sido difícil, e as palavras ainda insistem em fazê-los presentes: “Ele fica”, “ela gosta”, “nós somos”… Os números não esperam a dor passar para se multiplicarem. A cada dia, as estatísticas se atropelam. Para os desatentos, podem parecer apenas números. Mas, para cada um dos que perderam seus entes queridos, há um universo inteiro de histórias que os dados ignoram. E esses números falam.

O QUE FICOU José Palitot Junior nasceu e cresceu na zona norte de São Paulo. Filho caçula de uma dona de casa e de um policial militar, ele sempre sonhou em seguir carreira na magistratura. Junior, como era conhecido, estudou Direito no interior do estado. Era o início de uma carreira promissora, mas ele não teve tempo suficiente. Mesmo com a seriedade exigida pelo trabalho, Junior nunca deixou de demonstrar sua personalidade animada. Corinthiano roxo, mas que não ia aos estádios por medo, ele preferia reunir os amigos e fazer festa em casa. Brincalhão e divertido, o homem de 44 anos dificilmente ficava de mau-humor. É assim que a sua esposa, Katianne Palitot, lembra dele. Foi em 15 de junho de 2002 que o destino uniu Junior e Katianne. Os dois sempre se deram muito bem, um incentivando o outro a ser melhor. Um dos maiores sonhos dela era poder se formar no ensino superior, e foi graças ao incentivo de seu marido que ela se tornou a primeira pessoa de sua família a cursar uma faculdade. Depois de muitas conquistas, incluindo a construção de uma casa, o maior

sonho do casal era viajar para Portugal. Inesperadamente, esse e outros tantos planos foram interrompidos no dia 30 de março de 2020. Junior morreu após permanecer sete dias internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A causa da morte foi a doença que colocou o mundo inteiro em isolamento social, a Covid-19. Ninguém sabe ao certo como Junior contraiu o vírus. No início, ele achou que estava “gripando”, afinal, a dor no corpo, o cansaço e a tosse não pareciam nada demais. “Eu me sinto mal porque achei que era manha. Os sintomas não batiam com os noticiados na televisão. Por isso, a gente não procurou um médico”, relembra Katianne. A esposa levou Júnior para o hospital depois que ele começou a reclamar de falta de ar. O diagnóstico dado foi que ele estava com o pulmão comprometido e teria que ser transferido para a UTI de outra unidade de saúde. Katianne já estava no limite. “Saí de casa com a intenção d’ele tomar uma inalação e acabou sendo isso.” Assim que chegaram ao novo hospital, ela não pôde subir para a UTI. “Eu passei a mão na perna dele e falei: ‘Vai com Deus!’.” Essa foi a última vez que Katianne viu o marido vivo. Todos os funcionários olhavam para o casal assustados. Junior era o primeiro paciente do hospital de campanha recém-inaugurado no ABC Paulista. “Se a senhora tem fé, se apega nela, porque não sabemos o que é essa doença”, ouviu dos médicos. O dia em que Katianne acordou mais esperançosa pela melhora de Junior foi o mesmo em que recebeu a pior notícia de sua vida. Logo cedo, soube que seu marido teve uma parada cardiorrespiratória. “Quando deu a notícia, o médico estava chorando como se fosse alguém da família dele”, relata. Antes mesmo de poder sofrer pela perda, a mulher foi avisada que teria que reconhecer o corpo do homem com quem havia passado metade de sua vida. Seguindo o protocolo de segurança, o reconhecimento foi feito

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por videochamada. Após ver Junior sendo colocado nu em um saco preto dentro de um caixão lacrado, Katianne foi obrigada a lidar com os procedimentos pós-morte. “As burocracias não esperam você chorar.” O enterro aconteceu no dia seguinte. Não houve velório. Apenas cinco pessoas foram autorizadas a acompanhar o sepultamento, mas ninguém chegou perto do caixão. “Ali eu enterrei o Junior sozinha, ajoelhada, chorando numa sepultura sem que ninguém pudesse me abraçar. Um vírus me tirou tudo”, conta Katianne aos prantos. “O Junior morreu sozinho. Eu não pude segurar a mão dele e falar ‘vai ficar tudo bem’. Eu não pude agradecer por tudo. Ele merecia um enterro digno, onde as pessoas pudessem se despedir decentemente. A mãe dele não teve o direito de enterrar o próprio filho. Os colegas não puderam dizer adeus”, lamenta a esposa. O melhor amigo de infância de Junior, o único que estava presente, foi quem disse as palavras que seguem confortando Katianne até hoje: “Junior amava a vida, e ele viveu”. O exame confirmando que Junior estava com coronavírus saiu dois dias após sua morte. Quando Katianne levou o atestado de óbito ao cartório para se tornar oficialmente viúva, o dono do estacionamento a olhou estranho. “Você não acha que é um exagero usar essa máscara?”

apresentava os primeiros sintomas de coronavírus. Após ter febre e tosse, ele foi internado na UTI do Hospital São Luiz de São Caetano, onde permaneceu por cinco dias, mas não resistiu. Luara e Cesar se conheciam desde os 15 anos, ficaram casados por sete e tiveram uma filha, Yasmin. Os dois se separaram, mas nunca deixaram de ser amigos. O amor deles se transformou, e a convivência se tornou constante. Tanto Cesar quanto Luara começaram novos relacionamentos, mas ele jantava na casa ex-esposa e da filha ao menos três vezes por semana - tinha até a senha da porta e o controle remoto do portão. “A gente nunca perdeu o

“O Junior morreu sozinho. Eu não pude segurar a mão dele e falar ‘vai ficar tudo bem’. Ele merecia um enterro digno.” Katianne Palitot, viúva de Junior O dia 30 de março também foi inimaginavelmente doloroso para outra mulher de São Paulo. Luara Vida perdeu o ex-marido três dias antes da data em que ele completaria 44 anos. Cesar Visconti achava que estava apenas com sinusite, mas, na verdade,

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carinho, o respeito um pelo outro. Ele continua sendo meu melhor amigo e eu a dele.” Cesar havia visitado a casa das duas poucos dias antes de apresentar os primeiros sintomas da doença - estava


bem e feliz. Por isso, Luara ficou tão chocada com a morte repentina. A caminho do hospital, Cesar ligou para a ex-mulher dizendo que estava sentindo uma dor como nunca havia sentido antes e uma falta de ar inexplicável. “Ele era muito brincalhão, falou ‘Acho que agora estou indo pro saco’. Mandei ele parar de ser tonto, e ele me fez prometer que cuidaria da Yasmin.”

“Quando éramos casados, eu dizia que ele gostava mais de automobilismo do que de mim”, brinca Luara. O último desejo do “fã número 1 do Ayrton Senna” antes de morrer foi ter suas cinzas jogadas no Autódromo. Toninho, dono da escola, concordou em fazer uma cerimônia para homenagear César na primeira corrida após a reabertura do local.

Quando estava prestes a ser entubado, Cesar conversou com a filha. “Ele disse ‘papai vai ficar três dias sem poder falar, mas não fica preocupada, não. Logo eu te ligo tá bom? Te amo.” Essa foi a última ligação feita por ele.

“O pior de tudo é não poder nem se despedir”, lamenta Luara. Por conta da pandemia, a família não pôde acompanhar a cremação e só conseguiram retirar as cinzas dez dias depois. “O crematório deu um horário aproximado de quando começaria o processo. Não tinham como falar exatamente porque havia muitos corpos para serem cremados. Se a gente quisesse fazer uma oração, ou algo assim, deveria ser a partir das três da manhã”, conta.

A família estava esperançosa por uma melhora. Porém, no dia 30 de março, no fim da tarde, Luara recebeu uma ligação, avisando que o rim de Cesar havia parado. O irmão dele foi até o hospital para ter notícias, mas já era tarde. Na certidão de óbito, o horário da morte não bate com o horário da ligação: quando o hospital entrou em contato com Luara, seu ex-marido já havia falecido. Cesar era formado em Direito, mas trabalhava como instrutor da Escola de Pilotagem Interlagos desde os 20 anos.

Homem de poucas palavras, mas que estava sempre sorrindo, Cesar continuará sendo uma das pessoas preferidas de Luara. Para ela, o ex-marido foi o melhor pai que Yasmin poderia ter. “Eles se viam quase todos os dias. Era muito presente”, relembra. “Cesar deixava a autoestima da nossa filha sempre muito elevada. Gra-

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ças a ele, a Yasmin é uma pessoa que realmente se adora.” A jovem está inconsolável. Seu aniversário de 16 anos foi em 5 de abril, seis dias após a morte do pai. Os dois tinham planos de comemorar juntos no Lollapalooza, pois o show de uma de suas bandas favoritas, Guns N’ Roses, aconteceria bem no dia do aniversário de Cesar. Os ingressos foram um presente de Luara. “Quem poderia imaginar? No fim, ela não teve show, não teve aniversário, sequer tem o pai dela.” Com a voz embargada, Luara lamenta: “Foi a maior perda da vida da Yasmin e uma das maiores da minha também. Eu sinto como se uma parte muito importante da minha vida deixasse de fazer sentido.”

ELES NÃO TIVERAM ESCOLHA No último dia 29 de abril, o vice-presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Diogo Sampaio, denunciou que mais de 6 mil profissionais da saúde já foram contaminados pelo coronavírus em todo o país. Essas pessoas que, todos os dias, arriscam suas vidas para salvar outras, têm sido as mais expostas ao vírus, principalmente pela falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). “O negócio dela era ajudar. Nessa profissão, você precisa se envolver.” Mara Rubia Cáceres sempre quis ser enfermeira, tinha vocação para tal. A gaúcha de 44 anos era uma batalhadora e atuava como auxiliar de enfermagem

A despedida O que muda no enterro de uma vítima de coronavírus? E por quê?

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há 12 anos no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre. Mara atendia há dois anos na emergência, e com a disseminação do coronavírus, passou a auxiliar os pacientes da UTI a mesma onde foi internada, quando contraiu a doença. Seu marido, Juan Cáceres, conta sua história com muito orgulho e admiração. Os dois se conheceram quando ele trabalhava como motorista de ambulância no hospital e ficaram juntos por 21 anos. Logo no início do relacionamento, os dois precisaram dividir o colchão de Juan em uma noite fria e chuvosa, do lado de fora do quarto que estava sendo construído. Foi aí que ele teve certeza de que Mara era uma guerreira. “Se fosse outra teria me largado. Botei fé nela.” A vida de Mara era dedicada a cuidar das pessoas. “Não tinha quem não gostasse dela. No asilo onde trabalhava, os idosos choravam porque não queriam que ela fosse embora no fim do dia.” A auxiliar de enfermagem tiraria férias de sua vocação em maio deste ano, e planejava visitar, com o marido, um de seus destinos favoritos: o Rio de Janeiro. Porém, com o início da pandemia, o dever a chamou e a viagem ficou para depois. Mara faleceu sem poder visitar a capital fluminense. A enfermeira contraiu a doença fazendo o que amava, provavelmente enquanto cuidava dos pacientes com coronavírus no hospital. Dos primei-

Vítimas fatais do coronavírus devem ter sua dignidade, tradições religiosas e culturais respeitadas após a morte, assim como qualquer falecido. Para alguns, tomar cuidados especiais com as pessoas que morreram de Covid-19 pode parecer exagero. Afinal, o maior risco de transmissão do vírus é quando a pessoa está viva. Mas, mesmo após a morte, uma pessoa infectada continua liberando partículas, conforme esclarece a professora do curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUCPR)

Lúcia Noronha. É por esse motivo que, mesmo após a morte do paciente, a família não pode ter contato nenhum com ele, seja para o processo de reconhecimento do corpo ou durante o funeral. Mas, se os caixões são lacrados, qual seria o risco em realizar um velório para que as famílias pudessem se despedir? “Os cuidados da funerária são em relação às pessoas que estão no enterro, pois há risco de que estejam contaminadas por causa do convívio”, explica a médica.


ros sintomas até a morte, foram nove dias. “Ela queria ajudar, mas sabia que o risco era muito grande.” Mara foi atendida pelos colegas de trabalho, no mesmo hospital onde atuava. “A coisa não foi pior porque eles estavam juntos e a trataram da melhor forma”, conta o marido. Vários profissionais do Conceição pegaram a doença, mas Mara foi a primeira e única a morrer. “Ela estava preocupada porque no hospital os profissionais não recebiam as condições de trabalho adequadas.” Juan conta que a esposa tinha asma, o que a colocava no grupo de risco e, por isso, deveria ter sido afastada.

cendo de tristeza pouco tempo depois. “Todos os dias estão sendo difíceis”, murmura Juan, que em seguida, fica em silêncio. Após acompanhar a dedicação e coragem de Mara na linha de frente do combate à doença, Juan alerta: “A gente depende deles. Os profissionais da saúde, a faxineira, todos fazem falta se ficarem doentes. Temos que cuidar do médico, do técnico de enfermagem, de todo mundo.” Assim como os profissionais de saúde, muitos trabalhadores não podem se dar ao luxo de deixar suas funções para se isolarem em casa. Esse é o caso de Antônio Pereira da Silva. Sua família ainda não sabe ao certo como ele foi contaminado. Pode ter sido na loja de colchões onde trabalhava como vendedor, já que o senhor de 63 anos não foi liberado do serviço mesmo fazendo parte do grupo de risco. Ainda há a possibilidade de ter sido infectado no hospital onde foi atendido após sofrer um infarto pouco antes do início do isolamento social e das medidas de

“Um mês antes da Mara morrer, ela chegou em casa e disse que logo não poderia mais voltar, pois teria que dobrar o plantão, já que faltaria gente para trabalhar.” O marido duvidou que a situação do vírus chegaria a esse ponto. Às vezes, Juan sente que está vivendo em um pesadelo do qual irá acordar a qualquer momento. Ele e a esposa tinham um cachorro, Scooby, que parou de comer desde a morte de Mara e acabou fale-

segurança. Mas, a essa altura, descobrir a origem da contaminação é a última das prioridades de seus cinco filhos.

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O teste para Covid-19 foi feito apenas por protocolo, mas acabou resultando positivo. Antônio foi transferido para o Hospital das Clínicas, em São Paulo, logo que recebeu o diagnóstico. Passou 13 dias internado, foi entubado, mas, mesmo batalhando tanto pela vida, não conseguiu vencer a luta contra o vírus e morreu no dia 6 de abril.

vai vir outro no lugar”, conta a filha indignada. Antônio era um grande fã de música sertaneja - razão da eterna provocação da filha mais velha, que ama rock. No tempo livre, ele arranhava um pouco de violão e sanfona, instrumentos que aprendeu a tocar sozinho. Sempre muito animado, gostava de

“O maior sonho da vida dele era ter uma casa própria, mas não deu tempo.” Luciana da Silva, filha de Antônio Luciana da Silva, a filha mais velha, conta que a família mal teve tempo para processar a morte de Antônio. O irmão dela, Manuel, que socorreu o pai após o infarto, também fora contaminado. A própria Luciana manifestou os sinais da doença, por cerca de cinco dias. Mas, apesar da tomografia mostrar lesões em seus pulmões, ela nunca chegou a fazer o teste confirmatório, pois o exame não estava disponível. “Fiquei muito revoltada. Eu já estava de quarentena, tomando todos os cuidados e acabei pegando dentro de casa.” Na certidão de óbito de Antônio, as causas da morte constam como coronavírus e infecção generalizada. Ele foi enterrado com caixão lacrado, em um velório que durou apenas oito minutos e contou com a presença de três pessoas. Para Luciana, o pai era um “típico proletário brasileiro”. Paraibano, se mudou para São Paulo aos 21 anos para tentar a vida. Por conta das raras folgas no trabalho, Antônio não convivia muito com Luciana e Manuel, mesmo morando no mesmo bairro. Apesar da rotina exaustiva, o sexagenário caminhava para o serviço por 50 minutos todos os dias. Quando a pandemia eclodiu, não era o vírus que assustava Antônio, e sim a possibilidade de ser mandado embora do trabalho. “Ele foi só um CPF que vai ser anulado e

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chamar os amigos para almoçar aos domingos e cantar. “O maior sonho da vida dele era ter uma casa própria, mas não deu tempo”, lamenta Luciana. A família está com dificuldades para processar a morte de Antônio. De todos os irmãos, Luciana é a que está conseguindo lidar de forma mais racional com a situação. Ela deixou suas prioridades de lado, pois precisou assumir a responsabilidade por todos, mas admite que está cansada de ser forte. “Para todo mundo está difícil, mas tenho que cuidar de quem ainda está aqui. Tem que


realidade é mais forte, então o luto fica transferido para outra ocasião”, pontua Amorim. Nos primeiros dias após a morte, algumas pessoas podem não se demonstrar afetadas com a morte. Nesse caso, ela pode estar passando por um processo de luto inibido.. “Isso acontece porque a intensidade do sentimento é tão grande que a pessoa poderia enlouquecer. Então, o mundo mental dela desenvolve esse mecanismo de defesa psíquica, como uma anestesia”. As consequências do luto adiado vão desde insônia e desânimo até perda de peso e taquicardia.

ser assim e pronto. Não tenho escolha”, conta Luciana, no único momento da entrevista em que seus olhos se enchem de lágrimas. A forma de sentir e viver o luto é muito pessoal. Cada indivíduo reage a esse sentimento de maneira singular, que varia de acordo com suas particularidades, levando em conta as experiências e a própria personalidade. O psicólogo especializado em tanatologia Cloves Amorim analisa que as circunstâncias em que a morte ocorreu também influenciam no processo. “No caso do coronavírus, o fato de ser uma morte repentina deixa tudo mais difícil. Quando não há velório, a falta de uma despedida gera desapontamento.” Os sintomas de natureza psicológica do luto são bem conhecidos. Raciocínio confuso, culpa, solidão, saudade, tristeza, medo, raiva, agitação. No entanto, o luto possui ainda uma dimensão física, em que o enlutado pode até psicossomatizar os sintomas que o ente querido apresentava antes de morrer. A psicologia do luto considera que existem diversas maneiras de lidar com a perda de um ente querido. Quando a dor é muito difícil de suportar, ela pode ser prorrogada involuntariamente. “O luto adiado acontece quando no momento da morte a pessoa não tem tempo para sofrer. A

O luto afeta até mesmo a identidade de uma pessoa. Buscar seguir em frente pode ser difícil quando um indivíduo perde uma grande referência de sua vida. “Uma senhora casada agora é viúva. Um rapaz que tinha mãe, agora é órfão. Essa perda de identidade pode gerar uma falta de habilidade para se relacionar socialmente”, conclui o especialista. Junior, Cesar, Mara, Antônio. Todos os dias, outros tantos nomes são adicionados a essa lista. Muitos deles não têm o direito a um retrato ou identidade quando as estatísticas de mortes são publicadas nos noticiários. Porém, esses números representam histórias. Por trás de cada um deles, existem vidas, paixões, planos, dores e sonhos que não irão se realizar. Agora, restam apenas fotos, lembranças, ensinamentos e palavras ditas no presente, que pouco a pouco passarão a ser empregadas no passado. Em meio a tantas notícias generalistas, esta reportagem é uma forma de homenagear às vítimas do coronavírus de todo o país. Um fio de esperança O número de mortos por coronavírus causa pânico e desesperança, mas a sociedade tem se mobilizado para reverter esse cenário. portalcomunicare.com.br

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A whole life for each number

Everyday numbers of death by coronavirus are made known, but behind each one of them, there are lives, plans, pain, and dreams. Maria Cecília Zarpelon, Marina Prata e Sofia Magagnin Tradução (Curso de Letras Português-Inglês - PUCPR): Bruna Alessandra Zambão; Isabela Ribeiro Giacomin; Daniel Cardoso Pereira de Oliveira; Luiz Felipe Silvestre dos Santos; Romulo Luis Monteiro da Silva Junior. Revisão: Profa. Dra. Janice Cristine Thiél

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or those who go on living, it still hurts. Who could imagine that something un-known and invisible would take so many lives? It happened so suddenly, so fast. It is hard to find the right words to talk about them. Realization hasn’t hit yet and their absence is excruciating. Fathers, husbands, friends, wives— where did they all go? To mention them in the past has been difficult, and words insist on making them present: “He gets’’, “she likes”, “we are”… But numbers don’t wait for the pain to fade away to multiply. Each day, statis-tics grow. For those who are indifferent, it might seem just numbers— but for those who lost loved ones, there’s a whole universe of stories that data ig-nore— the numbers speak. WHAT REMAINED

José Palitot Junior was born and raised in the north of São Paulo. The youngest child of a housewife and a military policeman, he always dreamed of following magistracy as a career. Junior, as he was called, studied Law in the countryside. It was the beginning of a prosperous career, but he didn’t have enough time. Though work demanded a serious conduct, Junior never failed to demonstrate his cheerful personality. He loved Corinthians football team to death but didn’t go to the games for fear of violent displays of crowds; instead, he preferred to gather his friends up at his house to watch them on TV and celebrate together. Playful and

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fun, the forty-four year old hardly was in a bad mood. This is how his wife, Katianne Palitot remembers him. It was on June 15th, 2002, that destiny united Junior and Katianne. They al-ways got along very well, inspiring each other to do better. One of her biggest dreams was to be a college graduate, and it was thanks to her husband’s sup-port that she became the first person in her family to do so. After many achievements— including building their house, the couple’s big-gest dream was to travel to Portugal. Unexpectedly, that, along with other plans, was interrupted on March 30th of 2020. Junior died after staying seven days in the Intensive Care Unit (ICU). The cause of death was the disease that put the whole world into social distancing: Covid-19. Nobody knows for sure how Junior got the virus. Initially, he thought he had a simple flu since body aches, tiredness, and dry cough didn’t seem a big deal. “I feel bad because I thought that was just him being whiny. Symptoms didn’t match with what TV announced. That was why we didn’t seek a doctor”, re-members Kattiane. Junior’s wife took Junior to the hospital after he started to complain about hav-ing difficulty breathing. The diagnosis stated that he had compromised lungs and that he needed to be transferred to another ICU Public Health Unit. Katianne was on her limit. “I left home with the intention to see him go through an inhalation therapy and in the end that happened.”


As soon as they arrived at the hospital, she was not allowed to go to the ICU. “I stroke his leg and said: ‘May God be with you!’.” That was the last time Katianne saw her husband alive. All employees looked at the couple in fear. Junior was the first patient at the newly opened field hospital in ABC Paulista. “If you have faith, stick to it, be-cause we don’t know what this disease is,” she heard from the doctors. The day Katianne woke up more hopeful for Junior’s health improvement was the same day she received the worst news of her life. Early in the morning she learned that her husband had a cardiac arrest. “When he gave me the news, the doctor was crying as if Junior was part of his own family”, she says. Before she could suffer for her loss, the woman was warned that she would have to recognize the body of the man with whom she had spent half of her life. Following security protocols, the recognition was done via video call. After seeing Junior being put naked in a body bag inside a sealed casket, Katianne was forced to deal with the after death procedures. “The bureaucracies do not wait for you to cry.” The burial happened the following day. There was no wake. Only five people were authorized to accompany the burial, but nobody came close to the cas-ket. “There, I buried Junior alone, kneeling down, crying in front of a grave without anybody to hug me. One virus took everything away from me”, tells Katianne in tears. “Junior died alone. I could not hold his hand and say ‘everything will be al-right’. I could not thank him for everything. He deserved a proper burial, in which people could say their goodbyes properly. His mother did not have the right to bury her own son. His friends could not say goodbye”, mourns the wife. Junior’s childhood best friend, the only one that was present, was the one who said the words that comfort Katianne until today: “Junior loved life, and he lived”. The test confirming that Junior had coronavirus came out two days after his death. When Katianne took the certificate of death to the register office to be-come officially a widow, the owner of the parking lot looked weirdly at her. “Don’t you think that it’s too much to wear this mask?” The 30th of March was also an unimaginably painful day for another woman in São Paulo. Luara Vida lost her ex-husband three days before his 44th birth-day. Cesar Visconti believed he only had sinusitis, but he was actually pre-senting the first symptoms of coronavirus. After having fever and cough, he was admitted to the ICU in Hospital São Luiz in São Caetano, where he stayed for five days but did not resist.

Luara and Cesar knew each other since they were 15 years old, got married and had a daughter, Yasmin. They split up but never stopped being friends. Their love changed and the interaction became constant. Both Cesar and Laura began new relationships, but he dined at the ex-wife and daughter’s house at least three times a week - he even had the door code and the gate remote control. “We never lost the affection, the respect for each other. He is still my best friend and I am his.” Cesar had visited their house a few days before the first symptoms of the dis-ease - he was well and happy. This is why the news of his sudden passing left Luana so shocked. On the way to the hospital, Cesar called the ex-wife saying that he felt a pain like he had never felt before and an unexplainable shortness of breath. “He was very playful, he said ‘I think now I am kicking the bucket’. I told him to stop being dumb and he made me promise I would take care of Yasmin.”

“Junior has died alone. I couldn’t hold his hand and say, ‘it will be all right’ He deserved a decent funeral.” Katianne Palitot, Junior’s widow When he was about to be intubated, Cesar talked to his daughter. “He said ‘daddy will spend three days without being able to talk, but don’t worry. I’ll call you soon, ok? I love you.” That was the last phone call made by him. The family was hoping for his recovery. However, on the 30th of March, in the evening, Luara received a phone call telling her that Cesar’s kidney had stopped working. His brother went to the hospital to receive some news, but it was already too late. In the death certificate, the timestamp does not match the time of the phone call: when the hospital got in contact with Luara, her ex-husband had already passed. Cesar had a Law degree, but he worked as an instructor at Interlagos Racing School since he was 20 years old. “When we were married, I would say that he liked auto racing more than me”, jokes Luara. The last wish of “Ayrton Senna’s number one fan” before dying was to have his ashes thrown on the race track. Toninho, owner of the school, agreed to perform a ceremony to honor Cesar in the first race after the reopening of the place. “The worst part is not being able to say goodbye”, says Luara in sorrow. Be-cause of the pandemic, the family could not follow the cremation and could only get the ashes ten days

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later. “The crematorium gave an approximate time of when the process would begin. They could not say the exact time because there were too many bodies to be cremated. If we wished to make a prayer, or something of the sort, it should be at about three in the morning”, she tells. A man of a few words, but who was always smiling, Cesar will continue to be one of Luara’s favorite persons. To her, the ex-husband was the best father Yasmin could have. “They saw each other almost every day. He was a real father”, she remembers. “Cesar always boosted our daughter’s self-steem. Thanks to him, Yasmin is a person that truly loves herself.” The teenager in inconsolable. Her 16 year birthday was on the 5th of April, six days after the death of her father. Father and daughter had plans to celebrate together at Lollapalooza, because the concert of one of their favorite bands, Guns N’ Roses, would happen on the day of Cesar’s birthday. THEY HAD NO CHOICE

Last April 29th, the vice president of the Brazilian Medical Association (AMB), Diogo Sampaio, denounced that more than 6 thousand healthcare profes-sionals had already been infected by coronavirus in the whole country. These people that, every day, risk their lives to save others, are the ones most ex-posed to the virus, mainly because of the lack of personal protective equip-ment (PPE). “Her interest was to help others, in this profession, you gotta get involved.” Ma-ra Rubia Cáceres always wanted to be a nurse; had the vocation for it. The gaúcha (someone who lives in Rio Grande do Sul state), 44 years old, was a brave woman and worked as an auxiliary nurse for 12 years at Nossa Senhora da Conceição hospital, in Porto Alegre. Mara worked for 2 years in the emer-gency unit, and as corona virus spread, she started to take care of the inten-sive care unit (ICU)- the same unit where she was admitted when she con-tracted the virus. Her husband, Juan Cáceres, tells her story with pride and admiration. They´d met when he worked as an ambulance driver at the hospital and they stayed together for 21 years. Right in the beginning of their relationship, they had to share Juan´s mattress outside the bedroom that was being built. At that point, Juan knew that she was a brave woman. “Someone else would have left me alone. I relied on her.” Mara´s life was dedicated to take care of people. “There wasn´t a single soul who didn´t like her. In the nursing home where she worked, the elders used to cry because they did not

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want her to leave at the end of the day”. The auxiliary nurse would go on vacation of her vocation in May this year; she was planning to visit, with her husband, one of her favorite destinations: Rio de Janeiro. However, with the start of the pandemic, duty called and the trip was delayed. Mara passed out without visiting the Fluminense capital. The nurse contracted the disease doing what she loved, presumably taking care of the patients with coronavirus in the hospital. From the first symptoms until her death, 9 days had gone by. “She wanted to help, but she knew the risks were too high.” Mara was taken care by her colleagues in the same hos-pital where she used to work. “It did not get worse because they were together and treated her the best way they could”, the husband said. Many profession-als from the Conceição hospital contracted the disease, but Mara was the first and only one to die. “She was worried because, in the hospital, the professionals were not receiv-ing the appropriate working conditions.” Juan told her wife had asthma, which placed her within the risk group and for that she should be away from work.” One month before Mara’s death, she arrived home and said she could not come back home anymore because she had to do double duty, since there was a lack of people at work.” The husband doubted that the virus situation would go that far. Sometimes, Juan feels he is living a nightmare, that he will wake up anytime soon. He and the wife had a dog called Scooby; the dog stopped eating since the day Mara passed away Some time after, Scooby also died from sadness. “All the days are tough”, murmured Juan who, after a while, became silent. After following Mara´s dedication and bravery as a frontline worker against the disease, Juan warns: “We depend on them. The healthcare professionals, the cleaning professionals, all of them are necessary, so they can´t be infected. We need to take care of the doctors, the nursing technicians, everyone”. Just like the healthcare professionals, many workers cannot leave their work to be isolated at home. That is the case of Antônio Pereira da Silva. His family are not sure yet how he got infected. It might have been in the mat-tress store where he used to work as a salesman, because even though Mr Pereira was part of the risk group, he was not released from his job. Besides that, there is still the possibility that he got infected in the hospital, where he was taken care of after suffering a heart attack, a little time before the social distance safety measu-


res. But, at this point, discovering the origin of the con-tamination is the last of the priorities of his five children.

se still here. It must be this way, period. I have no choice”, Lu-ciana says, in the only moment of the interview her eyes filled with tears.

The covid-19 test was taken only because of protocol but ended up resulting positive. Antônio was transferred to Hospital das Clinicas, in São Paulo, short-ly after receiving his diagnosis. He spent 13 days at the hospital, was intubat-ed, but even fighting for his life, he did not resist the battle against the virus and died on April 6.

The ways to feel and live grief is very personal. Each individual reacts to such feeling in a very particular way, which varies according to his/ her traits, taking into consideration the personal experiences and his/her own personality. The thanatology psychologist Cloves Amorin considers that the circumstances the death occurred also influence the process. “In the case of Coronavirus, the fact of a sudden death makes it all more difficult. When there is no funeral, the ab-sence of a goodbye generates disappointment.”

Luciana da Silva, the oldest daughter, tells the family barely had time to pro-cess Antônio´s death. Her brother, Manuel, who rescued the father after the heart attack, was also infected. Even Luciana had symptoms of the disease, for about five days. However, despite the tomography showed injuries in her lungs, she never took the test to confirm it because the test was not available. “I got really stressed, was quarantined at home taking all the measures and still got infected.” In Antônio´s death certificate, the cause for the death in the document was coronavirus and generalized infection. He was buried with the coffin sealed, in a funeral that lasted eight minutes and with the presence of only three people. For Luciana, her father was a “typical Brazilian proletarian.” Paraibano (who lives in the state of Paraiba) moved to São Paulo state when he was 21 years old to find a better life in that city. Because Antônio did not have many days off from his job, he could rarely spend time with Luciana and Manuel, even living in the same neighborhood. Besides the exhaustive routine, the sexagenarian walked to his job every single day for about 50 minutes. When the pandemic broke out, it was not the virus that scared Antõnio, but the possibility of being fired from his job. “He was only an ID number, which will be replaced and someone is going to take his place” tells the outraged daughter. Antônio was a great fan of Brazilian country music - the reason why his oldest daughter who loves rock teased him. During his spare time he played some guitar and accordion, instruments he learned to play by himself. Always very happy, he enjoyed inviting friends for lunch and singing on Sundays. “His big-gest dream was to buy a house, but he didn’t have time.” Luciana mourns. The family is having a hard time processing Antônio’s death. Amongst all sib-lings, Luciana is the one coping more rationally with the situation. She left be-hind her priorities to take the responsibility for everyone, although she admits feeling tired of being strong. “It’s been tough for everyone, but I have got to take care of tho-

The symptoms of psychological nature of grief are well known. Confused rea-soning, guilt, loneliness, longing, sadness, fear, anger, agitation. However, grief also has a physical dimension in which the mourner might even manifest psychosomatic symptoms which the loved one presented before death. The psychology of grief considers the existence of several ways to cope with the loss of a loved one. When the pain is too hard to bear, it might be uninten-tionally postponed. “Postponed grief happens when the person does not have time to suffer. Reality is stronger, so the grief is transferred to another occa-sion,” Amorin states. During the first days after death, some people might not demonstrate being affected by it. In this case, he/she could be going through a repressed grief process... “This happens because the intensity of the feeling is so enormous that the person could go mad. So, his/her mental world develops such mecha-nism of psychic defense as anesthesia”. The consequences of postponed grief go from insomnia and discouragement to weight loss and tachycardia. Grief affects even an individual’s identity. To move forward might be tough when one loses a great life reference. “A married lady is now a widow. A boy who had a mother is now an orphan. This loss of identity could generate a lack of ability to socially relate”, the specialist concludes. Junior, Cesar, Mara, Antônio. Every day, many other names are added to this list. Many of whom, have no right to a portrait or ID when death statistics are published on the news. Nonetheless, these numbers represent stories. Behind each of them, there are lives, passions, plans, pain and dreams that will not come true. Now, there are only photos, memories, teachings, and words said in the present which little by little will be used in the past.

The farewell What changes in the funeral of a coronavirus victim? And why? Those who died from coronavirus must be respected in all aspects, religion and cultural traditions after death, just like any other deceased. For some peo-ple, taking really good care of those who died from Covid-19 might seem like an exaggeration. After all, the risk is bigger when someone is alive. However, even after the person passed away, the particles are still released according to Lúcia Noronha, professor of Medicine at Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). And that’s why, even after the patient’s death, the family cannot have any contact with the body, neither for the recognition of the body nor during the funeral. But if the coffins are sealed, is it risky to have a funeral so that the families can say goodbye? “Funeral care is about the people at the funeral, as they can get infected due to the interaction,” explains the doctor.

A glimmer of hope The number of deaths caused by coronavirus causes panic and leaves some people hopeless, but society has tried to change this situation. portalcomunicare.com.br

In the middle of so many generic news, this report is a way to pay tribute to the victims of Coronavirus all over the country.

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Eliana Salles

A enfermeira Eliana com marcas no rosto após o uso das máscaras.

A luta dos enfermeiros No combate ao novo coronavírus, existe a linha de frente e também aqueles que estão à frente na linha de frente Isabelli Pivovar Lucas Grassi Maria Fernanda Coutinho

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primeiro passo é pegar a máscara cirúrgica. Depois, ir ao vestiário colocar a roupa de trabalho, que antes costumava ser apenas o jaleco. Tudo agora é descartável: óculos, máscara, avental e sapatos. Essa é a nova rotina da enfermeira Eliana Salles, de 38 anos, ao chegar ao Hospital Villa-Lobos, em São Paulo,

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todos os dias desde que a pandemia começou. Realidade que abrange não apenas Eliana, mas também mais de dois milhões de profissionais de enfermagem, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). No país que leva a pandemia do Covid-19 como se fosse brincadeira, não é de se espantar que 157 enfermeiros


tenham ido a óbito em menos de dois meses e, de acordo com o COFEN e o Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN, sigla em inglês), o Brasil é o país com maior número de mortes desses profissionais. “É muito triste quando um colega seu, com quem você tem uma ligação emocional, é infectado, porque nunca se sabe como o vírus irá afetar cada indivíduo e se essa pessoa que ajudou tantas outras irá se recuperar”, diz a enfermeira Emelly Tracz, de 28 anos, que atua na linha de frente da Santa Casa de São José dos Campos em São Paulo. “Ficou claro o quanto precisamos de enfermeiros, em quantidade e em competência, para que possamos prover saúde de qualidade a toda a população mundial. A enfermagem

em relação às outras doenças, é que a pessoa agoniza durante o tratamento e na hora da morte, é desesperador ver uma pessoa morrer com falta de ar, onde nem o oxigênio ofertado e respirador da conta de ajudar”, lamenta Eliana. Segundo dados oficiais do dia 29 de maio, o novo coronavírus matou 27.878 pessoas no Brasil. Mas em meio a um número tão grande, fica difícil isolar as histórias que os enfermeiros presenciam durante sua jornada. “Recentemente uma família internou a mãe, logo depois o pai, e ela estava em estado muito mais grave e, ele, lúcido no mesmo espaço, ficava olhando para sua esposa, chorando, rezando pela recuperação e pedindo para ver os filhos.

“É possível cuidar sem que exista perspectiva de cura. Não há cura sem cuidado. Isso torna a enfermagem essencial. Sem ela, não há saúde.” Emiliana Mello, enfermeira se tornou protagonista na guerra contra a Covid-19, pois o foco de nossa profissão não é curar, e sim cuidar do paciente de acordo com as necessidades individuais dele”, explica Emiliana Mello, coordenadora do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual Do Norte do Paraná (UENP). Para ela, o enfermeiro é a peça chave para o funcionamento do sistema de saúde neste momento de pandemia. “É possível cuidar sem que exista perspectiva de cura. Não há cura sem cuidado. Isso torna a enfermagem essencial. Sem ela, não há saúde”, enaltece a coordenadora. Mesmo que esteja acostumada com o ambiente hospitalar, que envolve perdas, a enfermeira tem encontrado dificuldade em lidar com uma doença que implica tanta solidão e isolamento. “Ver pessoas doentes já é comum para nós, mas a diferença do Covid-19

Uma semana depois, ela faleceu. Ele resistiu, mas não tenho certeza como uma família supera um trauma desses. É muito triste”, relembra a enfermeira Emelly Tracz. Em meio a um bombardeio de informação e histeria, quando algum ente querido é diagnosticado com a Covid, a profissão se torna ainda mais importante, pois é papel do enfermeiro dar as más notícias, ao mesmo tempo que tenta acalentar os ânimos dos familiares. Marcos Elias, de 43 anos, trabalha no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Elias conta que, no início da pandemia, ao atender uma paciente de 55 anos com suspeita de Covid, presenciou o pânico dos filhos e netos ao ver a paciente ser retirada em uma maca, cheios de dúvidas e medo. Ao sair da ambulância para prestar conforto à família, presenciou todos na rua vendo o veículo se afastar. “Meu

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coração ficou apertado, fiz uma oração por todos”, conta o enfermeiro. Para Elias, ainda, a impossibilidade dos familiares de estarem próximos ao doente é uma das maiores dificul-

Brasil devido ao Covid-19, o número de pacientes recuperados segue aumentando semana a semana, totalizando até o momento 190 mil pessoas curadas. A recuperação do

“Ficar longe em um momento tão delicado mexe com o psicológico, porque não sabemos se o paciente vai ver seus entes queridos de novo.” Marcos Elias, enfermeiro dades. “Ficar longe em um momento tão delicado mexe com o psicológico, porque não sabemos se o paciente vai ver seus entes queridos de novo. Eu me coloco muito no lugar deles, e eu não quero morrer sozinho em um leito de hospital sem a minha mulher ao lado”, comenta. E mesmo tentando seguir esperançoso em frente a tantos casos, o enfermeiro teme que a população brasileira ainda enfrentará o pior momento da pandemia. “Eu acho que o pior momento da pandemia não chegou ainda, está por vir, quando a equipe médica vai ter que tomar decisões difíceis de quem vive e morre. Muitas Emelly Tracz pessoas vão morrer nas portas dos hospitais ou em casa”, finaliza Elias. O professor Gauss Cordeiro, do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e PhD em Estatística pelo Imperial College, do Reino Unido, afirmou em entrevista à Rádio Jornal, que o pico das mortes causadas pelo novo coronavírus no Brasil deverá ocorrer entre julho e agosto. Em contrapartida, mesmo com o número alto de óbitos no

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paciente e a gratidão de todos após a alta hospitalar são os fatores que continuam motivando os enfermeiros Eliana, Emelly e Marcos. “O hospital inteiro entra em êxtase”, diz Eliana. “A melhor parte é ver grande parte da população se conscientizar com a importância da lavagem das mãos, de higiene. E ver a enfermagem sendo protagonista: tenho um orgulho danado da minha profissão. Nós precisamos de valorização, de dignidade e isso é melhor que homenagens vazias em redes sociais. A melhor sensação é a do dever cumprido, de ter feito a diferença na vida de alguém”, finaliza a enfermeira.

Os enfermeiros da Santa Casa de São José dos Campos, São Paulo.


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A incerteza na calmaria A realidade de quem convive com a ansiedade no meio de mudanças repentinas Brandow Bispo, Carolina Bosa, Gabriela Fontana e Julianne Trevisani

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epois de um dia longo de trabalho ele toma um banho quente para relaxar e pede no delivery sua comida favorita: sushi. E enquanto isso aproveita para jogar videogame com os antigos amigos da faculdade para aproveitar a sexta-feira. Depois de algumas horas eles cansam e se despedem. Rafael* vai então tomar um banho quente para relaxar, mas o que era para ser um momento bom se transforma em uma crise de ansiedade. Mais uma de várias outras que ele está tendo durante o isolamento social. Dúvidas, preocupações, medos, angústias e incerteza. Esses são apenas alguns dos sentimentos que afetam as milhões de pessoas com ansiedade ao redor do mundo inteiro. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem o maior número de pessoas ansiosas em comparação aos outros países: 18,6 milhões de brasileiros, ou seja 9,3% da população, convivem com esse transtorno. E por que a ansiedade existe e quais os sintomas que esses milhões de pessoas podem sentir? Como explica o psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Paraná, Emerson Rodrigues Barbosa, para a psicologia e Psiquiatria, a ansiedade está relacionada a uma preocupação patológica da pessoa, com o ambiente ou a situação em que ela se encontra.

“O ser humano é o único animal que sofre por antecipação.” Paulo César Martins, doutor em Psicologia Clínica. Complementando, o doutor em Psicologia Clínica Paulo César Martins explica que a ansiedade é um tipo de sofrimento característico da condição humana. “O ser humano é o único animal que sofre por antecipação. Por exemplo, você vai ter uma prova ou vai sair com o teu crush, e você já começa a sofrer antes daquilo acontecer. Ansiedade tem a ver com isso: o sofrimento por antecipação, por você

sofrer por algo que não está acontecendo naquele momento e muitas vezes pode ser fictício, pode sofrer por ser demitido ou por medo de reprovar e, na verdade, isso é um medo, uma construção da própria pessoa”, explica o doutor. Infelizmente, o ano de 2020 nos trouxe outro motivo para que a ansiedade pudesse se agravar, ou ainda se manifestar, nas pessoas: a pandemia da Covid-19. Causada pelo novo coronavírus, a doença, que parece invencível, obrigou o mundo inteiro a se isolar. E com o isolamento, o sofrimento pelo desconhecido se manifesta. O psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Paraná, Emerson Rodrigues Barbosa, explica que a redução das atividades rotineiras pode afetar negativamente a saúde mental das pessoas. “Levando a uma sensação de passagem de tempo distorcida, a percepção de que realmente existe a necessidade de ficar preocupado com tudo e que viver neste mundo é muito perigoso. Tendo menos trocas sociais, de experiências o indivíduo pode chegar as suas conclusões catastróficas ou depressivas sem ter ninguém para fazer o contraponto”, expõe. Por isso, a sensação de que os dias passam mais devagar, o cansaço e a insônia são impactos ainda muito recorrentes causados pelo isolamento social. O medo do desconhecido faz com que as pessoas sintam receio para fazer suas atividades mais cotidianas, e a sensação de inquietação mental só reforça o quanto não estamos preparados para encarar toda essa situação.

AJUDA E CUIDADOS A ansiedade, como já exposta, pode então se agravar ou até mesmo surgir no momento de isolamento, porque ela tira uma dimensão importante para o ser humano: a social. “Por meio da socialização o ser humano tem o lazer, tem o entretenimento, tem as relações afetivas, ele tem ali um processo de válvula de escape, podemos pensar como uma terapia natural, orgânica. Muitas vezes a pessoa que está sofrendo, conversa com alguém, divide aquela dor, recebe um

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suporte emocional e acaba, ‘superando’ aquele sofrimento. O isolamento social dificulta todas essas questões.”, esclarece Martins. Para o engenheiro civil Rafael*, de 27 anos, é exatamente assim que o distúrbio tem tomado conta do seu dia a dia. O peso das obrigações da vida profissional se acumulando, e uma rotina diferenciada e mais solitária só agravaram suas crises, que vão e voltam pelos menos quatro vezes durante a semana. “Eu fui diagnosticado com ansiedade e depressão na época do meu vestibular, ou seja, há 10 anos eu lido com isso. Há épocas em que elas não me atrapalham, mas também existem momentos nos quais eu preciso tomar medicamentos e ir com mais frequência ao terapeuta”, relata. Rafael conta que, por muito tempo, sentia vergonha de dizer que foi diagnosticado com as duas doenças, mas que, durante o isolamento social, se sente menos sozinho já que é um tópico muito comentado.

“Tem dias que a minha mente simplesmente não consegue relaxar.” Rafael, engenheiro civil. “Tem dias que a minha mente simplesmente não consegue relaxar, não durmo e fico com esses pensamentos de que nunca sairemos dessa nova realidade do mundo, mas, ao mesmo tempo, lembro que posso contar com o apoio de muito mais pessoas”, finaliza o engenheiro, refletindo sobre o isolamento e suas particularidades. A dona de casa Hilda Maria Corrêa, de 59 anos, sempre teve uma vida muito agitada. Estava sempre criando novos hobbies, visitando e recebendo os amigos e familiares em casa, levando a filha a seus compromissos, indo ao banco, fazendo as compras de supermercado e, ainda, dedicando-se a exercícios ao ar livre, além de muitas outras atividades. Mas, devido ao perí-

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Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem o maior número de pessoas ansiosas do mundo: 18,6 milhões de brasileiros (9,3% da população).

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O isolamento reforça a falta de controle sobre a realidade vivida, aumentando o medo e a ansiedade. odo de isolamento social, essa situação se modificou completamente. Hilda nunca foi diagnosticada com ansiedade, mas sente que fica irritada ou até intolerante com mais facilidade devido às mudanças de rotina. Mas, mesmo diante desses novos desafios, ela acredita que esse período está sendo fundamental para se reconectar consigo mesma e com sua família. Ela exprime sua vontade de tentar aceitar esses sentimentos exacerbados e transformá-los em algo positivo. “Agora dividimos mais nosso tempo com filme, séries e diálogos mais longos. E também aprendi que não preciso consumir tantas coisas, vivo com bem menos”, conta.

“Aceitar que primeiro preciso me deixar sentir e, depois, a comandá-la.” Bruna Bernardelli, publicitária. Já a publicitária Bruna Moraes Bernardelli, de 23 anos, relata que perdeu o controle de seus horários. Sem horário para acordar ou para dor-

mir, a estudante explica que também está pulando refeições e que não tem um horário definido para elas. “Sinto muita angústia, sem ter a previsão de quando tudo isso vai acabar. Tenho a sensação de quem nada tem fim. Me sinto também muito inútil em relação a tudo na minha vida, estou me cobrando bem mais do que o normal”, desabafa Bruna. Mesmo tendo que se readaptar ao novo “mundo real”, o isolamento trouxe para a publicitária um pouco do autoconhecimento. “Conhecer mais sobre esse mal já é uma coisa positiva. Conhecendo, consigo descobrir maneiras de lidar com isso tudo, já que a ansiedade não tem uma cura. Me possibilita me descobrir mais como pessoa, a ter empatia por outras, dar a chance de me escutar mais e aceitar que primeiro preciso me deixar sentir a ansiedade e, depois, a comandá-la”, diz Bruna.

AJUDA E CUIDADOS Há uma tensão espalhada pelo ar, um sentimento de que perdemos o controle das coisas mais básicas e fundamentais. Por isso, é preciso identificar quando a ansiedade é apenas um sentimento passageiro, ou de quando

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ela passa a se manifestar como distúrbio. Como ressalta Barbosa, a ajuda de um profissional deve ser procurada sempre quando houver um sofrimento desnecessário - disfuncional. “O padrão ouro para tratamento de quadros fóbico-ansiosos é a terapia cognitivo-comportamental. Durante as consultas, o terapeuta vai ajudar o paciente a identificar padrões de pensamentos que causem sofrimento desnecessários e mudá-los. Além disso, em casos mais difíceis de tratar com terapia, o uso de medicamentos prescritos por psiquiatra pode ser necessário”, explica o psiquiatra. Para as pessoas que tiverem crises em casa e não souberem o que fazer é importante lembrar que elas não estão sozinhas, e hoje podem contar com ajuda de terapias online. Segundo Barbosa, durante os momentos de crise não é aconselhável fazer uso de álcool ou de medicações que causem um alívio imediato, como benzodiazepínicos. Isso aumentará as chances do desenvolvimento de dependências dessas substâncias. O recomendado são algumas técnicas,

como relaxamento muscular progressivo, treino de respiração abdominal e técnicas de mindfulness. Além disso, o psicólogo Paulo Martins lembra que já comprovado pela ciência que devemos manter uma rotina de exercícios por 15 minutos ao dia e a meditação, mesmo dentro de casa, traz uma melhora interessante em questão de depressão e ansiedade. “Uma analogia que eu encontrei bastante quando eu estudei esse tema que é como se você “resetasse” o computador. O computador já está lento, travando, você desliga e liga e muitas vezes volta sua performance. Então,ao fazer 15 minutos no mínimo de exercício, você tem esse tipo de ganho.Então, fazendo atividade física de maneira regular, você também tem um ganho físico, químico na questão hormonal e neurológica, bem importante e significativo”, explica. Para as pessoas que precisam conviver com a ansiedade, é importante ressaltar que elas não estão sozinhas e assim como depois da tempestade existe um arco-íris, depois que as crises passam elas trazem sorrisos.

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É fundamental continuar com as medidas propostas pelos profissionais de saúde para o tratamento, como o uso de medicações, terapia on-line e atividades físicas.

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A boa notícia Marina Prata

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uem não se deixou afetar ao menos uma vez pelas notícias devastadoras da pandemia, que atire a primeira pedra. Naquela semana, caí no erro de ler muitos jornais e acabei me sufocando com os fatos caóticos do mundo exterior: milhares de pessoas morrendo, famílias sofrendo, governos em colapso - e não havia quase nada que eu pudesse fazer, exceto me sentir muito mal. Após alguns dias desanimados, o fim de semana parecia reservar uma boa surpresa: meu irmão mais velho, que é casado e mora em Londrina, queria nos fazer uma visita. Porém, nossa família concluiu que seria um risco muito grande, e pedimos para que ele permanecesse em isolamento social e adiasse a viagem Cheguei a presenciar o que imaginava ser impossível. Minha mãe, a mais coruja e apegada das mães, ligando para seu primogênito e insistindo pelo oposto do que seu coração obviamente desejava. “Por favor, não venha”, ela disse ao telefone, com a voz embargada. Mas, com uma teimosia sem sentido (até agora), Giovanni veio a Curitiba mesmo assim. Durante a noite, tomando os cuidados de distanciamento, ele nos sentou no sofá da sala e, com ar misterioso, entregou uma caixa para cada um. Começou a ler uma emocionante carta sobre como eu, meus pais e meu irmão Lucas éramos importantes para ele. “Espero que, quando eu tiver um filho, ele possa ter uma família como a minha”, finalizou, emocionado. “Eu não podia dizer isso por telefone. Abram as caixinhas.” Dentro da embalagem que eu acabara de ganhar, havia uma caneca branca com listras rosadas e esverdeadas. Na parte da frente, dentro de um coração, os dizeres: “Titia Marina, o papai não sabe mesmo guardar segredo”. Virei a louça do outro lado, com a visão embaçada pelas lágrimas, para ler o resto. “Ele me disse que você vai ser a melhor titia do mundo.”

Minha primeira reação foi preocupação. Pois é. Fiquei indignada por me sentir assim, afinal, deveria estar apenas feliz, não é? E eu estava, mas não conseguia deixar de pensar que o mundo, na atual circunstância, não era lugar para um bebê. Não queria que meu primeiro sobrinho ou sobrinha, tão aguardado por todos nós, nascesse durante uma pandemia, em meio a tanto perigo e morte. Após as lágrimas de emoção darem lugar a sorrisos nos rostos de todos, propusemos um brinde para comemorar a chegada da mais nova integrante da família: uma garotinha, Malu. Quando as taças tilintaram, a preocupação que antes me roubava o momento deu lugar a outra sensação. Aquele era um dos acontecimentos mais felizes para nossa família. Agora, meus pais terão outra princesinha para mimar, meu irmão e eu seremos oficialmente “tiozões”, e eu poderei apresentar a franquia de Star Wars para alguém que nunca a assistiu. Malu não devia ser uma preocupação, mas um presente. Uma razão para acreditar em meio ao caos que tomava conta do mundo. Ao perceber aquilo, todo o medo e tristeza que eu vinha acumulando durante a última semana foram gradativamente substituídos pela mais inesperada e revigorante esperança. Daquele dia em diante, ela passou a representar minha fé em dias melhores. Em uma nova geração de seres humanos, que irá transformar o mundo. Mais que isso, Malu me fez querer tornar esse planeta um lugar melhor para ela. Agora, mesmo quando as notícias ruins voltam a me atingir, a expectativa pela chegada dela me acalma. E a cada vez que meu irmão nos traz os boletins médicos, ou quando tomo meu café matinal na minha caneca verde e rosa, não importa o quão pra baixo eu esteja, é como se eu estivesse recebendo aquela boa notícia novamente.

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O legado do aprendizado Professores da rede pública engajam alunos por meio de projetos inovadores Ana Iamaciro Andressa Carvalho Carla Tortato Laís da Rosa

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ão são todas as pessoas que realmente compreendem a dimensão da importância da educação para as crianças e adolescentes. Gestos, por menores que sejam, de educadores da área agindo por conta própria têm o poder de transformar vidas. O professor da rede pública de educação Thadeu Angelo Miqueletto é um desses educadores dedicados a mudar a realidade de seus alunos. Ele é responsável pela iniciativa que levou aulas de robótica para um colégio público de Curitiba. O projeto inovador, quase como uma ironia, veio a se concretizar nas salas do “prédio velho”, como é conhecido pelos alunos do Colégio Estadual Padre Cláudio Morelli. O apelido não é à toa; a construção foi tombada em 2016 como unidade de interesse de preservação. Foi nesse mesmo ano que o projeto de robótica foi implantado, ao

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mesmo tempo em que o prédio passava por reformas. Com um sorriso fácil e um ar de “parceiro” dos alunos, o professor Thadeu, mestre em Educação Matemática, divide sua rotina entre as nove turmas em que dá aulas, lecionando para 286 estudantes, e o projeto de robótica, com 28 alunos. Os que fazem parte do projeto são separados por equipes para participar das competições. São três equipes para a Olimpíada Brasileira de Robótica (OBR), duas de FIRST LEGO League (FLL) e uma de FIRST® ROBOTIC COMPETITION (FRC). Apesar de todas as conquistas, remontando um passado não tão longínquo assim, quando a iniciativa não tinha forma nem rostos, o professor relembra os desafios da época, devido à necessidade de conseguir investimentos. “A vontade de colocar o projeto em prática foi maior, então surgiu a ideia de montar rifa com ajuda da comunidade e pedir ajuda financeira a empresas particulares da região”, conta Thadeu. No início, houve ainda uma parceria com alunos bolsistas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que ajudaram no desenvolvimento das aulas de robótica. Ele explica que os torneios conseguem trabalhar com os alunos, de maneira prática e divertida, todas as áreas do conhecimento. Com as competições e as aulas no contraturno, os estudantes aprendem a se comunicar melhor, desenvolvem o senso de responsabilidade e autonomia, fortalecem a criatividade, diminuem a timidez, além de iniciarem seu contato com a pesquisa científica desde o ensino fundamental. Por meio destas competições, é possível enxergar o mundo de uma maneira diferente“, dando a devida importância que a ciência e a tecnologia têm em nossas vidas”, afirma. Desafiando as estatísticas e a realidade habitual das escolas públicas, o professor conseguiu levar os alunos do Morelli, no bairro Umbará, para as competições regionais, nacionais e até internacionais, conquistando diversos prêmios. Mas o que Thadeu mais se orgulha em reconhecer é o impacto individual que o projeto tem em

cada aluno. A semente que é plantada ao longo das aulas de robótica, que desabrocham quando os estudantes que passaram por ali entram em um curso de graduação, espreitando um largo horizonte de possibilidades à sua espera. Carlos Eduardo dos Reis Barbosa, de 18 anos, é um desses estudantes que foram bem-sucedidos ao passar pela iniciativa. Hoje, ele está no 3° período de Engenharia Mecatrônica na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). O sonho que o acompanhava desde a infância de seguir a profissão, foi potencializado com o convite para entrar no projeto, a robótica era o que faltava para que ele descobrisse seu talento e habilidade para atuar na área. O projeto transformou a vida de Carlos em diferentes aspectos, como a redução da timidez e o melhor desempenho no colégio que o ajudou a delinear seu caminho até entrar em uma universidade pública. Atualmente, ele atua como mentor da equipe, repassando seu conhecimento para os novos alunos da robótica de forma voluntária. Carlos também é juiz em algumas competições. “Todo ano eu viajo para diferentes lugares para ser juiz voluntário dos torneios, como é um trabalho voluntário, o torneio acaba custeando as viagens e estadias nas cidades onde ocorrem.” A gratidão de Carlos ao professor é esclarecida com palavras. “O professor Thadeu é uma das pessoas mais sensacionais que já conheci em toda minha vida [...] com o passar do tempo fui criando uma intimidade com ele, hoje eu posso considerá-lo como um dos meus melhores amigos, sempre estamos fazendo alguma coisa juntos, e temos a confiança um do outro na hora de realizar certa atividade que precise de ajuda”, descreve. Mais que isso, o professor é ainda uma inspiração para o jovem. Sentimento esse compartilhado também por Wellingthon dos Santos Matte, de 18 anos. Para o estudante de Engenharia de Controle e Automação, o professor Thadeu é uma fonte de inspiração tanto para seguir sua carreira profissional, como também para realizar ações significativas que

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possam impactar a vida das pessoas de forma positiva. Wellingthon, que entrou no nono ano para a equipe de robótica, destaca além do aprendizado, as amizades que fez. “São pessoas com quem eu gosto muito de trabalhar e de ter como amigos também, é muito difícil encontrar pessoas que você consiga conciliar os dois.”

da Educação (SEED) Adriana Kampa reforça que os projetos têm uma influência positiva na vida dos alunos. “Os projetos, quando bem trabalha-

‘‘Por meio destas competicões, é possível enxergar o mundo de uma maneira diferente.”

Thadeu Angelo Miqueletto, professor de Matemática

De competidor, Wellingthon passou para mentor, função que exerce agora auxiliando os alunos que representam as equipes atualmente. “Quando eu tive a oportunidade de poder ensinar para as outras pessoas e agir como um professor foi muito transformador, foi um dos melhores momentos que eu tive na robótica. Eu fico muito contente até hoje de lembrar porque essa mudança de você passar conhecimento e auxiliar aquele grupo que fez tanto por ti é muito bacana”, afirma com gratidão. A coordenadora de Planejamento e Gestão da Secretaria de Estado e

dos, com os professores certos e específicos para aquela disciplina, geram um ganho imenso e principalmente no engajamento dos estudantes”. O segredo para obter esse sucesso é prezar pela qualidade do ensino e isso precisa ser entendido principalmente pelos professores atuantes no projeto que é pretendido. “Os professores e a escola têm que estar muito bem alinhados para incentivar e motivar o estudante a continuar aprendendo e estimular para que essa aprendizagem seja cada vez mais qualitativa”, explica a coordenadora. Adriana explica que uma forma de garantir essa qualidade é se certificando de que esses profissionais tenham excelência, possuindo especialidade no tema. A presença e o acompanhamento do professor durante todo o processo, são peças-chave para um resultado satisfatório. Além do exemplo do professor Thadeu, temos a professora Maria Cláudia Borges, que também se dedica para mudar a realidade dos seus 300 alunos de escola pública. Maria Cláudia incentiva suas nove turmas com projetos de iniciação científica, onde os alunos pensam em propostas sociais que se conectam com filósofos. E esses projetos são inscritos na Feira Brasileira de Iniciação Científica (FEBIC) Maria Cláudia resolveu levar essa iniciativa a seus alunos por dois motivos, o primeiro porque a pesquisa está muito presente em sua formação e a segunda, por conta que os alunos só

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têm contato com as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e nada além disso. E com esses projetos é uma forma de aprenderem o passo a passo de uma pesquisa. “Eu já estou fazendo doutorado, então a pesquisa sempre esteve presente na minha carreira, e além disso é importante eles terem contato com pesquisas e feiras, porque eles vão ter contato no futuro, em universidades.”

colégio, pois recebeu todo o apoio de professores, diretores, alunos e pais. “Quando eu apresentei a minha ideia de projeto para os diretores, eles me apoiaram na hora, e fizemos uma reunião com os pais e alunos para explicarem a ideia para eles também, eles ficaram muito felizes com a iniciativa, tanto que, no primeiro ano, fizemos rifas, vendemos lanches para conseguir ir participar das feiras, com todo com apoio dos pais dos alunos”, relata Maria Claúdia com voz de comoção.

Em 2016, foram iniciados os projetos sociais com os alunos do terceirão, onde eles fizeram todo passo a passo da pesquisa, entenderam como é um projeto, fizeram pesquisa de campo, relacionaram com filósofos. E, na metade, do ano apenas um grupo de alunos quiseram se inscrever para o FIciencias e o FEBIC. E foi desafiando a realidade habitual desses alunos, que estudam na periferia de Curitiba que Maria Cláudia conseguiu levar seus alunos do Sitio Cercado ao topo. No FIciencias, eles eram os únicos de escola pública de Curitiba a participar da feira, e no FEBIC ficaram em primeiro lugar em humanas da feira. Maria Cláudia conta toda entusiasmada, que não teve nenhuma dificuldade em levar a iniciativa para o

Mas nem tudo é tão fácil, Maria Cláudia conta que, mesmo levando esses projetos para os alunos, ela sente a dificuldade de manter eles motivados, de quererem estudar. Pois é difícil manter um ritmo com eles, porque muitos professores são muito conteudistas e outros mais dinâmicos o que deixa eles desanimados muitas vezes. Para Maria Cláudia, como professora de Filosofia é algo um pouco mais desafiador, como ela vai fazer seus alunos se interessarem por autores filósofos, ela relata que mantém um ritmo de fazerem eles se desafiarem, de fazerem eles terem um pensamento crítico, deles mostrarem o ponto de vista deles. “Na minha disciplina, eu tento fazer eles terem um pensamento crítico, com que eles compartilhem o ponto de vista, pois muitas vezes são pensamentos interessantes que enriquecem a sala de aula.”

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Mas mesmo com todos esses desafios Maria Cláudia se sente muito satisfeita em ser educadora de rede pública, porque é um intermédio de duas coisas para ela. “Para mim, ser professora hoje é uma mediação entre um discurso e uma prática, é o espaço que eu tenho de fugir do campo do discurso e também estar dentro do campo da prática”, conta ela toda emocionada. Edson Ferreira Lopes Júnior, de 20 anos, é um desses admiradores da professora Maria Cláudia, e um dos premiados do FEBIC de 2016. Cursando o 5° período de Artes Visuais na Faculdade de Artes do Paraná (FAP), Edson conta todo emocionado que a professora teve um papel muito grande em sua vida, que foi por meio dela que ele teve contato com projetos sociais, e hoje luta por causas sociais na faculdade. Edson se inspira muito em Maria Claúdia, pois ele se vê como educador daqui uns anos e ele quer ser um professor que incentive os seus alunos a quererem estudar e saberem que eles conseguem tudo que almejem. “A professora Maria Cláudia teve um papel muito grande na minha vida, tanto pessoal quanto na carreira, porque quero ser 1% do que ela foi para mim como professora”, relata Edson com voz de gratidão. Já para mãe de Edson, dona Angela Maria Ferreira Lopes, essas iniciativas ajudam os alunos a se desafiarem e, também, é uma forma de aparecer novos talentos. E ela conta com emoção que é muito grata à professora Maria Claúdia, porque fez com que seu filho tivesse muitas ideias inovadoras, e teve a vontade ser professor, mas principalmente ele se autodescobriu

como pessoa. “Eu sou muito grata a ela, porque ele se sentiu livre depois dessas iniciativas sociais.” No Brasil, são 50 milhões de estudantes em processo escolar, fundamental para construir as condições de inserção cidadã do estudante. Andrea Gouveia, professora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais (NUPE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) explica que a escola deve garantir o domínio da língua, da Ciência, da matemática, além da possibilidade de compreender a expressão artística, de dominar o corpo pela Educação Física. “Isso tudo é um repertório que a escola coloca a disposição das novas gerações que vai se renovando dia a dia”, diz. Gouveia afirma que o desenvolvimento humano pleno passa pela função da escola como um lugar de socialização, no sentido de ser um espaço público e coletivo, construído pela sociedade para fazer a primeira inserção de uma nova geração no que é a vida adulta. “Acho que esse é o grande legado da atividade docente: poder pensar a inserção no mundo do conhecimento pensando isso como um processo que implica relações humanas entre os professores, as crianças, entre os estudantes de maneira geral.”

“Muitas vezes são pensamentos interessantes que enriquecem a sala de aula.”

Maria Cláudia Borges, professora de Filosofia 32 revistacdm | educação


A professora de Filosofia Carla Oliveira do Colégio Estadual Tarsila do Amaral também participa de um projeto escolar que em parceria com a Tachi-s Brasil desenvolveu um trabalho integrado com as várias disciplinas que visa desenvolver uma capacitação de trabalho para os alunos. A valorização de projetos que aprimoram o senso crítico, a autonomia e responsabilidade é de extrema importância. Por isso, surgiu o Projeto Preparando o Amanhã. O projeto consiste em capacitar todos os alunos à exercer sua cidadania de forma efetiva, formar cidadãos críticos, participativos e com uma visão ampla e analítica do mundo. Carla diz com orgulho que os alunos são muito participativos nesse projeto. “Os alunos demonstram muito carinho e dedicação ao projeto. Eles mostram que se dedicam ao novo aprendizado, principalmente quando sabem da possibilidade de contratação no mercado de trabalho”, relata a professora. Para a contratação no mercado de trabalho, é essencial que se saiba montar um currículo, saber se portar em entrevista de emprego, ter experi-

ências em alguns setores da sua área de atuação, entre outros fatores. O Projeto Preparando o Amanhã trouxe oficinas para desenvolver essas habilidades, entre elas estão: curso de Gestão de Carreiras, no qual o aluno desenvolve seu teste vocacional, aprende a como trabalhar em equipe, como desenvolver as atividades propostas, como elaborar um currículo e como se portar em entrevistas de emprego. Na oficina de Gestão e Manufaturados e Logística, os alunos puderam vivenciar a experiência dentro de uma fábrica, desde a elaboração até a confecção de produtos. A educadora sente muito orgulho dos alunos que participaram do projeto e ainda fala que as políticas públicas de incentivos ao professor na grande maioria, não são apoiadas pelas instituições de ensino por conta de tempo que elas podem demandar ou mesmo, a preocupação que, de alguma forma, elas possam atrapalhar o andamento estudantil de cada aluno. Sobre as práticas de ensino, Carla sugere que o trabalho docente em sala de aula deva ser analisado para que as novidades sugeridas pelos professores sejam postas em pauta.

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Kelli Tungay

Escola virtual Salvação ou segregação? A pandemia mudou o mundo até no jeito de ensinar. Com o fechamento das escolas, o ensino à distância foi a solução para amenizar a perda do ano letivo Alice Putti e Rafaelly Kudla

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N

ove a cada dez estudantes de todo o mundo foram afastados das escolas devido à pandemia do novo coronavírus, informa a Organização das Nações Unidas (ONU). Por meio da medida provisória número 934, publicada no dia 1º de abril, o governo federal retirou a obrigação do cumprimento de 200 dias letivos deste ano, porém manteve a carga horária mínima de 800 horas anuais. Para cumprir com a carga horária e não deixar os estudantes desamparados durante esse período, o Conselho Nacional de Educação (CNE) autorizou a realização de atividades à distância em caráter substitutivo às aulas presenciais. A medida vale para o Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Profissional.


Para que as aulas remotas aconteçam, é necessária infraestrutura para os professores poderem gravar as aulas, o que inclui equipamentos como notebook, celular e microfone, além do acesso à internet, que também se faz necessário para os estudantes. O Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic) divulgou em 2019, por intermédio da pesquisa TIC Domicílios, os índices de acesso à internet das classes sociais, constando que,

O estudante mencionou também que está com saudade das aulas presenciais. “Eu sei que agora tem que ficar em casa, mas eu gostava mais quando podia ir pra escola. Nunca achei que ia dizer isso, mas é verdade. Estou com saudade dos meus amigos e até das broncas dos professores. Não sei se eles estão conseguindo ver as aulas, tomara que sim, pra gente poder ir pra mesma sala ano que vem de novo.”

A professora Fernanda Alves dá aula de Português na escola da rede estadual, Dante Moscony, e conta que a rotina com as aulas remotas têm sido mais cansativa do que normalmente. “Acho que por todos os Eric Santana, estudante falo professores, ou pelo menos a maioria, nas casas de classes A e B, 96,5% dos que é tudo muito diferente. A dinâmoradores possuem sinal de internet. mica das aulas à distância é muito Já nas residências de classe D e E, mais cansativa, principalmente porque 59% não têm acesso à rede. Segundo ainda estamos aprendendo a mexer no a mesma pesquisa, 78% da população aplicativos, como ajustar o microfone, que vive com até um salário mínimo interagir no chat, e a prender a aten(em números: 27,3 milhões de brasição dos alunos - é tudo ao mesmo leiros) consegue ter acesso à internet tempo. Não tem nem como comparar por meio apenas do celular. (as aulas remotas e as aulas presenciais). Nosso método de ensino é olho Eric Santana é estudante da escola no olho, não olho na câmera. Estamos Irmão Leo, da rede pública, e está todos perdendo, os alunos perdendo passando pela situação complicada uma educação de qualidade e nós, que foi exposta por Fernanda. Eric professores, perdendo a essência da conta que na sua casa não têm apasala de aula.”, diz ela. relho para captar o sinal da internet, mas quando as aulas migraram para a A educadora também ressalta as plataforma digital teve que pedir para dificuldades que os alunos mais poseu vizinho se poderia usar a dele. “O bres estão enfrentando. Como, por pai estava na corda bamba no trabaexemplo, a falta de um notebook, que lho por causa da crise, não tinha como facilita na hora de ler as atividades pedir para ele comprar a internet. e ver as aulas gravadas. Alguns têm Então, fui pedir pro meu vizinho se ti- preferido se expor e ir até a escola nha como eu conectar o sinal deles no buscar pelas atividades impressas. meu celular. Eles até deram a senha, “Alguns dos meus alunos reclamaram mas não adiantou muito, porque eu para mim que estava muito complicanão consegui ver as aulas e nem dava do ver as atividades pelo celular, que pra entender as letrinhas das ativias letras ficavam muito pequenas e dades pela tela pequena do celular, e não tinha como responder as quescomo minha mãe não quer que a gen- tões. Como a escola deu essa opção te fique parado, falou para eu ir pegar de pegar as atividades impressas, foi as atividades lá na escola pra mim e a única solução que encontramos para pros meus irmãos.” que eles não saíssem ainda mais atrasados nos conteúdos. Mas eles estão

“Eu sei que agora tem que ficar em casa, mas eu gostava mais quando podia ir pra escola.”

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correndo risco. Ter que ficar saindo de casa o tempo todo para isso não é seguro.”, diz Fernanda.

sional. Fizeram até um tutorial, um curso para nos guiar e fazer com que as aulas tivessem a melhor qualidade possível tanto para os professores quanto para os alunos.”

A professora de Português criou um projeto para arrecadar doações para os alunos, pedindo para quem puder doar principalmente notebooks Priscila Arantes, pedagoga ou celulares usados, em bom estado, para dar suporte a esses aluQuando questionada sobre o funcionos, mas também alimentos e itens de namento desse novo método, Tais higiene. Até o momento, um notebook explicou que a nova rotina, diferene dois celulares foram arrecadados e temente da expectativa, e na medida distribuídos conforme uma lista que do possível, está sendo vantajosa. “Eu hierarquiza os alunos com maiores estou trabalhando até mais do que necessidades. Os alimentos e itens de antes, mas meus horários estão mais higiene estão sendo constantemente flexíveis. Se eu quiser, posso gravar doados. um tanto de aulas no mesmo dia e ir liberando aos poucos, ou até mesmo O OUTRO LADO DA MOEDA liberar as aulas da semana num dia só. Como os vídeos ficam gravados O ensino à distância, que chegou agono portal e os alunos podem assisra ao Brasil por falta de alternativa, tir a hora que quiserem, temos essa já era recorrente em países como os liberdade. A escola implantou um Estados Unidos, que em 2016 já tinha método de que nos horários em que 280 mil alunos adeptos a essa inovaseria as aulas, eu entro online com os ção nos modelos estudantis, segundo alunos para passar atividades e sanar pesquisa feita pela National Education dúvidas do conteúdo das aulas que eu Policy Center sobre o ensino virtual do publiquei anteriormente, fazendo com país.Apesar das dificuldades enfrenta- que os alunos tenham uma autonomia das no Brasil para conciliar a educação maior sem prejudicar o ensino.” e alcançar um número maior de alunos, há quem esteja se beneficiando Não é só a professora que percebeu do ensino à distância. São professores vantagens das aulas remotas. A estue alunos, geralmente de escolas parti- dante do 7º ano Maria Luiza França culares, que têm recebido mais apoio está se dedicando aos estudos mesmo e assistência necessários para contitendo que ficar em casa. Natalia Frannuar os estudos com o menor número ça, mãe da estudante, diz que, mesmo de danos possíveis ao aprendizado. com a suspensão das aulas, tentou manter o ritmo dentro de casa para A professora de inglês Tais Paris traque a menina não tivesse nenhuma balha num colégio de ensino particuperda educacional. “Um pouco antes lar, a escola Santos Anjos, e informa de começarem as aulas online já tinha que tem contado com o suporte ofecriado um cronograma de estudo para recido pela instituição. “A escola tem a Maria, mas quando tiveram a ideia nos ajudado muito nesse período inidas aulas e atividades por vídeo foi cial. Disponibilizaram os equipamentos um alívio porque, mesmo a gente tennecessários, como câmeras melhores tando, não somos profissionais, não do que as dos nossos celulares e até somos professores, não temos o dom tripés, para deixar tudo mais profisde ensinar. E a Maria adorou ter aula

“As aulas presenciais ainda são a maneira mais eficaz de conectar o aluno com os estudos.”

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pelo computador, os professores estão fazendo tudo de um jeito bem divertido e, ao mesmo tempo, educativo. Eu não senti nenhuma perda na qualidade e ainda ajudou a ocupar a cabeça dos pequenos agora com tanto tempo livre dentro de casa.”, conta a mãe. Para a diretora Valquiria de Souza, as aulas remotas não estão trazendo prejuízos na questão pedagógica para os alunos. “Pelo o que temos acompanhado por meio das pesquisas de satisfação com os pais e alunos, tudo está indo melhor que o esperado. E, na minha visão, era questão de tempo até as escolas migrarem para as plataformas digitais, acompanhando o caminhar da tecnologia. Não que o ensino presencial seja ruim, ele continua tendo grande importância, mas precisamos desse apoio dos recursos digitais para irmos para frente.” Apedagoga Priscila Arantes explica que o ensino à distância adotado às pressas no Brasil para evitar maiores perdas no ano letivo, está servindo como um suporte mas não deve se tornar um meio principal. “No Brasil, podemos perceber que há mais desvantagens do que vantagens no ensino a distância direcionado às escolas, pois

evidencia o impacto da desigualdade no país e põem em prova a questão da meritocracia tão comentada atualmente. Nosso país não está pronto para tornar esta prática como regular, mas no momento ela pode servir como um apoio, para não deixar as famílias, os professores e estudantes desamparados.” “As aulas presenciais ainda são a maneira mais eficaz de conectar o aluno com os estudos. Os pais não possuem as didáticas dos professores, então há sim uma perda na hora de ensinar. Sem contar com a interatividade e os debates dentro de sala de aula que são essenciais para o desenvolvimento de senso social, transformando o aluno num ser imerso na sociedade”, expõe a pedagoga. Profissionais apontaram a eficiência e a ineficiência do método de ensino remoto, evidenciando a ideia de que, para que haja um avanço significativo na qualidade das aulas remotas, é preciso prestar assistência aos alunos com menos recursos garantindo uma maior igualdade entre aqueles que já possuem os equipamentos necessários, só assim a educação à distância poderá ser discutida no futuro.

Rafaelly Kudla

O acesso a internet é o básico que os alunos necessitam para assistirem as aulas, e isso ainda não é algo possível para muitos estudantes brasileiros.

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Os Heróis

ES SEN CI AIS

Anna Padilha, Felipe da Fonte, Lucas Couto, Marco Costa, Matheus Koga

No distanciamento social que transforma a cidade em cenário de filme, aqueles que têm profissões essenciais não podem parar, e se tornam protagonistas da realidade

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A

vida é um filme, sim. A realidade é que, se fosse roteirizada, não seria tão boa quanto a espontaneidade de cenas continuamente improvisadas. Ainda mais quando o enredo é pego por um plot twist impossível de ser previsto. É o caso do planeta em 2020, durante a pandemia do coronavírus. Hoje, muitos personagens que sempre foram vistos como coadjuvantes da realidade, se tornaram verdadeiros protagonistas. É o caso daqueles que escolhem uma profissão de risco, como a estudante de Enfermagem Emanuelle Follmann, ou que fazem Curitiba continuar em movimento, como o motorista de ônibus Rodrigo Decker. Mas logo mais chegaremos a estas cenas. Além dos protagonistas, a população também se vê como verdadeiros personagens de filmes e séries apocalípticos nas ruas desertas, como se estivessem fugindo de zumbis em The Walking Dead ou enfrentando o deserto de Mad Max. Mas há pessoas que, assim como Will Smith em Eu Sou a Lenda, são essenciais para buscar uma cura para o vírus e a rotina. Alguns ainda conseguem amenizar as dificuldades do período com os trabalhos em home office, a diversão de serviços de plataformas de streaming e a facilidade de pedidos de refeições por ,eio de aplicativos de delivery. Mas para outros, aqueles que são essenciais, o risco diário faz parte da nova rotina, e o Brasil conta com eles, como verdadeiros super-heróis, para que tudo volte ao normal. A incerteza virou sentimento para esses trabalhadores, que buscam manter os empre-

gos e a renda para resistir ao período, ou fazer a sua parte frente à saúde, tudo sem serem contaminados pelo novo coronavírus. A médica Daffnin Ludwig, que encontra o medo não apenas nos hospitais, mas também dentro de casa quando “[o medo] é uma coisa generalizada na equipe de saúde, por estarmos expostos a uma carga viral maior. Tememos por nossos familiares e também por nossa saúde, já que tem muita gente jovem morrendo também.” É preciso lembrar que tais profissionais essenciais precisam de materiais essenciais para exercerem suas funções. Daffnin conta que alguns de seus ambientes de trabalho estão bem equipados, enquanto outros, menos, tendo que reutilizar roupas que deveriam ser descartadas, e sem máscaras o suficiente para serem trocadas sempre que necessário. O medo, portanto, se tornou coadjuvante, ao lado da falta de preparo que é protagonista de muitas das histórias. Para alguns, enfrentar o medo é uma escolha escrita em seu próprio roteiro, que pode salvar vidas. A estudante de Enfermagem Emanuelle Follmann, que trabalha no setor de emergência pe-

Leia mais Saiba como você pode colaborar para que os serviços dos trabalhadores essenciais seja feito com mais segurança portalcomunicare.com.br

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diátrica do Hospital Pequeno Príncipe, explica que, no inverno, os hospitais curitibanos sempre atendem muitos casos de gripe e problemas respiratórios, e que no momento este problema é ainda maior, pois todos os pacientes acabam tornando-se suspeitas de casos do Covid-19. Emanuelle encontra nessa nova rotina a maior dificuldade, principalmente com a desconfiança causada por tudo e todos: “Muitos profissionais trabalham em duas instituições, em algumas UTIs, que têm mais contato com pacientes com suspeita ou casos confirmados de coronavírus, e se um dá um espirro todo mundo já fica preocupado, todo mundo já se afasta. Acho que essa é a maior dificuldade: as pessoas desconfiam umas das outras o tempo inteiro.” O sonho esperado pela enfermagem não foi limitado pelos novos desafios. Emanuelle conta que quando escolheu esta profissão, foi independente do momento e crises que enfrentaria, e vê o momento como uma “demonstração de amor que podemos fazer pela humanidade.” Ela explica que a população pode ajudar os profissionais essenciais “ficando em casa, em isolamento social. Se apresentar algum sintoma, não ter contato com outras pessoas.” Ela ressalta também a importância de repassar informações de conscientização para amigos, colegas e familiares, sempre de fontes seguras.

de fora, sempre com faixas no chão, delimitando um determinado espaço seguro entre uma pessoa e outra. Para Altieres Paladini, colega de profissão de Gomes, o atendimento também sofreu mudanças. Os cuidados são estendidos a um momento que antes era visto como fundamental em uma farmácia: o atendimento. Agora, “o contato com as pessoas mudou bastante. Procuramos atender e tirar as dúvidas o mais rápido possível, evitando assim que a pessoa permaneça por muito tempo no local.” Porém, as motivações ainda são maiores que as dificuldades, e a maior delas está em “saber que minha profissão traz um grande bem estar para a sociedade”, conta Paladini. Quando limites sociais são vistos como ações de cuidado e carinho, como poderia ser visto em um episódio de Black Mirror, o comportamento começa a mudar. 54% dos brasileiros só saem de casa quando é inevitável, segundo dados levantados pelo Datafolha no início de abril. Com isso, os atos agora vistos como heróicos dos trabalhadores essenciais, se tornam mais fáceis de serem realizados para que a cidade não se torne, por completo, em um cenário de filme de ficção científica.

“Este momento é uma demonstração de amor que podemos fazer pela humanidade.”

A esperança da conscientização da população também está nos comércios, como aqueles relacionados à saúde. O farmacêutico Filipe Gomes conta que, devido à “falta de estudo, empatia e hábitos saudáveis”, as pessoas nem sempre tomam os cuidados necessários. Gomes pretende criar um sistema em que um número limitado de pessoas poderá ficar dentro da farmácia, enquanto outros esperam do lado

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Rodrigo Decker e Antônio dos Santos fazem Curitiba continuar em movimento. Ambos motoristas de ônibus, não têm a opção de parar, e aceitam o “ficar em casa” como uma ajudinha para seus cuidados. “Para mim, trabalhar não é um problema. Tomo bastante cuidado. Como o número de passageiros está muito baixo por enquanto, não temos aglomerações nos ônibus”, relata Decker. Enquanto ficar em casa não faz parte da realidade, afinal a cidade continua rodando, e suas contas continuam chegando no fim do mês, todo cuidado é pouco.


Emanuelle Fo llmann

Emanuelle Follmann é estudante de Enfermagem e faz sua parte no estágio durante a pandemia.

dini Altieres Pala

Altieres Paladini é farmacêutico e tenta adaptar sua rotina de trabalho às novas recomendações de comportamento. especial covid-19 | revistacdm

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Ajude a combater o novo coronavírus 1) Lave frequentemente as mãos por 20 segundos com água e sabão, além de higienizá-las com álcool em gel frequentemente. 2) Use os cotovelos ou lenços para cobrir a boca ao tossir ou espirrar, quando for o caso. 3) Evite tocar no rosto, principalmente na boca, nariz e olhos. 4) Mantenha uma distância segura das outras pessoas, respeitando o espaço de um metro. 5)Fique em casa se possível e respeite o isolamento social. 42 revistacdm | especial covid-19


Eles carregam consigo bastante álcool gel e um pano limpo, enquanto arriscam-se durante este período. Mesmo transportando poucas pessoas, uma vez que boa parte dos curitibanos estão confinados em suas casas, os dois evitam conversar e cumprimentar seus passageiros durante a pandemia. Mesmo com as dificuldades, Decker e Santos se enxergam como privilegiados, pois continuam com seus empregos enquanto muitos motoristas estão sendo dispensados devido à crise econômica causada pelo coronavírus. Porém, apesar do emprego estar garantido, seus salários estão sendo reduzidos, e aí a incerteza ataca novamente.

dias mais doces para aqueles a quem entrega os bolos, pães e tortas, sempre com o maior cuidado, mantendo a distância de ao menos um metro dos clientes. Por outro lado, há aqueles que precisam que a batida esteja em suas próprias portas. É o caso das irmãs Kelin dos Santos e Monik Trindade, que possuem uma loja de calçados. Elas tentaram adaptar suas vendas, colocando seus produtos na internet, porém sem muito sucesso, uma vez que o fluxo de vendas das duas diminuiu em 98%. Assim, a necessidade de pagar as contas falou mais alto, e continuar trabalhando, mesmo que agora com os cuidados redobrados, é também visto como essencial.

“A maior motivação é saber que minha profIssão traz um grande bem estar para a sociedade.”

Mas, para aqueles que não podem ver o movimento de Curitiba continuar acontecendo, os suprimentos podem bater à porta com o trabalho de Rodrigo Baldasin, que conseguiu um emprego como motoboy durante o período de isolamento social: ‘’A busca por entregas em domicílio aumentou bastante devido ao Covid-19. Foi bom para quem estava desempregado, como era meu caso’’. Rodrigo leva

Quando sair todos os dias para o trabalho é visto como um desafio roteirizado, os poucos que continuam a colorir a cidade encontram uma oportunidade para serem reconhecidos. São aqueles que sempre foram essenciais, entregaram alegria, cuidaram dos resfriados ou simplesmente ajudaram a entender qual sapato combina mais com você. Os verdadeiros protagonistas da vida real.

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A força da arte A rotina de quem vive para despertar os sentimentos mais profundos e sinceros das pessoas interrompido pelo isolamento social Brandow Bispo, Carolina Bosa, Gabriela Fontana e Julianne Trevisani

P

oética por meio da escrita e da leitura, enigmática pelo traço da pintura e inspiradora pelas notas da música, a arte em suas diversas formas consegue despertar as mais diversas sensações em seus apreciadores mais íntimos. Quem se arrisca a dar voz a esse mundo, embarca em uma jornada criativa exprimindo seus sentimentos mais profundos e tendo muitos obstáculos durante a trajetória. A carreira de um artista, quase em sua totalidade, começa com aquela “pontinha” de medo e insegurança. E para além dos obstáculos já “comuns” no cotidiano normal de um artista, o ano de 2020 trouxe para todos o que

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a humanidade talvez jamais tivesse imaginado: o maior isolamento social enfrentado pelo mundo causado pela doença, que traz diversos riscos e preocupações ao redor do planeta: O Covid-19. A doença causada pelo novo coronavírus, que teve seus primeiros infectados no fim de 2019 na China, se espalhou pelo globo e fez com que muitos precisassem se isolar para maior segurança de todos. Esse isolamento gerou uma série de crises pelos países e também, principal foco desta reportagem, consequências na maneira como agimos e nos comunicamos. Por conta do isolamento social, muitos


Larissa Bertazzo

“Saindo do digital e usando o corpo como tela.”

profissionais da área artística foram afetados, perdendo não somente oportunidades, mas também suas possíveis únicas fontes de renda. E, neste momento em que não podemos sair de casa, eles acabam sendo nosso principal refúgio, assim como a arte sempre foi o refúgio deles. A doença causada pelo novo coronavírus, que teve seus primeiros infectados no fim de 2019 na China, se espalhou pelo globo e fez com que muitos precisassem se isolar para maior segurança de todos. Esse isolamento gerou uma série de crises pelos países e também, principal foco desta reportagem, consequências na maneira como agimos e nos comunicamos. Por conta do isolamento social, muitos profissionais da área artística foram afetados, perdendo não somente oportunidades, mas também suas possíveis únicas fontes de renda. E, neste momento em que não podemos sair de casa, eles acabam sendo nosso principal refúgio, assim como a arte sempre foi o refúgio deles. A coordenadora de Comunicação Social da Fundação Cultural de Curitiba (FCC), Ana Luzia de Castro, explica que a quarentena tem impactado profundamente a área artística. E, segun-

do ela, a FCC tem procurado buscar alternativas para os artistas locais em meio à pandemia, adaptando suas atividades à nova realidade. Com a intenção de diminuir esses impactos, uma das primeiras medidas adotadas foi a de apoio financeiro aos que vivem da arte e dependem dela para o seu sustento e de suas famílias. Nesse sentido, foi organizado um edital para a seleção de trabalhos audiovisuais, no qual a Prefeitura e a Fundação Cultural de Curitiba disponibilizaram R$ 450 mil para atender 300 projetos no valor de R$ 1.500,00. Esse edital faz parte do programa FCC Digital, que busca alternativas digitais para dar continuidade às atividades artísticas e culturais. Além disso, a FCC oferece uma série de atividades online, como cursos de aprimoramento, exibição de filmes e orquestras, torneios de xadrez, dicas de leitura, conteúdos relacionados à área de dança, entre outros.

”A CARREIRA QUE ME FAZ FELIZ” Leonardo Leszczynski, artista visual e ilustrador de 19 anos, percorreu um longo caminho até se encontrar dentro da arte. “Eu tenho interesse por arte

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Larissa Bertazzo

“Existem várias maneiras de se expressar e fazer arte.”

faz muitos anos, sempre consumi muita arte e comecei a produzir meus trabalhos faz quatro anos, mas a minha vida como artista faz dois anos”, conta o jovem. Sua paixão sempre esteve exposta nos diversos quadros e ilustrações abstratas feitas por ele, mas foi somente há pouco mais de dois anos que o designer resolveu embarcar de vez nessa carreira. “Ao longo do tempo, a gente vai sempre se questionando quando você é considerado artista ou não. Às vezes, eu sinto que sim, às vezes, não”, comenta Leonardo, pensativo sobre os altos e baixos que todo artista passa. Na visão do rapaz, os maiores desafios do mundo artístico é a busca pelo estilo próprio, e para iniciar essa carreira não se deve ter medo de tentar também, “Você nunca sabe quando você atingiu o seu estilo, sempre vai se adaptando e mudando. No geral, é ter estilo, vontade, recursos para praticar todo dia, toda hora. Fazer uma imersão, consumir tudo que é arte e está relacionado à arte para ficar com esse conhecimento, e quando você produzir alguma coisa, tornar-se cada vez melhor”, conta o jovem. Não foi diferente para Larissa Bertazzo, que encontrou na arte um refúgio, mas que precisou de um peque-

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no empurrão para mergulhar nesse grande mundo um tanto desconhecido e incerto, e vencer esses desafios, tão parecidos quanto as de seu namorado, Leonardo. “O maior desafio é ter que se desafiar todo dia mesmo. É você ter a coragem de expor aquilo que você pensa, de expor aquilo que você acredita que é o seu trabalho, que você acredita no potencial daquilo. Então, eu acho que é botar a cara

“A gente vai sempre se questionando quando você é considerado artista ou não. Às vezes, eu sinto que sim, às vezes, não.” Leonardo Leszczynski, artista para bater e acreditar no que você ama, no que você produz. Criação é sempre um desafio, e porque a gente tem que conciliar a nossa arte com o gosto do público também, querendo ou não. Mas, no geral, é fazer a arte e defendê-la”, relata. A jovem estudante de Design tem contato com o mundo artístico desde


muito nova, por meio da dança, das pinturas, da fotografia e da própria escrita. Ela começou a expor seus trabalhos quando conheceu, na faculdade, pessoas que também vivem como artistas, os tornando importantes fontes de inspiração. Para Tiago Machado - mais conhecido pelo seu nome artístico de Tiago Bigode -, a trajetória dentro do meio artístico foi um pouco diferente. Há mais ou menos cinco anos o paulista desembarcou em Curitiba e se consolidou no mercado musical com suas bandas, Bigode Groove e Blokinho. Mais tarde, o músico abriu sua primeira produtora, com a qual realiza shows e administra carreiras de diversas bandas. Dentro deste meio musical, existem pessoas que se encontram na realização e produção de eventos. Caso de Gilson de Castro, que apesar de cursar Engenharia Civil, resolveu se aprofundar neste outro grande mundo que também envolve um pouco da arte. Castro começou a se interessar por eventos em seu novo trabalho e, atualmente, é responsável por administrar toda a produção e planejamento de grandes festas, principalmente no cenário universitário da capital.

Bertazzo. Por isso, os dois estão optando por uma produção diferente. Enquanto o artista visual vem dando mais espaço à arte digital e ao trabalho remoto em parceria com marcas de roupas, a estudante de Design tem reinventado seu apreço pela pintura. “Eu comecei agora, com o Léo, a fazer projetos relacionados à pintura corporal. Então, a gente está saindo daquilo que é mais digital e das telas. Estamos usando o corpo como tela”, conta a jovem. Leonardo expõe ainda sua preocupação com as encomendas que foram temporariamente canceladas após o fechamento de diversos eventos. “Meu trabalho está muito ligado com a área da música eletrônica, porque a minha arte visual combina muito com a arte sonora que esses eventos proporcionam”, explica.

APRENDER A SE REINVENTAR Apesar de terem carreiras tão distintas e parecidas ao mesmo tempo, Leonardo, Larissa, Tiago e Gilson são apenas quatro exemplos de como o isolamento acabou afetando a rotina profissional das pessoas. Não ter muito uma rotina é o que tem funcionado para Leonardo Leszczynski. “O que eu gosto é de acordar não muito tarde na quarentena. Eu levanto, tomo café, e já gosto de fazer alguma coisa na hora que eu acordo. Ou vou para o computador ou vou terminar algum quadro enquanto tomo café. É um momento que eu gosto, de manhã e de madrugada”, relata.

Se entregar para a arte principalmente nos momentos difíceis. Tiago Bigode

Para ele, o período de quarentena traz outros grandes desafios na produção de seus trabalhos, devido à dificuldade de conseguir alguns materiais, que também são empecilhos para Larissa

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Assim como nas artes plásticas, quem trabalha na área da música e de eventos também vem enfrentando de diversas dificuldades durante o isolamento social. O músico e produtor Tiago Machado, que trabalha com um calendário mensal, precisou cancelar todos os eventos, reagendá-los e organizar todos os serviços que já haviam sido contratados. “A parte gostosa é a entrega, tanto como produtor quanto como artista, A hora em que o evento está acontecendo, a hora quando show está rolando, é o auge”, conta Tiago. O paulista ainda explica que a demanda agora está nos orçamentos de clientes para 2021 e 2022, que são casamentos e formaturas, pois no momento 100% dos outros eventos estão cancelados.

“A arte é a minha sobrevivência.” Larissa Bertazzo, artista nesse meio, porque é aonde eu me sinto bem”, diz Leonardo. Ter apoio durante esta nova fase difícil e de muito aprendizado que todos precisam enfrentar, trouxe mudanças para nossos artistas. Por isso, o incentivo à cultura e à arte, que sempre se fez presente e se destaca em Curitiba, é mais do que nunca, essencial.

O produtor e músico ainda acrescenta que o importante durante esse período é manter a cabeça no lugar, saber como está o posicionamento de sua carreira e como administrar seu dinheiro e carreira. O empresário e produtor de eventos Gilson de Castro contou que, atualmente, não recebe nenhuma receita em seu negócio, mas como seus gastos também estão congelados ele está conseguindo “equilibrar as contas”. Mesmo diante dessas mudanças e readaptações, o amor pela arte e por ver o público feliz continua vivo dentro de cada um deles, fortificando a certeza de que não vão se deixar abalar por desafios como os que o Covid-19 trouxe para todos. “Eu quero conseguir viver só da minha arte e ter essa liberdade. Queria que todos os artistas pudessem ter essa escolha. Eu não dependo da arte para sobreviver no quesito financeiro, mas no quesito emocional a arte é a minha sobrevivência”, diz Larissa sobre a reflexão de ver que a sua arte traz admiração para muitas pessoas e a faz crescer todo o dia. “Não me vejo fazendo outra coisa que não seja relacionada à arte. Tanto na questão da dança, teatro, artes visuais, ilustração e música, eu quero fazer de tudo. Ser um multiartista, atuar em várias áreas e sempre estar

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Manter a sobriedade e cabeça no lugar. Tiago Bigode


O segredo imprevist o

S

Maria Cecília Zarpelon

empre achei que não era filha dos meus pais, mesmo sendo a cara da minha mãe desde pequena. Acho que toda criança já teorizou - e quiçá em algum momento chegou a ter certeza - que era adotada. Talvez por uma necessidade de se sentir diferente, talvez por assistir muita televisão, mas a questão é: a maioria dos miúdos já se perguntou, ao menos uma vez na vida, quem eram aquelas pessoas que via todos os dias. No meu caso, a coisa era um pouco diferente. Eu queria ser adotada. Mas calma, não é que eu não gostasse dos meus pais. Eu só precisava de uma justificativa para minha infindável busca por algum mistério sobre minha família. Tudo começou antes mesmo de eu completar um ano. Desde bebê, escutava sobre as incríveis vidas dos personagens criados por minha mãe, cheias de mistérios que precisavam ser desvendados. No fundo, acho que sempre imaginei que minha vida seria igual a deles, repleta de revelações e segredos. A partir daí, nunca mais deixei meus pobres pais em paz. Toda chance que tinha, os abarrotava de perguntas sobre assuntos que eu, esperançosamente, supunha serem suspeitos. Esse meu complexo de detetive começou aos 4 anos e uma das minhas maiores convicções, claro, era sobre minha adoção. Como dizem que bons e velhos hábitos nunca morrem, esta semana estava remexendo caixas de documentos quando fui pega de surpresa: “Não está achando que é adotada de novo, né?”. Por obra desse questionamento feito por minha mãe que resolvi contar sobre a irônica reviravolta da “minha adoção”. Os anos se passaram, e por mais que eu nunca tivesse aceitado por completo o

fato de não ser adotada, decidi que era hora de partir para a investigação de outros enigmas. Nas férias de 2009, na sala da casa da minha avó, estava revirando um punhado de fotos antigas quando, no meio desse samba de mexe e remexe, encontrei um pequeno baú de madeira com o nome do meu irmão, escondido atrás de duas caixas desgastadas de sapato. Sim, reconheço que talvez devesse ter deixado o objeto onde estava, já que claramente não era meu, mas, quando me dei por mim já estava com a cara enfiada dentro do velho caixote. De seu interior, fui retirando fotos e bilhetes pertencentes a um tal de Angelo - nome que não relaciono a ninguém de minha família. Olhei, li, não entendi. Até que juntei as peças do quebra-cabeça e voilá. “Não pode”, pensei. Mas podia. A adotada nunca tinha sido eu, era meu irmão. Apenas de pai, a mãe era de sangue - e a mesma que a minha. Lembro de me sentir quase que traída pelo destino. Nunca havia parado para pensar que aquele mistério podia ser de outra pessoa. Me senti culpada. Ironicamente, estava mais abalada pelo fato do segredo que tanto procurava não ser meu e não pelo fato de meu irmão ser adotado afinal. Egoísta, eu sei. Conversei com ele sobre a caixa, choramos, rimos, nos abraçamos e a vida seguiu. Eventualmente, acabei fazendo as pazes com a ideia de não ter nenhuma revelação sobre a origem do meu nascimento. Anos mais tarde, ele me confessou a vontade de conhecer o pai biológico. Admito que, como nunca abandonei plenamente minha fase alá Sherlock Holmes, fiquei animada para partimos em busca do homem desconhecido. No final das contas, estava feliz em poder fazer parte do mistério do meu irmão. Um dia há de eu encontrar o meu, mas isso já é assunto para outra crônica.

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SUB-HUMANOS:

vidas À MARGEM Maria Cecília Zarpelon Marina Prata Sofia Magagnin Com colaboração de Rafael Junior Prestes e Jucimeri Isolda Silveira

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Colonia no seculo XXI A ausência de sensibilidade social com essas pessoas que (sim) fazem parte da sociedade é resultado do processo colonizador do qual o Brasil nunca se desvencilhou totalmente. A cultura racista que foi responsável pelas atrocidades cometidas durante a escravatura é a mesma que hoje condena as vidas que sofrem diretamente as consequências de uma desigualdade estrutural. Para um país que é fruto da desigualdade, a realidade dos presídios brasileiros não é nada mais do que um retrato aumentado da violenta discrepância de gênero, classe e etnia que assola a sociedade como um todo. A hierarquização estabelecida como

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consequência desse desequilíbrio prioriza determinadas vidas e torna aceitável inferiorizar aquelas que cumprem pena, tornando-as descartáveis e menos dignas de empatia do que as demais. É confortável assim. A violência naturalizada com a qual o governo opera a segurança pública e os presídios é como a que foi utilizada contra escravos e povos indígenas há 500 anos. O Brasil, que tem a terceira maior população carcerária do mundo segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), costuma privar seus presos de muito mais do que a liberdade. i

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arginal é um dos muitos termos pejorativos usados para se referir a pessoas que cometeram crimes. Por definição, “marginal” quer dizer simplesmente “localizado à margem de”. Uma palavra ressignificada socialmente, que hoje é utilizada como ofensa. No entanto, faz sentido referir-se à população carcerária brasileira como “marginal” se levarmos em conta que, em boa parte do tempo, ela está tão à margem que acaba esquecida.

POR TRAS DAS GRADES O sistema carcerário brasileiro está falido há muito tempo. O negligenciamento de condições básicas de sobrevivência, como direito à saúde, alimentação, educação e respeito à integridade física e moral ferem não só a Constituição, como a dignidade humana. Como consequência, as penitenciárias devolvem à sociedade indivíduos mais criminosos do que os que entraram. As doenças que, do lado de fora são facilmente curáveis, permanecem sendo um problema atrás das grades.


das unidades prisionais do Brasil não oferecem assistência médica aos detentos Fonte: Conselho Nacional do Ministério Público (FNMP)

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31%

Um levantamento feito pela Agência Pública com informações do Ministério da Saúde constatou que a tuberculose atinge 35 vezes mais as pessoas encarceradas do que a população em liberdade. Como se sabe, a doença infecciosa que atinge órgãos respiratórios é transmitida por vias aéreas, sendo facilitado seu contágio em locais de aglomeração e sem condições de higiene - assim como acontece com o Covid-19

VIDAS INVISIVEIS Muito se fala sobre os grupos mais suscetíveis ao coronavírus: idosos, gestantes, portadores de doenças prévias e a população carente. Entretanto, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, os presos permanecem invisibilizados e fora dessa lista. Apesar das recomendações do Supremo Tribunal Federal (STF) para que o sistema judiciário evite novas prisões preventivas e conceda regimes menos pesados, como os domiciliares,

o problema não é resolvido se considerarmos que as cadeias continuam superlotadas Brasil afora. Diante da pandemia, medidas emergenciais são necessárias, mas estão longe de solucionar as falhas do sistema penal, que precisariam de ações estruturantes à longo prazo. Até hoje, o sistema carcerário foi mantido distante justamente para que a população pudesse se abster das responsabilidades de pensar sobre as condições sub-humanas nas quais os encarcerados se encontram. A crise do coronavírus escancarou um problema latente e trouxe a oportunidade de uma reflexão ética sobre a perda da humanidade e a relativização da ideia de dignidade que a sociedade construiu. No momento em que a desigualdade institucionalizada dentro dos presídios não for mais convenientemente escondida, entenderemos que dentro daqueles muros e grades também existem vidas que precisam ser defendidas, não só do vírus, mas também da invisibilidade.

O sistema carcerário brasileiro tem

462 mil

vagas, mas o número de pessoas presas no país é de

752 mil

Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

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O QUE E Ai NECROPOLITICA E COMO ELA CONDENA O SISTema i CARCERARIO BRASILEIRO? Por Jucimeri Isolda Silveira, especialista em Direitos Humanos e Políticas Públicas

A necropolítica é uma forma de Estado que classifica, define e elege vidas “matáveis”, construindo hierarquias sociais. É a utilização de dispositivos políticos e institucionais para matar, por omissão ou ação, quem está fora do padrão hegemônico estipulado pela sociedade - corpos pobres, pretos, periféricos. Essas vidas são autorizadas socialmente a serem eliminadas. A necropolítica

não se aplica somente à população encarcerada, mas à população mais pobre e vulnerável, que também é privada de uma série de direitos nas cidades. Se essa forma de governo não for enfrentada com políticas públicas e reformas estruturantes, ela tende a se agravar. E agora, nesse cenário de coronavírus, nós temos uma tendência grande de colapso social.

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O desafio de voltar para casa Estudantes internacionais e intercambistas são afetados diretamente pela crise da Covid-19 tendo que escolher arriscar uma tentativa de volta para o país ou permanecer onde estavam estudando Gabriela Küster Solyom Maria Vitória Pessoa Yasmin Graeml 5º e 7º Período

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T

rinta e duas horas no aeroporto e muitos voos cancelados. A saga de Jorge Corazza Mussi para voltar ao Brasil devido ao coronavírus esteve longe de ser uma viagem tranquila. Jorge estava terminando seu segundo semestre no Patrick Henry Community College, nos Estados Unidos, quando foi surpreendido com a chegada da Covid-19 ao país, levando ao cancelamento das aulas. Quando recebeu a notícia de que suas aulas seriam online o estudante ligou para os pais pedindo para voltar para casa mais cedo e assistir às aulas do Brasil junto com a família. A missão de trazer o filho de volta não foi uma tarefa simples. Seu pai, Jorge Possebon Mussi, conta que passou horas tentando falar com a companhia aérea, mas que a qualidade das ligações estava muito ruim e levava mais de uma hora para ser atendido em qualquer empresa. Jorge tentou trocar a passagem que o filho voltaria para o Brasil nas férias no começo de maio. Inicialmente, a companhia queria cobrar uma taxa, mas ele conseguiu a anulação, explicando que o motivo da volta antecipada era o novo coronavírus. O voo foi


istrados desde o começo do ano. A Covid-19 não era um assunto muito comentado. A estudante chegou a ir para a Disneyworld em fevereiro, pegando um voo de Nova York para Orlando, e aproveitando os parques lotados sem qualquer preocupação.

marcado para o dia 23, no início da semana seguinte. Além do voo internacional, o estudante precisou de um trecho interno até Miami, de onde o avião para o Brasil sairia. Em Nova York, cidade considerada o epicentro da doença nos Estados Unidos, as medidas rápidas de isolamento social também surpreenderam os estudantes. Mariana Betiol é aluna da Parsons Art and Design School, localizada na Quinta Avenida, local que atrai diariamente milhares de pessoas. Nos seus últimos dias na cidade, ela chegou a ver o local vazio. Mariana lembra que o semestre começou normalmente, apesar de os Estados Unidos já terem casos regArquivo Pessoal

Foi no começo de março que as coisas se complicaram na cidade “Desde que começou a ter muitos casos na Califórnia, eu sabia que era impossível não ter em Nova Iorque. É muita gente nos metrôs, muitos turistas…”, conta Mariana. No dia 4 de março, quando confirmaram o primeiro caso de contaminação comunitária, ela tinha uma excursão para um museu e lembrou que ela e uma amiga optaram por ir de uber. “O problema é que o número começou a aumentar muito rápido. Estavam dizendo que quadruplicou a cada três dias na cidade”, lembra a estudante. Em 15 de março, Mariana iria a um show com uma amiga e, quando resolveu vender o ingresso, ainda se questionava se era de fato necessário desistir do concerto, que mais tarde seria cancelado. A primeira decisão de combate contra o coronavírus das duas universidades foi prolongar as férias de primavera de uma para duas semanas. As de Jorge seriam de 7 de março até o dia 15, de uma semana para duas, decisão que foi seguida pelo cancelamento das atividades presenciais. “Lá pelo dia de 16 de março, eu liguei para ele e falei: Olha, minhas aulas foram canceladas. Eu sei que as passagens estão mais baratas agora. Então, acho que agora é a hora de tentar ver alguma coisa para voltar para o brasil, que aí pelo menos eu fico com vocês”, conta o estudante. Passagens compradas, a ideia do filho era fazer uma surpresa para a mãe que achava que ele só tinha conseguido comprar passagem para o meio de abril. Na noite do dia 20, três dias antes do voo, foi anunciado que o Panamá fecharia a fronteira e, como

Mariana em passeio na Times Square, NY.

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Arquivo Pessoal

e arriscar esperar do que fazer uma conexão mais curta. “O voo para o Brasil era só à noite, mas o meu era a noite no dia seguinte, então o que eu ia tentar fazer era chegar cedo para tentar pegar o voo que tinha naquele dia mesmo. No mesmo horário, mas um dia antes”, explica o estudante.

Jorge em Martinsville. Jorge tinha uma conexão lá, o voo para o Brasil foi cancelado. Seu pai logo voltou à guerra por passagens, tentou ligar na companhia aérea pela qual Jorge voaria e, sem resposta, resolveu simplesmente comprar uma nova passagem tanto para o trecho nacional quanto o internacional.

O plano não deu certo, um voo para Manaus foi cancelado no dia anterior e fez com que o voo para São Paulo, que Jorge queria pegar estivesse lotado. O pai do estudante começou a perceber que os voos dentro do Brasil também estavam começando a ser cancelados. Preocupado, ele chegou a ligar para o diretor do Aeroporto de Guarulhos para saber se havia uma chance muito alta do voo da noite do dia seguinte ser cancelado. Enquanto isso, já estava no aeroporto

“Falei minhas aulas foram canceladas, as passagens estão baratas agora, acho que agora é a hora de tentar voltar para o Brasil” A viagem era longa de Martinsville, no estado da Virgínia, onde fica a universidade Jorge tinha que ir de carro até Greensbro, na Carolina do Norte, cidade mais próxima com aeroporto. De lá pegar um voo para Miami e, só depois disso, vir para o Brasil. O estudante não tem carro e, por isso, assim que desligou o telefone com o pai começou a procurar carona já para o dia seguinte. “Um amigo meu me levou, mas eu dependia muito de achar alguém que pudesse me levar no horário certo”, conta Jorge. Como a cidade da universidade é pequena não tem ônibus nem uber disponível. Jorge chegou ao aeroporto de Greensbro às 8 da manhã para o seu voo às 14 horas, com destino a Miami. O voo para o Brasil era só no dia seguinte, mas, como estavam tendo muitos cancelamentos de voos internos, ele preferiu tentar adiantar

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o estudante tentava encontrar algum voo que pudesse vir para o Brasil sem ficar mais de 24 horas no aeroporto. “Isso era domingo, então pensa, no domingo eu conheci gente que estava no aeroporto tentando trocar voo desde terça-feira e filas de mais de 200 pessoas em cada guichê para tentar resolver alguma coisa”, relembra. Na hora, a preocupação com o vírus era pequena em relação a de não poder para casa: “Não estava pensando no virus, claro que de 5 em 5 minutos eu estava passando álcool gel e ficando longe de todo mundo, só que o meu maior medo era ficar preso nos Estados Unidos.” conta Jorge. A esta altura, a chegada do filho não era mais surpresa para a mãe, Simone


Arquivo Pessoal

foi contra a decisão da estudante de voltar para casa e não assinou os documentos. “Me perguntaram se eu tinha certeza que eu queria voltar para casa. Porque se o Brasil piorasse e NYC melhorasse, e eu não conseguisse voltar, eu seria penalizada e ter consequências na escola e no visto.” Mesmo assim, a estudante resolveu vir ficar com a família e acredita que, com a situação atual, esta regra irá mudar. A principal preocupação de Mariana era morar no dormitório da faculdade, já que em Harvard os alunos tiveram três dias para se mudar e ela não teria para onde ir. Em uma reunião, os responsáveis falaram que isso não iria acontecer devido ao fato que os dormitórios da Parsons terem mais estrutura, como cozinha e banheiro, dentro de todos os apartamentos facilitando o isolamento. Uma semana depois que Mariana chegou ao Brasil, recebeu o e-mail, da universidade, avisando que quem pudesse, teria que se mudar dos dormitórios.

Mariana durante o intercâmbio em NY. Mussi, que estava muito nervosa com toda a situação. “Eu fazia o trabalho de base, só rezava”. O estudante veio só com a mala de mão deixando todas as suas coisas no apartamento onde mora com mais três amigos brasileiros nos Estados Unidos. Dos quatro, ele foi o terceiro a vir embora e o quarto, quando tentou vir, não conseguiu mais voo. Na sexta-feira antes das férias, Mariana já não teve aula, ela ainda não imaginava que o semestre inteiro seria online, mas decidi que já que teria mais férias viria para o Brasil “Vou para o Brasil, passou as duas semanas e volto para terminar o semestre. Até lá já vão ter controlado isso”. Já havia boatos de que as aulas seriam online após as férias, mas ela ainda mantinha a esperança de voltar para Nova Iorque e terminar o semestre.

A estudante também deixou tudo para trás, fechado no dormitório, e voltou para o Brasil com o que coube em uma mala. No caminho, a motorista do uber que a levou para o aeroporto comentou que estava rodando a cidade procurando por papel higiênico e que não estava encontrando mais. A coordenadora de mobilidade internacional da PUCPR, Lídia Kovalski explica que a unidade de Curitiba decidiu não tomar uma posição ou dar aconselhamentos gerais para os estudantes em intercâmbio. Lídia conta que a movimentação com os estudantes começou quando o número de casos na Itália cresceu muito. “Primeiro precisávamos pensar no aluno PUC que estava fora. O contato com esses alunos foi feito através de e-mail no dia 11 de março”. Para eles,

Para um estudante internacional sair dos Estados Unidos, é preciso de autorização da universidade, que

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foram dadas três opções: continuar no país do intercâmbio com as aulas online; voltar para o Brasil e continuar com as aulas online; ou cancelar a matrícula na universidade parceira e se matricular nas matérias da grade padrão da PUC.

dante pensa em fazer.

“A maioria das nossas universidades parceiras deu opção aos alunos de voltarem para casa, e continuarem com as aulas feitas online. O único caso que tivemos foi uma aluna que estava na Virginia Tech e não teve opção, apesar de nós termos deixado livre. O governo norte-americano enviou os intercambistas para casa.”

sagem resolvendo a vida em questão de um dia”. A estudante chegou a ficar com a chave do apartamento de uma amiga que voltou para casa antes, e não teve tempo de entregar o imóvel.

Para os intercambistas que estavam aqui em Curitiba, um e-mail foi enviado no dia 15 de março, oferecendo as mesmas três opções. “Toda semana temos reunião com a nossa diretoria para examinar o cenário e decidir o que será feito com as alterações do momento.” A coordenadora ressaltou que os cursos mais afetados, tanto fora, como no Brasil, foram os da saúde, como: medicina, fisioterapia e enfermagem; pela falta das aulas práticas. A dupla diplomação oferecida para diversos cursos da universidade, não será afetada. A intercambista Caroline Goulart está na Université Lumière, em Lyon, na França, e escolheu não voltar, já que fazer intercâmbio era um grande sonho para ela. Com a crise da Covid-19, as universidades fizeram um acordo em que os intercambistas podem ficar dois anos para não ter a experiência tão prejudicada e é isso que a estu-

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Caroline conta que muitos estudantes foram “obrigados” a voltar por cortes de bolsas e cancelamento de programas: “Foi uma coisa muito louca, veio do nada, gente comprando pas-

Apesar da cozinha ser compartilhada o dormitório permitiu que os estudantes internacionais ou que não tinham para onde ir ficassem por lá, mas deu o incentivo de poder deixar as coisas e não pagar aluguel para todos aqueles

Arquivo Pes

Carolina Goulart no intercâmbio em Lyon, França.


ssoal

que pudessem ir embora. “Eu procuro estar fazendo exercício, porque eu moro em uma residência bem grande com muita área verde”, conta a intercambista. As aulas da universidade também seguiram online. A psicóloga Priscila Conte está coordenando um grupo de apoio psicológico para intercambistas e estudantes internacionais. A psicóloga acredita que o intercâmbio já é um período de mudanças, adaptações e até mesmo de solidão e que isso pode ser agravado pela situação que estamos vivendo. O apoio psicológico começou em formato de lives no instagram e virou um grupo no whats onde acontecem troca. Os participantes podem contar aquilo que vem os afligindo e o que eles tem feito para se alegrar durante a crise. “E todos os estudos que eu tenho visto sobre crescimento pós-traumático mostram que um

dos fatores mais relevantes para que no futuro você possa lidar bem com esta situação são as relações sociais. Então, além de estar sendo um grupo focado no agora deles, já está sendo pensado também no futuro”, explica a psicóloga. Priscila atende pacientes que moram fora do país e conta que a situação envolve “medo do que pode acontecer, medo de perder os familiares mais próximos por não estarem presentes. Então, em momentos de pandemia, em guerras, as pessoas se recordam de como a vida é frágil.” Sem falar na frustração que vem para muitos que sonharam por muito tempo em morar em outro país e agora que estão lá precisam ficar dentro de casa e lidar com essa situação.

E quem ficou no Brasil? Riccardo Rossignoli é estudante intercambista na PUCPR, em Curitiba, no curso de medicina. Ele tem 22 anos e é natural de Verona, na Itália. Riccardo chegou em Curitiba no dia 7 de fevereiro para fazer o seu primeiro semestre de internato. Ele explica que seu último dia no hospital foi em 28 de março. Desde o começo o intercâmbio previa somente aulas presenciais em atendimento, o que torna o método de vídeoconferências que a universidade adotou, impraticável.

Uma coisa positiva o isolamento trouxe. Riccardo conta que durante o internato não tinha tempo para fazer nada, pois estava sempre muito cansado. E agora consegue aproveitar para conhecer a família com quem está morando. Eles aproveitaram para voltar para o interior, e Riccardo comenta que está gostando muito de conhecer a cultura do Brasil. “Estou vivendo de verdade o que o Brasil é. Eu estou aprendendo o que o Brasil é, e isso não tem preço.” Arquivo Pessoal

Riccardo diz que recebeu tanto as informações da sua faculdade na Itália, quanto da PUC. E decidiu ficar no Brasil, com esperança que as aulas presenciais voltassem. O intercâmbio deveria durar 5 meses, acabando no final de junho. Ele conta que pensou muitas vezes em voltar para casa, mas decidiu ficar para aproveitar o Brasil. Ele está se preparando para as provas que vai precisar fazer quando voltar para sua universidade: “Não me sinto longe da minha família e amigos, porque conversamos muito. E felizmente não conheço ninguém que foi infectado com o coronavírus. Se estivesse na Itália teria que estar dentro de casa também, então prefiro ficar aqui.”

Riccardo no interior do Paraná com a hostfamily.

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Quando o pedido sai para a entrega Com o aumento do desemprego, trabalhadores informais recorrem aos aplicativos de delivery como fonte de renda Isabelli Pivovar Lucas Grassi Maria Fernanda Coutinho

O

nze da noite de uma quinta-feira gelada. Parado em frente a um prédio antigo no centro de Curitiba, prestes a concluir a última entrega do dia, com a bag de entregas no ombro já curvada pelo cansaço e segurando a bicicleta com uma das mãos, Kenji anuncia a chegada do pedido e é recebido com a pior notícia que um entregador pode receber: “Não tem elevador, você vai ter que subir de escada”. Com um suspiro, Igor Kenji Tachibana, de 23 anos, entregador por aplicativos de delivery há oito meses, subiu sete lances de escada para terminar seu expediente e finalmente

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conseguir descansar para o próximo dia. “Faz parte do trabalho, subir escadas ou pedalar quilômetros para entregar a comida para o cliente. Mesmo se você estiver esgotado, se não fizer estas coisas, não recebe o dinheiro”,

“Frente à pandemia, os camioneiros e os motoboys são o elo mais importante entre o isolamento e os isolados nas cidades. É o que está mantendo nossa sobrevida.” Daniel Poit, economista


explica com a feição cansada, mas sem deixar escapar um sorriso hesitante no rosto. Ficar em casa. Essa é uma das principais recomendações para a contenção da pandemia do novo coronavírus, que já tem 155.939 casos confirmados e matou 10.627 pessoas no Brasil, segundo dados oficiais até o dia 10 de maio. Quando sair significa colocar a saúde em perigo, a comodidade oferecida pelos aplicativos de entrega se torna ainda mais sedutora. Ao HuffPost Brasil, o aplicativo de delivery Rappi informou que registrou nas últimas semanas um aumento de 30% no número de pedidos, principalmente em restaurantes, supermercados e farmácias. Muito graças à logística e facilidade do trabalho informal, que cresce espontaneamente fora do processo de planejamento de políticas públicas e à margem da formalidade, as pessoas estão tendo a oportunidade de respeitar o isolamento com outros profissionais para atender às suas necessidades, visto que é um dos únicos setores que continuam trabalhando integralmente. Essa realidade não é exclusiva para Tachibana. O cenário descrito acima

exemplifica a rotina dos entregadores de delivery, ou simplesmente, motoboys. Trabalhar de domingo a domingo sem contrato, em jornadas que podem chegar a mais de vinte e quatro horas seguidas, se arriscando constantemente no trânsito, sem garantias ou proteções legais e muitas vezes por menos de um salário mínimo no mês. Essa é a situação para 41,1% dos brasileiros, o equivalente a 38 milhões de trabalhadores informais no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para o economista Daniel Poit, “os aplicativos foram se instalando em função da deficiência do sistema de transporte e das oportunidades que o mercado foi oferecendo. E, atualmente, frente à pandemia, os camioneiros e os motoboys são o elo mais importante entre o isolamento e os isolados nas cidades. É o que está mantendo nossa sobrevida”, defende. Com o aumento no número de entregadores, consequentemente, a demanda se torna mais escassa e as entregas, mais espaçadas, o que faz com que a renda dos motoboys diminua. Para Rafael Rosa, de 34 anos, se tornar um entregador de aplicativo foi Reprodução/Unsplash

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a solução para evitar o desemprego, mas é notável em sua renda como o aumento de trabalhadores o afetou. “Nos primeiros meses, eu cheguei a fazer 800 reais em uma semana. Eu sempre rodei cerca de cinco horas por dia e conseguia fazer R$ 100 ou R$ 120. Hoje, nesse período, consigo no máximo R$ 50, o que torna difícil e desgastante”, explica. Rosa acrescenta ainda que o vírus alterou a rotina nos primeiros dias, por conta de um

não reconhecida pelo Estado, já que não é formalizada a partir do registro na carteira de trabalho. Poit esclarece que, nessas circunstâncias, há grande risco para o trabalhador: “Se, por exemplo, o profissional teve que ir ao médico e pegou um atestado, não há abono dessas horas perdidas e nenhum suporte”. Os riscos são inúmeros quando o assunto é delivery, desde acidentes no

“É amedrontador, pois é muito incerto. Dá muito medo e é um desafio, mas não tem como parar, porque, como eu disse, se eu parar eu passo fome.” Rafael Rosa, entregador estouro no número de entregas, e por conta disso, conseguiu fazer mais dinheiro. “Mas depois de um tempo, várias pessoas começaram a entrar para trabalhar por eles, então as coisas normalizaram”, lamenta. Uma pesquisa do final de 2019, realizada pela Associação Aliança Bike, afirma que cerca de 75% dos entregadores ficam conectados ao aplicativo por até 12 horas seguidas. Tudo isso por um ganho médio mensal de R$ 992 (R$ 6 a menos do que o salário mínimo, fixado em R$ 998). O menor valor mensal recebido encontrado no levantamento foi R$ 375, para entregadores que trabalham três horas diárias, e o maior foi R$ 1.460, para 14 horas trabalhadas. A jornada de trabalho de pessoas que atuam no delivery é, de forma geral, descompensada. Essa modalidade ganhou força com o crítico cenário de crise econômica que atingiu o Brasil, em 2014, período pós-Copa do Mundo. Poit explica que, a partir de então, as empresas passaram a firmar parcerias sem vínculo empregatício. Dessa forma, há uma relação trabalhista

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trânsito até a entrega em si, mas para a grande maioria dos motoboys e, para Rosa, é a única solução para sustentar a família. “Eu tomo cuidado redobrado porque se acontece alguma coisa, eu fico desamparado e, consequentemente, sem renda. Já passei 14 horas fazendo corridas sem parar para poder bater minha meta semanal e ter um dia de folga”, explica Rosa. O problema, entretanto, está no deslocamento agressivo e imprudente de bicicletas e motocicletas. No Brasil, Carlos Hardt, mestre em Gestão Urbana e Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUCPR, explica que os acidentes envolvendo esses veículos são superiores aos que implicam carros. Tal cenário traz, inclusive, impactos para a economia: “Uma pessoa economicamente ativa fica durante um bom tempo fora do mercado, exigindo recursos importantes para seu tratamento. Sob ponto de vista social, também se tem resultados preocupantes, na medida em que este trabalhador, após o período de recuperação hospitalar, por vezes não consegue mais exercer atividades econômicas devido às sequelas, ou, em muitos casos, a


óbitos, com consequências importantes em estruturas familiares”, explica Hardt. O descaso das empresas com a saúde e segurança dos entregadores é revoltante e a jornada de trabalho, embora flexível e opcional, do entregador se torna uma espécie de escravidão. Segundo Rosa, ainda, o descaso com a saúde do trabalhador é revoltante: “Para os aplicativos você é um cifrão, a preocupação é com a entrega e se ela vai ser concluída ou não. Caso aconteça algo contigo, você tem que chamar outro motoboy para terminar e ainda fica sem o dinheiro da entrega”, conclui. Especialmente em meio à pandemia da Covid-19, o Ministério Público do Trabalho emitiu nota técnica com uma série de medidas a serem tomadas pelas empresas de transporte de mercadorias por plataformas digitais. Porém, o motoboy, que já fez entrega para pessoas infectadas, explica que os cuidados estão sendo feitos por conta própria, como a higienização das bags a cada delivery, o uso de máscara e óculos, e a utilização de luvas no mo-

mento da entrega. “É amedrontador, pois é muito incerto. Dá muito medo e é um desafio, mas não tem como parar, porque, como eu disse, se eu parar eu passo fome”, finaliza Rosa. A saúde e bem-estar dos entregadores é também assunto público e, por isso, deve ser revisado pelas empresas responsáveis pelos aplicativos, pois prejudica o indivíduo e a economia, já que a dinâmica informal de trabalho também demonstra inconsistências. Economicamente, como a pessoa não paga impostos, ela acaba não destinando recursos para o setor público. “Se esse trabalhador, por exemplo, sofrer um acidente e precisar utilizar do Sistema Único de Saúde (SUS), o fará sem ter contribuído. Isso, em grande escala, pode ser um problema”, esclarece Poit. Outra problemática está na dificuldade em fiscalizar as condições às quais os indivíduos estão sendo submetidos. “Uma nuance do trabalho informal é que ele flerta muito com a atividade ilícita, pois não há uma forma de controlar e monitorar a legalidade de

Perfil dos entregadores de aplicativo no Brasil Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Aliança Bike

75%

59%

57%

86% 86%

Têm até 27 anos e trabalham até 12 horas por dia

Começaram a fazer porque estavam desempregados

Trabalham os sete dias da semana

Dizem que o delivery é sua única fonte de renda

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tantos indivíduos. Da mesma forma que não há assistência, não há monitoramento também”, explica Poit. Apesar dos impasses, em tempos de crise econômica a alternativa oferecida pelos aplicativos pode proporcionar uma fonte de renda e, por consequência, poder de compra. Isso faz com que a economia gire e que uma família não fique totalmente desamparada a curto prazo. Mesmo o trabalho de entregador envolvendo uma série de problemas e necessite de adaptações para garantir a segurança de seus colaboradores, este se tornou uma opção viável de carreira por conta da sua flexibilidade. “Eu gosto, porque traz uma liberdade que só se tem dessa forma. Não tem um chefe diretamente. Funciona como um escape. Por exemplo, às vezes eu acordo de mau humor e, andando pela cidade, consigo me acalmar. No meu caso, tem um bônus por que amo andar de moto. Então, ganhar para isso é melhor ainda”, comenta Rosa. Para Tachibana, o ônus é o mesmo: “Eu não preciso cumprir horários, tenho liber-

Reprodução/Unsplash

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dade. Se não estou me sentindo bem no dia, não faço corridas e tudo bem, eu tenho que arcar com esse prejuízo depois.” Apesar da rotina cruel, os entregadores se tornaram uma força sólida e unida entre si. “Já aconteceu de vários entregadores, de aplicativos diferentes, pararem no meio do trânsito para brigar com um motorista que fez algo injusto com um de nós”, comenta Rosa, bem humorado. Segundo ele, essa é a melhor parte do trabalho, saber que será assistido e apoiado por pessoas que passam pelas mesmas lutas diárias.

Conheça Acesse a lista completa de aplicativos e delivery que funcionam em Curitiba e região no Portal Comunicare: portalcomunicare.com.br


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O JOGO DA

VIDA

Anna Padilha, Felipe da Fonte, Lucas Couto, Marco Costa, Matheus Koga

O

mundo parou. O coronavírus surgiu em dezembro de 2019, na China e aos poucos foi se espalhando por todo o globo. A vida não era mais a mesma conforme a pandemia se alastrava, e não demorou muito para afetar a sociedade. Entre todas as áreas, uma das mais afetadas foi a dos esportes. Olimpíada adiada, toda e qualquer competição desportiva foi suspensa indefinitivamente. E um dos esportes mais afetados foi o futebol. O esporte mais popular do mundo parou primeiro na China, epicentro da pandemia. Ao redor do globo, o futebol seguia com algumas restrições: proibição de apertos de mão no início da partida, jogos com portões fechados, algumas partidas adiadas. Mas era inevitável, tudo tinha de parar. A partir do dia 12 de março campeonatos começaram a adiar seus jogos para o fim do mês, depois para meio de maio, com ainda alguma esperança restante. Porém, nenhum campeonato tem previsão de volta. A dúvida que surge no momento é o que fazer. Encerrar com todos os campeonatos, continuar esperando uma melhora da situação ou voltar com tudo? Infelizmente para alguns clubes brasileiros a melhor opção é

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voltar. A decisão para alguns parece loucura, para outros é a saída para que os clubes não tenham maiores prejuízos. Alguns clubes do interior dos grandes centros do futebol no país estão tendo que encerrar contratos de seus jogadores por não ter como pagar os salários. Mas não são apenas os clubes “pequenos” que estão passando por dificuldade financeira nesse período. 16 clubes da série A do brasileirão reduziram os salários de seus jogadores e profissionais envolvidos no clube. Flamengo e Palmeiras, os dois mais ricos do Brasil, também estão passando por isso. O clube de São Paulo tendo que parcelar em mais vezes o pagamento da compra de alguns atletas e diminuir os salários dos jogadores e comissão técnica e o clube carioca começando a ficar com dívidas pelo não pagamento dos patrocinadores do clube.

CAMPEONATOS PELO MUNDO No dia 24 de abril, o primeiro cancelamento da temporada. O campeonato Holandês decide encerrar a liga, sem campeão nem rebaixamento de divisão. Um dia depois, a Argentina também cancela seu campeonato nacional, com as mesmas condições, sem campeão. Já o campeonato francês, que teve seu término decretado no dia 30, decretou também um campeão. O PSG, por dez rodadas de antecedência vai levantar a taça (de casa). E isso


não deixou os jogadores argentinos felizes. O calendário do futebol argentino é o mesmo do futebol europeu, ou seja, o campeonato nacional começa em agosto e vai até junho do ano posterior. Sendo assim, na paralisação, o campeonato já tinha passado da sua metade. A Associação de Futebol da Argentina (AFA) não só não concedeu o título ao Boca Juniors, primeiro colocado com um ponto à frente do rival River Plate, como também decretou que não haverá rebaixamento na próxima temporada. A decisão revoltou jogadores, que ameaçam não entrar em campo no próximo ano. Mas será que a decisão da AFA é errada? Qual o real impacto da pandemia nos clubes de futebol? Sem jogos, os clubes não recebem os valores dos ingressos, nem do consumo de comida dentro do estádio, nem a verba de televisão, sócios-torcedores podem cancelar sua assinatura e as fontes de rendas nesse período ficam extremamente escassas. E as despesas não são pequenas, sendo a maior delas os salários dos jogadores. Alguns clubes conseguiram acordo com os atletas e diminuíram seus salários. Outros, não conseguiram chegar em um consenso. E nessa decisão, não há certo ou errado e sim dois lados que brigam por sobrevivência. No Brasil, país em que a curva de casos de Covid-19 é maior do que a de Estados Unidos e Espanha, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) planeja voltar com os jogos quando a sociedade médica científica liberar. A Confederação planeja retomar os campeonatos estaduais, com portões fechados.

POSSÍVEIS SOLUÇÕES Este é um momento para não cometer loucuras, achar uma maneira de não prejudicar os clubes e ao mesmo tempo preservando a saúde dos atletas e das pessoas que trabalham em

um jogo de futebol, independente de quem seja ela. Adiantar pagamentos de patrocínios anuais ou as federações de cada estado reformularem suas leis para que prolonguem os contratos que acabam nesse período de paralisação, são ideias para que os clubes possam se manter, e com esperança de que o esporte mais amado dos brasileiros possa voltar o mais breve possível.

A INTERRUPÇÃO DO PRINCIPAL LAZER O novo coronavírus está influenciando não somente no acontecimento de jogos de futebol, mas sim em toda indústria futebolística. Torcedores não têm o seu maior lazer aos fins de semana, e sem torcedores nos estádios, vendedores ambulantes não lucram, resultando em uma não renda para se sustentarem e pagarem suas contas. Sem partidas, estacionamentos ao redor dos estádios não funcionam. E tudo isso mostra como a epidemia virou uma pedra no sapato dos brasileiros, e ainda mais de microempreendedores, como os citados acima. Trabalhadores que precisam do dinheiro. Só que a fonte está secando, e junto a isso, a vinda do desespero. Mas muitas pessoas pensam que só o dinheiro é que importa. O dinheiro é só a ponta de um grande e profundo iceberg. O problema é bem mais sério do que imaginamos. Pessoas não têm dinheiro para pagar suas contas, se alimentarem, pagarem seus funcionários. E junto a tudo isso, podem vir a ter doenças mais sérias, como a depressão. Teremos que achar uma solução para essa pandemia, no entanto, o problema está longe de ser resolvido, visto que nosso pior rival nesta partida somos nós mesmos.

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Reprodução Pixabay

Extraordinários Como é a relação entre a educação e a saúde mental de jovens superdotados?

D

esde pequena, Paola Andrea Jaeger dos Santos, faz acompanhamento psicológico. Seus pais achavam que era autista. “Eu não tinha habilidades para lidar com minhas emoções, tendendo a sempre racionalizar tudo e criar ciclos inexistentes, ficando confusa quando os outros não faziam o mesmo ou não entendiam meu raciocínio”, relata. Isso mudou em 2017, quando, por meio de acompanhamento profissional, foi diagnosticada com superdotação.

Por: Gustavo Ferraz, Laura Borro, Luana Perdoncini, Luisa Secco e Paula Araújo

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Hoje, aos 19 anos, Paola vê o seu diagnóstico com muita fluidez, existindo momentos em que se sente incrível e única, e momentos em que tudo é simplesmente muita coisa. “Eu tenho que racionalizar tudo para conseguir seguir em frente”, explica. Curiosidade, facilidade na resolução de problemas e rapidez no aprendizado


está entre algumas características possíveis de encontrar em superdotados e pessoas com altas habilidades. Essas características, que podem ser observadas

“Muitas crianças desenvolvem características, talentos e habilidades além da normalidade. Isso pode ser medido através da sua interação na sala de aula, seus pensamentos, suas atitudes”, explica Fagundes.

“Eu não tinha habilidades para lidar com minhas emoções.”

Após perceber o comportamento da criança, muiPaola Andrea Jaeger dos Santos, estudante tos pais não conseguem constatar a superdotação de seus filhos: “Existem ainda na pré-escola, trazem destaque a muitas crianças que possuem habilidades de superdotação, mas, infelizessas crianças, muitas vezes chamadas mente, elas não são diagnosticadas, de “pequenos gênios” ou “prodígios”. porque precisam fazer um teste do WICS, que é muito caro, então muitas Ao contrário de aprendizados adquirifamílias não têm condições de pagar dos no decorrer da vida, essas habilipor esse teste”, o pedagogo conta. dades são consideradas como aptidão nata, ou seja, as crianças nascem superdotadas. O que não significa neEstima-se que os números de crianças cessariamente que esse grupo domine superdotadas ou com altas habilidades podem ser maiores do que apresentatodas às áreas do conhecimento. Essa dos em dados do Censo Escolar, feito facilidade em desenvolver alguma hapelo Instituto Nacional de Estudos e bilidade pode ser específica, ou seja, Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. pode estar presente na resolução de problemas matemáticos, na linguaNo ano de 2010, o Censo mostrava gem, nas artes ou em muitas outras que 2.769 estudantes tinham altas áreas do conhecimento, mas não em habilidades e/ou superdotação, o que todas ao mesmo tempo. representa 0,004%os 55 milhões de estudantes que estão no ensino básico De acordo com o pedagogo William no país. Há um déficit na contabilidaCoelho de Araujo Fagundes, a maior dee na avaliação destes estudantes dificuldade de se constatar a superque devem passar por uma avaliação dotação de uma criança é a falta de encaminhamento dos pais ou da escola. de Quociente de Inteligência. Arquivo Pessoal

Paola Andrea Jaeger dos Santos

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De acordo com dados do Conselho Brasileiro de Superdotação, estima-se que há no país 8 milhões de brasileiros com altas habilidades, o que representa 5% da população. Mas, devido à deficiência nos diagnósticos e oferta de atendimentos educacionais especializados para este grupo, cria-se a noção de que não há muitos superdotados no Brasil. A professora de sala de recursos Ivone de Almeida Dias, que trabalha com crianças com altas habilidades e superdotação, argumenta que testes devem ser feitos por profissionais psicólogos. Na área educacional, Ivone conta que o Centro Municipal de Atendimento faz a triagem de indicações. Entre as características dessas crianças está a busca por atividades desafiadoras, que tragam incógnitas. De acordo com o órgão, a maior parte desses cidadãos com altas habilidades no Brasil tem origem simples e não possui renda suficiente para escolher uma educação diferenciada. O Ministério da Educação tem algumas ações inclusivas para esta política, mas as ações dependem dos governos dos estados e municípios, que são responsáveis pela educação básica. Quando questionada sobre o atendimento de alunos que receberam o laudo de superdotação, a assessoria da Secretaria de Educação de Curitiba afirma que tanto os estudantes com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) quanto suas famílias contam com o atendimento e suporte na rede municipal de ensino curitibana. O Serviço de Atendimento Educacional Especializado em Altas Habilidades/ Superdotação (AH/SD) é ofertado no contraturno da escolarização do jovem. “Essa proposta de trabalho objetiva a valorização do potencial e habilidades dos educandos, respeitando as características de aprendizagem e as necessidades socioemocionais e relacionais”, explica. A professora Marytta Rennó Masseli, especialista em Psicopedagogia e Educação Especial com Ênfase em Altas Habilidades e Superdotação, trabalhacom alunos superdotados há 5 anos. Ela afirma que o ensino de crianças e

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adolescentes diagnosticados com AH/ SD deve ser feito na base do enriquecimento curricular, aprofundando o conhecimento do aluno nas matérias ou áreas de conhecimento nas quais ele se destaca. Sobre a diferença no ensino de alunos superdotados e alunos diagnosticados

e liderança, vocabulário avançado e riqueza de expressão verbal, habilidade para considerar pontos de vistas de outras pessoas e perceber a discrepância entre ideias, facilidade de interagir com crianças mais velhas ou com adultos, interesse por livros e criação de meios pessoais para resolução de problemas.

“Existe uma pressão social para ser aceito dentro do meio de convívio.”

A ciência já possui algumas pesquisas, mas ainda não encontrou outro meio de avaliar diagnosticar pessoas Marytta Masseli, estudante ecom altas habilidades. O que é utilizado com outras particularidades, Marytta por profissionais como psicólogos afirma que não há nenhuma diferene psicopedagogos é o teste de Q.I, ça, o que se exige é que os professoresponsável por medir as habilidades res percebam as particularidades de de uma pessoa. Por meio de um cada aluno e tratem eles a partir daí. conjunto de tarefas e problemas que Além de envolver todas as pessoas que devem ser solucionados, gerando uma fazem parte do processo de aprenditabela de pontos, e, que no final chega zado do aluno, para que todos estejam a uma nota. De 120 a 129 pontos, a par do seu avanço. caracteriza-se como inteligência superior e, a partir de 130 pontos, a Um fator muito importante a ser dispessoa é considerada superdotada. cutido quando se fala de adolescentes com superdotação é a sua autoestima. Marytta Masseli afirma que já atendeu Contudo, essas pessoas devem ser acompanhadas por profissionais jovens com baixa autoestima. “Nós especializados, pois podem apresentar percebemos que eles não queriam se problemas de convívio social. Pode-se diferenciar dos demais, existe uma notar também por esses adolescentes pressão social para ser aceito dentro do meio de convívio.” Ela explica que o a prioridade no relacionamento com pessoas mais velhas. O cuidado deve jovem não quer ser “daquele jeito” e, por isso, propositalmente, acaba tendo ser redobrado com a não aceitação social, ansiedade, solidão e depressão. um baixo rendimento, não mostra toda a sua habilidade na escola. Especialistas apontam a necessidade dos responsáveis por esses O QUE É SER SUPERDOTADO? adolescentes e crianças de discutir e argumentar com seus filhos de De acordo com uma pesquisa forma sincera e sempre incentivar realizada pelo Instituto Nacional de a convivência e relacionamento Saúde Mental, nos Estados Unidos, há em sociedade, principalmente com diferença no amadurecimento cerebral pessoas da mesma idade. de crianças com Q.I. avançado. O estudo mostra que o córtex cerebral (responsável por funções complexas, como planejamento, organização Conheça e controle) de algumas crianças avaliadas amadureciam de forma mais Mapa dos Centros rápida comparado a outras. Algumas características de pessoas com altas habilidades são: Facilidade de concentração, autonomia, interesse por áreas e tópicos diversos, iniciativa

Municipais de Atendimento Educacional Especializado (CMAEEs). portalcomunicare.com.br

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Ikigai: a razão de viver okinawana Entre os diversos provérbios okinawanos, o Ichariba Choode é um dos mais conhecidos. Significa: “quando nós nos encontramos, somos todos irmãos”. É sobre o que é ser okinawano em um jeito único de se relacionar. Ana Iamaciro Andressa Carvalho Carla Tortato Laís da Rosa

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“O

clima é mais quente, o pessoal é mais escuro, não é igual japonês. Japoneses são mais brancos. Aquele tempo que eu fui trabalhar no Japão, a ‘japonesada’ tratava a gente que nem ‘pé de chinelo’. [...] O pessoal de Okinawa é que nem no Brasil, tem festa, tem o carnaval deles. Era divertido lá.”, conta bem-humorado Missao Iha, hoje com 70 anos, relembrando os tempos em que vivia na exuberante ilha okinawana. Missao nasceu em Okinawa, na cidade de Ishikawa, e veio para o Brasil com 8 anos. Enquanto permaneceu na província japonesa, teve que enfrentar os dilemas de uma ilha sob comando de dominadores estrangeiros, ora japoneses, ora norte-americanos. Ainda criança, recolhia ferro velho com sua mãe para conseguirem o que comer. “No tempo da primeira guerra, Oki-


nawa não tinha serviço, quase nada, a gente tinha que procurar alguma coisa para poder se sustentar.”, relembra. Apesar dos momentos espinhosos que teve que encarar enquanto morava à meio mundo de distância de onde vive agora, Missao afirma sentir falta de viver em Okinawa, pois tudo lá é bem diferente. “O Brasil está ruim por causa da criminalidade. Então, que dá vontade de ir pra lá, dá”. Foram poucos os costumes que conseguiu

Satsuma (província) foi invadida e eles passaram a ter que pagar impostos para o Japão, porém ainda existia uma independência cultural e política. Esse último fato muda na Era Meiji, quando foi feita uma anexação do território de Ryukyu para o Japão, em 1879. Desde então, o antigo reino, agora chamado de Okinawa, passou a ser uma província japonesa. “A partir disso, houve um desmembramento da estrutura política de Okinawa. Houve todo um processo de assimilação e aculturação”, explica Samara Konno, Mestra pelo Programa de Estudos Culturais da Universidade de São Paulo (USP), que pesquisa a respeito da imigração japonesa e okinawana.

“Como somos um povo que tem uma essência de ser sempre sorridente, gostamos muito dos tanomoshi, pois nos unimos muito, e se sentimos todos em família.”

Konno complementa explicando que, desde então, eles foram proibidos de falarem a própria língua, o uchinaguchi, Jorge Goya, presidente da Associação de Curitiba e passaram a ter toda a influência da Era Meiji, no preservar em solo brasileiro, a maioJapão, de construção de uma identiria moldou-se à realidade em que dade nacional japonesa. “Junto com vive atualmente. Ficou preservado a esse processo de assimilação, você culinária. “Eu quase não comia comida tem uma série de pestes acontecendo brasileira, comprava arroz japonês.”, à época, de disseminação de doenças explica. dentro do território okinawano, além de seca, fome, catástrofes naturais “O meu pai trabalhava no Exército e políticas”, diz. Por esse motivo, foi americano naquele tempo. Trabalhanfeito um acordo do governo japonês do no Japão, ele falava a linguagem do com o governo brasileiro, para trazer Japão mesmo. Então, a gente converimigrantes japoneses para trabalhar sava no idioma de Okinawa mais entre nas fazendas de café no Brasil, no mãe e ojiichan (avô).” Missao afirma início do século XX. que a maioria das pessoas, mesmo as okinawanas, já não falavam mais Os registros mostram que foi em o uchinaguchi (língua de Okinawa) 1908 a chegada dos primeiros imie a maior parte delas tinha o idioma grantes japoneses ao Brasil, trazidos japonês como principal forma de se pelo navio Kasato Maru. “Eram cerca comunicar. de 781 japoneses, dos quais 325 eram okinawanos”, detalha Konno. Desde Okinawa é uma ilha localizada ao então, tradições vêm sendo mantidas sul do Japão. É conhecida pelas praias pelos descendentes de Okinawa. Um encantadoras, clima tropical e pela prato de comida, o idioma, a forma de longevidade alcançada por muitos. relembrar os antepassados, exercer Apesar do povo alegre e festivo, a pro- sua religião, sua fé, são marcas que víncia já passou por períodos difíceis estão sendo deixadas e passadas de e sua história tem diversos traços de geração em geração. uma luta que deixou marcas até os dias de hoje. A Segunda Guerra Mundial foi um marco na história de todo o mundo, Até 1607 o reino de Ryukyu era inda população de Okinawa foi assasdependente, com língua e costumes sinada. Por conta disso, assim como próprios, até que no ano seguinte, Missao, muitos okinawanos vieram

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para o Brasil reconstruir suas vidas. “Foi uma imigração que deu um salto, que virou a página da construção da identidade de Okinawa no Brasil.”, afirma Konno. A comunidade okinawana já estava bem estabelecida financeira e economicamente em território brasileiro após a Segunda Guerra Mundial. “Eles já tinham suas terras, casas e comércios. A partir disso, surgem as construções das associações okinawanas para difundir e valorizar essa cultura.”, diz. Em 2006, foi fundada a Associação de Okinawa Kenjinkai de Curitiba pelos próprios imigrantes que sentiram que tinham que preservar a cultura okinawana, contando com a participação do povo. “Para nós, foi muito importante esse marco da associação, porque sentimos a nossa cultura viva ainda”, relata o presidente da Associação de Okinawa Kenjinkai de Curitiba, Jorge Tokuwatsu Goya.

Além de ser um povo sorridente, os descendentes de Okinawa se importam em sempre preservar a memória de seus ancestrais, pois é uma forma de manter a cultura okinawana viva, tanto que na maioria das casas dos imigrantes existe um santuário, chamado Butsudan, onde há plaquetas identificando os nomes da maioria dos ancestrais. Goya também relata que essa é uma forma de levar a cultura okinawana para os mais jovens. “Ter uma conexão com os ancestrais é muito importante, porque faz parte de quem nós somos, então é por isso, entre outros motivos, que sempre respeitamos os mais velhos, pois traz essa lembrança de experiência e conhecimento”, diz.

OKINAWA É AQUI A pele escura e o sorriso no rosto logo entregam a origem de Hiroyoshi Yamashiro, de 76 anos. Nascido no Japão em uma família de sete irmãos, ele conta que a vida no período pós-Segunda Guerra Mundial era muito dura. “Comi muita batata doce, tinha pouca comida”, relembra Yamashiro, revelando um forte sotaque japonês. Ele veio para o Brasil com 16 anos.

Reproduzida

Goya também conta que, na associação, os descendentes são bem participativos, pois como os encontros acontecem mensalmente, eles acabam adotando o sistema motiyori, no qual cada família traz suas comidas típicas okinawanas e compartilham entre todos, com muita música também, para alegrar o clima. “Como somos um povo que tem uma essência de ser sempre sorridente, gostamos mui-

to dos tanomoshi (confraternizações mensais), pois nos unimos muito, e se sentimos todos em família.”

Imigrantes okinawanos que estavam embarcando para à vinda ao Brasil.

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Reproduzida/ Facebook

Hiroyoshi Yamashiro (de preto) tocando o sanshin durante o Imin Matsuri de 2017.

Desembarcou no porto de Santos no dia 3 de março de 1960, após 55 dias de viagem de navio. Chegara em solo brasileiro, sem saber falar em português. No ano seguinte, partiu rumo a Curitiba, onde viviam alguns de seus parentes. Após se instalar na cidade, começou a trabalhar com o plantio e colheita de verduras para vender na feira. Em 1973, Hiroyoshi se casou com Sadako, sua atual esposa, também descendente de okinawanos. Tiveram duas filhas, Sílvia e Selma. Após o nascimento de Sílvia, a mais velha, eles viajaram para Limeira, São Paulo, para aprender a fazer pastéis. Ao voltar para Curitiba, a família abriu uma banca, começando aí a história dos Pastéis Yamashiro, negócio que a família mantém até hoje e que os tornou muito famosos nas feiras da capital paranaense. Os ensinamentos e valores aprendidos com os pais, são passados para as gerações mais novas como forma de manter a memória viva. Para Yamashiro, a cultura okinawana é muito importante. Até hoje, ele preserva o idioma uchinaguchi e fala

japonês também, além de tocar o sanshin, instrumento característico da ilha. “Sempre estou ensinando minhas filhas e netos sobre a cultura de Okinawa”, comenta. Os jovens descendentes okinawanos divulgam a cultura de uma forma alegre, ao ritmo de tambores e da dança. O taikô é um tambor japonês, muito comum no Japão, principalmente em festivais. Em Okinawa, foi fundado o grupo de taikô Ryukyu Koku Matsuri Daiko, que hoje tem filiais espalhadas pelo mundo todo, sendo dez delas no Brasil. O nome do grupo significa “tambores festivos do Reino de Ryukyu” e espalha a cultura okinawana por meio dos jovens, que compõem a principal faixa etária dos integrantes do grupo. Veja também Conheça um pouco mais sobre a história, cultura e ouras curiosidades de Okinawa. portalcomunicare.com.br

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Ilha de Okinawa, com suas praias de areias brancas e águas azuis.

Natalie Yumi Nabeshima de Almeida, 23 anos, é líder da filial de Curitiba desde janeiro deste ano, mas já participa do grupo de taikô há 11 anos. Ela conta que o fundador em Okinawa, dizia que o grupo é como uma ponte. “Ele queria espalhar os valores e a cultura okinawana pelo mundo.”, relata com empolgação. Natalie não tem descendência com os okinawanos, mas ela aprendeu muito sobre a cultura e sente-se arraigada à ela. “Apesar de não ter descendência de sangue, me sinto parte de coração.”, diz. Com 26 anos, Caio Henrique Yamashiro participa do grupo desde os 16. Tudo começou quando ele decidiu participar de um treino à convite de um amigo, em 2009. A partir desse momento, o taikô não deixou mais de fazer parte de sua vida, já são mais de dez anos em que o significado de paz e união que o grupo espelha, reflete na sua vivência cotidiana. Ao entrar para equipe, Caio se deparou ainda com uma importante revelação de sua mãe, sobre suas raízes: descobriu ser neto de okinawanos. “Minha mãe nunca havia me falado sobre Okinawa, nem meu pai. Ambos nasceram aqui no Brasil, mas minha família nunca foi uma das mais tradicionais.”, conta.

Reproduzida

Bandeira de Okinawa.

É comum que as pessoas, inclusive as que não são descendentes, se emocionem durante as apresentações devido a comoção provocada pela performance do grupo. O taikô transcende a emoção que as músicas okinawanas representam. Dentre suas canções

Seu ojii-chan (avô), Kichu Yamashiro, nasceu em Okinawa e acompanhou de perto o período de mudanças na ilha. Ele veio para o Brasil durante a Segunda Guerra com o anseio de melhores condições de vida. À época, a América Latina era vista como um lugar para novas oportunidades. Apesar da situação delicada pela qual o avô passara, Caio explica que os okinawanos prefeNatalie Yumi, líder do grupo taikô de Curitiba rem adotar o perdão, ao invés do rancor e da busca por encontrar um culpado para favoritas, Caio destaca duas: Gokoku os conflitos. Predomina assim, para Hojo e Shima Uta. “‘Gokoku’, por eles, o provérbio Nuchi du Takara, que ser extremamente alegre, traz uma significa “a vida é um tesouro”. energia incrível. ‘Shima Uta’, por ser

“Ele queria espalhar os valores e a cultura okinawana pelo mundo.”

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a Canção da Ilha [tradução literal]. Alguns anos depois que entrei no grupo mostrei essa música para um tio meu e ele a reconheceu porque meu avô costumava cantá-la. Não conheci meu avô e acredito que esta seja uma forma de manter o vínculo com ele.” Participar do grupo de taikô revela também o desejo de manter contato com a cultura cujo elo o ajuda a estabelecer ligações com seus antepassados. As dificuldades que Caio encontrou em aprender os passos, quando ainda estava começando, não foram suficientes para fazer com que ele desistisse de abraçar ao taikô. “A partir do terceiro ano fica mais fácil, mas por outro lado fica mais desafiador. Não é porque você sabe a coreografia que você está ok. Aperfeiçoar a beleza dos movimentos é o mais difícil, mas para isso tem que aprender a coreografia [primeiro]”, conta. No Brasil, as comunidades okinawanas se encontram em diversos estados. De acordo com o doutor em História Social pela Universidade de São Paulo Ricardo Sorgon, o maior contingente de imigrantes que veio para o Brasil, entre 1910 e 1930, se concentrou em São Paulo. Eles chegaram em solo brasileiro para trabalhar nas lavouras de café, mas depois houve uma certa dispersão. Hoje, há comu-

nidades de descendentes de Okinawa também no Mato Grosso, Paraná, Amazonas, Pará e Mato Grosso do Sul, embora ainda a maior concentração seja mesmo em território paulista. Os okinawanos realizam o Uchinanchu Taikai, um evento que a cada cinco anos reúne descendentes do mundo todo. Com muita festividade, nesse encontro há trocas de experiências, apresentações de músicas e danças, que duram cerca de uma semana. Sorgon destaca que os descendentes de Okinawa, por mais que sejam uma comunidade bairrista, possuem laços internacionais.“São pouquíssimas comunidades imigrantes que conseguem organizar um evento desse tipo, que congrega imigrantes do mundo inteiro.”, relata. Em um período mais recente, a partir da década de 1980, a cultura de Okinawa passou a ser reconhecida e valorizada pelo Japão. Sorgon explica que, em uma estratégia complexa, os japoneses aderiram a ideia de evidenciar a cultura da província, tendo em vista a exploração de seu potencial turístico. Embora, ao mesmo tempo, é adotada também uma postura de apreciação das tradições okinawanas como se fossem uma variante da própria cultura japonesa mais ampla.

Okinawa Soba é um dos pratos mais populaes.

Haru significa primavera em japonês e Imin significa imigrantes. Assim, surgiu o nome dos festivais “Haru e Imin Matsuri” que é realizado em Curitiba, no Parque Barigui, e ocorrem em junho e outubro. Apesar de ser outono no Brasil, Haru traz a comemoração da estação no Japão e Imin celebra a chegada dos imigrantes japoneses no Brasil. Esse evento permite ao público vivenciar um pouquinho da cultura japonesa. A cultura okinawana fica por conta da Associação Kenjinkai de Curitiba, que marca presença nos Matsuris, possibilitando ao público experimentar a autêntica culinária de Okinawa. Os pratos típicos como o sobá e o andagui são preparados pelos próprios associados. Além da comida, a associação contribui com apresentações de odori (dança tradicional) e sanshin. O grupo de taikô Ryukyu Koku Matsuri Daiko também se faz presente no evento com apresentações ao ritmo dos tambores, levando alegria e disseminando a cultura okinawana. Apresentação do grupo taikô Ryuku Koku Matsuri Daiko em Curitiba.

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ASSOCIAÇÃO DE OKINAWA KENJINKAI DE CURITIBA

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Sob a luz do profeta Jovens islâmicos contam como é estudar em universidades brasileiras Aline Taveira

C

aminhando pelos corredores da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), ele é apenas mais um jovem universitário. Cabelos escuros, alto, um moletom e tênis da moda. Em meio a seus amigos, todos jovens estudantes, é mais um. Ele, porém, carrega em si uma característica em comum com quase dois bilhões de pessoas ao redor do mundo. Seu nome é Firas Hammoud. Um jovem muçulmano no Brasil. Aos 22 anos, Firas (se pronuncia “Firás”) cursa Engenharia de Produção na PUCPR e mora com seu irmão em Curitiba, já que seus pais ainda moram na cidade em que o jovem nasceu, Foz do Iguaçu. De origem libanesa e avós que moram até hoje no Líbano, Firas conta que a cultura muçulmana está muito presente em sua vida, mesmo vivendo em um país como o Brasil, onde sua religião é minoria. “Eu gosto de ser diferente”, ele afirma. Questionado sobre o que um muçulmano enfrenta em uma universidade católica, já que as religiões são historicamente conflituosas entre si, ele expõe com tranquilidade: “Não tenho preconceito contra as religiões. A minha religião fala que todas as religiões estão certas, e eu super respeito.” No auge de sua juventude, Firas conta que nunca consumiu bebidas alcoó-

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licas, como manda o islamismo, mas que isso nunca o impediu de sair e se divertir com seus amigos, islâmicos ou não. Desde pequeno, ele foi inserido na cultura de sua família e nas tradições árabes. Nasceu na cidade de

Foz do Iguaçu, que leva o título de segunda maior colônia islâmica do Brasil, com cerca de 20 mil membros, perdendo apenas para a cidade de São Paulo, segundo o último


censo do IBGE. O idioma árabe, por exemplo, é falado e escrito fluentemente pelo rapaz brasileiro e incentivado em casa pelos pais. “Eu só podia falar em árabe com eles e a leitura e a escrita eu aprendi com professor particular. Eu odiava, mas hoje eu agradeço. É bem difícil.” Carregando no pescoço um colar com pingente do Alcorão, o jovem mantém, perto de seu coração, as tradições milenares do islamismo, e afirma que há uma filosofia de tolerância que poucos conhecem. “Tudo o que sua religião diz para você fazer está certo.” Não muito longe de Firas, outro jovem islâmico percorre os corredores da Pontifícia – mas, dessa vez, os do loco de Ciências da Vida. Estudante de Odontologia, Ali Bhay, de 19 anos, também é descendente direto de libaneses e praticante da religião muçulmana. Assim como Firas, Ali não liga por fazer parte de uma comunidade pequena no Brasil. “Acho que, por o Brasil ser um país cheio de misturas de outros povos, o acolhimento é grande. Não me sinto minoria.”, ele afirma. Conviver com pessoas de outras crenças, para ele, é muito importante. “Acho que é essencial para o

respeito mútuo esse tipo de interação, sempre convivi com amigos que têm outras crenças, acho que isso ajudou a eles me respeitarem e eu respeitá-los.” Ali, que realiza as rezas diárias e obrigatórias, não perde o jejum no mês do Ramadã e não consome carne de porco. Ele lembra que, além disso, segue outras regras essenciais para o Islã: “Ajudo os necessitados, respeito e tenho empatia com o próximo”.

ALÉM DAS APARÊNCIAS Firas e Ali, homens e jovens, passam despercebidos pela multidão. Diferentemente do que acontece com a jovem muçulmana Yaman Moussa, de 22 anos, recém-graduada em Administração pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Yaman usa, desde os 12 anos, o hijab, “lenço” que cobre os cabelos das mulheres islâmicas. Por onde passa, carrega sua fé estampada no rosto. Para ela, isso é motivo de orgulho. “Quando você é muçulmano e você não usa o hijab, ninguém sabe que você é muçulmano, a não ser que você fale isso em algum momento. Quando você o usa, ele fala por você.”, ela conta. Descendente direta de marroquinos, Yaman conta que, algumas ve-

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zes, já se sentiu receosa em relação à possível reação das pessoas. “Quando eu entrei na faculdade, sempre pensei: ‘Ai, será que as pessoas vão me aceitar? Será que eu vou sofrer bullying?’. Eu acho que é normal, sempre que você sai da sua zona de conforto você sente algum receio e comigo não foi diferente”, afirma a jovem. No final das contas, porém, ela conta que nunca sofreu nada além algumas isoladas piadas sem graça. “Frequentei um ambiente escolar, ambiente universitário e agora um ambiente corporativo e a situação continua exatamente igual, sabe, não sofri nenhum tipo de preconceito.” Yaman tem muitos amigos não islâmicos, até porque, segundo ela mesma diz, a comunidade jovem islâmica em Curitiba não é muito grande e nem muito entrosada. “A gente não escolhe amizade pela religião, né? Você se identifica com a pessoa e acaba

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criando um vínculo, uma conexão com ela. As pessoas, quando se permitem conhecer realmente como é a religião, muitas vezes acabam se identificando muito com ela. Meus amigos me defendem, defendem a religião.” Yaman conta que teria uma visão de mundo muito fechada se não tivesse seus amigos com quem se sente livre para falar o que pensa e o que acredita. “Isso é a melhor coisa que tem que acontecer entre amigos. O fato de eu acreditar em alguma coisa e algum amigo meu acreditar em outra nunca foi motivo de briga ou houve alguma influência negativa, pelo contrário.” Para ela, a troca de vivências com seus amigos é enriquecedora e permite que sua visão de mundo cresça. “Eu me sinto muito privilegiada e lisonjeada por influenciar meus amigos, e eles também, por poderem realizar essa troca comigo.” Sempre que tem a oportunidade, Yaman tenta esclarecer, de fato, qual é a essência de sua religião. “As


pessoas que permitem conhecer isso, que permitem conhecer o que significa o hijab, se permitem conhecer como é a vida de um muçulmano e de um que não é, vêem que praticamente não tem diferença”, ela conta. O irmão mais novo de Yaman, Ahmed, tem 20 anos e também vive em ambiente universitário. Ahmed cursa Medicina na Universidade de São Paulo (USP), em Bauru, no interior do estado de São Paulo. Mesmo sem conhecer nenhum muçulmano na sua faculdade, ele conta que está acostumado a viver em uma comunidade sem tantos representantes e que isso não o afeta. “Nunca senti receio de mostrar minhas crenças, mas eu estou sempre preparado para responder aquelas perguntas padrões e clichês sobre o porquê de eu não beber álcool e comer carne de porco.” A ação dos jovens em desmistificar a cultura islâmica e mostrar como ela realmente funciona tem colaborado para a conversão de muitos outros jovens. Mariana, de 28 anos, começou a se interessar pelo islã aos 22 anos. Atualmente formada em Química pela Universidade Federal do Paraná, ela conta que, no início, quando ainda não estava muito fortalecida e convicta, sentia receio de expressar suas crenças. Hoje, porém, ela diz não se importar mais com isso.

FÉ NO CONHECIMENTO Ser islâmico, jovem e universitário no Brasil pode concentrar diversos conflitos que, por si só, já são desafiadores. O preconceito contra o islamismo, difundido a partir da associação imediata da religião com certos grupos terroristas que, de fato, usam o Islã como bandeira principal, permite que muitas pessoas criem em seu imaginário uma impressão equivocada da crença e de seus desdobramentos, rituais e sua doutrina. O que muitos não sabem, porém, é que o incentivo aos estudos está intrínseco na cultura muçulmana e é inclusive incentivado pela própria religião, como conta o especialista e responsável pelo portal Iqara Islam, Amir Faria. Segundo ele, a primeira palavra

revelada do Alcorão foi Iqra, transliteração do árabe para “Leia”. O profeta Muhammad, ou Maomé, em português, mesmo sem saber ler e escrever, teria recebido esse comando de Deus como revelação. “Isso por si diz muito sobre a fé islâmica. No Islam, a consciência humana possui alto grau de importância e a fé é confirmada pelo intelecto. O estudo sempre foi estimulado pelo Profeta Muhammad em diversos ditos e a civilização islâmica sempre se beneficiou da tecnologia, sendo vanguardista em diversos períodos da história.”, afirma Amir. Segundo ele, o muçulmano, homem ou mulher, deve buscar conhecimento. É uma obrigação. A juventude islâmica no Brasil ainda lida com a pouca quantidade de membros, o que pode desestimular alguns. Para Amir, que trabalha há oito anos com o portal de informações da fé islâmica, existem três tipos de jovens muçulmanos no Brasil. “O primeiro são em geral árabes, em sua maioria libaneses, filhos de libaneses muçulmanos e que aderem à religião de forma cultural e por herança. O segundo tipo são os árabes, em sua maioria libaneses, filhos de libaneses muçulmanos e que praticam a religião por convicção. O terceiro grupo são de muçulmanos brasileiros convertidos, engajados com a prática da religião e também na divulgação.” Segundo ele, o segundo e o terceiro grupo, ou seja, os que praticam a religião por convicção própria apesar dos estímulos, representam 20% do total do universo de jovens muçulmanos brasileiros. A quebra de barreiras preconceituosas e a disseminação das reais convicções islâmicas são, atualmente, a maior contribuição que os jovens universitários muçulmanos brasileiros entregam para sua religião. Responsáveis por carregar bravamente sua fé, Firas, Ali, Yaman, Ahmed e Mariana são apenas alguns exemplos de jovens que passam ou passaram pelos corredores das faculdades brasileiras, levantando a bandeira de um mundo com menos barreiras socioculturais e mais amor ao próximo. Ser minoria, para eles, é motivo de orgulho.

Saiba mais Conheça o Iqara Islam, portal de informações para a comunidade islâmica no Brasil portalcomunicare.com. br

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Criadoras da realidade A produção cinematográfica curitibana do ponto de vista de sete mulheres que atuam na área Gabriela Küster Solyom

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os 17 anos Ana Johann assistiu ao filme Guerra de Canudos no cinema, e na época era acostumada com uma TV pequena: “Foi a primeira vez que tive uma outra impressão sobre aquelas imagens. Lembro de ter prestado atenção ao corte que era bastante invisível.” Foi no município de Nova Concórdia, interior do Paraná, onde Ana nasceu e viveu até os seus 15 anos. Hoje diretora, roteirista e produtora, teve como primeiro cenário de obra audiovisual sua segunda casa, a cidade de Cruz Machado.

estudos para estudar cinema fora do país. Ganhou uma para estudar documentário na Escola Superior de Cinema e Audiovisual da Catalunha (ESCAC), instituição adjunta da Universidade de Barcelona, e passou sete meses em Terrassa. Voltou para o Brasil e, em 2006, gravou seu primeiro documentário, De tempos em tempos, um retorno a Cruz Machado. Saindo da Península Ibérica e indo em direção ao Leste, na costa do Mar Negro, a Europa também foi cenário de inspiração para Andréia Kaláboa,

“Cada documentário que você produz te transcente como ser humano.” Andréia Kálaboa , sócia da GP7 Cinema e Produtora

Na hora de escolher a faculdade, ela veio para Curitiba cursar Jornalismo e, no terceiro ano da graduação, começou a trabalhar no Festival de Teatro da cidade, e acompanhando diretores, descobriu que sua paixão estava não na escrita de redação jornalística, mas no roteiro cinematográfico. Ela decidiu continuar o curso porque na época não era tão simples para ela trocar da faculdade. Além de estudar à noite, ela trabalhava de dia como secretária em um escritório de construção civil no Centro Cívico. Depois de formada e com vários cursos de extensão em cinema, Ana foi trabalhar em uma produtora de conteúdo como roteirista e, em 2004, começou a procurar uma bolsa de

fundadora e sócia da produtora GP7 Cinema. Andréia é produtora, diretora e descendente de ucranianos. Quando pensa no início da sua paixão pelo cinema, conta que tudo começou enquanto produzia documentário. Quando ainda era menina, tinha o sonho de ter a produção como carreira, mas a produção de documentários, com o acesso aos personagens reais e suas histórias, mudou a sua cabeça: “Essa troca que acontece nos documentários é muito calorosa, cada um que você produz te transcende como ser humano.” Natural de Prudentópolis, Andréia produziu os documentários Made in Ucrânia: ucranianos no Paraná e o premiado Iván - De volta para o Arquivo pessoal

Dirceu e Ana - durante produção de Um Filme para Dirceu.

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Lançamentos do Ano no Brasil: 2018 Lançamento filmes estrangeiros: 295 Lançamentos filmes nacionais: 185 38,54% dos lançamentos são nacionais Fonte: ANCINE / Sistema de acompanhamento da Distribuição em Salas de Exibição (SADIS)

Arquivo pessoal

passado, que conta a história de Iván Bojko, um imigrante imigrante refugiado no período pós-Segunda Guerra Mundial, concluído em 2011 e exibido nos cinemas em 2015. Apesar de trabalhar majoritariamente como produtora, ela também é

“Só tinha adultos, mas meu pai era amigo dos projecionistas.” No Cineplaza, cinema de rua, na época localizado na Praça Osório, em Curitiba. Aquele dia mudou sua história, Diana conta que saiu da sessão e comprou em uma banquinha a sua primeira edição da Revista Cinemin. A partir daí, começou

“A produtora é aquela que coloca o filme em pé.”Diana Moro, produtora e dona da Moro Filmes

apaixonada por outra área, compartilha que durante a graduação tomou gosto pela direção e desde então tenta conciliar seu tempo entre as duas funções. Hoje a rotina principal dela é como produtora executiva, mas quando dá uma “brecha” dentro da empresa, consegue desenvolver seus projetos próprios, aqueles que ela tem interesse em dirigir. Agora, Andréia tem se preparado para dirigir o seu primeiro longa de ficção, Sereis uma só carne, com previsão de início para o ano que vem. Recentemente, dirigiu o curta Parabéns pra você, que esteve no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e foi premiado como: melhor direção de fotografia e direção de arte. Sobre o longa de 2021, Andréia diz: “Minha intenção é trabalhar com uma equipe majoritariamente feminina. Será muito importante para minha carreira. Tenho me preparado para isso dirigindo outros projetos”.

a paixão cinematográfica. “A Sigourney é minha musa, a personagem dela Tenente Ripley, em Alien -, para mim, é uma das melhores do cinema. Uma figura feminina forte e representativa.” Diana é empresária, dona da produtora Moro Filmes e trabalha principalmente como produtora criativa. Ela define essa função como quem coloca a produção em pé, sem ela não tem filme. Deve acompanhar desde o nascimento da ideia até a execução. Formada em Letras pelo Universidade Federal do Paraná (UFPR), acabou trabalhando no canal CNT, à época umas das únicas cabeças de rede fora do eixo Rio de Janeiro - São Paulo. Começou trabalhando justamente na área de divisão de cinema. A sua função era programar os filmes que iriam ser exibidos, mas ali acabou trabalhando, inclusive, com tradução e legendagem. Também tinha um programa que participava sobre cinema, ela era responsável pela edição e roteiro.

Notícias da Rainha de Ana Johann.

Arquivo pessoal

ALIEN Para muitos, a tenente Ripley, personagem interpretada por Sigourney Weaver em Alien, o Oitavo Passageiro é um símbolo, mas, para Diana Moro, ela significou muito mais que isso. Quando ela era criança seu pai a levou para assistir Alien em uma sessão noturna.

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Interessada em aprender mais sobre cinema, buscou um curso na New York Film Academy. “Eu consegui uma meia bolsa e fiz um curso extensivo voltado para produção. Você se graduava fazendo um curta. Junto com isso consegui entrar na NYU para um curso de montagem, que era o que eu gostava na época.” Quando voltou ao Brasil, retornou para a televisão

Luísa Wolff, na série Lavínia.


Arquivo pessoal

e, logo depois, recebeu um convite de uma produtora norte-americana chamada Costal que operava tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Foi o primeiro emprego dela na área de produção cinematográfica. “Até aí não existia nenhuma lei de produção audiovisual, era exatamente o período de transição na época do governo Collor, quando foi encerrado a Embrafilme, uma espécie de fomentadora do audiovisual brasileiro.” Diana fala sobre o poder da caneta nas grandes produtoras hoje estarem sempre nas mãos dos homens, inclusive nas plataformas de streaming, como Netflix, Amazon e Apple TV +. Na opinião dela existe sim um preconceito de gênero nesse universo, mas este é velado. “É aquela história: quando você fecha a porta, você ouve as risadas do outro lado. Mas eu também não dou muita bola para isso, não vou ficar me vitimizando.” Ela acredita que o cenário está mudando, mas

Anne Ale no Festival de Gramado como curta Apneia. o meu terceiro ano do ensino médio, fiz amizade com alguns atores que fizeram com que eu começasse a entender que havia uma produção local.” Trabalhar com isso então se tornou uma possibilidade que a emocionava.” Annelyse conta que dentro da produção cinematográfica, para ela, os momentos mais marcantes são quando existe um intercâmbio cultural.

“Já propus soluções que foram ignoradas até que partiram de um homem. ”Annelyse Bosa, produtora

afirma que ainda tem muita hipocrisia nessa mudança. Diana compartilha que existem pessoas que se utilizam do movimento ‘Me too’ [em repúdio ao assédio moral e sexual contra mulheres na indústria do entretenimento], para dizer que endossam a produção feminina, mas ainda produzem filmes misóginos. ASSÉDIO Annelye Bosa sempre foi apaixonada por filmes, eram seu passatempo favorito, mas não tinha ideia de que poderia trabalhar com isso e que pudesse ser uma profissão. “Durante

Ela participou da produção de filmes como O Despertar de Solomon, de André Faria, sobre uma comunidade judaica, e também do longa Fora de Série, da RudFilms, onde foram abraçados por uma comunidade adventistas. Formada em Cinema e Vídeo na Universidade Estadual do Paraná (Unespar), Annelyse sonha em voltar a dirigir, dessa vez fora do ambiente acadêmico. Hoje ela trabalha na produção e direção de produção e comenta sobre o preconceito de gênero nesse universo. “Já levei cantadas, passei por situações de misoginia

Público nos Cinemas Brasileiros no Ano de 2018 Público filmes estrangeiros: 139.214.633 Público filmes nacionais: 24.239.973 14,83% do público é em filmes nacionais Fonte: ANCINE / Sistema de acompanhamento da Distribuição em Salas de Exibição (SADIS)

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Arquivo pessoal

A Linha Escarlate.

Um filme para Dirceu.

e gaslighting, já propus soluções de produção que eram ignoradas até que as mesmas partissem de um homem, por exemplo.” Annelysa acredita que, infelizmente, essas sejam experiências pela qual toda profissional ainda vai passar em algum momento da carreira, e para lidar com isso é preciso não duvidar das suas capacidades em exercer a sua função, pois muitas vezes isso vai ser colocado em dúvida. Anne Lise Ale conta que, para fazer cinema, é preciso aprender a criar. É uma arte que te leva constantemente

que sofreu nessa época. No início ela não entendia o que aquilo significava, apenas sentia e guardava, porque achava que fazia parte. Ela acreditava que questionar certas atitudes era dar mais uma chance para que outras pessoas que ela considerava mais experientes questionassem a qualidade do seu trabalho. Luísa Wolf começou muito cedo no cinema. Ela era atriz de audiovisual e fazia várias propagandas, para o governo, farmácias e séries de videoaula, mas, com o tempo, foi percebendo

“Não existe uma falta de mulheres diretoras, mas existe uma falta de mulheres sendo reconhecidas.” Luísa Wolf , figurinista

a pesquisar, a assistir a filmes, ver séries. Anne Lise é jornalista e, quando decidiu que queria trabalhar especificamente com produção, fez vários mini cursos, masterclasses e oficinas, além de pós-graduação em produção executiva para Rádio e TV. É curioso pensar que em 2013, ela foi cobrir o Festival de Cinema de Gramado para um cliente na publicidade e, na ocasião, pode assistir alguns filmes. “Costumo dizer que foi ali que ‘o bichinho do cinema’ me mordeu”, conta dando risada. E, em 2019, ela subiu ao palco com a equipe do filme que integrou, para receberem o prêmio de melhor curta-metragem brasileiro, pela animação Apneia. “A Anne Lise de 2013, que esteve lá cobrindo o tapete vermelho, jamais imaginaria que esse dia chegaria tão rápido.” Anne Lise começou a trabalhar na área do audiovisual como assistente de produção e fala sobre o assédio

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que gostava mais de ficar do outro lado da câmera. O set de gravação é até hoje o que ela mais ama no cinema! “A correria, a resolução de problemas, gente gritando de um lado, gente resolvendo problema de outro, juntos até 7 horas da manhã naquela última diária, torcendo e rezando para que aquele último take dê certo. Passando perrengue junto, frio, tomando café o tempo todo.” Luísa é formada em Design de Moda pela UDESC, mas desde a faculdade se interessou pela criação de personagens, razão que a atraiu para o curso de teatro, fazendo uma bolsa dentro do figurino e rouparia das peças, usando o conhecimento da moda aplicado à produção teatral. A sua trajetória profissional se iniciou logo depois que voltou para Curitiba, a convite de um amigo para trabalhar como assistente de figurino em um curta metragem chamado Na chuva, no trovão ou na tempestade, o curta fez parte

Arquivo pessoal

Registro de sangue cênico.


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A mesma parte de um homem.

da compilação de um filme chamado Três Histórias Estranhas e passou no cinema do Shopping Mueller. Uma vez, durante a produção de um clipe, ela teve que transformar um vestido de noiva branquinho em um totalmente ensanguentado e depois deixar ele branquinho de novo. “Foi uma luta, porém, eu consegui”, ela conta, rindo com orgulho, depois reflete que no cinema, o profissional aprende a se virar. Um pouco antes de trabalhar Luísa entrou em vários círculos de conversa e começou a procurar mulheres que debatiam cinema e feminismo, pauta fundamental na sua vida. “Para mim, não existe falar de arte sem falar de feminismo, feminismo interseccional inclusive, que envolve questões raciais e de classe. Tudo isso engloba uma coisa só. E a gente vê muita representação superficial de realidades, que poderiam ter melhor estudo e aprofundamento, justamente pela ignorância em relação a esses temas.” Ainda sobre a questão de gênero, ela conta que nunca sofreu nenhuma dificuldade por ser mulher. Mas sabe que existe um preconceito de gênero nesse universo. “Não existe uma falta de mulheres diretoras, mas existe uma falta de mulheres sendo reconhecidas.” Ela aponta que isso não é algo local, mas, sim, uma situação que pode ser percebida inclusive em grandes premiações internacionais como no Oscar, oficialmente chamado de Prêmios da Academia. Ela acredita que isso está mudando porque as mulheres estão começando a gritar o próprio nome. Para ela, as mulheres sabem a qualidade do seu trabalho e serão levadas a sério, queiram, ou não queiram.

Irmandade.

Quando a Juliana Caimi foi fazer faculdade não existia um curso de Cinema em Curitiba, mas ela já sabia que queria fazer algo relacionado com a arte, então se formou em Rádio e Televisão, e depois fez pós-graduação em Comunicação Audiovisual e, também um curso de especialização em Cinema. Ela começou a carreira profissional em 2013, a função da Juliana dentro do audiovisual é a de produção. Ela acredita que, de todas as funções envolvidas dentro do cinema, a produção é uma das mais desvalorizadas. “Apesar de que, sem produção, não se faz filme!” A sua última experiência foi dentro do presídio ativo de Piraquara, onde ela trabalhou na série Irmandade, da Netflix. Nessa realização ela trabalhou como assistente de produção, na pré-produção e, depois, assumiu um cargo um pouco diferente do que já tinha feito. Trabalhou como assistente pessoal do protagonista, interpretado pelo Seu Jorge. “ Essa experiência me proporcionou conhecer outro lado da produção, convivendo diariamente com o ator e entendendo o processo criativo dele.” Ela compartilha que o que eu mais gostou neste trabalho foi que, no fim, ela produziu um show dentro do presídio. Como forma de agradecimento, a ajuda tanto aos funcionários quanto dos detentos. “Seu Jorge convidou o Mano Brown e o DJ Cia, e eles fizeram um show exclusivo. Um momento que vou lembrar para sempre.” Leia maisFilmografia, trailers e produções das sete mulheres citadas na reportagem. portalcomunicare.com.br

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Resistência, sempre! Valorizar a luta do movimento negro é reconhecer a história da formação do Brasil em sua totalidade Maria Cecília Zarpelon, Marina Prata e Sofia Magagin Foto montagem: Equipe/Reprodução

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Brasil não pode ser definido com uma única história, por mais que dezenas de gerações tenham aprendido a enxergá-lo assim. A história europeia e afro-brasileira têm perspectivas muito diferentes a respeito da formação do país, mas ambas representam recortes da construção social e cultural que influenciam diretamente no comportamento da sociedade até hoje. O legado do ativismo negro começou muito antes dos movimentos políticos e sociais que conhecemos. A militância não é exclusiva da contemporaneidade: ela está intimamente ligada à presença dos negros na história do Brasil. A base dessa luta é formada por grandes histórias, nem sempre conhecidas, que contribuem para a visibilidade da causa dentro de seus próprios espaços. Resgatar e conhecer as memórias que compõem esse movimento é fundamental para refletir sobre o passado e despertar atitudes que promovam um futuro mais igualitário. A hierarquia racial que ainda vigora no Brasil tem origens relativamente recentes na história do país e do mundo. Entre os séculos 16 e 19, a Europa

Janeiro (UFRJ) Amilcar Pereira, que estuda o cenário do ensino da cultura afro-brasileira. A dualidade que separava brancos e negros motivou políticas públicas que buscaram apagar os negros da História do Brasil. O processo de imigração subsidiado pelo Estado entre os séculos XIX e XX, teve como objetivo transformar o país em uma sociedade “moderna”, ou seja, branca. Foi uma tentativa de embranquecer uma nação originalmente miscigenada. “Esse processo resultou na base da formação educacional eurocêntrica que temos no Brasil até hoje, e que alimenta o racismo”, destaca Pereira. Contra essa ideia de modernidade europeia, surgem homens e mulheres que resistem ao processo histórico de inferiorização, opressão e dominação de pessoas não brancas. Por mais que o combate à desigualdade racial não fosse legitimado, a resistência sempre esteve presente nas senzalas e quilombos. “Desde o momento em que houve negros aqui no Brasil lutando contra as condições que lhes foram impostas, seja por liberdade ou melhores condições de vida, já temos o movimento negro”, conclui.

“Desde o momento em que houve negros aqui no Brasil lutando contra as condições que lhes foram impostas, já temos o movimento negro.” Amilcar Pereira, professor de História da UFRJ Moderna estabeleceu um ideal de diferenciação entre o europeu “civilizado” e os povos de outros continentes, considerados inferiores. Um dos elementos utilizados para consolidar essa ideia foi a distinção pela cor da pele. “Era necessário construir um aparato discursivo que legitimasse e justificasse aquela dominação da modernidade europeia sobre os outros povos do mundo”, aponta o professor da Universidade Federal do Rio de

De acordo com o professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Petrônio Domingues, o movimento negro no Brasil como conhecemos hoje, caracterizado por coletivos que lutam por direitos civis, políticos e sociais, surgiu no período pós-abolição. “Já havia o entendimento de que a Lei Áurea era insuficiente para a inserção social, política e econômica dos negros no país. Então, eles decidiram fundar

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associações com caráter cultural, beneficente, de mobilização e recreacional”, explica. Foi somente a partir dessa incansável luta, ao longo dos anos, que a sociedade em geral passou a reconhecer a existência do racismo e se sensibilizar sobre a necessidade de combatê-lo. “O movimento negro é precursor das políticas afirmativas que colocaram por terra o mito da igualdade racial”. Segundo Domingues, o reconhecimento da discriminação racial levou o movimento negro a um novo patamar, que trouxe conquistas expressivas para a comunidade negra. Foi na Constituição de 1988 que o racismo, antes considerado apenas uma contravenção penal, tornou-se oficialmente um crime. Além disso, em 2003 foi criada a Lei Federal 10.639, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história afro-brasileira nas escolas públicas e privadas, o primeiro passo para uma transformação cultural. No mesmo ano, o Governo Federal criou mecanismos para discutir questões raciais, como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Outro grande avanço ocorreu em 2012, com a implementação de cotas raciais que proporcionam o ingresso de negros e negras no Ensino Superior, como forma de tentar sanar a dívida histórica ocasionada pelos séculos de desigualdade social entre raças.

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PEQUENAS GRANDES HISTÓRIAS “O racismo nos atinge de forma violenta. Ele diz para nós por meio de atitudes, palavras, gestos, olhares, brincadeiras: ‘você é diferente, você tem um lugar diferente’. Isso nós vamos percebendo ao longo da vida”, relata a pedagoga aposentada e ativista do Movimento Negro Unificado do Brasil (MNU), Almira Maria Maciel. A militante, de 72 anos, se envolveu com o movimento muito cedo, quando vivenciou de perto o início da Ditadura Militar. A violência que presenciou despertou questionamentos e a fez refletir sobre a desigualdade racial, um assunto considerado tabu em seu ambiente familiar, mesmo sendo miscigenado. Foi em busca de conhecimento que Almira se envolveu com a causa e passou a participar ativamente de cursos, encontros e reuniões que discutiam o racismo no cotidiano das pessoas. “Aqui, a maioria da população negra sempre foi discriminada, teve sua humanidade negada e foi tratada como um objeto, em todos os sentidos. Mesmo convivendo com negros e negras, nós dizemos: ‘Não têm segregação aqui, não têm oficialmente, todas as raças convivem de forma harmoniosa’. Isso não é verdade”, reflete. Durante toda a sua trajetória, Almira buscou levar sua luta adiante. Fez isso como professora da rede municipal,

Nas colagens, Almira em sala de aula em 1978, família Maciel em manifestação e a ativista palestrando em evento.


trabalhando em regiões periféricas, onde casos de discriminação eram constantes. “Trabalhei com a perspectiva de coletivizar o debate, possibilitando um mundo em que o racismo não destrua a vida das pessoas como destrói.” Sua inquietação também foi transmitida para a família: hoje, a filha e a neta mais velha também são filiadas ao MNU. “Dada a concretude do racismo, é importante que o núcleo familiar se conscientize da necessida-

Dora reconhece que, diante de um ambiente racista e discriminatório, é significativo que as famílias incentivem a discussão sobre o preconceito. “Esse é um ponto muito importante na luta contra o racismo: a população negra sentir que ela vale a pena, que ela é importante, que ela tem talento, que pode dirigir qualquer lugar e estar em qualquer espaço.” Entretanto, a militante destaca que o tema, muitas vezes, é pouco discutido nas famílias

“Lá pelos 17, 18 anos, você leva um susto quando descobre que não é você que é feio, que não presta, são os outros que dizem isso por conta da sua cor.” Dora Lucia Bertulio, ativista de de resistir e buscar alternativas de igualdade e justiça”.

Nas colagens, Dora com seus pais, em sua formatura e atualmente na Corregedoria da UFPR.

A militância pela causa negra foi uma das maiores heranças que a catarinense Dora Lucia Bertulio recebeu de seu pai. Nascida em Itajaí, uma cidade absolutamente segregada onde os negros e brancos não podiam frequentar os mesmos lugares, Dora cresceu em uma família privilegiada de conhecimento, na visão dela. “Eu tinha muita segurança naquilo que a gente era, muito respeito por nós mesmos. Sabia que os outros eram responsáveis pelos maus tratos que aconteciam por conta do racismo, nunca a gente. Meu pai sempre dizia: ‘Você não é menor por isso’”, conta.

brasileiras, frente ao cenário de maus tratos, humilhação e subjugamento que desencoraja o debate. O pai de Dora era um sindicalista, integrante do Partido Comunista, que foi preso pela Ditadura. Foi também um dos fundadores da Sociedade Cultural e Beneficente Sebastião Lucas, o primeiro clube catarinense de raça negra, que se tornou referência na região. A sua busca por justiça motivou a filha a estudar Direito e seguir seus passos no ativismo. “Lá pelos 17, 18 anos, você leva um susto quando descobre que não é você que é feio, que não presta, são os outros que dizem isso por conta da sua cor.” Dora faz um paralelo entre a discriminação racial e uma série de outros movimentos segregacionistas que condenam pessoas por serem simplesmente aquilo que são. Diante disso, ela acredita que entrar para o ativismo é fazer a diferença nos espaços ocupados na sociedade. Nesses anos de dedicação ao movimento negro, Dora faz questão não só de estar presente nesses ambientes, mas de possibilitar que outros façam o mesmo. Ela foi uma das responsáveis pela implementação do sistema de cotas para negros no Paraná, e foi reconhecida como ‘Personalidade

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Afro-Paranaense’ pelo governo do estado, em 2017. Atualmente, Dora atua na Procuradoria Geral da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

que meu pai chora muito lá de cima por ver essa entidade viva depois de tanto tempo. Se não fosse eu, o clube não existiria mais”, conta.

Assim como seu pai, a ativista se esforça para sensibilizar os familiares e pessoas próximas a conhecerem, agirem, interferirem e serem proativos na causa. “Desde uma ida ao mercado, uma propaganda que passa na TV a um comentário de um político, estou sempre fazendo as pessoas ao meu redor verem os dois lados da moeda.”

Sandro Fernandes tem tanto orgulho da história de sua família que fez dela seu objeto de estudo. O historiador, de 50 anos, se dedicou a pesquisar o passado de sua cidade natal e entender como as relações raciais moldaram Guarapuava ao longo do tempo. Em 1864, quando o local era apenas uma província que pertencia a Antônio de Sá Camargo, intitulado Visconde de Guarapuava, o tataravô de Sandro era escravo daquelas terras. Campolim de Sá Camargo carregava o sobrenome de seu proprietário, mas não podia passá-lo a seus filhos, que foram nomeados Silva.

LEGADOS DA LUTA A Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, em Curitiba, faz parte não apenas da história do movimento negro paranaense, mas também da memória da própria cidade. A primeira instituição voltada para afrodescendentes no estado foi fundada em 1888, logo após a abolição da escravatura no Brasil, com o objetivo de oferecer assistência e alfabetização aos escravos recém-libertos e suas famílias. Há quatro décadas, Álvaro da Silva herdou do pai o cargo de presidente do clube. O senhor de 72 anos frequenta a Sociedade desde menino, quando sua família se mudou de Joinville para a capital paranaense. Foi a partir daí que a história de pai e filho se uniu à história da 13 de Maio. “Meu pai era barbeiro, foi apelidado de ‘Garoto da Saldanha’, pois era muito conhecido e conhecia todo mundo. Foi em um rolê que ele se esbarrou com o clube dos negros aqui e foi convidado para compartilhar a diretoria”, recorda. Álvaro se lembra de ir a muitas festas que eram promovidas para arrecadar fundos, principalmente a tradicional gafieira de domingo, que não podia faltar. Depois da morte do pai, Álvaro seguiu o mesmo caminho. “Ele me chamou para ajudar no clube e eu fiquei até hoje. Meu pai teve os últimos dias de vida na 13”. Depois de 132 anos de história e algumas dificuldades, o legado da Sociedade é motivo de orgulho para Álvaro. “São poucos clubes hoje que aguentam, e eu estou vivo e resistindo ainda. É uma coisa fantástica. Acho

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O filho de Campolim, Bento José da Silva, foi um dos responsáveis pela construção de um dos espaços sociais negros mais tradicionais da região, o Clube Social Rio Branco. Fundado em 1919, o local tinha como função promover o lazer, a confraternização e a ajuda mútua para os ex-escravos e seus descendentes. Sandro se lembra de frequentar o clube criado por seu bisavô desde criança. Os carnavais do Rio Branco têm um lugar especial em sua memória. Mas foi apenas quando ingressou na faculdade de História, que ele começou a refletir sobre a trajetória de sua família com o clube, e decidiu iniciar sua pesquisa. “Os negros faziam questão de registrar a inserção deles na sociedade e na produção cultural de Guarapuava em fotografias. Por meio desse acervo documental, que data do fim dos anos 1950 até os anos 1980, comecei a reconstruir a trajetória do Rio Branco”, relata. A partir da década de 1980, os clubes no Brasil perderam relevância como lugares de sociabilidade, e o Rio Branco não resistiu à tendência. Hoje, ele existe apenas na memória das pessoas, eternizado na pesquisa de Sandro e na figura do atual presidente, filho do tio-avô do historiador. “A ideia de retomar o clube como

Álvaro herdou a presidência da Assossiação Beneficente 13 de Maio do pai, há mais de 40 anos.


um centro cultural me agrada. Ser um lugar em que as pessoas podem contar, rever e entender a importância da cultura afro-brasileira até hoje no país.” Sandro entende que histórias como as de sua família são importantes para mostrar que a luta dos negros pela construção de um espaço social igualitário existe há muito tempo, e que elas refletem uma trajetória comum no país inteiro. “Nós falamos de coisas tão distantes da gente, sendo que têm histórias tão próximas para serem contadas. Essas trajetórias de vida, de pessoas, lugares e grupos negros são importantíssimas para construir efetivamente a história da nação brasileira, de norte a sul.”

Nas colagens, a fachada do Clube Rio Branco em 1990, o bisavô de Sandro e fundador do clube, Bento José da Silva e a família atualmente (Sandro à esquerda, de camiseta preta e Francisco ao centro, de boné).

“A primeira vez que eu ouvi sobre o meu passado foi pela minha mãe. Ela comentava sobre o meu tetravô, que tinha sido escravo”, relembra o sobrinho de Sandro, Francisco Fernandes, de 17 anos. Porém, somente ao ser vítima de racismo o jovem percebeu que, infelizmente, a discriminação não faz parte apenas do passado da família. “O pesadelo começou quando passaram a me excluir, fui apelidado de ‘King Kong’ por ser o mais moreno do colégio. Além disso, os próprios professores pegavam no meu pé, riam e falavam de mim para os outros alunos da minha sala”, relata Francisco. Apesar de ter sofrido por anos, hoje o rapaz sente orgulho de contar sua história. “Me chamavam de negro e eu ficava

triste. Hoje em dia me chamam de moreno e eu não aceito, quero ser chamado de negro, porque eu sei de onde eu vim e tenho muito orgulho.” Mesmo tão jovem, Francisco já pretende usar sua voz para inspirar outras pessoas por meio da música, falando sobre a luta negra em suas letras de RAP. Ele espera levar a mensagem que aprendeu às próximas gerações. “Quero manter isso para o meu futuro, meus filhos, para que eles tenham conhecimento do que foi o nosso passado, do que nós passamos. Nosso sangue é de escravo.” Combater o racismo e acabar com a estrutura de desigualdade é um dos principais pilares para construir uma sociedade democrática de fato. É fundamental reconhecer o lugar de fala e protagonismo dos negros e negras na luta contra a desigualdade racial, mas isso não inviabiliza a participação de todos, já que objetiva uma sociedade mais igualitária. A luta contra o racismo no Brasil é uma luta do Brasil inteiro.

A militância não é vilã A vilanização do ativismo tem crescido e a causa negra é um dos principais alvos do ódio de grupos extremistas que encontram força nesse discurso. portalcomunicare.com.br

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