Revista Primeira Mão - Edição 157. Setembro 2019.

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Terceirizados no Brasil: da regularização à precarização

O novo desafio das universidades

157 | setembro 2019

A crise da educação no Brasil não é crise; é projeto

edição

PRIMEIRA MÃO

PR I M E I R A MÃO

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PR I M E IRA M ÃO


PR I M EI R A MÃO Revista laboratorial produzida pelos alunos do 6° período do curso Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

EQUIPE

S

empre idealizamos como seria produzir uma revista só nossa, mas não esperávamos que fosse num contexto de ataques à educação pública, ao exercício do jornalismo e sobretudo à democracia. Por isso, com o compromisso de levar informação ao leitor, traremos entrevistas exclusivas e análises críticas sobre as causas e efeitos do desmonte à educação pública em áreas como trabalho, saúde e pesquisa. Para iniciar a nossa jornada, vamos discutir sobre o projeto político de privatização da educação pública que utiliza das tentativas de descredibilização e ataques morais aos espaços e ao corpo acadêmico das instituições federais. Com isso, iremos discutir como o papel da universidade vai muito além da relação aluno-professor. Os servidores, peças fundamentais no funcionamento e manutenção da estrutura universitária, são uns dos primeiros a serem afetados pelos cortes de verba do Governo Bolsonaro. Em seguida, evidenciaremos como esses mesmos cortes no orçamento têm contribuído com a negligência e precarização dos serviços de saúde pública. O Hospital Universitário, por exemplo, além de ter grande importância educacional, presta serviços à comunidade externa. E você vai conferir nossa opinião sobre a privatização do SUS. Falaremos como os cortes afetam não só as universidades, mas também a educação básica. Embora o presidente da república tenha declarado que os investimentos no ensino fundamental e infantil iriam aumentar após o congelamento de verbas, a realidade é bem diferente. Os professores e diretores dessas escolas dizem não ter perspectiva de melhora. A alternativa encontrada pelo governo foi o Future-se, uma medida descabida que tem gerado polêmica em toda comunidade acadêmica. A proposta retira do Estado as responsabilidades de gestão da educação pública. É com muita expectativa que nós da turma de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), iniciamos uma nova fase à frente da Revista Primeira Mão e desejamos a você uma ótima leitura.

Agnes Gava, Barbara Catharine, Beatriz Moreira, Bethania Miranda, Cássia Rocha, Cecilia Miliorelli, Clara Curto, Gabrielly Minchio, Heloísa Bergami, Isabela Luísa, Jonathan Neves, José Renato Campos, Karla Silveira, Laís Batista, Larissa Tallon, Letícia Soares, Marcos Federici, Maria Pelição, Matheus Andreatta, Milena Costa, Pedro Cunha e Weslley Vitor.

E D I TO R E S Bethania Miranda, Jonathan Neves, Larissa Tallon e Pedro Cunha.

D I AG R A M A D O R E S Beatriz Moreira, Heloísa Bergami, Marcos Federici e Maria Pelição.

PROFESSORA O R I E N TA D O R A Yasmin Gatto

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PR I M E I R A MÃO

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06 10 A CRISE DA EDUCAÇÃO NO BRASIL NÃO É CRISE; É PROJETO

Como a propagação de discursos de ataques morais colaboram para a descredibilização das instituições federais. Por Cássia Rocha

VIVÊNCIA UNIVERSITÁRIA PARA ALÉM DO ENSINO

Como os servições ofertados pela Ufes e a vivência universitária constribuem para a sociedade e transformam vidas. P o r W e s l l e y V i to r

12 14 UNIVERSIDADE PÚBLICA COMO PROJETO

NA UFES SÓ TEM DROGADO

P o r B e at r i z M o r e i r a

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primeira mão

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sumário

O sucateamento das universidades públicas se mostra como um processo histórico que ganhou força nas últimas eleições. P o r I s a b e l l a d e P au l a

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TERCEIRIZADOS NO BRASIL: DA REGULARIZAÇÃO À PRECARIZAÇÃO A terceirização gerou ainda mais precariedade nas condições de trabalho dos brasileiros. Por Letícia Soares

PR I M E IRA M ÃO

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SEM DINHEIRO E COM FUTURO INCERTO, TERCEIRIZADOS SOFREM COM OS CORTES DA UFES

A limpeza teve uma redução de 70% em seu quadro de prestadores de serviço desde o início do segundo semestre Por Gabrielly Minchio e Karla Silveira


sumário

A QUEM INTERESSA O DESMONTE DA SAÚDE?

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HUCAM É ESSENCIAL PARA FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE UNIVERSITÁRIOS

primeira mão

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Por Isabela Luísa, Larissa Tallon e Matheus Andreatta

O hospital é o lugar onde a sala de aula encontra a vida real, para os estudantes do Centro de Ciências da Saúde da Ufes. Por Bárbara Catharine e Larissa Tallon

28 25 COMO OS COR-

TES AFETAM O FUNCIONAMENTO DO ENSINO PÚBLICO BÁSICO BRASILEIRO Mudam-se governos e a educação pública básica ainda é uma questão mal resolvida no Brasil. P o r I s a b e l l a d e P au l a

O NOVO DESAFIO DAS UNIVERSIDADES

O governo federal dá seguimento a sua política de desmonte das universidades públicas e apresenta o Future-se, um polêmico programa que causa dúvidas na comunidade acadêmica. P o r José Renato Siqueira Campos

30 36 O DESMONTE ILUSTRADO

P o r A g n e s G ava , C l a r a C u r to e H e lo í s a B e r g a m i

CHARGE

P o r M a r i a P e l i ção

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S OCIE DA D E

A crise da educação no Brasil não é crise; é projeto

Como a propagação de discursos de ataques morais às instituições federais de ensino colaboram para a descredibilização desses espaços. Cássia Rocha Apesar de ter sido proferida na década de 70, a frase que intitula essa reportagem foi dita pelo antropólogo e político Darcy Ribeiro e soa com total contemporaneidade. E como todo projeto é desenvolvido a partir de processos, uma das estratégias dos apoiadores da privatização da educação é a desconstrução sócio-cultural da imagem de instituições federais, que acontece por meio de ataques morais à sua produção e atividades realizadas nesses espaços. Há alguns anos, ser estudante ou até mesmo ter um parente que estudasse em instituições federais era motivo de orgulho para muitas pessoas. Porém, de uns tempos 66

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para cá, um discurso de ataque à esses espaços vêm tomando proporções significativas, tornando-se bastante comum a utilização de jargões que os descredibilizam. A propagação da crença que taxa esses locais como âmbito de ociosidade e “maus hábitos”, além de colocá-los como um “gasto exacerbado” para os cofres públicos, colabora para a imposição da ideia de necessidade de privatização. Diante desse contexto, ressaltar a relevância do que é feito nas instituições de ensino público e gratuito, além de defender a autonomia universitária e a pluralidade de ideias é um ato de resistência.


Estudante tá na universidade só pra fumar maconha e fazer suruba - Olavo de Carvalho

Quando fala-se em pesquisa, as universidades públicas federais despontam como principais produtoras de ciência do país. De acordo com dados da base Web of Science, compilados pela Clarivate Analytics, a pedido do Jornal da USP, das 50 instituições que mais publicaram trabalhos científicos no Brasil nos últimos cinco anos, 44 são universidades, dentre elas, 36 são federais, seguidas de 7 estaduais e uma particular. Além disso, a contribuição da pesquisa na formação profissional dos estudantes é de extrema relevância. Letícia Rosário é estudante de Ciências Biológicas na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) atua no Laboratório de Genética Animal (LGA) e participa de seu terceiro projeto de Iniciação Científica. Para ela, a pesquisa é sobre dar sentido ao que se aprende na sala de aula, aplicando aquilo à um projeto, a um novo saber. “Eu sou muito grata desde o momento da minha aprovação na Universidade. A gente realiza projetos fantásticos e isso volta para a sociedade. Além disso são professores, pesquisadores e profissionais sendo formados”, afirma Letícia. Ainda de acordo com a estudante, os cortes que vêm ocorrendo são bastante prejudiciais, pois várias atividades de pesquisa e extensão que atendiam não só à comunidade universitária como também à comunidade externa, estão perdendo sua continuidade. “O momento em que nós passamos é triste e desmotivador, pois não temos a garantia de que teremos todos os recursos necessários para uma aula de qualidade”, conclui.

LETÍCIA ROSÁRIO APRESENTOU SUA PESQUISA NO 4TH B-CHROMOSOME C O N FPR ERE N CEEI R E MA2 MÃO 018. IM

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N AT H Á L I A L U C H I S E G U E C O M A S AT I V I D A D E S D E I N S T R U Ç Ã O D E D A N Ç A MESMO APÓS A SUSPENSÃO DAS BOLSAS.

Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas - Abraham Weintraub (Ministro da Educação)

Já no âmbito dos Projetos de Extensão a consciência sobre a importância dessas atividades é nítida para os estudantes que as exercem. Nathália Luchi cursa Educação Física na Ufes e participa do Núcleo de Pesquisa em Ginástica (NPG) e da Residência pedagógica - atividade extracurricular de dança realizada com alunos de escolas públicas da comunidade externa , além de 8

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ser Instrutora no Projeto Dança Ufes, que é aberto estudantes e servidores da comunidade acadêmica e ao público geral. Nathália considera sua participação no NPG um enorme diferencial para a sua formação, pois além da atividade física colocada em prática, o projeto conta com reuniões para discussão de conteúdo, grupos de pesquisa e minicursos. “No NPG nós aprendemos a desenvolver as atividades, mas também a ensiná-las, o que é essencial na formação de professores”, destaca. Para a estudante, o corte nas bolsas dos instrutores, colocou em risco a oferta de aulas para a comunidade externa, o que Nathalia considera prejudicial para todos. Sobre o projeto em que atua como instrutora, ela decidiu seguir como voluntária, mesmo com o impacto dos cortes. “Perdi a bolsa, mas decidi seguir com o projeto porque eu sei o quanto que ele tem mudado o dia a dia de quem participa. Além disso é uma atividade que colabora bastante a diminuir a pressão da vida acadêmica”, salienta.


Federal é lugar de doutrinação

Há também aqueles que chegaram à Universidade “no olho do furacão”, esses conhecem as oportunidades que uma instituição oferece mas estão cientes de que correm o risco de não poder usufruir delas. Alvaro Candotti é calouro do curso de Administração na Ufes, além disso, ele também fala da perspectiva da pessoa com deficiência (PCD). Para o recém ingresso, a chance de participar de projetos garantem enriquecimento nos âmbitos pessoal e profissional. “Já tive a oportunidade de interagir com a EJCAD, que é uma empresa júnior que presta consultoria à pequenas e médias empresas capixabas. Posso citar também o Programa de Educação Tutorial (PET) que oferece aulas de reforço para as matéria de administração”, coloca Alvaro. A satisfação em descobrir todas as possibilidades da Universidade encanta, mas, apesar disso, o receio em relação à instabilidade assombra os novos alunos. “Estou bastante feliz em poder ter essas oportunidades, que até então não sabia da existência, mas com os cortes de gastos o futuro desses projetos é incerto”, completa o estudante. Cadeirante, Alvaro conta sobre as dificuldades de portar uma deficiência e aponta que problemas na infraestrutura da instituição prejudicam a acessibilidade do local. “Enfrento algumas dificuldades de locomoção por conta da estrutura física ser bem antiga, mas, em contrapartida, recebo o auxílio do departamento Núcleo de Acessibilidade da UFES (NAUFES) que documenta as minhas queixas e as encaminha para a reitoria para que sejam tomadas AMesmo com as objeções, Álvaro faz questão de ressaltar a importância da multiplicidade e pluralidade que a universidade proporciona. “Gosto muito de estudar aqui, sou bastante grato. Tenho evoluído muito e considero super importante conviver com realidades diferentes da minha” salienta. A educação pública, gratuita e de qualidade é um direito garantido pela constituição. Sucatear e descredibilizar essas instituições representa uma ameaça ao presente e futuro do país, visto que toda nação em crise investe em educação a fim de reverter o quadro e, como afirmou o Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, não fazê-lo é incoerente com a importância do setor para o desenvolvimento nacional. Educação não é gasto, é investimento. Á LVA R O C A N D OT T I E N T R O U N A U N I V E R S I D A D E F E D E R A L EM 2019 E CONVIVE COM A REALIDADE DE CORTE DE C U S T O S D E S D E O I N Í C I O D E SPR U A IJM O RENIARDA A AMÃO C A D Ê M I C A9 .


S OCIEDA D E

Vivência Universitária para além do ensino Como os servições ofertados pela Ufes e a vivência universitária constribuem para a sociedade e transformam vidas. Weslley Vitor A Ufes oferece ensino gratuito e de qualidade para a sociedade capixaba e brasileira, mas quem pensa que a universidade é sinônimo somente de aulas, provas e trabalhos escolares, há muito mais a descobrir. A base de uma universidade pública é o tripé ensino, pesquisa e extensão, e o resultado da soma destes fatores é a formação profissional de qualidade. Numa segunda-feira às 21h49 da noite, na cidade de São Paulo, o contador Raphael Simões se despede por telefone da nossa equipe de reportagem em Vitória. Simões formou-se pela Ufes em 2017 e atualmente trabalha na área de auditoria interna de uma empresa nacional na capital paulista, onde vive com outros três egressos da Ufes. “Eu formei em contabilidade, um é do curso de ciências da computação, um de biologia e outro de engenharia química, nos conhecemos na Ufes. Tivemos poucas experiências de mercado durante o curso, mas a vivência na universidade pública nos proporcionou conhecimentos além da sala de aula e hoje todos estão trabalhando em grandes empresas aqui em São Paulo”, reflete Simões. Aos 17 anos Raphael Simões ingressou na Ufes como calouro, e durante sua jornada acadêmica participou de empresa júnior, movimento estudantil e organização de eventos estaduais e nacionais no curso de ciências contábeis, onde exerceu liderança e desenvolveu competências e habilidades pessoais. “Você entra com um sonho, um objetivo, acredita

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que vai entrar, estudar e sair formado num curso, mas ao longo do tempo se desenvolve e sai transformado pela vivência universitária”, analisa Simões. Essa vivência para ele começou bem antes de passar no vestibular, quando ainda era criança. PROJETOS DE EXTENSÃO: O V Í N C U LO E N T R E A UNIVERSIDADE E A SOCIEDADE A Ufes oferece diversos serviços de ensino e extensão que têm como objetivo a integração entre a comunidade universitária e a sociedade como um todo, principalmente para as cidades ao redor dos campi universitários da Ufes em Goiabeiras e Maruípe, na cidade de Vitória, e os campi de Alegre e São Mateus, no interior do Espírito Santo (ES). Serviços da área de saúde, por exemplo, são realizados de forma gratuita por meio do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes e as clínicas de atendimento especializado, que servem como aulas práticas para os estudantes e atendimento para milhares de pacientes de todo ES e de estados vizinhos, como Bahia e Minas Gerais. Mas não para por aí, são centenas de projetos que integram e atendem gratuitamente a sociedade, como o Núcleo de Práticas Jurídicas, Hospital Veterinário, projeto idosos em movimento, cine escola, Instituto de Odontologia, coral, sistema de bibliotecas, cursos de idiomas, cinema, Teatro Universitário, editora, Rádio Universitária, Museu de Ciências da


Vida, Observatório Astronômico e Planetário de Vitória, isto só para citar alguns dos serviços prestados à sociedade. Para Rogério Borges, Secretário de Cultura da Ufes, “teatro, cinema, rádio, museus e outros serviços ofertados de forma gratuita para a comunidade é papel principal no cumprimento da função social da Ufes, onde a sociedade se aproxima da universidade”. Segundo dados do secretário, são recebidos em média 3 a 4 mil estudantes da rede de ensino básico somente no Teatro Universitário, e a maioria destes têm o primeiro acesso à cultura por meio da Ufes. Segundo Borges, “a cultura é um forte elo entre a academia e a comunidade externa; os serviços de cultura estão dentro de um processo que dão sustentabilidade ao três pilares da universidade: ensino, pesquisa e extensão”. Foi neste ambiente que Raphael Simões teve um dos primeiros contatos com a Ufes. No Planetário de Vitória, localizado no campus de Goiabeiras, Simões recebeu a premiação de 1º colocado numa olimpíada de astronomia aos 11 anos de idade e se recorda até hoje deste momento. Outra fase que marcou sua vida pré-universitária foi os participar durante três anos de um grupo escoteiro de Vitória, que realiza suas atividades dentro do campus de Goiabeiras. Ele tem consciência da importância de preservação da universidade pública e de tudo que ela oferece. “Hoje a educação está ameaçada e sucateada, é necessário manter minimamente uma infraestrutura adequada, ventilação nas salas de aula e laboratórios em funcionamento. Educação não se faz apenas com pagamento de salários dos professores”, revolta-se ele ao falar das notícias de cortes de gastos na educação pública. “Se me perguntassem lá atrás, aos 17 anos, eu diria que iria entrar, estudar e ir embora, mas entrei sem imaginar tudo que viveria na Ufes. Mesmo com dificuldades e falta de infraestrutura, há diversas opções de ocupação do espaço universitário. Se eu puder dar um conselho, é para que as pessoas vivam a universidade e tudo que ela pode oferecer”, conclui Simões, que atribui seu sucesso principalmente à vivência universitária. PR I M E I R A MÃO

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ED UCAÇÃO

Universidade pública como projeto

O sucateamento das universidades públicas se mostra como um processo histórico que ganhou força nas últimas eleições. Isabella de paula Terceiro ano do ensino médio, vestibular e o tão sonhado momento de ingresso em uma universidade pública. Esse é o desejo de grande parte dos jovens brasileiros hoje. Mas a realidade caminha por outras vias. Escolher uma área a seguir para o resto da vida não é uma tarefa simples. Passar quatro ou mais anos de estudo e dedicação, sendo testado por provas, aprender teorias e aplicações, tendo que, muitas vezes, virar madrugada à fora com uma garrafa de café ao lado tem lá suas consequências. Contudo, mesmo assim, a aprovação em uma instituição de ensino público faz muitos corações palpitarem mais forte. A estudante de publicidade e propaganda da Universidade Federal do Espírito Santo, Camilla Emanuele Morais, relembra como foi a experiência de ingressar no ensino superior público no curso dos sonhos. “Lembro que chorei bastante por ter conseguido entrar na federal e ainda ser no curso que eu queria”. Mas como nem tudo são flores, Camilla explica que junto à felicidade de iniciar um novo ciclo veio uma questão importantíssima: Como se manter longe de casa. Mudar de estado, alugar um apartamento e bancar os gastos pessoais. Esse problema coloca em xeque a formação acadêmica de muitas pessoas. A estudante faz parte do grupo de alunos que recebem assistência estudantil que, segundo ela, é um recurso importante e que faz diferença em sua rotina de despesas. “Apesar de não ser muito, o auxílio ajuda a me manter aqui no estado”. Para muitos, a universidade pública é o único meio de entrar no ensino superior. Segundo dados divulgados pela Associação Nacional dos dirigentes das instituições federais de ensino superior (ANDIFES), 70,2% da comunidade acadêmica 12 PR I M E IRA M ÃO

das universidades federais é composta por alunos com renda inferior a um salário mínimo e meio por membro familiar. O aumento de estudantes com esse perfil socioeconômico só foi possível a partir de políticas públicas de cotas e assistência estudantil. Entretanto, com as últimas medidas apresentadas pelo Governo Federal, tais ações não estão sendo mais garantia de permanência desses universitários nas instituições. O ministério da educação, MEC, no final de abril deste ano, tomou a iniciativa de bloquear parte do orçamento disponibilizado para as universidades e institutos federais de todo o país. O congelamento dos valores foi aplicado sobre os gastos não-obrigatórios como por exemplo com água, luz, terceirizados, auxílios e pesquisa. Os gastos obrigatórios com salários de servidores e


aposentadorias foram mantidos. No total, o valor contingenciado foi de 1,7 milhões de reais, do total de 49,6 bilhões de reais. A justificativa para tal ação apresentada pelo ministro Abraham Weintraub foi que a arrecadação de impostos se mostrou menor do que o previsto e por isso, a medida de bloqueio foi acionada. Caso haja um aumento na arrecadação, esses valores podem voltar a ser lançados para o ensino superior público. Para João Vitor, que é estudante da Universidade Federal do Espírito Santo e utiliza o serviço de assistência estudantil, a questão é preocupante. “Para esse ano, o orçamento disponível de recurso aprovado foi muito baixo, hoje a gente já enxerga um hankeamento dos assistidos e isso é preocupante”. O estudante explicou que antigamente todos os alunos que ingressavam na ufes com cotas de um e meio per capita de salário garantia, automaticamente, o auxílio. Contudo, devido ao contingenciamento, a situação é outra. “Hoje temos um grande contingente de pessoas aptas, por direito, a receber o auxílio, porém não estão recebendo devido esse hankeamento”, enfatizou. O professor universitário e mestre em ciência política, Mauro Petersem Domingues, destaca que esse bloqueio de verba não aconteceu apenas pelo fato de se ter arrecadado menos impostos nesse primeiro semestre do ano, mas é também um ato político de incentivo ao neoliberalismo em retaliação ao regime democrático de direito.

O governo prefere simplesmente impor as suas necessidades a um conjunto de elites mais fáceis

“É mesmo interesse de grandes empresas e de outros países mais fortes que não se dê relevância a demandas locais, como os incentivos e assistências na educação pública. Pelo contrário, o governo prefere simplesmente impor as suas necessidades a um conjunto de elites mais fáceis de controlar e realmente o regime democrático exige uma maior consideração aos interesses dos povos, o que não se vê no atual governo”. Diante do sucateamento do ensino público, resta aos estudantes unirem forças e resistirem. Prova dessa resistência se mostra em manifestações públicas como as que foram realizadas nos últimos meses nas ruas de Vitória. Além disso, nunca se mostrou tão importante a valorização de trabalhos dentro do universo acadêmico, a produção científica e outros meios de propagação de conhecimento. Como bem colocado por Nelson Mandela em um de seus discursos: “A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”. E é por esse motivo que governos tem descredibilizado e desqualificado o ensino superior público, pelo facilidade de controle da sociedade. PR I M E I R A MÃO

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CRÔN ICA

Na Ufes só tem drogado Beatriz Moreira Caro leitor, antes de começar minha história, peço que abra seu facebook e pesquise o nome do primeiro jornal que lhe vier em mente, entre no perfil dele e procure uma matéria sobre o recente corte de verbas nas universidades públicas. Encontrou? Agora se dedique a ler os comentários, depois volte para ouvir o que tenho a contar. Vamos lá! Foi no ensino fundamental I que ela, assim como muitos estudantes de escola pública, teve o primeiro contato com droga. Dá pra imaginar? Uma criança! É duro aceitar que isso aconteça. Mas foi assim, mesmo Karini Bergi estudando em uma escola em que a comunidade escolar tivesse cuidados redobrados para executar uma pedagogia que atendesse a todos os alunos de forma igualitária... ela teve problema com droga. Tem gente que não sabe aproveitar as boas oportunidades, não é mesmo? O tempo foi passando, e mudar de escola pareceu ter cessado o problema. Agora no ensino fundamental II, em uma nova escola pública, que acabara de ser construída, Karini finalmente ficou afastada das coisas erradas. Uma vez, ouvi dela, que naquele local ela havia adquirido uma base muito forte de conhecimento e perspectiva no ensino. A escola Dom José Mauro era incrível, queria eu que Karini e os outros alunos de escola pública tivessem passado apenas por escolas assim, livres de droga. Lá o corpo pedagógico tinha forte autonomia e estrutura para promover atividades socioculturais com os alunos. Mas meus amigos, como nem tudo são flores, e velhos vícios podem retornar quando menos se espera e aconteceu aquilo que você já deve imaginar… Sim, Karini voltou ao mundo das drogas. Uma garota com visão abrangente e preocupada com as causas sociais estava se for14 PR I M E IRA M ÃO

mando, pena que o velho problema persistia. Mas passar o primeiro ano do ensino médio na escola Clotilde Rato foi um marco na vida da menina. Lá, Karini teve um contato forte com a sociologia e com conhecimentos a respeito dos conflitos sociais e institucionais. E, com isso, ela entendeu a necessidade de se defender o ensino público, que, mesmo sendo um ambiente propenso à presença das más influências, era, e é, a única oportunidade de muitas pessoas completar o ensino básico e ingressar tanto no ensino superior, como também estar apto a enfrentar o mercado de trabalho. No segundo e terceiro ano do ensino médio, em outra escola mais perto da casa onde morava, o problema continuou indo atrás de Karini, e parecia cada vez mais latejante. Sabendo do monstro que rodeava os alunos, os professores tentavam, a todo tempo, envolvê-los politicamente com o ensino público gratuito e de qualidade, como uma forma de salvação. Principalmente, porque a maioria deles também haviam estudado em escolas públicas e tido que lidar com as drogas. Algumas vezes, até mais pesadas e sabiam que professores dedicados podem ajudar os alunos a ter um bom futuro. Hoje, Karini Bargi, está com 20 anos e seu futuro, infelizmente, ainda é lutar contra o mal que parece pairar sobre o ensino público... Mas calma, antes de eu terminar a história, lembra que lá no início eu te pedi para ler comentários a respeito dos cortes nas universidades? Garanto que você leu coisa do tipo “O governo não tem que sustentar drogado!”, “Os alunos só vão pra universidade para fazer balbúrdia”, acertei não é? Pois então, ao contrário de muitos que escrevem “textão” para rebater, eu escrevi para concordar. Sim!


Karini é um claro exemplo de quem teve que conviver com as drogas desde cedo: a droga de um governo que não valoriza o potencial do ensino público em nosso país e a droga de uma escola com infraestrutura precária. Hoje, ela cursa Ciências Sociais na Ufes, e lida com antigas e novas drogas: a droga do corte de bolsas, a droga de materiais sem manutenção, a droga de funcionários sendo demitidos em grande escala, a droga de obras paralisadas sem previsão de entrega, a droga de pesquisas científicas tentando se sustentar com poucos recursos… E agora, além de um

governo que destrói nossa educação, a droga de uma parcela da sociedade que, através de uma tela, comemora suas perdas. Mas, caro leitor, imagine só, uma universidade que mesmo com tanto descaso, entrou, em 2019, na lista do Times Higher Education (THE), um dos principais rankings universitários do mundo. Mesmo com suas grandes balbúrdias na qualidade de ensino, transferência de conhecimento e pesquisa, imagina se a universidade pública tivesse seu valor reconhecido, como seria?

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TRABA L HO

Terceirizados no Brasil: da regularização à precarização A terceirização foi regulamentada o país com o objetivo de ajudar na recuperação da crise econômica do país. Entretanto, a mudança gerou ainda mais precariedade nas condições de trabalho dos brasileiros. Letícia Soares Há quatro anos, os brasileiros vivenciaram a pior recessão da economia em 25 anos. De acordo com dados do IBGE, o Produto Interno Bruto (PIB) encolheu 3,55% em 2015. O retrocesso não era tão grande desde 1990, quando a queda foi de 4,35%. Neste mesmo cenário, o alto índice de desemprego também assusta. Como causa e consequência da crise econômica de 2015, dois anos depois, a quantidade de pessoas desempregadas alcançou a marca de 12,7%, segundo o IBGE. O número, que era de 6,7 milhões de brasileiros em 2012, dobrou em apenas 5 anos, chegando a 13,7 milhões de pessoas. Diante desse quadro crítico, as propostas de Reforma Trabalhista e Lei da Terceirização foram apresentadas durante o governo Temer (2016-19). Para seus defensores, elas eram uma esperança para a geração de novos empregos e o reaquecimento da economia. Ambas foram aprovadas em 2017 e acarretaram mudanças significativas no mercado de trabalho.

Desde 1993, para regular o trabalho terceirizado, embasavam-se unicamente no entendimento do TST, estabelecido pela súmula n° 331.

Em 1986, a súmula n° 256 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), passou a permitir a terceirização no setor de vigilância, além dos casos já estabelecidos na lei 6.019.

Hoje, essa súmula não é mais válida.

A primeira legislação brasileira a se referir à terceirização é de 1974. A lei 6.019 criou o

LEGISLAÇÃO SOBRE TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL 16 PR I M E IRA M ÃO

trabalho temporário no país, que era autorizado apenas em duas hipóteses: para substituir um trabalhador permanente e nos casos de aumento excessivo de serviço.


A lei 4.330 foi aprovada em 2017

A principal mudança entre a lei proposta e a súmula n° 331 é que, agora, as ativi-

PRINCIPAIS MUDANÇAS DA REFORMA TRABALHISTA

dades fim de uma empresa também poderiam ser terceirizadas. Até então, a terceirização só era permitida para as atividades meio.

Os acordos coletivos tem mais força do que a legislação. Sendo assim, o que for combinado entre empregado e empregador não é vetado

Logo, nenhuma lei específica no Brasil regulamentava a terceirização. Até que, em 2014, o ex-presidente Temer

pela lei. Entretanto, ficam resguardados os direitos essenciais como férias e 13° salário.

desengavetou o projeto de lei 4.330, proposto pela primeira vez em 1994.

A jornada de trabalho, que antes era restrita a 8 horas

De fato, a aprovação das leis apresentou resultado. Entretanto, a recuperação se mostra muito lenta e pequena. Uma melhora do PIB começou a despontar em 2017 com um aumento de 1,06%. No último trimestre deste ano, o número ainda cresceu 1% em relação ao mesmo período do ano anterior. A taxa de desemprego também caiu, alcançando a marca de 12% no segundo trimestre deste ano. Entretanto, ainda que o progresso seja promissor, ele tem se mostrado resultado de um mercado de trabalho precarizado. Segundo o IBGE, a quantidade de trabalhadores sem carteira assinada chegou a 37,3 milhões de brasileiros. É o maior número desde 2012. Ainda no primeiro trimestre de 2019, ele aumentou 3,4% em relação ao mesmo período de 2018. A professora de Economia da Ufes e doutora em Desenvolvimento Econômico Ana Paula Colombi acredita que esse fluxo segue uma lógica de nivelamento por baixo. “Onde se gera emprego, é um emprego ruim. Mas, para a pessoa desempregada, é melhor ter um emprego ruim.

por dia e 44 horas por semana, agora pode ser de 12 horas diárias, respeitando o limite máximo de 220 horas mensais.

Criou o trabalho intermitente, o qual não existe subordinação contínua na prestação de serviços. Ou seja, o trabalhador é empregado temporariamente, alternando os períodos de atividade e inatividade.

Grávidas e lactantes podem trabalhar em locais insalubres de grau médio ou mínimo

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Remuneração média (R$)

Jornada semanal de trabalho (Horas)

Tempo de emprego (anos) 18 PR I M E IRA M ÃO

Mas, para a pessoa desempregada, é melhor ter um emprego ruim do que não ter emprego nenhum”, ela explica. Nesse sentido, a Reforma Trabalhista e a Lei de Terceirização deixaram o trabalhador ainda mais vulnerável e subordinado à vontade do contratante. Historicamente, o mercado de trabalho brasileiro é precário. “A baixa remuneração, a falta de homogeneidade nas jornadas dos trabalhadores e nos seus salários, e a informalidade são características que colaboram para essa situação”, pontua Colombi. E, diante das recentes alterações legislativas, essas condições foram intensificadas. Atualmente, as únicas informações que se tem sobre terceirização são do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). A entidade foi criada pelo movimento sindical brasileiro a fim de desenvolver pesquisas que embasam suas demandas.O último levantamento acerca da terceirização foi realizado em 2014. Na época, os trabalhadores terceirizados correspondiam a 26,8% do mercado. Segundo a pesquisa do DIEESE, os trabalhadores terceirizados trabalham mais horas semanais do que os trabalhadores contratados e, ainda assim, recebem menos. Além disso, a média de permanência no emprego é menor entre os terceirizados. Enquanto cerca de 22,7% dos trabalhadores diretamente contratados têm ensino superior, entre os terceirizados este número é de 8,7%. Nesse cenário, a contratação de serviços terceirizados torna-se mais lucrativa para empresas e indústrias Segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), 69,7% das empresas industriais contratam serviços terceirizados. Desse percentual, 84% das companhias pretendem manter ou ampliar a utilização do recurso nos próximos anos. Enquanto isso, dados do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), de 2015, apontaram que em 20 anos de combate ao trabalho análogo à escravidão, 82% dos casos envolviam trabalhadores terceirizados


TRABA L HO

Sem dinheiro e com futuro incerto, terceirizados sofrem com os cortes da Ufes A limpeza teve uma redução de 70% em seu quadro de prestadores de serviço desde o início do segundo semestre Gabrielly Minchio e Karla Silveira Após o governo ter anunciado o congelamento de parte dos gastos das universidades sob a justificativa de que a arrecadação de impostos estava menor do que o previsto, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), assim como as demais universidade públicas do país, começou a trabalhar em regime de alerta. Algumas medidas já foram tomadas e além dos alunos e servidores, os membros dos setores de prestação de serviços terceirizados foram uns dos mais afetados, em especial, aqueles responsáveis pela limpeza e manutenção da instituição, uma vez que essas despesas não são consideradas obrigatórias. Banheiros, salas de aula e departamentos têm começado a sentir o impacto do desaparecimento de prestadores de serviço do setor da limpeza, principalmente, a partir do segundo semestre de 2019. Com o quadro de funcionários reduzido, a empresa que presta serviço terceirizado de limpeza para a Ufes se deparou com a situação de precisar demitir 70% de sua equipe que era composta por cerca de 120 funcionários e acrescentar serviço para os que ficaram. Como de costume, quando um contrato está findando, a empresa terceirizada entrega avisos prévios coletivos para todos os seus empregados, com a intenção de recontratá-los assim que

o novo contrato for assinado, porém, dessa vez, a prestadora de serviço Priscila*, que preferiu não ser identificada, viu muitos de seus colegas de trabalho sendo despedidos. “Eu trabalho aqui já faz um bom tempo e já perdi as contas de quantos avisos recebi. E muitos amigos trabalhadores dos bons tiveram que ser mandados embora por conta do corte. Lembro que quando eu entrei éramos em cinco, seis pessoas e em alguns lugares até nove. Depois foi defasando e agora está nessa situação”, lamenta. As salas que eram limpas todos os dias por mais de um contratado do setor, hoje passam a ser higienizadas em dias alternados por apenas uma pessoa, que também fica responsável pelos banheiros e até as áreas comuns dos departamentos, que a partir de agora serão limpas a cada vinte dias. Teoricamente, hoje, os funcionários do campus de Goiabeiras estão divididos em 10 banheiristas e 19 pessoas para limpeza geral para todo o campus, mas Priscila afirma que as vezes eles não dão conta sozinhos e que precisam da ajuda de outro colega para terminar seus serviços. “Estamos procurando trabalhar em parceria para ver se damos conta, mas está difícil”. Mônica* foi uma das trabalhadoras demitidas. Após 15 meses no cargo de auxiliar de serviços gePR I M E I R A MÃO

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Despesa com pessoal (R$ mil)

Despesa com custeio (R$ mil)

Despesa com investimento (R$ mil)

Isso não é algo de agora, desde 2014 estamos tentando cortar alguns gastos, mas agora é como se estivéssemos cortando no osso, porque já cortamos a gordura desde 2014

20 PR P R I M E IRA M ÃO

rais, foi dispensada sob alegação de corte de despesas. Ciente de que o trabalho iria dobrar diante da redução de empregados, ela decidiu não entregar o aviso prévio para a empresa. “A partir de agora, pretendo trabalhar por conta própria”, planeja. A professora doutora Neide Vargas, que compõe o corpo docente do Departamento de Economia da Ufes, afirma que os cortes direcionados ao setor dos terceirizados além de atingirem diretamente na universidade, trazem consequências para a economia capixaba em geral, já que a universidade, além da capital, também tem campi tanto no norte quanto no sul do estado. “Quando se pensa na Ufes, por ter um orçamento muito grande, diminui-lo impacta na própria universidade, mas também na economia capixaba, reduzindo emprego, consumo e circulação de renda”. Ela ainda reforça: “Isso não é algo de agora, desde 2014 estamos tentando cortar alguns gastos, mas agora é como se estivéssemos cortando no osso, porque já cortamos a gordura desde 2014”. O Ministério da Educação não foi o único que sofreu com o contingenciamento, porém, é um dos ministérios que mais pode trazer consequências drásticas e a longo prazo. O orçamento destinado às universidades é dividido em despesas obrigatórias e discricionárias (ou não obrigatórias). As primeiras são destinadas ao pagamento de salários e aposentadorias dos professores e servidores (despesas de pessoal) que compõem cerca de ¾ de todo o orçamento destinado às universidades e por serem obrigatórias, não podem sofrer interferência sobrando para as não obrigatórias, os cortes. As despesas discricionárias são divididas em dois tipos: de gasto de custeio, que são utilizadas para manter o funcionamento da universidade, como contas de luz e água, bolsas e pagamento de terceirizados; e de despesas de investimento, que visam aprimorar a instituição, como obras e compra de equipamentos. “Esse impacto é pior nas universidades, porque nelas o principal gasto é o pessoal e a parte que tem para despesa de manutenção e investimento já é naturalmente pequena, então quando há um corte, isso cai mais pesado em cima disso”, afirma a professora Neide, que critica: “os cortes poderiam atingir outras áreas menos prioritárias e preservar certas despesas que se construirão a longo prazo. O Governo não está preservando essas despesas e isso é preocupante”.


A professora Neide explica que um dos motivos para a ocorrência desses cortes é a Emenda do Teto, promulgado em 2016, para congelar as despesas do governo por 20 anos; junto dela, está a Lei de Responsabilidade Fiscal, que acaba exigindo que uma avaliação de despesa e receita seja feita a cada bimestre. Caso a receita esteja menor que o previsto, os cortes deverão ser feitos. E é o que está acontecendo. “Vejo que o orçamento do ano que vem será menor que desse ano. Das regras fiscais, a pior seria a da Ementa do Teto, que tem um limite de gastos. A única saída é lutarmos para que ela caia”, enfatiza. Diante do cenário atual, a docente afirma que não vê o fim das terceirizadas na universidade, porém, com toda essa redução de gastos, é possível que em certas situações, como a relacionada à manutenção, a Ufes se torne um ambiente sem condição mínima de permanência. E conclui: “nenhuma teoria econômica diz isso, mas o bom senso alerta que as coisas estão sendo desmontadas e temos que saber disso” R E S TAU R A N T E U N I V E R S I TÁ R I O De acordo com uma das responsáveis pelo RU, diferente dos serviços gerais, o setor do restaurante ainda não sofreu com os cortes. Existem apenas rumores de que o repasse irá diminuir nos próximos meses, porém, até o momento, a funcionária alega que as demissões - quando ocorridas - são somente por rotatividade. A última onda de demissões, segundo ela, ocorreu em 2018 após um aumento significativo no preço do RU - de 1,50 para 5,00 reais - o que gerou uma diminuição no movimento, levando alguns funcionários a serem dispensados. Esta reportagem também tentou conversar com o encarregado e os trabalhadores terceirizados, porém eles não puderam dar entrevista.

as trabalhadoras aceitaram falar apenas sob a condição de não serem identificadas e se sentem inseguras até mesmo para fazer uma manifestação pública a respeito. No momento, a única opção é aguardar um posicionamento do sindicato, que prometeu tentar ajudar. “Isso acaba afetando nosso psicológico. Trabalhamos tristes porque precisamos muito desse emprego e não sabemos se amanhã estaremos aqui. A empresa (terceirizada) não quer mandar ninguém embora, mas as circunstâncias estão fazendo eles tomarem essa atitude”, revela Bianca*. A moça conseguiu o cargo após uma indicação e hoje, usa do salário para sustentar o filho. Com um sorriso no rosto, ela conta que quando está de folga, gosta de curtir o tempo livre indo a shoppings e praias. Um pouco mais tímida, Silvia* é caseira e prefere descansar em casa, ao lado da família. Fora do seio familiar, ela aponta já ter passado alguns constrangimentos no local de trabalho. “Entrei para limpar uma sala no Cemuni e afastei a bolsa de uma professora para limpar a mesa. Ela chegou e pegou a bolsa, como se eu fosse mexer nela. Fiquei muito constrangida”. Segundo a jovem, suas companheiras de trabalho também foram discriminadas por servidores, após terem sido proibidas de tomar café em um determinado local de um dos centros de ensino. Apesar de nunca ter sido coagida, Bianca* cita a questão da invisibilidade. Para algumas pessoas, é como se os trabalhadores terceirizados não existissem. “Têm setores e setores. Onde eu trabalho, só falam comigo, só me tratam bem e falam bom dia, quando querem entrar no banheiro, porque eu estou limpando e eles dependem de mim. Fora isso, passam no corredor e nem na minha cara olham”.

SONHOS E FUTURO Silvia pensa em futuramente mudar de profissão, mas ainda não se decidiu quanto a isso. A equipe da revista Primeira Mão con- Já Bianca, diz que quis ser jogadora de vôlei e versou com duas colaboradoras da limpeza modelo, mas hoje em dia enxerga as coisas de para traçar seus perfis e conhecer suas rotinas maneira diferente. “Qualquer emprego digno de trabalho. Elas desabafaram sobre a incer- que dê para pagar minhas contas, ter uma moteza na manutenção de seus empregos e no radia, cuidar do meu filho e ter um dinheirinho tratamento recebido por parte de alguns alu- pra juntar, estaria bom pra mim”, afirma. nos e servidores. Com medo de represálias, * Os nomes dados nesta reportagem são fictícios.

I N V I S I B I L I DA D E E M E D O : Quem são os trabalhadores terceirizados?

PR I M E I R A MÃO

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CIÊNCIA

Hucam é essencial para formação profissional de universitários O hospital é o lugar onde a sala de aula encontra a vida real, para os estudantes do Centro de Ciências da Saúde da Ufes. Bárbara Catharine e Larissa Tallon Para a eficácia do aprendizado de um conteúdo, é preciso saber onde ele se torna aplicável. Desse modo, ocorre o aprendizado dos alunos da Universidade Federal do Espírito Santo da área da saúde. Os estudantes possuem aulas no campus de Maruípe e tem a prática no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), seja através de aulas ou de bolsas e estágios. O prédio principal do hospital é uma construção da década de 1940, inicialmente utilizada como sanatório e depois para tratamento de pessoas com tuberculose. Em 1967, transformou-se no Hospital das Clínicas (HC), servindo de local de estudos aplicáveis para os estudantes de medicina 22 PR I M E IRA M ÃO

da Ufes. Ao longo dos anos o atendimento foi ampliado, assim como a oferta de cursos na Ufes. Consequentemente o acesso da população ao atendimento gratuito aumentou. A própria instituição afirma ser fundamental para a formação dos profissionais da Medicina, Enfermagem, Odontologia, Farmácia, Nutrição, Terapia Ocupacional e Fonoaudiologia. Mas outras áreas também usam o Hucam como parte da sua formação, dentre eles Ciências da Computação, Administração e Psicologia. Além dos graduandos, profissionais que buscam especialização ou querem realizar pesquisas no campo da saúde, também usam o Hospital Universitário.


PESQUISA Em nova pesquisa contra a sífilis, doença sexualmente transmissível, estudantes da Ufes, em parceria com outras universidades brasileiras, buscam, de forma pioneira, um antibiótico diferente do atualmente utilizado no tratamento para mulheres grávidas. Em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério Público (MP) e as universidades federais de Santa Catarina (UFSC) e do Ceará (UFC), alunos da Ufes farão análises através do Hucam.

CORTES Com os cortes de bolsas alguns serviços ofertados pelo hospital foram afetados. A estudante de Serviço Social da Ufes e estagiária do serviço social do ambulatório de oftalmologia e do ambulatório de diversidade de gênero, Victória Azevedo, afirma que o corte da verba da Universidade prejudica principalmente na limpeza de banheiros e salas, também no funcionamento do ar condicionado ou ventiladores diminuindo a qualidade dos atendimentos e estudos. Segundo Victória, o papel que o profissional de sua área tem de garantir o acesso à informação e aos direitos que o paciente possui são afetados com uma estrutura de trabalho tão precária. "São dezenas de benefícios ofertados gratuitamente e que podem beneficiar à população, mas que muitas vezes não utilizam o serviço por não saber da existência. No ambulatório de diversidade de gênero, por exemplo, é realizado o atendimento e entrevista com o paciente, onde é possível compreender sua realidade, e encaminhá-lo para outros serviços da rede, além

da inserção no mercado de trabalho", afirma a estudante. A bolsa de Victória não foi afetada, mas explica que a não contratação de profissional ou concurso público influencia muito no serviço e atendimento oferecido. Para ela, faltam psicólogos, assistentes sociais, médicos, entre outros. A manutenção do prédio também fica comprometida quando as verbas da Ufes são afetadas. Apesar de antiga, a estrutura está em bom estado e possui até espaços novos, mas mantê-la assim ou até aprimorá-la precisa de dinheiro. Ana Paula Marques, estudante de enfermagem da Ufes confirma que há essa dificuldade. Falta limpeza adequada para salas e laboratórios e isso desanima os alunos. Como o Hucam serve a população, Ana afirma que o apoio da sociedade para buscar melhorias para o local é importante. "A gente tinha que aproximar as pessoas da universidade para que possamos ser mais valorizados. Assim, vão saber e ver o que a gente faz." PR I M E I R A MÃO

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A QUEM INTERESSA O DESMONTE DA SAÚDE? Isabela luísa, Larissa Tallon e Matheus Andreatta

O Ministério

Cerca da

Saúde

30

milhões de pessoas

serão afetadas pela medida, e as as-

anun-

ciou um corte de ver ba para distribuição de 18 med icamentos e uma vacina que era m distribuídos gratuitamente para a população, em sua mai oria pa

sociações que representam os laboratórios que possuem parceria com

Governo Federal, relataram um prejuízo de 1 bilhão e risco de desabastecimento. o

-

cientes com câncer, dia

de

betes e

culpa

dos

do país são os pobres e do

brasileiros são beneficiados pelo atendimento do SUS, e

custo que eles causam. Ga-

os políticos que represen-

mé-

tam a classe dominante,

tratamento

para o SUS e que considera excessivo

obrigação do

Estado,

o gasto atual.

mas

dico, de acordo com o pró-

Bolsonaro

prio site do

fazem questão de propo-

Portanto,

sitalmente

sequentemente o fim do

Sistema Único

Saúde. Pensando nessa realidade, o atual sucateamento desta importante ferde

ramenta afeta diretamente a

vida do povo.

A privatização, que pode vir a seguir, seria o fim da linha para muitos pacientes.

24 P PR R I M E IRA M ÃO

“A Saúde nos programas dos

não pretender aumentar os recursos

rantir a saúde do povo é

destas pessoas depende exclusivamente dele para qualquer

a

Mario Scheffer (USP), Ligia Bahia (UFRJ) e Ialê Falleiros Braga (Fiocruz), concluíram que, a partir do programa oficial de governo, Bolsonaro

problemas

milhões de

80%

SUS. Segundo

do Brasil em 2018”, os pesquisadores

A elite do Brasil grita que 190

pelo desmonte do

candidatos à Presidência da República

a de

resses neoliberais são os responsáveis análise

transplantados, pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Mais

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, filiado e ex-deputado federal pelo Democratas (DEM), e o presidente Jair Bolsonaro, pelo Partido Social Liberal (PSL), aliados aos inte-

é um exemplo, desmoralizar

a privatização, e con-

SUS,

é

esse sistema tão importante

uma tragédia anunciada causada

para o cuidado e mantimen-

por um governo que em nada pen-

to da população brasileira,

sa na população e faz questão de

que presta desde a atenção

assinar o atestado de óbito da

básica até transplantes.

classe trabalhadora brasileira.


ED UCAÇÃO

Como os cortes afetam o funcionamento do ensino público básico brasileiro Mudam-se governos e a educação pública básica ainda é uma questão mal resolvida no Brasil. Isabela de Paula A educação brasileira, no geral, sempre foi alvo de muitas discussões e polêmicas. Quem nunca ouviu aquela famosa frase afirmando que o maior problema do Brasil é a educação, ou melhor, a falta dela? Certa vez, Paulo Freire, um dos maiores nomes brasileiros de referência no assunto, disse o seguinte: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Realmente, a educação é um dos pilares fundamentais de desenvolvimento social e intelectual de qualquer indivíduo em qualquer parte do mundo. Não é a toa que a nossa Constituição Federal de 1988 prevê o ensino público como um direito social assegurado a todos os brasileiros. Como também não é coincidência que a desvalorização de instituições de ensino é um ato político de controle sobre o conhecimento

e, consequentemente, sobre o cidadão. Esse assunto nunca sai de pauta na sociedade, principalmente em época de alternância no governo. Nos últimos tempos ganhou maior fôlego nas discussões públicas após as primeiras medidas adotadas pelo Presidente da República Jair Bolsonaro ganharem visibilidade. A execução de suas prioridades, defendidas durante o período eleitoral, incluía uma remodelação dos gastos com a educação. O projeto objetiva um maior investimento na educação básica, em comparação ao atual repasse orçamentário para o ensino superior público. Como primeira ação tomada três meses após a posse da nova administração pública, em abril desse ano, foi anunciado oficialmente pelo Ministério da Educação (MEC) um congelamento de gastos no montante de 1,7 bilhão de reais dos 49,6 bilhões, antes dispoPR I M E I R A MÃO

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nibilizados para as universidades. Segundo o ministro do MEC Abraham Weintraub, em um pronunciamento feito em uma de suas redes sociais, os recursos futuros vão ser direcionados para a pré-escola, ou para a educação básica, seguindo o plano de prioridades do presidente. Nove meses depois, o contingenciamento foi realizado com sucesso. Mas e os incentivos na educação básica? Será que foram acionados? Renata Costa, professora de ensino fundamental e mãe de Pedro, hoje com 4 anos, demontra sua preocupação com o futuro do ensino, ela afirma que a educação sempre foi alvo de projetos de desmonte. “[..] apesar de terem existido tempos mais tranquilos, nunca houve um verdadeiro estímulo tão profundo ao conhecimento, pelo menos não na educação pública”. A professora e mãe conta que o filho Pedro ama o espaço da escola em que estuda e o incentiva também em casa a novas formas de aprendizado. “A todo tempo, busco brincadeiras e jogos que estimulem o meu filho a ter prazer em aprender. Ele ama a escolinha, porque lá ele interage com outras crianças a desenvolve a noção de uma realidade além da nossa casa”. No entanto, ela destaca que as escolas hoje, não só de ensino básico, se sustentam em cima de bases pouco sólidas. “Não tem incentivo! Quantas vezes vejo professores reinventando maneiras de proporcionar um aprendizado produtivo e de qualidade para as crianças, mas quando apresentam as ideias são desmotivados por seus superiores com frases do tipo “não temos orçamento” ou “sinto muito, adorei a ideia, mas a crise não permite que façamos isso”. Mesmo em meio a essa realidade, Renata tenta encontrar fé de dias melhores e aguarda uma maior solidez do ensino básico, tanto defendido pelo pelo atual governo. “Temos que esperar para ver no que vai dar, mesmo em meio a atual realidade, espero sinceramente que algo seja feito e haja verdadeiramente uma mudança sólida para os estudantes do nosso país, começando lá de baixo, com nossa futura geração de adultos, que hoje são crianças”. CRIARTE: ENSINO PÚBLICO EM CRISE PERMANENTE Janaína Silva Costa Antunes, doutora em educação e diretora do centro de Educação Infantil Criarte da Universidade Federal do Es26 PR I M E IRA M ÃO

pírito Santo (UFES), explica que as unidades universitárias de educação infantil no Brasil sempre passaram por dificuldades ao tentar fornecer um atendimento adequado às crianças. “Seja por falta de pessoal qualificado, seja por problemas estruturais, sempre foi um desafio atender às crianças como necessitam”, explica.

Foram liberadas vagas de professores em números insuficientes.

Ela destaca que, com a aprovação da Resolução n° 1, de 10 de março de 2011, do Conselho Nacional de educação, que institui normas de funcionamento das unidades de educação infantil ligadas à Administração Pública Federal direta, suas autarquias e fundações, pareceu que a situação mudaria para melhor, contudo não foi o que aconteceu. “Os concursos para admissão de professores demoraram a ser autorizados. Além disso, foram liberadas vagas de professor em número insuficiente para todas as unidades, o que obrigou muitas unidades a buscarem meios de sobrevivência que não eram os previstos na resolução”. Como consequência disso, Janaína relata que houve a terceirização de profissionais para atuarem no centro de ensino infantil, além de terem sido obrigados a fechar turmas com certa frequência nos últimos anos. Quando questionada sobre as mudanças visíveis e previsíveis advindas de corte nos gastos, ela afirma que tal medida não é de hoje. “Especialmente nos últimos três anos, temos observado que a universidade começou a ter maiores problemas para atendimento às demandas, como os cortes no contrato com a empresa terceirizada que cuida da limpeza e empresa de manutenção, por exemplo. Os valores repassados ao Centro de Educação também têm diminuído, o que reflete inegavelmente sobre o CEI Criarte também”.


Sobre os recursos orçamentários, a diretora afirma que o CEI criarte não recebe verba do governo federal específica para sua manutenção. “Infelizmente, o Criarte não tem dotação orçamentária, ou seja, não recebemos verba do governo federal específica para nossa manutenção. Somos ligados ao Centro de Educação e é o Centro que supre nossas necessidades. A única verba que recebemos do Governo Federal é do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) para compra de gêneros alimentícios para a merenda que é calculada a partir do número de crianças atendidas. A contratação de professores é via concurso público e, atualmente, não há disponibilidade de vagas autorizadas para nomeação pelo governo. Contraditoriamente, temos três turmas fechadas e professoras aprovadas em concurso válido aguardando a chamada”.

É preciso que continuemos a lutar

Com a falta de recursos e de pessoal, a diretora enfatiza sua preocupação e expectativa para o futuro, não somente do ensino básico público, mas de todo o conjunto de ensino público brasileiro, desde o básico ao superior, uma vez que os investimentos públicos estão mais escassos e há um grande descrédito em relação a educação pública perante a sociedade. Janaína vê uma movimentação muito concentrada no desenvolvimento de instituições privadas. No entanto, de forma otimista, acredita que a luta e resistência pela excelência do ensino público podem fazer uma enorme diferença. “É preciso que continuemos a lutar pela excelência das instituições públicas, especialmente as universidades, produtoras de conhecimento qualificado e reconhecido, e pelas nossas unidades de educação infantil em todo o Brasil”. PR I M E I R A MÃO

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POL ÍT ICA

O novo desafio das universidades O governo federal dá seguimento a sua política de desmonte das universidades públicas e apresenta o Future-se, um polêmico programa que causa dúvidas na comunidade acadêmica. José Renato Siqueira Campos Após anunciar inúmeros cortes em serviços públicos básicos ao longo do ano, o Governo Federal, por meio do Ministério da Educação (MEC), apresentou o programa Future-se como uma forma de contornar os problemas sofridos pelas instituições de ensino superior públicas. O MEC apresentou a proposta à população no dia 17 de julho. O principal ponto do projeto visa firmar parcerias entre a União, universidades e organizações sociais. Outro aspecto abordado é o fato de as instituições terem a liberdade de captar os seus próprios recursos para driblar os cortes sofridos, que tanto prejudicam as suas atividades. De acordo com o reitor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Reinaldo Centoducatte, a instituição ainda não tem uma posição concreta se vai ou não aderir ao Future-se e garante que haverá um diálogo entre a comunidade acadêmica. Para Centoducatte, a medida apresentada pelo MEC possui algumas falhas.“Isso é uma questão em discussão. É um 28 PR I M E IRA M ÃO

programa que não tem clareza, ainda é muito cedo para se falar qualquer coisa em relação a esse programa como instrumento de solução do financiamento das universidades.” O MEC afirma que o Future-se foi criado como uma nova forma das universidades públicas se financiarem. A pasta rechaça qualquer possibilidade de existir cobrança de mensalidade para os cursos de graduação e pós-graduação. ENTRE AS MELHORES DO MUNDO A Ufes, que no dia 11 de setembro entrou no ranking da Times Higher Education, um dos principais rankings universitários do mundo, é uma dentre inúmeras instituições prejudicadas com os seguidos cortes. Ao todo, mais de 1,1 mil bolsas de iniciação científica e de extensão foram canceladas por conta do corte realizado pelo Ministério da Educação. Para Centoducatte, o atual governo


encara a educação superior pública como um gasto.“A gente vive um momento de incerteza, um momento em que a educação não é considerada um investimento, é considerada um gasto, que esses espaços são espaços que não aproveitam bem os recursos públicos, mas nós estamos mostrando justamente o contrário", criticou. DIVIDE OPINIÕES Ainda em fase de discussão, o projeto divide opiniões entre alunos da Ufes. A estudante de Geografia e presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE), Beatriz Moreira, se diz totalmente contra o programa apresentado pelo MEC. Segundo Beatriz, o projeto trata-se da privatização do ensino superior público brasileiro, onde o Governo Federal tira do Estado a responsabilidade de financiar as instituições de ensino e a coloca nas mãos de empresas privadas. “Eu sou completamente contra o programa, porque, na verdade, ele é um projeto de privatização das universidades. O projeto vem desresponsabilizando o Estado de gerir e de se preocupar com o financiamento da educação superior pública. Você coloca que as universidades procurem empresas privadas e outras formas de recurso próprio, que inclusive para gerir o funcionamento da universidade poderia ser uma organização social, que é um órgão privado. Isso é privatização. ” A estudante destaca qual é o modus operandi da gestão atual em relação ao serviços públicos, criticando os cortes de investimentos cada vez mais frequentes. “É um projeto que primeiro você precariza para depois privatizar. Inclusive, desmoraliza, colocando as universidades como lugares de balbúrdia, de bagunça, diz que nada é produzido aqui. Isso faz parte de um modelo simples de privatização que acontece mundo afora, inclusive acontece em outros órgãos públicos do Brasil.” Diferente de Beatriz, o estudante de Direito, Luan Sperandio, de 26 anos, adota um tom mais ameno em relação ao Future-se. O jovem garante ter seu ceticismo em relação ao programa, porém, se diz favorável às linhas gerais que norteiam o projeto. “O Future-se permitirá que a Universidade tenha outros mecanismos à sua disposição, possibilitando maior autonomia financeira. Se boa parte da comunidade acadêmica critica o atual governo federal por temer interferências na universidade, autonomia financeira e orçamentá-

ria é a resposta para mitigar eventuais mandos e desmandos do MEC na universidade. Mas o projeto até aqui é apenas um rascunho, com muitas intenções anunciadas e os caminhos que se pretende seguir, mas sem detalhes. Portanto, vejo o Future-se de forma positiva, há muito potencial a ser melhor explorado pelas nossas universidades, mas coloco alguns asteriscos no projeto enquanto não houver uma redação final para ele.” Sobre os pontos positivos do programa, Luan destaca a maior facilidade e autonomia que as instituições públicas teriam para captar seus próprios recursos. “A possibilidade de contratos mais céleres entre as universidades e organizações sociais sem ferir a autonomia e a possibilidade de criação de um sistema de incentivos melhor, que proporcione gestões melhores, permitiriam que a Universidade entregue melhor seu objeto social com uma maior eficiência orçamentária.” No entanto, o estudante de Direito faz um alerta em relação à responsabilidade estratégica que a implementação do Future-se exigiria, no atual cenário da economia brasileira. “O fato é que os cortes nas universidades continuarão a ocorrer até que a União volte a fechar com as contas no azul. E isso pode causar o seguinte problema: é possível que instituições de ensino adotem práticas que passarão a ser permitidas com o Future-se de forma pouco estratégica e ineficaz caso não realizem um bom planejamento prévio e nem tenham profissionais capacitados na execução.” Atualmente, o Future-se ainda caminha com dificuldade e muita resistência das instituições de ensino. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Federal de Minas Gerais são algumas das instutições que se manifestaram publicamente contra a adesão ao programa. O MEC pretende apresentar um Projeto de Lei (PL) para a Câmara dos Deputados no início de outubro, onde o programa será analisado, discutido e votado. Em seguida ele vai para o Senado Federal. Mudanças podem ser sugeridas em ambas as casas. Se aprovado, o PL segue para o Presidente, que pode sancionar a lei ou vetá-la de forma parcial ou total. De toda forma, inicialmente, o Future-se será de adesão voluntária e cada conselho universitário será responsável por aderir ou não ao programa. PR I M E I R A MÃO

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POL ÍT ICA U S T R A DA POL ICAIL DA POL ÍTÍ T ICA ILIL UU SS TT RR AA DA

30 PR I M E IRA M ÃO


O desmonte ilustrado Texto por Clara Curto e Fotografia por APR gnes e HeloĂ­sa I M EG I Rava A MĂƒO 31 Bergami


Desmonte

das universidades públicas.

Eu

aposto que você já ouviu essa expressão na sua

sala de aula, local em que trabalha ou até na televisão. Isso porque as universidades e institutos federais têm sofrido diversos ataques atualmente.

Mas,

afinal, o que é desmonte?

“DeUniversidade Federal do Espírito Santo Isadora a passos lentos, do formato gratuito, público e de qualidade das universidades.” Já para a graduanda em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais Paula Mendes, “o termo desmonte é mais no sentido figurado quando o assunto são as universidades. Seria uma desmontagem ou desmembramento do corpo universitário da forma que conhecemos". De

acordo com o dicionário

Aurélio,

desmonte é o ato de desmontar, que significa

sarmar um mecanismo, separando-lhe as peças.”

Para a estudante de Economia Faé, “desmonte é a precarização,

32 PR I M E IRA M ÃO

da


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34 PR I M E IRA M ÃO


PR I M E I R A MÃO

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CHARG E

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