Revista Primeira Mão Edição 155 - junho 2019

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EDIÇÃO 155 | JUNHO 2019 | ANO XXX

A BALBÚRDIA

LIBERTA ESTUDANTES REVELAM AS TRASNFORMAÇÕES E DESCOBERTAS QUE EXPERIMENTAM DURANTE A VIDA UNIVERSITÁRIA

Slam: o grito dos poetas marginais 34

Jovens Endividados 16

30 ADOÇÃO: Uma experiência de amor 24 junho 2019

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DANÇA E RESISTÊNCIA Fotografia: Carla Nigro Edição: Suzane Caldeira Bailarinos participantes do 1º Atelier de Dança Negra Contemporânea, Vitória-ES junho 2019

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PRIMEIRAMÃO REVISTA LABORATORIAL PRODUZIDA PELOS ALUNOS DO 6º PERÍODO DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO (UFES). Equipe: Álvaro Guaresqui Ana Julia Chan Carla Nigro Daniel Jacobsen Felipe Khoury Giovanni Werneck Giulia Reis Kelly Lacerda Lavynia Lorenção Lydia Lourenço Marcela Delatorre Maria Fernanda Conti Marina Coutinho Matheus Souza Nicolas Nunes Richele Ribeiro Robson Silva Suzane Caldeira edição Marcela Delatorre Daniel Jacobsen professora orientadora Ruth Reis Primeiramão nas redes Instagram: @revistaprimeiramao

EM PRIMEIRA MÃO 6 A BALBÚRDIA LIBERTA Estudantes falam sobre as descobertas e transformações que a Universidade lhes proporcionou

10 CAPTURAS DA ATENÇÃO As dificuldades dos universitários diante das distrações de uma sociedade hiperconectada

T 12 FEBRE AMARELA O serviço de aluguel de bicicletas e patinetes compartilhados chegou a Vitória e logo ganhou adeptos, mas a praticidade trouxe novos problemas para usuários e para a cidade

Twitter: revista1mao Issuu: jornal1mao

14 AUTO-HEMOTERAPIA

Medium: @primeiramao

Apesar de ser um tema controverso e uma prática proibida, a autohemoterapia atrai muitos com promessas de cura e tratamentos fáceis

Facebook: primeiramao 2019 JUNHO 2019 4

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16 JOVENS ENDIVIDADOS o retrato das finanças de jovens que nasceram na era da informação, mas não usam a tecnologia a seu favor

22 UM LUGAR ZEN No Dojo Zen, meditação e autoconhecimento

27 LIVRO, FILME, MÚSICA Três sugestões para você

18 DEMOCRACIA EM XEQUE Na contramão dos anseios da sociedade, as recentes decisões do governo põem em dúvida o fim do jogo

28 CRÔNICA: QUILÔMTEROS DE MEMÓRIA

34 QUANDO FESTIVAL RIMA COM SUSTENTABILIDADE

24 ENTRE VONTADES E INCERTEZAS, O QUE NÃO FALTA AMOR

Práticas ecológicas ganham espaço nos festivais de música

A fila de espera é como se fosse a gestação. O fim da fila é como o parto.

36 O MOMENTO 30 SLAM, O GRITO DOS POETAS MARGINAIS É DELAS Poesia e teatro juntos em um campeonato que faz o sangue ferver. O slam ocupa as ruas da cidade e aproxima a literatura da nova geração.

Quando as mulheres buscam seu lugar no meio esportivo junho 2019

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A BALBÚR

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inalmente! Chegou o grande dia! Ela não dormiu nada naquela noite. O frio na barriga e o coração acelerado só a fazem pensar: como será meu primeiro dia? Enquanto caminha com seu velho tênis azul que a acompanha desde o ensino médio, e sua antiga mochila jeans rumo ao seu novo destino, experimenta uma mistura de sentimentos: realização, alegria, medo, insegurança, orgulho e empolgação. Para, apreensiva, diante dos portões. Não sabe o que vai encontrar quando ultrapassá-los. Respira fundo e vai. Ela chega diante de um prédio antigo com as marcas do tempo e da manutenção precária e imagina quantas histórias já passaram por ali. No primeiro instante apenas observa. Um grupo de alunos conversa em um canto, outros estão tímidos sentados na curta escada que liga os corredores com salas de aula a um átrio em que estão os veteranos prontos para iniciar as boas-vindas. Seus olhos brilham, está atenta a tudo o que se passa. Conhece novas pessoas e volta para casa com o coração transbordando de alegria, pois é a concretização de um ano de estudos intensos e o primeiro passo rumo à profissão que escolhera. Como a universidade é um lugar diferente! Quase o oposto daquilo

ESTUDANTES REVELAM AS TRASNFORMAÇÕES E DESCOBERTAS QUE EXPERIMENTAM DURANTE A VIDA UNIVERSITÁRIA Kelly Lacerda e Suzane Caldeira

que estava acostumada no ensino médio. É um caldeirão cultural. Crentes, ateus, pessoas ricas, outras mais humildes, negros, brancos, índios, militantes de direita, outros de esquerda, todos juntos em um mesmo espaço. Conhecer uma diversidade de pessoas, de pensamentos e experimentar uma liberdade que antes não lhe era permitida, rever conceitos e ideias. É um período de grandes mudanças que a faz crescer e amadurecer individualmente e socialmente. O conhecimento de um novo mundo, o processo de amadurecimento, independência, aprender a conviver com as diferenças e quebrar paradigmas. Esta história é vivida por muitos alunos ao ingressarem na Universidade. A estudante do curso de Psicologia Maria Vitória experimentou esse processo de amadurecimento ao vir morar sozinha na capital capixaba para estudar na UFES. “Teve essa mudança de ganhar autonomia, de ter que me regular melhor e me responsabilizar mais pelas coisas. Acho que foi um processo de amadurecimento”, conta. O psicanalista e professor de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo Adriano Moreira alerta para o fato de que conseguir lidar com a autonomia adquirida, não é fácil para todos, alguns acabam ten-

do dificuldade de administrar esse novo momento. “A universidade te dá uma liberdade, agora, o que você vai fazer com isso é de foro íntimo e pessoal. Algumas pessoas podem abusar dessa liberdade e outras fazer um bom uso dela”. Robson Silva, aluno do curso de Jornalismo, foi uma dessas pessoas que teve dificuldade para gerir a liberdade que encontrou. “Vim de um colégio extremamente regrado e disciplinado. Quando ingressei na Universidade, me senti completamente perdido. Por não existir mais cobranças, comecei a me descuidar um pouco das notas, dos horários, chegava atrasado nas aulas e não tinha mais rotina de estudos. E essas mudanças não foram somente do colégio para faculdade. Eu passei a morar sozinho, longe dos meus pais, literalmente comecei a viver por conta própria, podendo fazer o que bem entendesse, como dormir e acordar na hora que quisesse, e onde quisesse. Me tornei dono do próprio nariz, “ relembra. Quando a euforia da novidade passou, Robson conseguiu rever suas ações. “Percebi que estava abusando dessa liberdade que me foi dada. Observei que meus pais estavam fazendo um investimento muito alto em mim, e eu não poderia mais brincar com isso, então, comecei a ter um maior senso de res

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ponsabilidade e com meu primeiro estágio passei a entender melhor o quanto é trabalhoso ganhar dinheiro, e que é preciso dar valor ao que está sendo investido. Principalmente, notei que a liberdade não significava necessariamente descuidar das coisas, então, criei maturidade; não poderia mais viver naquele ritmo”, declara. Para Adriano, essas transformações se dão justamente pelo fato de a universidade ser o lugar da diversidade do discurso. “A universidade é o campo onde o jovem pode desenvolver o sentimento de alteridade, de reconhecimento da diferença, porque ele sai do meio que estava acostumado, do gueto em que vivia”. A estudante do curso de Jornalismo Laís Santana acredita que o contato com um número maior de pessoas, que provavelmente não teria conhecido fora da faculdade, fez com que ela revisasse seus preconceitos. “Na UFES, eu tive contato com os movimentos negros. Na escola, devia ter na minha série três ou quatro negros, no máximo, em uma sala de 200 pessoas. Quando a gente entra aqui, começa a ter contato com pessoas que a gente percebe que nunca seriam do meu meio. Eu acho que ajudou a desconstruir muitos preconceitos que eu não sabia que eu tinha, mas eu tinha”, relata. O professor acredita, ainda, que essa diversidade de discursos encontrada na Universidade é um saber que liberta, que permite ao jovem ser o que ele é. Carlos (nome fictício, porque o aluno pediu para não ser identificado), estudante de Enfermagem, é um exemplo disso. “Desde os 15 anos, eu vivia um dilema com a minha homossexualidade, era muito difícil. Quando entrei

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na UFES, conheci pessoas de todos os tipos, homo, bi...e percebi que ser como eu era, era normal. Isso me ajudou a me assumir. Eu sofria muito”, conta. Aline Almeida, estudante do curso de Jornalismo, também teve a oportunidade de viver um processo de aceitação que lhe abriu novos horizontes. “O que mais me marcou foi minha aceitação como mulher preta. Sofri muito racismo na escola e, ao entrar na Universidade, pude finalmente conviver com mais pessoas negras. Apesar do racismo estrutural também existir nesse ambiente, esse tipo de preconceito acontece numa escala muito menor dentro da Universidade. Ao conviver mais com pessoas negras e ser empoderada por eles, percebi que a negritude e a africanidade também são lindos e assim fui aceitando meu cabelo, meu nariz, minha boca, minha cor, minhas raízes”, relata. Adriano defende justamente esse papel transformador da universidade. “A universidade amplia o universo linguístico e discursivo e propicia uma possibilidade de transformação política, de engajamento político, mas nem todo mundo é tocado por esse engajamento. Lá fora, alguns vão chamar de bagunça, balbúrdia, mas é ato político. A universidade é um ambiente saudável”, defende. A aluna do curso de Jornalismo Lydia Mendes ao ingressar na UFES já havia passado por um processo de desconstrução, já se sentia engajada politicamente, porém na universidade teve a oportunidade de rever sua atuação. “A universidade te abre ao pensamento, percebi que havia muito o que mudar e que meu engajamento precisava de vida, de ação, tinha que ser eficaz e não algo presente apenas no meu discurso,

mas no meu cotidiano, algo que tem vida própria, que é concreto”. pondera Já a também estudante de jornalismo Laís mudou bastante sua opinião política ao ingressar na Universidade, pôde rever seu posicionamento em algumas questões e reafirmar em outros. "Venho de uma família que a maioria tem um certo apreço à direita, com exceção da minha mãe, que por ser formada em direito, entende um pouco mais das questões políticas, assim sendo a mais equilibrada de todos, e que me fez perceber como existem coisas tóxicas nesse meio" conta, mas ao mesmo tempo, por ser estudante de jornalismo, não deixou de exercer sua criticidade, e observa que dentro da própria universidade também existem coisas com a qual não concorda da opinião geral, mas que “o não concordar” só a fez enxergar o quanto se tornou um pessoa mais flexível com suas diversas opiniões. Mas nessa caminhada há também experiências negativas. O ambiente universitário pode se tornar cruel. Alguns estudantes são afetados por doenças psicológicas por conta da rotina de estudos muitas vezes puxada, a cobrança por bons resultados e comparações. Segundo dados da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil (Andifes), 80 % dos estudantes de graduação relataram que já tiveram ansiedade, desânimo, insônia, sensação de desamparo, desespero, falta de esperança, sentimento de solidão, e ao menos 10% já tiveram dificuldades alimentares, sentiram medo ou pânico. Mais de 6% relataram ter ideias de morte e cerca de 4% já tiveram pensamentos suicida. Carlos Alberto (nome fictício)


APRENDER A VIVER COM A DIVERSIDADE É UMAS DAS GRANDES LIÇÕES DA UNIVERSIDADE

estudante do curso de Engenharia faz parte dessa estatística. Ele passou por momentos que jamais imaginou que aconteceriam. “Comecei não querendo ir para as aulas, não tinha mais ânimo. Só de pensar na faculdade me batia um desespero. Sempre foi meu sonho fazer Engenharia, mas quase abandonei o curso. Não estava conseguindo lidar com a rotina, é um curso bem pesado e eu me cobro muito. Comecei a achar que eu era o pior da turma, que eu não conseguiria chegar ao final”, recorda. A ajuda de amigos da turma e familiares foi fundamental para que Carlos Alberto superasse o quadro de depressão. “Minha mãe começou a perceber que eu já não estava indo para a faculdade e que não queria nem mesmo sair de casa para me divertir, me sentia culpado por não estar em casa estudando, mas se eu estivesse em casa, não conseguia estudar. Depois, alguns amigos meus da faculdade também perceberam. Eu não aceitava quando eles me falavam que eu tinha que

procurar ajuda médica. Mas teve um dia que tranquei a faculdade e pensei em abandonar o curso. Depois disso, procurei ajuda profissional, aprendi a enfrentar as minhas questões da faculdade com mais leveza, mas isso demanda tempo”, compartilha. Destacando a importância dos amigos para a recuperação de Carlos Alberto, o psiquiatra e professor da UFES ressalta outro aspecto muito importante da academia, a criação de vínculos de afeto. “Essa é uma época de criação de relacionamentos, a oportunidade de vivenciar alegrias, fazer amizades, que deve ser vivenciada. As pessoas terminam a universidade, mas não terminam os vínculos de afeto. Amizades começam na universidade, mas não terminam nela. Isso também é transformador”. Hoje ela segue o mesmo caminho do primeiro dia, mas agora não é mais aquela menina cheia de expectativas e ansiedades. A única coisa que lembra a menina é o mesmo tênis azul e a antiga mochila

jeans. Daquele dia cheio de expectativas e incertezas o que ela vai levar para sempre são os laços que foram feitos. Agora ela carrega pelo caminho muito mais do que alguns conhecimentos em sociologia, filosofia, matemática, direito. Carrega a consciência do seu papel social, cultural, econômico e político. Sabe que vive um dos momentos mais desafiadores dessa jornada, participar da luta por uma Universidade de qualidade. Hoje, ela tem a consciência da grandeza do que acontece nos campi universitários, graças ao conhecimento adquirido, mas que vai muito além dos livros. Um novo mundo se abriu diante dos seus olhos. Ela aprendeu a pensar por conta própria, aprendeu que a Universidade é um espaço que vai além da formação de profissionais. Foi ali que ela quebrou, revisou e até mesmo reafirmou alguns de seus paradigmas. Ela para novamente em frente aos portões, dá um sorriso, infla o peito de orgulho e segue seu caminho.

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CAPTURAS DA ATENÇÃO As dificuldades dos universitários diante das distrações de uma sociedade hiperconectada

Marina Moscon

Sentado à escrivaninha, com os livros prontos para serem lidos, o Google acadêmico aberto no computador, junto com várias outras abas de documentos para serem atualizados, Renzo respira fundo e começa o seu trabalho. Pela janela, entra o cheiro do carvão que os vizinhos acabam de acender para o churrasco de domingo. Após menos de cinco minutos de concentração e produtividade, o celular produz um som repentino e agudo, avisando que uma amiga o marcou em uma postagem no Instagram. O aparelho toca mais uma vez, só que agora é uma curtida que recebeu de um tweet feito uma hora atrás. Com muita relutância, ele pega o smartphone e a partir daí é aquela velha história que já conhecemos. Passamos muito tempo da nossa vida sem sequer perceber as horas a fio que ficamos distraídos diante do aparelho, como que sugados pelas telinhas de pixels brilhantes. O estudante, ao olhar para a janela pensativo, imagina o quão bom seria se seu vizinho pudesse desligar o sertanejo da caixa de som, ou pelo menos diminuir o volume. Histórias como essa fazem parte da rotina de muitos jovens universitários como Renzo Hassen. O professor e pós-doutor em Psico10

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logia, Fernando Yonezawa, explica que nunca é bom fazer duas ou mais coisas ao mesmo tempo. Para ele, essa prática instala um funcionamento lesivo para nossa sensibilidade. Diante disso, acostumamos a estressar demais nosso corpo e pensamento e adoecemos. “Mesmo que estejamos concentrados numa única coisa, já estamos sempre sendo hiperestimulados por várias informações ao mesmo tempo”, argumenta, sugerindo que é mais saudável aprender a fazer uma coisa de cada vez e com uma certa lentidão. “Se corremos para realizar uma tarefa ou se tentamos fazer mais de uma atividade ao mesmo tempo, acabamos errando mais, tendo que recuar diversas vezes, perdendo o fio da ação e o resultado termina muito pior do que se fizéssemos uma coisa “As redes sociais podem se e com mais pretornar um vício, devemos cisão e menos tomar muito cuidado.” velocidade”. Renzo Hassen, estudante Para a alue estagiário na de Psicologia e estagiária Polyana Majevsky, nossa cabeça fica cheia de informações o tempo todo, devido a todas as informações absorvidas diariamente. Não estamos só tendo que


lidar com nosso dia ou as coisas que acontecem conosco. É necessário lidar com fatos e informações que acontecem no mundo todo. A estudante de Pedagogia e Psicologia “É necessário exercitar, Carolina Muniz penatravés da escrita, a sa de uma forma diferente: Por fazer capacidade do estudante de duas faculdades ao formular questionamentos mesmo tempo, acrepara novas buscas dita que é necessápor conhecimento”. rio se policiar para Fernando Yonezawa, pós que não perca muito doutor em Psicologia tempo nas redes da internet, pois “qualquer minutinho é importante pra mim”. O pós-doutor Fernando Yonezawa revela ter percebido algumas situações que precisam ser trabalhadas para o papel de docente. A primeira, é caracterizada pela capacidade de ouvir e dialogar verdadeiramente com os estudantes, “para que nós professores compreendamos de que modo o aluno vê o mundo, quais suas dificuldades e pelo que seu pensamento está sendo domesticado”. Segundo o educador, a tarefa do professor não é fazer o aluno acumular ou replicar conteúdos de fácil explicação, mas sim, liberar a capacidade questionadora e criativa

do pensamento. “É necessário exercitar, através da escrita, a capacidade do estudante formular questionamentos para novas buscas por conhecimento”. Por último, mas não menos importante, Fernando Yonezawa afirma a importância de incentivar os alunos a ocupar o espaço de fala, encorajando-os a debater, para argumentar em diálogo verdadeiro entre os colegas. “Muitos querem falar, mas não necessariamente ouvir os outros”, afirma o educador. Para ele, em um país como o Brasil é necessário fortalecer muito o exercício democrático, o diálogo e a escrita seriam ótimos meios. O estudante Renzo Hassen concilia as demandas da faculdade com o estágio. Confessa que tem apenas os finais de semana e o tempo livre para estudar. “Quando estou em período de provas apago aplicativos como twitter e Instagram para focar mais”. Renzo utiliza também um aplicativo de Smartphone que indica as horas que passa na Internet. “Fico monitorando, tem dias que passo 10 horas na internet, em sua maior parte, no Instagram. As redes sociais podem se tornar um vício, que a maioria dos jovens hoje tem, devemos tomar muito cuidado.” junho 2019

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Que caos! Trabalho às 8 horas, mas, se quiser chegar no horário, tenho que sair às 6 horas”.“Gasolina quase R$ 5 o litro. Tá cada vez mais complicado andar de carro.”Essas são algumas das frases que, provavelmente, você já deve ter escutado diversas vezes de quem precisa realizar deslocamentos para o trabalho ou, até mesmo, para um eventual passeio. Para contrapor esse cenário, a discussão sobre as alternativas ao tráfego convencional (ou popularmente dita como mobilidade urbana) é amplificada na medida que os cidadãos buscam cada vez mais reduções no tempo de deslocamento. Entretanto, as propostas que nos cercam até o presente momento ao invés de se apresentarem como métodos alternativos, têm contribuído para o caos que cada vez mais toma conta do trânsito. Jardim da Penha, Vitória, 07h54min de uma manhã de sexta-feira. Em um trecho de aproximados 15 minutos, foi possível notar a presença de oito bicicletas de cores amarelas, paradas livrementes pelos passeios. No mesmo trecho, de cerca de 1,4 km, foi possível notar a presença de seis patinetes elétricos. Essa realidade, desde fevereiro deste ano, tem se tornado cada vez mais comum para os moradores da capital do Espírito Santo. A presença de bicicletas e veículos motorizados

FEBRE AMARELA (patinetes) compartilhados ao longo das ruas já não os surpreendem tanto. Entretanto, um assunto é comum para toda a vizinhança: os diversos acidentes ocasionados pelos veículos alternativos. Vitória Bordon tem 21 anos e é estudante de Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Espírito Santo. De maneira frequente, utiliza o app Bike Vitória e Yellow tanto para deslocamentos para a universidade, quanto para idas ao trabalho e eventuais passeios. Em uma de suas eventuais corridas (pelo app Bike Vitória), quando se dirigia à feira de alimentos em Goiabeiras, destravou uma bicicleta em uma das estações.“Antes de iniciar a corrida, como tinha o hábito de todos os dias utilizar o aplicativo para me deslocar até o trabalho, realizo uma verificação mais geral do estado do veículo antes de destravar, mas não percebi nenhum erro até então.” Poderia ter sido apenas mais um eventual percurso para Vitória, mas ao tentar pegar impulso para atravessar a rua, a marcha da bicicleta travou, o que ocasionou uma queda brusca com ferimentos. Lacerações, dores ao longo do corpo, além do trauma, foram algumas das marcas deixadas na estudante. “Às vezes a gente encontra algumas bicicletas com assentos soltos, correntes enferrujadas e, até mesmo, guidão torto.”

Vitória relatou o problema ao aplicativo, na opção “Veículo com Problema”. Escolheu a opção “problema com a marcha”. Apesar das lesões, não recebeu nenhum contato da parte do app. Foi orientada a buscar suporte jurídico contra o aplicativo, uma vez que a empresa é responsável pela manutenção dos veículos, mas optou por não recorrer. “Eu fico me questionando o quanto isso nos coloca em risco. Por diversas vezes já vi crianças utilizando”. Yasmin Freitas, analista, 31 anos, ao utilizar uma bike Yellow, viu o cadeado do app travar automaticamente quando excedeu o tempo permitido pelo valor pago, e sofreu uma queda brusca. “Eu caí próxima a uma via, o que poderia ter gerado um acidente ainda mais grave. Não enviaram um único alerta quanto ao trancamento automático por falta de saldo e, por causa disso, quase me envolvi em um acidente que poderia ter comprometido minha vida”, relatou Yasmin.Ela informou sobre a situação à empresa Yellow, mas não recebeu resposta. Outro grave problema que encontramos nos aplicativos, além das falhas mecânicas, é a falta de regulamentação e a utilização inadequada por parte dos proprietários. São poucos os trechos (dentre os permitidos pelo app Yellow e entre estações do Bike Vitória) que possuem ciclovias para circulação dos veículos. Em sua

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O SERVIÇO DE ALUGUEL DE BICICLETAS E PATINETES COMPARTILHADOS CHEGOU A VITÓRIA E LOGO GANHOU ADEPTOS, MAS A PRATICIDADE TROUXE NOVOS PROBLEMAS PARA USUÁRIOS E PARA A CIDADE Robson Silva maioria, bicicletas e ciclistas dividem as calçadas, o que tem elevado o número de atropelamentos a pedestres, conforme relatou o Guarda Municipal de Vitória Miguel Afonso, 49 anos. “A gente, diariamente, recebe alguma demanda ou ocorrência de pedestre que foi atropelado por ciclista. Com a chegada dessas bikes os números só aumentam. Infelizmente, as bikes optam pelas calçadas, porque é muito mais arriscado dividir a pista com carros e motos”, contou. Além disso, Miguel reforçou as dificuldades com os patinetes, que alcançam velocidade média superior à das bicicletas, o que compromete a segurança dos usuários. “Os patinetes alcançam até 30, 35km/h, o que é bem complicado para algumas regiões da cidade. A gente observa muita criança utilizando ou até mesmo as “caronas”, o que eleva o percentual de risco demais. Além da ausência de capacetes, é claro”. Entretanto, para cadastro nos apps e utilização, é requisitada a idade por parte dos usuários, apesar de não ser possível o controle em virtude da facilidade de ocultação de informações.

COBRANÇAS EXORBITANTES

Os problemas dos apps não se limitam apenas às negligências mecânicas, ausência de regulamentação

ou até mesmo espaços de deslocamentos ideais também são verificados erros de cálculo de utilização e cobranças exorbitantes. Para finalizar uma corrida, basta fechar o cadeado pelo app Yellow ou trancar em uma estação pelo Bike Vitória. Entretanto, diversos usuários relatam problemas ao finalizar a corrida. Os apps possuem um setor que dão suporte aos usuários em tais casos. Porém, alguns relatam problemas, como é o caso da estudante Cristina Perim, 24 anos, que utilizava uma Bike Vitória para deslocamento até a universidade, porém viu ser cobrada em seu cartão a taxa proporcional a uma diária por um problema no trancamento em uma estação. “Usei por pouco menos de uma hora. Teoricamente, uma corrida normal. Deixei minha bike na estação e, como habitualmente faço, conferi se havia trancado. Após 42 minutos que a deixei, recebi uma notificação do app informando que seria bloqueada do aplicativo por exceder o tempo limite”, relatou. Cristina contatou o suporte e explicou que havia realizado o procedimento, recebendo como resposta que teria seu bloqueio reduzido a uma suspensão por um dia. Mesmo insatisfeita com o procedimento, prosseguiu utilizando o serviço, até ver em sua fatura uma cobrança re-

ferente a uma diária no dia de suspensão. “No suporte em momento algum fui informada de multa. Não utilizo mais porque eu usava um plano mensal e veio uma cobrança extra por um erro mecânico do próprio veículo”. R.A, que prefere não se identificar por estar movendo um processo contra a empresa Yellow, recebeu uma cobrança no valor R$336,00 por uma corrida de 56 horas, segundo o aplicativo. Ele conta que o imbróglio todo ocorreu em função da falha do cadeado. “Eu utilizei a bicicleta em um trajeto curto, pouco menos de oito minutos, quando voltava da casa de um amigo. Deixei na porta do meu prédio e fechei o cadeado. Ouvi até a notificação padrão que a bicicleta emite quando tranca. Fui utilizar alguns dias depois e a corrida aparecia em aberto, contabilizando esse valor exorbitante. Contatei o suporte, que me notificou que eu havia utilizado a bicicleta mais vezes.” A partir daí, o capixaba buscou suporte jurídico e reivindica o estorno do valor em seu cartão, além de restituição por danos morais. “ É um absurdo eu ter que pagar por algo que não utilizei e não foi falha minha. Se o cadeado não identificou o fechamento isso cabe à empresa nas manutenções que dizem fazer, mas não posso arcar com esse valor.”

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or volta de 15h45, um carro prateado encostou na calçada. Dele, saiu uma enfermeira vestida de branco, carregando uma mochila. Esperando na frente da farmácia, fiquei apreensivo ao ver que ela não trazia consigo nenhum outro material médico. Pensei que não aconteceria. Com um sorriso, ela se identificou e entramos na loja. Era um ambiente claustrofóbico, com muitos itens amontoados em um espaço pequeno. Esperavam no balcão a proprietária e sua filha, Beatriz Oliveira, paciente do dia. Beatriz me recebeu gentilmente enquanto Lúcia Amely, a profissional da saúde, organizava seus equipamentos descartáveis. Seringas, agulhas, algodão, álcool 70%, álcool em gel, adesivos médicos e um garrote azul. Tudo pronto para a sessão começar. Usando o próprio balcão de granito amarelado do caixa, Beatriz esticou o braço e fechou os olhos. Amely limpou duas vezes a dobra do braço direito e encaixou a agulha na seringa. Com maestria e sem tremer, acertou a veia e retirou dez mililitros de um sangue ‘vermelhíssimo’. Após a extração, ela segurou a seringa por uns dez segundos voltada para cima antes de aplicar novamente. Atrás do balcão, Beatriz abaixou a legging preta e permitiu que Amely reaplicasse o sangue no músculo de uma das nádegas. Um “ai” baixinho e uma risada sem graça foram as únicas reações da paciente durante a sessão. O interesse de Beatriz pela auto-hemoterapia é o aumento da imunidade e da energia para o cotidiano, e não para o tratamento de uma doença específica. Todo o procedimento aconteceu em cerca de três minutos. Quando terminou, Amely descartou os instrumentos usados e guardou o garrote azul. 14

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AUTO-HEMOT POLÊMICA NA Apesar de ser um tema controverso e uma prática proibida, a autohemoterapia atrai muitos com promessas de cura e tratamentos fáceis

Mas para que serve este procedimento, conhecido como auto-hemoterapia? É um procedimento clínico que consiste na retirada do sangue de uma parte do corpo e na sua reaplicação em um outro local, a fim de, supostamente, aumentar a imunidade do corpo. Esta prática é motivo de polêmicas. Até mesmo sua origem é incerta. Uns acreditam que começou na França, durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto outros afirmam que a auto-hemoterapia é chinesa e vem sendo desenvolvida há mais de 2 mil anos. Entretanto, as controvérsias não se limitam à origem ou aos autores.

TRATAMENTO COMPLEMENTAR Para os defensores dessa terapia, a quantidade de macrófagos (células de proteção) encontrados no sangue reinserido e incorporado ao sistema, é o que ajuda a tratar e a prevenir doenças. De acordo com Amely, especialista em Saúde Coletiva, o aumento pode chegar a 17% se comparado com uma pessoa que não pratica auto-hemoterapia. Ela se baseia em um estudo feito pelo Dr. Ricardo Veronesi, imunoterapeuta paulista, defensor da causa. Em seu blog, criado para divulgar melhor os fatos acerca da prática, ele acumula depoimentos de quem passou

A auto-hemoterapia serve supostamente para aumentar a imunidade do corpo


OTERAPIA: NA VEIA Giovanni Werneck Lavynia Lorenção

por problemas durante toda a vida e que, a partir do tratamento sanguíneo, teve sua saúde restaurada ou a cura da doença. Um caso em específico é o da paciente M., de Vila Velha, que prefere não se identificar. No depoimento, M. afirma que sofreu com endometriose profunda por 20 anos. Após algumas cirurgias, a doença se agravou silenciosamente. Nas duas vezes que engravidou, a endometriose voltou mais forte e M. não suportava mais as dores e cólicas. Ao começar a estudar sobre condições autoimunes, ela aprendeu sobre a auto-hemoterapia e iniciou o tratamento com Amely. Com o tratamento, a paciente não sofre mais com dores, nem toma remédios: “O que digo para todos é que se remédio fosse bom não chamava droga”. Esse é um dos casos que levam cada vez mais pessoas a procurar a auto-hemoterapia e a abandonar remédios de uso contínuo por não se sentirem bem, como os de pressão ou de diabetes. Amely trabalha com o procedimento desde 2016 e não quer parar. Para ela, “é um tratamento complementar” que traz resultados. Mas alerta para que as pessoas não substituam integralmente o exame clínico e nem recomendações médicas. “Deve-se ser cuidadoso. Às vezes, as doenças entram em remissão e achamos que estamos curados. A auto-hemoterapia é uma grande ajuda nesse sentido”.

EFICÁCIA CONTESTADA Para os críticos, não há base científica que comprove o fortalecimento da imunidade. Eles alertam também que a prática pode trazer ainda mais complicações, como infecções, hematomas, lesões, edemas e abcessos na pele, além de evoluir para casos mais sérios, como hemorragia generalizada ou coagulação intravascular. Há um parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM), com pelo menos 15 páginas, apontando riscos e proibindo os médicos de utilizarem práticas terapêuticas que não forem reconhecidas pela comunidade científica, como é o caso da auto-hemoterapia. Órgãos governamentais como a Anvisa, pesquisadores de universidades, conselhos e outros corpos regulamentadores consideram o tratamento uma infração sanitária. “A auto-hemoterapia não foi submetida a testes genuínos, não foi corroborada, e nada há, além de indícios, casos isolados, que ampare seu valor, sendo o seu uso atual em seres humanos uma aventura irresponsável.” Essa nota, assinada pelo

Dr. Munir Massud, relator do parecer, é a atual legislação vigente. O corregedor do CFM, José Fernando Vinagre, escreve que as penalidades para quem atuar, divulgar, incentivar e ser remunerado por prática da auto-hemoterapia podem chegar à cassação do registro profissional junto ao Conselho. No entanto, no Espírito Santo, existe um grupo de terapeutas que são dedicados à formação e capacitação de pessoas na prática da auto-hemoterapia. As reuniões semanais custam entre R$ 15,00 e R$ 50,00. A especialista Lúcia Amely apoia que todos conheçam e pratiquem o tratamento sanguíneo. Para ela, existe uma espécie de conluio entre médicos ‘de fachada’ e a indústria farmacêutica. Apesar de todas essas regulamentações e penalidades, ela se diz tranquila quanto ao seu trabalho, assegura conhecer o tratamento e garante que, se feito corretamente, não traz nenhum malefício para quem é submetido a ele. Médicos registrados no CFM contrariam Amely e afirmam que relatos pessoais não são evidência científica. junho 2019

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Réveillon 2018. Áquilo Vitor, então com 20 anos, provavelmente nunca esteve mais animado. Está tudo pronto para o verão da sua vida. Muito sol, cerveja, música e churrasco. Ele e seus amigos alugaram uma casa de praia em Iriri, Espírito Santo. Definitivamente, vai ser um verão perfeito. E realmente foi. Mais de dois anos se passaram, e os olhos de Áquilo continuam brilhando enquanto ele revê as fotos na praia. Mesmo com todo esse tempo, ele ainda paga caro por aquelas férias. Ou melhor, não paga. “Eu escolhi fazer essa dívida, porque se não a fizesse, eu não teria viajado com os meus amigos. Eu fui ao banco, peguei R$400 para pagar a casa, depois fui pegando mais um pouco, e mais um pouco. Quando vi já tinha pegado R$700. Aí eu pensei: bem é isso, né? Vamos ficar endividados para viver uma experiência, porque é mais importante do que ter o nome limpo. Ou pelo menos, eu acho”, conta Áquilo entre uma risada e outra. Hoje, o analista de performance está com o nome sujo. Ele optou por não realizar o pagamento dos empréstimos que fez na época em que saiu de férias. Os juros foram se acumulando e, atualmente, a dívida dele é de aproximadamente R$ 2 mil. Sem nenhuma preocupação, ele conta que talvez pague o que deve daqui um ano ou dois. Mas Áquilo não está sozinho. Assim como ele, 40% dos jovens brasileiros têm ou já tiveram as contas atrasadas. Isso significa que quatro em cada 10 pessoas, entre 18 e 24 anos, já ficaram com o nome sujo. A história de Áquilo é apenas mais uma das que ganharam forma com o recente levantamento feito pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo SPC Serasa. A pesquisa demonstrou que os principais motivos para essas inadimplências são a necessidade de contribuir com as despesas domésticas e o descontrole com as finan-

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Matheus P. de Souza

ças pessoais. Dos jovens ouvidos, 78% possuem alguma fonte de renda, entre os quais 65% contribuem para a renda familiar. O principal gasto dos pesquisados é com alimentação, 51%. O levantamento foi realizado entre os meses de fevereiro e março deste ano. As instituições ouviram 801 pessoas de 18 a 24 anos, em 21 capitais do país.

DESEMPREGO

Os dados do CNDL demonstram que, entre as dívidas de longo prazo, 26% dos jovens inadimplentes deixaram de pagar crediários e carnês e 21% têm parte do orçamento comprometido com a amortização de empréstimos e consignados. Outros 21% devem parcelas de financiamento para automóveis. Para o representante do Conselho Regional de Economia Estadual (Corecon-ES), Juliano César Gomes, muitos desses jovens fizeram despesas de longo prazo e por contratempos da vida, como o desemprego, acabaram não conseguindo pagas essas dívidas. “São jovens que, na maioria das vezes, recorreram a linhas de crédito para custear a sua educação superior e acabaram não tendo condições de pagar esses financiamentos. Outro perfil é daqueles que tiveram acesso ao crédito pela primeira vez e, por um deslumbre, acabaram focando em dívidas de longo prazo, como financiamento de automóveis ou de consumos

que eles não estavam habituados antes”, destaca. Os mais velhos não estão em situação muito diferente desses jovens: 40% de toda a população do país terminou 2018 no vermelho, segundo o CNDL. E um fator que não pode ser descartado na hora de pensar todos esses dados é a atual crise de desemprego que assola o país. 13% da população está desempregada, e esse valor alcança cerca de 30% dos jovens. “A atual crise financeira teve um impacto direto na renda das famílias. De 2016 para cá, nós tivemos uma queda muito grande no mercado de trabalho. O rendimento das famílias caiu muito e algumas dívidas que antes eram custeadas por determinados membros do grupo, acabaram por ser reduzidas pela falta de recursos. Ou seja, alguns jovens acabaram acumulando dívidas devido à falta de recursos da família, que antes arcava com as suas despesas”, completou Gomes.

CONTROLE ORÇAMENTÁRIO

Quase metade dos jovens ouvidos pela pesquisa, 47%, admitiram que não realizam nenhuma espécie de controle sobre as finanças pessoais. Entre as principais justificativas estão que não sabem, 19%, que têm preguiça, 18%, e que não possuem disciplina, 18%. Para o economista Juliano César Gomes, a falta de controle financeiro é um dos fatores determinantes para a inadimplência des-


ENS DIVIDADOS O R E T R ATO DA S F I N A N Ç A S D E J OV E N S Q U E N A S C E R A M N A E R A DA I N F O R M AÇ ÃO, M A S N ÃO U S A M A T EC N O LO G I A A S E U FAVO R ses jovens. Somente com esse planejamento, cada pessoa consegue saber quais dívidas são prioritárias e quais são passíveis de serem cortadas em momentos de necessidade. “Basicamente, a pesquisa mostrou que não existe um hábito dos jovens de pouparem recurso e isso é uma das principais causas do endividamento. Se você não tem recursos guardados, quando ocorre algum tipo de revés ou situação de emergência, você acaba incorrendo ao endividamento”, explica Gomes. Segundo o economista, essa falta de hábito por parte dos jovens está diretamente ligada à falta de investimentos na educação financeira. Para ele, a maioria dos jovens nunca foi ensinada a lidar com as próprias despesas. Áquilo não está nem um pouco preocupado em limpar seu nome, e acredita que a maioria dos millenials também não se ocupam em fazer um controle sobre a própria renda. “Acho que a nossa geração não faz muito controle financeiro. Nós não estamos muito ligados nisso [...] a gente tá mais preocupado em viver experiências e prefere deixar para ver sobre o dinheiro depois. Nós damos valor ao nome, mas não tanto assim. [...] Apesar disso, eu acredito que realmente seria interessante a gente ter tido aula de educação financeira desde o ensino básico, porque lá na frente isso conta muito”, declara o estudante de marketing de 22 anos.

Gomes destaca, por sua vez, que nunca é tarde para aprender a administrar a própria renda. “Não existe receita de bolo, não existe algo que é certo ou errado. Cada um precisa descobrir qual método melhor se adapta. Atualmente, existem várias formas de fazer controle orçamentário. Sejam os apps de celular, com os quais você consegue controlar as despesas na hora em que elas ocorrem. Sejam as planilhas do excel, ou o mais rudimentar, o famoso caderninho de despesas”, lembra. Um dos pontos de maior destaque na pesquisa está no fato que esses jovens, apesar de terem nascido imersos na tecnologia, 53% dos que fazem controle financeiro, quase 30% ainda utilizam o bloco de papel para anotar seus gastos. Apesar disso, o economista destaca o ponto prioritário entre qualquer uma das formas de controle financeiro: a disciplina. “É ter o hábito de registrar diariamente as suas despesas, até a bala da cantina que você compra é preciso registrar”, afirma Juliano César Gomes. Hoje, Áquilo, que no trabalho fica responsável por cuidar do dinheiro dos clientes, admite que vêm tentando ser tão responsável com as próprias contas como é com o dinheiro dos outros. “Eu estou tentando evitar fazer novas dívidas. Não tenho mais cartão de crédito, mas acho que vou esperar mais um pouco pra pagar essa viagem”, ele conta enquanto ri.

Áquilo: “Ficar endividado para viver uma experiência, é mais importante do que ter o nome limpo”

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DEMOC NA CONTRAMÃO DOS ANSEIOS DA SOCIEDADE, AS RECENTES DECISÕES DO GOVERNO PÕEM EM DÚVIDA O FIM DO JOGO

A dama do povo, cuja voz é de todos, nasceu na Grécia antiga. Em seu berço, a democracia se manifestava nas ágoras, espaços públicos onde todos considerados cidadãos deliberavam juntos sobre a gestão pública da cidade. A democracia moderna, desenvolvida sobre os moldes burgueses na revolução francesa, difere daquela que foi seu berço, pois se dá através do modelo representativo. Na atualidade, a democracia é pautada em princípios liberais e estabelecida através de seu maior símbolo: o voto. É por meio dele que escolhemos quem nos representa na tomada de decisões relativas à administração do Estado. Entretanto, a dimensão desse poder de escolha é muitas vezes menosprezada. Após a série de protestos que tomou o Brasil a partir de 2013, o descontentamento da população com os seus representantes se tornou evidente, demonstrando fragilidades no processo democrático brasileiro. O país, segundo a Economist Intelligence Unit (EIU), é considerado uma democracia imperfeita, que vem se enfraquecendo desde 2014. Conforme dados do último ranking sobre democracia da EIU divulgados em janeiro deste ano, o país ocupa a 50ª posição entre os 167 países analisados, com a pontuação de 6,97 (a pontuação máxima é 10). O índice, compilado pela revista The Economist, Inglaterra, é baseado em cinco categorias gerais: processo eleito18

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Os cortes de verbas nas universidades e institutos federais de educação, somados à reforma da previdência, ao crescimento do desemprego, ao aumento da violência e da polarização política mostram que “normaliddade democrática” é anormal.


CRACIA EM XEQUE Giulia Reis e Lydia Lourenço

ral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política e cultura política. Os países são classificados em quatro grandes grupos - democracia plena, democracia imperfeita, regime híbrido e regime autoritário. A insatisfação popular com o Governo e as divisões ideológicas advindas da última eleição são sinais de alerta para a democracia brasileira, trazendo reflexões a respeito da manutenção e sobrevivência do

regime democrático que se enfraquece não somente no Brasil mas em outros países que nos últimos anos elegeram presidentes de perfil autoritário, como é o caso dos Estados Unidos de Donald Trump. Questionamentos a respeito da sobrevida da democracia têm aparecido com frequência. Três livros lançados recentemente nos Estados Unidos, levantam preocupações quanto ao futuro da democracia. Em Como as democracias chegam ao fim, David Runciman, mostra com diversos exemplos que a passagem para uma situação antidemocrática nem sempre se dá por meio do uso da força. Em O povo contra a democracia, Yascha Mounk, analisa entre outros aspectos, o crescente desinteresse dos cidadãos americanos mais jovens para com a democracia. Em Como as democracias morrem, de Steve Levtisky e Daniel Zablatt também mostram como líderes autocráticos tomaram o poder através do apoio popular e as semelhanças das estratégias usadas no passado com o panorama político contemporâneo. A deslegitimação da política por meio do discurso de um discurso supostamente apolítico, do “fazer diferente” ou de se mostrar o único honesto em meio a casos de corrupção e desqualificar instituições são recursos usados tanto por Trump como por Bolsonaro, que se consideram “anti-políticos”.

Um dos problemas que tem sido apontados nos últimos tempos como razão para o enfraquecimento do sistema democrático é a polarização ideológica - direita versus esquerda. Para o cientista político e professor da Ufes Mauro Petersem, o discurso de polarização é uma farsa. “O que existe é um grupo que não está disposto a distribuir renda, distribuir riquezas, nem minimamente”, referindo-se aos grupos de interesse formados pelos grandes empresários. A diarista Vanilda Mendes prefere a máxima “política não se discute” e compara o tema a religião e futebol. “Cada um tem seu direito de escolha. É como fé ou time de futebol, não vale a pena brigar por isso”, afirma. Em contrapartida, há quem acredite na necessidade de mobilização popular para enfrentar os riscos de perda de direitos e lutar por pautas que não são encampadas por atual governo. “A nossa luta unificou, é estudante junto trabalhador” foi um dos gritos entoados durante as manifestações que, nos dias 15 e 30 de maio, tomaram as ruas de Vitória, rechaçando as recentes decisões do governo Bolsonaro de promover cortes na educação e mudanças na previdência. Nessas datas, foram realizados atos em pelo menos 200 cidades de todos os estados brasileiros. As recentes afirmações do presidente brasileiro de que os manifestantes que foram às ruas contra os cortes na educação são “idiotas junho 2019

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úteis” e “massa de manobra’’ buscam de deslegitimar a livre manifestação, direito garantido pelo art.5º da Constituição Federal. O discurso de Jair Bolsonaro e seus aliados, marcado pelo ódio à esquerda se assemelha ao do período ditatorial dos anos de 1960 e 1970, este sempre defendido pelo presidente. Outro ataque direto tem sido feito às universidades federais. O atual ministro da Educação, Abraham Weintraub, considerou as discussões políticas dentro do ambiente universitário a “balbúrdia”. Ele também ameaçou estudantes, professores e pais de alunos, por meio de nota, que divulgassem e estimulassem protestos, deixando todos em estado de atenção sobre os próximos passos do governo, considerado por seus opositores como agressivo e anti-democrático.

QUAL A PRÓXIMA JOGADA? A onda de protestos iniciada no período de eleições presidenciais de 2018, motivada por discordâncias não somente partidárias, mas sobretudo ideológicas, acentuadas por discursos de ódio de apoiadores do atual governo contra apoiadores de uma política mais inclusiva, personificada na figura do ex-presidente Lula, agora se intensifica mediante as primeiras medidas tomadas nos primeiros seis meses de mandato. As atuais manifestações são impulsionadas pelos cortes de 30% que o governo federal impôs às instituições educacionais sob seu comendo, institutos e universidades federais. Outras ações do governo tamém enfrentam resistência como a reforma da previdência, o decreto autorizando a posse de armas para diversas categorias profissionais e segmentos sociais, a desarticulação dos conselhos de assessoria ao governo com participação da sociedade, entre outros. A próxima ação nacional contra o desmonte das instituições federais de educação e os mudanças no modelo de aposentadoria ocorre no dia 14 de junho, em um ato unificado de Greve Geral. 20

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QUESTÕES EM JOGO Mas a democracia - ou a falta dela - não se revela apenas no engajamento cívico e na existência de instituições formais que as constituições asseguram. A questão aparece de forma ainda mais reveladora nos níveis de desigualdade sociais. Estes demarcam efetivamente a distância que estamos de uma democracia econômica, social e cultural, que só tende a se aprofundar com as recentes medidas adotadas pelo goveno federal. Entre elas, encontra-se a reforma da previdência. O projeto que está em tramitação no Congresso Nacional prevê mudanças profundas, com perdas para quase todos os trabalhadores, em especial os de menor renda. Por outro lado, exige menos esforços dos militares. O advogado, Laio Medeiros, acredita que a proposta entra em conflito com direitos garantidos pela Constituição, em especial os que asseguram ao ser humano uma vida digna. “O problema está na atu-

ação do Poder Público que, muitas vezes, toma medidas ao arrepio da Carta Magna, violando-a frontalmente, como é o caso de algumas mudanças trazidas pela Reforma da Previdência”, ressalta. O presidente da República, Jair Bolsonaro, tem afirmado que a medida se justifica pela falta de recursos para pagar todas as despesas públicas. “Não dá para o Brasil continuar mais com essa tremenda carga nas suas costas. Se não fizermos isso, em 2022, 2023, no máximo em 2024, vai faltar dinheiro para pagar quem está na ativa”, disse em recente discussão sobre a reforma. Uma forma de pressionar a aprovação da proposta na Câmara Federal, onde o projeto será votado, foi promover os cortes recentes na educação. “No momento isso parece uma estratégia de chantagem”, acredita o cientista político Mauro Petersen, que enxerga nos cortes uma forma de evidenciar

para a população a falta de verbas. “É como dizer ‘olha, não temos dinheiro para praticamente nada, inclusive para o ensino superior’”, conclui. Para o professor de Comunicação Social, Rafael Bellan, a medida é um ataque direto às universidades, que correspondem a um meio de ascensão das camadas populares ao pensamento crítico, sobretudo após as políticas de inclusão social implementadas nos últimos anos pelos governos anteriores. Dados divulgados pela Associação dos Reitores das Instituições Federais (Andifes), mostram que 70,2% dos estudantes das universidades públicas federais são provenientes das classes mais baixas. Bellan crê que a decisão seja um ataque econômico que resvala na democracia. “O ataque é um golpe à possibilidade substantiva de as pessoas terem uma participação na vida do país”, evidencia. junho 2019

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UM LUGAR

ZEN No Dojo Zen, meditação e autoconhecimento Daniel Jacobsen Uma escada conduz ao Dojo Zen da Sabedoria. O espaço de prática de zazen - a meditação zen budista - é iluminado com uma luz quente e perfumado com os incensos que queimam no altar de Buda, sempre arrumado e limpo, com plantas, velas e uma imagem de Shakyamuni Buda. Os zafus, almofadinhas redondas e pretas para se sentar durante as práticas meditativas, estão cuidadosamente arrumados sobre os tatames. Na parede, janelas corrediças e cortinas brancas limpas. O telhado é de madeira e traz um clima convidativo ao ambiente. E em busca de autoconhecimento se senta nos zafus um grupo heterogêneo de pessoas. Homens, mulheres, jovens, velhos, ateus, cristãos, budistas, ricos, pobres. Tayo, sempre simpático e acolhedor, é responsável pelo espaço do Dojo, localizado no bairro Santa Luzia em Vitória, ao lado da Emescam. Ele fala sobre o que o zazen proporciona: “A meditação é o caminho da espiritualidade, do autoconhecimento. Se você não se conhece, você não chega a lugar nenhum, porque quando você começa a se conhecer, você começa também a conhecer o outro, então começa a respeitar o outro. Isso vai crescendo exponencialmen22 22

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te, até que você chega num ponto de maturidade, de serenidade, em que você vai viver em harmonia com os iguais e os desiguais, porque no fundo, no fundo, não existe igual nem desigual. Igual ao quê? Quem disse o padrão? Então o zen é muito aberto nesse sentido, e eu gosto muito pela liberdade que nos dá”. Os praticantes são motivados a manter a postura apropriada e, com ela, a respiração adequada. Esses dois fatores são pré-requisitos para uma mente íntegra e, assim, conseguir uma prática correta. Medita-se por meia hora ou mais. Os praticantes também recitam sutras budistas em língua japonesa, como forma de treinar a mente. Tocam-se instrumentos musicais durante a recitação. A pronúncia do texto deve ser perfeita. A mente não deve se desviar da atenção plena. O som dos carros passando velozes na rua não desconcentra. O som faz parte do espaço. Mas o som da mente pode estar gritando ou sussurrando, e o praticante tem no zazen uma ferramenta que permite observar em profundidade o que causa esse turbilhão de pensamentos que povoa a mente humana. O espaço existe há 11 anos, tendo

iniciado com o nome de Dojo Zen de Vitória. Em 2018, em virtude de uma nova fase atravessada pelo Dojo, ele foi renomeado para o nome que possui hoje. Nesse tempo, muitas pessoas já se beneficiaram das práticas ensinadas lá. “As pessoas vêm aqui, experimentam, aprendem, mas mudam também, vão para outros lugares. Aqui, abre-se espaço para receber pessoas. Seus amigos podem vir, não tem regras no sentido de que tem que vir aqui ou então não vir por alguma razão. E aqui se recebe amigos, se discute assuntos que eles queiram conversar, a gente toma chá... é um point de pessoas que têm esse mesmo nível de motivação do ca-


minho”, comenta Tayo na conversa informal que sucede o zazen. Tomando chá, os praticantes falam sobre suas vidas, descobertas, leituras. Élio é um desses praticantes. Ele fala sobre como sua curiosidade pelo budismo o levou às práticas realizadas no dojo, e como tem se beneficiado do zazen: “Eu tinha uma curiosidade sobre o zen, então eu resolvi vir aqui e, desde então, cá estou. A meditação ajuda em muitas coisas secundárias. A mais importante é essa atenção à mente. A gente costuma deixar a nossa mente muito livre, muito solta. Então quando você tem esse momento em que você observa a sua mente, fica mais

atento aos seus pensamentos e no seu dia-a-dia você consegue uma clareza mental maior. Acho que esse é o maior benefício”. O chá acaba, cada um lava a xícara que usou. Um gasshô - cumprimento de gratidão com as mãos palma com palma - e todos descem as escadas. Mais leves, mais conscientes de si mesmos, com a mente mais clara. O momento de zazen acaba, mas o foco na atenção plena continua no dia-a-dia. É ensinado no Zen que a prática e a realização são um: a prática não conduz a um objetivo, mas sim a prática já é em si mesma a realização do objetivo. Assim, não pode existir uma prática verdadeira

separada do cotidiano, mas deve-se levar o treinamento da mente presente a todos os momentos da vida. Além do Dojo Zen da Sabedoria, o Espírito Santo abriga também o Dojo Zen Oficial de Vitória, localizado no bairro Jabour em Vitória, e o Mosteiro Zen Morro da Vargem, localizado em Ibiraçu, o primeiro e mais bem organizado mosteiro zen da América Latina. Dojo Zen da Sabedoria site http:// centrodharmasabedoria.com. br/dojo-da-sabedoria/.

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ENTRE VON INCERTEZAS NÃO FALTA É

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egunda-feira. Primeiro de abril de dois mil e dezenove. “Tia, você quer ser minha mãe?”. Com esse questionamento do Lucas* para a Fran e com a resposta positiva dela à pergunta, naquele momento, a Fran e seu marido deram à luz a três filhos de uma vez só. De um lado, mais de 40 mil pessoas querem adotar. Do outro, menos de 9 mil crianças e adolescentes buscam por uma família. Mas por que dizem que a espera na fila de adoção é tão longa? Por que a conta não fecha? Pode não ser um tema muito discutido, mas a verdade é que a adoção no Brasil é cercada de questões. A maioria dos pais pretendentes a adotar indicam um perfil cheio de restrições. De acordo com dados divulgados, em 2018, pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), há 8,7 mil crianças e adolescentes cadastradas para adoção no país. Mais de 73% das registradas são 24

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A FILA DE ESPERA É COMO SE FOSSE A GESTAÇÃO. O FIM DA FILA É COMO O PARTO.

maiores de cinco anos, 65% são negras ou pardas, 25% têm alguma deficiência ou doença. Enquanto entre os adotantes cadastrados, cerca de 78% só aceitam crianças até o cinco anos, 17% querem apenas crianças brancas, 63% optam por não adotar aquelas que têm doenças ou deficiência. Dessas crianças, cerca de 65% têm irmãos. Entretanto, 65,81% dos brasileiros dos pretendentes a pais não estão interessados neste tipo de

adoção. Mas a Fran e o Roberto Pereira* não fizeram parte desta parcela. Desde que entraram com o processo de adoção, eles fugiam do perfil “padrão”: dispunham-se a adotar irmãos. “Meu coração dizia que seriam três. Mas eu ficava naquela dúvida ‘Meu Deus, será que é isso mesmo?’”, lembra a empresária Fran. Ambos já tinham filhos de relacionamentos anteriores, mas ainda


TADES E S, O QUE É AMOR Ana Julia Chan Richele Ribeiro

durante o namoro, o marido falou da possibilidade de ter mais filhos, foi quando surgiu o assunto. “Eu sempre tive essa vontade de adoção, desde muito nova. Ele queria ter mais filhos e eu falei ‘Ah amor, já tô com uma idade arriscada...O que você acha de adotar?’ E aí ele abraçou a ideia”, disse. Os pais, independentemente da configuração familiar, e os cuidadores exercem papéis essenciais na

formação daquela criança. É importante lembrar que um filho nasce do nosso desejo, mas ele é, antes de tudo, um sujeito de direitos. A psicóloga Sabrina Gusmão Pimentel reforça que o respeito e a segurança são fatores que fazem toda a diferença no processo de desenvolvimento da criança e do adolescente. “Com um bom vínculo, afeto e tudo o que eles (os responsáveis - pais e/ou cuidadores) geram tor-

na-se um pré-requisito para que a criança tenha um desenvolvimento saudável, que supra suas necessidades básicas... Fazem com que eles se sintam seguros e se desenvolvam com confiança e boa autoestima. O ambiente externo também vai influenciar na qualidade desse vínculo e é nessa interação, com os adultos de referências, pais ou cuidadores, e com o ambiente acolhedor que eles estão inseridos que o desenvolvijunho 2019 25


mento psicossocial vai se construindo”, analisa. Após o casamento, foi iniciado o processo e uma espera de dois anos que acabou em março deste ano. “Na última sexta-feira de março, a assistente social da Vara me ligou e perguntou se eu aceitaria até três crianças. Eu estava crente que ela iria me chamar para fazer outra entrevista ou coisa parecida”, recorda Fran. Após um fim de semana de muita ansiedade, segunda-feira era o dia de conhecer as crianças. Três irmãos - Ana*, Lucas* e João*. 3, 5 e 6 anos, respectivamente. exatamente como eles haviam imaginado lá no começo do processo. Em um local reservado do abrigo, a mãe relata que ela, o pai e as crianças, sentados no chão, iniciaram uma conversa. A recepção das crianças foi marcante. “Quando eles estavam com mais liberdade com a gente, o do meio virou pra mim, colocou a mão no meu rosto e disse ‘tia, você quer ser minha mãe?’, eu disse que sim e devolvi a pergunta: ‘você quer que eu seja a sua mãe?’, a resposta foi positiva. Logo em seguida, ele virou pros irmãos, muito empolgado, e falou ‘Ju*, Lucas*... Ela é nossa mãe! Ela é nossa mãe!’”, lembra. Desde então, em pouco mais de

O QUE A LEI PREVÊ

Pais adotantes têm as mesmas garantias que pais biológicos no direito à licença maternidade, intervalos para amamentação da criança adotada entre a jornada do trabalho e estabilidade no emprego durante o período de adoção provisória. 26

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dois meses que as crianças estão em casa, ainda no período de adaptação, mas já no primeiro dia, as palavras “mãe” e “pai” estiveram presentes. “Foi muito natural. Eles escolheram a gente”, completa. Vale lembrar que o processo de tentativa de inserir a criança a um novo núcleo familiar depende de cada caso. Para a psicóloga e mestranda da Universidade Federal do Espírito Santo, Anne Silva Rodrigues, 21 anos, é um momento delicado, porque muitas vezes a criança não entende o que está acontecendo e, quando entende, pode ser algo mais doloroso. “A pessoa que vai adotar a criança visita o abrigo e pode sair algumas vezes com ela, para ter esse contato e sentir, de alguma forma, essa ligação. Aí vai decidir adotar essa criança ou não. Já tiveram casos de os responsáveis saírem 3 ou 4 vezes com a criança e decidirem não adotar”, relembra. Construir vínculos pode ser uma questão neste período. Mas para a família Pereira, segundo a mãe, esta fase foi muito tranquila. “Parece que sempre foram nossos. Desde que eles chegaram, a família toda teve uma aceitação muito grande. Eles conquistam! Minha mãe era muito contra. Mas no dia que conheceu, ela ficou apaixonada. Traz bolo sempre que pode. É um mimo danado. Eles já falam que têm vó, vô, tios, têm um monte de primos… Eles acostumaram muito rápido”, relembra. Com as crianças em casa, os familiares focam em aproveitar o momento. “Para ser bem sincera, eu nunca olhei as dificuldades. Aqui é trabalho triplicado, mas a alegria também é”, finaliza. DA VONTADE À ESPERA “É um amor que nasce aos pouquinhos”. Esta é uma frase que a servidora pública Priscilla Louzada ouviu no curso obrigatório aos pais candidatos e usa para explicar a adoção. Sua vontade de adotar nasceu a partir do sonho do marido, Alexandre. Entusiasta da ideia desde a

adolescência, ele foi amadurecendo a questão aos poucos ao longo dos últimos sete anos com a esposa. “A decisão com a Priscilla foi tomada depois de muitos anos de conversa, quando aceitamos que a ideia de gravidez seria improvável. Aos poucos fomos nos entendendo e alinhando a questão.” Há 15 anos juntos, hoje o sonho é dos dois. Em meio à muita espera, cursos, inúmeros documentos e reuniões, o casal está há cerca de dois anos na fila. ”É muito importante para eles (juizado) que a decisão seja conjunta, para a criança não sofrer”, afirma Priscilla. A fila tem um prazo de validade, que expira e precisa ser renovado, aumentando a ansiedade dos futuros pais. “Em agosto de 2017 fomos entrevistados na Vara. A parte mais difícil é esperar sem ficar ansioso... rs... Mas nunca pensei em desistir. Sei que o processo é demorado. É como um bolo muito difícil de fazer, com muitos ingredientes e demora para assar”, disse Alexandre. Priscilla tem buscado formas de lidar com a espera. “Estou em uma fase de amadurecimento e tentando me manter menos ansiosa em relação ao assunto. Antes eu ficava imaginando como ela seria, o cor do cabelo... Sonhava muito com isso, mas cheguei em uma fase que estou aguardando. Uma hora o telefone vai tocar”, completa. O casal já aguarda as mudanças na rotina com a chegada da criança. eles desejam que seja uma menina. “Não terei mais tempo para ver série”, brinca a servidora. O futuro pai pensa em uma remodelação da casa. “Praticamente tudo vai mudar. Minhas coisas de eletrônica são muito pequenas e não posso deixá-las ao alcance de uma criança. Vou ter que colocar em prateleiras altas. Além disso, toda a minha praticidade será afetada em nome da proteção dela. Minhas preocupações serão: saúde, educação, carinho, segurança, alimentação... Que ela se sinta acolhida e me aceite como pai”, finalizou.


filme FILME

“MOTHER - A BUSCA PELA VERDADE”, DE BONG JOON-HO 129’ / CORÉIA DO SUL / DRAMA E SUSPENSE Lá em 2009, dez anos antes de conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes com o filme “Parasite”, o diretor Bong Joon-ho lançava a trama de uma mãe disposta a tudo para salvar seu filho da acusação de um homicídio. Acreditando no despreparo policial e na inocência de Do-joon, retratado como deficiente intelectual, começa a investigar o crime por conta própria. Sob doses de suspense, humor e emoção, o sul-coreano demonstra bem como os laços familiares têm o poder de mudar as verdades que julgamos conhecer.

música MÚSICA

“IGOR”, DO TYLER, THE CREATOR 39’ / EUA / HIP-HOP / 2019

Considerado o primeiro disco de rap auto-produzido a alcançar o topo da Billboard, Tyler, The Creator veio superar a expectativa dos fãs e da crítica com “IGOR”, seu novo trabalho. De narrativa quase cinematográfica, o sexto álbum do músico compõe um amor obsessivo ao longo de 12 faixas, cujos arranjos foram feitos pessoalmente pelo artista. Tyler administrou de forma autônoma todo o processo de criação, sem contar sequer com o apoio de co-produtores. Na semana de estreia, “IGOR” conseguiu vender 165 mil cópias, dando ao rapper pela primeira vez o nº 1 nas paradas.

livro LIVRO

“BLUES FOR MR. NAME OU DEUS ESTÁ DOENTE E QUER MORRER”, DE REINALDO SANTOS NEVES EDITORA PATUÁ / 2018 / 420 PÁGINAS Merecemos a salvação divina? O mundo regido pelo ser humano deve ser poupado? Em seu novo romance, o capixaba Reinaldo Santos Neves apresenta uma resposta para estas perguntas. Apesar de essencialmente literária, ainda assim há de provocar espanto, pois ela vem do mais sofrido dos personagens do livro: Deus. Ao contrário da ideia cristã de onipotência, ele encontra-se cansado e doente justamente devido aos males do universo que criou, e designa Katherine Whishaw, simples veterinária no enredo, a encomendar sua morte. O livro está à venda no site da Editora Patuá, por R$ 50 reais. junho 2019

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QUILÔMETROS

MARIA FERNANDA CONTI 28

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No meio da viagem, Borel virou e disse pra mim: “Pô, o que eu mais vou sentir falta dela é do frango com quiabo”. Começou a chorar. Forte, alto o suficiente para que o ônibus inteiro escutasse. A última semana não foi fácil: perdera a irmã. Infarto. De uma família com cinco irmãos, agora era filho único. Negro, alto, sua idade era denunciada pela barba e o bigode, como também pelo boné que carregava na cabeça, escondendo o cabelo branco. Nas mãos, uma lata de cerveja que acabava se enchendo nas paradas (“vou bebendo de Linhares a Vitória”, como ele mesmo disse); nos olhos, a tristeza. “Ah, menina, pouca coisa me restou. Hoje, a razão da minha vida é estampar camiseta, tenho uma estamparia em Goiabeiras. Conhece?”. Durante a infância, cresci em uma cidade ainda não verticalizada. Pude sentir a felicidade genuína do interior, onde subia o cheiro das matas e era inquieta a quietude da roça. Porém, depois de anos, não pude permanecer nela, tendo que crescer, agora, na capital. Desta vez, profissionalmente. Esse vínculo largado para trás, onde nasci e deixei a família, até hoje faz com que eu percorra o trajeto Conceição da Barra-Vitória uma vez ao mês, no mínimo. É


DE

MEMÓRIAS

nessas cinco horas que escuto histórias dignas de um filme. Borel é uma delas: ele, na poltrona 31, do ônibus do dia 18 de novembro de 2018, que saiu às 15h30, eu, na 32. Além do frango com quiabo e da empresa que dirigia, muito ele contou: não conseguiu ir ao velório da última irmã, pois, “não piso mais em São Paulo, nem na vida nem na morte”. Vive sozinho, na Serra, sem animais, amigos ou vizinhos e é o líder de uma banda de pagode, que montou com parte de seus funcionários, já que “tocar e dançar dão fôlego pra viver”. O sambista não foi o primeiro. Mesmo com fones de ouvido, no ônibus do dia 04 de agosto de 2018, das 14h, um choro superou o volume da música. Ao telefone, a senhora que estava na poltrona 05 falava em acidente, soluçando e limpando disfarçadamente o rosto. Preocupada, na intenção de confortar a cabeça já tombada na janela, perguntei no que podia ajudar. Pelo visto, era escutando: um grande amigo, que a levou até a rodoviária e a hospedou durante os dias que havia passado na cidade, voltando para casa, foi atropelado. “Preciso descer, minha filha. Vai precisar de companhia no hospital. Ele tava comigo agorinha! O cachorro ficou

sozinho. Preciso descer, minha filha, pede pro motorista parar que eu preciso descer”. E desceu. Em meio à confusão, conheci Solange. Aliás, em uma das nossas conversas pelo Facebook, disse que o amigo estava bem, “graças a Deus”, como ficou a repetir. Depois do episódio, passei a anotar o que escutava. Até agora, Solange, Rodrigo, Borel, Patrícia, Cassandro, Jucélia e Beatriz, ou cadeiras 05, 25, 31, 35, 22, 17 e 12. Vi que gostava de criar personagens e adentrar nas suas tramas, mesmo que de ficcional não houvesse nada. “Lá, eles trabalham com 14 ou 15 mil” me disse Rodrigo. “O quê, reais?”, perguntei. “Não, volts”, disse ele sobre os amigos que haviam ganhado a vida no Rio de Janeiro, enquanto ainda trabalhava aqui como eletricista. “Vi colegas de trabalho que, literalmente, fritaram. Toda semana, alguém toma choque, morre ou fica semi-morto”. Na hora da despedida, o calor do afeto sempre aparece. De ambos, sai o “obrigada”; “muito bom conversar com você”; “foi um prazer”; “espero que um dia a gente se veja de novo”; “bom resto de viagem” e “fica com Deus”. Horas de intimidade que se desfazem em, quem sabe, um nunca previsível até logo. junho 2019

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SLAM

O GRITO DOS POETAS MA POESIA E TEATRO JUNTOS EM UM CAMPEONATO QUE FAZ O SANGUE FERVER. O SLAM OCUPA AS RUAS DA CIDADE E APROXIMA A LITERATURA DA NOVA GERAÇÃO. Carla Nigro

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hego silenciosamente e observo. Todos estão conversando, brincando. Há grupos, casais e pessoas sozinhas. Parece que todos já são de casa. Em sua maioria são pessoas negras. O estilo hip hop impera, mas há um casal de rockeiros, como eu. Me sinto meio perdida. As idades variam entre 14 a 30 anos. Não demora muito para que a mestre de cerimônia peça para formarmos uma roda. Então, a quadra de tênis vira palco e todas as preocupações se desfazem, expulsas pelo assombro das performances. Não sou só eu, todos estão vidrados. Silenciados pela voz do poeta. Assim começa o Slam Xamego. O Slam é um campeonato de poesia falada onde os poetas declamam poesias, principalmente sobre suas lutas: preconceito, homicídio, exclusão social, religião e machismo, são alguns dos temas abordados. O evento ecoa principalmente na periferia, reivindicando direitos. Surgiu em Chicago nos anos 80, fundado por Mark Kelly Smith, que percebeu que a poesia era um dos gêneros literários com menor popu30

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laridade. Ele queria quebrar o elitismo da poesia acadêmica, toda estruturada e organizada, criando algo que impactasse direto na alma da audiência. Acabou responsável por devolver a poesia para as ruas. A primeira competição nacional de Slam ocorreu em 1990. O movimento é introduzido no Brasil nos anos 2000 com o campeonato ZAP (Zona Autônoma da Palavra), trazido pelo Coletivo Paulistano de Teatro Hip-Hop, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. No Espírito Santo o primeiro Slam surgiu em 2015, o Botocudos. Vou ou não vou? Esta foi a pergunta que eu me fiz até o momento do Slam. Chego às sete e dez da noite de um sábado na Praça dos Namorados. Como sempre, esqueço algo importante: mas onde são as reuniões? A bateria do telefone não ajuda. Ando calmamente pelos caminhos lotados de gente, testando minha sorte; falta dela pelo visto. Não acho nada. São oito da noite e eu já desisti. Num tinha muita certeza sobre isso mesmo. É quando vejo várias pessoas reunidas em uma quadra de tênis. Podem ser eles, penso. Eu paro em um encruzilhada: direita

para o Slam ou esquerda para o ponto de ônibus? Coisas novas assustam afinal, mesmo as mais inocentes. E a timidez também atrapalha. Direita, vamos ver no que dá.. “Que nosso coração seja aquecido. Os amores correspondidos. E que nunca nos falte contatinhos. Slam!”, saúda a Slam master no início das declamações de poesia. O público empolgado reage em uníssono com um “Xamego!”. Esse é o bordão do Slam Xamego, um dos vários grupos de Slam espalhados pelo estado. Nos últimos anos, a poesia tem se reconectado com a juventude por meio dos Slams. Sua popularidade tem tornado comum observar locais públicos inundados de poetas. O Slam Xamego, por exemplo, se reúne no terceiro sábado de cada mês na Praça dos Namorados. São cerca de 50 pessoas, entre Slammers, estudantes e escritores reunidos para compartilhar poesias e afetos. Isso sem contar os curiosos. “A gente sempre tenta fazer (o Slam) em locais públicos. Para as pessoas se aproximarem, pra gerar curiosidade nelas. Mano, que tá acontecendo ali? Deixa eu ver o que


ARGINAIS

SOFIA, DO SLAM NÍSIA junho 2019

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é. Aí tem pessoa que vai, fica, procura saber mais. O que aquele bando de jovens tá fazendo ali? Já pensam que é bobagem. Mas quando vê o pessoal declamando... uma pessoa falando, o resto tudo em silêncio. Tem até quem fica até o final. Ali na Praça dos Namorados ocorre muito” conta João Martins, estudante de Letras e slammer do Slam Xamego. Além deste, há vários grupos no estado: o Slam Nisia, o Poesia Inútil, o Botocudos, o Boca de Forno, o Slam da Orla, o Artevista... Cada um com suas próprias particularidades e locais de reunião: praças, escolas, ruas, bibliotecas, palácios. Basta que haja poetas e disposição. É todo um universo que se desdobra á margem da sociedade, exigindo voz e criando sonhos.

VOZ DA PERIFERIA

“Ninguém nunca nos ensinou a sonhar. Ninguém nunca nos incentivou a ler. Eu gosto de dizer que as pessoas sempre me ensinaram xingamentos, violência, mas nunca a acreditar nos sonhos. Eu acho que o Slam está modificando isso. Para nós, jovens da periferia, que nunca tivemos muitas coisas materiais, eu acho que se eu não tivesse o Slam eu não teria chegado tão longe. Não teria um livro meu, não estaria organizando esse evento”, aposta o poeta e slammer Marcos Oliveira,

conhecido por Marquinhos. Para ele, o Slam dá voz para aqueles que não a têm, aproximando a poesia da periferia. “Se eu fosse branco e fizesse poesia não seria um problema”, acredita Marquinhos, “mas eu sou negro e favelado e as pessoas falam. Eu acho que quanto mais pessoas virem que pessoas periféricas também conseguem escrever literatura, em mais lugares eu vou entrar e mais pessoas eu vou incentivar. E isso vai se repetindo. Eu estou levando isso para minha comunidade”. Para a estudante Sofia, do Nisia, o Slam é uma forma de resistência. “Eu levo muito nesse lado de lutar pelo que eu acredito. E falar pra todo mundo que é isso que eu acredito. É importante você ir lá e falar o que acredita. Por que é muito difícil gente que bate de frente com esse sistema conservador”, conta. Com apenas 14 anos, Sofia já é uma poeta promissora, com uma vaga garantida para o Slam Estadual ES 2019. “A gente vai falar sobre as pessoas que morrem, por que elas morrem na nossa frente, a gente conhecia elas, fomos seus amigos e podíamos ser uma delas. Enquanto as questões forem urgentes é preciso falar delas” concorda o estudante de letras e também integrante do Nisia, Marlon. Para ele, o Slam entrelaça a luta nas palavras.

CA MPE O QUE É O SLAM? São encontros de poesia falada (spoken word) e performática, geralmente em forma de competição, em que um júri popular, escolhido espontaneamente entre o público, dá nota aos slammers (os poetas), levando em consideração, principalmente, dois critérios: a poesia e o desempenho. As competições são bem flexíveis. As poucas regras variam de acordo com os organizadores. No geral, os poemas podem ser de qualquer estilo, forma e tema. Porém é necessário ter no mínimo três poesias autorais para recitar, uma vez que elas não podem ser repetidas e a competição tem três fases. Passar de três minutos? Não pode. Se acontecer o poeta sente na pele: os pontos são descontados. E qualquer poema discriminatório (por exemplo, homofóbico, machista, racista) é instantaneamente eliminado. Além disso, não é possível usar qualquer tipo de auxílio visual ou/e fantasia, instrumento musical, música pré-gravada ou sampling. Há duas razões para essa regra: manter o foco nas palavras e performance do poeta, e garantir a igualdade de condições para todos. 32

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“...Reclamamos da mesma vida. Sonhada e refletida na retina de quem morre, aos poucos, no hospital” as mãos se movem, enfatizam, exigem que a audiência sinta a angústia que consome o poeta. Ele para, rosto distorcido pela tristeza. Mais a frente, brinca com os sentimentos de todos. Questiona, abre um sorriso e continua “...Me jogaram no fundo do poço. E eu encontrei a Samara, aquela famosa menina” a platéia ri mas a ovação real vem com a continuação “Chorando ela me disse, cuidado seu moço. Ouvi dizer que tem monstros lá em cima” e um público conquistado é arrebatado com “Talvez essa seja minha última letra. Então, se essa for minha última letra. Avisa o papai que essas brigas, todos esses anos, o errado sou eu. E avisa a mamãe que bem que ela avisou. Inventei de sonhar sem sombrinha


DIFICULDADES E OPORTUNIDADES O Slam Xamego foi o primeiro do Estado a sair das ruas e se apresentar no Palácio da Cultura Sônia Cabral, no centro de Vitória (ES), para um evento só de Slam, segundo os produtores. A edição especial ocorreu no dia 8 de junho e aproveitou para celebrar o Dia dos Namorados. Martins acredita que esse evento demonstrou que qualquer lugar é acessível a todos e ninguém deve se sentir inibido de entrar, independentemente do poder econômico ou da cor. “Há muito essa visão de que esse espaço não é meu, mas todo espaço é. É necessário ocupar porque são espaços nossos”, proclama, contando que trouxeram“ um público diferente do que costuma vir. Vieram pessoas que nunca foram para o teatro”. A intenção de João e Marquinhos, produtores do evento, é incentivar a profissionalização. “Nós queremos profissionalizar o ‘rolê do Slam’. Mostrar que não é só ir e recitar uma poesia, tem todo um trabalho por trás que precisa ser reconhecido. Nos outros estados, a galera cobra para se apresentar. Queremos ver isso aqui também”, desafia Marquinhos. Para eles, profissionalizar permite abrir um leque de novas possibilidades, além de solucionar várias das dificuldades enfrentadas atualmente pelo movimento literário, a exemplo da falta de equipamentos básicos (microfones, caixas de som) ou de informações técnicas. “Não queremos que a nova geração passe pelo que passamos. Não teve ninguém, por exemplo, que nos ensinasse a fazer um portfólio. E a gente penou para descobrir. Como faz um edital? A gente não sabe. A gente não está fazendo o evento no Sônia Cabral porque alguém que já fazia nos convidou. Isso fomos nós correndo atrás. Mas, graças a Deus, há pessoas que já lidam com literatura que nos deram abertura”, complementa.

ALÉM DE QUESTÕES SOCIAIS, AMOR: SLAM XAMEGO.

ONATO lá fora. Choveu!” encerra Cesar Mc. É o primeiro campeão capixaba de Slam. A primeira seletiva do Espírito Santo aconteceu nos dias 23 e 24 de Setembro de 2017, na Barra do Jucu. Participaram 12 poetas, representando dois Slams: o Artevista e o Botocudos. Deste último, saiu o Cesar Resende Lemos, mais conhecido por Cesar MC. A batalha de poesia tem três níveis: o estadual, o nacional e o mundial. Cada grupo de Slam capixaba tem direito a cinco vagas para o estadual. Para isso, basta que já tenha realizado 5 encontros de Slam no ano. Quem vence, vai a São Paulo representar o ES no nacional. Já pensou em rodar o mundo com tudo pago pela poesia? Pois é o que acontece com o vencedor do campeonato brasileiro, ele vai para a França competir no Slam Mundial.

“A gente tem que falar de luta. As minhas poesias são todas de luta. Mas às vezes alguém chega com uma poesia de amor e a gente fala “Nossa, amor? Você não vai a lugar nenhum”. E querendo ou não a nossa luta é para que haja mais amor. Entre os Slam a gente precisa conseguir abrir espaço, para que os Slams sejam mistos de amor, de tragédia, de luta, de tudo”, reflete Sofia. Foi exatamente para falar de amor que foi criado o Slam Xamego. Nele, o foco é o afeto, assim se você quer falar sobre o amor da sua vida ou o chifre que você levou será muito bem recebido. A ideia é que no momento em que o Slam Master grite “Slam” alguma coisa, o palco é do poeta e de seus sentimentos.

João Martins, Slam Xamego (ao lado) e Laís, do Slam Poesia Inútil (acima)

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QUANDO FESTIVAL RIMA COM

SUSTENTABILIDADE Práticas ecológicas ganham espaço nos festivais de música Felipe Khoury

Pneu da bike calibrado, copo e canudo na mochila e ingresso na mão. Tudo pronto para ir ao festival. Saio de casa, encontro meus amigos na vila de Manguinhos e de lá vamos juntos até ao evento. Chegando perto, com o vento batendo nos meus cabelos, ainda em cima da bicicleta, já começo a escutar a música que vem de dentro. É fácil encontrar alternativas que contribuem com o meio ambiente até quando vamos nos divertir. E assim tem sido em alguns festivais de músicas mundo afora: sustentáveis. No Brasil, a consciência ecológica tem ganhado força ao longo dos anos. Grandes festivais pregam essas atitudes, dentre eles, o festival Natura Nós, que, além de fazer toda a separação adequada do lixo, também oferece aos fumantes um recipiente para depositar a guimba do cigarro. No Rio de Janeiro, a festa da Stone House também faz movimentações em prol da limpeza das praias, da cidade e da reciclagem dos resíduos. No Espírito Santo, existe um festival que abraça diversas práticas ecológicas: o Casa Corais, realizado em Manguinhos, na Serra. Ele vem adotando ações sustentáveis desde sua primeira edição. O responsável pelo evento, Gabriel Muniz Barbosa, conta que eles já conseguiram reduzir a zero o número de copos plásticos e canudos. “Nós tivemos a ideia de alugar copos por um valor simbólico. A pessoa paga na entrada, curte o evento e ao final ela pode pegar

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o dinheiro de volta ou ficar com o copo de lembrança”, afirma Muniz. Segundo dados do Banco Mundial, o Brasil é o 4º maior produtor de lixo plástico no mundo, com 11,3 milhões de toneladas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia. Mesmo parcialmente passando por usinas de reciclagem, há perdas na separação de plásticos, por estarem contaminados, serem multicamadas ou de baixo valor. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no Brasil, o volume anual de resíduos sólidos urbanos cresceu 21%. E, segundo o IBGE, anualmente, são produzidos 62 milhões de toneladas de resíduos, ou quase 1,2 quilos por pessoa ao dia. É de se concordar que o ramo de eventos ainda produz muito lixo, precisando urgentemente haver uma conscientização, em larga escala, dos responsáveis. Como alternativa para ajudar à inclusão de práticas sustentáveis, foi promovido pela rede de governos locais e regionais ICLEI - Governos Locais pela Susten-

tabilidade em 2014, o Manual para Gestão Integrada e Sustentável de Resíduos Sólidos em Eventos, durante a Jornada Nacional sobre Cidades e Mudanças, em Belo Horizonte, MG. Nele, constam orientações para o planejamento de eventos de maneira sustentável. Para Gabriel, do Casa Corais, aderir a essas práticas é fundamental. “Decidimos adotar alguns métodos ecológicos por acreditar que seja essencial e importante para qualquer ciclo de vida”. Todas essas mudanças não só proporcionam impacto durante o evento, mas após ele, com a conscientização das pessoas que foram ao local e viram essas ações. Muniz afirma que “o primeiro impacto é no comportamento das pessoas, que hoje pensam duas vezes antes de pegar um item descartável ou até mesmo jogar lixo na rua. Hoje, o festival conta também com os “cemitérios de cigarros” que são feitos com garrafas pets e espalhados por todo local para colocar guimbas de cigarros. “Essa é uma alternativa encontrada paraque as pessoas não joguem no chão, como de costume” afirma o responsável. Além de música e arte, o festival Casa Corais traz exposições sobre sustentabilidade. Na última edição, o tema foi a poluição marinha, trazendo um stand da “Novos Mares”, uma empresa capixaba de cursos livres, palestras e consultoria que atua no ramo de educação ambiental e divulgação da Biologia e Conservação Marinha.


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Pela primeira vez a Copa do Mundo de Futebol Feminino será transmitida pela tv aberta no Brasil. Após 28 anos desde a sua primeira edição, em 1991, e mesmo tendo Marta, considerada a melhor jogadora do mundo em seis ocasiões - ultrapassando craques como Messi e Cristiano Ronaldo -, a seleção feminina só teve maior repercussão durante as Olimpíadas do Rio, em 2016. Na época, a seleção masculina passava por uma má fase e a feminina caía nas graças do público. Ganhou destaque a foto de um garotinho com a camisa da seleção brasileira em que o nome de Neymar foi riscado e escrito Marta sobre o número 10. A visibilidade pela qual essas mulheres tanto lutaram e merecem está começando a aparecer. Em uma época em que a luta pela igualdade de gênero, entre tantas outras lutas, está tão em alta, isso é o mínimo. Mesmo assim, as diferenças e os preconceitos ainda rodeiam o caminho das mulheres por todos os lados, principalmente no esporte. A Copa do Mundo de futebol feminino acontece entre os dias 7 de junho e 7 de julho, na França. Semelhante ao que ocorre durante a Copa do Mundo masculina, está circulando um álbum de figurinhas feito em parceria com a FIFA, que contempla 17 jogadoras de cada uma das 24 seleções participantes. No entanto, diferente do que ocorre com o masculino, o álbum das jogadoras viralizou pelos motivos errados, pois uma série de comentários machistas tomou conta das redes sociais após a divulgação - o que deixa explícito o quanto o preconceito ainda está presente. Os números levam a crer que esta Copa já entrou para a história: com mais de 270 mil bilhetes comercializados um mês antes de a competição ser iniciada, o torneio se tornou o recordista nesse quesito. No Brasil, será a primeira vez que a Rede Globo, maior emissora de canal aberto do país, transmitirá as partidas da seleção feminina. Será vez também das comentaristas mulheres atuarem nas transmissões das partidas, como Milene Domingues, ex-jogadora de futebol, e a jornalista Ana Thais Matos. 36

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O MOMENT Marcela Delatorre

A competição deste ano marca também a primeira vez que a seleção brasileira feminina jogará com um uniforme desenhado para elas. Entre 1988 e 2011, as jogadoras tinham que usar os uniformes masculinos com pequenos ajustes. Em 2015, a equipe ganhou uma camisa feminina. Mas agora, em 2019, o uniforme inteiro recebeu um modelo exclusivamente para o corpo feminino - o que contribui até mesmo no desempenho dentro de campo. Como podemos perceber, essa Copa do Mundo marca muito mais do que apenas uma competição entre países, no entanto, ainda são muitos os obstáculos que as mulheres precisam enfrentar no decorrer do caminho

QUANDO AS MULH LUGAR NO MEI

profissional, principalmente quando relacionado a esportes.

A DESIGUALDADE DE GÊNERO Segundo a professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e também pesquisadora de gênero Gabriela Alves, a desigualdade é uma marca cultural que se faz presente há muito tempo. “Homens e mulheres são diferentes. A questão é quando isso gera uma desigualdade entre os gêneros. É difícil combater isso e leva tempo, porque é preciso mudar a forma como culturalmente as pessoas pensam e agem”, afirmou.


guei em 3º lugar, um piloto argentino não aceitou que eu fosse vencê-lo e começou a jogar a moto para o meu lado, tentando me tirar da pista. É como se ele dissesse: ‘Se eu não vou ganhar, ela também não vai’”, contou.

NO JORNALISMO, ELAS TAMBÉM SÃO DRIBLADAS

TO É DELAS

HERES BUSCAM SEU IO ESPORTIVO

A presença das mulheres no mundo esportivo vem se tornando cada vez maior em todas as modalidades. Ainda assim o preconceito contra as atletas e profissionais da área é muito forte. No ranking dos 100 atletas mais bem pagos não há nenhuma representante feminina, o que mostra como a desigualdade entre homens e mulheres ainda é predominante. E mesmo com o grande número de feitos e conquistas das atletas, a visibilidade e credibilidade delas é colocada diariamente em debate apenas por seu gênero. No cenário capixaba não é diferente. Nas praias do Espírito Santo, vemos o amor do estado pelo beach soccer. No entanto, há uma grande

disparidade de gênero na modalidade. “O beach soccer feminino é muito defasado porque a Confederação parece só existir para o masculino. Nós, atletas, fazemos a nossa parte, tentamos cuidar dos treinamentos, mas é muito complicado nos manter motivadas quando não se tem nem um calendário oficial”, reclama Letícia Villar, atleta de beach soccer há pelo menos 13 anos. Segundo a piloto de motovelocidade e supermotard Gabriella Bastos, apesar de nunca ter se sentido discriminada durante as corridas, wjá passou por situações em que certos pilotos não aceitavam perder para uma mulher. “Durante uma competição no Uruguai em que che-

Outro quadro existente é o das profissionais da mídia. De acordo com uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), sobre as “Mulheres no Jornalismo Brasileiro”, há vários dados que comprovam como ser mulher pode ser desafiador nessa profissão. Na pesquisa, 86,4% das jornalistas disseram já ter passado por pelo menos uma situação de discriminação de gênero no trabalho. Luciana Castro, repórter que trabalhou no jornalismo esportivo por pelo menos seis anos, revelou que, tirando os comentários existentes entre os jogadores quando se é a única mulher entre tantos homens em jogos ou treinos, situações mais sérias também já ocorreram. “Eu fiz uma matéria sobre um treinador; ele achou ruim e meio que começou a me perseguir. Não conversava mais comigo e eu também não entrevistava. Mas aí ele começou a fazer brincadeiras sem graça na frente de jogadores, de outros repórteres, querendo me intimidar. Essa foi a pior situação de assédio. Foi uma coisa que me chateou muito”. São muitos os casos de desigualdade e discriminação no mundo esportivo quando o assunto em pauta são as mulheres. Mesmo assim, a cada ano vemos mais movimentos, mais atletas e profissionais de todas as áreas na luta pelo fim dessa disparidade de gênero. A cada ano vemos mais mulheres conquistando o seu espaço e incentivando outras a buscarem o mesmo caminho. Assim, a Copa do Mundo de Futebol Feminino é uma das marcas dessa luta e precisa ser vista como tal. junho 2019

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DANÇA E RESISTÊNCIA Fotografia: Carla Nigro Edição: Suzane Caldeira Bailarinos participantes do 1º Atelier de Dança Negra Contemporânea, Vitória-ES

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