Revista Primeira Mão = ed 156 - julho 2019

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EDIÇÃO 156 | JULHO 2019 | ANO XXX

EPIDEMIA SILENCIOSA AUMENTO DO NÚMERO DE CASOS DE ISTS ENTRE JOVENS É REFLEXO DE PRECONCEITO, DESINFORMAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS FALHAS E DESCUIDO. Elas nos filmes de terror 8

Os prazeres da vida casta 28

Toda criança tem direito ao não trabalho 34 julho 2019

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CENTRO DE VITร RIA ensaio fotogrรกfico: Carla Nigro e Suzane Caldeira (continua na pรกgina 45)

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PRIMEIRAMÃO REVISTA LABORATORIAL PRODUZIDA PELOS ALUNOS DO 6º PERÍODO DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO (UFES).

EM PRIMEIRA MÃO 6 POESIA EM REDE A profundidade da vida traduzida em rimas e versos dentro do Instagram

Equipe: Álvaro Guaresqui Ana Julia Chan Carla Nigro Daniel Jacobsen Felipe Khoury Giovanni Werneck Giulia Reis Heitor MAttedi Kelly Lacerda Lavynia Lorenção Lydia Lourenço Marcela Delatorre Maria Clara Stecca Maria Fernanda Conti Marina Coutinho Matheus Souza Nicolas Nunes Richele Ribeiro Robson Silva Suzane Caldeira Vitor Pinheiro edição Marcela Delatorre Daniel Jacobsen professora orientadora Ruth Reis Primeiramão nas redes Instagram: @revistaprimeiramao

8 ELAS NOS FILMES DE TERROR O lugar dela é aonde ela quiser, inclusive no filme de horror.

10 LIVRO, FILME, MÚSICA Três sugestões para você

11 crônica: PRECISAMOS FALAR SOBRE A SAÚDE DO JOVEM 12 COPO MEIO CHEIO, COPA MEIO VAZIA Após receber o Mundial da FIFA em 2014, mais uma vez uma competição internacional desembarca em solo brasileiro, porém com fracasso de público.

Twitter: revista1mao Issuu: jornal1mao Medium: @primeiramao Facebook: primeiramao 2019 JULHO 2019 4

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16 AMADORISMO DO FUTEBOL CAPIXABA Qualidade da estrutura, e da técnica impedem o futebol capixaba de sair do nível artesanal


18 EPIDEMIA SILENCIOSA Crescimento no número de casos de ISTs entre jovens é reflexo de preconceito, desinformação, políticas públicas falhas e descuido.

22 DADOS, A PREOCUPAÇÃO DA ERA DIGITAL Novos mecanismos são aprovados em nome da defesa da privacidade do cidadão

24 CIDADÃOS INVISÍVEIS Suas histórias poucas vezes são conhecidas, Quase não há registros oficiais, Mas eles estão aí nas ruas e calçadas

28 OS PRAZERES DA VIDA CASTA 30 MULHER NO VOLANTE EM PERIGO CONSTANTE

32 ALÔ, ALÔ, ALÔ... TU TU TU empresas de marketing atacam direitos do consumidor por

34 TODA CRIANÇA TEM DIREITO AO NÃO TRABALHO

38 NOVO DESTINO PARA AS BANCAS

40 VIOLÊNCIA COMO HERANÇA A violência no Espírito Santo é histórica. Embora os dados governamentais mostrem uma redução drástica nos homicídios, o medo e o crime organizado avançam.


POESIA EM REDE A PROFUNDIDADE DA VIDA TRADUZIDA EM RIMAS E VERSOS DENTRO DO INSTAGRAM lavynia lorenção e maria fernanda conti

Navegar pelas redes sociais em busca de conteúdos singulares sempre foi uma constante para mim; páginas e perfis me prendem por horas enquanto viajo por suas postagens. Em uma “navegação” recente, na qual buscava inspirações e motivações, me encontrei passeando por perfis de poesias no Instagram. Era um lugar em que não esperava encontrar esse gênero. Para os mais antenados nas redes, os versos de Rupi Kaur (@rupikaur_), João Doederlein (@akapoeta), Lucão (@lucaoescritor) e Zack Magiezi (@zackmagiezi) não desaparecem do feed. Conhecidos como “instapoetas”, esses jovens conquistam cada vez mais leitores no Instagram. Juntos, acumulam quase 6 milhões de seguidores, com versos que falam sobre amor, feminismo e assuntos do cotidiano. Aquilo me surpreendeu e me prendeu, pois em meio aos corpos e vidas perfeitas, havia um lugar onde encontrar um frescor de realidade através da escrita. Dentro da enxurrada de informações da internet, esses escritores viralizam com textos curtos, linguagem simples, gírias e, em sua maioria, temas afetivos e motivacionais. Embora tenham suas particularidades, também apostam no quesito visual, com o apoio de desenhos, projetos gráficos e caligrafias estilizadas. As novas fronteiras 6

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traçadas pelos poetas me intrigou, mas como disse Sérgio Sampaio nos anos 70, “um livro de poesia na gaveta não adianta nada/lugar de poesia é na calçada”, e aquela era a calçada deles, o espaço onde atraiam todos os tipos de pessoa e davam voz aos seus pensamentos. Os guardanapos de Pedro Gabriel Anhorn, ou Antônio (@eumechamoantonio), seu pseudônimo, repercutem desde 2012. Além de fãs por todo o país, Pedro conquistou o mercado editorial e, após estourar na rede, lançou três livros. Segundo ele, o Instagram é um dos responsáveis pelo alcance de seu trabalho. “Por ser um território sem fronteiras, possibilitou diálogos que seriam inviáveis há algum tempo. Hoje, eu converso em tempo real com minha leitora de Manaus ou com meu leitor de Porto Alegre”, afirma o escritor. Já os desenhos em nanquim e as frases de autoconhecimento da pernambucana Clarice Freire (@podeluaoficial) mostram que esse terreno é ocupado por todas as vozes. “Não imaginei que a internet seria um lugar tão propício e fértil, sobretudo para a poesia nacional. Ainda mais para mim, uma mulher nordestina. Antigamente, só quem estivesse no eixo RJ-SP conquistava relevância, mas hoje todo mundo está sendo escutado”, relata a jovem. Contudo, nem tudo são flores: tornar-se refém do medo de ficar para trás é fácil quando o “sucesso” na plataforma vem acompanhado de números explícitos, que refletem curtidas, comentários e compartilhamentos instantâneos do seu trabalho. “É preciso entender que o alcance orgânico é uma consequência que não depende exclusivamente do seu esforço.

Há algoritmos que mudam frequentemente, há o tempo do leitor no mundo offline, há a concorrência cada vez maior de novos perfis com um conteúdo muito parecido com o seu…”, reflete Pedro Gabriel. O segredo, portanto, é não se iludir, seguir sua essência e ouvir aquela voz interna que nos diz muito em silêncio: a intuição. Mais do que isso, Clarice defende, por sua vez, que “o importante é fazer um trabalho que seja pessoalmente relevante, o qual você poste e compartilhe porque acredita naquilo, independentemente de qualquer like ou stories”, aconselha.

INTERLÚDIO PARA OS CAPIXABAS Mais próximo do que eu imaginava, vários representantes capixabas navegam pelas águas da poesia no Instagram. Sem pretensão, Isabella Mariano, 27, começou a escrever seus verbos em cadernos antigos que achava pela casa. Os amigos e os professores, ao verem a qualidade do que produzia, a estimularam na divulgação do trabalho. Depois disso, não parou mais, e hoje se destaca como uma das poetas de maior alcance da Grande Vitória. Isabella acredita que a internet pode ter democratizado a literatura. “Penso que o processo artístico só se completa quando alcança o leitor. Dentro da internet a gente conquistou isso”, defende. Ela também vê que o Instagram possibilitou o diálogo não só com os seguidores, mas com outros poetas, criando parcerias e inspirações. “Converso com gente do Rio de Janeiro, Salvador, do interior do Espírito Santo… São pessoas como eu, que estão tentando produzir sua


FOTO: LEO AVERSA

arte e apoiam umas às outras”, diz a escritora. “Acho que a internet potencializa essa produção em larga escala da arte. Para algumas pessoas, essa popularização é negativa - alguns acham que arte deve ser para um grupo seleto. Não acredito nisso. Pra mim, o processo artístico só se completa quando alcança o leitor Essa massificação é muito potente pra quem produz literatura hoje”, afirma. Também foram lives, declamações, fotos e vídeos de competições que abriram as portas para o Coletivo Nísia, na Grande Vitória, coordenado pela professora Daniela Andolphi. Ao conhecer as histórias de suas alunas, ela resolveu fazer da poesia um gancho para estimular a autonomia das jovens. Hoje, quase 60 adolescentes escrevem e

transmitem para os espectadores suas experiências de resistência. “As mídias sociais já faziam parte da vida delas, e ao ganharem visibilidade, aprenderam a reafirmar suas opiniões. Inclusive, muitos convites para apresentações e palestras só foram possíveis pelo Instagram”, afirma Daniela. “Hoje, virou algo muito natural: cada seguidor é como se fosse um leitor”, ressalva.

ESPECIALISTA Muito estudado por pesquisadores, o movimento é fenômeno dentro e fora do país. De acordo com a doutora em Teoria da Literatura e professora do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), Ana Klauck, o aspecto técnico dos poemas permite a integração com o Instagram. Primeiramente, pois “nas redes sociais,

condensamos informações em poucas palavras. O mesmo acontece na poesia: são vários sentimentos expressos em poucas linhas”, explica a professora. Por último, devido a sua capacidade de assumir formatos diferentes, adequando-se a qualquer espaço que lhe for dado. “Por isso, os poemas são bem recebidos no Instagram”, Ana afirma. Ainda segundo ela, os “instapoetas” dão visibilidade a autores e obras antes não acessíveis, assim como viabilizam o acesso à todos os públicos. “Com esses escritores, é possível entender que a poesia cabe em todos os espaços, não só em bibliotecas e centros culturais. Eles querem mostrar que a poesia ainda existe, está se reinventando e pode ser interessante em outras plataformas”, diz. “Mais do que nunca, ela está viva e pulsante”, ressalva. julho 2019

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É noite. Em uma floresta deserta, uma menina loira e com roupas apertadas corre em ziguezague, sem nenhuma direção aparente. Apenas corre para fugir de quem a persegue. Um homem, usando uma máscara, corre em um passo menos acelerado enquanto a menina ofegante procura desviar de todos os obstáculos e, para a surpresa de poucos, tropeça em qualquer coisa fazendo com que o assassino consiga alcançá-la. Esse é um dos clichês que encontramos nos filmes de terror. É muito comum também, no final, uma mulher sobreviver. Portanto pensamos, poxa, que bom uma mulher sobrevivendo no final, maravilha. Em um grupo de adolescentes com várias personalidades diferentes, homens, mulheres, minorias como negros e membros LGBTQ+, a jovem que sobrevive no final, é sempre uma mulher virgem, angelical, que representa a pureza, tudo indica que vai derrotar o mal, como um sinal de recompensa por não ser “corrompida”. Agora o clichê nem parece tão positivo assim, não é mesmo? A estudante de Cinema e Audiovisual da Ufes Rafaela Germano conta porquê que decidiu estudar mulheres em filmes de horror. “Pensando em centralizar meus estudos, me surgiu a ideia das vampiras, por serem personagens constantemente hiperssexualizadas e estereotipadas”. Um dos filmes utilizados como objeto de estudo foram “Garota sombria caminha pela noite”, um longa iraniano, que conta a história de uma garota vampira que perambula nas ruas de noite e um homem, que luta pela sobrevivência e para afastar seu pai do mundo das drogas. O outro estudado por Rafaela é o “Deixa ela entrar”, que narra a vida de um menino chamado Oskar, de 12 anos, que se sente solitário, porém se torna amigo de Eli, uma menina um pouco peculiar. Uma série de assassinatos acontecem e sua amiga está envolvida neles, de uma forma que Oskar nunca poderia imaginar. “Assistindo a muitos filmes de horror foi fácil perceber o quanto era necessário falar sobre esse assunto, pois as mulheres são sempre retratadas de modo a satisfazer 8

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ELAS NOS F DE TERROR

O LUGAR DELA É AONDE ELA QUISER, INCLUSIVE N Marina Moscon

Marina

Fotografia: Direção Criativa: Lays de Sá e Caio Corrêa Fotografia: Nuno Pignaton e PH Martins Assistência de Arte: Claudiana Braga, Carlos Magno e Jaqueline Andrade Modelos: Issa e Phil Ribeiro Pixain


FILMES

NO FILME DE HORROR.

os desejos visuais do homem, muito fetichizadas e como personagens rasas. Então fui atrás de uma filmografia que fosse contra isso, e decidi mostrar como é possível uma outra representação das mulheres no cinema de horror.” Explica a estudante de Cinema e Audiovisual sobre sua pesquisa. A revista PrimeiraMão perguntou a algumas mulheres o que elas achavam dos filmes de terror em geral. Aline Costa, 19, estudante de Psicologia disse que não se identifica com as personagens femininas, porque “elas, geralmente, são as que mais fazem besteira”. Bárbara Baptisti, 21, estudante de Moda gosta do clichê do grupo de amigos que acaba parando em algum lugar assombrado ou perto de um assassino. “Não gosto muito quando eles usam estereótipos, como por exemplo o negro atleta, a loira burra, o nerd virgem, e assim por diante”.

Brenda Coutinho, 26, estilista, não se identifica com nenhuma personagem feminina. “Geralmente nem a covardia e nem a coragem retratada são relacionáveis à vida real.” Daniela Morais, 24, estudante de Psicologia, gosta dos filmes de espírito, porque eles realmente me assustam. “Detesto aqueles de matança, que falam que é de terror”. Melina Furlan, 23, assistente de direção publicitária não se identificava com os filmes mais antigos e até os de alguns anos atrás. “A maioria das mulheres são vítimas de um assassino e muitas vezes não tem personalidade nenhuma definida e quando tem, a personalidade delas é serem burras. Ou então são personagens secundários sem muita relevância além de servir de apoio para ligar pontos da história. Poucos são os filmes em que a mulher é o elemento principal, tem personalidade forte e não é tratada como louca ou burra”.

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Daniel Jacobsen

livro. VAN GOGH - THE COMPLETE PANTINGS RAINER METZQER E INGO F. WALTHER

No mês da morte do pintor Vincent Gogh, a coluna recomenda o livro Van Gogh - The Complete Pantings, organizado por Rainer Metzqer e Ingo F. Walther e publicado pela editora Taschen, especializada em arte. É um catálogo das 871 pinturas de van Gogh e traz textos detalhados sobre a vida do artista. O livro possui capa dura para acomodar as 744 páginas de pura arte, que prenderão os admiradores da obra de van Gogh e estudiosos da história e estéticas da arte. As imagens das pinturas são acompanhadas de uma ficha técnica com dados de cada obra e a localização do original. O talento pós-impressionista de van Gogh não foi reconhecido e valorizado em sua época, sendo póstumo todo o reconhecimento que fez do artista um dos grandes nomes da arte ocidental. Van Gogh - The Complete Pantings não é apenas um livro sobre arte, mas é ele próprio uma obra de arte. A publicação da Taschen pode ser encontrada em diversos idiomas, inclusive em português, e a editora publicou livros com a mesma proposta sobre Leonardo da Vinci, Salvador Dalí, Monet, Frida Kahlo e outros artistas, originando uma verdadeira biblioteca de história da arte.

filme. COM AMOR, VAN GOGH DOROTA KOBIELA E HUGH WELCHMAN O filme polonês e britânico lançado em 2017, Loving Vincent (br: Com Amor, Van Gogh) é um longa de animação inteiramente composto por pinturas feitas a mão por uma equipe de 125 artistas. Foram pintados 65 mil quadros no estilo tradicional da arte de van Gogh, com inspiração nas obras originais do pintor holandês. O filme idealizado por Dorota Kobiela e dirigido por ela e Hugh Welchman se passa em 1891, um ano após a morte do pintor, e apresenta a tentativa do personagem Armand Roulin de entregar uma carta que Vincent havia enviado para o irmão Theo, mas que não chegou ao seu destino. Junto às pessoas que conheceram van Gogh, Armand tenta decifrar se o pintor realmente teria cometido suicídio. Com Amor, Van Gogh é uma viagem pela vida e pela estética do artista e promete fortes emoções aos fãs do artista e entusiastas do cinema experimental. Em Vitória, o filme será exibido no CineSesc Glória como parte da mostra A arte e seu enleio, que compõe as Mostras Cine Sesc 2019. Filme em cartaz durante o mês de julho conforme programação do Sesc Glória.

música. VINCENT

DON MCLEAN

Vincent é um tributo de Don McLean ao pintor Vincent van Gogh. Escrita em 1971, a música compõe o segundo álbum de estúdio do cantor, American Pie. O folk-rock de McLean viaja pelo processo criativo do pintor e se inspira na famosa obra A noite estrelada, de 1889. A música também aparece com o título alternativo Starry, Starry Night, e pode ser encontrada no YouTube. “Estrelada, noite estrelada / Pinte sua paleta de azul e cinza / Olhe os dias de verão lá fora / Com olhos que conhecem a escuridão da minha alma / Sombras nas colinas / Desenhe as árvores e os narcisos / Sinta a brisa e os arrepios do inverno / Nas cores da terra coberta pela neve”. A música é uma carta de amor à arte e às pessoas, mas é triste ao retratar a profundidade da angústia de van Gogh, que se suicidou em fins de julho de 1890.

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PRECISAMOS FALAR SOBRE A SAÚDE DO JOVEM Daniel Jacobsen

“Amiga terminando aqui vai cmg na secretaria pra eu tranca o curso”. Todo dia, o mesmo meme sendo compartilhado. Mas o tom de brincadeira de Rafaela esconde uma exaustão real com a rotina acadêmica e a insatisfação com o curso escolhido. “Eu nem quero trabalhar com isso, vo tranca o curso”. O Twitter cheio de posts iguais. “Minha mochila ta suja vo ter que tranca o curso”. Rafaela acorda cedo e passa mais de 3 horas por dia no transporte coletivo para ir e voltar da faculdade que fica do outro lado da cidade. Aulas cansativas para quem descobriu que o curso escolhido não era exatamente o que ela esperava. “Rafa, por que você não troca de curso?” “Pra escolher errado uma segunda vez? Nada, vou terminar esse mesmo, já estou na reta final. Depois vejo o que resolvo da vida”. A saúde mental dos estudantes não é uma questão apenas para Rafaela. 30% dos estudantes de graduação das instituições federais do Brasil procuraram atendimento psicológico em 2014, e 10% fizeram uso de algum medicamento psiquiátrico, de acordo com dados do Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil). O aumento da depressão entre os jovens não passa despercebido, e para a OMS (Organização Mundial de Saúde) o número de jovens depressivos no mundo alcança a marca dos 20%. Para a Associação Brasileira de Psicanálise, 10% dos jo11

vens brasileiros sofrem com a doença. A campanha #nãoénormal, inciada em 2017 na Federal de Viçosa, se espalhou para outras universidades. O intuito é conscientizar sobre a saúde mental dos estudantes, colocar em pauta o assunto visto como frescura. E Rafaela vê numa parede do prédio onde estuda um cartaz onde lê “Não é normal que a faculdade se torne um gatilho para ansiedade”. É isto. Rafaela precisa fazer algo. Viu que não estava sozinha, tampouco era a única insatisfeita. Procurou atendimento psicológico na própria universidade. Conseguiu. Entrou para a estatística dos 30%, mas conseguiu colocar a cabeça no lugar e lidar com as questões que a deixavam ansiosa. Não trancou o curso. Buscou se sobrecarregar menos com as disciplinas e complementou seu tratamento psicológico participando de um grupo de arteterapia. E mesmo se tivesse trancado o curso, mudado de área, ido vender arte na praia, tanto faz, Rafaela não permitiria mais que sua saúde mental fosse abalada. As inseguranças da vida adulta e o descontentamento com decisões tomadas não são eternas, não são insuperáveis. Mas é preciso falar sobre. Rafaela trocou os tweets “vo tranca o curso” por tweets “#nãoénormal vc querer trancar o curso. até onde é meme e onde começa o sintoma de exaustão total com o ambiente acadêmico? chama no pv, podemos cvs sobre isso”. E você, já pensou sobre como anda sua saúde mental hoje? julho 2019

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COPO MEIO CHEIO, COPA MEIO VAZIA APÓS RECEBER O MUNDIAL DA FIFA EM 2014, MAIS UMA VEZ UMA COMPETIÇÃO INTERNACIONAL DESEMBARCA EM SOLO BRASILEIRO, PORÉM COM FRACASSO DE PÚBLICO. Robson Silva

Futebol, festa e seleção brasileira. Os elementos perfeitos para atrair o torcedor canarinho que enche o peito para ostentar o título de único pentacampeão mundial. E mais uma vez o território verde e amarelo recebe um campeonato internacional de seleções, a Copa América. Em 2014 o país, que já sediou a Copa do Mundo de 1950 e as edições de 1919, 1922, 1949 e 1989 da Copa América, recebeu o principal torneio entre se-

leções mundiais, a Copa do Mundo da FIFA, sendo considerada uma das maiores de todos os tempos. Estima-se que mais três milhões de turistas estiveram no Brasil para o Mundial. Além disso, o torneio significou mais seis bilhões de reais na economia, ainda com três bilhões de espectadores. Todos esses números de sucesso, além das reformas das arenas, foram motivos que tornaram o Brasil forte candidato a sede da Copa América de 2019, obtendo a confirmação em 7 de junho de 2016. O cenário parecia ideal: paixão nacional pelo esporte, evolução das seleções continentais, o fato do país ter sido sede de um mundial recentemente, além, é claro, do rodízio exis-

tente entre sedes. Segundo organizadores, como disse o ex- presidente da Conmebol Alejandro Dominguez, esta seria a maior Copa América de todos os tempos. É notória a expectativa diante de todos os fatores. Quem não criaria uma euforia sabendo do sucesso recente de competições no país. Enxergar o copo meio cheio era um caminho lógico. Entretanto, uma série de fatores tornaram a Copa meio vazia e, o que seria a maior Copa América de todos os tempos, tem públicos inferiores a partidas nacionais válidas pelo Campeonato Venezuelano - vale ressaltar a crise existente no país- e, até mesmo, de divisões de acesso do Campeonato Brasileiro.

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PREÇO DOS INGRESSOS

O principal fator ligado ao fraco público nos estádios é o valor, muitas vezes exorbitantes, dos ingressos. Levando-se em conta a renda dos países sul-americanos presentes na competição e estabelecendo um comparativo com os valores revendidos de ingressos, é possível notar a incompatibilidade da competição com a complicada realidade de renda da população. O ingresso mais barato para a competição custava R$ 120,00, valor que representa uma parcela significativa no salário mínimo da população. Para o torcedor argentino, esse valor significa 13% do salário mínimo vigente hoje no país (inserir valor em pesos - valor em real). Já para o brasileiro o valor significa cerca de 12,5%. O caso mais agravante, quando se levado em conta o salário mínimo estipulado pelo Estado de cada país, é para os colombianos, em que o valor do ingresso significa aproximados 20%. A situação se faz mais agravante quando analisamos a renda per capita, uma vez que o salário mínimo em muitos países - como a Bolívia, por exemplo- não é obrigatório, mas sim uma indicação por parte do governo federal. O valor do ingresso representa cerca de 26,5% da renda per capita mensal de um cidadão boliviano que tenha intenção de assistir aos jogos. Para o torcedor argentino Juan Miguel, fiel fã de Lionel Messi que veio ao Brasil, com as constantes crises econômicas que assombram os países latinos, a vinda ao Brasil foi complicada. “É um valor bem considerável. A gente tem os bilhetes aéreos caros, então queremos ir em mais de uma partida, mas os preços quase não permitem”, destaca o argentino de 31 anos, que veio acompanhado da família, o que elevou seus custos, além de destacar os altos preços das passagens aéreas dentro do país.

BUROCRACIA PARA RETIRADA DE INGRESSOS O torcedor que efetuou a compra do bilhete para uma das partidas enfrenta um segundo desafio, além do preço dos ingressos: a retirada. No momento de finalizar

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a compra são apresentadas duas opções para a conquista do ingresso: entrega via correios, com uma taxa exorbitante para quem vive em estados distantes do Rio de Janeiro - onde está localizada a central de distribuição-, ou retirada em um dos CDI’s (Central de Distribuição de Ingresso), localizada em determinados pontos das cidades sedes. A problemática da primeira questão, além das taxas de entrega anteriormente citada vai além disso. Para torcedores não residentes no Brasil não há possibilidade de entrega do bilhete, o que exige uma itinerário de viagem que contemple espaço para deslocamento até uma das unidades da segunda opção apresentada. Para este caso, o problema envolve uma quantidade de fatores ainda maior. Longas filas, burocracia com exigências de vários documentos - como apresentação de identidade e cartão de crédito utilizado na compra quando efetuado por terceiros-, além de apenas uma unidade de retirada por cidade sede - em Belo Horizonte, por exemplo, a unidade encontra-se no Shopping Boulevard, de difícil acesso, em uma região de pouco alcance para o público. Rafael Incerte tem 22 anos e é morador da capital mineira. Comprou bilhetes para a partida entre Argentina e Paraguai no estádio Mineirão. Ele conta que encontrou dificuldades para retirar os bilhetes, uma vez que não podia solicitar a entrega via correios por se tratar de uma meia entrada. “Os ingressos já são caros, aí temos mais uma complicação que é ter que ir buscar o ingresso, apresentar uma série de documentações e, como se não bastasse, um atendimento demorado, no meu caso de 30 minutos”, afirmou o mineiro.

CUSTOS EXTRAS Para quem vem ao torneio o gasto não se limita apenas aos ingressos. Os custos extras, ligados à alimentação, hospedagem e transporte, também são fatores que pesam para o fracasso de público. Quando se trata do torcedor brasileiro, mesmo com a isenção em partes dos gastos listados ante-

riormente, existe, assim como para visitantes, os gastos dentro (e aos arredores) do estádio. Uma passagem aérea da capital colombiana, Bogotá, até Salvador, onde a seleção de James Rodriguez fez sua estreia, custa, em média, R$ 2.500,00, um valor quatro vezes maior que o salário mínimo do país e quase três vezes maior que a renda per capita. A hospedagem, levando-se em conta a quantidade mínima de três dias (chegada para retirada, partida e, logo após, retorno) o valor médio que se encontra em hotéis convencionais e hostels é de, pelo ou menos, R$ 117,50 a diária, o que totaliza aproximados 17% do salário mínimo colombiano. Por fim, o custo mínimo com alimentação, segundo dados fornecidos pelo website quantocustaviajar.com, é de R$ 72,00 diários. Dentro das arenas os preços se mostram ainda mais exorbitantes. Os estacionamentos, para quem se desloca aos estádio com carro próprio tem seu menor valor de R$ 45,00 no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte. O preço é ainda maior em outras arenas. Um copo de cerveja Brahma, de 350ml, tem seu preço fixado em R$ 12,00 em todos os estádios. No Maracanã, um Hot Dog (somente pão e uma salsicha) custa R$ 15,00, enquanto o X-Burger Duplo (Pão, duas carnes e queijo cheddar) custa R$ 20,00. Esses valores se mostram impensáveis para as realidades das economias sul americanas.

COMPARAÇÃO COM EUROCOPA O campeonato entre seleções continentais do futebol europeu é a Eurocopa, organizada pela UEFA. O evento, que sempre apresenta um estrondoso sucesso de público, teve sua última edição em junho de 2016 na França. As taxas de ocupação dos estádios durante o torneio foram superiores à 84%, com público médio de 49.790 pagantes. O menor público durante o torneio foi na vitória da seleção da Bélgica por 1 a 0 sobre a seleção da Suécia, para um público de pouco mais de 33.000 pagantes. Os fatores que tornam o sucesso do torneio não se limitam à apenas a forte economia europeia compara-


da aos países sul americanos ou, até mesmo, a maior facilidade de deslocamento entre os países europeus, mas sim às políticas adotadas pela organização e, principalmente, ao preço dos ingresso. O bilhete mais barato para as partidas da fase de grupos custava £ 25,00 (aproximadamente R$ 110,00), entretanto o salário mínimo francês, à época, era de £ 1.521,00 (cerca de R$ 6.700,00 reais). O valor representa 1,3% do salário mínimo francês, além de ser menor que 0,3% da renda per capita de um cidadão. A aproximação também se deu com políticas de incentivo para a compra de mais de um bilhete, com descontos recorrentes e pacotes de transporte (tendo o metrô como principal) para incentivo à participação do torcedor.

FRACASSO INEVITÁVEL Os públicos da fase de grupos nada mais foram que um reflexo de todos os entraves apresentados até então. A média de público foi de pouco mais de 28.000 torcedores por partida, o que tem uma média de ocupação pouco inferior a 47% das capacidades das arenas presentes do torneio. Algumas partidas chegaram a apresentar público inferior a de divisões de acesso do futebol nacional, como as partidas entre Venezuela e Peru, válida pelo grupo A, em Porto Alegre, que recebeu pouco mais de 13.000 torcedores, Bolívia e Venezuela, em Belo Horizonte, com pouco mais de 11.000 e, principalmente, Equador e Japão, também na capital mineira, que recebeu menos de

10.000 torcedores. A partida entre Remo e Volta Redonda, válida pela Série C do Campeonato Brasileiro, apresentou um número de torcedores superior às partidas citadas anteriormente, tendo 16.339 torcedores no Mangueirão (Estádio em que o Remo manda seus jogos). A partida entre América de Natal e Bahia de Feira de Santana, válida pela Série D, teve público similar ao de Equador e Japão, com um público de pouco mais de 7.000 torcedores. Em contrapartida, a arrecadação da primeira fase foi a maior da história das Copas América, disputadas em solo sul americano, totalizando R$ 110.823.928,00 nas 18 partidas. Tal fato só evidencia o contínuo processo de elitização que a Conmebol vem impondo nos últimos anos.

CUSTA QUANTO?

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O AMADORISMO CAPIXABA VENC

Qualidade da estrutura, e da técnica impedem o fute

Vitor Pinheiro e Heitor Mattedi

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á dizia o Skank: “Quem não sonhou em ser um jogador de futebol?”. É verdade que vários jovens sonham com o estrelato, e que se tornar jogador de futebol é algo almejado por muitos, além de toda fama, também está no imaginário dos jovens brasileiros dar um futuro melhor para suas famílias, porém ter os salários milionários de jogadores como Neymar, Messi e Cristiano Ronaldo é a realidade que uma minoria consegue alcançar. O Brasil, de fato, é considerado o país do futebol, porém o jogo dinâmico e o toque de bola de alto nível, encontrados em Rio, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul, principais polos da bola no país, é bem diferente das condições apresentadas para os profissionais de outros diversos cantos do território nacional, onde a qualidade tanto de estrutura, quanto de técnica deixam muito a desejar. No primeiro semestre deste ano o centroavante Loco Abreu, ídolo do Botafogo e semifinalista da copa do mundo da África do Sul, em 2010, com a seleção uruguaia, encerrou seu ciclo pelo Rio Branco, e não deixou pra trás a fama de figura polêmica e questionou o profissionalismo do futebol capixaba. "Quando eu cheguei, pensei que fosse ajudar a construir algo para ajudar o futebol daqui, mas ninguém quer. Por isso tudo que seguramente a televisão vai continuar passando os campeonatos Paulista, Carioca, Mineiro e o futebol capixaba vai continuar lá no fundo da merda, como está hoje", disse o atacante de 42 anos ao portal Globo Esporte, ao ser eliminado do capixabão na derrota por 2x0 para o Real Noroeste. Em abril, o Atlético Itapemirim, foi obrigado a dispensar todo o elenco por um desentendimento envolvendo as contas do clube. O atacante Flávio Caça Rato, famoso no nordeste, estava no clube do sul do estado, veio a público chamando o clube de amador. “Se arrependimento matasse, eu já estava morto. Não sei porque coloquei o pé neste clube. Esperaram por um dinheiro que não tinham. Eles são muito amadores, despreparados. Futebol é coisa séria e eles estão brincando com pais de família que contam com este dinheiro. Os jogadores não têm culpa de tanto despreparo", desabafou o jogador em uma entrevista ao uol esporte. O futebol que configurou a elite no país, participando da primeira divisão já não vive nem um resquício de seus dias de glória. Os gra-

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O DO FUTEBOL CE SEMPRE

ebol capixaba de sair do nível artesanal

mados que revelaram jogadores como Geovani e Sávio para o grande cenário nacional, há um bom tempo não aproveita o futebol de suas jóias, somente as vendo brilhar em outras terras, como é o caso de Richarlisson, atacante do Everton (ING) e atual campeão da Copa América pela seleção brasileira. O avançado foi revelado pelo Real Noroeste, porém nunca atuou em um jogo sequer pelo clube profissional, devido à venda precoce para o América Mineiro, onde começou a atuar e mais tarde pelo Fluminense, onde ganhou destaque nacional. A bola da vez no estado é o Vitória F.C. Atual campeão do campeonato capixaba, a equipe apresentou para o ano de 2019 um investimento que destoou do resto dos clubes no cenário. A contratação de Valdir Bigode, ídolo do Vasco da Gama, para comandar o time à beira do campo causou grande impacto e gerou o melhor resultado dentre as equipes capixabas. O alvianil da capital foi até as oitavas de final do Campeonato Brasileiro série D, passando in“Se você não é clusive pelo brasiliense, do pentacampeão do você não é visto mundo, Lúcio. Às vésperas do jogo contra o Ituano, pelas não é lembrado” oitavas do brasileirão, o até então técnico do Ferrugem, Vitória, Valdir bigode, em entrevista para a Pricapitão e melhor meiraMão, comentou a respeito do nível do profissionalismo no Espírito santo. “Sobre o caso zagueiro do do Loco Abreu, é complicado eu falar porque campeonato não estava no clube e não vi o que de fato aconteceu com ele, mas a realidade é que realmente capixaba 2019 o futebol capixaba precisa melhorar, precisa de uma estrutura com um nível mais alto. Sem citar outros clubes mas sim o que eu estou que é onde estou vendo, o Vitória está no caminho certo, reformando o clube aos poucos, quitando dívidas e resolvendo os atuais problemas. A reformulação está sendo feita, não no ritmo ideal mas indo bem, trabalhando para em três ou quatro anos ter uma estrutura completamente diferente e de um bom nível” Sobre qual caminho deve ser tomado para que essa melhoria geral aconteça, o técnico foi preciso, apontando o principal problema como o investimento: “o ponto principal que alavancaria o futebol é o investimento. A construção de melhores estádios, trazer profissionais de grandes centros, a vinda de jogadores pelo menos da série B, que possuem qualidade e salários mais acessíveis, esses são fatores que contribuíram para o futebol ficar cada vez mais competitivo.

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EPIDEMIA SILENCIOSA Giovanni Werneck e Matheus P. de Souza Fotografia: Gabriel Fernandes

CRESCIMENTO NO NÚMERO DE CASOS DE ISTS ENTRE JOVENS É REFLEXO DE PRECONCEITO, DESINFORMAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS FALHAS E DESCUIDO. Sabe aquelas conversas de barzinho? Em que todo mundo já está “alto”, e o papo vai para os cantos mais inusitados possíveis? Às vezes, caminha para o descontentamento geral com a política, às vezes a conversa vai para um lado mais filosófico da vida… Naquela noite, Pedro Caio, Paula e Marcos estavam bebendo e conversando sobre típicas banalidades do dia a dia. O barzinho estava lotado e a calçada já não tinha espaço para mais nem uma mesa. Na tentativa de serem ouvidos, eles disputavam com o barulho dos carros, das pessoas nas outras mesas e com as caixas de som do boteco. Todos estavam praticamente gritando. Mas, em determinado ponto da conversa, as vozes foram ficando mais silenciosas, até virarem sussurros. Com tom de pesar, Paula contou que tinha uma novidade nada boa. Ela 18

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descobrira há pouco tempo que havia contraído HPV. Falava baixo, porque era algo delicado para ela, na verdade, para todos naquela mesa. De alguma forma, todos haviam se infectado com alguma IST (infecção sexualmente transmissível) em 2018. Paula descobriu que estava com HPV em agosto. No mês seguinte, Pedro recebeu o diagnóstico de que estava com gonorreia. Na mesma época, Caio e Marcos tomaram conhecimento de que estavam com sífilis. Marcos chegou a ter de passar por um procedimento cirúrgico para tratar uma complicação da mesma doença. “Eu fui durante a semana ao ginecologista, as verrugas voltaram a aparecer “lá”. O ácido havia resolvido o problema de Paula, uns dois meses atrás, mas já não fazia mais efeito. A médica recomendou que cauterizar”, confidenciou. Paula não está sozinha. Mais da metade da população brasileira jovem, entre 16 e 25 anos, está infectada pelo HPV, diz o Ministério da Saúde, em pesquisas. Sim, mais da metade. Talvez todos lá naquela roda de con-

versa ainda estivessem infectados sem saber. Nos homens, o vírus não traz muitas complicações. Para as mulheres, contudo, existe uma forte ligação entre o HPV e o câncer de colo de útero. O risco afeta cerca de 52% das brasileiras, porque é essa a porcentagem de mulheres na faixa de risco que não se submeteu ao papanicolau (exame que pode detectar o HPV e com taxa de sucesso de mais de 80%!). Os homens, que são os vetores, fazem menos exames de prevenção a ISTs ainda. O medo do julgamento alheio, dos olhares, do rótulo, da exposição e do silêncio ensurdecedor que o assunto tem no meio familiar contribuem para A foto da capa e desta matéria foi escurecida por ter sido considerada imprópria pela plataforma Issuu. A versão original pode ser vista em https://www.yumpu.com/pt/ document/read/62746992/ primeira-mao-julho-2019


que a geração da informação desconheça os problemas seríssimos e a mácula das ISTs para a sociedade. HIV, sífilis, gonorreia, hepatites e o HPV estão entre as infecções mais comuns no Brasil. No Espírito Santo, a situação é um pouco pior.

VELHAS CONHECIDAS

O estado é vice-líder no número de pessoas infectadas por sífilis no Brasil. O último boletim epidemiológico da Secretaria de Saúde do Espírito Santo (Sesa) mostrou que o aumento não é pequeno. A cada 100 mil habitantes, existe a possibilidade de 88 pessoas estarem com uma dessas doenças. A média brasileira é de 43 pessoas. Na Grande Vitória, fica ainda mais preocupante: 190 casos a cada 100 mil. Essa situação não é nova. Já em 2016 os índices apresentados pelas pesquisas eram altíssimos, o que gerou alerta e levou o estado a trabalhar com mais ênfase contra essa proliferação. Dentro da Secretaria, a sífilis ganhou prioridade, o que levou à criação de um Plano de Enfrentamento da Sífilis e um comitê que investiga a transmissão vertical (congênita) do HIV, sífilis e hepatite B. Para Ary Célio de Oliveira, especialista em saúde da mulher da Sesa, o lugar que o Espírito Santo ocupa no ranking está diretamente ligado à melhora e rapidez no diagnóstico e na notificação da doença congênita. “A gente melhorou muito a detecção. Existem muitos casos subnotificados no Brasil. O Espírito Santo notifica muito bem. Há uma constatação nesse sentido”, aponta. Em conversa com a CBN Vitória, Ary destacou que o estado está colocando em ação um programa de combate à sífilis congênita. O ponto central é a melhoria dos exames de diagnóstico pré-natais, que são de responsabilidade dos municípios. “Se diagnosticada durante a gravidez, a gestante pode ser tratada adequadamente, o que evita a transmissão para o bebê”. A criança infectada com a bactéria pode ter microcefalia, distúrbios visuais e auditivos, dentre outras complicações. Esse plano atua nas cidades que concentram mais de 80% dos casos no estado: Cariacica, Vila Velha, Serra, Cachoeiro de Itapemirim, Vitória, Linhares, Viana, Guarapari e São Mateus. Marcos e Caio foram infectados pela sífilis no mesmo período, em 2018. Eles conseguiram identificar somente após os primeiros sintomas

aparecerem. Em ambos os casos, a confirmação veio através de vários exames. Embora seja uma condição de fácil detecção, através de um teste que dura 30 minutos, Caio já estava com medo do resultado antes mesmo da conclusão. “Não tem como fugir. Quando você sabe que fez algo de errado, uma hora a verdade…, enfim. Passou um filme na cabeça, quando o médico virou pra mim e falou que eu tenho a sífilis. Eu pensei em como isso ia reverberar fora dali. Como a família, os amigos iam reagir. Uma coisa é você falar que é gay, metade te aceita e metade não te aceita, outra coisa é você falar que é gay e contraiu uma DST. É bem pior”, contou. Na ocasião, Caio disse que ficou muito preocupado com o tratamento, achando que seria “pesado”, mas ele se surpreendeu por ter sido ao contrário. “Eu fui vendo que o número [de anticorpos que combatem a sífilis] estava caindo e acabei me ocupando com faculdade, com curso técnico. É uma coisa engraçada, porque eu falo pras pessoas priorizarem a saúde sempre. Não adianta trabalhar, ter educação, ter estudo e não ter saúde. Deixei os afazeres tomarem conta e a saúde foi pro ralo”. Após a descoberta, a relação de Caio com os pais ficou pior. Já o parceiro que ele acredita que tenha sido o vetor, nunca foi informado. “Não entrei em contato com essa pessoa. Por dois motivos: pela dúvida e pelo fato de não saber quais palavras escolher. Eu não ia chegar na porta da pessoa, com resultado na mão e fa-

lar ‘ei, então, tá vendo isso aqui? É o resultado de um exame que eu fiz, e foi com você, com certeza’. Não sei se fiz errado ou se fiz certo, mas eu sei que eu não consigo [falar]”. Marcos chegou ao diagnóstico de sífilis no quarto exame. Na primeira vez, com sintomas mais leves, a médica nem chegou a examiná-lo. A partir do relato que deu na consulta, o tratamento por antimicóticos indicado pela profissional não resolveu. Na segunda vez, o médico analisou visualmente e prescreveu corticoides, também sem efeito. Neste momento, ainda não havia o diagnóstico de sífilis. Insistindo, ao procurar um professor da Ufes que é médico, Marcos fez o “testinho”. Apesar do resultado negativo, já sabia que era uma IST. Nesse período, apareceram manchas pelo corpo. Por fim, ao retomar os exames mais direcionados, a resposta positiva veio. Para curar, foi submetido a injeções de penicilina benzatina (benzetacil). Duas semanas após o tratamento, não havia mais sinais da sífilis. O caso de Marcos não difere dos demais. Ele não contou ao parceiro, que acredita ter sido o transmissor. A diferença se mostrou no sexo oral sem preservativo. Assim como Paula, Marcos também acredita que tenha contraído a IST através de sexo oral. “É aí [no sexo oral] que se abre a porta para a entrada de um monte de coisa. Até mesmo para o HIV. Se eu tiver uma lesão na boca, e a pessoa tiver HIV, tenho chances de pegar”, ressaltou.

SÍFILIS NO ES Fonte: SAGE/MinS

O Espírito Santo tem a segunda maior ata de sífilis do Brasil. São mais de 85 casos a cada 100 mil habitantes. Essa IST só pode ser prevenida com o uso de preservativos nas relações sexuais. Nos casos congênitos, quando a mãe passa para o filho ainda no útero, o ES também não fica atrás, sua incidência é a terceira maior do país.

O NÚMERO DE INFECTADOS POR SÍFILIS EM 2017 AUMENTOU 2,5% SE COMPARADO A 2012

EM 2017, AS OCORRÊNCIAS DE SÍFILIS CONGÊNITA AUMENTARAM 24% SE COMPARADO A 2016

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SOLUÇÃO INDESEJADA O HPV, ou papilomavírus, é outra IST que está no radar de atenção da Secretaria. Desta vez, não pelo fato de estar aumentando ou sendo notificados mais casos. A baixa adesão à vacinação é o que preocupa. A existência da vacina contribui para diminuir as estatísticas. Mas, devido às fake news e aos mitos divulgados na internet e em redes sociais, os estoques do soro estão inutilizados nas unidades de saúde. Paula faz parte dessa parcela da população que não se vacinou. Depois de ser infectada e passar pelo tratamento, ela admite que a intervenção não foi nada agradável. “Em setembro do ano passado, fui diagnosticada com HPV. Começou com um carocinho, mas depois eu percebi que não era um carocinho, era uma verruga. Mas não era só uma, eram várias. Eu sempre me cuidei, sempre usei camisinha. Fiquei preocupada, fui ao ginecologista e descobri que adquiri o HPV durante uma relação, mas isso nunca me veio à cabeça de forma concreta. Comecei o tratamento e ali eu soube que teria duas opções: um ácido para cauterizar as verrugas ou um mini procedimento cirúrgico para tirar as verrugas. Ela aplicou o ácido na região e sempre foi muito doloroso. Me senti muito mal, sentia nojo de mim mesma, sentia nojo de tocar nas coisas, nas pessoas. Fui fazendo o tratamento no final de setembro e pareceu ficar tudo limpo. Três meses depois, algumas verrugas reapareceram e voltou aquele sentimento de novo”. Paula retomou o procedimento por duas vezes, que levou cinco semanas na última vez, e os exames indicaram, por fim, bons resultados. Ela não avisou ao parceiro que teve essa infecção, porque não tinha certeza como ocorrera. Seu comportamento nas relações sexuais ficou mais atencioso depois disso. Fatores que contribuíram positivamente foram o apoio de sua mãe e de seus dois melhores amigos, que acompanharam o processo e a motivaram, destacou. 20

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HIV NO ESPÍRITO SANTO - FONTE: MINS No ES, mais de 1 mil e cem casos de HIV foram identificados em 2018. A taxa de detecção da infecção foi de 29 a cada 100 mil habitantes. A Região Metropolitana do estado apresentou o nível mais alarmante, 41 casos por grupo. Dos 3.972.388 habitantes do estado, 11.980 estão tratando o HIV.

NOVO NOME, NOVAS POSSIBILIDADES A nomenclatura oficial para a designação dessas infecções mudou. Em novembro de 2016, o Ministério da Saúde atualizou sua estrutura regimental e alterou o termo que antes era DSTs. Com o aprofundamento dos estudos e da discussão social, o termo ISTs, Infecções Sexualmente Transmissíveis, foi cunhado. O Brasil compartilha da adequação da OMS e de organizações internacionais que lidam com essa temática. A denominação ‘D’, vem de doença, que, tecnicamente, implica sintomas e sinais visíveis no organismo do indivíduo. Já o ‘I’, de infecções, se refere às condições que possuem períodos assintomáticos (como a herpes genital e sífilis) ou que são assintomáticos durante toda a vida do portador (HPV, e vírus da herpes), sendo detectadas somente por exames médicos. Essa nova nomenclatura classifica e destaca de forma mais precisa a possibilidade de uma pessoa ter e transmitir, ou não, uma infecção e ajuda também na escolha de tratamentos mais eficientes. O HIV é a contaminação que teve o maior aumento no estado. Ela também é a mais perigosa, porque se trata de um vírus com alta capacidade de mutação, tornando a cura improvável. Só no ano passado, a Secretaria de

Saúde do estado registrou mais de 1,1 mil novos casos de HIV. Esse número acompanha os níveis de aumento que vêm sendo registrados desde 2014. Para se ter uma ideia, há cinco anos, os casos registrados chegavam a 500, ou seja, em 2018, mais que dobrou. Isso se deve a três questões: a nova forma de contabilizar os infectados, a falta de uso de preservativos ou maiores cuidados na hora do sexo e a intensificação dos testes de HIV, realizados gratuitamente em qualquer unidade de saúde do país. A partir de uma determinação do Ministério da Saúde, todo novo caso de HIV+ (positivo) deve ser reportado ao Sistema Nacional de Agravo de Notificação (Sinan), que, desde 2017, possui uma lista de condições que têm seu registro compulsoriamente feito no sistema. Esse cadastro contribui para a democratização da informação, permitindo que todos os profissionais da saúde tenham acesso a dados reais e as disponibilizem ao público. É um dos mais completos bancos de informações para construir um planejamento de saúde, para definir estratégias de intervenção, avaliar o trabalho do governo e criar políticas públicas efetivas. Entretanto, a mudança do nome não altera instantaneamente o estigma que alguns ainda carregam por serem ou terem sido infectados com alguma IST. Assim como Caio e sua família, que esconderam o problema de todos que estavam fora de casa, Paula também só contou para a mãe e para os dois melhores amigos. Ela acredita que a falta de políticas públicas e educacionais, jogam o tema para a obscuridade e isso alimenta uma série de preconceitos. “Eu me sentia mal comigo mesma,


me sentia insegura. Eu me julgava pelos olhos dos outros. Hoje eu entendo que a desinformação é o maior problema das pessoas. Se você diz que teve alguma DST, por mais que ressalte que está limpo, ainda assim haverá um receio dos outros. Existe um estigma muito grande de acharem que você é promíscuo, é como se você fosse estar infectado pelo resto da vida. Há uma generalização entre todas as doenças”, desabafou Paula. Contudo, a ginecologista da Ufes, Denise Lyrio, mestre em Políticas Públicas, conta que o aumento se deve a um conjunto de fatores. Além da justificativa da Sesa, o descaso do poder público e a falta de orientação da população são as razões que fundamentam o aumento tão contundente. A médica chama a atenção para o fato de que há muito preconceito nas famílias, levando à normalidade os problemas da saúde sexual. Muitos pacientes alegam questões religiosas ao conversar sobre sexo e acabam por não conhecerem ou se afastarem desse tema, contribuindo para o ciclo de desinformação, mas o processo é mais sócio-estrutural do que apenas o descuido das pessoas. “Não se pode culpar somente elas. É muito fácil, se for assim. O problema também é do governante que não se preocupa com a educação e só quer se reeleger. Não há investimento em mais campanhas, não há conscientização. Isso abre espaço pra muita imaginação. É comum ouvir que não há médicos. Na verdade, médico tem. Muitas vezes não se tem material, recursos ou equipamentos para prestar atendimento”, explica. A ginecologista, que também é especialista em Planejamento Familiar e Atenção Primária a Saúde, alerta que é necessário e importante avisar ao parceiro caso alguma IST seja detectada. “É importante compartilhar. Infelizmente, o contato sexual imediato, sem nenhuma conversa prévia, sem melhor conhecimento do outro, acaba dificultando. Muitas vezes, eu vejo, principalmente nas meninas que eu atendo, uma vergonha de conversar sobre isso. Aqui, por exemplo, fizemos campanhas durante o ano para testes rápidos como o VDRL, hepatite B, hepatite C. A pessoa pode ir lá, marcar, pegar o resultado e ter um aconselhamento sobre isso”. Ela ainda reitera que os testes para IST com resultado negativo não

autorizam o sexo sem preservativo. “Algumas pessoas acham que ficam imunes. Ela pode ter adquirido a doença e estar num período de janela que ainda não apareceu nos exames. Não pode deixar de levar isso em conta, tem que se prevenir”, recomenda.

ATIVISMO, AÇÕES GOVERNAMENTAIS E PARCERIAS Nos meses de maio e junho, a Associação Gold - Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade, realizou o projeto “Jovem, é massa ficar sabendo”, nas cidades de Cariacica e Vitória. O projeto, em parceria com a Sesa, incluiu uma van do Centro de Testagem e Aconselhamento, que fornece exames de verificação para o HIV e a sífilis gratuitamente. Na Ufes, em Goiabeiras, a testagem ocorreu em frente ao Cine Metrópolis, próximo ao Departamento de Atendimento à Saúde. Essa parceria também aconteceu em 2018. O projeto visa auxiliar na informação sobre as ISTs e também no suporte material, porque são distribuídos preservativos masculinos, femininos e gel lubrificante. Além da testagem, a associação LGBT idealiza muitos outros eventos durante o ano com esse tema. Reuniões e palestras como “Meu/minha parceirx tem HIV. E agora?” convidam especialistas e profissionais da saúde para expor o assunto sem tabus. Esses são alguns dos trabalhos que a ONG oferece no estado. No âmbito federal, no Departamento de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde (DCCI/MinS), a situação não parece estar tão tranquila. Em maio, a

empresa responsável por fornecer kits rápidos de autotestes para o HIV ao governo, OrangeLife, foi impedida temporariamente pela Anvisa de fabricá-los. O motivo apontado por uma investigação do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) é que os testes não vinham com a linha de controle (uma barra colorida, visível ao final da reação), o que invalida o exame, obrigando o SUS a realizar o teste pelo método mais lento e caro. A suspensão de alguns lotes devido a essa falha tornou impossível afirmar que os resultados obtidos pela testagem eram corretos. Falando de políticas públicas e abordagens para a prevenção, o uso simultâneo de diferentes estratégias parece ter mais resultados. A Prevenção Combinada é um conjunto de intervenções que atacam os três lados do problema: a doença, a responsabilidade individual e a responsabilidade coletiva. Na intervenção biomédica, são empregadas as barreiras físico-químicas aos agentes infecciosos, como preservativos e profilaxias pré e pós exposição (PrEP e PEP). Nesse campo, combate-se através do uso de remédios antirretrovirais. Na intervenção comportamental, temos as ações para o aumento da informação e percepção de risco, como incentivo à testagem, adesão aos cuidados médicos, estratégias de comunicação e educação entre pares. No último cuidado, na intervenção estrutural ou social, forma-se o conjunto de atividades voltadas às condições socioculturais que atinge diretamente a vulnerabilidade de indivíduos com HIV. São cuidados para com o preconceito, estigma e discriminação, através de campanhas educativas e de conscientização.

SÍFILIS É UM PROBLEMÃO A sífilis é uma infecção causada por uma bactéria e que tem cura. O seu diagnóstico pode ser feito por um teste conhecido com VDRL, que identifica a taxa de anticorpos que o corpo produz quando ele entra em contato com a bactéria. A sífilis possui três estágios e uma fase sem sintomas, o que pode levar a contaminar mais pessoas. Nos estágios primário e secundário da infecção, a possibilidade de transmissão é maior. Sífilis latente: Não aparecem sinais ou sintomas. A duração é variável, sendo interrompida pelo surgimento de sinais e sintomas da forma secundária ou terciária. Sífilis primária: Ferida, geralmente única, que some mesmo sem tratamento e pode aparecer em qualquer região onde a

bactéria pode penetrar (pênis, vulva, colo uterino, ânus, boca, dedos). Pode aparecer entre 10 a 90 dias após o contágio. Sífilis secundária: Pode acontecer alguns meses após o aparecimento e cicatrização da ferida inicial. Normalmente é caracterizada pelo surgimento de manchas pelo corpo, incluindo palmas das mãos e plantas dos pés, que podem ser facilmente confundidas com uma reação alérgica. Pode ocorrer febre, mal-estar, dor de cabeça, ínguas (inflamações) pelo corpo. Sífilis terciária: Pode surgir de dois a 40 anos depois do início da infecção. Costuma apresentar sinais e sintomas, que podem atingir principalmente a pele, ossos, órgãos e as funções neurológicas, podendo até levar à morte. Fonte: MinS

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AMBIENTE

DADOS: A PREOCUPAÇÃO DA ERA DIGITAL NOVOS MECANISMOS SÃO APROVADOS EM NOME DA DEFESA DA PRIVACIDADE DO CIDADÃO GIULIA REIS E LYDIA LOURENÇO

Em tempos em que os limites entre o público e privado se perdem e a era digital transforma os dados em uma forma de gerar capital, o cuidado com a proteção de informações pessoais de consumidores de serviços de empresas privadas e públicas se torna fator de grande importância. A fim de criar mecanismos mais seguros para a proteção dos dados dos cidadãos, foi sancionada, em

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agosto de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que alterou resoluções do Marco Civil da internet, de 2014. Desde dezembro tramitavam na Câmara propostas de emenda à Medida Provisória de nº 869 que altera a LGPD e cria um órgão autônomo de fiscalização, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). No último dia 29 de maio a MP foi aprovada pelo Senado e agora aguarda sanção da Presidência da República, ainda sem previsão. Uma das mudanças na lei, que entra em vigor em agosto de 2020, é a obrigatoriedade do consentimento dos cidadãos para que empresas

públicas possam compartilhar seus dados. Uma vez recebido, a empresa fornecedora dos dados deve comunicar a operação à ANPD. Outra previsão é a participação de confederações representativas de trabalhadores no conselho deste órgão. O texto com as novas resoluções representa um novo rumo à luta pelo direito à privacidade. Estas medidas visam impedir que os brasileiros tenham seus dados pessoais utilizados indevidamente. “Acabou o cheque em branco que os cidadãos passavam para empresas e órgãos públicos”, afirma o advogado e especialista em segurança digital Eduardo Pinheiro. A falta de uma regulamentação


específica cria uma vulnerabilidade para o indivíduo que fornece seus dados a empresas e instituições públicas sem saber a quais fins se destinam. Para Eduardo, com a criação de um órgão fiscalizador o Governo e a iniciativa privada precisarão desenvolver mecanismos que proporcionem maior transparência quanto ao uso das informações cedidas. “É preciso que se informe quais tratamentos estão sendo dispensados a esse dados e conceder a quem os fornece a opção de modificá-los ou excluí-los”, ressalta. A criação de uma legislação própria para tratar do compartilhamento de dados pessoais entre a esfera pública e privada é considerada por várias entidades como um avanço para o país em termos de segurança digital. Apesar disso, o Brasil não foi o primeiro dos países latino-americanos a criar mecanismos referentes ao uso seguro de informações trocadas entre os cidadãos e empresas e órgãos públicos. A Argentina aparece como pioneira na América Latina com a presença de regulamentação de dados desde 1994, e ao lado do Uruguai são considerados pela Comissão Europeia de Proteção de dados como os únicos desta região com níveis adequados de proteção. A legislação argentina garante a proteção do processamento de informações pessoais em plataformas públicas ou privadas, além de dar acesso aos cida-

dãos a bancos de dados públicos. Embora seja consenso entre os parlamentares, a novidade de uma lei específica sobre proteção de dados ainda causa algumas dúvidas e ressalvas. Um exemplo é o aluno de Publicidade e Propaganda Igor José Silva, que compreende a importância de uma regulamentação, porém desconfia de sua eficácia “Essa transparência dos dados é interessante para a sociedade, entretanto é um mecanismo facilmente corruptível”, pondera. Em contrapartida, o estudante secundarista Antônio Henrique Reis entende que apesar das possibilidades de burlar a transparência, tornar o cidadão ciente quanto ao uso de seus dados garante seu direito à privacidade. “Ter noção do que é feito com nossas informações possibilita um respaldo quanto ao uso indevido por grandes empresas”, disse, referindo-se à venda de dados. Não é incomum que em nosso cotidiano sejamos bombardeados a todo tempo com algum anúncio de promoção, ou oferta de um serviço que não solicitamos ou temos interesse. A estudante de Gestão Pública Thaisa Azevedo se sente muito incomodada com ligações e e-mails indevidos de empresas que muitas das vezes têm informações que a assustam. “Sempre me pergunto: como vocês conseguiram meu CPF? Como têm o meu número?”, relata.

Para ela, a lei é importante para garantir a confidencialidade dos dados fornecidos. “Quando informamos determinadas coisas em um cadastro, por exemplo, queremos que isso se mantenha em sigilo, por nossa segurança”, enfatiza. As noções de transparência e privacidade são faces de uma mesma moeda, quando o assunto é proteção de dados, e, por mais que haja desafios para viabilizar o funcionamento da lei, uma legislação que propicie o controle do usuário sobre suas informações é uma forma de tirá-los de uma situação de vulnerabilidade ante o Governo e a iniciativa privada. A intenção da implementação de normas regulamentadoras e de um órgão fiscalizador sobre o processamento de dados pessoais é evitar, por exemplo, o compartilhamento indevido de informações procedentes de bancos públicos, ou então a troca de dados entre o SUS e planos particulares de saúde. No próximo dia 26 de agosto, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) sediará o seminário “Comunicação e Novas Tecnologias – Proteção de Dados e Simetria Regulatória”. Organizado pelo ministro do STJ Luis Felipe Salomão e o presidente da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), Márcio Novaes, o evento discutirá os impactos da Lei Geral de Proteção de Dados na economia digital e os desafios na regulação do setor.

ENTENDA AS PRINCIPAIS MUDANÇAS DA MP 869 CRIAÇÃO DA AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

CONSELHO NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

O órgão definido como integrante da administração pública federal direta deve atuar com autonomia técnica no zelo pela proteção; na edição de normas; deliberação sobre interpretações e competências; na fiscalização e aplicação de sanções, entre outras incumbências. Como proposto pela MP deve conter Conselho Diretor, Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade,Corregedoria, Ouvidoria, órgão de assessoramento jurídico próprio e unidades administrativas e especializadas.

O Conselho será formado por 23 representantes, sendo seis do Poder Executivo, um do Senado Federal, um da Câmara dos Deputados, um do Conselho Nacional de Justiça, um do Conselho Nacional do Ministério Público, um do Comitê Gestor da Internet no Brasil; quatro de entidades da sociedade civil, quatro de instituições científicas, quatro de entidades empresariais. Esta composição reflete na íntegra o que tinha sido previsto nos dispositivos vetados na Lei. Com o recente acréscimo de 4 entidades do setor laboral.

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C I DA DÃO S INVISÍVEIS SUAS HISTÓRIAS POUCAS VEZES SÃO CONHECIDAS, QUASE NÃO HÁ REGISTROS OFICIAIS, MAS ELES ESTÃO AÍ NAS RUAS E CALÇADAS Nicolas Nunes Ilustrações Kennia Alves Desde bem novos aprendemos uma palavra que ninguém esquece o que quer dizer: mendigo. Assim chamamos os moradores de rua. Mendigo vem do latim: mendicus – muito pobre, pedinte. Pelo visto, nossos ancestrais romanos já haviam encontrado um jeito de se referir àqueles que são invisíveis, pelo menos para uma parte da sociedade. De lá para cá, o sentido da palavra não mudou. Ela já vem carregada de desprezo, medo, pena. Todo mundo sabe como é um mendigo. Hoje mesmo vi um, no caminho da faculdade. Ele jogado lá num cantinho, sujo, encolhidinho. Parecia até natural... Natural! Céus! A Declaração Universal dos Direitos Humanos existe há mais de 70 anos, e testemunhar semelhantes dividindo comida com ratos e baratas nos parece natural. Bem, é assim que é. Isso porque eles são considerados por muitos um “caso perdido”, marginais da vida social. Ignorados, tornam-se quase invisíveis. Mas será que aquele que é invisível, vê? Será que sempre esteve ali, como se fizesse parte das ruas e das vielas? Abordar a questão social que este assunto traz consigo parece, também, natural. O que não é natural é enxergar, em quem foge da humanidade, outro humano. Aqui trazemos algumas histórias daqueles que são invisíveis: Os moradores de rua - famosos mendigos – para mostrar que, assim como nós, possuem virtudes, famílias e histórias.

As entrevistas e/ou registro visual foram realizados com o consentimento dos entrevistados, respeitando sua privacidade e sua vontade.

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MARCÃO POETA

ETERNO CALOURO Ninguém sabe ao certo seu nome. Habita as imediações da Ufes e o perímetro do bairro Jardim da Penha, em Vitória. Aparenta no máximo 30 anos. Encontra-se sempre com os cabelos e barba bem aparados e traz correntes amarradas em seus pulsos e cintura. Está sempre todo pintado, como se tivesse caído num balde de tinta e, devido a isso, ficou conhecido como “O Eterno Calouro”. “Sou lá dos Estados Unidos, gosto de comer buceta” - apesar de ter conversado conosco, não interage muito com os outros e é frequentemente avistado falando sozinho. De acordo com relatos de conhecidos da família, ele é natural do bairro Santo Antônio (Vitória) e sua mãe vai lhe visitar toda semana.

Marcão Poeta é um transeunte do bairro de Itapoã, em Vila Velha. Aparenta mais de 50 anos, beirando a terceira idade. Com o rosto marcado por rugas, porta sempre uma barba cheia e totalmente branca, que faz jus às várias histórias que ele tem para contar. Simpático, puxa assunto com quem passa, sempre pedindo contribuições e recitando poemas. Possui uma flauta e uma escaleta, e com elas, toca melodias todos os dias. Apresenta-se como artista plástico, natural do Rio de Janeiro: “Não existe morador de rua. A rua é a morada! O cara mora num apartamento de duzentos andar, e gosta da rua! Eu sou um mero atuante da rua”. Enquanto conversávamos, um senhor parou para o cumprimentar. Ele afirmou que, além de conhecer Marcão há anos, já estudou com ele no Colégio Marista de Vila Velha. “Fiz parte do PCdoB, nos anos 80. Meu pai ficou muito triste comigo” lamenta o poeta. Afirma ter perdido um apartamento para o governo de Victor Buaiz. Carrega suas roupas e pertences numa grande sacola plástica.

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INVISÍVEIS AOS OLHOS DO GOVERNO? Apesar da instituição no Brasil, em 2009, da Política Nacional para População em Situação de Rua, a impressão que se tem é que esse contingente populacional só vem aumentando. O IBGE não tem um programa de contagem e classificação dos popularmente chamados moradores de rua. Os levantamentos estatísticos são esporádicos, têm metodologias distintas e pouco consolidadas. Invisíveis nas estatísticas, geram medo no poder público, que temem que essas pessoas caiam no mundo do tráfico. No Espírito Santo, o aparato do poder público que lida com essa questão é a Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH). Nela, a Coordenação da Política de População em Situação de Rua fica ligada à Gerência de Política de Promoção de Direitos Humanos. Questionada a respeito das dificuldades enfrentadas pela Secre-

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taria em lidar com a questão das pessoas em situação de rua, Neiriele Marques, atual Gerente de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da SEDH, disse que a maior dificuldade é sensibilizar a gestão pública sobre a necessidade da proposição de medidas que conscientizem a sociedade de que eles (as pessoas em situação de rua) possuem direitos: “Somente tirar essas pessoas do campo de visão da sociedade, ‘higienizando a cidade’, não irá resolver a questão”. No Facebook, o perfil Moradores de Rua: Invisíveis aos olhos da sociedade (@moradores.rua.invisiveis) estimula o amparo às pessoas em situação de rua, sem distinção de gênero, cor, nacionalidade ou religião. A iniciativa recebe elogios nos comentários. Entre abril e julho do ano passado, a Prefeitura de Vila Velha fez uma ação interessante. Por meio da Secretaria de Assistência Social (Semas), o órgão criou condições para o que 10

pessoas em situação de rua retornassem às suas cidade de origem, acertando a documentação deles e lhes emitindo passagens de ônibus. A adesão a esses serviços é voluntária. Um exemplo de órgão do poder público que lida com essas pessoas é o Centro Pop (Centro Especializado Para a População em Situação de Rua). Localizado em Vila Velha, ele oferece abrigo, alimentação, atendimento psicológico, socioassistencial e até jurídico. “A execução de uma política para essa questão muitas vezes é realizada pelos municípios, e a quantidade de habitantes determina os serviços para as pessoas em situação de rua daquela cidade”, afirma Neirieli. “As pessoas devem conhecer as formas de acionar esses serviços para ajudar o poder público a alcançar as pessoas que estão em situação de rua e, assim, auxiliar aqueles que desejam sair dessa condição”.


PI João Batista era o nome do morador de rua mais conhecido como “Pi”. Ele também foi um transeunte do bairro de Itapoã, em Vila Velha. Faleceu entre 2015 e 2016, não se sabe a data. Até o dia de sua morte, fazia daquela região sua morada desde 1992, ou seja, viveu ali por mais de 20 anos. Sempre de cara fechada, Pi parecia viver zangado. Negro, magro, possuía muitas rugas e andava sempre encurvado. Não conversava com ninguém, a única coisa que proferia era “Pi!” em alto e bom som, o que originou seu apelido. “De duas a três vezes por semana, ia andando pra Terra Vermelha (Vila Velha) e voltava”, nos conta um dono de bar da região. “Ele não era louco, mas se não desse uma dose, perturbava”. Aparentava já estar na terceira idade em seus últimos dias. Por ser muito conhecido pela comunidade local, sua morte gerou comoção. Na época, usuários do Facebook criaram até um perfil para homenageá-lo. Não se sabe se recebeu um funeral. Era alcoólatra e trocava tudo que lhe era dado por cachaça. julho 2019

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OS PRAZERES DA VIDA CASTA NÃO FAZER SEXO É APENAS UM DOS ASPECTOS DA CASTIDADE

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Ana Julia Chan

o latim castus, a palavra castidade significa “puro”. Entre os dez mandamentos, esta é citada no sexto: “Não pecar contra a castidade”. Contudo, aqueles que a praticam não estão preocupados apenas com o ‘não fazer sexo’. A escolha vai muito além disso. Para a jornalista e empresária Marcelle Desteffani, 29 anos, uma das maiores mudanças que ela notou com a decisão da castidade foi quanto ao controle do seu próprio temperamento e às suas relações interpessoais. “Sempre fui muito impaciente, nervosa, impulsiva no falar... Vivendo a castidade, que é o domínio de si, aprendi que é possível controlar as reações ao que sentimos. Então, quando fico nervosa, com raiva, me lembro do compromisso que fiz em viver a castidade e consigo me controlar mais”, comenta a jornalista. De acordo com os ensinamentos bíblicos, o sexo foi criado por Deus para ser vivido após o matrimônio, e Marcelle - indo de encontro ao que muitos jovens da sua idade acreditam - não enxerga isso como negativo, muito pelo contrário: “isso não é para o mal do homem, mas gera um bem grandioso para a nossa vida, uma grande paz, que só conseguimos perceber quando optamos por viver a virtude da castidade”, afirma. A estudante de PsicoloMarcelle: “Eu vivo a gia Amanda Aguiar, 23 anos, castidade mesmo sendo que cresceu em uma família casada e não quer dizer muito religiosa, conta que o que não fazemos sexo.” assunto sempre esteve pre28

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sente em suas discussões dentro de casa e na Igreja: “Isso é bastante discutido em algumas igrejas, inclusive na minha. Em casa também é algo muito conversado. Eu sempre tive acompanhamento bíblico em casa, até porque meu avô é pastor. Eu fui ensinada que o sexo foi criado para ser desfrutado dentro do casamento, de acordo com a bíblia”. Quanto às mudanças nos relacionamentos antes e depois da decisão, Marcelle frisa que a proximidade com Deus fez com que suas relações se tornassem bem mais amorosas e pacientes. Já para Amanda Aguiar, a escolha não mudou a forma de ela se relacionar com aqueles à sua volta, porque o assunto sobre a castidade sempre esteve presente em seu círculo social. “A minha escolha não interferiu nos meus relacionamentos, porque eu sempre tive amigos cristãos que também tomaram a mesma decisão. Meu meio social é formado por pessoas cristãs. Tenho poucos amigos que não são cristãos. Também só namorei caras cristãos... Então isso não teve interferência nenhuma”, afirma Amanda. A servidora pública Andressa Barboza Félix, 27 anos, percebeu que seus amigos mais próximos passaram a ser aqueles que frequentam a Igreja, assim como ela, e que entendem e apoiam sua decisão. “Claro que tenho muitas outras pessoas próximas, que não compartilham disso, mas Andressa: “Apesar de eu acaba que nossos relacionão saber, eu já vivia a namentos são mais sucastidade de certa forma perficiais, se restringem a ao optar por não ficar com datas comemorativas, enrapazes e não fazer sexo.” contros ao acaso, eventos


sociais. Naturalmente a proximidade diminui à medida que os interesses, crenças e valores compartilhados se distanciam”, observa. Além disso, Andressa ainda conta que a experiência da castidade está presente em sua vida mesmo antes de ela ter ‘escolhido’. “Apesar de eu não saber, eu já vivia a castidade de certa forma ao optar por não ficar com rapazes e não fazer sexo, por exemplo. Dei meu primeiro beijo aos 21 anos (sendo que estava na Igreja de fato apenas nos últimos 2 anos) e permaneço virgem (sim, e vou fazer 28 anos mês que vem!). Eu já vivia em parte a castidade mesmo sem perceber”, reflete a servidora. Mais uma prova de que a castidade não está associada somente ao sexo, é o casamento da Marcelle. Mesmo após o matrimônio, a empresária e jornalista afirma viver a castidade no seu dia a dia. “Eu vivo a castidade mesmo sendo casada e não quer dizer que não fazemos sexo. A castidade no casamento é a fidelidade dos cônjuges em todos os aspectos da vida. Com a nossa vida e atitudes, transmitimos às pessoas como somos felizes e realizados vivendo essa virtude”, explica.

PRECONCEITO

Grande parte das pessoas ainda tratam sobre o assunto com tom de ironia, como se viver a castidade, principalmente entre os jovens no mundo de hoje, fosse algo impossível ou bobo, mas a estudante de Psicologia afirma lidar bem com as opiniões diferentes. “Respeito quem é contra e quem não concorda. Mas é uma decisão que eu tomei. Piadas e ironias, eu não vejo como ofensas, principalmente porque eu sei que não vai interferir no meu relacionamento com Deus e na forma como eu penso. Eu sou bem resolvida com essa questão”, fala Amanda. Já para Andressa, o que existe é um preconceito que vem da falta de informação. Apesar de ter escutado muitas piadas desnecessárias, ela afirma que a maior batalha é contra ela mesma. “Como a própria palavra diz, é um pré-conceito. Se dentro da própria Igreja a maioria não sabe nem compreende ou aceita o que é a castidade, que dirá fora dela. Mas na minha vida particularmente eu não enfrento grandes problemas quanto a isso. Existem piadinhas, comentários e brincadeiras claro, mas nada que chegue ao ponto de me afligir ou atrapalhar. Na verdade, a maior batalha que um jovem cristão caAmanda: “Piadas e ironias, eu tólico enfrenta ao decidir pela castidade é consigo não vejo como ofensas porque eu sei que não vai interferir no meu mesmo”, expõe a servirelacionamento com Deus.” dora.

EU ESCOLHI ESPERAR

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undado em Vila Velha, no Espírito Santo, pelos pastores Nelson Júnior e Angela Cristina, casados há 20 anos, o movimento Eu escolhi esperar começou em março de 2011. Hoje, a página do Facebook conta com mais de 3 milhões de curtidas. A campanha foi criada para encorajar e dar suporte àqueles que decidiram ter relações sexuais apenas após o casamento. Voltado não somente aos jovens, mas também aos adultos, o pastor afirma que a preservação sexual e a integridade emocional são os principais temas trabalhados dentro do movimento. “A sociedade prega uma falsa liberdade sexual, diz que devemos usá-la sem limites. E é aí que a liberdade acaba e tem graves consequências. Criamos a campanha para fortalecer jovens que querem uma vida emocional e sexual responsável”, explica Nelson. A título de curiosidade: castidade não é sinônimo de virgindade. Tem gente que opta por seguir o sexto mandamento, mesmo após já ter tido experiências sexuais. Inclusive, estes também são bem-vindos ao movimento. “Encorajamos quem nunca teve uma experiência sexual a se guardar. E, àqueles que já fizeram, mas escolheram esperar, queremos mostrar que nunca é tarde para fazer o que é certo, recomeçar. O fato da pessoa já ter experiências antes não tira o valor de sua decisão. Dizemos que sexo é bom, é de Deus, só que no contexto do casamento”, esclarece o pastor.

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MULHER AO VOLANTE

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PERIGO CONSTANTE elas optam por profissões tradicionalmente masculinas, mas sofrem com preconceito e assédio

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Maria Clara Stecca

s carros de aplicativo chegaram há poucos anos, e vieram tomando gradativamente o lugar dos táxis. Os dois serviços de transporte oferecem basicamente o mesmo serviço, a diferença é que os primeiros têm um preço bem mais baixo. A semelhança não é apenas no tipo de serviço oferecido. Como nos táxis, os motoristas dos carros de aplicativo também são majoritariamente do sexo masculino. Por muitos anos, a profissão de motorista foi considerada uma atividade apenas para homens, e qualquer mulher que decidisse se aventurar nesta área acabava sofrendo muito preconceito. De fato, não vemos com frequência mulheres exercendo essa profissão, mas essa realidade vem sendo mudada aos poucos. Com a chegada dos carros de aplicativo, se tornou mais comum vermos mulheres motoristas. O preconceito também vem diminuindo, mas ainda está bem longe de acabar. Além disso, existe também um outro fantasma que cerca a mulher em quase todas as esferas da sua vida: o assédio sexual. Por mais que a profissão de motorista ofereça uma certa liberdade e flexibilidade, além de reforçar o empoderamento feminino, a mulher é obrigada a lidar

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com essa triste realidade de preconceito, assédio e violência. A motorista de aplicativo Andressa Borges conta que já sofreu com comentários preconceituosos e de cunho sexual: “Já me perguntaram se o meu marido permite que eu seja motorista. Uma vez um cara que chamou pelo aplicativo me chamou de gostosa, ele disse que quando eu viu a foto no aplicativo nao imaginou que seria uma mulher tão gostosa. Fiquei muito assustada, sem reação, mas terminei a corrida”. Andressa conta que nunca foi assaltada, ao contrário de “Janaina”, nome pelo qual a motorista de aplicativo prefere ser chamada. Ela já foi rendida por dois homens que solicitaram o serviço pelo aplicativo, e teve seu carro roubado. “Eles foram muito agressivos, pensei que eu fosse morrer, mas graças a deus ficou tudo bem, eles levaram o meu celular e o pouco dinheiro que estava comigo”. Como alternativa para driblar estes problemas, foram desenvolvidos aplicativos de transporte, similares ao Uber e 99 Pop, em que todas as motoristas e usuárias são mulheres, mas esses serviços não funcionam em algumas cidades do país, que é o caso da região da Grande Vitória. Apesar da disponibilidade, os aplicativos de transporte apenas para mulheres não ganharam muita força em solo capixaba. Pela demanda dos aplicativos de transporte mais usados (Uber e 99 POP), as motoristas acabam optando por dirigir para estas empresas.


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ALÔ, ALÔ, ALÔ... TU TU TU EMPRESAS DE TELEMARKETING ATACAM DIREITOS DO CONSUMIDOR POR

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Kelly Lacerda e Suzane Caldeira

telefone toca uma, duas, três, várias vezes por dia. Você interrompe o que está fazendo para atender. - Alô! - Bom dia, gostaria de falar com a senhora Rita de Cássia?

- Pois não, é ela. - Sou João Carlos e falo da empresa “Cartão Feliz”, tudo bem senhora? O motivo do meu contato é para informá-la que a senhora foi selecionada e aprovada para receber um de nossos cartões, informo também que para sua segurança essa ligação está sendo gravada. Assim como a funcionária pública Rita de Cássia, quem nunca recebeu esse tipo de ligação? A maioria dos consumidores concorda que essas chamadas incomodam e muito. O telefone toca no início da manhã ao acordar, enquanto almoça, durante aquela reunião importante ou no horário de descanso. Geralmente são ligações de telemarketing destinadas a oferecer produtos e serviços dos mais variados tipos, mas os serviços de telefonia, TV por assinatura, internet, e cartão de crédito são os mais oferecidos. Rita está farta de ser importunada diariamente por esse tipo de chamada. “Ligam o dia inteiro, para meu telefone fixo, celular, trabalho e até mesmo para casa de parentes. Só em um domingo recebi quatorze ligações”, conta. A contadora Marilia Sangali também sofre com os incômodos do telemarketing. “Não tem dia certo, ligam até finais de semana e feriados. Eles ligam insistentemente, não têm horário, muitas vezes começam antes das 08h00 e vão até mais de 21h, às vezes atendo, mas é raro”, relata. Outro tipo de reclamação constante por parte

dos consumidores são ligações que ao serem atendidas ficam mudas e após um tempo caem, essa situação é causada pelo uso de robôs, os chamados robocalls. Um discador automático recebe uma lista de telefones que poderão ser passadas para um atendente físico quando o consumidor atende, ou ainda, uma gravação pode ser ouvida pelo consumidor, todavia quando ocorrem falhas no sistema, essa situação acontece. Outro incômodo gerado pelos robocalls é o fato de que esse sistema também faz com que as ligações sejam repetidas várias vezes para o mesmo número no decorrer do dia. Os consumidores estão cada vez mais revoltados com a quantidade de chamadas indesejadas que recebem. Na melhor das hipóteses, essas chamadas são um incômodo. Na pior das hipóteses, elas são uma ameaça às informações pessoais e financeiras que os consumidores trabalham arduamente para proteger. A funcionária pública Luciana Corrêa cansou de ser importunada pelas ligações automatizadas e tomou uma atitude radical. “Desliguei o telefone da minha casa, não aguentava mais receber essas ligações era o dia inteiro. Tinha gravação com a voz de gente famosa oferecendo até remédio, mas o pior eram as ligações que ficavam mudas, essas eram em maior número. Agora só ligo o telefone quando preciso fazer uma ligação”, desabafa. A insistência por parte dos operadores de telemarketing também é motivo de insatisfação. O publicitário Arthur Menezes diz já se sentiu coagido

Rita de Cássia: “Só em um domingo recebi 14 ligações”

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com algumas ligações que recebeu. “Me ligaram oferecendo um plano de internet, falei que eu não tinha interesse, foi então que a pessoa começou a me questionar, dizendo que eu iria perder uma excelente oportunidade, que eu deveria ouvi-la, não me deixava dizer não. Foi uma total falta de respeito”, relembra. Para tentar reduzir o desconforto causado por essas empresas, a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) exigiu que as empresas do setor de telecomunicações criassem uma lista nacional única de consumidores que não desejam receber esse tipo de ligação, programa denominado “Não perturbe”. Porém, a lista que deve entrar em vigor ainda no mês de julho deste ano, não contempla todo tipo de serviço, apenas os de internet, TV por assinatura e telefonia. À frente do cadastro nacional proposto, o Procon Estadual do Espírito Santo, criou, desde 2009, através da Lei Estadual nº 9.176/2009, o cadastro conhecido como “Bloqueio de telemarketing – Não importune”. Diferentemente do cadastro nacional, o cadastro local abrange todo tipo de ligação de telemarketing. Segundo a diretora do Procon Estadual, Lana Lages, o cadastro beneficia usuários de telefonia fixa e celular, com os DDDs do Estado do Espírito Santo, independente se a empresa que presta este tipo de serviço seja de outro Estado. A microempresária Shirley Araújo cadastrou o número do telefone fixo de sua casa desde 2010 no serviço e garante que funciona. “Nunca mais recebi essas ligações que tanto me incomodavam, foi um alívio! Agora preciso cadastrar o meu celular”, relata. Desde a implantação do serviço no Estado, cerca de 34 mil pessoas já cadastraram 61 mil números de telefone desejando não mais receber ligações de telemarketing. A Diretora do Procon alerta que caso haja o descumprimento da Lei, as empresas poderão sofrer as sanções administrativas previstas no Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Em 2018, foram aplicados R$326.874,39 em multas.

COMO SE CADASTRAR SERVIÇO DO PROCON-ES?

NO

Acesse o site www.procon.es. gov.br e clique no link “Bloqueio de Telemarketing”. Preencha o formulário para o cadastro de pessoas físicas e jurídicas (o titular da linha é quem deve fazer a inscrição do número). Após 30 dias do ingresso do consumidor no cadastro, as empresas prestadoras de serviço de telemarketing não poderão fazer ligações para as pessoas inscritas. Se isso acontecer, o consumidor poderá formular uma reclamação junto ao Procon Estadual, por meio do site - na página do bloqueio de telemarketing - ou do Atendimento Eletrônico, disponível no site www.procon.es.gov.br ou do App Procon-ES, disponível para Android, devendo informar a data e hora da ligação, o nome da empresa, e se possível, o nome do operador e número do telefone que originou a ligação. Não estão incluídas na lei estadual entidades filantrópicas e empresas de cobrança. CADASTRO NACIONAL O Cadastro Nacional não anula a Lei estadual. As empresas devem verificar ambos os cadastros antes de colocar o número do usuário em sua lista.

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TODA CRIANÇA TEM DIREITO AO NÃO TRABALHO MAS ESTA NÃO É A REALIDADE DE MAIS DE 47 MIL CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO ESPÍRITO SANTO

Richele Ribeiro

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crianças, uma casa pequena e uma mãe sobrecarregada. Esse é o panorama que Selma Cardoso tem de sua infância. A mais velha dos filhos, ao completar 14 anos soube que uma amiga da família precisava de uma “pessoa para ajudar em casa”. Foi assim que começou sua história de exploração infantil. "Minha mãe achou que lá eu poderia estudar, teria uma vida melhor". Saindo de Linhares, norte do estado, onde morava a família, a garota foi para São Paulo. Longe de casa, a situação foi diferente do combinado. Não pôde estudar, e trabalhava o dia todo. "Eram raros os momentos em que eu podia parar um pouco o serviço", relata. Do dinheiro que ganhava, enviava grande parte para a família. Selma tem uma trajetória parecida com a de sua mãe. A aposentada Lúcia Cardoso também foi uma vítima do trabalho infantil. Após perder a matriarca da família aos sete anos, a menina ficou aos cuidados dos irmãos. Desde então, passou a trabalhar nos afazeres domésticos e na lavoura de café. Semianalfabeta, Lúcia estudou apenas até o segundo ano do ensino fundamental. "Meus irmãos não viam necessidade em se estudar. Tinha que ajudar em casa e ficava muito cansada", afirma. Mãe de oito filhos, todos eles trabalharam na infância. "A gente passava necessidades em casa. Eles viam aquilo e queriam ajudar de alguma forma", conta. Atualmente, apenas uma tem ensino superior e hoje atua como pedagoga.

REALIDADE Toda criança tem direito ao não trabalho. Essa é uma das resoluções de órgãos e convenções de proteção à criança e ao adolescente. Porém, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esta não é uma realidade para cerca de 2,7 milhões de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) no Brasil. “O que mais me preocupa é que a sociedade fica indiferente ao cenário. Quando veem a criança limpando o vidro do carro, ou quando vendem balas as pessoas não se incomodam. Não têm compaixão, não ligam. Muitas vezes são impotentes também. É necessário uma mudança de postura”, afirmou o psicoterapeuta Ivan Capelatto durante o seminário “Não cale”. O evento foi realizado na Universidade Federal do Espírito Santo, em maio deste ano, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Processual junto com o Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho da 17ª região e o Fórum de Erradicação ao Trabalho Infantil (Feapeti), com o intuito de debater medidas para combater o trabalho infantil. No Brasil, a partir dos 14 anos, o adolescente pode exercer atividade remunerada na condição de aprendiz, em horário que não conflite com a escola. Caso seja trabalho noturno, perigoso, insalubre ou atividades da lista TIP (piores formas de trabalho infantil), a proibição se estende aos 18 anos incompletos. "A sociedade propaga mitos em relação à exploração infantil”. É o que diz a magistrada do Tribunal Regional do Trabalho 17ª região e gestora regional de combate ao trabalho infantil, Suzane Schulz. "O trabalho de exploração e trabalho precoce trazem um sentimento de não pertencimento, de marginalidade e exclusão social”, analisa. Muitas vezes, considera-se o trabalho como uma meio de formar caráter. “Melhor trabalhar do que roubar” é uma das

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frases utilizadas para normalizar o trabalho precoce. "A naturalização invisibiliza o problema. O trabalho dignifica desde que seja realizado em idade adequada. O que forma caráter é a escola e o lar. Temos que desconstruir esses mitos”, ressalta a magistrada.

ESPÍRITO SANTO Segundo dados da Rede Peteca - Chega de trabalho infantil (projeto que busca a promoção dos direitos da criança e do adolescente e a erradicação do trabalho infantil no país), 47.378 crianças e adolescentes trabalham no Estado. Desses, a maioria (29,4%) no setor de agricultura e pecuária. O levantamento usa como base Pesquisa nacional por amostra de domicílios (Pnad) e O trabalho infantil nos principais grupamentos de atividades econômicas do Brasil, elaborada pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

“O trabalho infantil tira a criança da escola e causa um déficit de aprendizagem. Isso impacta no futuro deste indivíduo e reforça um ciclo de pobreza”, afirma Suzane Schulz

VOCÊ SABIA? O governo do Estado do Espírito Santo sancionou, em 2017, a lei 10.755 instituindo o “Junho Vermelho”. O intuito é dedicar o mês ao debate sobre trabalho infantil, para prevenção e eliminação desta prática. Junho foi escolhido por celebrar, no dia 12, o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil.

AS PIORES O trabalho nas ruas, as carvoarias e lixões, a agricultura com exposição a agrotóxicos, e o trabalho doméstico estão na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, mais conhecida como Lista TIP definida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). A lista estabelece quais são as atividades que mais oferecem riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e adolescentes. A Convenção 182 (Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação) foi instituída em 1999 durante uma reunião em Genebra, na Suíça. Promovida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a intenção era debater questões visando à proibição e eliminação do trabalho infantil. Foram desenvolvidos alguns tópicos, que mais tarde deram origem à lista TIP. Em 2008, utilizando como base a Convenção, a lista foi ratificada no Brasil, definindo 93 piores formas de trabalho infantil. Ela é também utilizada como meio de combate à exploração em países como Argentina e Bolívia, com 14 e 20 formas listadas, respectivamente. Um levantamento feito pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde mostrou que entre 2007 e 2017, 40.849 crianças e adolescentes sofreram acidentes de trabalho, 24.654 de forma grave. Os dados ainda apontam que 236 morreram

MARCOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS 1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos.

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1966 Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais julho 2019

1969

1973

1989

1969

Convenção Americana sobre Direitos Humanos

Convenção sobre a Idade Mínima para Admissão ao Emprego (n. 138), adotada pela OIT

Convenção Sobre os Direitos da Criança

Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil (n. 182) adotada pela OIT


FORMAS DE TRABALHO INFANTIL em acidentes de trabalho no mesmo período. O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil é uma dessas estratégias de combate. Criado 1994, o Fórum tem como membros outros 27 fóruns estaduais de prevenção e erradicação do trabalho infantil, representantes do governo federal, dos trabalhadores, empregadores, entidades da sociedade civil, do sistema de Justiça e organismos internacionais (OIT e UNICEF). O Fórum, assim como outras iniciativas do setor público e privado, faz parte de uma rede de esforços nacionais para eliminar o trabalho precoce no Brasil. No estado, o projeto tem como membro o Feapeti - Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalhador Adolescente do Espírito Santo. O fórum estadual realiza ações como a exposição itinerante, que passou pela Universidade Federal do Espírito Santo e pelo TRT-ES. A intenção é estabelecer uma proximidade com a população, provocando uma sensibilização para o tema. Outra ação que visa conscientizar a população é a série de HQs MPT em quadrinhos, desenvolvida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT-ES), e inserida no Feapeti. A revista é distribuída nas escolas durante as ações contra a exploração infantil. Os direitos das crianças é tema recorrente na série, e o trabalho infantil está entre os assuntos

mais tratados nas publicações. As piores formas de trabalho infantil, O Estatuto da Criança e do Adolescente, trabalho infantil doméstico e trabalho infantil: mitos e verdades, já foram temáticas abordadas.

PROGRAMA NACIONAL Na busca pelo fim da exploração do trabalho infantil, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) criaram, em 2013, o Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. O projeto está inserido em todos os estados do país, onde são indicados pelos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) gestores regionais do trabalho infantil para promoverem ações de combate à exploração. Estas ações são realizadas em escolas e com os profissionais que atuam diretamente com as vítimas, como conselheiros tutelares. "Tentamos mostrar para a sociedade os aspectos prejudiciais do trabalho precoce por meio da conscientização. Ela precisa entender que a exploração do trabalho infantil é uma violência", afirma a gestora regional, Suzane Schulz.

EXPLORAÇÃO SEXUAL Em combate à exploração sexual e relação de trabalho ilícito, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), em parceria com Organização Internacional do Trabalho, Childhood Brasil, Ministério dos Direitos Humanos, Ministério do Trabalho e o Ministério

Público do Trabalho, criaram o Projeto Mapear. A exploração sexual, que entra na lista das piores formas de trabalho infantil como "trabalho com exposição a abusos físicos, psicológicos ou sexuais”, é combatida através de um mapeamento de pontos vulneráveis realizado nas rodovias federais brasileiras. Segundo relatório de 2017/2018 divulgado pela PRF foram identificados 2.487 pontos de exploração sexual nas rodovias federais. A intenção é que a partir dos dados das ações, sejam realizados políticas públicas de combate a essa prática. As ações visam à prevenção e erradicação do trabalho infantil com foco especial na educação e estímulo à sociedade na luta em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.

DENÚNCIAS De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT-ES), nos últimos cinco anos, foram realizadas cerca de 560 denúncias de trabalho infantil. Elas podem ser realizadas de forma anônima, pessoalmente, por telefone, pelo site ou através do Disque 100. Segundo o órgão, "trabalhos informais" como em feiras livres, engraxate, vendedor de amendoim ou balas, a exploração sexual comercial e o trabalho doméstico infantil (podendo ser na própria cada da criança ou em casas de terceiros) são mais difíceis de receberem denúncias ou serem fiscalizadas.

Acesso às revistas em quadrinhos do MPT-ES: http://www.mptemquadrinhos.com.br/edicoes/piores-formas-de-trabalho-infantil/

HUMANOS SOBRE TRABALHO INFANTIL 1988

1990

1996

2000

2002

Constituição Federal, Artigos 227, 208

Estatuto da Criança e Adolescente (ECRIAD)

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)

Lei da Aprendizagem

Decreto 4.134, Convenção 138 e Recomendação 146 da OIT sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego.

Fonte: Nações Unidas no Brasil (ONUBR)

2008 Decreto 6481 Regulamenta artigos da Conv. 182 da OIT, que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil 37 julho 2019


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las sempre estiveram ali, no meio da praça, paradinhas, esperando seus velhos e fiéis clientes. E ainda estão por ali, só não se sabe muito bem até quando. As famosas bancas de jornais, que recebiam os primeiros clientes às 6 da manhã para comprar o jornal do dia antes de irem trabalhar. Um costume tão comum a uns anos atrás vem desaparecendo com o passar do tempo. As bancas são uma parte cultural da sociedade que ultrapassam sua função econômica, sendo também um ponto de encontro da vizinhança. Lá, os poucos que ainda as procuram chegam com um “bom dia” e saem sabendo de tudo que se passa na vida do vizinho, debatem sobre o jogo de ontem e o “tchau” é só um “até amanhã”. É tão forte essa impressão comunicativa das bancas, que se você estiver perdido em um bairro desconhecido, basta pedir uma informação ao jornaleiro da praça, tornando até um serviço de utilidade pública. O status desse local tão querido na sociedade era enorme. A força da comunicação digital vem destruindo “sem dó” uma camada cultural que não consegue mais se reerguer. O fato é: não dá para competir com a tecnologia. Então, que medidas tomar? Para Marcelo Geara, dono de uma banca de jornais em Itaparica, Vila Velha, “está cada dia mais difícil, estamos vendo muitas revistas que eram semanais se tornando mensais, e até outras que estão saindo de circulação”. Em meio a tanta inovação, Marcelo acrescenta que “com a tecnologia cada vez mais acessível e as informações em tempo real, a concorrência fica, de certa forma, desleal. Afetou completamente”. Muitas bancas espalhadas pela cidade estão tendo que se readaptar ao mercado, trazendo itens inovadores, antes

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nunca comercializados, como por exemplo: carregador de celular e pen drives. É até estranho perceber que as bancas, aos poucos, se tornam lojas. Mesmo respirando por aparelho, as bancas ainda buscam um meio de estar presente na vida das comunidades que, por muitos anos, foram sua família. Para o estudante de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Belas Artes de São Paulo, João Felipe Falqueto, as bancas são uma segurança visual, “elas são os olhos da rua, que acompanham todo o movimento, se acontece alguma coisa, elas viram”, afirma. Além disso, o estudante enfatiza que sem as bancas a vivacidade das ruas será perdida, “as bancas são uma garantia de circulação de informação e de pessoas”, conclui. Assim, elas estão em constante mudança, buscando inovação, investindo em conveniência. O estabelecimento de Geara já está adquirindo outras funções como máquina de xerox, souvenirs, refrigerantes, cartões de visitas, panfletos e funcionando também como uma tabacaria que, segundo o jornaleiro é a área que mais vende. Abrir o leque dos itens que uma banca comercializa é fundamental para continuar seguindo nesse caminho cheio de incertezas. Hoje, há tantas perguntas em relação ao futuro que nem mesmo a tecnologia é capaz de responder. Tudo é rápido, imprevisível e atual. Saber que competir com a tecnologia é a escolha mais errada devido a tantas mudanças, mas entendê-la e introduzi-la na rotina é a decisão mais adequada seja qual for seu negócio. Não são só as bancas que estão tendo que reestruturar seu trabalho. Os próprios jornais se viram num mundo onde as pessoas já não procuram mais os classificados para anunciar, indo agora para a internet por causa de sua celeridade. Marcelo acredita que os jornais impressos terão um fim no futuro. “Com a notícia na palma da mão, os jornais viverão de publicidade e irão circular de forma gratuita”, afirma.


NOVO DESTINO PARA AS BANCAS BANCAS DE JORNAIS TENTAM SOBREVIVER NA ERA DA TECNOLOGIA. Felipe Khoury julho 2019

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violência com Carla Nigro e Marcela Delatorre

A violência não é uma coisa que surge a partir de um momento mágico. Uma narrativa muito presente é a de que o Espírito Santo sempre foi pacífico e que a violência só apareceu quando se instalaram os grandes projetos - Vale e a CST, por exemplo. Mas a história do nosso Estado sempre foi marcada por uma relação entre o legal e o ilegal. No século XX, teve época em que o Espírito Santo tinha 300 policiais. Havia realmente um poder paralelo, onde os coronéis é que cuidavam da segurança”. É com a análise do professor e doutor em Direito e Sociologia Humberto Júnior que entregamos o início dessa matéria que lidará com assuntos mantidos sob o tapete ou trabalhados com muito cuidado para não se “falar demais”. Organizações criminosas, milícias, corrupção no controle do Estado, massacre de etnias indígenas, grupos de extermínio e, mais recentemente, quadrilhas do tráfico. Na nossa história, a violência não é novidade, porém falar publicamente sobre ela nunca foi muito fácil. Entre histórias e estórias, volta e meia surgem suspeitas e ameaças em terras capixabas dominadas por “poderes paralelos”. Tirando petiscos aqui e ali, há poucas informações disponibilizadas e não há pesquisas aprofundadas acerca da atuação de milícias ou dados públicos abrangentes sobre o tráfico. Mesmo casos tidos como resolvidos ainda são questionados em cantos obscuros, como

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é o caso da “extinta” Scuderie Le Cocq. “Ainda há muita coisa nebulosa no Espírito Santo”, confirma Júnior. Segundo uma fonte anônima, acredita-se que ela sobreviveu de alguma forma. “Havia uma investigação de que a Scuderie Le Cocq sobreviveu com outro nome e formato. Durante a greve da PM, alguns assassinatos da Grande Vitória tinham toda a aparência de execução sumária. E como é a própria polícia que investiga, complica bastante”.

BONS TEMPOS?

Nos dados oficiais, a situação do capixaba está cada vez melhor. A edição especial de 2018 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, desenvolvido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta uma redução de 44% nos homicídios desde 2009. Na análise do Anuário isso significa que mais de 700 vidas foram “poupadas”. Segundo a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (SESP), em 2009 eram 58,3 homicídios por 100 mil habitantes. O número decresceu ano após ano e, em 2018, alcançou 28 por 100 mil habitantes. Para o nestre em Segurança Pública Pablo Lira, a mudança é fruto das ações governamentais. “No Espírito Santo o programa ‘Estado Presente’ traçou estratégias de prevenção e repressão que culminaram na diminuição das taxas de homicídios, as quais estão diminuindo desde 2009, o que é um

recorde histórico. Além disso, as Polícias Civil e Militar são muito bem organizadas e estruturadas. Aqui, a Polícia Militar tem formação continuada no segmento dos direitos humanos com foco nos ensinamentos de tiro defensivo”, avalia. Outras causas são a reestruturação dos presídios e programas focados em territórios com vulnerabilidades socioeconômicas. Entretanto os números não refletem a insegurança com a qual a população convive. “O que mensura a violência no estado? Homicídios? Então vou contar só homicídios? Mas diminuir os homicídios quer dizer que meu estado está mais seguro? Pode ser que não. O que te dá medo? Ser assaltado. Isso reflete a sua sensação de insegurança, mesmo que os índices de homicídios estejam diminuindo”, analisa o tenente da Polícia Militar Anthony Moraes. Ele ressalta que essas pesquisas abordam alguns valores e desprezam outros.

VIOLÊNCIA SETORIZADA

“Na média diminuiu. Mas a média é complicada. Se você tem um grupo em que cai muito, é claro que a média vai ser menor. Nós temos uma violência muito setorizada. Sempre uma elite comandando quem vai morrer. Isso faz parte da nossa história. Essa redução toda que ocorreu foi muito mais entre adultos brancos do que entre jovens negros, teve até época em que o homicídio de jovens negros aumentou”, reflete Júnior,


mo herança a violência no espírito santo é histórica. embora os dados governamentais mostrem uma redução drástica nos homicídios, o medo e o crime organizado avançam.

determinando que vários fatores e desigualdades devem ser levados em consideração para medir a segurança pública. No entanto, mesmo que os dados mostrem que a violência está diminuindo, a guerra do tráfico continua em ascensão. Segundo Lira, cinco anos atrás não havia facções atuando no estado. Atualmente, o Mapa das Facções Prisionais 2018, editado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indica que o PCC (Primeiro Comando da Capital) já tem uma “filial” no Espírito Santo, o PCV (Primeiro Comando de Vitória). Já a reportagem especial do Jornal A Tribuna, publicada em 24 de junho de 2019, indica que há 130 pequenos grupos traficando no estado. “No ES temos a resistência dos grupos de jovens locais contra as facções de outros estados. É daí que vem as disputas que vemos nos jornais. O problema é que esses grupos atuam à margem da lei, aumentando a sensação de insegurança. Há casos de comunidades que ainda estão dominadas por esses grupos de jovens e que sofrem com toque de recolher, por exemplo”. O mestre em Segurança Pública destaca que os grupos se formam em razão do crescimento das comunidades sem um planejamento adequado, convivendo com vários déficits na educação, na segurança, em locais de vulnerabilidade sociais, econômicas e urbanas. Durante o ano de 2018, vários

casos que saíram na mídia apontavam para uma disputa territorial entre quadrilhas rivais. Um dos casos mais emblemáticos aconteceu em agosto desse mesmo ano, quando, a disputa por pontos de tráfico entre o PCV e quadrilhas locais, nos morros de Vitória, atingiu moradores do Morro Alagoano e de Caratoíra. Por trás da guerra estava o interesse em uma área estratégica, com boa visibilidade, acessos complicados e onde a polícia só sobe em momentos de conflito. Mas essa expansão não se restringe apenas aos bairros da Grande Vitória. Há grupos que atuam por todo o Espírito Santo. Em reportagem produzida pelo Gazeta Online, o promotor do Ministério Público do Estado, Sérgio Alves, contou que os traficantes estão expandindo cada vez mais seus negócios. “Hoje eles estão espalhados em todo o estado do Espírito Santo. Tem representante, tem atuação em todos os locais. Hoje é muito comum você ver grandes apreensões de drogas em Guarapari, em Linhares. Exatamente porque esses traficantes estão com dificuldade de guardar essas armas e drogas com segurança em decorrência das inúmeras operações policiais que vêm sendo feitas. Então buscam espaços além da Grande Vitória, no interior do Estado, para abrigar essas armas; e ali passam também a influenciar da mesma forma como influenciam comunidades na Grande Vitória”. Nas próximas páginas o leitor

poderá conhecer e entender um pouco melhor esse “submundo”. Entendendo do que se trata e como funcionam as organizações ou facções criminosas, as quadrilhas e a “extinta” Scuderie Detetive Le Cocq.

GRUPOS DO TRÁFICO NO ES

“Eu já vi um homem caído no chão. E nessa primeira vez que eu vi, o rapaz pediu desculpa para o meu pai porque lançou várias balas no carro. O carro ficou todo furado. Eu tinha 12 anos na época e tive pesadelo a noite inteira. Mas eu me acostumei. Porque eu comecei a ver frequentemente, coisa que eu não via antes quando morava em Cariacica. Tanto que se eu ver hoje em dia, eu não ligo. Mas melhorou bastante e eu não faço ideia do motivo”, conta Cinderela (nome fictício), moradora de Vila Velha. Vizinha de uma boca de fumo, Cinderela convive diariamente com cenas de traficantes batendo e espancando pessoas e animais, às vezes jogando em valões, correndo para se esconder da polícia em qualquer casa aberta e com barulho de tiros, constantemente invadindo a rotina da comunidade. “Uma vez rolou tanto tiro que a gente só viu as luzes da bala do quarto. E meu pai começou a correr desesperado. A gente ficou preocupado que vazasse no quarto. Em outras vezes, escondiam drogas no ar condicionado”, lembra. O bairro de Cinderela é apenas um dos inúmeros território domi-

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nados por gangues e traficantes no Espírito Santo. E mesmo talvez nem estando listado entre os 130 mencionados pelo jornal A Tribuna, são esses pequenos grupos que fazem milhares de pessoas carentes considerarem a guerra parte da rotina. “O pequeno grupo que ‘sabe de tudo’. Contam, sabem o que sai e o que entra, e vivem brigando entre eles”, revela. “Se você escutar fogo de artifício no morro, pode ter certeza que é para esconder som de bala”, avisa Pocahontas (nome fictício), moradora de Itararé, um dos bairros que integram o Complexo da Penha (composto pelos bairros do Bonfim, Consolação, Gurigica, Bairro da Penha, São Benedito e Itararé). Ela mora há 45 anos no bairro, é apaixonada por ele e está decidida a nunca se mudar de lá. Olhando para os lados e desconfiada das pessoas em volta, Pocahontas sussurra que os grupos de traficantes de Itararé são muito bem equipados com drones a fuzis. “Tem guerra porque eles protegem seus territórios. É igual uma empresa. Os líderes são os gerentes. Se fizer algo errado, eles mandam para casa sem pagamento”, conta. Ela acredita que a falta de trabalho e lazer é uma das principais razões para que os grupos surjam. Por isso, culpa o governo que não fornece oportunidades o suficiente. “São jovens que estão começando agora. Esses jovens não têm trabalho, não têm emprego. O que eles vão fazer da vida deles? Uns vão para usar (drogas), mas a maioria vai para trabalhar. E eles acham que é um trabalho como outro qualquer. Olha a crise que o país está passando, o número de desempregados. Esses jovens precisam de trabalhar o social e eu nunca vi o poder público realizar ações aqui”.

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O maior problema não é o tráfico, avalia Pocahontas, mas sim o preconceito que a sociedade tem com as pessoas que vivem nos morros. Cita, por exemplo, o programa de Amaro Neto, no qual Itararé só aparece se a notícia for ruim ou situações com o Uber, que ao ver o nome do bairro quase sempre cancela a viagem. Pocahontas comenta que além do medo, uma das razões para os moradores não denunciarem são as ações assistenciais que os grupos realizam nas comunidades. “Eles ajudam, dão cesta básica. No natal dão presentes. Na páscoa, chovem ovos. É por esses motivos que ninguém chama a polícia”, afirma. Os grupos responsáveis pelo tráfico aqui no Estado ainda estão no seu início, comenta Humberto Júnior, não sendo tão organizados quanto os do Rio de Janeiro. “São pessoas novas, de vinte e poucos anos, que estão entrando agora. Não há muitas lideranças antigas”. Mas as fronteiras já foram cruzadas: o descaso com a questão penitenciária – que culminou com a denúncia da ONU em 2010 do sistema carcerário sob a alegação de esquartejamentos e torturas (entre os internos e/ou dos policiais) recorrentes – abriu as portas para organizações nacionais. “Em qualquer lugar do país se você tem uma violência muito grande na prisão, os grupos se organizam. É até uma forma de autodefesa. Como eu, como indivíduo, vou me defender em um lugar em que posso ser esquartejado a qualquer momento? Eu preciso de um grupo que me suporte”, afirma Júnior. “Por muito tempo há uma gestão carcerária muito violenta que consegue manter o controle. Mas é claro que isso gera revolta e um necessidade de contraposição. E hoje, em 2019, as pessoas já falam em Pri-

meiro Comando de Vitória”, complementa. Nos últimos anos não houve escândalos nos presídios capixabas. Mas ainda há casos que demonstram como a situação está longe do ideal. Em fevereiro deste ano, ex-presidiários atacaram uma empresa que fazia comida para um presídio, deram tiros no local e atearam fogo, mas não levaram nada. Apenas deixaram um bilhete ameaçando os donos de que se a comida não melhorasse, eles iam perder a vida. “Todos os grupos fortes do Brasil nascem das prisões”, reflete Júnior. O aumento no número de presos e a falta de estrutura para o volume de pessoas colocadas dentro das celas culminou na criação e no fortalecimento de facções criminosas no país. Mas como elas funcionam? De acordo com a edição 2.498 de outubro de 2016 da Revista Veja, se o PCC fosse uma empresa, seria uma das maiores do país. Isso porque eles funcionam de forma organizada e seguem a risca seus direitos e deveres. “Se fosse uma empresa, o PCC seria hoje a décima sexta maior do país, à frente de gigantes como a montadora Volkswagen. Trata-se de um império corporativo em que os produtos são as drogas ilícitas. Os clientes são dependentes químicos. Os fornecedores são criminosos paraguaios, bolivianos e colombianos. Os métodos são o assassinato, a extorsão, a propina e a lavagem de dinheiro. As áreas de diversificação são os assaltos a bancos, o roubo de carga e o tráfico de armas. Apenas com a venda de drogas para o consumo no território nacional, a organização alcança um faturamento anual da ordem de 20,3 bilhões de reais, sem incluir as receitas com roubo de cargas e assalto a banco”.


AS FACÇÕES CRIMINOSAS Divisão de tarefa, obediência ao superior, desenvolvimento de projetos de longo prazo, busca por lucro e poder econômico, uso de tecnologia avançada, filantropia, poder de intimidação e corrupção de agentes públicos. A partir dessa lista parece que estamos falando da maioria das grande empresas nacionais e internacionais, mas não, essas são características do crime organizado. A lei 12.850/13 define o crime e suas condutas:

sociações criminosas, popularmente conhecidas como quadrilhas? As quadrilhas não possuem divisão de tarefas e qualquer crime cometido pode ser enquadrado. Elas se enquadram no artigo 288 do Código Penal: ser estáveis, permanentes e ter a intenção de cometer crimes indeterminados, como roubos, furtos, receptações, entre outros. A pena é de 1 a 3 anos. Normalmente os traficantes são acusados por formação de quadrilha e de organização criminosa ao mesmo tempo.

ART.1º (...)

PCC

§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

ART. 2º

Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. Mas qual a diferença entre as organizações criminosas e as as-

O Primeiro Comando da Capital, popularmente conhecido como PCC, é uma facção criminosa paulista que deu início à sua trajetória na tarde do dia 31 de agosto de 1993, durante um jogo de futebol na casa de Custódia “Pinheirão”. É o que nos conta o livro-reportagem “O sindicato do crime”, de Percival de Souza. “Eram oito presos, transferidos da capital por problemas disciplinares, para ficar em Taubaté – até então, temido pela classe carcerária’. Os detentos permaneciam 23 horas ininterruptas dentro da cela. Os oito estavam sendo punidos pela má conduta no antigo presídio e pelo fato de ter vindo de São Paulo o time foi chamado de Comando da Capital”. O objetivo principal desde o momento de sua criação foi evitar que se repetissem eventos como o ‘massacre do Carandiru’, como ficou conhecida a rebelião no pavilhão 9 da extinta Casa de Detenção do Ca-

randiru, no dia 2 de outubro de 1992, um dos episódios mais sangrentos da história penitenciária mundial. A lógica do grupo era de que, criando uma hierarquia entre os presos, seria possível evitar conflitos internos, como o que serviu de estopim para a rebelião no Carandiru, e ainda combater os maus tratos e exigir melhores condições aos presos do Estado. Com o passar dos anos e com um número crescente de presos filiados à facção, pertencer ao PCC deu um novo ‘patamar’ ao mundo do crime. Nos primeiros anos, o PCC contava com oito mil integrantes. Em 2006, contabilizando apenas nos presídios, o grupo registrava 120 mil integrantes. Hoje, comandada por presos e foragidos, em especial no estado de São Paulo, estima-se que a facção conte com mais de 130 mil membros. A facção é considerada por muitos como a mais perigosa do país.

A EXTINTA SCUDERIE LE COCQ?

“Aqueles que cometeram crimes eram da Scuderie Detetive Le Cocq e quem apurava também pertencia a Le Cocq, sendo fato que em alguns casos, os autos eram encaminhados para Promotores e Juízes da própria organização, acarretando assim, na completa impunidade dos criminosos”, contou o delegado Francisco Badenes, em depoimento realizado para a CPI do Narcotráfico, em 2000. Ele era responsável por investigar a atuação da Scuderie Detetive Le

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Cocq ou Esquadrão Le Cocq, no Espírito Santo. Treze anos depois que a Le Cocq foi considerada extinta, o delegado ainda não coloca os pés no estado. “A Le Cocq era quase uma maçonaria do crime aqui no estado. Era uma coisa doida. Era uma organização criminosa que tinha registro. Tinha CNPJ. E atuava em vários estados. Acabou em tudo quanto é lugar, mas não acabou aqui. Uma coisa que só acontece no ES”, conta uma fonte que não quis se identificar, assim como os poucos que se dispõem a falar sobre a organização. Ainda, bons samaritanos avisam: “Não se envolva com isso. É muito arriscado”, “Sua vida vale mais do que isso”. Silêncio e chamadas desligadas são as respostas dos restantes. A Le Cocq foi uma organização extra-oficial criada por policiais no Rio de Janeiro em 1965 e que atuou principalmente nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Surgiu quando um grupo de policiais decidiu vingar a morte do detetive Milton Le Cocq, ex-integrante da guarda pessoal de Getúlio Vargas. Cara de Cavalo, o bandido que matou Le Cocq, foi alvejado com mais de 100 tiros e seu corpo coberto com o cartaz de uma caveira. A organização chegou a se expandir e atrair seguidores em outros estados, tendo 7 mil afiliados e admiradores. No Espírito Santo, a organização criou raízes profundas. Foi oficialmente fundada em 24 de outubro de 1984 e sua sede capixaba era em Vitória. Na época foi registrada como uma entidade sem fins lucrativos, pautada para “aperfeiçoar a moral e servir à coletividade”. Entre a sua criação e até o início de 2002, a Scu-

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derie chegou a ser formada por mais de mil associados, entre jornalistas, policiais civis, militares, advogados, delegados de Polícia, magistrados, coronéis, políticos, médicos, engenheiros, bicheiros, dentre outros. “Era status ser da Lecoq. Eles se chamavam lecoqueanos”, relembra Humberto Júnior. A Scuderie teve sua extinção confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio/ES) no final de 2005, onde foi considerada uma entidade paramilitar. Para a Justiça, abrigou e protegeu, por vários anos, pessoas acusadas de pistolagem, tráfico de drogas e roubos a bancos. A Procuradoria Regional da República apontou que a entidade teria sido responsável por pelo menos 30 assassinatos de políticos capixabas cometidos em 18 anos e quase 1.500 homicídios anuais que transformavam o Espírito Santo no segundo Estado mais violento do Brasil entre os anos 1980 e 2000. Na época foi apontada como o braço armado do crime organizado capixaba. Mas o Ministério Público Federal considerou que grande parte dos membros não tinha ligações com o crime, não sendo, portanto, denunciados. A extinção da Le Cocq proibiu também a utilização dos símbolos da entidade em bonés, camisas, chaveiros, adesivos e outros objetos. A Le Cocq já foi considerada um Esquadrão da Morte. Atualmente reconfigurada, promove obras-sociais. Em 2015, matéria de “O Globo” carioca, registrou a volta à ativa da Scuderie. Nomeada como “Associação Filantrópica Scuderie Detetive Le Cocq”, o grupo foi visto entregan-

do panfletos incentivando pessoas a recorrerem ao disque-denúncia para combater assaltos a ciclistas. A associação é formada por policiais aposentados e pessoas de outras áreas. Além disso, nas redes sociais, é fácil encontrar grupos que se denominam parte da nova era da Le cocq com os mesmos símbolos, onde integrantes falam com seus “irmãos” acerca de reintegração, novas sedes e solicitações de entrada. Também reforçam que a Scuderie não é o que foi contado, distanciando-se do estigma de Esquadrão da Morte.

Os 1ºS Há divergência sobre quais foram as primeiras organizações criminosas no Brasil. Alguns juristas apontam o Cangaço, tendo como maior representante Lampião. Dizem que o grupo era hierarquizado, permanente, praticava extorsões, ameaças, sequestros e mantinham relações com os “coiteiros” - chefes políticos que concediam proteção e refúgio. Outros dizem que foi no século XX, com a criação do jogo do bicho pelo Barão de Drumond. A corrente mais aceita é a de que surgiu entre a década de 70 e 80, na ditadura militar, fruto da experiência que os presos comuns adquiriram com os presos políticos. É a partir desse contexto e de condições desumanas dos presídios que surgem as mais famosas facções brasileiras: o Comando Vermelho em 1979 e o PCC em 1993.


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