Economia da cultura e indústrias criativas - Temas emergentes e tendências

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Economia da cultura e indústrias criativas ––– Temas emergentes e tendências


O presente volume aborda temas emergentes sobre economia, políticas da cultura e indústrias criativas, com ênfase em dinâmicas de setores nascentes e/ou em consolidação, de inovação intra e extrassetorial, novas possibilidades de financiamento, valor cultural, políticas internacionais, desenvolvimento urbano e propriedade intelectual. Você encontrará uma visão geral sobre assuntos horizontais a diversas indústrias criativas e discussões sobre temas emergentes em indústrias de ponta (como a de games e a editorial). Políticas públicas, impacto, novos modelos, políticas culturais globais e indicadores de bem-estar são palavras-chave deste livro que, junto com os outros dois volumes que completam esta obra, é uma leitura importante e esclarecedora para estudantes, professores, profissionais da arte e da cultura e formuladores de políticas públicas.



LEANDRO VALIATI organizador e editor


Economia da cultura e indústrias criativas



Tomo 3 ––– Temas emergentes e tendências


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Introdução LEANDRO VALIATI

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Capítulo 1 O valor cultural de quem? Representação, poder e indústrias criativas ELEONORA BELFIORE

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Capítulo 2 Distritos criativos de base: regeneração urbana, fábricas industriais recuperadas e produção cultural em Buenos Aires e no Rio de Janeiro CECÍLIA DINARDI

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Capítulo 3 Salvaguardando um momento criativo e cultural: uma discussão sobre o impacto da covid-19 nos setores criativos da África GEORGE GACHARA

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Capítulo 4 Decodificação e recodificação de game jams e espaços independentes de criação de jogos para diversidade e inclusão APHRA KERR


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Capítulo 5 De editoras à autopublicação: efeitos disruptivos na indústria do livro MORTEN HVIID, SOFIA IZQUIERDO SANCHEZ E SABINE JACQUES

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Capítulo 6 Propriedade intelectual nas indústrias criativas: a perspectiva econômica CHRISTIAN HANDKE

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Capítulo 7 O sistema dualista de gestão da diversidade cultural da União Europeia: o conceito de cultura no programa Europa Criativa (2014–19; 2021–27) e na estratégia para as relações culturais internacionais (2016–) MAFALDA DÂMASO E ANDREW MURRAY

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Indústrias criativas e desenvolvimento: história e perspectivas contemporâneas ENTREVISTA DE SIR PETER BAZALGETTE A LEANDRO VALIATI


LEANDRO VALIATI é professor e pesquisador na área de Economia da Cultura e Indústrias Culturais no Brasil e no Reino Unido. Por intermédio de sua posição acadêmica, teve a oportunidade de desempenhar papel importante na construção e execução da política para a economia da cultura e indústrias criativas de todas as gestões do Ministério da Cultura entre 2010 e 2018.


Introdução LEANDRO VALIATI

Na base da inovação e do dinamismo nos setores cultural e criativo, a tecnologia é um fator preponderante. Há uma ligação direta entre o contexto de inovação tecnológica e as esferas de produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Recuperando as raízes históricas, podemos traçar esse arco narrativo na década de 1960, quando a crise do regime fordista de produção em massa estabeleceu mudanças nos padrões de produção e de trabalho na indústria e no setor de serviços. A citada ruptura do modelo fordista emergiu com a queda nos ganhos de produtividade da indústria a partir da metade dos anos 1960 nos países capitalistas desenvolvidos. Tal queda de produtividade, acompanhada pelo alto salário real e pelo crescente custo do capital fixo em relação ao número de assalariados, causou uma diminuição dos lucros das empresas. Assim, a fase crítica desse sistema esteve ligada à perda de eficiência do modo de organização do trabalho vigente, que desencadeou o aparecimento de novos princípios de organização do trabalho e organização social da produção, evidenciando a necessidade de novos marcos regulatórios. Essa crise estrutural levou ao progresso do setor de serviços, demandando uma mão de obra mais especializada. A formação de valor passou a ser ligada também ao trabalho intelectual (científico, artístico, administrativo, entre outros), bem como aos produtos e serviços que são consumidos (como informação, cultura e conhecimento). Dessa forma, a cultura passou a ser não mais um instrumento de reprodução sociocultural, mas de produção do conhecimento e do imaginário enquanto objeto comercializável que possui, no advento das tecnologias de informação e comunicação, um vetor de forte importância.

Introdução

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Os anos 2000 reproduziram potencialmente o movimento da década de 1960 na medida em que a eclosão de mídias sociais, telefonia celular, internet de alto alcance, impressora 3d e inovações em suportes e gadgets (tablets, smartphones) criaram novamente uma mudança estrutural em nossa economia e sociedade. Esse fluxo irrefreável de avanço tecnológico carregou consigo o setor de serviços, tanto pela transformação radical das atividades já existentes quanto pela criação de serviços associados ao novo ecossistema de tecnologias de inovação e comunicação. A transitoriedade e a virtualidade da produção econômica geraram uma diminuição drástica de assimetrias informacionais e custos de transação, por meio de, por exemplo, plataformas de streaming na música (Spotify, Deezer, Apple Music, Bandcamp, entre outros), no audiovisual (Amazon Prime Video, Netflix, Apple tv, Hulu, entre outros) e na virtualização de livros (Kindle, entre outros). Após uma intensa transformação de formatos conhecidos causada pelo choque tecnológico, em suas dimensões exógenas e endógenas, outro choque externo alcançou, de forma surpreendente, a lógica de organização econômica e social: uma pandemia que exigiu isolamento social em distintas intensidades por quase dois anos. Isso antecipou tendências, intensificou mudanças em curso e transformou definitivamente as formas de produzir, distribuir e consumir bens e serviços. O fato de arte e cultura estarem no centro desse vórtex guarda semelhanças com seu papel nos anos 1960, mas vai além, criando valor simbólico, conteúdo para entretenimento, ocupação do tempo livre, e, sobretudo, manutenção do bem-estar e resiliência em termos de saúde mental. As indústrias criativas foram um suporte indispensável para que bens e serviços já conhecidos e novos pudessem ser comercializados e distribuídos, facilitando e, em muitos casos, salvando vidas. Em todo processo de inovação no tecido produtivo de uma sociedade, é de vital importância reconhecer, compreender e registrar tendências e fenômenos que estão acontecendo em diferentes meios e setores das indústrias criativas. Uma das características marcantes que compõem o que se conhece por economia criativa é a heterogeneidade, o que faz com que a inovação, em suas diversas facetas, não se distribua proporcionalmente em todos os setores e atividades dessa indústria. Sistemas de financiamento, elementos de propriedade intelectual, novos modelos de negócios e dinâmicas produtivas sendo impactadas pela tecnologia acontecem de forma muito particular em cada uma das indústrias, como a de livro, música, games, entre outros.

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Leandro Valiati


Dessa forma, este terceiro volume do manual de Economia da cultura e indústrias criativas se propõe a capturar heterogeneidades e entregar uma visão panorâmica sobre alguns temas centrais e tendências setoriais, entre tantas observadas, no que se refere a novas formas de financiamento, cidades e indústrias criativas, setor de games, valor cultural e valor econômico e relações culturais internacionais. Como vimos no segundo tomo, políticas públicas e estratégias privadas são o caminho inevitável para a apropriação do bem-estar e do desenvolvimento trazidos por artes e indústrias criativas. No primeiro capítulo, Eleonora Belfiore (Loughborough University) discute como as relações de poder e a representação nas indústrias criativas determinam como esses valores serão gerados e distribuídos. No segundo capítulo, Cecília Dinardi (University of London) aborda o tema da cidade, traçando uma comparação entre Buenos Aires e Rio de Janeiro, duas metrópoles regionais no que diz respeito ao papel das organizações artísticas independentes e alternativas na regeneração urbana. O artigo toca em temas fundamentais para o contexto contemporâneo: após o isolamento social e a migração de parte do trabalho para fora dos escritórios, é fundamental repensar as cidades. Por sua vez, no capítulo 3, George Gachara registra elementos centrais de seu projeto heva Fund, uma iniciativa premiada de inovação em mecanismos de fomento para empreendimentos culturais africanos. Este tomo se dedica também a abordar análises de setores que marcadamente são mais elásticos ao capturar e incorporar inovação. Nessa esfera, no capítulo 4, Aphra Kerr (Maynooth University) descreve a relação entre indústria de games e diversidade. Na mesma ênfase setorial, no capítulo 5, Morten Hviid (University of East Anglia), Sofia Izquierdo Sanchez (University of Manchester) e Sabine Jacques (uea Law School) analisam a disrupção causada pela digitalização na indústria editorial. No sexto capítulo, Christian Handke (Erasmus University) escreve sobre a perspectiva econômica da propriedade intelectual, trazendo as bases de possibilidades ainda inexploradas de apropriação econômica do setor. Por fim, no sétimo e último capítulo, Mafalda Dâmaso (Erasmus University) e Andrew Murray (Università di Siena) abordam o conceito de cultura na estratégia europeia de desenvolvimento das políticas públicas. Elucidar esses conceitos por um viés aberto e inovador é fundamental para o contexto de revisão de políticas e ações, necessário no pós-pandemia. Este volume se dedica, sobretudo, a estabelecer relações sobre como as ideais inovadoras dimensionam a amplitude do impacto

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econômico das indústrias criativas. E, mais importante, como a inovação tácita se explicita em novos modelos. Para uma exemplificação prática desse fenômeno, temos a oportunidade de fechar este volume com uma entrevista de Sir Peter Bazalgette, ex­-ministro do Arts Council da Inglaterra e ex-diretor da Endemol e da itv, estando no centro de grandes transformações dos meios de planejar, produzir e consumir bens e serviços das indústrias criativas no mundo. Compreender como os grandes movimentos transformativos dos modos de produção se dão no presente é o caminho mais curto para tentar incorporar seus benefícios e evitar seus problemas. Imagino que este volume possa inspirar a construção de novos projetos, semear ideias e contribuir para um debate fundamental sobre como equilibrar crescimento e desenvolvimento econômico. Boa leitura!

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ELEONORA BELFIORE é professora de Comunicação e Estudos de Mídia na Loughborough University, no Reino Unido, e editora da série de livros New Directions in Cultural Policy Research. Publicou extensivamente sobre políticas e planejamento público para a área da cultura e, particularmente, sobre o lugar que as ideias de “impactos sociais” das artes ocuparam nos discursos da política cultural britânica. Ao lado de Oliver Bennett, publicou The Social Impact of the Arts: an Intellectual History (2008) e coeditou, com Anna Upchurch, Twenty-First Century: beyond Utility and Markets (2013). Belfiore foi diretora de estudos da Comissão Warwick sobre o Futuro do Valor Cultural (2013–15) e coautora de seu relatório final, Enriching Britain: Culture, Creativity and Growth (2015). É ainda coinvestigadora do projeto de Comunidades Conectadas do Conselho de Pesquisa em Humanidades (AHRC), “Compreendendo a participação cotidiana – Articulando valores culturais”, sendo líder de pesquisa no programa trienal dos Embaixadores do Fun Palaces, financiado por Paul Hamlyn. Desde 2016, liderou o envolvimento da Loughborough University como associada fundadora no programa “Tate Exchange” com a Tate Modern.


O valor cultural de quem? Representação, poder e indústrias criativas1 ELEONORA BELFIORE

INTRODUÇÃO

Nos últimos vinte anos, a discussão em torno do “valor cultural” tem sido uma característica proeminente nos debates sobre políticas para a indústria criativa e artística, tanto na academia quanto no planejamento público. Uma vertente significativa de trabalho nesta área tem se preocupado com as maneiras pelas quais o “valor econômico” (geralmente sob o disfarce do “impacto econômico” ou da contribuição para a agenda de crescimento econômico) parece ter muitas vezes ofuscado outras formas de valor – cultural, social e estético – no debate político (Belfiore, 2015; Caust, 2003; Crossick; Kaszynska, 2016; Harvey, 2013; Scott, 2014), principalmente em relação às “indústrias criativas” (Banks, 2015, 2017; Lee, 2017; Schlesinger, 2007). Ao longo dos últimos quinze anos, surgiu um interesse renovado em articular o valor não econômico da cultura e defender abordagens mais “holísticas” (Donovan, 2013) e métodos de economia cultural “não reducionistas” (Bakhshi; Freeman; Hitchen, 2013). Os próprios economistas culturais têm estado na vanguarda da resistência à predominância de ideias economicistas de valor nos debates sobre política cultural (Hutter; Throsby, 2008; Throsby, 2010; Bakhshi; Cunningham, 2016), com Bille, Grønholm e Møgelgaard (2016) chegando a qualificar tal raciocínio como “parasitário”. Não obstante esta onda de reflexão crítica, é inquestionável que o discurso político contemporâneo tenha como característica importante o posicionamento do setor cultural como fundamental para a recuperação da Grã-Bretanha pós-crise financeira, bem como da economia criativa como chave para a prosperidade no cenário pós-

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-Brexit (cebr, 2013; Doyle, 2016; Henley, 2016; Hesmondhalgh et al., 2015; Lee 2017; Neelands et al., 2015; Newsinger, 2015). O Departamento de Digital, Cultura, Mídia e Esporte (dcms), por sua vez, há muito vem promovendo um discurso celebrativo centrado na contribuição que os setores que apoia dão à economia britânica. Mais recentemente, encomendou uma Revisão Independente das Indústrias Criativas, liderada pelo presidente da emissora itv, Sir Peter Bazalgette, com o objetivo de estabelecer uma série de recomendações ao governo “para o crescimento contínuo das indústrias criativas do Reino Unido” (2017). O relatório resultante sugere que as indústrias criativas “contribuíram com £87,4 bilhões em Valor Agregado Bruto (vab) em 2015, 5,3% da economia do Reino Unido (comparável aos setores de construção ou informação) e entre 2010 e 2015 cresceram 34% – mais rápido do que qualquer outro setor”. O relatório de revisão também prevê que “[com base] nas tendências atuais, as indústrias criativas podem oferecer cerca de £130 bilhões de vab até 2025 e aproximadamente um milhão de novos empregos poderiam ser criados até 2030” (Bazalgette, 2017, p. 11). Após a publicação, a Secretária de Cultura Karen Bradley comentou que “as indústrias criativas do Reino Unido são uma potência econômica, e o governo está empenhado em remover as barreiras ao seu crescimento” (dcms, 2017, grifos nossos).

VALOR: MUDANDO A PERSPECTIVA

Este artigo pretende contribuir para a crítica da articulação predominante quanto ao valor das artes e artefatos criativos em termos econômicos. Ele faz isso apresentando uma discussão sobre valor cultural concentrada em questões de poder, perspectiva que até agora tem sido amplamente negligenciada ao dissecar o tema, ainda que a interconexão de poder e valor seja há muito reconhecida por teorias da produção social da estética, como aquelas promovidas, entre outras, por Janet Wolff (1981). Esse posicionamento compreende uma abordagem focada no estudo dos mecanismos pelos quais o “valor” é atribuído ou negado a formas e práticas culturais por determinados grupos: Compreender a arte como produzida socialmente envolve necessariamente iluminar algumas das maneiras pelas quais várias

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Eleonora Belfiore


formas, gêneros, estilos etc. recebem um valor atribuídos a eles por certos grupos em contextos específicos. (Wolff, 1981, p. 7)

Este é um ponto de partida útil, porque nos permite concentrar a atenção na natureza relacional dos processos de alocação de valor e validação cultural: o valor cultural não opera nem é gerado em um vácuo social, cultural e político, mas é moldado pelas relações de poder predominantes em qualquer momento, e é um local de disputas por significado, representação e reconhecimento. Isso também significa que essas lutas têm vencedores e perdedores: insights da sociologia do gosto (especialmente os escritos de Bourdieu e outros aprofundando seu trabalho) mostraram como o poder simbólico opera e como grupos sociais distintos desfrutam não apenas de diferentes níveis de acesso a determinadas formas de engajamento artístico e cultural, mas também diferentes acessos ao poder de valorizar e legitimar práticas estéticas e culturais (Bourdieu, 1984; Di Maggio; Mohr, 1985; Swartz, 2013; Van Eijck, 1997; Warde, 2010). O objetivo do artigo, portanto, é mostrar como a retórica celebrativa das indústrias criativas, tão proeminente no discurso oficial da política cultural, é problemática na medida em que efetivamente obscurece – e, portanto, protege do escrutínio – desequilíbrios de poder, distribuição irregular da autoridade e acesso desigual aos meios de representação simbólica e construção de significado. Como resultado disso, os debates sobre política cultural e financiamento do setor concentram-se principalmente em argumentos e raciocínios instrumentais aprovados pelo governo, deixando questões reais e substantivas de valor cultural, acesso e justiça subexploradas e incontestadas. Em última análise, o artigo clama por um esforço coletivo, tanto de acadêmicos quanto de profissionais da cultura e legisladores, para lutar por uma nova forma de compreender o “valor cultural”, mais consciente de que esta é uma arena para lutas de poder e um local de desigualdade. Argumentarei que reconhecer e atuar de acordo com essas distribuições desiguais de valor, voz e poder simbólico (em vez de apenas refletir a respeito) são tarefas importantes da política das indústrias culturais e criativas. Para tanto, o artigo é construído em torno de um estudo de caso: Our Big Real Gypsy Lives, um projeto de artes participativas em Lincolnshire (condado majoritariamente rural na região de East Midlands na Inglaterra) financiado pelo Heritage Lottery Fund (o maior financiador dedicado de projetos de patrimônio voltados

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para a comunidade na Grã-Bretanha) e envolvendo crianças de comunidades ciganas e viajantes (geralmente chamadas de comunidades grt – Gypsy/Roma/Traveller – no discurso político oficial britânico) e suas famílias. Foi concebido e entregue, em 2014, para a instituição de caridade educacional Lincolnshire Traveller Initiative (lti) pela consultoria cultural independente Local Cultural Solutions uk. O objetivo original do estudo era desafiar a “ortodoxia” do discurso celebrativo da economia criativa e seu caráter reprodutivo, e considerar em que medida Our Big Real Gypsy Lives pode oferecer uma base para refletir sobre o uso de projetos com financiamento público para fins de redistribuição do valor cultural. Para tal, o propósito não foi avaliar se esta intervenção baseada no patrimônio foi ou não “bem-sucedida” em cumprir as expectativas do seu financiador. Em vez disso, o objetivo foi entender como as pessoas envolvidas com o projeto, em seus diferentes papéis, o percebiam em relação às questões de “valor cultural” e voz. Por esta razão, as entrevistas qualitativas focaram naqueles com papel central na realização do projeto: mesmo os entrevistados que fazem parte da comunidade grt estiveram envolvidos principalmente como facilitadores, seja executando atividades vinculadas ao projeto em escolas locais, ou, no caso de Gordon Boswell – fundador do Gordon Boswell Romani Museum em Spalding –, ao permitir que seu museu fosse utilizado como inspiração e espaço para atividades com as crianças participantes, e usando seu status e reconhecimento dentro da comunidade para endossar o projeto e facilitar sua realização. Os dados qualitativos levantados revelaram como é difícil entregar um projeto participativo genuinamente focado na comunidade dentro das restrições dos atuais sistemas de financiamento. Uma análise completa da importância deste estudo de caso, quanto ao propósito inicial de avaliar se a “redistribuição de valor cultural”, é uma justificativa viável para desenvolver projetos participativos com verba pública na atual infraestrutura de financiamento ainda está sendo redigida. No entanto, o objetivo aqui é um pouco diferente. Este artigo é o resultado de uma necessidade pessoal de entender e refletir melhor sobre as maneiras pelas quais diferentes conversas sobre valor cultural estavam acontecendo em diversos locais do Reino Unido no auge deste debate. Por conta de um interesse de pesquisa de longa data nessa área, estive envolvida em vários deles – uma experiência que foi enriquecedora, mas também evidenciou as desconexões entre algumas dessas conversas.

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O trabalho de campo discutido nas seguintes seções deste artigo foi realizado em 2014. Naquele momento, o Projeto Valor Cultural do ahrc, de cujo grupo diretor eu era membra, estava em pleno andamento, com uma série de projetos de pesquisa colaborativa em curso em todo o país (incluindo o que está sendo discutido aqui). Também estive na liderança da Comissão Warwick sobre o Futuro do Valor Cultural, um proeminente projeto de engajamento público que reuniu várias partes interessadas e altamente influentes no contexto britânico de artes, cultura, política, educação e negócios para desenvolver novas ideias para o setor cultural e criativo. Isso significava que, durante o verão europeu de 2014, dentro de uma mesma semana eu participaria de importantíssimas reuniões e sessões de revisão de dados com os “grandes e renomados” das artes e cultura do Reino Unido, em alguns dos mais ilustres edifícios em Londres, pertencentes às principais organizações nacionais de artes e agências legisladoras, e também visitaria um prédio industrial isolado quase saindo de Spalding, em Lincolnshire, para chegar ao Gordon Boswell Romani Museum, onde várias das entrevistas foram realizadas. Em ambos os cenários, travei discussões sobre valor cultural (com o rótulo explicitamente usado ou não). Na maioria dos casos, questões de financiamento de artes foram levantadas tanto por figuras seniores das artes em Londres quanto pelos participantes do meu projeto, fossem eles a equipe que o entregou ou Gordon Boswell expressando sua frustração com o que ele via como atitude esnobe das autoridades locais em relação ao seu museu, que sempre se recusaram a apoiar. Ambos os conjuntos de conversas eram, sem dúvida, parte do debate sobre valores culturais que estava prosperando na época, mas apenas um dos dois era visível, influente e “legítimo”, com ambições de moldar o futuro da política nacional. O diferencial de capital cultural, social e econômico entre as pessoas envolvidas nesses debates paralelos é a principal explicação para sua (in)visibilidade. Neste artigo, então, o estudo de caso oferece uma demonstração poderosa do fato de que nem todos os atores envolvidos nas lutas por valor e autoridade culturais têm poder e voz iguais. No entanto, esse fato e os problemas de justiça social e igualdade que ele causa correm o risco de serem ofuscados em nossos discursos de política cultural contemporânea, mais empenhados em defender o financiamento contínuo do setor do que em explorar a verdadeira política de valor cultural (Belfiore, 2012).

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VALOR CULTURAL E A POLÍTICA DE REPRESENTAÇÃO

O projeto foi o principal estudo de caso para uma iniciativa financiada pelo ahrc, entregue com o apoio de parceiros que não são do he David Lambert e Leanne Taylor, da Cultural Solutions uk. A parceria com a Cultural Solutions uk permitiu um acesso precioso ao material documental relacionado ao projeto, como seus resultados criativos e educativos, documentação de solicitações e relatórios e informação contextual. Mais importante, facilitou acesso à sua equipe criativa, à principal equipe da lti, a Gordon Boswell (que, em 1995, fundou o Gordon Boswell Romani Museum em Spalding, e faleceu em 2016) e a dois outros participantes adultos, ambos da comunidade cigana Romani de Gainsborough, que foram todos entrevistados junto com a equipe de soluções culturais. No total, doze pessoas foram entrevistadas, e Gordon Boswell foi entrevistado duas vezes. O diretor do Heritage Lottery Fund, que cuidou da concessão do financiamento para o projeto, foi contatado várias vezes, mas recusou consistentemente ser entrevistado. Idealmente, eu gostaria de ter entrevistado mais participantes da comunidade: os jovens envolvidos nas atividades facilitadas pelos artistas do projeto. No entanto, quando o trabalho de entrevista começou, todas as famílias mais engajadas haviam se mudado para outros locais sem deixar informações para contato. Todos os participantes assinaram um termo de consentimento explicando que, devido à natureza da pesquisa, com seu foco na equipe que desenvolve o projeto e alguns dos principais participantes da comunidade, mesmo que houvesse tentativas de manter as declarações não identificadas sempre que possível, o anonimato não poderia ser garantido (e certamente não para Gordon Boswell, cujas entrevistas se concentraram explicitamente em sua experiência de fundar e administrar seu museu). As entrevistas semiestruturadas foram baseadas em um roteiro central de doze perguntas feitas a todos os entrevistados envolvidos na entrega do projeto. Isso permitiu que versões ligeiramente modificadas das perguntas, ou mesmo questões adicionais, fossem usadas onde considerado importante para capturar o papel específico do indivíduo. Os participantes foram entrevistados usando um roteiro modificado que focava na experiência pessoal de cada um. As perguntas principais iam de uma introdução geral à sua prática artística ou profissional, como eles se envolveram no projeto, suas opiniões sobre o que funcionou ou não e sua percepção quanto à resposta

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ao projeto por parte das comunidades em que estavam trabalhando, bem como as comunidades mais amplas de Lincolnshire. O roteiro das entrevistas não fazia referência explícita ao reality show My Big Fat Gypsy Wedding (doravante mbfgw), embora reconhecesse a representação midiática tendencialmente negativa das comunidades cigana e viajante (a pergunta que fiz foi: “O que você acha que este projeto disse às pessoas sobre essa comunidade que é diferente de como ela é retratada na mídia?”). Mesmo que o nome do projeto faça uma conexão intencional com o mbfgw, eu não esperava que o programa fosse surgir de forma tão proeminente quanto apareceu em todas as entrevistas que realizei, tanto com os envolvidos na entrega do projeto quanto com os participantes. E, no entanto, o programa parecia ter lançado uma sombra opressiva sobre todas as experiências dos entrevistados. A discussão que se segue é meu esforço para dar sentido à evidência inesperada da influência dominante da série mbfgw na experiência dos envolvidos no projeto Our Big Real Gypsy Lives, e a conexão óbvia que eles viam com questões de valor e reconhecimento cultural. Para os fins deste artigo, os roteiros de entrevista e o “livro do projeto” (um memorial com imagens, desenhos e poesias, além de um cd de história produzido pelas crianças participantes e suas famílias) foram analisados por meio da codificação, para evidenciar as formas como a representação da comunidade grt feita em mbfgw moldou não apenas o projeto, mas também o aprendizado da equipe na interação com os membros da comunidade e as suas experiências. Embora o termo “valor cultural” não tenha sido usado com frequência, os dados das entrevistas em particular trouxeram claramente experiências de tensões, desconhecimento e o tipo de disputas sobre significado e representação que estão no centro da política cultural e da reprodução social do valor.

A IDEIA DE VALOR CULTURAL DE QUEM?

Pense no reality show My Big Fat Gypsy Wedding. Indicado ao British Academy Film Awards (bafta), foi transmitido semanalmente no Channel 4 entre 2011 e 2013 e representa, nas palavras de seus produtores, “a série documental de maior audiência do Channel 4 de todos os tempos”. O programa organiza-se em torno de “atos de consumo ligados a ritos sociais de passagem” (Bell, 2015, p. 134), em grande parte casamentos; comunhões, batizados e outras oca-

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siões importantes para a reprodução social da identidade grt (por exemplo, feiras de cavalos, competições de boxe sem luvas etc.) também são apresentados. O programa seguiu jovens noivas das comunidades ciganas e viajantes em todo o Reino Unido, assim como suas famílias, enquanto planejavam seu grande dia e mergulhavam em vestidos extravagantes e vistosos, e festas luxuosas aparentemente exageradas. Os vestidos e bolos de casamento – sempre decorados e feitos sob medida para as noivas – e o gasto supostamente imprudente de dinheiro por parte de uma comunidade que muitos percebem como fora das estruturas econômicas “normais”, na qual o trabalho autônomo é tradicional e o subemprego é frequente, são temas recorrentes no programa. Como Emma Bell (2015, p. 134) observa, “a troca de dinheiro por produtos é tanto o eixo da narrativa do programa quanto suas margens: os custos reais de produtos, serviços, apostas ou salários são aludidos como ‘excessivos’, mas sinalizados como ‘informação restrita’ porque os participantes se recusam a discutir suas fontes de renda diante das câmeras”. Como resultado, o mbfgw constrói a identidade grt como excessivamente materialista e vulgar, como “atividade econômica anticívica e consumo conspícuo de baixo gosto e alto custo” (Bell, 2015, p. 128). Como muitos reality shows, o mbfgw é um caso indiscutível de sucesso nas indústrias criativas: a cifra de 8,4 milhões de espectadores no segundo episódio da primeira temporada fez dele o oitavo programa de maior audiência na história do Channel 4, e ele trouxe as avaliações mais altas da rede desde seu grande sucesso Big Brother, em 2008 (Frost, 2011). Em março de 2012, os números de audiência para o primeiro episódio da segunda temporada alcançaram 9,2 milhões de espectadores. No mesmo ano, a Firecracker, produtora que fez o programa, ganhou o título de “Melhor Venda Internacional” no Broadcast Awards, um prêmio importante do setor. Os juízes disseram que o show “deixou um marco significativo no mercado internacional, com alguns negócios surpreendentes” (Broadcast, 2012). Tais acordos significavam que, em 2012, mbfgw já havia gerado uma receita de vendas de £3,5 milhões em 81 territórios, com vendas lucrativas tanto para a tv aberta quanto para canais a cabo (um feito raro), incluindo um negócio de €300.000 com a Vox na Alemanha. Conforme explicado na relação dos prêmios pela publicação profissional Broadcast, que administra a premiação, não muito depois da transmissão da primeira temporada no Reino Unido, em 2011, “a distribuidora Zodiak Rights e a produtora Firecracker Films ga-

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rantiram um formato e um acordo de programa finalizado com a tlc, uma emissora de tv a cabo dos eua no valor de US$4 milhões (£2,6 milhões)”. Isso marcou a disseminação global do mbfgw, pois o canal Discovery adquiriu a série para a Europa Ocidental, América Latina e Itália, e a bbc Worldwide África começou a transmiti-lo em seu canal bbc Lifestyle. Além disso, o programa também gerou uma série de spin-offs, como Thelma Gypsy Girls (2012), com foco na costureira especialista em vestidos de noiva, Thelma Madine, que fez a maioria dos vestidos apresentados nos programas originais. Este também foi transmitido no Channel 4, enquanto nos Estados Unidos uma nova série, Gypsy Girls, foi transmitida pela primeira vez na rede tlc em 2013, com quatro temporadas até julho de 2015. Muitos programas semelhantes surgiram nos últimos dez anos (vários produzidos pela Firecracker Films), tanto que agora podemos falar de um subgênero distinto de reality tv/documentário: programas factuais centrados na comunidade cigana. Este crescimento exponencial de reality shows com temática cigana é especialmente notável se considerarmos que mbfgw começou como um programa único transmitido em 2010, que só foi transformado em série por ter uma audiência excepcional (Jensen; Ringrose, 2014). O valor econômico dessa escala de produções de tv altamente bem-sucedidas e lucrativas é óbvio, e ninguém pode negar a contribuição que a Firecracker Films – com receitas de £8,9 milhões a £13,4 milhões, ano a ano, em 2012 (Dams, 2012) – provavelmente levaram aos impressionantes dados econômicos que o dcms apresenta regularmente em seu site. De fato, em estudo de 2012 baseado em dados financeiros do setor, Beverly Skeggs e Helen Wood mostraram que, mesmo em meio a uma grave recessão econômica, os reality shows geraram lucros notáveis para a indústria televisiva britânica, fazendo com que os diretores de produtoras ganhassem milhões apenas em bônus, enquanto os protagonistas dos programas em questão são, em grande parte, da classe trabalhadora e geralmente não são pagos por estes serviços lucrativos.

ALÉM DO VALOR ECONÔMICO?

O nicho dos realities pode ser explorador, mas certamente é muito lucrativo. É um ramo próspero do ecossistema cultural e criativo britânico e, portanto, fator importante na geração dos muito alar-

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deados £87,4 bilhões que o setor alegadamente injeta na economia nacional. Assim, o mbfgw é inquestionavelmente um exemplo brilhante de produto cultural que gera valor substancial para as indústrias criativas, o que permite inclusive criar hipóteses de um benefício mais amplo para a nação como um todo. Além desses benefícios, a popularidade duradoura do programa (que, como vimos, adquiriu dimensão internacional, ou até global) indica até onde o mbfgw também ofereceu, ao longo de sua existência, uma série de benefícios não econômicos para seus espectadores: sejam eles expressos em diversão e prazer (embora à custa de outros), bem-estar ou relaxamento, parece evidente que a experiência oferecida tem sido apreciada por milhões de telespectadores na Grã-Bretanha e no mundo inteiro. Além disso, em meio às críticas e controvérsias geradas pelos programas, seus produtores, assim como o Channel 4, têm argumentado insistentemente pelo que postulam como o mais requintado valor cultural da série. Em uma seção intitulada “Diverse Voices”, o relatório da emissora sobre os resultados financeiros de 2011 declara que o Channel 4 deu aos espectadores uma visão sem precedentes das comunidades marginalizadas […]. Também queríamos dar voz a outras comunidades negligenciadas que enfrentam discriminação – aquelas com desfigurações faciais, a comunidade cigana e de viajantes e pessoas transgênero. […] 79% dos entrevistados em outra pesquisa disseram que aprenderam algo novo sobre a comunidade de viajantes do Big Fat Gypsy Weddings. (Channel 4, 2011, p. 48)

No entanto, o relatório não aborda a importante questão do quê os espectadores podem ter aprendido sobre essa comunidade, e se as informações absorvidas eram precisas e verdadeiras ou resultado de uma edição cuidadosa que acabou reforçando estereótipos e oferecendo um retrato das comunidades ciganas e viajantes como um “outro exótico” (Jensen; Ringrose, 2014; Tremlett, 2013; Tyler, 2013). Como veremos em detalhes, o programa recebeu críticas não apenas de acadêmicos, mas também de certos setores da mídia (ver Tremlett, 2014, para uma discussão). Ao mesmo tempo, obteve reconhecimentos públicos de valor para além dos altos números de audiência: foi eleito o “Programa Mais Inovador” na edição de 2010 do Cultural Diversity Awards, um prêmio administrado pelo

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fórum de associação da indústria Cultural Diversity Network,3 e, em 2011, a primeira temporada foi indicada ao bafta na categoria “Votação do Público” no YouTube. Considerando o papel das premiações na legitimação e afirmação de prestígio e valor cultural (English, 2008), podemos apenas concluir que, apesar da contestação, os prêmios recebidos pelo mbfgw podem ser interpretados como marcadores de valorização positiva tanto do público quanto dos profissionais do ramo. Mesmo assim, o mbfgw ainda pode ser visto como humilhação e zombaria públicas semanais de uma das minorias étnicas mais vulneráveis, difamadas e discriminadas que vivem no Reino Unido, retratadas como o mais extremo “outro” entre nós. Como o jornalista de Traveller Times, Jake Bowers, disse com veemência: “Nos tornamos versões de Flintstones caipiras para seu entretenimento televisivo” (citado em Tremlett, 2014, p. 320). Tremlett (2014, p. 324) oferece uma análise detalhada das técnicas de enquadramento e narrativa usadas no mbfgw e chega à conclusão de que “o material é selecionado e reorganizado para que, no final, tenhamos um mundo particular descrito em termos estereotipados e racistas”. Longe de dar voz a comunidades negligenciadas que enfrentam discriminação, como reivindicado pelo Channel 4, o mbfgw desempenhou um papel fundamental para legitimar e divulgar de forma sem precedentes a discriminação, ostracismo e vitimização dos ciganos e comunidades viajantes da Grã-Bretanha. O ostracismo de ciganos e viajantes por meio de sua representação no mbfgw e seus spin-offs como pessoas improdutivas, vulgares e ostensivas, apegadas a valores obsoletos e a um estilo de vida que os marca como estranhos forasteiros, é instrumental para a articulação de sua condição de exclusão e desvantagem como resultantes de fatores culturais (e não um produto de estruturas sociais neoliberais e desigualdade material), deslocando assim a responsabilidade das instituições da sociedade para a própria comunidade cigana e viajante (Tyler, 2013).

O PREÇO DO DESCONHECIMENTO

A reação negativa e o transtorno causados pelo programa entre as comunidades ciganas e viajantes estão bem documentados. O extrato abaixo, de uma entrevista do Guardian com Jane Jackson da Rural Media Company, instituição de caridade que tem uma longa

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experiência de trabalho com comunidades ciganas e viajantes na Inglaterra, exemplifica bem a frustração que eles sentiram com sua representação no mbfgw: Está se passando por documentário, a narração diz que vai revelar a você os segredos da comunidade de viajantes – e simplesmente não é verdade […]. Eles são retratados de modo que pareçam totalmente irresponsáveis, que não devem ser realmente levados a sério como um grupo étnico […]. Acho que o Channel 4 deveria se envergonhar por criticar uma comunidade que já enfrenta tanto preconceito. (Frost, 2011)

Essa exasperação causada pela deturpação sistemática de seus costumes no mbfgw também surgiu nas entrevistas que realizei com membros da comunidade cigana e viajante em Lincolnshire. Uma participante do Our Big Real Gypsy Lives, uma cigana Romani, articulou sua frustração ao relatar o trabalho que fez nas escolas de Lincolnshire como parte do projeto, tentando corrigir as imprecisões do retrato da sua comunidade na mídia: Mas quando aquele Big Fat Gypsy Wedding foi exibido na televisão, foi muito diferente da maneira como vivíamos, muito diferente. Então, como eu respondo se… algumas criancinhas [dizem] “ah sim, Big Fat, nós assistimos”, aí a gente vira e fala: não é bem assim que vivemos.

Isso corrobora ostensivamente a conclusão a que Bev Skeggs e Helen Wood (2012, p. 7) chegaram em seu extenso estudo da política de gênero e classe inerente ao reality: “paradoxalmente, o reality show encontrou uma fórmula para extrair lucro das pessoas com o menor valor pessoal” (no contexto de uma ordem capitalista e neoliberal). Até o Daily Mail, um dos tabloides mais populares (e de direita) do país, publicou duras críticas ao programa, quando seu então crítico de cinema, Ian Hyland (2012), comentou: Somos convidados a olhar para o suposto show de horrores com admiração, apesar do fato de que não é realmente tão admirável. E somos incentivados a julgar e rir dos participantes. Mostram closes de seus corpos gorduchos transbordando das roupas minúsculas.

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Annabel Tremlett (2014, p. 324) conclui sua discussão ponderada sobre o retrato da comunidade cigana e viajante no mbfgw e programas afiliados sugerindo que tal modelo de representação “é facilmente reconhecível como uma combinação de antigos estereótipos ciganos com estereótipos racistas mais amplos, o que poderia ser chamado de [seguindo Stuart Hall] um ‘regime racializado de representação’”. O que estamos testemunhando aqui, de fato, não é apenas a representação estereotipada de um grupo étnico e a desinformação resultante, mas, sem dúvida, sua estigmatização, que, como Tyler (2013, p. 8) destaca, “funciona como uma forma de governança que legitima a reprodução e o enraizamento das desigualdades e injustiças”.

REPRESENTAÇÃO E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

Com base na análise, até agora, pode-se argumentar que a maneira conscientemente racista e humilhante como as comunidades ciganas e viajantes são retratadas no mbfgw, por meio dos enquadramentos, edição e manipulação narrativa, equivale ao que Pierre Bourdieu chamou de “violência simbólica”. Trata-se, em suas palavras, de “uma violência suave, imperceptível e invisível mesmo para suas vítimas, exercida em grande parte pelos canais puramente simbólicos de comunicação e cognição (mais precisamente, desconhecimento), reconhecimento ou mesmo sentimento” (citado em Swartz, 2013, pp. 83–84). Como sugere Charles Taylor (Taylor, 1994, p. 25), uma das figuras fundadoras dos debates acadêmicos sobre a política identitária e “a luta pelo reconhecimento”, os efeitos desse tipo de desconhecimento são graves e podem afetar o senso de identidade da vítima: A tese é que nossa identidade é parcialmente moldada pelo reconhecimento ou sua ausência, muitas vezes pelo desconhecimento dos outros, e, assim, um indivíduo ou grupo de indivíduos pode sofrer um dano real, uma distorção real, quando as pessoas ou a sociedade ao seu redor refletem para eles uma imagem de si próprios que é confinante, humilhante ou desprezível. O não reconhecimento ou o desconhecimento podem causar danos, podem ser uma forma de opressão, aprisionando alguém em um modo de ser falso, distorcido e diminuído.

A citação a seguir é do livro do projeto Our Big Real Gypsy Lives, que inclui extratos das histórias orais coletadas como parte das ativida-

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des participativas, e é reveladora nesse sentido. Linda, uma das adultas envolvidas no projeto, como parte de uma peça que relembra seu tempo na escola, comentou: Tenho orgulho de ser cigana? Sim e não. Você percebe pelas atitudes das pessoas quando fala a respeito, às vezes você se sente constrangido e não quer que os outros saibam. Às vezes, você guarda para si – e pouco me importa o que digam – não é que você não se orgulhe, só não sabe qual será a reação das pessoas. (p. 23)

O desconhecimento e a estigmatização têm, de fato, consequências prejudiciais muito reais para suas vítimas, incluindo a possibilidade de danos físicos e psicológicos. Este trecho de uma carta aberta ao Channel 4, escrita em 2012 por Filip Borev,6 um jovem blogueiro proeminente da cultura cigana, Romani, expõe de forma convincente a realidade do desconhecimento vivido: Prezado Channel 4, Estou escrevendo para vocês com a esperança de que parem de arruinar minha vida. […] Os mitos que vocês têm espalhado não ajudam em nada. De fato, fui submetido a ataques físicos durante a última temporada de seu “documentário”, o que acabou levando à minha expulsão da escola (longa história), enquanto minha prima de doze anos foi espancada no caminho da escola para casa por uma gangue de meninas que a chamavam de prostituta. […] Sofremos discriminação diariamente e nossos direitos humanos foram historicamente violados, mas vocês consideram aceitável transmitir um “documentário” enganoso e feito não para aumentar a conscientização sobre nossa situação, mas para entretenimento. Não somos uma piada, somos seres humanos e sua obra de ficção só está reforçando estereótipos e ignorância.

Mais formalmente, o dano do desconhecimento causado pelo mbfgw foi documentado na submissão apresentada pelo Irish Traveller Movement of Britain (itmb) em 2012 ao inquérito Leveson sobre a cultura, práticas e ética da imprensa britânica. Aqui, o itmb reuniu evidências convincentes das maneiras pelas quais o retrato da comunidade grt no mbfgw afetou sua cobertura na imprensa e normalizou uma linguagem negativa. Por exemplo, Brian Foster,

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Presidente do Conselho Consultivo para a Educação dos Romani e outros Viajantes, conforme descrito no relatório, observa que: “Big fat gypsy” [cigano grande e gordo], junto com o termo pejorativo “pikey”, tornaram-se formas de tratamento aceitáveis em algumas escolas, e meninas foram assediadas sexualmente por meninos emulando a prática duvidosa de “agarrar” [segurando-as com força e exigindo um beijo], sensacionalizada pelo programa. Os tabloides acompanham o programa assiduamente buscando capitalizar em torno do retrato que é feito dessas comunidades. (itmb, p. 15)

O dano do desconhecimento, no entanto, não se manifesta apenas no estigma e suas implicações concomitantes em relação à autopercepção e status social; em vez disso, tem repercussões muito reais em todos os aspectos da vida, incluindo o econômico. Isso ficou muito claro na segunda entrevista com Gordon Boswell, que falou abertamente sobre o impacto negativo do mbfgw em seu negócio de aluguel de carruagens de casamento: Presto serviços em casamentos com os cavalos, e estes últimos três anos foram muito, muito fracos. Acredito que agora eles sabem, quando eu apareço, que sou um cigano fazendo o casamento deles, e acho que para alguns não faz diferença, algumas pessoas adoram, mas outras têm esse sentimento, o estigma, “ah, não queremos que um cigano faça nosso casamento”.

Esse tipo de violência simbólica e consequências nefastas da veiculação do mbfgw seriam suficientes para justificar uma reflexão cuidadosa sobre as responsabilidades que a mídia e as indústrias culturais têm ao retratar minorias étnicas. No entanto, eu argumentaria que o desconhecimento, estereotipagem e estigmatização das comunidades ciganas e Romani na televisão nacional, que equivalem à sua construção como “abjetos sociais” (Tyler, 2013), é especialmente pungente e problemático. Isso ocorre porque a comunidade cigana e Romani não enfrenta apenas os desafios comuns a todas as minorias que lutam contra as massas por voz e reconhecimento. As comunidades Rom, ciganas e Romani estão entre os grupos mais discriminados na Grã-Bretanha e em toda a Europa, e enfrentam os desafios mais difíceis em relação à pobreza e dificuldades de acesso aos serviços de educação, saúde e segurança social (Celmyn et al., 2009).

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É importante enfatizar que o motivo pelo qual a representação dos ciganos e viajantes no mbfgw seja tão problemática é que esta ocorre em meio a um pano de fundo de representação, na mídia e na sociedade de forma mais ampla, que também é altamente negativa, discriminatória e muitas vezes descarada na difamação e desprezo que derrama sobre esta comunidade (Richardson, 2006; Tyler, 2013). Em 2003, a instituição beneficente de diversidade Stonewall contratou uma pesquisa da ipsos mori que mostrou que os ciganos e viajantes são um dos grupos mais depreciados da sociedade britânica: mais de um terço dos adultos britânicos entrevistados não teve escrúpulos em admitir abertamente ter preconceito contra eles (Richardson; Ryder, 2012, p. 4). Uma nova pesquisa realizada pelo YouGov em 2017, encomendada pelo The Traveller Movement (uma instituição beneficente de desenvolvimento comunitário) para investigar os níveis atuais de preconceito sugere que, se houve mudança quanto à discriminação enfrentada pela comunidade, foi para pior: a título de exemplo, 13% dos britânicos entrevistados adultos “acreditam que pubs e restaurantes devem recusar a entrada de um cigano/viajante porque ele é um cigano/viajante” (YouGov, 2017, p. 6), e 42% afirmaram que “não gostariam se um parente próximo tivesse um relacionamento de longo prazo ou casasse com um cigano/viajante” (p. 4). Essas porcentagens foram significativamente mais elevadas do que para outros grupos minoritários ou excluídos (como refugiados/requerentes de asilo e afro-caribenhos). Os efeitos de retratos consistentemente depreciativos na mídia são articulados de forma pungente pelo cantor folk irlandês e viajante Thomas Carthy, ecoando a definição de desconhecimento de Charles Taylor que foi mencionada anteriormente: A imprensa está cheia de estereótipos sobre quem somos – como o My Big Fat Gypsy Wedding. E os estereótipos são, em grande parte, negativos. […] Têm um efeito devastador sobre os povos viajantes. Corrói sua autoconfiança, autoimagem e autoestima e causa problemas de saúde em sua mente e em seu corpo. Quando vejo as manchetes, parece um golpe físico. Parece que somos empurrados para trás quando tentamos dar um passo à frente. (itmb, 2012, p. 16)

No caso dos ciganos e viajantes, o “dano do desconhecimento” e o “consenso de aversão” alimentados pela mídia (Tyler, 2013, p. 142) precisam ser observados no contexto da má distribuição de recursos

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e serviços que esta comunidade vem sofrendo há muito tempo, em conjunto com séculos de discriminação e (até muito recentemente) perseguição, que foram bem documentados (Kenrick; Clark 1999; Powell, 2008; Richardson, 2006; Richardson; Ryder, 2012; Tyler, 2013). Os tribunais britânicos estabeleceram que os ciganos, os ciganos escoceses e os viajantes irlandeses são grupos étnicos distintos e reconhecidos para efeitos da Lei de Relações Raciais de 1976 (Richardson; Ryder 2012, p. 5). O seu estado jurídico reflete, assim, sua história e herança linguística e cultural. De fato, eles são um grupo culturalmente rico: o problema é que esse patrimônio e riqueza cultural não são valorizados na sociedade contemporânea (Acton, 1974; 1997). A antropóloga Judith Okely conduziu uma extensa e influente pesquisa sobre a origem, cultura e as “deturpações modernas” dos ciganos (Okely, 1983, pp. 28–29): sua suposta preferência pelo isolamento, imagens fixas de suas vidas em contextos rurais, em caravanas puxadas por cavalos, e formas de ganhar a vida com base no que Gmelch (1986, p. 307) explica como “flexibilidade organizacional” de trabalhadores autônomos, mas que muitas vezes é vista como suspeita e obscura. Jane Helleiner (1998, 2000) fez um trabalho igualmente germinal documentando o sentimento antiviajante na Irlanda durante a guerra e o período pós-guerra, seu recrudescimento na década de 1960 e sua encarnação atual. Essa longa história de hostilidade torna mais difícil para a comunidade se envolver plenamente na vida cultural do país, de cujas instituições ela é majoritariamente excluída, ou, no mínimo, sub-representada. Quando eles estão “presentes” na cultura britânica de massa, é em grande parte de maneiras altamente intermediadas, exóticas, editadas e coreografadas que, no lugar de combatê-las, promovem e reproduzem a deturpação e o desconhecimento dos ciganos e viajantes (Tremlett, 2013, 2014). Essa exclusão, inevitavelmente, se reflete em baixa expectativa de vida, taxas mais altas de mortalidade infantil, taxas baixas de participação e realização educacional e índices crescentes de desemprego e dependência de previdência social nessas comunidades (Comissão para a Igualdade Racial 2006, p. 13). E, ainda, apesar de pontuarem mal de acordo com a maioria dos indicadores sociais e de saúde, é importante ressaltar que as comunidades ciganas e viajantes tendem a não serem representadas como pertencentes à classificação dos “pobres merecedores” (Bhopal; Myers 2008, p. 158).

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A pesquisa empírica, realizada para este projeto, corrobora o impacto negativo do mbfgw na comunidade cigana e viajante: todos os entrevistados comentaram como o programa era inevitável, tanto para os profissionais criativos que entregavam o projeto de artes participativas quanto para a própria comunidade ao lidar com pessoas de fora dela. Quando questionada sobre o que havia aprendido com a experiência de estar envolvida em Our Big Real Big Gypsy Lives, a cineasta comunitária da equipe criativa respondeu: Bem, eu aprendi muito sobre a comunidade cigana, e que a confiança foi absolutamente destruída entre eles e a comunidade externa, ou qualquer que seja a palavra correta. Aprendi que isso foi retratado e destruído milhões de vezes, o que eu não sabia, acho que não sabia antes.

Os consultores da Cultural Solutions uk também relataram tensões crescentes entre grupos dentro das comunidades cigana e viajante, por causa do ressentimento amplamente sentido contra os viajantes irlandeses, que aparecem mais proeminentemente no programa, e cujas “travessuras” diante das câmeras foram percebidas como prejudiciais para a reputação de toda a população viajante. Por exemplo, Gordon Boswell comentou: Você tem o Big Gypsy Wedding, eles são irlandeses, são um tipo de cigano, mas não posso chamá-los de ciganos ou Romani de verdade; eles são irlandeses e é [nisso] que estamos prestando atenção, mas é muito difícil fazer tudo isso para o público. Eu tento o meu melhor, quando falo com um grupo [de visitantes no museu], tento meu melhor […] de um modo que, quando saírem daqui, eles vão apertar minha mão e dizer que foram as melhores duas horas que tiveram em anos, e é um sentimento bom, você pensa que fez algo, que conseguiu transmitir algo. David Lambert, proprietário da Cultural Solutions uk e gestor do projeto Our Big Real Gypsy Lives, comentou: Em Lincolnshire também, falaremos sobre isso em um minuto, ahh… assim que a câmera saiu, houve suspeita. E sempre havia essas conversas em torno do Channel 4, sabe, e isso gerou muita divisão. Porque, ah, como mencionei nos primeiros

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dias com o Arts Award, estávamos trabalhando com ciganos Romani e viajantes irlandeses, e o Channel 4 predominantemente com viajantes irlandeses, portanto, deu uma oportunidade para os ciganos Romani dizerem que “não somos nós, são eles”. Então, o quanto isso é divisivo? […] Esse era o tipo de conversa que tínhamos, os artistas tinham com as crianças e jovens e, até certo ponto, seus pais, em torno do Channel 4. Então quando **** [um membro da equipe criativa], eu acho que foi ****, ela vai confirmar, ahh… um dia estava conversando sobre escrita e um tipo de expressão criativa, eles estavam falando que estavam meio felizes e sinceros, você sabe como é. E aí simplesmente saiu, você sabe que esse projeto deveria se chamar Our Big Gypsy Lives como uma espécie de afronta, como um desafio ao documentário do Channel 4.

Gordon Boswell foi inflexível ao declarar que achava o mbfgw um assunto tão perturbador que fez o possível para evitá-lo, embora os visitantes no seu museu muitas vezes não facilitassem isso para ele: Foi horrível. […] Ahh, eles têm… têm sido um… têm estado na boca de todo mundo, e eu digo às pessoas – isso as faz rir –, a um grupo de turistas chegando, “nunca me faça uma pergunta sobre os Big Fat Gypsy Weddings, não quero saber”. […] Digo isso para começar e faz eles rirem… então isso os mantém… bem, se alguém acaba mencionando, digo que já avisei… isso me mantém de fora dessa questão.

AVALIANDO O VALOR DO MBFGW

Então, o que devemos fazer com o mbfgw? É um exemplo bem-sucedido das maneiras pelas quais indústrias criativas podem agregar tanto valor econômico quanto cultural para a economia do Reino Unido e entretenimento de sua população? Ou é uma forma exploradora de violência simbólica e estigmatização contra um dos grupos étnicos mais desfavorecidos e abertamente discriminados na Grã-Bretanha? A única resposta legítima a esta pergunta é: “depende”; depende de quais valores, interesses e pontos de vista servem de base para esse julgamento. O mbfgw torna-se então um exemplo muito interessante de como um único objeto cultural pode se tornar portador de valor

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positivo tanto quanto negativo, dependendo da perspectiva de qual grupo é adotada para fazer a avaliação. O estudo de caso do mbfgw e das comunidades ciganas e viajantes que vivem em Lincolnshire mostra bem essa dualidade, e coloca em evidência o caráter agonístico das lutas pela autoridade para reivindicar o valor cultural. As palavras de Jackie Boyd, um pastor cigano que teve que enfrentar bullying e assédio depois que o mbfgw foi transmitido, tornam a relatividade do valor cultural evidente. Dirigindo-se à Firecracker Films, ela disse: “O que você fez pode ser uma coisa boa em sua comunidade, e você obviamente ganhou muito dinheiro com isso. Mas trouxe grande vergonha e medo para mim” (citado em Tyler, 2013, p. 147). As palavras de Boyd levam ao cerne da questão do valor cultural: o que importa mais, o valor econômico gerado pelo mbfgw e outros reality shows, ou o impacto social negativo (e, portanto, valor) gerado pelo mbfgw na comunidade cigana e viajante? E mais importante ainda, quem tem a palavra final sobre este assunto? E que papel o Estado deve desempenhar nessa luta por significado, representação e valor – em especial quando o Estado dificilmente é um espectador neutro dessas lutas (simbólicas) de poder? Se essa discussão mostrou alguma coisa, é que o valor cultural não é um jogo de soma zero, de modo que essas dimensões de valor diferentes e até opostas não se anulam. No entanto, alguns grupos sociais têm acesso mais fácil e incontestável a mecanismos de expressão e busca de seus próprios interesses e valores; outros, como os ciganos e os viajantes de todo o mundo, têm de lutar pelo reconhecimento com um controle mais limitado sobre meios influentes de representação simbólica como instituições culturais reconhecidas e indústrias culturais. Ao contrário da retórica predominante da defesa das artes e das indústrias criativas, o rótulo “valor cultural” não se refere a algo facilmente identificável, monolítico ou homogêneo que simplesmente precisa ser adequadamente descrito, capturado, avaliado ou medido. Ele é, de fato, continuamente definido e redefinido, contestado e disputado e, portanto, tem uma clara natureza relacional. Uma atividade ou objeto cultural que é valorizado por um grupo e cujo consumo oferece a esse grupo uma série de benefícios ou impactos socioeconômicos mais amplos desejáveis pode ao mesmo tempo também ser um instrumento de violência simbólica sobre um grupo diferente, e um dos meios pelos quais se dá sua subjugação social, humilhação pública, desempoderamento, marginalização e

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estigmatização. No entanto, o discurso da política cultural muito raramente reconhece a verdadeira natureza conflituosa e agonística das questões de valor cultural e o papel que o poder (ou a falta dele) tem na formação de conversas públicas sobre como as artes e a cultura funcionam na sociedade (Belfiore, 2013).

CONCLUSÃO: CONTRA AS TENDÊNCIAS DESPOLITIZADORAS DA POLÍTICA CULTURAL

Este artigo mostrou que, ao contrário das celebrações simplistas do valor das artes e da cultura que prevalecem nos debates públicos sobre a política da indústria cultural e criativa, o processo de alocação de valor e, consequentemente, de distribuição de recursos, não é neutro, mas antes um local de tensões, lutas pelo poder e cenário de uma complexa política de representação, identidade, gosto e classe. Há claramente vencedores e perdedores na luta pelo valor cultural, mas os discursos políticos do setor parecem ter intenção de concentrar o foco público apenas nos vencedores. Isso abre questões fundamentais de responsabilidade democrática: de quem são as ideias de “valor cultural” que orientam as decisões sobre investimentos e financiamentos em relação aos benefícios públicos? O processo pelo qual a autoridade cultural é exercida nesse processo de tomada de decisão pode ser genuinamente democrático e responsável? Qual a responsabilidade das políticas públicas para aqueles que aparecem como “perdedores” nas lutas pela validação de seu valor cultural? Estas são questões obviamente muito importantes, mas também complexas e politicamente delicadas. Os debates públicos em torno das políticas culturais, no entanto, nem sempre refletem essa complexidade e dificuldade. Isso se deve principalmente à outra maneira – conectada, mas distinta – pela qual o valor se tornou crucial para os debates sobre políticas culturais nos últimos 25 anos: a necessidade cada vez mais premente de o setor “defender” o investimento público. A retórica agradável e celebratória das indústrias criativas como “potência econômica” é resultado direto da primazia da defesa de um discurso favorável à economia criativa (Belfiore, 2012, 2015). Essa discussão da essência inevitavelmente política do valor cultural nos permite esboçar os desafios importantes que ela abre para a pesquisa e a prática da política cultural. O que precisa ser abordado, então, é como desenvolver novas abordagens críticas que:

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• Reconheçam a natureza real, negociada e muitas vezes antagônica do valor cultural; • Foquem na igualdade, justiça social, inclusão, diversidade e acesso justo aos meios de produção cultural, mas indo além de uma celebração superficial da diferença que não consegue se elevar acima de um exercício de desempenho. O objetivo deve ser encontrar formas de empoderar e apoiar comunidades que não usufruem de um arsenal de sólido capital cultural, social e educacional para elaborar as próprias representações de si e articular suas próprias reivindicações de autoridade e valor cultural (como era o objetivo do projeto Our Big Real Gypsy Lives). Isto é crucial para assegurar uma ampla fruição daquilo que a Assembleia Parlamentar do Conselho Europeu chama de “o direito de participar na vida cultural” e vê como “fundamental para o sistema de direitos humanos” (Conselho Europeu, 2012); • Evite o “modelo de déficit” (Miles; Gibson, 2016) que impulsiona grande parte das iniciativas contemporâneas de participação ampliada no Reino Unido, especialmente aquelas direcionadas a grupos inutilmente e paternalmente rotulados como “desengajados”, “de baixa participação”, “desprivilegiados” etc., que igualam autoridade e valor culturais e eleva a produção e consumo de formas tradicionais e “legítimas” de cultura sobre todas as outras. O que este artigo pretendeu mostrar é como questões fundamentais do poder e autoridade cultural se colocam no debate do valor cultural, apesar de sua invisibilidade no discurso oficial público, que é de celebração das artes, seus benefícios reivindicados e contribuição para a riqueza nacional. A análise aqui apresentada apoia o argumento feito, em 2006, por Jim McGuigan de que os Estudos Culturais (da qual se originam os Estudos de Políticas Culturais) perderam seu compromisso original de produzir pesquisas com a ambição de “informar a ação na política cultural”. McGuigan (2006, p. 138) discute outros estudiosos que lamentam o “quietismo” político que aflige muito a análise cultural contemporânea, e conclui que “os Estudos Culturais devem renovar seu compromisso com a crítica no interesse público”. Philo e Miller (2001, p. 75) estão entre os estudiosos que compartilham dessa visão: Há um silêncio ensurdecedor na mídia e nos estudos culturais sobre as consequências da cultura popular e da representação midiática. Falamos tanto no sentido mais comum, das conse-

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quências em relação a crenças públicas, como também, mais fundamentalmente, de consequências em relação à distribuição de poder e recursos, e a reprodução ou transformação de culturas e sociedades.

Este artigo procurou quebrar esse silêncio e contribuir para a renovação do compromisso dos Estudos Culturais com a crítica em prol da justiça social e da equidade. Como Jordan e Weedon (1995, p. 62) nos lembram, “a cultura desempenha um papel central na legitimação das relações sociais de desigualdade e na luta para transformá-las”. Por isso as lutas por valor e autoridade culturais têm vencedores e perdedores. Este artigo mostrou que há uma escolha clara a ser feita para acadêmicos e profissionais das indústrias criativas: de que lado devemos estar?

Nota 1 Artigo publicado em International Journal of Cultural Policy, v. 26, n. 3, 2020, pp. 383–97. Disponível em: doi 10.1080/10286632.2018.1495713.

A pesquisa apresentada neste artigo foi financiada pelo Arts and Humanities Research Council (outorga número AH/L005115/1). [N. do org.]

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O valor cultural de quem? Representação, poder e indústrias criativas

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CECÍLIA DINARDI é conferencista sênior em Política Cultural e diretora de pesquisa na Goldsmiths, University of London (Institute for Creative and Cultural Entrepreneurship). Possui formação em Sociologia Cultural e Urbana (doutorado e mestrado pela London School of Economics and Political Science e bacharelado pela Universidad de Buenos Aires), com expertise em cidades, política cultural, regeneração urbana liderada pela cultura, informalidade e economia criativa. Também é consultora internacional em políticas e praticante criativa, e tem liderado colaborações com artistas, produções de filmes etnográficos e oficinas de engajamento público.


Distritos criativos de base: regeneração urbana, fábricas industriais recuperadas e produção cultural em Buenos Aires e no Rio de Janeiro1 CECÍLIA DINARDI

INTRODUÇÃO

Este texto examina a natureza, o funcionamento e a política dos distritos criativos de base, presentes em fábricas industriais remodeladas. A renovação e a transformação das fábricas em espaços artísticos e culturais têm sido uma das características-chave do urbanismo pós-industrial nas últimas três décadas. São muitos os exemplos em todo o mundo, desde estações ferroviárias e de energia até edifícios de correios e fábricas de chocolate. Essas infraestruturas recuperadas foram ressignificadas como instalações culturais – centros de espetáculos ou de múltiplas artes, galerias, centros culturais, laboratórios de economia criativa, incubadoras e museus. Tais iniciativas, sejam elas lideradas por governos locais ou grupos comunitários, fazem parte de estratégias urbanas mais amplas para revitalizar centros históricos, revalorizar o patrimônio cultural e criar oportunidades de trabalho, assim como recursos para investimentos turísticos e empresariais. Mas será que um edifício industrial pode ser considerado um distrito criativo? A materialidade desses artefatos urbanos fornece uma solução para a natureza frequentemente transitória do urbanismo cultural efêmero? A reforma de antigas fábricas industriais e armazéns para uso cultural e produção criativa tem sido objeto de muita investigação desde as décadas de 1980 e 1990, principalmente por meio do estudo da regeneração urbana e da gentrificação liderada pela cultura (Zukin, 1989; Montgomery, 1995; Evans; Shaw, 2004; Mommaas, 2004; Pratt, 2009) e, mais recentemente, por meio de grupos e distritos industriais criativos (Evans, 2009; Zukin; Braslow, 2011; O’Connor; Gu, 2014). Distritos criativos de base: regeneração urbana, fábricas industriais recuperadas e produção cultural em Buenos Aires e no Rio de Janeiro

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Tais estudos apontaram os problemas que surgem da organização, gestão e sustentabilidade de longo prazo das instalações industriais convertidas, bem como dos usos e abusos políticos que muitas vezes abrem o caminho para o desenvolvimento imobiliário e o deslocamento social. Com base em insights da sociologia urbana e da geografia crítica, o artigo conduz uma análise de estudo de caso de duas fábricas de economia cultural e criativa na América Latina: a fábrica Bhering, no Rio de Janeiro, e a impa La Fábrica Cultural, em Buenos Aires. Composto de três seções, a primeira discute se as fábricas industriais recuperadas podem ser consideradas distritos criativos em relação ao urbanismo cultural efêmero; a segunda examina os dois estudos de caso no contexto do Brasil e da Argentina; e a terceira oferece observações conclusivas. Em geral, o texto contribui com uma perspectiva latino-americana quanto à regeneração urbana liderada pela cultura para o estudo dos distritos criativos. Particularmente, as iniciativas criativas de base da renovação urbana são apresentadas como uma alternativa aos processos de gentrificação e de exclusão, aos quais os distritos criativos e outras formas territoriais de criatividade estão muitas vezes relacionados, em tempos largamente moldados por ações neoliberais impulsionadas por interesses imobiliários e alianças entre as elites urbanas políticas e econômicas.

FÁBRICAS CONVERTIDAS EM DISTRITOS CRIATIVOS?

Os distritos criativos podem ser abordados e questionados em vários níveis: se foram planejados ou desenvolvidos espontaneamente, quais são seus modelos financeiros e de gestão, como o trabalho criativo está organizado (incluindo questões de classe, gênero e etnia) com relação aos usos passados e presentes do espaço e seu impacto urbano e a contextos socioeconômicos e políticos mais amplos. Mas, o que torna um local de produção cultural ou um centro de artes um distrito criativo? Deve-se definir pelas atividades realizadas dentro dele, pelos temas que o compõem ou pelos resultados produzidos? Os distritos são centros de produção essenciais para a realização ou para o funcionamento de coisas ou atividades. Em seu significado original, o termo “hub”2 foi usado pela primeira vez como uma variante inglesa do século xvi para se referir ao “hob”, a versão antiga dos fogões modernos, um dispositivo de aquecimento que, no século xvii, havia se tornado a “parte central de uma roda” (Cresswell, 2010, p. 215), um elemento essencial de uma máquina. Se os distritos

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criativos podem ser relacionados à ideia da cidade como uma máquina, o que os economistas políticos urbanos poderiam chamar de “máquina de crescimento” (Molotch, 1976), podemos esperar encontrar tanto o desenvolvimento urbano e o investimento em e por meio dos distritos criativos/economia criativa como também tensões com moradores locais, que poderiam ser deixados de fora de tais processos urbanos e poderiam se opor a novos usos de espaços ou edifícios. Veremos que ambas as fábricas convertidas, Bhering e impa, são partes constitutivas das economias criativas de suas cidades, fornecendo força de trabalho, bens, serviços e infraestruturas, e funcionam como distritos – sob a forma de conexões e eventos – dentro de circuitos culturais locais específicos. E são também espaços contestados e contestatórios. Como um artista da Bhering protestou, a fábrica não era um “centro cultural” em sua opinião, mas um espaço comercial cada vez mais voltado para o mercado e que atrai um número maior de eventos mainstream. Outra questão importante diz respeito à natureza mutável e à temporalidade do distrito criativo. Do ponto de vista ontológico, esses espaços estão frequentemente “em processo de se tornar algo”, e seu futuro material tende a ser incerto em vista da falta de financiamento frequente ou de apoio político. Tornar-se um distrito criativo pode parecer o resultado de uma operação de branding ou – uma estratégia política igualmente comercializável – para orientar ou atrair financiamento e investimento. Quando é que um local se torna um “distrito”? O tempo importa na definição de distritos criativos? A ascensão do urbanismo efêmero, com seus usos momentâneos e reciclados de edifícios e espaços, nos dá uma sensação da maior escala em que esses processos urbanos operam, nos lembrando de que nada é permanente e a mudança constante é a norma. Não permanência, abertura, adaptação e flexibilidade definem as paisagens efêmeras da nova condição urbana (Mehrotra; Vera; Mayoral, 2016) e parecem ser também características de distritos criativos. Embora a materialidade de grandes fábricas, como Bhering ou impa, enraíze os distritos no espaço fixo e, pode-se dizer, os ancore em uma dimensão temporal em que a história não deve ser esquecida graças à presença de sua arquitetura industrial, as funções, a estética, os usos e os usuários da fábrica mudam inevitavelmente com o tempo; ao fazê-lo, criam uma oportunidade de se envolver com seu passado de forma criativa ou entregá-lo ao esquecimento. Por exemplo, em “How to Build a Creative Hub”, Strauss (2010) identifica uma série de fatores que supostamente podem levar ao suDistritos criativos de base: regeneração urbana, fábricas industriais recuperadas e produção cultural em Buenos Aires e no Rio de Janeiro

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cesso dos distritos: o ajuste correto, definido como a capacidade de selecionar quem participa; a provisão de boas instalações – internet, espaços para reuniões, cozinha, cafés e restaurantes; a capacidade de criar parcerias entre os membros; o trabalho comunitário com espaços sociais; e os aluguéis acessíveis. Surpreendentemente, esse relato não faz referência à história da área onde os distritos estão localizados, os usos anteriores e atuais do edifício em questão, a população e atividades existentes na área ao redor, e a relação entre os distritos e o contexto político mais amplo de apoio (ou falta dele) para a economia criativa. Em resumo, distritos criativos mostram como um determinado tipo de trabalho se organiza nas sociedades pós-industriais e revelam a espacialidade que a nova economia cria. Se a cidade criativa fosse interpretada como o novo estilo de urbanização gerado pela ordem econômica pós-fordista (Scott, 2006), o que espaços culturais, como Bhering ou impa, revelam sobre o estado da cultura e da economia criativa nas cidades latino-americanas e em outros locais? Além de nos dar pistas sobre a governança do setor cultural e a complexa relação entre Estado e sociedade civil, eles refletem a decadência e o abandono produzidos pelo fracasso das economias manufatureiras (políticas nacionais de apoio) e as mudanças da economia global em direção à pós-industrialização. Ademais, elas nos permitem observar como, no nível das bases, esse vazio é preenchido por experiências espontâneas, de baixo para cima, que recorrem à criatividade para gerar empregos e espaços de trabalho próprios. Alguns casos de distritos criativos planejados, em contraste, podem revelar um tipo de política de fast-food em que receitas rápidas, fáceis e já processadas são buscadas para revitalizar os bairros lançando mão da cultura como uma panaceia, ou seja, uma cura mágica universal para todas as doenças urbanas (Dinardi, 2015). No contexto latino-americano, o campo institucional da economia criativa está se desenvolvendo rapidamente. Os creative hubs têm sido entendidos como “polos creativos” (em espanhol) ou “distritos criativos” (em português) e, na última década, figuraram no centro das iniciativas de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico local, por meio de uma concentração de atividades criativas, incentivos fiscais e treinamento direcionado, sobretudo em áreas urbanas carentes. Ao mesmo tempo, os distritos criativos de base existem há muito tempo, sem utilizar o rótulo de “distrito criativo”, como centros culturais autogeridos ou geridos pela comunidade, com aprendizagem colaborativa, redes informais e espaços compartilhados para a produção cultural. Apesar da importância central da economia criativa para a região, sua contribuição ao emprego e às

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economias nacionais permanece, em grande medida, invisível para as medidas oficiais e para o público em geral (Buitrago; Duque, 2013). No caso do Brasil, os distritos criativos podem ser interpretados dentro da chamada “empresarialização” da sociedade, na qual os discursos políticos e os investimentos públicos em vários níveis governamentais têm elogiado, desde os anos 2000, o urbanismo de base tecnológica como catalisador do desenvolvimento econômico local e da regeneração urbana por meio de abordagens neoliberais e neodesenvolvimentistas (Rossi; Di Bella, 2017). O Rio de Janeiro, em particular, foi pioneiro na produção de dados sobre o setor criativo, publicando documentos de mapeamento da indústria criativa em 2008 (pela Firjan, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) e lançando novos órgãos governamentais especializados, como a agência Incubadora Rio Criativo. A internacionalização do Rio com a realização de megaeventos (Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016) criou a narrativa de uma cidade de eventos, que a tornou a principal beneficiária da iniciativa pública brasileira para a formação de empresas criativas, apoiada por uma série de atores, instituições e interesses, incluindo bancos, empresas, universidades, meios de comunicação e ongs (Rossi; Di Bella, 2017). O atual colapso político do Brasil, visto na polêmica destituição da presidente democraticamente eleita Dilma Rousseff pelos membros do Congresso,3 e os recentes escândalos de corrupção política e de detenções de funcionários públicos criam um contexto de profunda incerteza, instabilidade social e ansiedade sobre o futuro, particularmente à luz dos altos níveis de desemprego no Rio de Janeiro, privação social, níveis crescentes de violência, cortes de financiamento público e o controle militar da cidade, o que inevitavelmente interrompe e complica as perspectivas de qualquer iniciativa ou política cultural. No caso da Argentina, semelhante cenário institucional da indústria criativa vem se desenvolvendo: em 2001, houve a formação do Centro Metropolitano de Design (cmd) em Buenos Aires e, posteriormente, da Direção Geral das Indústrias Criativas, de observatórios e laboratórios oficiais, da Secretaria Nacional de Economia Criativa; além disso, houve o lançamento do Mercado de Indústrias Criativas Argentinas (Mercado de las Industrias Creativas de Argentina, Mica), em funcionamento desde 2011, que adquiriu recentemente uma dimensão regional com o micsur (o mercado das indústrias criativas dos países do Mercosul). A política de distritos criativos em nível de governo municipal, agora sob o escopo do Ministério da Modernização, Inovação e Tecnologia, é a epítome da Distritos criativos de base: regeneração urbana, fábricas industriais recuperadas e produção cultural em Buenos Aires e no Rio de Janeiro

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administração de Mauricio Macri4 para a economia criativa: a promoção e a organização de atividades criativas em núcleos geográficos, por meio da criação de cinco distritos criativos (de audiovisual, tecnológico, artístico, de design e esportivo) nos bairros norte e sul da cidade, como ferramentas-chave de marketing para o desenvolvimento urbano e econômico, em um contexto nacional moldado pela retração do Estado e dos gastos públicos, bem como por uma política tarifária (tarifazo, aumento das tarifas de serviços básicos).

ESTUDOS DE CASO DE DUAS CIDADES LATINO-AMERICANAS

Fábrica Bhering, Rio de Janeiro Originalmente uma fábrica de chocolate e doces, a Bhering se tornou um dos maiores centros de produção artística e de economia criativa do Rio de Janeiro. Localizada no bairro de Santo Cristo, na região portuária da cidade, a fábrica oferece, em seus 20 mil m2 de área de trabalho, mais de setenta artistas e vinte pequenas empresas criativas das mais diversas áreas – desde escultura, artes visuais e fotografia, até videoarte, design, restauração e multimídia. Há também um espaço de galeria, uma editora de livros, um restaurante e um café; um espaço de fábrica – disponível para locação – voltado ao cinema, tv e eventos privados. Construída em 1934, a Bhering empregava mais de mil trabalhadores na fabricação de doces até 2003, quando encerrou as atividades em razão de graves problemas econômicos. O fechamento da fábrica reflete um processo mais amplo de declínio industrial que afetou a cidade durante os anos 1990 e transformou profundamente suas áreas central e portuária, o que gerou tanto a deterioração e o abandono como também o redesenvolvimento e a renovação. Como afirmou Rui Barreto, o proprietário da fábrica, a “história da Bhering é a própria história do desenvolvimento da ocupação do Rio de Janeiro”. A revitalização da área envolveu a reforma de edifícios antigos e a construção de novas estruturas, um incentivo comercial e o desenvolvimento de atividades culturais, espaços e instituições que descentralizaram a concentração da infraestrutura cultural nos bairros do Sul (Vaz; Silveira, 1994, p. 96). Nesse contexto, os proprietários de fábricas (a família Barreto) encontraram no mercado das artes uma solução para o problema do declínio econômico. Eles começaram a deixar espaços fabris para

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artistas que, a partir de 2010, entraram no prédio espontaneamente pelo “boca a boca”. A família Barreto tinha uma grande dívida fiscal com o governo federal, o que levou, em 2011, a um leilão judicial no qual uma empresa imobiliária finalmente comprou o edifício para o governo. Os proprietários da fábrica contestaram o valor da venda, bem como o próprio leilão, já que alegavam estar pagando sua dívida. Os artistas-inquilinos, sem saber do ocorrido, receberam avisos de despejo para deixar a fábrica dentro de trinta dias e, para resistir, organizaram uma campanha online para salvar o que se tornara uma “fábrica de artes”. O juiz que autorizou o leilão judicial foi investigado em vista de várias irregularidades no processo. De maneira surpreendente, em 2012, o governo municipal anunciou a expropriação potencial do edifício, emitindo um decreto oficial que o declarou parte do patrimônio da cidade, tendo em vista seu valor arquitetônico e sua importância para a paisagem urbana. O prefeito do Rio de Janeiro à época, Eduardo Paes (2009–16; reeleito em 2021), em um relato no Twitter, expressou seu apoio aos cinquenta artistas que estavam ocupando a Bhering: O despejo dos vários espaços de arte na antiga fábrica da Bhering na zona portuária não faz nenhum sentido. Vamos agir para impedir esse absurdo. É justamente essa a vocação que queremos que a região cumpra. (Paes, 30 de julho de 2012)

É importante notar que Santo Cristo, adjacente aos bairros Gamboa, Saúde e Caju, na área central do Rio de Janeiro, faz parte da chamada região portuária da cidade, que passou por transformações dramáticas desde 2009 para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. A grande operação urbana do governo municipal, o Porto Maravilha, procurou revitalizar a decadente região portuária do Rio e impulsionar seu desenvolvimento econômico com intervenções de alto impacto no espaço público, no transporte, na infraestrutura urbana, na cultura e no patrimônio e no desenvolvimento imobiliário (principalmente para uso comercial, residencial e institucional). Em termos de desenvolvimento cultural, as iniciativas incluíram o (re)desenvolvimento da infraestrutura cultural (Museu de Arte do Rio e Museu do Amanhã, pelo famoso arquiteto Santiago Calatrava), restauração de edifícios patrimoniais e uma série de eventos, festivais e atividades empreendedoras. No entanto, o Porto Maravilha foi planejado como uma cidade ideal para a criação de espetáculos de marca urbana e para o consumo cultural mediatizado (Jaguaribe, 2011). O projeto de renovaDistritos criativos de base: regeneração urbana, fábricas industriais recuperadas e produção cultural em Buenos Aires e no Rio de Janeiro

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ção urbana, seguindo uma lógica empresarial neoliberal, tem utilizado fundos públicos para, principalmente, beneficiar investidores privados e proprietários de terras (Diniz, 2014).

Figura 1: A região de 5 milhões de m2 do programa Porto Maravilha no Rio de Janeiro – a mancha vermelha mostra a localização da fábrica Bhering

Fonte: site do Porto Maravilha, marcações do autor. Google Earth, 2009. Ver: portomaravilha.com.br/cidadaoecultura.

Além disso, o projeto demonstrou falta de atenção e consideração com os moradores locais, que tentaram resistir a despejos forçados e a novos usos do espaço por meio da mobilização da comunidade, em vista da ausência de mecanismos oficiais adequados para mitigar o processo de gentrificação na área portuária (Carlos, 2010). Longe de ser uma iniciativa subterrânea invisível, a Bhering é hoje um dos principais distritos criativos da cidade e aparece listado no Mapa de Cultura, uma plataforma online do governo estadual, bem como na revista Time Out. É também um dos locais da popular Semana Design Rio e do festival ArtRio. É interessante considerar a relação entre os artistas da Bhering e as autoridades locais. Aconselhados por estes últimos, os artistas criaram uma associação civil e se candidataram com sucesso ao financiamento do governo (Prêmio Porto Maravilha Cultural) para desenvolver um evento único com o objetivo de se aproximar dos moradores locais, oferecendo oficinas,

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atividades e treinamentos gratuitos. Dessa forma, a fábrica funciona indiretamente como intermediário entre os moradores e a área portuária recém-transformada, levantando a questão da cumplicidade involuntária – e criativa – dos artistas nos processos de gentrificação.

IMPA Ciudad Cultural, Buenos Aires A fábrica cultural impa nasceu das profundas crises políticas, econômicas, sociais e institucionais da Argentina em 2001. A implementação de uma série de políticas neoliberais, particularmente durante os anos 1990, criou um contexto de instabilidade econômica com uma dívida externa elevada, a privatização dos principais serviços públicos, cortes nos gastos, longa recessão e crescente exclusão social com altas taxas de desemprego e greves incessantes. Em tal contexto, a desvalorização da moeda nacional em uma economia altamente dolarizada e a restrição governamental de acesso e retirada de poupança pessoal em bancos provocou protestos sociais em todo o país, incluindo protestos e saques em supermercados. Por meio de panelaços, manifestantes foram para as ruas exigir a “expulsão de todos os políticos” e terminaram com a exoneração do ex-presidente Fernando de la Rúa.5 No rescaldo dessas crises, o país testemunhou o retorno dos clubes de câmbio e das moedas alternativas, o surgimento de novos atores políticos, como as organizações de piquetes e assembleias públicas de bairro, e uma explosão do fenômeno das fábricas recuperadas, que incluiu 170 fábricas entre 2001 e 2003 (Micheletto, 2003) e 480 atualmente (Molina, 2016). A impa foi a primeira fábrica a ser assumida e dirigida por trabalhadores. Fundada em 1910, produzia embalagens de alumínio e plástico em três fábricas em Buenos Aires, sendo a do bairro de Almagro a única que persiste até os dias atuais. Na década de 1940, a empresa foi nacionalizada e, a partir de 1961, foi dirigida por uma cooperativa. Durante os anos 1990, o desemprego generalizado, a precarização do trabalho e a interrupção da produção levaram os administradores da fábrica a declarar falência em razão de uma dívida significativa. Entretanto, em 1998, os trabalhadores ocuparam a fábrica, conseguiram renegociar a dívida e começaram a trabalhar novamente, apesar de receberem pouco ou nenhum salário, por intermédio de uma cooperativa autogerida. Além de produzir embalagens de alumínio, um ano depois, a fábrica começou a produzir atividades culturais. Foi criado um centro cultural aberto, impa Ciudad Cultural, e passaram a ser oferecidas Distritos criativos de base: regeneração urbana, fábricas industriais recuperadas e produção cultural em Buenos Aires e no Rio de Janeiro

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oficinas comunitárias em diferentes áreas, desde música popular, teatro, teatro de bonecos e dança, até circo, capoeira, produção de máscaras, tango, entre outros. Há também um teatro, um rádio e um canal de tv, um centro de saúde gratuito, uma faculdade comunitária, uma escola para adultos e um museu. Em 2001, foi declarado “local de interesse cultural” pelo governo municipal, que o descreveu como a experiência mais criativa e valiosa da cidade nascida da recente crise (gcba, 2001). Apesar de, às vezes, ser preciso trabalhar sem luz ou sem eletricidade devido aos cortes de serviço, o centro cultural da fábrica “conseguiu oferecer produções e expressões de grande qualidade artística, demonstrando que é possível produzir fatos culturais valiosos sem grandes orçamentos ou lógicas regidas pelo sucesso comercial” (Bokser, 2010, p. 7). Ele funciona com colaboração, trabalho voluntário, contribuições financeiras dos trabalhadores e a autogestão de equipamentos técnicos. Um total de 180 pessoas trabalham na fábrica, incluindo 49 trabalhadores industriais, cinquenta funcionários do centro cultural (docentes e administrativos), 42 professores universitários, 22 funcionários da rádio e tv comunitária, e outros trabalhadores de cooperativas (Télam, 2015). Bokser (2010) argumenta que é precisamente nos problemas que os trabalhadores culturais e industriais enfrentam diariamente que se fortalecem os laços entre eles e entre eles e o edifício. Isso, observa ele, leva ao apagamento das distinções hierárquicas entre público, trabalhadores e artistas, já que cada um deles compartilha a experiência comum de estar em uma fábrica com recursos muito limitados. De fato, “noções de solidariedade, mutualidade e altruísmo voluntário constituem a principal razão de ser da atividade sem fins lucrativos” (Toepler, 2003, p. 237). Após alguns anos de ocupação, o impa tornou-se alvo de disputas legais com os credores. Em 2005, o centro cultural e a faculdade fecharam; em 2008, os trabalhadores foram expulsos das instalações, e os protestos foram violentamente reprimidos pela polícia. Finalmente, depois de acampar e resistir ao despejo, os trabalhadores conseguiram ocupar a fábrica e reabrir as instalações. Em 2015, o Senado aprovou uma nova lei em favor dos trabalhadores e, atualmente, a cooperativa impa aguarda a expropriação definitiva da fábrica. O sucesso dos trabalhadores da fábrica na autogestão levou ao surgimento do que tem sido chamado de método do impa, “ocupar, resistir e produzir”, inspirando as lutas políticas de outras organizações sociais, esforços cooperativos e métodos de ocupação.

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Atualmente, muitas das fábricas recuperadas na Argentina estão passando por tempos econômicos difíceis em razão da recessão existente, do alto aumento dos serviços públicos e dos processos judiciais em andamento envolvendo ordens de despejo de trabalhadores, junto com a falta de apoio oficial a formas de produção industrial autogerida.

CONCLUSÃO

Este artigo examinou como infraestruturas industriais abandonadas foram apropriadas desde a base e ressignificadas por meio de práticas culturais e artísticas, levando ao surgimento de “distritos criativos de base”. Esta seção final reflete sobre as relações que compõem o funcionamento diário dos distritos e fornece algumas observações conclusivas sobre suas perspectivas futuras. O nascimento dos distritos criativos de base tem se mostrado não planejado e espontâneo. Vimos que a ocupação da fábrica Bhering foi iniciada por uma artista visual que convidou seus amigos para participar; o impa, ao contrário, foi assumido por um grupo de operários da fábrica que trabalhava nas instalações e queria manter seus empregos em um contexto de dura crise econômica. Em termos de conteúdo cultural, vimos que o impa oferece uma gama diversificada de atividades que poderiam ser agrupadas sob a categoria de “cultura popular”, e a Bhering se concentra nas artes e nas indústrias criativas. Enquanto, no impa, uma grande diversidade de atividades culturais e artísticas não comerciais coexistem de maneira incomum em um ambiente fabril com trabalhadores metalúrgicos, na Bhering os artistas pagam aluguel para usar a fábrica como espaço de trabalho. O impa atrai uma mistura de público que reúne estudantes adultos, frequentadores de festas, artistas, militantes, moradores locais e membros de outros movimentos de trabalhadores e organizações sociais. Tanto a Bhering quanto o impa estabeleceram vínculos com organizações externas; fazer parte dos circuitos culturais formais da cidade ajuda as fábricas a ampliarem e diversificarem seu público. As fábricas recuperadas operam sob diferentes modelos de gestão e financiamento. No caso do impa, o financiamento ainda é uma área de preocupação, pois os trabalhadores dependem de doações individuais e administram o centro cultural com os recursos que conseguem encontrar. Eles solicitaram financiamento público sem sucesso, por não atenderem aos requisitos de segurança e licenciamento da prefeitura Distritos criativos de base: regeneração urbana, fábricas industriais recuperadas e produção cultural em Buenos Aires e no Rio de Janeiro

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para locais culturais (Bokser, 2010). Os artistas da Bhering, por outro lado, receberam financiamento municipal para uma iniciativa única destinada a fortalecer a relação com os residentes. Enquanto os artistas da Bhering têm lutado para criar uma associação civil durante os tempos de ameaças de despejo, na impa a resistência cultural e a contestação política moldam o programa cultural em oferta. O potencial das atividades culturais para imaginar sociedades mais justas por meio de práticas colaborativas tem sido invocado pelos trabalhadores culturais do impa. Nesse sentido, uma gestão descentralizada e horizontal das atividades culturais, assim como um planejamento ad hoc e a tomada de decisões informais no impa, permitiram um desenvolvimento cultural baseado na experimentação e na criação de espaços alternativos de socialização, que ampliam as redes de inclusão social (De Felice, 2007). Considerando as perspectivas futuras de distritos criativos, existem diferentes cenários em cada caso. Como o impa foi pioneiro no movimento das fábricas recuperadas na Argentina, acumulou vários anos de experiência na gestão de conflitos, recebendo apoio de outros movimentos sociais e organizações políticas. No entanto, a transferência definitiva da propriedade para os trabalhadores ainda é objeto de processos legais e lutas políticas. A Bhering, em contraste, é uma iniciativa bastante recente e seu desenvolvimento precoce faz lembrar processos tradicionais de regeneração urbana liderados por artistas que contribuem para a gentrificação, exemplificados internacionalmente no ciclo familiar de zonas de artistas em Londres, Berlim, Toronto e Nova York (Evans; Shaw, 2004). A extrema cautela pode impedir que os artistas da Bhering se tornem parte de intervenções lideradas pela gentrificação em uma área muito disputada do Rio de Janeiro. Ao pesquisar os distritos criativos, como nós, enquanto cientistas sociais, podemos lançar luz sobre um fenômeno que está se tornando cada vez mais globalizado, mas que, no processo, não o promove como o modo de organização por excelência dos que trabalham na economia criativa? McRobbie aponta para a necessidade de gerar maior debate sobre questões de método e reflexão radical sobre a condução da pesquisa no campo dos estudos do trabalho criativo, desenvolvendo “um novo tipo de sociologia pós-industrial com a universidade como distrito” e com compartilhamento de conhecimento intersetorial e parcerias com trabalhadores criativos (McRobbie, 2016, p. 936). Talvez um caminho alternativo para avaliar os distritos criativos seja à medida em que os artistas e outros trabalhadores criativos se engajem de maneira efetiva e criativa com

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a população local, seja por meio de colaboração ou oportunidades de treinamento, contribuindo para revitalizar – em vez de gentrificar – as áreas em torno de tais distritos. Temos visto que a criatividade urbana é um processo aberto com um futuro incerto. Vários fatores ameaçam atualmente o desenvolvimento de distritos criativos de base: a saber, falta de recursos, trabalho voluntário não remunerado, ameaças de despejo, questões de segurança, infraestrutura técnica limitada e crescente comercialização. Isso sinaliza uma área em que a ação política cultural poderia ser necessária, fornecendo apoio financeiro e jurídico, bem como uma plataforma para experimentação na concepção de políticas participativas, indo além de um apelo retórico à participação para realmente proporcionar aos artistas mais voz e influência sobre as decisões que afetam suas vidas (Jenkins, 2014) e o trabalho e, ao fazê-lo, contribuir para a sustentabilidade dos distritos criativos.

Notas 1 Artigo publicado originalmente em inglês: Gill, Rosalind et al. Creative Hubs in Question: Place, Space and work in the Creative Economy, Londres: Palgrave Macmillan, 2009. [N. do org.] A autora gostaria de agradecer ao Urban Studies Foundation por financiar, por meio de uma bolsa de pós-doutorado (2013–16) na City, University of London, a pesquisa na qual este trabalho se baseia. 2 O termo hub, em inglês, refere-se a uma parte central para o funcionamento de algum mecanismo, um “eixo”. [N. da trad.]

3 Dilma Rousseff assumiu o cargo de presidenta do Brasil em 1º de janeiro de 2011. Após um processo que se iniciou, oficialmente, em 2 de dezembro de 2015, foi afastada do cargo em 31 de agosto de 2016. [N. da ed.] 4 Maurício Macri ocupou a presidência da Argentina entre 2015 e 2019. [N. da ed.] 5 Fernando de la Rúa assumiu a presidência em 1999 e renunciou ao cargo em dezembro de 2001. [N. da ed.]

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GEORGE GACHARA é especialista em indústrias criativas, gerente de artes e sócio-gerente do HEVA Fund. Lidera o desenvolvimento e a exploração de negócios das indústrias criativas na África Oriental e a criação de valor econômico e cultural de longo prazo nesse dinâmico setor.


Salvaguardando um momento criativo e cultural: uma discussão sobre o impacto da covid-19 nos setores criativos da África1 GEORGE GACHARA Na primeira década do século xxi, a crescente visibilidade das indústrias culturais e criativas nas cidades de toda a África tem sido emblemática do renascimento africano, caracterizado pelo crescimento da renda per capita e familiar, pela transformação agressiva dos espaços urbanos, pela rápida adoção de tecnologias de comunicação digital, pelas remessas crescentes da diáspora e pelo aumento dos investimentos estrangeiros diretos. Isso sobretudo agregou um crescente senso de autoestima e um aumento da expressão cultural, consumida globalmente por meio de música, cinema, jogos, moda e arte contemporânea, junto com outros produtos e outras experiências culturais impulsionados pelo dinamismo e pela inovação de jovens e mulheres africanos. O renomado filósofo camaronês Achille Mbembe, em seu artigo “África no novo século”, afirma que o processo de renascimento no continente “tornou-se ainda mais poderoso por sua convergência com dois acontecimentos paralelos. O primeiro foi o surgimento das tecnologias digitais da era da informação e o segundo foi a financeirização da economia”.2 Em todo o continente, jovens continuam a alavancar bens e conhecimentos culturais – em design, inventários linguísticos, estilos musicais e poesia, artesanato tradicional, práticas de cura e bem-estar, preparação de alimentos e culinária, linguagens visuais e narrativas – para quebrar o telhado de vidro e deixar sua marca no território africano e no mundo. Fomos inspirados pelas invenções e expressões da constelação de artistas, artesãos e profissionais criativos, incluindo o cantor nigeriano Burna Boy;3 o artista visual queniano Cyrus Kabiru;4 o sul-africano Laduma Ngxokolo, da eminente marca Maxhosa;5 Reni Folawiyo, fundadora da Alara, a distinta loja nigeriana de moda conceitual;6 Omoyemi Akerele, pioneira e catalisadora da Lagos Fashion Week;7 a designer

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etíope de couro Meron Seid;8 Lola Pedro, empresária nigeriana cofundadora do Pedro’s Premium Ogogoro;9 a fotógrafa etíope Aida Muluneh; a designer nigeriana Amaka Osakwe, da marca Maki Oh;10 a pintora Esther Mahlangu;11 o produtor musical e dj sul-africano Nkosinathi Innocent Maphumulo (também conhecido como Black Coffee);12 a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie,13 entre milhares de outros. Junto com eles, existem diversos outros agentes pioneiros em cidades de todo o continente que compõem uma galáxia de empresas, empreendimentos, shows e agitações interconectadas, à qual nos referimos como indústrias criativas e culturais. Elas, por sua vez, fornecem meios de subsistência e realização pessoal para milhões de pessoas, enquanto definem os estilos urbanos de vida para seus cidadãos no contexto nacional e no exterior. Tal aumento da expressão cultural também atraiu um cauteloso interesse institucional em compromissos vindos, entre outros, da iniciativa de financiamento da indústria criativa oferecida pelo Banco Central da Nigéria para moda, cinema, tecnologias da informação e comunicação e música; o programa de investimento em moda do Banco Africano de Desenvolvimento; o incentivo à indústria criativa do Banco Afrexim; e a série de facilidades de investimento para cinema, música, jogos e moda pelo heva Fund da África Oriental, para destacar alguns exemplos. Tais iniciativas sinalizam uma crescente confiança nas indústrias culturais e criativas, fornecendo informações necessárias para o investimento comercial e para ações positivas dos governos. É importante considerar que, ao mesmo tempo que essas indústrias se materializam pela dinâmica do mercado, elas prestam um nobre serviço para seus públicos e suas comunidades. Apesar da tensão entre prática artística e valores comerciais, esses serviços continuam a presentear seu público com recompensas subjetivas, que incluem – mas não se limitam a – tranquilidade, confiança, emoções positivas e evolução estética de autoapropriação e, nesse caso, um discurso vibrante na descolonização. Tais qualidades são especialmente importantes durante uma crise, contribuindo muito para a resiliência das próprias indústrias.

A CRISE DA COVID-19 ENFRENTADA PELAS INDÚSTRIAS CRIATIVAS

Ao contrário da crise financeira global de 2008, desencadeada por má conduta institucional, a covid-19 é uma crise de saneamento que afeta a saúde e a segurança pessoal de todos os indivíduos, causando mudanças

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adversas na psicologia humana, ou seja, reduzindo a confiança e aumentando a ansiedade e a incerteza, algo que daqui para frente continuará a influenciar traços ainda não mapeados do comportamento humano. Posteriormente, a pandemia terá impacto sem precedentes sobre os processos de negócios, incluindo perda de produtividade, interrupção das cadeias de suprimentos e demanda do consumidor. Além disso, a pandemia também levantou questões profundas sobre: • O papel de um artista e um ator cultural em nossa sociedade; • A importância e a centralidade das produções artísticas na vida das pessoas em crise ou em intensa mudança social; • A inovação e a engenhosidade dos atores culturais para apoiar suas sociedades em momentos de angústia; • A vulnerabilidade e a fragilidade dos nossos artistas e atores culturais. A quem possa fazê-lo, sugiro que, em nome de um setor altamente afetado, reflitamos e prestemos atenção ao progresso de nossas indústrias na primeira e na segunda década deste novo século, destacando insights emergentes e ajudando a imaginar seus futuros. Parece-me que, embora seja claro que as indústrias culturais e criativas fizeram progressos significativos e tiveram sucessos notáveis – impulsionados pela grande e jovem população, alta taxa de urbanização e rápida aceitação das tecnologias digitais –, esses sucessos são construídos com base em um frágil modelo, orientado ao empreendedor que permanece vulnerável a riscos exógenos (guerras, pandemias, tecnologias novas e disruptivas, dependência excessiva de plataformas externas) e endógenos (lacunas de capacidade, déficits de investimento, baixa cobertura de políticas). Tais características também contribuíram significativamente para a desigualdade, limitando o potencial de crescimento das empresas criativas logo após o momento inicial, que convidava a discussões essenciais sobre a construção de ecossistemas inclusivos, resilientes e sustentáveis na segunda década do nosso século. A fim de considerar essas questões, exploraremos um pouco as críticas empresariais e culturais deste momento de pandemia.

CRÍTICA EMPRESARIAL CRIATIVA

No Quênia, estudos revelaram que a maioria dos profissionais são trabalhadores autônomos – com zero hora de trabalho coberto por

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contrato ou com proteção social limitada. A outra categoria de trabalhadores inclui operadores de pequenos e médios empreendimentos, muitas vezes com menos de dez funcionários, geralmente autofinanciados e operando em um ambiente amplamente informal, caracterizado por baixa proteção à propriedade intelectual, baixa capitalização, altos custos de ineficiência e alta concorrência.14 De acordo com uma antiga previsão do Banco Central do Quênia, 75% das pequenas e médias empresas enfrentariam o colapso caso não conseguissem obter novos fundos de bancos ou parceiros de capital até o final de junho de 2020. Essa vulnerabilidade é indicativa de características semelhantes na maioria dos ecossistemas em África. Tal fragilidade foi agravada pelo impacto da covid-19, especialmente na prática do setor criativo, que exige grandes reuniões, interações físicas próximas, dependência de viagens e logística internacional e financiamento do setor público para operações bem-sucedidas. A exposição desproporcional é vivenciada pelos setores de música ao vivo, teatro, artes cênicas, eventos e suprimentos culturais, museus, galerias e turismo. Quando lidos em conjunto, o processo de renascimento liderado por trabalhadores autônomos e o envolvimento cauteloso e limitado das instituições financeiras, junto com a fragilidade das estruturas empresariais que subscrevem as operações dessas indústrias, enquadram a urgência de uma intervenção de resgate necessária para salvaguardar esse momento criativo e cultural. A percepção central, no entanto, é a baixa proteção social para o artista, o artesão e o agente cultural enquanto trabalhador, bem como a baixa proteção de sua propriedade – trabalhos da sua mente, do seu corpo e de suas mãos. O problema seria, então, o artista não fazer uma demanda por proteção social e legal? Ou o discurso renascentista falhou em reconhecer e internalizar tais demandas? O fracasso da modalidade “empresarial” é o veículo que entrega bens e serviços artísticos ao público?

CRÍTICA CULTURAL

As artes sempre acompanharam e continuam acompanhando nossas sociedades em diversos momentos: a música emprestou uma linguagem saudável e uma cadência aos negros sul-africanos em sua luta contra a opressão racial e os motoristas de táxi, eletricistas, sapateiros, carpinteiros e coveiros no Congo imaginam dignidade, bom

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gosto e elegância por meio de tecido e estilo. Agora, mais do que nunca, é comum buscar, nas artes e por meio das artes, determinado contexto para nossas celebrações, nossos lutos e nossos anseios, bem como para nos ajudar a negociar a condição humana. Nessa crise, nos períodos mais terríveis, as artes continuam iluminando a escuridão, mantendo-nos sãos e garantindo que permaneçamos humanos – isso tudo enquanto criamos playlists relaxantes, compartilhamos filmes, redecoramos nossas casas para reuniões online, jogamos videogames, recorremos a programas de mídia para manter nossos filhos ocupados, ouvimos podcasts ou participamos de festas virtuais… As artes propõem soluções para o nosso crescente isolamento social. Elas choram e rugem de dor e raiva, enquanto sofremos múltiplas perdas – tanto de nossos entes queridos que perdemos para a doença como de meios de subsistência, liberdades e certezas; sabem quando as coisas não são justas e se pronunciam; nos encorajam a pensar e a sentir. É por meio da arte que acessamos reflexões a respeito de nossa sociedade. Esses serviços artísticos dão apoio ao nosso bem-estar psicológico e social, aumentando nossa resiliência para ultrapassar esta crise. Além disso, as artes são o meio pelo qual estamos desafiando coletivamente as normas tradicionais e adotando novas formas de vida. O artista não é, portanto, um trabalhador essencial?

APROVEITANDO O MOMENTO

Ao entrarmos na terceira década do século xxi, somos confrontados com choques e rupturas desencadeados pela crise da covid-19, que não apenas nos desacelerou, como também provocou questões críticas a qualquer postura do chamado business as usual – questões essas que abordamos para manter a cultura africana e o momento criativo. Para compreender esse quadro, devemos deixar de lado a necessidade de sermos convencidos a respeito da viabilidade das indústrias criativas na África e aceitar que a oportunidade do renascimento africano não constitui apenas um investimento no artista para animar sua atuação (e, por extensão, sua empresa) na sociedade hoje, como também representa um esquema de contribuição para aqueles que querem coproduzir as realidades do segundo continente mais populoso e mais jovem ao longo do século xxi. Parece-me que os próximos quatro anos serão marcados pelas consequências do que existe na história recente das indústrias cultu-

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rais e criativas na África. No próximo ano, devido a essa emergência, devemos testemunhar uma pressão crescente sobre (e a consequente interrupção de) práticas, modelos de negócios, cadeias de suprimentos e entrega de bens e serviços criativos. Caso tais recursos sejam interrompidos, isso poderá infelizmente levar à falência e ao fechamento de muitas práticas e a graves perdas sistêmicas de empregos. No entanto, com o investimento necessário e com o suporte adequado ao negócio e à inovação, as propostas mais ágeis sobreviverão e embarcarão em uma lenta recuperação. Ao questionar velhas normas, ao procurar entender a realidade pós-covid-19 por meio de experimentação e pesquisa, ao estabilizar as operações e reinventar posições, será possível encontrar novo crescimento, adotar novas tecnologias e descobrir os benefícios das novas formas de viver e trabalhar.

A HORA É AGORA

Ao considerar uma resposta para as questões levantadas, é obrigatório criarmos financiamentos transformadores e mecanismos de apoio que não apenas forneçam oportunidade para que os empreendimentos sobrevivam à crise atual até o próximo ciclo de negócios, mas também encorajem a transformação dessas indústrias, a fim de prepará-las para um crescimento no futuro próximo. Essas funcionalidades devem levar em consideração cronogramas recalibrados para a recuperação lenta dos negócios por meio de modelos adaptáveis, a fim de permitir aos profissionais espaço para recuperação e reinvenção. Elas também devem incentivar a propriedade local de produção, plataformas de distribuição, crescimento e integração de ecossistemas para reduzir o risco e ajudar no aumento do valor e da produtividade. Além disso, deve-se preparar o terreno para aumentar o acesso a proteções sociais, como habitação, saúde e investimentos em infraestrutura de produção.

ACORDANDO OS PRÓXIMOS PASSOS

Em nosso relatório, publicado recentemente, a respeito do impacto da covid-19 nas indústrias culturais e criativas no Quênia, discutimos uma série de medidas que garantiriam a resiliência, a recuperação e a transformação dos negócios criativos. Nele, defendemos o aumento dos gastos com assistência social para mobilizar artistas para projetos sociais

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George Gachara


em todos os países. Também sugerimos um projeto que respondesse intencionalmente à fragilidade presente (em renda, representação e apoio institucional), bem como maior sensibilidade quanto à desigualdade. O relatório discutiu ainda uma série de medidas fiscais, de tributação e de políticas públicas específicas que protegeriam a renda digital de criadores e proprietários de conteúdo, reduziriam a carga tributária sobre os produtores criativos e aumentariam os investimentos nas artes. Finalmente, Achille Mbembe está convencido do movimento de avanço do projeto de artes africanas, “[…] gostando ou não, a África está se escrevendo firmemente dentro de uma nova história das artes, descentralizada, mas global”. Para Achille, “[…] o consenso emergente é que o destino do nosso planeta será jogado, em grande medida, na África. Este […] será o principal evento cultural e filosófico do século xxi”.15

Notas 1 Este artigo foi elaborado por ocasião do Seminário Internacional de Economia e Política da Cultura e Indústrias Criativas, realizado, em outubro de 2021, pelo Itaú Cultural e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufrgs). Em maio de 2022, foi publicado no livro que leva o mesmo nome e está disponível nos sites do Itaú Cultural e da ufrgs. [N. do org.] 2 Disponível em: www.africasacountry.com/ 2016/06/africa-in-the-new-century. 3 Disponível em: www.gq.com/story/ burna-boy-african-king-profile. 4 Disponível em: www.nataal.com/cyrus-kabiru. 5 Disponível em: www.forbes.com/sites/ declaneytan/2019/01/31/how-laduma-ngxokolo-battled-cultural-appropriation-and-is-building-an-african-luxury-heritage-brand/#2063ba6035e6. 6 Disponível em: www.businessoffashion.com/ community/people/reni-folawiyo. 7 Disponível em: www.vogue.com.au/fashion/ news/how-omoyemi-akerele-is-reviving-

-nigerias-textile-industry/image-gallery/ e9e10d83d36ef0190aeb3f20b2833b5a. 8 Disponível em: www.ethiobeauty.com/article/ethiopian-entrepreneurs-leading-the-way. 9 Disponível em: www.temple-muse.com/ blog/pedros. 10 Disponível em: www.newyorker.com/ magazine/2017/09/25/the-daring-designs-of-amaka-osakwe. 11 Disponível em: www.forbes.com/sites/ yjeanmundelsalle/2019/06/07/esther-mahlangu-one-of-south-africas-most-famous-artists-perpetuates-traditional-ndebele-painting/ #694e56971501. 12 Disponível em: www.djmag.com/content/ how-black-coffee-overcame-adversity-become-one-biggest-djs-planet. 13 Disponível em: www.newyorker.com/ magazine/2018/06/04/chimamanda-ngozi-adichie-comes-to-terms-with-global-fame. 14 Disponível em: www.hevafund.com/news/ 2020/5/5/covid-19-resilience-creative-industry-options-and-strategies. 15 Disponível em: www.africasacountry.com/ 2016/06/africa-in-the-new-century.

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APHRA KERR é professora de Sociologia na Maynooth University, na Irlanda, e doutora em Estudos da Comunicação pela Dublin City University. É integrante do ADAPT Centre for Digital Content Technology, um centro irlandês de pesquisa nacional multi-institucional (2021–27). É autora de Global Games: Production, Circulation and Policy in the Networked Age. Foi também editora associada da The International Encyclopedia of Digital Communication and Society, em 2015. Em 2016, recebeu um prêmio de Distinção Acadêmica da International Digital Games Research Association (DiGRA) e, em 2020, foi aceita na Academia da Europa.


Decodificação e recodificação de game jams e espaços independentes de criação de jogos para diversidade e inclusão1 APHRA KERR O crescimento da produção de jogos independentes, devido à ampla disponibilidade de ferramentas gratuitas de criação e novos canais de distribuição, é frequentemente associado ao discurso de que, agora, qualquer pessoa pode fazer jogos. Tal discurso é paralelo àquele dominante de que a codificação é uma habilidade central nas economias contemporâneas. Essas falas emanam de empresas de tecnologia da informação e comunicação (tic), mas também de governos europeus que investem esforços significativos na promoção da ciência, tecnologia, engenharia e matemática (stem) como trabalho e escolha educacional. Os esforços destinados a atrair crianças e adolescentes para o stem costumam usar hackathons e game jams. Apesar dos discursos e esforços promocionais, o número de mulheres e minorias em indústrias baseadas em tecnologia se estabilizou e está diminuindo em muitos países, incluindo a Irlanda, e isso independe do aumento da participação feminina na força de trabalho em geral. Claramente, as culturas de tecnologia, educação e trabalho, das quais os jogos fazem parte, têm um problema persistente em atrair e manter mulheres e outras minorias. Esse é o contexto mais amplo, que molda qualquer iniciativa destinada a incentivar maior participação desses grupos na educação e na produção de jogos independentes e amadores. O presente artigo apresenta os resultados de um projeto de pesquisa colaborativa que explora a diversidade e a inclusão em game jams e workshops de design de jogos realizados em diferentes cidades da Irlanda entre 2016 e 2019. Ele se concentra em game jams como um local significativo de “política trabalhista de jogos” (Peuter; Young, 2019) – particularmente em relação à inclusão, ao gênero e a abordagens para criar jogos. Enquanto o Global Game Jam (ggj) fornece o

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modelo dominante para um game jam, instâncias locais são moldadas por formações globais e locais. Muitos dos primeiros trabalhos acadêmicos que se concentraram nos game jams os apresentaram como um espaço positivo e inclusivo para produção cultural colaborativa, inovação e networking. Os game jams chegaram à Irlanda na última década, junto com um software gratuito para download e uma proliferação de participação local em grupos de criação de jogos online. No entanto, as observações em eventos locais de criação e de networking se chocaram com os discursos dominantes de ampliação da participação e inclusão. Os eventos em que estive na Irlanda pareciam ser preenchidos pelos mesmos rostos brancos, masculinos e jovens que eu havia entrevistado uma década antes em empresas profissionais. Se as ferramentas e os canais de distribuição estão se democratizando e os game jams são um espaço social, onde pessoas de todos os níveis de habilidade podem se reunir livremente para aprender e criar de forma colaborativa, por que a demografia dos participantes desses eventos é tão semelhante ao perfil demográfico da indústria de jogos convencionais? E quão independentes eles são realmente das estruturas globais da indústria de jogos? Este texto relata, em primeiro lugar, uma pesquisa realizada em três game jams voltados para adultos que ocorreram em três cidades diferentes da Irlanda. Esses eventos eram informais, organizados por voluntários e geralmente frequentados também por voluntários. Os game jams eram gratuitos e abertos a todos com mais de dezoito anos. O presente artigo investiga quem participou e quais suas motivações, e descreve como o design desses eventos pode excluir implícita e explicitamente as mulheres e outros grupos e, por extensão, reproduzir a representação de gênero na comunidade e na indústria de criação de jogos mais amplamente. A discussão se baseia em nossa experiência de organizar seis oficinas de criação de jogos para mulheres adultas em duas cidades diferentes da Irlanda, refletindo sobre estratégias para superar as barreiras de recrutamento e de participação e as nossas razões para organizar eventos com condições favoráveis em vez de restringi-los apenas às mulheres. Propõe-se então que as montagens tecnoespaciais criadas em locais informais de aprendizagem permitam levar à produção de códigos/espaços particulares (Kitchin; Dodge, 2005) que podem limitar a eficácia das intervenções de diversidade. Finalmente, o texto reflete sobre como as atividades educacionais informais são moldadas pela economia política internacional da indústria de jogos.

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Aphra Kerr


As descobertas sobre game jams e workshops são baseadas em pesquisas com participantes, observações, entrevistas informais e uma análise de recursos online relevantes. Grande parte da literatura acadêmica sobre game jams é positiva sobre seu papel no desenvolvimento e na inovação de jogos. No entanto, pouco dessa literatura atende a questões de não participação ou da demografia de quem frequenta. Da mesma forma, a literatura sobre produção de jogos independentes e o surgimento de ferramentas de produção de jogos de download gratuito focam no potencial democratizante dessas ferramentas, em vez de mapear empiricamente se sua disponibilidade é realmente democratizante e para quem ela se volta. O artigo é concluído pedindo ao leitor que considere se alguns eventos informais, como os game jams, estão de fato reproduzindo culturas de produção locais, distantes, de gênero, raça e classe.

DO DESENVOLVIMENTO À CULTURA DE CRIAÇÃO DE JOGOS NA IRLANDA

Os estudos de jogos têm um forte legado de trabalho focado na indústria profissional, na semiprofissional e nos estudos de produção (Dovey; Kennedy, 2006; Kerr, 2006; Dyer-Witheford; De Peuter, 2009). Na última década, as novas lógicas de elaboração se expandiram para além dos processos, das funções e dos canais de distribuição de computador online e Triplo-A estabelecidos (Kerr, 2017). Isso inclui o desenvolvimento de novos canais de distribuição para criadores de jogos, desde as lojas de aplicativos Android e Apple até sites especializados como o itch.io. Embora as startups de jogos independentes sejam frequentemente apoiadas por programas da indústria local e nacional, elas coexistem com coletivos criativos e comunidades de práticas informais (Kerr, 2017, pp. 159–64). Eles variam de grupos de desenvolvedores de jogos baseados em cidades no Reino Unido (Guevara-Villalobos, 2013) e na Austrália (Keogh, 2019a) a modders individuais espalhados (Jarrett, 2019). Os desenvolvedores de jogos independentes variam de “criadores de jogos artesanais” do estilo “faça você mesmo” (Westecott, 2012), “desenvolvedores diários” amadores (Vanderhoef, 2016, p. 35), a “criadores de jogos diários”, que incluem jogos profissionais, amadores e de jogadores (Young, 2018). Apesar do surgimento de um discurso de desenvolvedores de jogos independentes, muitos deles replicam os processos e os gêneros de estúdios comerciais estabelecidos (Ruffino, 2013). No que se re-

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fere à indústria profissional, as estatísticas demográficas, na América do Norte e na Europa, mostram que ela continua dominada por homens jovens, brancos e heterossexuais. Os dados sobre o emprego e as diferenças salariais em funções essenciais de desenvolvimento nos Estados Unidos, no Canadá, no Reino Unido e na Irlanda permanecem teimosamente discriminados por gênero e raça, especialmente para funções de programação e engenharia. Pesquisas da International Game Developers Association (igda) com desenvolvedores de jogos em tempo integral e autônomos, realizadas na última década, nos dão algumas ideias sobre questões de diversidade e inclusão. A última, feita com 996 pessoas, descobriu que, embora os trabalhadores e as empresas do setor reconheçam a importância da diversidade em relação à representação na força de trabalho (81%) e ao conteúdo (85%), os entrevistados sentiram que houve tratamento desigual dos trabalhadores na indústria, e uma minoria considerável relatou ter passado por ou testemunhado tratamento desigual (igda, 2018). Essas respostas vieram de entrevistados que não são muito diversos – homens (74%), brancos/caucasianos/europeus (68%) e heterossexuais (81%). Muitos deles não sabiam se sua empresa tinha uma política de diversidade ou de reclamação formal. Continuamos vendo barreiras e reações contra a abertura de desenvolvimento para uma gama mais ampla de perspectivas e jogos, como demonstrado pelo #gamergate (Shaw, 2012; Mortensen, 2018). Um relatório solicitado pelo governo, publicado em 2017 na Irlanda, estimou que o setor audiovisual empregou quase 17 mil trabalhadores em tempo integral e pouco mais de 10.500 diretamente (Olsberg spi; Nordicity, 2017). Eles descobriram que cerca de 2 mil pessoas estavam empregadas no desenvolvimento e na publicação de videogames, sendo a maioria em atividades como distribuição, incluindo suporte ao cliente e localização. Isso confirma amplamente pesquisas anteriores, que acompanharam o crescimento em cascata do emprego profissional no desenvolvimento de jogos e a rápida expansão das funções de suporte e de distribuição de jogos de forma mais barata na Irlanda (Kerr; Cawley, 2012; McCormick, 2012). Ao longo dos anos 2000, a maior parte do crescimento do emprego na Irlanda se deu em funções de apoio [support], não de desenvolvimento [development]. Pesquisas de consultoria raramente apresentam detalhes sobre a demografia dos desenvolvedores, mas Kerr e Cawley (2012) observam que a demografia das empresas de desenvolvimento na Irlanda reflete amplamente as descobertas da pesquisa igda em termos de gênero, raça, etnia e

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idade. Mais de 90% tinham menos de 35 anos, e os entrevistados empregavam menos de 13% de mulheres, caindo para 7% quando eram analisadas as funções centrais de desenvolvimento. A maioria das empresas de jogos que responderam ao questionário tinha menos de cinco anos de existência. Em 2011, o governo irlandês lançou um plano de ação com foco em incubadoras, investimento inicial e educação (Forfás, 2011). Uma associação comercial local, a Games Ireland, foi estabelecida por empresas indígenas e multinacionais e, durante três anos, organizou a conferência anual “Games Ireland Gathering” (gig). Em 2011, havia quase trinta cursos de pós-graduação em desenvolvimento e tecnologia de jogos em universidades e faculdades da Irlanda. Como Keogh (2019b) apontou, pesquisas formais e planos de ação concentram-se principalmente em empresas estabelecidas, multinacionais e no pipeline de talentos. Como em outros países, desde 2010, a graduação de estudantes de criação de jogos na Irlanda e o crescimento da criação de jogos não profissional aumentou. A observação como participante e o envolvimento direto no cenário local de criação de jogos do autor na Irlanda sugeririam que há muito mais “criadores comuns de jogos” não profissionais do que aqueles formalmente empregados em jogos. Alguns, ainda em estágio inicial, não estão formalmente registrados como empresa; outros estão sobrevivendo por conta da previdência social. Há aqueles que trabalham em tempo integral em empresas bancárias, de varejo ou de redes sociais. Alguns ainda são estudantes. Esses criadores são uma parte importante da comunidade local. Desenvolvedores de jogos, em geral, e programadores de jogos, em particular, transitam entre as grandes e as pequenas empresas, trabalhando de forma terceirizada para companhias de tecnologia para se sustentar e de forma independente para desenvolver seus próprios projetos. Às vezes, as mesmas pessoas são fundadoras de várias empresas. Grandes e pequenas companhias, junto com criadores autônomos e que não trabalham período integral, deram origem a uma cultura de produção de jogos local vibrante – embora “nacional”, em vez de “local”, seja o termo mais adequado para este contexto. Enquanto muitas das maiores empresas profissionais estão localizadas nas cidades de Dublin ou Galway, outros fabricantes estão espalhados pelo país, possibilitados pela disseminação da banda larga e buscando custos de vida mais baixos. Desenvolvedores de jogos independentes geralmente são autônomos ou trabalham em microempresas com menos de cinco fun-

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cionários. Eles estão distribuídos por toda Irlanda e contam com maneiras não formalizadas de networking presencial e digital para se encontrarem. A maioria não tem condições de pagar anuidades formais de associações do comércio nacional ou profissionais. Como em outras indústrias criativas, encontros presenciais anuais podem apresentar níveis adequados de buzz e oportunidades de networking para gerar novas perspectivas de emprego, novos projetos ou encaminhar os antigos (Van Egeraat; O’Riain; Kerr, 2013). No entanto, o que chama a atenção é o número de atividades presenciais e online efêmeras que surgiram, incluindo uma série de festivais, game jams e grupos online (Shepherd; Kerr, 2014). Essas atividades são ainda mais interessantes, uma vez que as associações profissionais formais, incluindo a divisão irlandesa da igda e a associação comercial Games Ireland, estão atualmente inativas. Em seu lugar, surgiu uma associação local sem fins lucrativos focada em criadores de jogos. Imirt – que é a palavra irlandesa para jogar – é a Irish Game Makers Association [Associação Irlandesa de Criadores de Jogos] e se posiciona especificamente para representar desenvolvedores e fabricantes de jogos analógicos e digitais, de acordo com o termo mais amplo de criadores de jogos usado por Young (2018). A associação cobra uma pequena taxa de adesão e tem uma diretoria própria eleita.

GAME JAMS: ABERTOS A TODOS?

O crescimento de eventos sociais temporários de criação de jogos, como game jams, não é exclusivo dessa área, e podemos encontrar essas atividades na música, nas artes e no artesanato. Mark Banks (2007) argumenta que clusters não mercadológicos em música, arte e design sinalizam uma “remoralização” das atividades sociais e econômicas, oferecendo suporte contra os riscos cada vez mais individualizados associados à produção cultural comercial. Seria um erro, no entanto, pensar que todos os eventos informais de criação social, que vão da base para o topo, se opõem ao mercado; e, em nossa pesquisa, notamos que game jams executados de forma independente podem ser moldados pelos interesses (às vezes concorrentes) de patrocinadores, locais, softwares e pelas expectativas dos participantes. De fato, os participantes de eventos informais de criação de jogos também estão sujeitos à pressão implacável nas economias culturais contemporâneas para que os estudantes encontrem estágios, para que trabalhadores autônomos desenvol-

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vam portfólios extensos e para que todos se aperfeiçoem continuamente nas ferramentas mais recentes. Os primeiros estudiosos sobre jogos destacaram os benefícios de ensinar às pessoas a criá-los (Kafai, 2006). Hoje, há uma literatura considerável sobre game jams dentro da área de estudos de jogos e na de educação. O game jam contemporâneo mais conhecido surgiu dentro da indústria profissional, e o Global Game Jam (ggj) anual foi criado em 2008 pelo igda. O site do ggj descreve o evento como um “hackathon focado no desenvolvimento de jogos, condensado em um ciclo de desenvolvimento de 48 horas” (ggj, 2019). O site menciona ainda que, em 2018, o evento anual ocorreu em “803 locais, 108 países, com 42.800 inscritos”. Esses eventos produziram e fizeram o upload de 8.606 jogos. Um acadêmico define game jams como formas “aceleradas e restritas” de criação colaborativa de jogos (Kultima, 2015). Os participantes devem desenvolver um jogo em um período predefinido sobre um tema anunciado no início do dia. Pesquisas sobre game jams sugerem que eles são uma maneira útil de motivar o aprendizado de conteúdo, habilidades técnicas e colaborativas (Kultima, 2015, Locke et al., 2015). Esse trabalho também apontou que existem muitos organizadores diferentes de game jams, incluindo a indústria de jogos e tecnologia, universidades e escolas. Várias universidades e empresas irlandesas organizam eventos ggj todos os anos, sendo a maioria administrada por voluntários. Em vez de se concentrar nos eventos ggj, nossa pesquisa se concentrou em uma organização independente sem fins lucrativos, baseada na Irlanda, chamada GameCraft, que realiza de quatro a oito eventos de game jams por ano. A organização foi criada em 2012 e usa o slogan “Connect, Create, Collaborate” [Conecte, Crie, Colabore]. Seu site afirma que “GameCraft é um evento de game jam desenvolvido em torno da construção da comunidade de jogos. Nosso objetivo é realizar eventos que permitam aos criadores se encontrar, compartilhar ideias, se divertir, competir por prêmios e, o mais importante, criar jogos!” (GameCraft, 2019). Criado por duas programadoras, é administrado por uma delas e vários desenvolvedores, fabricantes e acadêmicos fazem parte da diretoria. A GameCraft já foi convidada a organizar eventos diversas cidades, como Londres, Nova York, Paris e Viena; nos últimos seis anos, a maioria dos encontros ocorreu na Irlanda. Esta pesquisa se concentra no GameCraft, porque ele difere do ggj de várias maneiras. Primeiro, seus eventos são mais curtos, durando de dez a doze horas. Segundo, o evento tem um código de conduta proeminente. Além disso, incentiva e fornece

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materiais para a criação de jogos não digitais. Em todos os outros aspectos, parece estar em conformidade com o modelo padrão – a inscrição é online, um tema é anunciado no início do dia, as pessoas podem trabalhar em equipe ou sozinhas e há uma sessão para jogar no final do dia, votação e prêmios. O site informa que não é necessária experiência prévia para participar. O autor participou de vários GameCraft desde 2013, mas este capítulo apresenta especificamente os achados do estudo e da pesquisa observacional conduzida em três cidades diferentes na Irlanda, de 2016 a 2019. Do total de participantes dos três eventos, pouco mais da metade (53 no total) concluiu a pesquisa. Os resultados confirmaram amplamente as observações. A maioria dos entrevistados nos eventos identificados como homens (77% em Dublin, 93% em Limerick, 80% em Cork), brancos (92% em Dublin, 93% em Limerick, 85% em Cork) e heterossexuais (77% em Dublin, 93% em Limerick, 85% em Cork). Os entrevistados em Dublin estavam distribuídos de maneira bastante uniforme entre as diferentes faixas etárias, enquanto mais de 85% dos participantes em Limerick e Cork tinham idades entre 18 e 24 anos. Esses resultados espelham os resultados do perfil de frequentadores do ggj. Uma pesquisa de 2013 do ggj descobriu que 86% dos participantes eram do sexo masculino, 56,5% tinham idades entre 21 e 29 anos e 60% tinham uma faculdade ou qualificação de nível superior (Fowler et al., 2013). Muitos dos participantes desses game jams estavam estudando ou tinham uma faculdade ou qualificação. A maioria dos alunos estudava programação ou tecnologia de jogos. Daqueles que não estudavam, a maioria trabalhava pelo menos meio período no setor de ti. Tal evento, “aberto a todos”, que buscava atrair pessoas sem experiência em design de jogos, atraiu principalmente homens que já estudavam jogos ou trabalhavam na indústria de ti. A maioria dos participantes em ambos os eventos eram programadores (85% em Dublin, 57% em Limerick) ou estudavam desenvolvimento e tecnologia de jogos (81% em Cork). Quando perguntados sobre suas motivações, a maioria dos entrevistados disse que estava tentando melhorar as habilidades de criação (92% em Dublin, 93% em Limerick, 69% em Cork) e conhecer outras pessoas na comunidade irlandesa da área (92% em Dublin, 64% em Limerick, 31% em Cork). É possível notar que alguns dos alunos que frequentaram o game jam em Cork obtiveram créditos formais do curso por terem participado do evento. O fato de esses eventos serem realizados em campus universitários, e alguns estudantes serem obrigados a comparecer para formar créditos de seu

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curso, reforçou ainda mais o número de alunos técnicos presentes e a indistinção entre educação formal e informal naquele contexto. Interessante em termos de inclusão é o fato de que coletivos oriundos de conversas informais, palestrantes de cursos e grupos de redes sociais online específicos surgiram como algo igualmente importante para recrutar participantes desses eventos, e muitas pessoas chegaram a eles com amigos e equipes pré-formadas. Parece que os petites comités existentes das redes sociais foram os primeiros a saber dos eventos e sentiram-se seguros em participar deles porque conheciam outras pessoas que participariam. Também foi impressionante que muitos já tivessem certo nível de habilidade técnica de criação de jogos, sendo que alguns lançaram seus próprios jogos sociais ou educacionais. Embora os iniciantes fossem bem-vindos, poucos participantes eram, de fato, iniciantes. Além disso, as pessoas tiveram que trazer seu próprio equipamento – e isso também pode constituir uma barreira de comparecimento. Essas descobertas refletem as de estudos recentes que exploram o motivo de algumas pessoas não participam de game jams. As principais barreiras incluem o horário dos eventos (fins de semana/duração), a localização, o custo e o medo de aparecer e não ser qualificado o suficiente para participar (Preston et al., 2012; Meriläinen; Aurava, 2018; Meriläinen, 2019). No entanto, isso também reflete pesquisas sobre barreiras na educação de adultos de forma geral. Boeren (2011), por exemplo, encontrou impedimentos significativos de gênero e classe para a participação na aprendizagem ao longo da vida em sua análise do European Adult Education Survey. Eles distinguem entre obstáculos relacionados às situações (equilíbrio trabalho/vida pessoal), instituição (tempo, localização) e disposição (autoconfiança) para a aprendizagem ao longo da vida e nos ajudam a situar os game jams dentro de uma pesquisa educacional mais ampla. Em sua análise, questões relativas ao custo e às responsabilidades com os cuidados familiares foram as barreiras mais significativas para a participação na aprendizagem ao longo da vida para as mulheres. As pesquisas existentes sobre game jams raramente comentam até que ponto esses eventos dependem do trabalho voluntário. A GameCraft contou com um trabalho significativo não remunerado e em grande parte invisível de uma voluntária-chave, com apoio de acadêmicos em tempo integral e representantes da indústria, majoritariamente do sexo masculino. A organizadora principal é bacharel em programação e bastante experiente na organização de eventos de ti e jogos. Ela cuida da estrutura técnica, de alimentação e comuni-

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cativa dos eventos, além da montagem e bem-estar dos participantes no dia. Ela também é a pessoa que acolhe as denúncias de qualquer má conduta. Essa função envolve bastante trabalho afetivo e presencial (Kennedy, 2018). Mais mão de obra gratuita e conhecimento técnico são incorporados ao software livre e de código aberto usado para anunciar o evento, executar o processo de inscrição e postar os jogos após o evento. Além disso, os participantes podem ser conceituados como trabalho aspiracional em relação ao seu investimento temporal em autotreinamento e redes sociais. A organização desses eventos e sua contribuição geral para a “economia lúdica local” (Kennedy, 2018) dependia totalmente do trabalho voluntário e gratuito da principal organizadora. Nossas pesquisas, observações e interações com os participantes desses game jams nos ajudaram a entender a demografia e as motivações dos participantes e o trabalho invisível envolvido na realização de um game jam. Tais achados sugerem que os canais de comunicação e as mensagens empregadas pela GameCraft foram muito bem-sucedidos ao atrair jovens do sexo masculino que se especializam em programação e já se interessavam por jogos, mas não tiveram tanto sucesso em alcançar comunidades externas e redes sociais preexistentes. Os participantes eram aqueles com o capital social, econômico e de jogo necessário e estavam dentro da cultura local de criação de jogos e das redes sociais informais. Eles também eram os que aproveitaram as oportunidades de redes sociais que esses eventos oferecem – familiarizando-se com instituições locais de educação formal, empresas/patrocinadores e outros criadores. Jogos locais ou empresas de ti patrocinavam os prêmios e, às vezes, promoviam estágios e oportunidades de trabalho nos eventos. As descobertas desses game jams apontam para uma divisão de trabalho rígida com o gênero feminino, trabalho organizacional e comunicativo em grande parte invisível e desvalorizado, a programação majoritariamente masculina e resultados criativos celebrados nos eventos celebrados e depois visíveis online. Mesmo que fossem mais curtos do que o ggj, eles ainda atraíam um grupo demográfico restrito, enquanto o foco em fazer as coisas funcionarem em um período muito curto prioriza as habilidades de programação sobre outros tipos de habilidades de criação de jogos. O formato de game jam intenso de dia ou fim de semana reproduz os modelos de produção intensos, iterativos e ágeis adotados na indústria de software, e também reflete padrões mais amplos de trabalho de projeto nas indústrias criativas. Com base nessas evidências, teríamos que afirmar

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que game jams informais independentes não necessariamente são um espaço social inclusivo para aprendizagem, e os eventos podem ser fortemente estruturados por aspectos locais de gênero, raça e classe. Além disso, se os game jams estiverem posicionados como um ponto de entrada no pipeline da indústria de jogos ou de ti, podem estar simplesmente reproduzindo as estruturas demográficas problemáticas já identificadas na indústria de jogos mais ampla.

RECODIFICAÇÃO DE EVENTOS DE CRIAÇÃO DE JOGOS INCLUSIVOS

Os entrevistados de nossas pesquisas estavam cientes de que os eventos GameCraft não eram muito diversificados – notaram que mulheres, pessoas com mais de trinta anos de idade e estrangeiros não estavam lá. Eles eram, na melhor das hipóteses, ambivalentes sobre como lidar com isso, e muitos não queriam que seus game jams abordassem especificamente questões de diversidade. No entanto, nosso projeto de pesquisa foi alimentado pelo compromisso com o estudo engajado e as perspectivas feministas de acadêmicos e ativistas participantes do projeto de pesquisa ReFiguring Innovation in Games (ReFiG). Esse projeto de cinco anos teve como objetivo intervir nas culturas de criação de jogos, educação e indústria para melhorar a diversidade. Como parceiro de pesquisa, nos esforçamos para diversificar a comunidade de criação de jogos na Irlanda por meio do desenvolvimento de eventos informais mais inclusivos. Muitos de nossos parceiros do ReFiG tinham experiência em administrar clubes extracurriculares de sexo único e mistos, centros de incubação exclusivos para mulheres e game jams para mulheres e participantes lgbtqia+ (Fisher; Harvey, 2013; Harvey; Fisher, 2014; Kennedy, 2018). Nossos colaboradores locais na Irlanda tinham experiência na realização de workshops de programação “amigáveis às mulheres”. Tais eventos incentivaram as mulheres a trazerem aliados masculinos e aqueles que se identificavam como queer, não binários ou trans. Nosso foco na igualdade de oportunidades e intervenções para a mudança social às vezes era completamente diferente da abordagem internacional, cada vez mais corporativa, à diversidade e às mulheres em eventos de tecnologia. Também queríamos ser independentes de programas internacionais e locais de diversidade tecnológica. A experiência tem mostrado que eventos focados em equidade e mudança social nem sempre são bem-vindos. Alguns

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organizadores foram criticados por criar eventos exclusivamente para mulheres e discriminar outras pessoas. Alguns temas locais de criação de jogos foram vistos como muito políticos. Por exemplo, um game jam local e independente que se concentrou no referendo de “revogação” do aborto em 2018 na Irlanda teve problemas para encontrar um lugar para realizá-los. Seguindo Boeren (2011), podemos dividir as principais barreiras de participação em game jams locais em três tipos principais: relativos à instituição (tempo, duração, localização, local), à situação (estágio da vida, responsabilidades de cuidado, renda, acesso à tecnologia) e à disposição (autoconfiança, conhecimento de jogos, conhecimento da cultura local de jogos, rede de pares). Sentimos que poderíamos abordar os dois primeiros conjuntos de obstáculos na organização de nossos eventos e o terceiro por meio do conteúdo de nossos eventos. No verão de 2016, realizamos três workshops para iniciantes adultos, com um ambiente acolhedor para mulheres, em fins de semana sucessivos na cidade de Dublin, repetindo a experiência na cidade de Galway, em 2018. Tivemos trinta participantes em Dublin e 33 em Galway. Os workshops, que tiveram vários participantes, se concentraram em design de jogos, design narrativo e codificação de jogos, e muitas mulheres participaram dos três. Ao longo dos encontros, os tutores apresentaram uma série de ferramentas de software e mecanismos de jogos que os desenvolvedores de jogos independentes usam, incluindo Twine, Fungus (um plug-in do Unity) e a ferramenta padrão do setor, o Unity. Em outro lugar, detalhamos como abordamos as barreiras estruturais à participação em game jams (Kerr; Savage, 2020) e produzimos um manual e um roteiro gratuitos para download (Kerr et al., 2020). A chave para atrair um conjunto mais diversificado de participantes foi aprender com a pesquisa sobre diversidade realizada em outros lugares, a publicidade fora dos canais de jogos online, a parceria com campeões locais de diversidade, o monitoramento de inscrições para diversidade, além de alterar o “quando, onde e como” do formato do evento. A chave para resultados de aprendizagem bem-sucedidos foi considerar cuidadosamente as estratégias pedagógicas e de tutoria, ter suportes de aprendizagem de baixa tecnologia, entender o ritmo e questionar as ferramentas e exemplos que usamos para ensinar. Conseguimos diversificar os participantes em nossos eventos com sucesso e atraímos uma maioria de participantes do sexo feminino e de pessoas mais velhas com uma variedade de origens criativas, indo de joalheiros a designers gráficos. O feedback das pesquisas

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de avaliação foi extremamente positivo. Uma pessoa afirmou que “amou o dia, muito caloroso e acolhedor”. Outro disse que foi um “excelente curso mão na massa. Parabéns para todos”. A colaboração foi incentivada; a competição, não. Não havia prêmios, prazos ou cronômetro correndo. Os tutores, organizadores e assistentes de pesquisa foram pagos por seu tempo e sua experiência. Nosso objetivo no workshop era trabalhar com organizadores locais, tutores e diversos participantes para organizar espaços inclusivos. Nossas oficinas interativas de ficção e design de jogos de tabuleiro pareciam atingir amplamente tais objetivos. No entanto, continuamos encontrando obstáculos técnico-espaciais significativos quando tentamos realizar nossos workshops de codificação de jogos. Em uma tentativa de superar a exigência de que os alunos “tragam seu próprio computador”, fizemos parceria com um centro de inovação local em um dos eventos para usar seu centro de treinamento. No entanto, o centro tinha fileiras de computadores literalmente parafusados às mesas, o layout espacial pressupunha uma experiência de aprendizado individualizada com um tutor especialista orientando o processo. Os computadores de treinamento eram muito lentos para executar adequadamente a versão educacional do mecanismo de jogo Unity – revelando outra suposição tida como certa dos desenvolvedores do mecanismo. Além disso, o trabalho organizacional necessário para apoiar as oficinas de codificação foi significativamente maior do que de outras oficinas. Isso incluía baixar o software, configurar contas de alunos individuais e ter à disposição tutores de suporte extra nas salas. Mais uma vez, ficamos impressionados com a dissonância entre as ferramentas gratuitas destinadas a democratizar o desenvolvimento de jogos e o trabalho e as barreiras invisíveis para realmente fazer algo com elas. Esse software livre serviu apenas para assimilar os tutores e os participantes nas economias mais amplas racionalistas, genéricas e baseadas em dados da indústria de software profissional. O Unity foi desenvolvido, em 2005, como uma ferramenta para criar um jogo de tiro em primeira pessoa e depois se tornou um produto comercial separado para o estúdio de jogos. A empresa visava democratizar o desenvolvimento de jogos e fornece uma variedade de kits previamente desenvolvidos, ativos, com funcionalidades como as de arrastar e soltar e as de codificação. Embora as licenças educacionais sejam gratuitas, o software cobra de empresas maiores uma taxa de assinatura baseada na receita do jogo. Tornou-se a ferramenta para o desenvolvimento de jogos independentes de celular, realidade virtual e para pc. O mecanismo

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de jogo Unity agora suporta o desenvolvimento de conteúdo para 25 plataformas diferentes e está sendo usado para aprimorar o conteúdo em outras indústrias audiovisuais e áreas relacionadas. O crescente domínio de ferramentas de software de jogos, como o Unity na educação formal e na indústria de jogos, exige mais análises com base em nossas experiências com oficinas de aprendizagem informal (Nicoll; Keogh, 2019). Nossos ambientes de aprendizagem técnico-espaciais podem ser conceituados como códigos/espaços no sentido que Kitchin e Dodge (2005, 2011) desenvolveram o conceito. Para eles, códigos/espaços são montagens criadas pela interação de códigos de computador e espaços de implantação. Em nossos ambientes de aprendizagem, esse conjunto inclui objetos codificados, infraestruturas e processos. Embora os mecanismos de jogo possam tornar o desenvolvimento de jogos mais eficiente, a eficiência tem o custo de excluir algumas abordagens pedagógicas, opções de design e formas de trabalho. Os usuários trocam tempo de desenvolvimento e escolha de design por conjuntos pré-codificados de ativos, suposições e relacionamentos. Os mecanismos são dominados pela lógica matemática (Freedman, 2018) e exercem “poder autoral” sobre o processo de desenvolvimento de jogos, como argumenta Malazita (2018). Em nossas oficinas, uma dissonância temporal significativa surgiu quando tentamos apresentar o Unity aos criadores de jogos adultos iniciantes, que afirmaram que o ritmo da sessão foi muito rápido. Os formulários de feedback observaram que a interface não era intuitiva; os participantes queriam material em papel; a aprendizagem por pares e os apoios colaborativos ficaram restritos de acordo com a disposição da sala; e muitos dos participantes tinham uma experiência significativa em computadores todos os dias e estavam trabalhando ou estudando na universidade. Esses criadores de jogos em potencial estavam lutando para se adequar à prescrição do que constitui um desenvolvedor comum. Em última análise, este artigo gostaria de sugerir que os ambientes de aprendizagem informal e formal precisam reconsiderar o discurso de empoderamento e democratizante associado aos mecanismos e às ferramentas de jogos (Keogh, 2019b). Embora as ferramentas sejam usadas por um número crescente de empresas e indivíduos independentes para criar jogos, elas impõem limitações técnicas e criativas significativas, e pressupõem certas capacidades de jogo, técnicas e de design. Eles também exigem que os usuários estabeleçam contas e, ao fazê-lo, incorporem os usuários em uma economia transnacional de aprendizagem datificada. Pesquisas e in-

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tervenções para a inclusão precisam considerar como os mecanismos de jogos transformam em outros e, em alguns casos, conflitam com os objetivos pedagógicos feministas e críticos e com a autonomia criativa. O uso de mecanismos de jogos desenvolvidos pela indústria global de jogos em espaços de ensino locais altamente estruturados impõe restrições técnicas e sociais significativas à criatividade e à inovação, e pode contribuir ainda mais para a contínua falta de diversidade e inclusão na criação de jogos cotidiana.

Nota 1 Artigo publicado originalmente em inglês na obra Ruffino, P. (org.). Independent Videogames: Cultures, Networks, Techniques and Politics, Abingdon: Routledge, 2020. Disponível em: doi 10.4324/9780367336219. [N. do org.]

A autora gostaria de agradecer a seus colaboradores de pesquisa Vicky Twomey-Lee e Joshua D. Savage e o apoio do Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá por meio do projeto ReFiG.

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MORTEN HVIID é professor de Direito da Concorrência na University of East Anglia. Seus interesses de pesquisa incluem direito da concorrência, direito de propriedade intelectual, direito contratual, direito civil e, de modo mais geral, a abordagem econômica do direito. Ocupou cargos nos departamentos de Economia da University of Copenhagen e University of Warwick e na School of Economic and Social Studies da University of East Anglia. É membro-fundador do Centro de Políticas de Concorrência e foi seu diretor de agosto de 2011 a dezembro de 2018. SOFIA IZQUIERDO SANCHEZ é professora sênior de Economia na University of Manchester. Completou seu doutorado em 2014 na Lancaster University e ocupou cargos na University of East Anglia e na University of Huddersfield. Seus interesses de pesquisa são economia aplicada, economia cultural e economia das mídias. SABINE JACQUES é professora associada de Direito de Propriedade Intelectual, Tecnologia da Informação e Direito de Mídia na UEA Law School. Suas pesquisas estão relacionadas a propriedade intelectual, direitos humanos e indústrias criativas. Ela é autora de The Parody Exception in Copyright Law (2019) e Teaching Intellectual Property Law: Strategy and Management (no prelo). É criadora do IntangAbility.org e professora visitante na Maastricht University desde 2016.


De editoras à autopublicação: efeitos disruptivos na indústria do livro1 MORTEN HVIID, SOFIA IZQUIERDO SANCHEZ E SABINE JACQUES2

INTRODUÇÃO

Durante décadas, se não séculos, as editoras tradicionais foram as guardiãs da indústria do livro. Elas ofereciam um elo essencial entre o autor e o público porque possuíam dados e experiência superiores, tanto em relação à avaliação de manuscritos quanto de produção, distribuição e promoção dos livros resultantes (Greco, 1945 e edições revisitadas). O desafio mais recente para essa posição foi a chegada dos e-readers, permitindo que milhares de e-books sejam carregados e lidos em um único dispositivo. Enquanto as versões eletrônicas de livros – os e-books   3 – estão disponíveis pelo menos desde a década de 1970 (Gilbert, 2015; Waldfogel; Reimers, 2015), foi necessária a introdução de um dispositivo de leitura dedicado à venda e ao uso para que eles realmente decolassem. O lançamento do primeiro e-reader de sucesso comercial, o Amazon Kindle, em 2007, desencadeou uma mudança dramática na indústria do livro.4 No final de 2013, a participação das vendas de e-books nos Estados Unidos atingiu quase um quarto de todas as vendas de livros (Gilbert, 2015, p. 166), enquanto no Reino Unido a quota de mercado oficial de e-books atingiu 21% do total do mercado varejista em valor.5 Antes da digitalização, teria sido proibitivamente caro para a maioria dos autores contornar as editoras por meio da autopublicação.6 No entanto, isso mudou com a chegada do e-book e, principalmente, de seus leitores. Embora as editoras tradicionais ainda tenham uma vantagem comparativa em relação a melhores dados e recursos para pagar adiantamentos, a autopublicação traz benefícios na velocidade, além de oferecer aos autores maior liberdade e controle sobre os produtos e, possivelmente, até sobre o preço de seus livros. O surgimento de

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vários serviços baseados na internet também tornou a autopublicação uma escolha mais viável para os autores. Primeiro, varejistas poderosos baseados na internet, como a Amazon, estão dispostos a trabalhar com autopublicação e fornecer aos autores acesso direto aos consumidores. Em segundo lugar, nos últimos dez anos, vários intermediários entraram no mercado, oferecendo-se para realizar várias das etapas envolvidas na conversão de um rascunho manuscrito em um e-book (e até um livro impresso) ou fornecer o software e o suporte para permitirem que o autor realize essas tarefas sozinho. O efeito levou um tempo para surgir, mas recentemente se tornou significativo.7 Este artigo tem dois objetivos: (1) analisar a melhor resposta dos editores em relação ao mercado de autopublicação e (2) analisar a opção de autopublicação para autores e avaliar se ela representa uma alternativa realista à publicação tradicional usando intermediários convencionais (como editoras). Particularmente, buscamos entender quais recursos a tornam uma alternativa viável e se existe o perigo de que a autopublicação possa ser limitada no futuro. Em segundo lugar, investigamos se a capacidade de autopublicação afeta o poder de barganha dos autores e, portanto, a alocação de receita entre os envolvidos na criação e elaboração do produto, ou se permite principalmente aos autores maior controle sobre ele. O foco é predominantemente no Reino Unido, com comparações ocasionais com outros mercados, particularmente, mas não exclusivamente, os Estados Unidos. A motivação para olhar para o Reino Unido vem, em parte, de uma avaliação feita por Thompson (2012, cap. 8), que o definiria como o “oeste selvagem” da publicação. O “oeste selvagem” é onde as regras são feitas, desafiadas ou quebradas, o que serve como laboratório interessante para o estudo dos efeitos de uma inovação digital disruptiva. O artigo está organizado da seguinte forma: em primeiro lugar, descrevemos o setor editorial de e-books pré e pós-digitalização, identificando o que mudou devido ao surgimento de entrantes de desintermediação; em seguida, centra-se nos aspectos jurídicos e destrincha-se a relação entre o setor editorial de livros e o direito no contexto digital. O foco principal é identificar questões de direitos autorais que surgem em relação à autopublicação de e-books; adiante, explora-se a escolha de um autor, primeiramente, entre fazer (autopublicação) e delegar (usando uma editora) e, depois, entre o que o autor faz e quais serviços são comprados; considera-se como os editores podem responder de maneira ideal à maior capacidade e disposição dos autores em autopublicar, seja analisando melhor os manuscritos ou esperando e vendo como o mercado enxerga as

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novas ofertas; na sequência, discute-se o problema decorrente da cauda longa e, finalmente, chegamos às conclusões a fim de apontar prováveis desenvolvimentos futuros.

ESTRUTURA DO MERCADO PRÉ-DIGITALIZAÇÃO E MUDANÇAS POSTERIORES

A estrutura vertical do mercado de livros pré-digitalização pode ser conferida na figura 1. A imagem simplificada inclui os atores-chave; para além desse modelo simples, muitos autores contratam agentes para representar seus interesses, e muitas editoras usam atacadistas ou distribuidores independentes para abastecer os varejistas (Thompson, 2012).

Figura 1: Estrutura tradicional

Autor

Editora

Ponto de Venda

Leitor

EDITORAS E PUBLICAÇÃO

Conforme ilustrado na tabela 1, há muitas editoras no Reino Unido. Embora essa quantidade tenha oscilado nos últimos quatorze anos, a sua média é de aproximadamente 2.200, com um pico de curta duração em 2008.8 Ao mesmo tempo, como mostra a tabela 2, o nível de concentração na publicação de livros do Reino Unido também permaneceu bastante constante. A análise do índice de concentração de quatro empresas – medindo a participação de mercado das quatro maiores editoras – indica que essas editoras tinham quase metade do mercado.9 Além disso, dados da ba Reports Library indicam que, desde 2009, a participação de mercado no Reino Unido da quinta maior editora foi <4%. Assim, há uma queda dramática de tamanho quando consideramos as demais fora as quatro principais. Os números na tabela 2, no entanto, mascaram uma mudança na concentração. A participação de mercado da maior empresa, a Bertelsmann,

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saltou de 14,8%, em 2012, para 24,1%, em 2013, após uma fusão com uma das outras maiores empresas.10 Embora menos frequentes que em outras indústrias criativas, fusões e aquisições ocorrem no setor editorial, mas sem criar mudanças significativas na concentração entre as quatro ou cinco maiores empresas. Portanto, o quadro geral no Reino Unido é de um número muito pequeno de grandes editoras, cada uma detendo um grande portfólio de títulos de livros e desfrutando de muitas vendas. Ao mesmo tempo, há uma longa cauda composta por editoras menores, muitas vezes especializadas, e um número cada vez mais significativo de autores de autopublicação independentes.11 Um quadro semelhante caracteriza outros ramos. Globalmente, o setor de livros em inglês é dominado por cinco grandes editoras, muitas vezes chamadas de Big Five.12 As participações de mercado podem subestimar o grau real de concorrência entre as editoras (Latcovich; Smith, 2001). A decisão do Tribunal do Segundo Circuito dos Estados Unidos, no contencioso da concorrência de e-books da Apple, observou que os principais participantes do setor editorial não tinham escrúpulos em realizar reuniões periodicamente para discutir os desafios comuns que enfrentavam.13 Isso levanta a questão de exatamente quão competitiva esse setor de fato é e tem sido. A estabilidade da estrutura do mercado é interessante por si só porque sugere que, pelo menos até agora, as “potências” editoriais tradicionais conseguiram manter sua posição, apesar das próprias inovações tecnológicas que poderiam desafiar sua colocação.

Tabela 1: Número de editoras de livros do Reino Unido registradas para IVA – março a março

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Ano

Número de editoras

2003/04

2270

2004/05

2270

2005/06

2275

2006/07

2320

2007/08

2610

2008/09

2510

2009/10

2360

2010/11

2200

2011/12

2115

Morten Hviid, Sofia Izquierdo Sanchez e Sabine Jacques


Ano

Número de editoras

2012/13

2060

2013/14

2160

2014/15

2270

2015/16

2255

2016/17

2270

Fonte: ONS: Negócios no Reino Unido: atividade, tamanho e localização, vários anos (Disponível em: www.ons.gov.uk/ons/rel/bus-register/uk-business/index.html).

Tabela 2: Parcela da concentração de quatro empresas do Reino Unido Ano 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

CR4 47,3 52,9 47,2 51,5 49,7 49,1 48,9 49,1 47,1 47,5

Fonte: Grupos de editoras do Reino Unido – vendas ao consumidor 2005-14, BA Reports Library 2015.

VAREJO DE LIVROS

As décadas que antecederam a introdução do leitor de e-books viram a criação de varejistas poderosos com a capacidade de desafiar as grandes editoras.14 Enquanto o obstáculo partiu inicialmente da criação de cadeias de livrarias, o eventual desafio surgiu da criação de livrarias online, principalmente o lançamento da Amazon Kindle Store. O mercado de e-books é dominado por um varejista: a Amazon. O Author Earnings estima que a participação da Amazon nas vendas de e-books nos Estados Unidos é de 74%, com a maior parte da parcela restante sendo dividida entre quatro outros varejistas: iBooks Store, da Apple (11%), Barnes & Noble Nook Store (8%), livraria da Kobo,

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nos Estados Unidos (3%), e Google Play Books (2%), com apenas 2% para vendas por outras vias. Os Estados Unidos são o maior mercado de e-books, com o Reino Unido em segundo lugar. O Author Earnings recentemente ampliou seu trabalho empírico para cobrir o mercado do Reino Unido.15 Isso identifica que, embora existam muitas semelhanças entre as descobertas do Reino Unido e dos Estados Unidos, a participação de livros autopublicados vendidos na Amazon por meio de seu site no Reino Unido (amazon.co.uk) é significativamente menor do que a vendida por meio de seu site principal (amazon.com), enquanto a participação das cinco grandes editoras tradicionais (Big Five) é significativamente maior. Há um fator importante que provavelmente explica a diferença entre as vendas nos sites dos dois países: a diferença nas estruturas de preços. Os livros Big Five são, em média, significativamente mais caros nos Estados Unidos, enquanto os livros independentes autopublicados são mais baratos nos Estados Unidos em comparação com o Reino Unido. Uma razão para isso é que, desde 2014, as Big Five recuperaram mais controle sobre os preços finais de varejo nos Estados Unidos. Após o fim da proibição temporária do modelo de agência (ou seja, de as editoras definirem o preço final ao consumidor), que surgiu de uma ação antitruste movida contra a Apple,16 as editoras negociaram um retorno a esse modelo de precificação. Mais recentemente, surgiram várias plataformas de assinatura de e-books, essencialmente levando o varejo da venda de downloads de e-books para a oferta de serviços de streaming, que em muitos aspectos parecem uma biblioteca onde se paga um ingresso. Pelo pagamento de uma mensalidade, os leitores podem ler quantos livros quiserem dentro do repertório disponível pelo seu serviço escolhido.17 Os principais são o Kindle Unlimited18 e o Scribd.19 É importante para o potencial de autopublicação que a Amazon, especificamente, tenha a experiência de lidar com empresas independentes pequenas vendendo por meio da sua plataforma (usando o Amazon Marketplace) e, portanto, tenha a disposição de tratar com editoras e ajudá-las, incluindo também autores de autopublicação. Portanto, se os autores poderiam de alguma forma substituir as informações necessárias para transformar um manuscrito em livro, que eram tradicionalmente fornecidos pela editora, eles teriam um caminho para o mercado e, dessa forma, para os leitores. A chegada em cena das novas empresas baseadas na internet permitiu isso.

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ENTRADA DE NOVOS SERVIÇOS: DESINTERMEDIAÇÃO E DIGITALIZAÇÃO

A riqueza das informações e as novas tecnologias disponibilizadas pela internet podem fornecer aos autores os meios para evitar as editoras tradicionais e potencialmente evitar os varejistas novos e tradicionais ao tratar diretamente com aqueles interessados em ler seus trabalhos. O incentivo para isso é claro quando consideramos as informações fornecidas pela ocde (2012) sobre a distribuição provável de receitas em vários atores-chave na figura 1. Particularmente, a participação da receita que vai para o autor, valor com o qual precisam pagar um agente, estima-se que seja de 8% a 15%. Isso é a média, e esperaríamos que essa porcentagem fosse bem diferente entre autores. As participações líquidas de receita para as editoras e os varejistas são estimadas em 30% a 40%, respectivamente. Para desviarem de editoras tradicionais, os autores podem utilizar uma das plataformas diferentes disponíveis, como Smashwords, Draft2Digital e BookBaby; todas oferecem várias formas de auxílio com o processo de publicação e distribuição. Esses serviços preparam o trabalho do autor para venda por meio de vários varejistas, em formas que podem ser compatíveis com diversos leitores eletrônicos. Os autores também têm a opção de oferecer seus livros em papel com serviços de impressão sob demanda, como LuLu e o CreateSpace da Amazon.

OS DIREITOS LEGAIS NO REINO UNIDO E SEU EFEITO NOS LIVROS IMPRESSOS

O setor editorial e a lei de direitos autorais compartilham um histórico longo e tumultuado, mas é amplamente aceito que também dividem uma relação interligada e simbiótica (Goldstein, 2003; Grosheide, 2001; Wiseman, 2007).20 A lei de direitos autorais objetiva promover a diversidade cultural21 ao fornecer criadores com um incentivo para investir no processo inovador e ao oferecer proteção legal que pode ser executada para prevenir cópias não autorizadas de trabalhos por um período finito. Dessa forma, o autor usufrui de um prazo para recuperar seu investimento ao ter a opção de explorar seu próprio trabalho comercialmente. Apesar desses objetivos, a lei de direitos autorais do Reino Unido foi muitas vezes criticada por ser mais focada na editora do que no autor (D’Agostino, 2010, p. 53).

De editoras à autopublicação: efeitos disruptivos na indústria do livro

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No passado, as editoras tiveram o papel importante de garantir que o conteúdo publicado não fosse difamatório, obsceno ou blasfemo. Está claro que ter um guardião poderoso, que por sua vez possa ser processado pela quebra dessas regras, é benéfico para legisladores, e, por sua vez, pode levar à explicação dos motivos pelos quais o desenvolvimento da lei foi voltado às editoras.

DIREITOS ECONÔMICOS

Se um trabalho satisfizer as exigências de proteção, a lei de direitos autorais concede ao autor um conjunto de direitos exclusivos,22 que definem os usos econômicos da obra e, portanto, das correntes de receita, cujo portador do direito poderá controlar.23 O termo de proteção varia de acordo com a obra, mas em um trabalho literário, como o texto de um livro, a proteção é estabelecida em setenta anos após a morte do autor.24 Resumindo, o cdpa garante ao portador o direito exclusivo de reproduzir a obra, fazendo cópias para distribuí-la ou de outra forma comunicá-la ao público (incluindo disponibilizando-a online, bem como o direito exclusivo de tradução ou adaptação da obra) (Sterling, 2015, pp. 442–45). Este último inclui a mudança do formato de uma produção, por exemplo, de um livro para um filme. Geralmente, a lei reconhece o autor como o “primeiro detentor” dos direitos autorais.25 Assim, embora um autor seja o primeiro detentor de sua obra literária, se um livro for publicado por uma editora tradicional, é provável que a editora seja responsável pela diagramação final do livro. Nesse caso, a editora é a primeira detentora dos direitos autorais da obra que compreende a proteção adicional para o arranjo tipográfico.26 A questão da propriedade é vital no setor editorial, uma vez que, em primeiro lugar, é o ponto de partida para a vigência dos direitos autorais e, em segundo, continua a ser essencial para garantir que a legislação nacional respeite o princípio abrangente do tratamento nacional como estabelecido na lei internacional de direitos autorais.27 O cumprimento dos direitos autorais é outro aspecto da proteção legal que foi significativamente impactado pelo ambiente digital. As editoras tradicionais (até certo ponto, com razão) temiam que a divulgação de obras online tornasse quase impossível policiar seus direitos no ambiente digital. Previa-se o aumento da pirataria (tanto os usos não autorizados pontuais quanto a pirataria por atacado), pois a tecnologia digital permitiria não apenas o acesso às obras, mas cópias perfeitas e infinitas a serem feitas e distribuídas com o

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clique de um mouse.28 No entanto, os desenvolvimentos tecnológicos também criaram oportunidades para os detentores de direitos autorais. Aproveitando a chance de expandir a exploração de livros para um novo mercado online, as editoras estenderam sua oferta aos e-books e criaram bloqueios “digitais” que dissuadiram todos, exceto os indivíduos mais determinados, de copiar e imprimir as obras disponibilizadas virtualmente.29 No início da era da publicação digital, os livros impressos eram digitalizados, criptografados e depois disponibilizados aos usuários da internet em formato para download. No entanto, uma vez que a pirataria para contornar a criptografia apareceu, medidas mais sofisticadas contra a circunvenção foram introduzidas e reforçadas por proteção legal adicional por meio da lei de direitos autorais, que tornou ilegal a evasão de medidas de gerenciamento de direitos.30 Esses novos dispositivos contra a circunvenção permitiram que os detentores de direitos, por exemplo, as editoras, ganhassem ainda mais controle, tornando possível o microgerenciamento de cada uso de uma obra (Wiseman, 2007). Essa mudança sinaliza o uso crescente de contratos para regular o acesso digital a obras, normalmente acompanhados pela introdução de sistemas antipirataria cada vez mais sofisticados (Buydens; Dusollier, 2001; Galopin, 2012; Geiger, 2004; Guibault, 2002).

IMPORTÂNCIA DO DIREITO CONTRATUAL

Nas editoras, o modelo mais comum é o de contrato “padrão”, no qual um lado (no caso, a editora) dita os termos baseados na lógica do pegar ou largar para o autor (Guibault, 2002, p. 198). Por exemplo, muitos contratos de publicação são de amplo alcance e elaborados por editoras em seu favor, cobrindo um direito ilimitado de explorar o trabalho protegido por direitos autorais em seu prazo total. Essa posição é exacerbada pelo fato de muitas editoras adotarem termos padronizados. Portanto, um autor relutante ou incapaz de aceitar esses acordos era, pelo menos tradicionalmente, incapaz de publicar seu trabalho, por mais meritório que pudesse ser.31 Nesse contexto, a autopublicação não é apenas atraente para autores que desejam manter o controle sobre seus direitos, também o mundo digital tornou possível a autopublicação bem-sucedida. Os autores estão agora em condições de reproduzir e distribuir seus trabalhos online diretamente ao público sem ter que arcar com custos de impressão, armazenamento e transporte. Além disso, eles podem

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controlar as traduções feitas de suas obras para preservar sua integridade. Finalmente, em alguns casos, o autor está mais bem posicionado no que diz respeito às conexões pessoais para negociar acordos à adaptação de livro em filme ou em séries de tv. Diante do exposto, a autopublicação representa uma possibilidade viável para autores com um nível mínimo de competência técnica que prefiram manter o controle de seus direitos de propriedade intelectual. A visão geral da lei de direitos autorais demonstra que o seu atual paradigma ainda é amplamente orientado para beneficiar a editora. O princípio abrangente da liberdade de contrato no direito contratual do Reino Unido fortalece as editoras uma vez que sua posição de negociação superior significa que elas, muitas vezes, são capazes de impor seus termos ao autor. O advento de novas tecnologias (por exemplo, medidas contra a circunvenção) serviram apenas para fortalecer a posição das editoras, deixando pouco controle e poder de barganha aos autores. Embora a lei reconheça “direitos morais”, a maneira como eles foram implementados no Reino Unido, com a necessidade de que o direito de atribuição seja especificamente afirmado como efetivo e com a possibilidade de renúncia de outros direitos, mina o impacto prático nas práticas editoriais.

OS AUTORES FAZEM, COMPRAM OU DELEGAM A DECISÃO

A viabilidade da autopublicação pós-digitalização implica que um autor com um manuscrito tenha que tomar uma decisão sobre manter o controle ou delegar o desenvolvimento do manuscrito a uma editora. Quando o autor opta por manter o controle, outras decisões são necessárias, porque há muitos aspectos do processo de publicação, como edição, tradução de arquivos e design da capa, que o autor pode fazer ou delegar a um dos novos intermediários. Embora existam muitos relatos sobre como os autores tomaram essas decisões, há poucas evidências mais gerais. Essa é uma área na qual bons dados acessíveis são escassos. Nesta seção, contamos com um conjunto de dados de uma pesquisa não representativa de autores e os relatórios de resultados de outra pesquisa em que a representatividade é difícil de avaliar. Isso implica que precisamos considerar os resultados encontrados aqui com parcimônia. No entanto, comum a ambas as amostras é a probabilidade de que os autores que autopublicam ativamente estejam sobrerrepresentados. Considerar suas escolhas ainda pode dizer algo sobre o comportamento dos autores modernos.

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DADOS

Para obter algumas informações sobre a escolha feita pelos autores, usamos um conjunto de dados resultante de uma pesquisa online realizada pela Author Earnings.32 No momento do download dos dados, um total de 1.704 autores haviam respondido à pesquisa.33 Em resposta à pergunta “Com base nos seus ganhos primários, que tipo de autor você é?”, 264 declararam que eram “publicados tradicionalmente” e 1440 declararam que eram “autopublicados”.34 Embora isso indique que a amostra não é representativa do conjunto de autores publicados e que os autores de autopublicação particularmente estão sobrerrepresentados,35 acreditamos que podemos aprender algo sobre o que pode motivar as escolhas dos autores.

A DECISÃO DE “FAZER OU DELEGAR”

Na amostra, os entrevistados que se classificam como autopublicados não possuem tanta experiência de longo prazo no setor.36 Enquanto o primeiro livro de cerca de um terço dos autores tradicionalmente publicados ocorreu antes do advento do Kindle em 2007, o número correspondente para autores autopublicados foi de apenas aproximadamente 7%. Isso confirma uma inclinação para novos participantes na autoria de livros e deve ser lembrado ao interpretar descobertas posteriores. Dos autores da amostra que têm uma longa trajetória, há um número desproporcional com experiência de publicação tradicional, porque eles não tinham a opção de se autopublicar quando lançaram o primeiro livro. Uma das perguntas feitas na pesquisa é: “Como você planeja ou espera publicar sua próxima obra?”.37 A resposta permite que a amostra seja dividida em quatro subamostras. A maior delas, com 1.366 entrevistados, é composta por autores que declararam serem autopublicados no momento e que pretendem continuar assim. A segunda maior, com 159 entrevistados, é composta por autores que declararam serem publicados tradicionalmente no momento e pretenderem continuar assim. No entanto, há também aqueles casos em que o autor deseja passar da forma tradicional para a autopublicação (n1⁄488) e da autopublicação para a forma tradicional (n1⁄466). Dos 1.421 que estavam satisfeitos com seu modo atual de publicação, 338 (22%) tinham experiência em ambas as formas. Curiosamente, uma fração maior dos 154 que gostariam de mudar no futuro (44%) tem experiência anterior de mudança. Essa fração crescente de autores experientes entre aqueles que desejam

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mudar é impulsionada inteiramente pelo fato de que 60% dos que são publicados tradicionalmente terem sido publicados por conta própria no passado. Assim, a maioria dos autores que planejam mudar para a autopublicação está tomando uma decisão informada na experiência vivida, enquanto a maioria daqueles que planejam mudar de autopublicação para uma editora tradicional baseia sua decisão nas expectativas.38 As decisões sobre qual modo de publicação escolher no futuro dependem das opções e da experiência. Embora não possamos inferir nada sobre as opções, os dados oferecem um vislumbre da experiência dos diferentes grupos. Um conjunto de perguntas diz respeito ao “desempenho” dos entrevistados. As médias para os quatro grupos são relatadas na tabela 3. Para focar em mudar versus ficar, bloqueamos as células perguntando aos publicados de forma tradicional sobre sua experiência relacionada a livros que podem ser publicados por conta própria.39 Observe que, em todos os casos, aqueles que desejam mudar estão, em média, se saindo pior do que aqueles que planejam permanecer em seu método atual. O desejo de mudar pode ser causado tanto por um fator de atração quanto por um fator de impulsão.

Tabela 3: Níveis de sucesso Agora: Futuro:

Tradicional Tradicional

Tradicional Auto Auto Tradicional

Auto Auto

Número médio de livros publicados tradicionalmente

30

8,2

0,8

1,3

Número médio de livros de autopublicação

2,2

2,2

7,1

10

Média autodeclarada de renda: tradicional

$73,523

$32,946

$1,119

$1,582

Média autodeclarada de renda: autopublicação

$4,816

$6,970

$15,137

$45,310

69

20

10

350

0%

0%

0%

0%

159

88

66

1366

Número informando que eles estão ganhando uma renda em tempo integral como escritor % declarada que estão ganhando uma renda em tempo integral como escritor Total da amostra Fonte: elaboração própria.

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Um segundo conjunto de perguntas questiona com que aspecto da publicação tradicional ou da autopublicação os autores estão satisfeitos, e oferece alguns insights sobre isso. As opções de respostas refletem o que muitas vezes são considerados os principais benefícios ou desafios de determinada forma de publicação e estão apresentadas nas tabelas 4 e 5. Para a editora tradicional, as questões estão – em linhas gerais – centradas na qualidade da publicação, nas receitas geradas, na eficácia com que os livros são distribuídos e na relação de trabalho com a editora. Para a autopublicação, as questões se detêm às novas tarefas adicionais que o autor assume: a qualidade do produto, quanto esforço deve ser colocado nas vendas, quão bem distribuído o livro é e quantas cópias são vendidas.

Tabela 4: Resposta à pergunta “Se publicado da forma tradicional,* com qual dos seguintes aspectos você está satisfeito?” Agora: Futuro:

Tradicional Tradicional

Tradicional Auto

Auto Tradicional

Auto Auto

A edição que recebi

87%

65%

25%

6%

Os esforços promocionais que recebi

42%

8%

6%

1%

Minhas vendas

42%

12%

13%

0%

O preço das minhas obras

54%

14%

19%

2%

A distribuição impressa que recebi A distribuição de e-book que recebi Meu relacionamento com minha editora

51%

31%

13%

2%

60%

16%

19%

2%

67%

26%

19%

2%

Total da amostra

156

86

16

260

*Excluindo autores que relatam nunca ter usado uma editora tradicional. A amostra exclui cinco autores que se declararam como tradicionalmente publicados, mas que aparentemente nunca publicaram um livro da forma tradicional. Fonte: elaboração própria.

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Tabela 5: Resposta à pergunta “Se autopublicado,* com quais dos seguintes aspectos você está satisfeito?” Agora: Futuro:

Tradicional Tradicional

Tradicional Auto

Auto Tradicional

Auto Auto

A qualidade do meu produto final

72%

84%

84%

84%

Quanto tempo eu gasto promovendo

28%

35%

21%

30%

A distribuição do meu trabalho

32%

45%

25%

50%

Minhas vendas atuais

20%

27%

10%

37%

Total da amostra

79

55

63

1348

*Excluindo autores que relatam nunca terem autopublicado. Note que para aqueles que atualmente se veem como autopublicados, a amostra exclui 21 entrevistados que aparentemente nunca autopublicaram. Fonte: elaboração própria.

Aqueles que preferem continuar publicando tradicionalmente estão muito mais satisfeitos com os serviços que recebem se comparados às outras subamostras. Esse é particularmente o caso da publicação, algo que foi encontrado em outra pesquisa recente.40 As exceções dizem respeito à geração de renda. Eles podem estar, em média, mais satisfeitos com o preço pelo qual seu livro é vendido, mas não com o esforço para promovê-los e nem com as vendas resultantes disso. Como era de se esperar, aqueles que desejam mudar para a autopublicação estão em geral menos satisfeitos, e, mais interessante ainda, apenas o suporte à publicação recebeu mais de 50% de aprovação. Isso sugere mais um fator de pressão e, principalmente, que os autores que desejam mudar estão muito descontentes com a receita gerada (além de estarem insatisfeitos com vendas, preço e promoções) e com a forma como a editora gerencia as vendas de e-books.41 Alguns dos autores que se consideram autopublicados têm experiência na publicação tradicional. Embora seja fácil descartar a atitude negativa daqueles que desejam continuar a serem autopublicados como decorrente do viés de autoafirmação, observe que mesmo o pequeno número de autores com essa experiência que possui desejo de mudar se mostra negativo sobre o apoio

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que receberam quando publicados tradicionalmente, embora não tanto quanto aqueles que atualmente são autopublicados e desejam continuar assim. Apesar dessa experiência negativa de suporte, eles ainda estão preparados para mudar. Voltando-se ao nível de satisfação por quem tem experiência de autopublicação, na tabela 5, todos os grupos estão, em média, muito satisfeitos com a qualidade geral do livro final. Preocupações sobre quão “bom” o produto aparenta ser não são um fator importante para determinar o modo de publicação. Entre aqueles que se declaram como autopublicados, os que mudam estão menos satisfeitos e, presumivelmente, esperam que a vida seja melhor após a mudança. Para aqueles que se autodeclaram como tradicionalmente publicados, os que mudam têm uma memória mais positiva da autopublicação, e isso pode ser o que motiva a mudança.

A DECISÃO DE “FAZER OU COMPRAR”

Ao optar pela autopublicação, várias atividades que tradicionalmente seriam realizadas pela editora, como edição e design da capa, recaem inicialmente sobre o autor. No entanto, como ilustrado no item “Entrada de novos serviços: desintermediação e digitalização”, algumas ou todas essas tarefas podem ser delegadas a outras pessoas. O questionário faz duas perguntas relacionadas a como os autores autopublicados lidam com essas importantes responsabilidades. As respostas são abordadas na tabela 6.

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Tabela 6: Responda à pergunta “Se autopublicado,* que grau de edição você emprega e como você obtém a sua arte de capa?” Agora: Futuro:

Tradicional Tradicional Auto Tradicional Auto Tradicional

Total da amostra

Edição

Capa profissional

Auto Auto

79

55

63

1348

Contratação de editor autônomo

49,4%

57,4%

46,0%

54,0%

Amigos e família

13,9%

11,1%

28,6%

19,1%

Grupo de críticos/ outros autores

19,0%

22,2%

20,6%

15,9%

Nenhum

13,9%

7,4%

4,8%

9,9%

Contratação de designer de capa

57,0%

66,7%

63,5%

55,6%

Cria a sua própria

35,4%

29,6%

23,8%

39,4%

Compra capas pré-desenvolvidas

3,8%

3,7%

12,7%

4,7%

*Interpretamos isso como os entrevistados relatando que publicaram pelo menos um livro por conta própria. Fonte: elaboração própria.

Observe, em primeiro lugar, que poucos autores em qualquer subgrupo confiam apenas em si mesmos para fazer a edição sem ajuda adicional. Além disso, entre aqueles que planejam autopublicar na próxima vez, muitos mais esperam usar serviços profissionais de edição, principalmente aqueles que têm experiência anterior em autopublicação e desejam retomar esse modo. Entre essa amostra específica, as editoras independentes não querem necessariamente manter o controle sobre todos os aspectos da publicação. No entanto, a arte da capa parece ser uma área em que aqueles que planejam manter a autopublicação são autossuficientes em relação a qualquer grupo de autores que trocam. Se focarmos naqueles que contrataram ajuda profissional na edição e na arte da capa, 36,5% da amostra o fez. Três das quatro subamostras são semelhantes, enquanto a subamostra de autor publicado tradicionalmente tem significativamente menos autores que usam ajuda profissional que os de autopublicação.42

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O PODER DAS EDITORAS NA ESCOLHA E NA PROMOÇÃO

O desenvolvimento da melhor estratégia de marketing para um livro é complicado e se deve a três fatores. Um deles é que um livro pode ser categorizado como uma “boa experiência” (Nelson, 1970). O segundo é que, como os gostos dos consumidores diferem, um consumidor não necessariamente concordará com a avaliação de um livro feita por um leitor anterior. Isso torna as recomendações e as avaliações de outros um guia impreciso, especialmente se nada se sabe sobre esses avaliadores. O último é que livros anteriores do mesmo autor são apenas um guia imperfeito de quanto o leitor irá gostar de suas outras publicações. Assim, ao escolher um livro para comprar, o consumidor baseará tal decisão em informações imperfeitas extraídas de suas próprias compras anteriores, de endossos e críticas profissionais e dos comentários de outras pessoas que compraram esse livro recentemente. O primeiro e o terceiro fator não foram alterados drasticamente pelo aumento da digitalização, mas o segundo, sim. Com a crescente importância das resenhas dos leitores, um autor que deseja maximizar as vendas de seu trabalho enfrenta o problema fundamental não apenas em como fazer com que seu livro seja notado e comentado, mas também para garantir que ele chegue à atenção das pessoas “certas”: o público-alvo que mais valorizará o trabalho. Vários estudos demonstraram que a recomendação boca a boca e as avaliações positivas são determinantes para o sucesso de vários bens de experiência (Anderson; Magruder, 2012; Beck, 2012; Chevalier; Beinecke; Mayzlin, 2006; Lee; Tan; Hosanagar, 2015). A internet aumenta muito essa disseminação de informações sobre produtos (Baye; De Los Santos; Wildenbeest, 2013). Os consumidores podem usar essa ferramenta para rastrear não apenas opiniões e resenhas escritas por avaliadores profissionais de livros, mas também aquelas feitas por outros consumidores, a fim de obter conselhos com base em decisões reais de compra. Embora as editoras, munidas de sua maior experiência e de acesso a recursos, possam promover um livro de forma eficaz,43 elas ainda precisam realizar uma análise de custo-benefício para identificar o tipo e a quantidade de publicidade que determinado manuscrito precisará para ser um sucesso comercial e para avaliar se as vendas serão suficientes para garantir essa despesa inicial. Isso está longe de ser simples. Na publicação tradicional, manuscritos que provaram ser bem-sucedidos muitas vezes já foram rejeitados por outras editoras no passado, especialmente quando é de um estreante. Um novo autor

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com um produto superior, mas sem um histórico comprovado, corre o risco de ser esquecido pelo setor editorial.44 Em segundo lugar, alguns livros passaram completamente desapercebidos e só ganharam destaque por meio da autopublicação. O sucesso da trilogia dos Cinquenta tons demonstra como um livro autopublicado, que recebeu aclamação online, pode ser traduzido em um livro impresso de sucesso.45 É também uma prova do amplo consenso entre os autores autopublicados de que “as editoras tradicionais podem realizar o que os autores não conseguem, incluindo distribuição, marketing e venda de direitos de tradução estrangeiros” (Sales, 2013). À luz desses dois desafios, esta seção questiona quais efeitos a maior facilidade em autopublicação pode ter no comportamento da editora na fase de avaliação do manuscrito. Imagine uma situação em que há vários manuscritos concorrentes encaminhados a uma editora, cada um dentro do mesmo gênero. Se publicados, qualquer um desses manuscritos por si só teria vendas razoáveis, mas se todos fossem publicados, um deles se destacaria nas vendas. Em um mundo pré-digital, os livros só podiam ser publicados com sucesso por meio de uma editora estabelecida. Tal editora poderia ter pouco incentivo para despender esforços na identificação do livro comercialmente mais viável de um subgênero, a menos que temesse que o manuscrito pudesse acabar em uma editora rival. Se o número total de manuscritos em oferta for grande, a probabilidade de uma editora enfrentar concorrência nessa categoria específica, antes que a maior parte da demanda tenha sido atendida, é relativamente pequena. Em um mundo pré-digital, o custo para as editoras ao “errarem” pode não ter sido significativo. Em um mundo digital, qualquer autor pode se autopublicar usando um processo razoavelmente rápido e barato. A internet cria cada vez mais mecanismos que permitem a leitores em potencial avaliarem a qualidade relativa de qualquer livro, independentemente de ser publicado tradicionalmente ou autopublicado. Nesse mundo, o erro de uma editora ao escolher o livro menos comercial para publicação tem consequências potencialmente mais graves: o autor do livro melhor, mas rejeitado, tem o potencial de se beneficiar significativamente da autopublicação, e tal decisão tem um efeito adverso sobre a editora que o rejeitou por meio do aumento da concorrência.46 Isso deixa a editora com duas opções. A primeira é dedicar mais esforço ao escrutínio de novos manuscritos para aumentar a probabilidade de que o melhor livro seja identificado corretamente. Alternativamente, a editora pode dar um passo atrás, aceitar que alguns

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autores se autopublicarão, usar o mercado de obras autopublicadas para identificar o “melhor livro” e depois abordar o autor com o objetivo de levar a publicação para a próxima fase. Esta seção contém um modelo ilustrativo estilizado que identifica alguns dos efeitos sobre as editoras decorrentes da ameaça de autopublicação.

O MODELO FORMAL

Considerem-se dois livros, X e Y, de autores diferentes, mas do mesmo gênero, com demanda latente significativa. Vamos supor que um dos livros domina estritamente o outro no sentido de que, se ambos fossem comercializados ao mesmo tempo, um deles atrairia uma quantidade desproporcional da demanda agregada. Isso será referido como sendo o “melhor livro” a seguir, em que “melhor” se refere à sua capacidade de gerar receita. Para simplificar as coisas, suponhamos que cada manuscrito de livro tem a mesma probabilidade a priori de levar ao livro melhor. Queremos permitir que o livro seja publicado por meio de uma editora tradicional ou autopublicado. Para simplificar, suponhamos que haja apenas uma editora.47 A demanda é resumida da seguinte forma, em que, por simplicidade, tratamos o preço, P, como exógeno:

Figura 2: Demandas Demanda se ambos forem publicados Probabilidade

Demanda se somente um for publicado

Demanda por X

Demanda por Y

X é o livro melhor

1/2

DX

DX/Y

dY/X

Y é o livro melhor

1/2

DY

dX/Y

DX/Y

Fonte: elaboração própria.

Suponhamos que Di/j + dj/i > Di > Di/j em que i, j = X, Y, i 6¼ j, que leva a supor que mesmo se i for o livro melhor, se j também estiver disponível, algumas vendas de i serão perdidas para j (Di > Di/j), e algumas

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pessoas querem j e não i, então essa demanda é expandida pela presença de j (Di/j + dj/i > Di). Além disso, suponhamos que, embora a perda na demanda pela escolha do livro não tão bom seja pequena se apenas um livro for publicado, ou seja, DX - D y for pequena, a perda de demanda pela publicação do livro não tão bom se ambos os livros forem publicados é muito significativa, ou seja, Di/j - di/j é grande. Por último, suponhamos que Di/j + dj/i = Dj/i + di/j , isto é, a demanda total por livros quando ambos são publicados, é independente de qual é o melhor. O segundo conjunto de suposições garante que a perda potencial de cometer um erro seja significativa. Vamos supor que o custo para uma editora desenvolver um livro seja F, enquanto o custo para um autor de autopublicação seja f. Esses custos incluem a produção e comercialização do livro. Seria de esperar que houvesse uma diferença entre F e f, com F ≥ f por conta de a campanha de marketing ideal para a editora ser mais eficaz e, portanto, em equilíbrio, seria alocado um orçamento maior. Em consonância com isso, suponhamos que o autor possa realizar apenas uma fração (µ) da demanda potencial total. Finalmente, a editora tem que pagar um adiantamento (A) a qualquer autor que assine com contrato com ela.48 Para simplificar, suponhamos que as editoras têm todo o poder de barganha para que A seja igual ao valor esperado dos autores na sua próxima melhor alternativa. Considere a seguinte ordem de eventos: 1. Os autores simultaneamente concluem um manuscrito de valor comercial desconhecido. 2. A editora avalia os manuscritos e escolhe um para ler aleatoriamente.49 A leitura de um manuscrito não revela nenhuma informação além de um valor comercial esperado. Sem ler os dois manuscritos, espera-se que eles tenham a mesma qualidade. 3. A editora: a. faz uma oferta no primeiro manuscrito, sem perda de generalidade, manuscrito X; ou b. identifica e lê o segundo manuscrito, que revela integralmente todos os valores da tabela à editora, e faz uma oferta para o melhor livro; ou c. rejeita X e não procura Y. 4. O autor verifica se seu manuscrito foi rejeitado e se um livro concorrente foi publicado por uma editora.50 Os autores não podem observar a ação da editora, ou seja, qual(is) manuscrito(s)

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foi(foram) avaliado(s). Se anunciada a publicação de um livro rival, o autor do outro manuscrito pode avaliar o mérito relativo dos dois livros.51 Qualquer autor rejeitado ou não detectado decide se deve autopublicar. 5. Se nenhum manuscrito foi aceito pela editora, ela pode esperar até que a autopublicação revele qual livro é o melhor e então fazer uma oferta ao autor. Como são necessárias vendas e resenhas de leitores para que a qualidade seja revelada, a demanda restante é reduzida em S, a quantidade de cópias autopublicadas já vendidas.52 Uma implicação do quarto passo é que somente se o outro manuscrito for publicado o autor saberá o verdadeiro nível de demanda, ou seja, os valores da tabela acima. Caso contrário, as decisões devem ser baseadas em valores esperados. Vamos considerar E(.) como o operador de expectativas. Dada a simetria do modelo, suponhamos que E (Dx|y) = E (Dy|x) e E (dx|y) = E(dy|x). Para descartar os casos em que a autopublicação sempre domina a não publicação, suponhamos que se alguém está comprometido em publicar o melhor livro, a autopublicação do outro livro nunca é lucrativa: (1) No entanto, se o livro menos bom será publicado, a autopublicação do livro melhor será lucrativa: (2)

A principal implicação dos pressupostos (1) e (2) é que, se a editora não identificar e publicar o melhor livro, o autor optará pela autopublicação. As consequências para a editora são as seguintes: se ela procurar o melhor livro, não haverá concorrência, ao passo que, se não o fizer, e o manuscrito X não for o melhor livro, ela enfrentará concorrência. Para calcular a taxa mínima para um manuscrito de livro, faremos mais uma suposição. Se nenhum livro for publicado por uma editora, o retorno esperado para um autor da autopublicação, mesmo que ambos os livros sejam publicados, é positivo. Formalmente: (3)

Observe que, dadas nossas suposições de simetria, , uma implicação de (3) é que, se um autor receber uma oferta de livro e se a autopublicação for possível, a alternativa é autopublicar com o lucro dado por (3). Nesse caso, um autor deverá receber pelo menos uma taxa pelo seu manuscrito para garantir a aceitação.53

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Lema 1: é mais provável que uma editora procure o melhor manuscrito quando a autopublicação for uma ameaça crível. Prova: se a autopublicação não for uma opção crível, a busca será mais lucrativa se o aumento esperado nas vendas quando Y for o melhor livro superar o custo da busca, ou seja: (4)

Se a autopublicação for uma opção crível e a editora não procurar o melhor livro, o lucro esperado é dado por: (5)

mas se a editora procurar, os lucros esperados são dados por: (6)

Comparando (5) e (6), e lembrando que Ax = Ay, a busca é mais lucrativa se o valor esperado das vendas líquidas obtidas, como resultado da busca, exceder o custo da busca: (7)

Comparando (4) com (7), fica claro que (7) é muito mais provável de sustentar, o que prova o lema. Esse resultado não implica necessariamente que as editoras se tornarão mais ativas. Já o contrário pode acontecer, devido à suposição de que, se a editora não publicar nenhum manuscrito, ambos os autores se autopublicarão. Isso abre uma estratégia adicional para a editora, uma estratégia wait-and-see, na qual a editora deixa o mercado identificar o melhor livro e, então, usa o fato de ter maior capacidade de comercializar o livro contratando o melhor livro uma vez que ele se provou. Suponha que, se nenhum manuscrito foi aceito pela editora, os autores decidirão se irão se autopublicar sem saber a decisão de qualquer rival em potencial. Essa decisão de simultaneidade impediu qualquer estratégia wait-and-see por parte dos autores. A consequência da tomada de decisão sequencial será discutida abaixo. A equação (3) garante que ambos os autores se autopublicarão se nenhuma editora tiver escolhido seus livros. Se um autor recebe um contrato de livro depois de se autopublicar e vender S cópias, ele saberá que o livro dele é o melhor e que suas vendas futuras serão . Como o custo de publicação, f, é um custo irrecuperável, a taxa para o autor i teria que ser pelo menos: (8)

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A taxa que a editora espera pagar antes de avaliar qualquer manuscrito é dada por:

O objetivo é entender se essa estratégia de wait-and-see pode ser ideal para a editora. Para atender a demanda total, suponhamos que a editora ainda tenha que incorrer em custos de publicação e marketing, F. O próximo lema demonstra que isso é possível. Lema 2: se o custo de busca e avaliação de manuscritos for relativamente alto e o autor de autopublicação for relativamente fraco em realizar a demanda potencial total, a editora optará por deixar os autores investirem na autopublicação primeiro e depois comprar os direitos dos livros bem-sucedidos. Prova: o lucro para a editora se ela optar por procurar, de (6), é dado por: (9)

enquanto o lucro de decidir wait-and-see é:54 (10)

Observe que wait-and-see domina a busca se: (11)

O lado direito de (11) é positivo, então uma condição necessária, mas não suficiente para que a desigualdade seja satisfeita, é C > f. O primeiro termo do lado direito é relativamente pequeno, pois supomos que o livro mais fraco não impõe uma grande restrição competitiva ao livro melhor. O segundo termo aumenta se µ = 0. Consideremos:

Então, para qualquer C >f + Δ, existe µ* >0 tal que, para todo µ > µ*, a igualdade em (12) é satisfeita. Os parâmetros-chave são então C e µ. Ou seja, para que a estratégia de wait-and-see seja dominante, o custo de busca e avaliação de manuscritos deve ser relativamente alto e o autor de autopublicação deve ser relativamente fraco em explorar a demanda total. Isso comprova o lema. Comparando o lema 1 e o lema 2, o modelo demonstra como a autopublicação poderia, em teoria, levar a mais esforço da editora ou a mais autopublicações iniciais. Cada estratégia tem um impacto diferente nas listas de mais vendidos. A primeira estratégia deve ver

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uma queda no número de livros autopublicados que entram na lista; a segunda é levar a um aumento no número de títulos de sucesso que foram originalmente ou anteriormente autopublicados. Um autor está em melhor situação se mais receita for gerada pela estratégia wait-and-see. Para o autor do melhor livro, isso requer que , que é verdadeiro como

Assim, embora seja ambíguo se a taxa é maior quando a editora escolhe a estratégia wait-and-see, em conjunto com o valor das vendas iniciais, o autor do melhor livro fica em situação favorável quando essa estratégia é empregada. De uma perspectiva ex-ante, a receita esperada da estratégia wait-and-see é ½(E(AiWaS) + PS) + ½ E(di/j)-f que é igual E(Ai). Baseado em uma perspectiva ex-ante, o autor que desconhece a qualidade de seu manuscrito fica indiferente entre as duas estratégias. Finalmente, como a estratégia wait-and-see dá origem a mais diversidade, pode-se argumentar que os consumidores também estão em melhor situação com tal estratégia. O modelo é claramente estilizado e conscientemente evitou quaisquer efeitos de sinalização ou transmissão de informações decorrentes do comportamento da editora. De maneira geral, o mecanismo de revelação de informações foi mantido de maneira simples. Para uma tentativa de modelar isso, veja Peukert e Reimers (2018). Seu modelo se concentra em aprender com as vendas observadas e formaliza o processo pelo qual a estratégia wait-and-see leva ao aprendizado. Supõe-se que, se nenhum manuscrito for aceito pela editora, os autores decidirão simultaneamente se irão se autopublicar ou não. Se há um valor estipulado para um autor, com base em uma estratégia wait-and-see, depende do custo de se criar um livro deficitário, o que é evitado se comparado a qualquer perda de vendas por se estar em segundo lugar. Delinear isso exigiria um modelo mais dinâmico, considerando o efeito sobre as vendas de livros concorrentes de forma mais ampla. Um possível argumento a favor da abordagem simultânea é que é mais fácil realizar a avaliação de méritos relativos quando a alternativa é um livro publicado e comercializado profissionalmente.

IMPLICAÇÕES QUE PODEM SER TESTADAS

Cada estratégia tem um impacto diferente nas listas de mais vendidos. O aumento da busca e o escrutínio mais minucioso dos manuscritos de-

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vem garantir que as editoras tradicionais mantenham seu papel de guardiãs do negócio editorial e deem origem a apenas alguns livros autopublicados entrando nas listas de best-sellers. O uso da autopublicação como mecanismo de revelação de informações deve levar a um aumento no número de títulos autopublicados bem-sucedidos, pelo menos temporariamente, até que o autor seja contratado, embora isso seja possível também de forma permanente, pois alguns autores podem acabar gostando de permanecer no controle. As estratégias têm ainda impacto na cauda longa, que é separada do efeito direto de um aumento do número de livros na cauda decorrente do custo muito menor da autopublicação. Em comparação com a estratégia de “não fazer nada”, qualquer um dos meios de aprender sobre a qualidade de um manuscrito deve levar os grandes editores a terem menos publicações na cauda, ou seja, menos fracassos. De forma geral, isso deve levar as grandes editoras a publicar menos livros, deixando mais manuscritos para serem publicados por editoras menores, bem como por autores. É importante ressaltar que isso deve se manifestar em grandes editoras experimentando uma queda maior na participação das vendas unitárias do que na receita. A estratégia wait-and-see, seja empregada por editoras ou autores, deve incentivar mais autopublicação e, particularmente, mais investimento por parte do autor na promoção de seu livro, porque os benefícios esperados nesse caso são maiores, independentemente de continuarem a se autopublicar ou se assinarem um contrato com uma editora. A disponibilidade de dados é um grande obstáculo nos estudos da indústria do livro (Waldfogel; Reimers, 2015), e não temos informações ideais e prontamente disponíveis para testar qualquer uma das implicações da teoria mencionada acima. Esses dados exigiriam conhecer a história dos manuscritos de livros desde a ideia até a entrada em uma lista de best-sellers e ter elementos detalhados sobre a divisão dos lucros dos livros. Em vez disso, temos algumas fontes que são baseadas em uma metodologia de amostragem que não foi testada, alguns conjuntos são baseados em amostras muitas vezes tendenciosas ou relatos e observações empíricas casuais selecionadas da internet. Algumas dessas fontes referem-se a uma jurisdição específica, geralmente dos Estados Unidos, mas outras não. A combinação dessas fontes ainda pode nos permitir contar uma história que pode ou não apoiar algumas das estratégias propostas. Um aumento no número absoluto de livros autopublicados não é por si só suficiente para indicar que a estratégia wait-and-see ganhou força. Alguns dos relatórios anteriores da Authors Earnings analisaram quão bem representados os livros autopublicados estão

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nas listas de best-sellers e de mais lucrativos. Analisando dados dos Estados Unidos em sete trimestres, de fevereiro de 2014 a setembro de 2015, a Author Earnings55 considera a distribuição de autores que estão consistentemente56 ganhando pelo menos $ X por ano em quatro modos de publicação – (1) autopublicação (chamado de indie), (2) publicado na Amazon, (3) publicado tradicionalmente e (4) híbrido 57 – e condicionado ao momento em que o autor publicou seu primeiro livro. Curiosamente, o padrão permanece o mesmo se $ X for $ 10 mil, $ 25 mil, $ 50 mil, $ 100 mil ou mesmo $ 1 milhão, sugerindo que os insights são bastante robustos. As duas únicas categorias que realmente importam são autopublicadas e publicadas tradicionalmente. Para X = $ 10K, resumimos a parcela de autores autopublicados na figura 2. A parcela de autores autopublicados aumenta constantemente à medida que passamos de autores que publicaram seu primeiro livro em algum momento do século xx para aqueles que começaram a publicar depois de 2013. Enquanto aqueles que se autopublicam respondem por <40% de todos os autores com esse nível de renda, ao restringir a amostra ao grupo mais recente registrado, essa fração é >60%. A imagem consistente que surge de seus dados é que entre aqueles que publicaram seu primeiro livro nos últimos cinco anos, a maioria daqueles que tiveram sucesso na venda de e-books foram autopublicados.58 Isso é interessante, pois são autores que tiveram uma escolha significativa entre a publicação tradicional e a autopublicação desde o início de suas carreiras. Obviamente, seria bom ter esses insights verificados por outras fontes de dados, mas a capacidade de pelo menos alguns autores autopublicados de ter um bom desempenho sugere que as editoras não são as únicas guardiãs do negócio editorial. O relatório da Authors Earnings de janeiro de 2018 analisa um conjunto de dados mais abrangente do que os relatórios anteriores e abrange os três trimestres (Q2–Q4) de 2017.59 Do nosso ponto de vista, é interessante observar duas questões. Primeiro, os autores independentes autopublicados aparecem significativamente em sua lista de autores mais vendidos por valor, representando 7% do top 100, 20% do top 250, 24% do top 500 e 28% do top 1000. Em segundo lugar, eles descobriram que houve uma grande mudança na lista dos autores independentes mais bem pagos, de modo que muitos deles eram nomes relativamente novos, enquanto muitos dos superstars pioneiros indie não entraram na lista nova. Parece que os autores de autopublicação estão se tornando mais sintonizados com o novo meio e que podem ser eles que estão escolhendo uma estratégia de wait-and-see.

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Pode haver outras razões para as editoras se moverem rapidamente a fim de contratar novos talentos e para os autores publicarem por conta própria. As produtoras de cinema e tv também parecem estar monitorando os autores de autopublicação. De acordo com um artigo do The Guardian (Kean, 2017), “autores autopublicados de best-sellers atraem produtoras porque têm um histórico comprovado se permanecerem nas tabelas de vendas da Amazon ao longo do tempo”. Mesmo que haja algumas reservas sobre a qualidade ou confiabilidade dos dados da Author Earnings, a ameaça representada pela autopublicação quanto à centralidade das editoras tradicionais e seu papel de guardiãs do mercado editorial parece crível. Enquanto as estratégias wait-and-see e de autopublicação trazem mais risco para o autor individual e o forçam a se tornar mais empreendedor, a redução nos custos e nas complexidades da autopublicação e o apoio disponível de novos intermediários e varejistas sugerem que os autores podem e assumem mais controle. A disponibilidade de uma opção externa confiável provavelmente beneficiará os autores em geral, incluindo aqueles que optaram por ser tradicionalmente publicados.

PROBLEMAS FUTUROS: A CAUDA LONGA E OS NOVOS GUARDIÕES

Anteriormente, argumentamos que é provável que os autores se beneficiarão financeiramente da digitalização, seja diretamente, por meio da autopublicação, ou indiretamente, através da negociação de melhores condições. No entanto, isso pode ser atenuado por um efeito adverso significativo da entrada excessiva no setor. Esse fenômeno, muitas vezes referido como a cauda longa (Brynjolfsson et al., 2006, 2010), diz respeito ao grande número de livros que dificilmente vendem cópias e raramente são revisados por profissionais ou leitores. O grande número de livros disponíveis cria um problema para o autor e para o potencial leitor. No passado, as editoras atuavam como guardiãs, junto com os revisores de livros profissionais estabelecidos. O grande aumento de livros autopublicados prejudicou não apenas o papel das editoras, mas também a posição dos revisores, que nunca poderiam esperar cobrir nem mesmo uma fração dos livros publicados. Enquanto alguns deram as boas-vindas a um mundo sem guardiões, outros demonstraram que esse mundo não é para todos. A necessidade de guardiões, ou pelo menos agregadores de informação, surge porque os livros são bens de experiência em que a amos-

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tragem é cara no tempo, porque a qualidade do livro não é conhecida com certeza até que a última página tenha sido lida e, mesmo assim, potencialmente não muito informativa (o autor pode ser uma maravilha com somente um sucesso). A amostragem de um capítulo pode ajudar o leitor a decidir se gosta do estilo de escrita, mas não determina se o autor é capaz de entregar um enredo adequado ou cativar um leitor por todo o livro. Além disso, para a maioria dos livros e dos leitores, o livro será lido apenas uma vez. Dessa forma, ele difere de outros produtos fornecidos pela indústria criativa, como música e videogames, em que muito pode ser aprendido por amostragem e o produto provavelmente será usado mais de uma vez. Uma consequência é que, como consumidores, experimentamos muito pouco, selecionando trabalhos de autores testados e aprovados, ou adotando a visão de outros, contando com as tradicionais avaliações de “especialistas”, pela massa de avaliações de clientes possibilitadas pela internet ou pelas recomendações de funcionários treinados da livraria (Chevalier; Beinecke; Mayzlin, 2006). A busca por livros é simultaneamente facilitada pela internet e desabilitada pelo fenômeno da “agulha no palheiro”, principalmente porque é fácil perder a confiança de que você reconhecerá a agulha quando a vir. Em tudo isso, autor e leitor enfrentam um problema interligado: como um autor pode se tornar visível para que sua obra seja encontrada? Esse problema pode ser resolvido por serviços de internet cada vez mais sofisticados para alguns consumidores, mas é improvável que seja resolvido. Isso apresenta um problema com o alcance do objetivo político de diversidade cultural que provavelmente exacerbará os problemas existentes com acesso para todos (Shaver, 2014). As estratégias que os autores podem empregar para atrair a atenção, como estabelecer preços muito baixos ou mesmo ofertas gratuitas, podem sair pela culatra, porque os leitores pesquisam com menos cuidado quando o livro é (quase) gratuito e, portanto, a correspondência entre autor e livro é, em média, não tão boa. Uma correspondência ruim pode resultar em uma revisão negativa apenas por esse motivo – um efeito identificado em Zegners (2016a, 2016b). É interessante notar que dois novos desenvolvimentos em lojas físicas são capazes de sugerir que resolver o problema de busca apenas por meio de plataformas online pode ser difícil. Primeiro, a Amazon agora tem quinze livrarias, incluindo uma que acabou de abrir em Washington, e em breve abrirá uma em um subúrbio da capital do estado de Idaho, nos Estados Unidos.60 De modo geral, o número de livrarias independentes nos eua, após um período de declínio, agora está aumentando.61 Se isso se estenderá ao Reino Unido, ainda não está claro.

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Um problema com os guardiões é que a maioria dos leitores prefere consultar apenas um, e a maioria dos autores prefere lidar com apenas um. Essa preferência pelo monopólio do ponto de vista do serviço pode levar a problemas no futuro, especialmente se for inevitável que, para guardiões serem úteis, eles também precisam ser poderosos. Nesse caso, podemos apenas ter trocado um grupo de intermediários poderosos por outro.

CONCLUSÕES

Este artigo mostrou como a indústria do livro mudou significativamente por conta da digitalização, uma vez que houve entrada significativa de e-readers no mercado. A internet e, particularmente, o desenvolvimento do e-book criaram tipos de prestadores de serviços e varejistas. Eles desafiam as editoras tradicionais, permitindo que os autores as ignorem completamente ou, pelo menos, ameacem fazê-lo. O provável efeito da redução do custo de entrada para um autor que pode navegar no labirinto da autopublicação é um aumento no número de trabalhos publicados. Indiscutivelmente, a questão principal não é mais como podemos garantir que as recompensas financeiras para os autores sejam tais que um número e uma variedade adequados de livros sejam produzidos e publicados. De fato, os incentivos agora parecem poderosos demais e, assim como a tecnologia disruptiva em outros mercados desafiou a forma como esses mercados foram regidos legalmente, talvez precisemos fazer o mesmo para as indústrias criativas e o desenvolvimento das leis de direitos autorais. Com a autopublicação, os autores podem pelo menos permanecer como titulares de seus direitos, o que significa que os autores estão mais bem posicionados para explorá-los ou contratar especialistas para funções específicas. Isso não significa que as editoras tradicionais sejam obsoletas. Elas oferecem importante apoio aos autores na produção, distribuição e comercialização de suas obras, sem exigir qualquer despesa inicial do autor. Grandes editoras têm experiência interna em cada uma dessas diferentes etapas. A maioria dos autores autopublicados terá dificuldades para satisfazer todos esses papéis com um padrão tão alto e, portanto, pode precisar contratar esse trabalho com especialistas se quiserem competir em um mercado potencialmente global. No geral, a autopublicação exige que os autores sejam verdadeiros empreendedores.

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Em última análise, pode não ser o poder das plataformas da internet que molda essa indústria, a não ser possivelmente para o conjunto restrito de best-sellers, mas sim as maneiras pelas quais autores e consumidores lidam com o problema da cauda longa. O risco de falha de mercado, portanto, mudou o foco para a implicação de informações assimétricas sobre a qualidade dos livros, e intervenções futuras podem ser necessárias para garantir que o mercado funcione para o interesse de leitores e autores. Embora este artigo tenha se concentrado nos mercados dos Estados Unidos e do Reino Unido, desenvolvimentos semelhantes estão acontecendo em outros lugares. Claramente, a difusão da inovação digital existente está ocorrendo fora dos mercados dos Estados Unidos/ Reino Unido, e as inovações também, como ilustrado, por exemplo, pela nova plataforma digital francesa Librinova. Uma das aparentes barreiras à inovação é a tradição em vários países, incluindo Estados-membros da ue, de ter preços fixos para os livros, intervenção que, por ser realizada a nível nacional, está fora do alcance de fazer cumprir a lei da concorrência da ue (Poort; Van Eijk, 2017). Países menores, como a Dinamarca, que abandonaram os preços fixos, parecem ter um bom desempenho nas frentes mais relevantes, incluindo o número de livros produzidos e a proporção da população que compra e lê livros.

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Notas 1 Artigo originalmente publicado em inglês: Izquierdo, S. et al. “From Publishers to Self-Publishing: the Disruptive Effects of Digitalisation on the Book Industry”. em: International Journal of Cultural Policy, v. 26, n. 3, 2019, pp. 355–81. Disponível em: tandfonline.com/ doi/abs/10.1080/13571516.2019.1611198?journalCode=cijb20. [N. do org.] 2 Morten Hviid, Sofia Izquierdo Sanchez e Sabine Jacques são, todos, membros do CREATe Festival, e agradecem o apoio financeiro da instituição com gratidão. Uma versão anterior deste artigo foi apresentada em seminário científico, de 2016, sobre “Concorrência e regulamentação em infraestrutura e mercados digitais”, em Florença, na Itália. Agradecemos aos participantes e, em particular, à nossa debatedora, Virginia Silvestri, pelos comentários e pelas sugestões úteis. Os autores também gostariam de agradecer ao editor e a um parecerista anônimo desta revista, a Lynne Chave, David Reader, Ruth Towse e a um parecerista anônimo da série de documentos de trabalho CREATe por seus comentários sobre um rascunho anterior. A isenção de responsabilidade usual se aplica. 3 A terminologia ainda não está totalmente definida, e outros usam as variações “ebook” ou “eBook”. 4 Embora a digitalização de livros tenha começado em 1971 (com o projeto Gutenberg) ou possivelmente antes, e os e-readers também tenham surgido relativamente cedo, o primeiro leitor de e-books comercialmente bem-sucedido foi o Amazon Kindle. 5 Os Estados Unidos e o Reino Unido são os dois maiores mercados em vendas de e-books (veja thebookseller.com/news/self-published-titles-22-e-book-market-325152). O que surge dos dados existentes do setor é uma indicação clara de que a autopublicação é um potencial divisor de águas. Bowker, usando dados de livros com isbns, descobriu que o número de isbns autopublicados aumentou de 247.210 em 2011 para 786.935 em 2016 (Disponível em: bowker.com/news/2017/Self-Publishing-ISBNs-Climbed-8-Between-2015-2016.html. Acessado em 2019). Consequentemente, precisamos repensar a estrutura regulatória em

torno do setor e avaliar seu comportamento e lobby à luz disso. Embora as vendas de e-books nos Estados Unidos tenham caído em 2015 (veja theguardian.com/books/2017/mar/14/ebook-sales-continue-to-fall-nielsen-survey-uk-book-sales), isso tem sido muito contestado. Pesquisa realizada pela Author Earnings constata que um número crescente de livros eletrônicos não tem número isbn e que esses livros não seriam contabilizados nas estatísticas tradicionais. Assim, os dados em que se baseava a alegação sobre o declínio das vendas eram os e-books sub-representados. 6 No entanto, considere a refutação de John James Audubon, cujo primeiro livro, The Birds of America, foi autopublicado e essencialmente financiado por assinatura de crowdfunding. Autores criativos e afortunados podem sempre ter conseguido contornar as editoras guardiãs. 7 Thompson (2012), a grande proeza da história e realidade atual da publicação de livros, quase não dedica tempo para a autopublicação (só há uma menção feita na p. 154). O desenvolvimento que ocorreu aproximadamente nos cinco anos desde a publicação de seu livro é muito marcante e justifica amplamente as visões mais otimistas sobre os desenvolvimentos. Thompson argumenta que o Reino Unido publica mais livros per capita que qualquer outro país. Ademais, eles apresentam um pequeno número de empresas muito grandes que controlam uma parcela significativa do mercado. 8 Esses números devem ser vistos com alguma cautela. Sabemos que existe uma atividade considerável de fusões e aquisições nesse setor. Não está claro se na aquisição a antiga marca ou número de iva deixa de existir. Assim, o número de editoras registradas no iva pode não corresponder aos tomadores de decisão independentes reais no setor. 9 Os números na tabela podem exagerar a participação de mercado real das grandes editoras devido ao aumento de e-books sem isbn que não seriam contabilizados nos dados oficiais (Disponível em: authorearnings.com/ report/november-2015-the-uk-report-author-earnings-on-amazon-co-uk/. Acessado em 2019).

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10 A fusão de £2,4 bilhões entre a Penguin Books e a Random House, criando a maior editora de livros do setor. 11 Esse recurso não é exclusivo da publicação de livros. Waldfogel e Reimers (2015) mencionam uma estrutura semelhante na indústria da música. 12 Esses eram os antigos Big Six: Hachette, Harper Collins, Macmillan, Penguin, Random House e Simon & Schuster. Após a fusão da Penguin e da Random House, as atuais Big Five são: Bertelsmann (Penguin Random House/ Transworld), Hachette Livre UK (Headline/ Hodder/Little Brown/Orion), News Corporation (HarperCollins), Holtzbrinck (Pan Macmillan) e Simon & Schuster. 13 Estados Unidos v. Apple, Inc. 13-3741-cv (L), Tribunal de Recursos dos Estados Unidos para a decisão do Segundo Circuito de 30 de junho de 2015, pp. 15–16. 14 Veja o capítulo 1 de Thompson (2012) para mais detalhes. 15 Veja authorearnings.com/report/november-2015-the-uk-report-author-earnings-on-amazon-co-uk/. Acessado em 2019. 16 Estados Unidos v. Apple, Inc. 13-3741-cv (L), Tribunal de Recursos dos Estados Unidos para a decisão do Segundo Circuito de 30 de junho de 2015. 17 Note que este não é um cenário estabelecido. Por exemplo, nas plataformas de assinatura de e-books, entre julho e setembro de 2015, duas das quatro plataformas, Entitle e Oyster, encerraram suas operações. 18 Informações completas disponíveis em: kdp. amazon.com/help?topicId1⁄4A156OS90J7RDN. 19 Os autores precisam passar pelo Smashwords, INscribed Digital, BookBaby ou Draft2Digital para fazer o upload de seus trabalhos. Informações completas disponíveis em scribd.com/about. 20 Essa seção enfoca no Reino Unido. As leis de direitos autorais europeias diferem e as sociedades de gestão coletiva, contratos padrão e várias formas de políticas literárias desempenham papéis diferentes em diferentes mercados. 21 Por meio de seu paradigma, a lei de direitos autorais fornece um recurso legal para aumentar a quantidade e variedade de obras culturais produzidas e divulgadas.

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Isso provavelmente aumentará com a redução dos custos de transação ligados à autopublicação e a consequente maior concorrência na indústria do livro. 22 Seção 16(1) cdpa e seções 17–21 cdpa. 23 Além desses direitos econômicos, o cdpa também concede direitos adicionais a certas obras autorais que se qualificam para proteção de direitos autorais. Esses “direitos morais” adicionais são conferidos apenas ao autor para proteger certos interesses não econômicos dele. Independentemente de os direitos econômicos de uma obra serem transferidos, o autor mantém os direitos morais que garantem que ele, ainda assim, mantenha algum grau de controle sobre os usos subsequentes de suas obras. Os direitos morais também promovem o interesse público geral, na medida em que protegem a integridade das obras, garantindo que o público seja exposto a uma obra conforme pretendido pelo seu autor e asseguram ao público que qualquer trabalho seja devidamente atribuído. 24 Seções 12(2) e 12(8) cdpa. 25 Seção 11 cdpa. Exceções a isso são feitas, por exemplo, no caso de obras criadas por funcionários. 26 Seções 1(1)(c) e 8 cdpa. Sterling (2015, pp. 245–28). 27 Seções 12 e 15A cdpa. 28 Há um debate geral sobre se a diminuição da pirataria afeta as vendas legítimas. Para livros de um experimento de campo realizado na Polônia, Hardy, Krawczyk e Tyrowicz (2014) “não encontram evidências de uma mudança significativa nas vendas devido à disponibilização de cópias piratas na internet” (p. 17). Por outro lado, Reimers (2016), em estudo mais extenso, constata um efeito positivo da proteção à pirataria na venda legal de livros, mas que o efeito depende de vários fatores, inclusive do formato da edição. “Embora os formatos físicos não sejam afetados pela proteção contra pirataria, substitutos mais próximos da pirataria online, como e-books distribuídos legalmente, apresentam um aumento médio relacionado à proteção diferencial nas vendas de pelo menos 14%” (Reimers, 2016, p. 414). 29 Esses bloqueios digitais (mais conhecidos como bloqueios de gerenciamento de direitos

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digitais [gdd]) restauram, de certa forma, as fronteiras territoriais, permitindo que editoras e distribuidoras compartilhem o mercado de livros em um ambiente online. O gdd é usado para: “(1) controlar o acesso e a cópia de reproduções e (2) administrar informações relacionadas ao exercício de direitos (por exemplo, em sistemas de coleta e distribuição de royalties)”, conforme Sterling (2015, p. 208). Como observa Vaver (2006, p. 6), seu sistema leva a uma situação complexa em que as editoras fazem lobby nos legislativos, argumentando que o mundo digital mudou tudo o que exige mais proteção legal, mas, simultaneamente, se os autores vão às editoras para obter maior participação nos lucros vinculados à distribuição das obras em diferentes formatos, essas alegações são geralmente rejeitadas com base no fato de que o mundo digital não mudou as condições. Isso também tem consequências no regime fiscal aplicável aos e-books. O tjue terá de decidir se a Diretiva 2009/47/ce do Conselho, de 5 de maio de 2009, que altera a Diretiva 2006/112/ce no que diz respeito às taxas reduzidas do imposto sobre o valor agregado (oj 2009, l 116, p. 18), é inválida pelo fato de violar o “princípio da neutralidade fiscal na medida em que exclui a aplicação de alíquotas reduzidas impostos aos livros publicados em formato digital e outras publicações eletrônicas”. Uma vez que os e-books são considerados uma prestação de serviços, estas obras culturais estão sujeitas à alíquota normal de iva, enquanto os livros em papel se beneficiam de uma alíquota reduzida. Com a proposta da nova Diretiva de Direitos Autorais, o legislador da ue parece favorecer uma diferenciação nas alíquotas de iva. 30 Seções 296-296ZF cdpa implementando o artigo 6 da Diretiva Infosoc. Para mais informações sobre o artigo 6, veja Becker et al., 2003, p. 463. 31 Essa descrição não deve ser entendida como uma afirmação de que não existe nenhum mecanismo para os tribunais do Reino Unido repararem a injustiça de uma relação contratual desequilibrada. De fato, os tribunais do Reino Unido consideraram anuláveis os contratos nos quais havia uma manifesta desigualdade de poderes de barganha, mas existem vários obstáculos para a parte mais fraca. Conforme os

casos a seguir: Peer International Corp versus Termidor Music Publishers (n. 1) (2003) EWCA Civ 1156 (23); Lloyds Bank Ltd vs. Bundy (1974) 3 Todos. E.R. 757 (765); Clifford Davis Management Ltd vs. WEA Records Ltd (1975) 1 Todos. E.R. 237 (240) (Denning LJ citando Diplock LJ em Schroeder Music Publishing Co Ltd vs. Macaulay); Schroeder Music Publishing Co Ltd vs. Macaulay (1974) 3 Todos E.R. 616 (624); Fry vs. Lane (1888) 40 Ch D 312 (Kay 2016). 32 O conjunto de dados e o relatório estão disponíveis em: authorearnings.com/results. Os dados começam em 2014, vários anos depois que a autopublicação se tornou uma escolha crível no mercado. Isso é um obstáculo para a análise das tendências editoriais, mas permite uma visão detalhada do mercado. 33 Vale notar que essa é uma pesquisa aberta à qual as pessoas continuam respondendo. Assim, esta não é uma pesquisa representativa. Além disso, como o primeiro entrevistado em nossa amostra respondeu à pesquisa em 8 de fevereiro de 2014 e, o último, em 18 de fevereiro de 2016, não podemos garantir que a mesma pessoa não tenha respondido várias vezes. Também removemos vários valores discrepantes em que os autores forneceram respostas extremas, como receitas totais estimadas de livros tradicionalmente publicados de US$ 160 milhões ou publicação de mais de duzentos livros. 34 Desses últimos, vinte também declararam que sua editora principal, com base nas receitas, era uma das Big Five ou uma editora menor. 35 Os dados sobre o número de autores que autopublicam e o número de livros autopublicados são muito limitados. 36 Os autores com menos de um ano de experiência foram eliminados. 37 Observe que há um grau de ambiguidade na pergunta. Enquanto que “esperar” implica uma escolha, “planejar” pode ser por necessidade. Essa pergunta foi respondida por 1.679 dos entrevistados, levando à perda de oito que autopublicam e dezessete editoras tradicionais. 38 Na versão do documento de trabalho (zenodo.org/record/321609/files/CREATe-Working-Paper-2017-06.pdf ), relatamos uma análise econométrica mais formal que confirma a correlação entre o sucesso em relação a poder ganhar a vida em tempo integral como autor e

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ter a experiência de modos alternativos de publicação. Isso pode indicar que autores mais empreendedores tendem a se sair melhor. 39 Os valores nessas células são positivos, mas pequenos. 40 Uma pesquisa mais recente encomendada pelos autores Jane Friedman e Harry Bingham, cobrindo principalmente autores publicados tradicionalmente, descobriu que mais de 75% dos entrevistados consideraram tanto a contribuição editorial quanto a editoração de sua editora boas ou excelentes. Veja a pergunta Q7 e Q8 no relatório disponível em: janefriedman.com/author-survey-results/. 41 Um ponto fraco dos dados é que não sabemos se o autor teve uma verdadeira escolha de permanecer com uma editora. Caso contrário, a infelicidade relatada pode simplesmente refletir um autor justificando uma mudança forçada – o empurrão é imposto. 42 Na versão de documento de trabalho (veja zenodo.org/record/321609/files/CREATe-Working-Paper-2017-06.pdf ), relatamos uma análise econométrica mais formal que confirma a correlação entre ser um autor de autopublicação bem-sucedido e contratar uma editora – nenhuma correção entre o sucesso e a compra de arte da capa foi encontrada. Também encontramos uma correlação negativa entre a probabilidade de mudar da autopublicação para a publicação tradicional e a contratação de uma editora. Se não ter uma editora torna menos provável que o autor de autopublicação seja bem-sucedido, isso pode explicar parte da motivação para o desejo de mudar. 43 Embora intuitivamente se possa esperar que as editoras sempre sejam capazes de superar os autores, isso geralmente não é verdade. Carolan e Evain (2013) fornecem alguns estudos de caso ilustrativos em que o marketing é conduzido pelo autor. 44 Um exemplo dramático disso é Harry Potter, uma das séries de livros de maior sucesso na indústria e particularmente no Reino Unido. Mesmo a Bloomsbury, embora disposta a arriscar e publicar o livro, ficou surpresa com seu sucesso final porque não conseguiu identificar o manuscrito como mais promissor que qualquer outro livro infantil. O caso é testemunho da dificuldade que mesmo os profissionais têm em avaliar o mérito comercial de um manuscrito.

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45 Alguns outros livros autopublicados de sucesso são Wool (2012), de Hugh Howey, que vendeu mais de meio milhão de cópias pelo Kindle Direct Publishing; Perdido em Marte (2011), de Andy Weir, que se tornou um filme de sucesso; e The Kissing Booth (2012), escrito por Beth Reekles, de 17 anos, que mais tarde assinou um contrato de três livros de um milhão de dólares com o selo Delacorte da Random House. 46 Se as editoras responderem a isso oferecendo pagamentos antecipados menores, o incentivo para cada autor procurar uma editora é muito inferior. Consequentemente, os melhores livros podem nunca ser oferecidos às editoras primeiro. 47 Embora isso seja extremo, dado o grande volume de manuscritos, a chance de dois livros serem descobertos por duas editoras diferentes ao mesmo tempo é pequena. Por exemplo, se considerarmos o caso do Reino Unido, de acordo com o relatório da International Publishers Association de 2013, em 2014, foram publicados 184 mil títulos novos e revisados em 2013, ou seja, 2.875 títulos por milhão de habitantes. 48 Se a editora decidir publicar o livro, ela adquire o manuscrito do autor e negocia a taxa de royalties futura a ser paga ao autor, incluindo qualquer adiantamento sobre royalties futuros. 49 Excluímos explicitamente a estratégia em que a editora simplesmente fecha um contrato com os dois manuscritos. Se l for muito pequeno e/ou f grande, o lucro esperado da autopublicação é pequeno e seria relativamente barato adquirir os dois manuscritos, e se F também for pequeno, isso pode até valer a pena. Oferecemos duas motivações. Primeiro, estamos interessados nos casos em que a autopublicação é uma estratégia realista. Em segundo lugar, qualquer resultado que valha a pena essencialmente impedir o mercado de autopublicação de desaparecer quando o número de editoras e/ou manuscritos aumentasse. 50 Uma possível justificativa é que tais publicações normalmente são anunciadas com bastante antecedência da data da publicação. 51 A revelação um tanto artificial de informações simplifica consideravelmente a análise, pois nenhuma sinalização está implícita na ação da editora. Uma suposição alternativa é

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que a autopublicação é rápida para que, tendo lido o livro concorrente, um autor não publicado possa avaliar o livro e publicar seu próprio livro sem perder muita demanda futura. 52 Uma justificativa para isso é que os livros autopublicados são apenas avaliados pelos leitores e, portanto, é necessário um número mínimo de vendas para acumular resenhas suficientes para que a qualidade (isto é, a demanda latente) seja revelada. 53 A opção externa ocorre quando a autopublicação não é uma opção e foi normalizada para zero. Como Peukert e Reimers (2018) destacam, uma consequência dessa opção é que, ao negociar com uma editora, a taxa esperada aumentou e, como se presumia, a oferta geral de manuscritos também cresceu. 54 Ao calcular isso, fazemos duas suposições, as quais tornam a estratégia wait-and-see menos atraente. Uma é que, apesar de o autor ter gastado f, a editora ainda precisa gastar F para alcançar um público maior. A segunda é que não incluímos nenhum custo para encontrar e ler o manuscrito X em primeiro lugar. 55 Relatório “Individual Author Earnings Tracked Across 7 Quarters, fev. 2014-set. 2015”. Disponível em: authorearnings.com/report/ individual-author-earnings-tracked-across-7-quarters-feb-2014-sept-2015/. Acessado em 2019. É importante observar que esses autores ganham mais de $ xk por ano de forma

consistente apenas com o subconjunto de seus livros Kindle que aparecem nas listas de mais vendidos da Amazon. Assim, isso claramente subestima os ganhos totais dos autores. 56 Ou seja, o autor ganhou pelo menos $ X em dois dos sete trimestres. A esperança deles é que eles tenham excluído a “maravilha de um dia”. 57 Um autor é classificado como “híbrido” se pelo menos 25% dos seus ganhos vierem de mais de uma rota de publicação. 58 Uma explicação alternativa é que isso é simplesmente o resultado de mais livros autopublicados. Se o número de livros de sucesso aumenta com o número de livros escritos, então mecanicamente se a fração de livros publicados por autores autopublicados aumenta ao longo do tempo, então a fração de livros autopublicados de sucesso também aumentaria. 59 Disponível em: authorearnings.com/report/ january-2018-report-us-online-book-sales-q2-q4-2017/. 60 Veja idahostatesman.com/news/business/ article206393779.html. 61 Veja o resumo estendido de Raffaelli, R. “Reframing Collective Identity in Response to Multiple Technological Discontinuities: the Novel Resurgence of Independent Booksellers, 1995–2015” (31 = 2 anos de esforço de coleta de dados de campo completo, primeiro manuscrito em andamento).

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CHRISTIAN HANDKE é professor associado de Economia Cultural com ius promovendi na Erasmus University, em Roterdã. A pesquisa de Handke se concentra na economia cultural e na economia dos direitos autorais, inovação e mudança tecnológica, indústrias culturais/criativas e de mídia, assim como na mineração de textos e dados. Entre outras atividades, é atualmente editor associado do Journal of Cultural Economics e presidente da Society for Economic Research on Copyright Issues. Prestou consultoria para diversas organizações públicas e privadas, incluindo a Comissão Europeia, as National Academies of the Sciences (EUA), a Industry Canada, o UK Intellectual Property Office, a Comissão Federal Alemã de Especialistas em Pesquisa e Inovação (EFI), o Ministério Federal de Justiça e Proteção ao Consumidor, da Alemanha, e a Fundación Autor, da Espanha.


Propriedade intelectual nas indústrias criativas: a perspectiva econômica1 CHRISTIAN HANDKE

INTRODUÇÃO

Este artigo discute elementos essenciais de uma análise econômica sobre as implicações socioeconômicas da propriedade intelectual (pi). O objetivo é ajudar acadêmicos de várias disciplinas interessados no raciocínio econômico por trás da pi para indústrias criativas a reconhecerem avaliações logicamente consistentes e completas ou a desenvolvê-las por conta própria. A instituição legal da pi é um elemento central nas indústrias criativas contemporâneas. Muitas empresas das indústrias criativas recebem a maior parte de suas receitas com a venda de cópias de obras protegidas por direitos autorais ou com o licenciamento de direitos autorais.2 Assim, a maior parte deste texto se concentra principalmente nesse tipo específico de pi. A análise econômica fundamental dos direitos autorais é muito semelhante à das patentes, e até mesmo a essência geral dos resultados quantitativos-empíricos sobre os efeitos desses dois tipos de pi tem uma boa correspondência. Nas seções posteriores deste artigo, discutimos brevemente como outros tipos de pi se relacionam com as indústrias criativas e como, em particular, a literatura econômica relativamente extensa sobre patentes pode alimentar pesquisas sobre pi e indústrias criativas. Nos debates normativos sobre pi, alguma reflexão sobre argumentos econômicos é quase difundida. No entanto, pode ser complicado argumentar economicamente a favor da pi e aproveitar a economia para ajudar a desenvolver sistemas de pi adequados. O problema não é apenas que os economistas sejam briguentos e defendam visões contraditórias sobre pi e seus benefícios nos mercados

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reais. Há também uma tendência na bolsa de estudos, consultoria e lobby relacionados à pi de aplicar a economia de forma superficial e incompleta, o que pode facilmente levar a conclusões muito questionáveis (Beer, 2016). Consideremos apenas um exemplo: seguindo uma tradição nos primeiros comentários econômicos sobre pi, alguns a tratam como estabelecimento de monopólios. Semelhante a muitos outros, o acadêmico Kitch (2000) se opôs e chamou isso de um dos “erros persistentes e elementares na análise econômica da pi” em um artigo amplamente citado. No entanto, qualquer pessoa familiarizada com economia aplicada saberá que em mercados reais não existe um monopólio perfeito.3 Nos mercados reais, as empresas podem desfrutar de mais ou menos poder de mercado, definido como a capacidade de cobrar preços acima dos custos marginais sem que a demanda caia a zero. A referência a monopólios como consequência da pi é um caso de jargão e simplificação, mas dificilmente uma questão que desafiaria a validade de grande parte da literatura econômica. É importante evitar tais críticas superficiais, pois elas podem inibir aplicações úteis da economia e desviar a atenção de desafios mais importantes na avaliação econômica da pi.

A PERSPECTIVA ECONÔMICA SOBRE PI E SEU USO: NOÇÕES BÁSICAS DE ECONOMIA DO BEM-ESTAR

Em poucas palavras, a economia trata de resolver os trade-offs entre extremidades concorrentes. Há uma série de aspectos complementares da teoria econômica que têm sido usados para esclarecer o caso dos direitos autorais. Em relação aos debates normativos, o ponto de partida óbvio é a economia do bem-estar padrão. Uma reivindicação à fama da economia é que a economia do bem-estar baseada na teoria do equilíbrio econômico identifica uma maneira de aproximar um estado ótimo: sob várias condições claramente especificadas, as transações voluntárias nos mercados levam a uma alocação de recursos que maximiza o bem-estar social. Uma inferência da teoria do equilíbrio econômico é que a economia oferece uma maneira de fazer declarações normativas sem a necessidade de fazer julgamentos subjetivos sobre como ponderar interesses divergentes de várias partes interessadas. A economia está preocupada em maximizar o bolo proverbial alocando recursos para que eles gerem a máxima utilidade agregada entre todos as partes interessadas. Pode ser sutil quanto à distribuição desejável dos peda-

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ços do bolo entre as partes envolvidas. Justiça ou equidade (no sentido de que todas as partes interessadas devem se beneficiar igualmente ou de acordo com sua contribuição para os processos de produção geradores de valor) não são um fim em si mesmo nesta estrutura. Na perspectiva econômica, portanto, é desafiador lidar com conceitos importantes no direito de pi, como a “remuneração equitativa” dos detentores de direitos na lei de direitos autorais. Quando as condições para uma alocação ótima de recursos por meio dos mercados são violadas, de modo que os mercados não gravitem em direção a um equilíbrio que maximize o bem-estar, os economistas falam de falha de mercado. As razões para as falhas de mercado incluem poder de mercado, efeitos externos e bens públicos, custos de transação, informações incompletas e assimétricas ou mercados ausentes. Na perspectiva econômica, a falha de mercado é uma condição necessária, mas não suficiente, para justificar políticas públicas voltadas para a correção dos resultados de mercado. A razão é que as políticas públicas são caras e acabam por distorcer a alocação de recursos por meio do mecanismo de mercado. Por um lado, a política pública operacional consome recursos que não estão disponíveis para outra atividade produtiva. Por outro lado, a regulação pública efetiva dos mercados significa que as decisões de alocação são fortemente influenciadas por um número relativamente pequeno de indivíduos que não sofrem todas as consequências. O controle centralizado, portanto, geralmente significa que as decisões são tomadas com informações incompletas e incentivos inadequados. Para justificar políticas públicas, como investimentos públicos na definição e aplicação de pi, as desvantagens resultantes das regulamentações precisam ser menores do que seus benefícios. Assim, a economia aplicada geralmente leva a uma análise de custo-benefício.4 Essa ponderação de custos e benefícios na economia do bem-estar aplicada em relação a mercados reais e imperfeitos é virtualmente inevitável. Como Lancaster e Lipsey (1956) demonstraram em sua teoria geral do segundo melhor, a remoção de um tipo de falha de mercado não aumenta de forma confiável o bem-estar social na presença de outros tipos de falha de mercado. No caso da política de direitos autorais, por exemplo, uma aplicação completa dos direitos exclusivos eliminaria as falhas de mercado devido aos atributos de bem público das obras criativas. Entretanto, inibir todo uso não autorizado de obras de direitos autorais exigiria grandes esforços, e alguém teria que arcar com os custos. Além disso, com a proteção de direitos autorais perfeita, os detentores

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de direitos poderiam desfrutar de amplo poder de mercado. Por isso, a política de direitos autorais ideal geralmente não visa a uma solução extrema – zero uso não autorizado ou nenhuma proteção de pi –, como discutiremos abaixo.

O PROCESSO DE ECONOMIA APLICADA E PI

A economia aplicada visa gerar previsões não triviais e válidas sobre as consequências de várias ações em mercados reais. Pode ser apenas descritiva ou pode invocar uma avaliação normativa. Economistas aplicados geralmente iniciam declarando explicitamente algumas observações ou suposições básicas e suas implicações. Comparando com estilos de argumentação mais soltos em outras disciplinas acadêmicas relacionadas à pi, isso às vezes pode diminuir o escopo da originalidade e do raciocínio holístico. A afirmação transparente de pressupostos fundamentais tem a vantagem, contudo, de que quaisquer fontes de erro ou desacordo podem ser identificadas de forma relativamente clara. No caso da pi, a maioria dos economistas começa apresentando duas fontes de falha de mercado: primeiro, as características de muitas obras criativas como bens públicos sem proteção de direitos autorais; segundo, o poder de mercado dos detentores de direitos com proteção efetiva de direitos autorais. Apesar de algumas vozes discordantes, a literatura econômica sobre propriedade intelectual e direitos autorais oferece uma estrutura estável para avaliar as consequências do uso não autorizado de obras criativas e proteção de direitos autorais. As aplicações sofisticadas da economia tendem a aumentar gradualmente a complexidade da análise. Isso poderia significar a incorporação de condições essenciais, claramente definidas no campo de interesse, que se desviam das estruturas de mercado arquetípicas, como mercados perfeitamente competitivos ou monopólios. Também pode significar distribuir a política de pi em seus vários componentes e abordar opções de política mais específicas do que uma escolha binária entre alguma ou nenhuma proteção de pi. Na literatura sobre pi, esse processo está bastante avançado em dois aspectos. Em primeiro lugar, existe um amplo acordo sobre um núcleo de aspectos fundamentais da análise econômica. Em segundo lugar, a literatura abrange uma ampla gama de aspectos específicos de sistemas de pi e condições específicas de mercado que podem afetar o caso de pi.

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Além disso, a economia aplicada procura testar avaliações teóricas mais ou menos elaboradas contra evidências empíricas. Idealmente, a compreensão econômica das políticas avança por meio do seguinte processo: primeiro, os economistas formulam proposições que podem ser testadas sobre os objetivos da política de pi (como inovação e crescimento econômico), tais quais seus custos econômicos totais – o custo de oportunidade de todos os recursos necessários para conduzir a política de pi, bem como quaisquer possíveis consequências não intencionais da pi. Em segundo lugar, a pesquisa econômica empírica identifica indicadores adequados pelos quais os resultados da política podem ser medidos. Em terceiro, pesquisadores empíricos desenvolvem projetos de pesquisa e tentam especificar até que ponto as variações na pi afetaram as medidas dos objetivos da pi. Se o objetivo é declarar explicitamente as recomendações de políticas, os custos de oportunidade e as consequências não intencionais em circunstâncias específicas precisam estar relacionados a quaisquer benefícios da política.5 O trabalho empírico está sempre sujeito a territórios e períodos específicos. O objetivo da economia aplicada, porém, é produzir resultados generalizáveis que não apenas documentem os efeitos das políticas em retrospecto, mas que também sustentem previsões razoáveis sobre as prováveis consequências de várias opções de políticas nas condições atuais. Assim, é necessário, muitas vezes, diversos estudos empíricos para fornecer uma base sólida de evidências para a política. Há algum ceticismo, em particular entre os juristas, em relação à adequação dessas ferramentas da economia – teoria e principalmente empíricos quantitativos – para ajudar a desenvolver sistemas de pi amplamente aceitáveis e sustentáveis. Qualquer leitura atenta da literatura confirmará que, na perspectiva econômica, a pi continua levantando questões intrigantes, e a evidência empírica disponível está longe de ser abrangente. De maneira mais geral, nenhum conhecimento é perfeito, e a economia aplicada não está livre de vieses e limitações inerentes. Entretanto, é importante considerar as alternativas. Sem especificar objetivos claros e tentativas de testar a melhor forma de alcançá-los, ficamos com a formulação de políticas por intuição, evidências anedóticas e lobby das partes interessadas. Evidências de aplicações completas da economia (que fazem esforços críveis para aderir a ideais de lógica, transparência de métodos e avaliações normativas inicialmente abertas e cautelosas) oferecem uma maneira de contornar parte desse enigma.

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TEORIA ECONÔMICA E DIREITOS AUTORAIS: INOVAÇÃO NAS INDÚSTRIAS CRIATIVAS

Para abordar a pi nas indústrias criativas, é favorável abordar novos trabalhos criativos como um tipo de inovação de produto: ou seja, eles têm algum valor percebido e são novos – distintos e desconhecidos – pelo menos na opinião de alguns usuários em potencial. Há pouco sentido em discutir se as obras criativas no domínio dos direitos autorais são de valor como novas tecnologias patenteáveis ou novas variantes de produtos manufaturados, por exemplo. A questão é que qualquer atividade inovadora está associada à incerteza, principalmente para os que nela se envolvem, e tem potencial para beneficiar a sociedade em geral, para além das partes interessadas que contribuem para os custos da inovação, motivo pelo qual se justifica a dedicação pública de recursos para promovê-la. Dentro das indústrias criativas, pode-se distinguir duas grandes áreas de inovação: primeiro, a criação de conteúdo, que culmina na primeira fixação de uma obra criativa de acordo com a lei de direitos autorais; segundo, a inovação monótona, que diz respeito a novas tecnologias para reproduzir, disseminar e usar obras existentes ou novas formas de organizar a produção nas indústrias criativas.6 Enquanto o poder de mercado e o controle centralizado (por governos ou empresas privadas) são a ruína tradicional da economia, muitos economistas preocupados com a inovação e o crescimento de longo prazo têm uma visão relativamente permissiva do poder de mercado (Dixon; Greenhalgh, 2002). As perspectivas de poder de mercado podem fornecer um incentivo para que as empresas privadas se envolvam com a inovação, que é o principal motor do crescimento econômico no longo prazo. Contudo, também é amplamente aceito que os mercados precisam permanecer um tanto contestáveis para sustentar níveis socialmente desejáveis de esforço de inovação. Como a inovação é, por definição, incerta, o controle centralizado em um pequeno número de organizações hierárquicas estará sujeito a erros. Sem alguma diversidade de fornecedores, ou pelo menos o potencial de entrada competitiva, os mercados podem levar muito tempo para gravitar em direção a trajetórias eficientes e níveis de esforço inovador. Até porque as recompensas da inovação são tardias e incertas, a teoria pura não fornece um teste viável e válido sobre como reconhecer um estado ótimo em relação à inovação na realidade. O trabalho empírico pode fornecer sinais úteis, por exemplo, se as variações na

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proteção da pi – entre territórios ou ao longo do tempo – estão associadas a mais ou menos inovação, crescimento econômico ou outros objetivos mensuráveis.7

DIREITOS AUTORAIS COMO UM MEIO CARO PARA PROMOVER A OFERTA DE OBRAS PROTEGIDAS

Uma visão inicial importante sobre direitos autorais na perspectiva econômica é que, ao estabelecer direitos de quase-propriedade de obras criativas, os direitos autorais facilitam a operação dos mercados de obras protegidas. Em contraste com muitas outras formas de financiamento da criatividade, desde o fornecimento público a prêmios e recompensas estatutárias, um sistema de direitos autorais não requer uma ampla tomada de decisão centralizada sobre quais tipos de trabalhos criativos devem ser produzidos e disponibilizados.8 Na perspectiva econômica, os direitos autorais têm um aspecto agradável: permitem a alocação de recursos com base em transações voluntárias nos mercados por aqueles que carregam as consequências de suas decisões. A perspectiva econômica convencional sobre direitos autorais parte da noção de que obras criativas tendem a ter atributos de bens públicos, o que dá origem a falhas de mercado. Na economia, os bens públicos são definidos por duas características: não exclusividade e não rivalidade no consumo. Por um lado, o valor de uma obra para um usuário individual não diminuirá com o número de outros usuários. Os trabalhos criativos geralmente não são depreciados pelo uso, ao contrário de uma maçã, pois muitos podem desfrutar (de cópias) do mesmo trabalho sem se inibirem. Isso é chamado de não rivalidade no consumo. (Observe, no entanto, que, para alguns propósitos, os usuários comerciais de trabalhos criativos preferirão o uso exclusivo, digamos, de uma música em uma campanha publicitária.) É maximizador de bem-estar se todos os usuários potenciais, que estão dispostos a pagar mais do que os custos marginais de reprodução e divulgação das obras, tenham acesso às obras existentes (Arrow, 1962). Por outro lado, geralmente é difícil restringir o uso não autorizado de todos os aspectos de um trabalho criativo para que muitos, que não obtêm permissão dos detentores dos direitos, possam se beneficiar do trabalho. Isso é conhecido como não exclusividade. Na prática, trabalhos criativos raramente são bens públicos perfeitos,

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mas elementos importantes deles geralmente não podem ser excluídos. A economia fundamental sugere que a oferta de bens públicos cairá abaixo de um nível socialmente desejável. Se é possível usufruir dos benefícios das obras criativas sem investir em sua produção, ou compensar aqueles que arcam com os custos de desenvolvimento, há incentivos ao oportunismo. A demanda por bens públicos nos mercados comerciais refletirá apenas uma fração do valor social desses bens. Os fornecedores terão dificuldade em recuperar os custos de criação, mesmo que o valor social de uma obra em questão exceda em muito os custos de sua criação. A teoria econômica do preço e do custo ajuda a esclarecer o último ponto. A criação de novos trabalhos geralmente envolve custos de desenvolvimento altos e irrecuperáveis. Os custos marginais de cópia, divulgação e construção de trabalhos criativos são frequentemente muito baixos. (Para simplificar, nos referimos apenas aos custos de cópia a seguir, como abreviação para reprodução, divulgação e construção de obras.) Por exemplo, um filme de ficção pode custar milhões de euros para ser criado, mas, uma vez concluído, a criação de outras cópias do mesmo filme custa apenas uma fração minúscula desse valor. Nos âmbitos em que a tecnologia de informação e comunicação digital (tic) facilita a reprodução, disseminação e modificação de trabalhos criativos, os atributos de bem público de trabalhos criativos reproduzíveis tendem a ser mais pronunciados. Para usuários de tic digital avançada, os custos de cópia estão se aproximando do zero. Assim, a discrepância entre os custos de criação e os custos de cópia pode se tornar mais extrema. Em mercados competitivos sem direitos autorais, o preço das cópias se aproximará dos custos marginais da cópia. Então, quem investiu em criatividade terá dificuldade em recuperar os custos de criação e será fornecido um menor número de novas obras valiosas do que seria desejável. Um sistema de direitos autorais eficaz mitiga a subprodução de novas obras criativas, dotando os detentores de direitos com poder de mercado temporário. A proteção de direitos autorais inibe o uso não autorizado, a cópia sem o consentimento expresso dos detentores de direitos, o que geralmente exige algum tipo de compensação de direitos, como um pagamento. As obras criativas são diferenciadas, o que significa que não há substitutos perfeitos para um trabalho específico. Com a proteção de direitos autorais, os detentores de direitos podem cobrar um preço superior aos custos marginais. Se a demanda for forte o suficiente, eles podem recuperar os custos de criação ou até mesmo lucrar, o que deve desencadear mais investimentos em criatividade.

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No entanto, o poder de mercado também é uma fonte de falhas de mercado. Como já se sabe, o poder de mercado leva a preços mais altos e exclui alguns usuários potenciais do acesso a obras criativas, cuja disposição de pagar é superior aos custos marginais de cópia, mas inferior ao preço estabelecido pelos detentores dos direitos. Ou seja, da perspectiva econômica, o direito autoral combate fogo com fogo: o direito autoral mitiga uma fonte de falha de mercado devido às características de bem público das obras criativas, agravando outras falhas de mercado, principalmente devido ao poder de mercado dos detentores de direitos. Com pouca proteção de direitos autorais, a teoria econômica sugere que poucas obras novas são fornecidas. Com a proteção de direitos autorais, o acesso às obras existentes será muito caro em comparação a um mercado ideal com preços de custo marginal. Novos e Waldman (1984) falam, portanto, de um trade-off entre a subprodução e a subutilização. De acordo com essa análise, há uma tensão entre a política de pi e a política de concorrência, pois ambas buscam maximizar o bem-estar social, embora o façam por meios contraditórios. Os sistemas de direitos autorais geralmente serão associados a outros tipos de falhas de mercado. Por um lado, há os custos administrativos de um sistema de direitos autorais – os custos de definição e aplicação da lei de direitos autorais – que recaem sobre o público geral, ou seja, o contribuinte. Por outro lado, existem alguns custos de transação na negociação de direitos autorais, que não teriam surgido sem a proteção de direitos autorais.9 Os detentores de direitos e usuários precisam identificar potenciais parceiros comerciais, negociar termos mutuamente aceitáveis, bem como monitorar e fazer cumprir a conformidade. A tabela 1 a seguir apresenta uma visão geral (Handke, 2011). Para identificar os custos e benefícios dos direitos autorais, é útil distinguir entre o curto prazo, no qual a oferta de obras protegidas por direitos autorais é fixa, e o longo prazo, em que a oferta de obras protegidas por direitos autorais varia de acordo com as recompensas aos detentores dos direitos. No curto prazo, os direitos autorais aumentam as recompensas aos detentores de direitos e os custos de acesso aos usuários. Isso significa que um sistema de direitos autorais transfere o valor excedente (a diferença entre o valor total das obras de direitos autorais e os custos de criação e cópia) dos usuários para os detentores dos direitos.

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Tabela 1: Custos e benefícios de um sistema de direitos autorais Benefícios

Custos 1. Custos administrativos;

Curto prazo

Longo prazo

Maiores recompensas para os detentores de direitos.

Maiores incentivos ao fornecimento de obras de direitos autorais para os detentores de direitos.

2. Custos de transação em direitos de negociação; 3. Custos de acesso aos usuários, incluindo o acompanhamento de criadores. A inovação do usuário é obstruída por custos associado ao cumprimento.

Fonte: Handke (2011a).

De acordo com a economia do bem-estar, transferir o excedente de um tipo de parte interessada para outro é irrelevante para uma avaliação normativa. Entretanto, devido aos custos administrativos e de transação associados aos direitos autorais, o excedente de curto prazo do mercado de obras criativas será menor com direitos autorais. Em outras palavras, um sistema de direitos autorais reduz o tamanho do bolo proverbial. A menos que se considere o efeito de longo prazo da proteção do direito autoral sobre o fornecimento de novas obras criativas, o direito autoral não é desejável do ponto de vista econômico. Assim, a análise de longo prazo que incorpora os efeitos mais prolongados dos direitos autorais na oferta de obras criativas é central para qualquer justificativa econômica dos direitos autorais. Quando os direitos autorais incentivam uma maior oferta de obras com direitos autorais, os usuários também podem se beneficiar da proteção dos direitos autorais ao longo do tempo. Os custos de acesso dos usuários aumentam com a proteção de direitos autorais, mas eles podem escolher entre uma variedade de obras mais abundante e valiosa. Enquanto o valor excedente das obras adicionais criadas por causa dos direitos autorais for maior do que os custos de administração e transação do sistema de direitos autorais, os direitos autorais aumentarão o bem-estar social. Uma extensão importante desse argumento é que os criadores geralmente se baseiam em (aspectos de) obras existentes com direi-

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tos autorais (Landes; Posner, 1989). Eles terão que retirar os direitos autorais e compensar os detentores dos direitos das obras de entrada ou contornar as reivindicações de direitos autorais existentes. Os direitos autorais efetivos não apenas aumentam as recompensas para os criadores, mas também podem aumentar os custos de criação. Portanto, não é certo que qualquer aumento na proteção de direitos autorais promoverá a oferta de novas obras criativas. Landes e Posner (1989) abordam explicitamente a geração de direitos exclusivos a obras criativas para uma função de produção padrão, com utilidade marginal decrescente para aumentos na proteção de direitos autorais. Eles concluem que os níveis ideais para essa proteção normalmente não serão encontrados no extremo de proteção zero ou proteção perfeita. Em vez disso, o desafio é identificar um nível intermediário que maximize o valor excedente gerado nos mercados de obras criativas. O mesmo raciocínio de Landes e Posner (1989) pode ser aplicado às inovações em relação a novos meios de reproduzir, divulgar e construir obras criativas. O valor social das obras criativas não depende de sua mera existência. O seu valor também será fomentado onde surgirem meios mais eficientes de disponibilização de obras criativas. Considerem-se novas maneiras de disponibilizar trabalhos criativos online, desde o compartilhamento de arquivos até todos os tipos de vendas no varejo. A divulgação online de obras criativas leva a custos muito mais baixos e aumenta a escolha do usuário. No entanto, o poder de mercado dos detentores de direitos, bem como os custos de transação, pode afetar negativamente as perspectivas de projetos inovadores em relação à divulgação de obras, o que dá origem a outro trade-off que uma política de direitos autorais eficiente precisa resolver (Handke, 2011). No geral, essa análise econômica razoavelmente avançada traz cinco insights cruciais: 1. Para a justificação econômica do direito autoral, o efeito sobre a oferta de obras criativas é decisivo. 2. Não é certo que uma proteção de direitos autorais mais forte sempre promova a criatividade. 3. O nível ideal de proteção de direitos autorais varia de acordo com as condições de mercado em mudança, digamos, devido a mudanças tecnológicas que afetam os custos de criação, cópia e operação de um sistema de direitos autorais ou mudanças sociais mais amplas que afetam gostos e preferências por trabalhos criativos.

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4. A teorização pura não produz uma justificativa geral do direito autoral nem identifica diretrizes suficientes para desenvolver os vários aspectos dos sistemas de direitos autorais. A teoria e o argumento de princípios podem ajudar a oferecer uma estrutura para um debate normativo sobre direitos autorais, mas são inconclusivos por si só. 5. Evidências empíricas atualizadas são necessárias para alimentar a política racional de direitos autorais. Os direitos autorais envolvem vários custos e benefícios. O indicador final para as vantagens ou desvantagens de direito autoral é seu efeito líquido sobre a inovação, conforme indicado pela oferta de obras criativas.

EXTENSÕES DA ANÁLISE ECONÔMICA PARA COBRIR VÁRIAS CONDIÇÕES DE MERCADO

O uso da aplicação da economia para abordar questões de política do mundo real se sustenta ou cai na medida em que as condições de mercado mais relevantes podem ser capturadas sem tornar a análise muito complexa. Pesquisadores devem, portanto, se esforçar para identificar e entender as peculiaridades das indústrias e mercados que abordam. Uma visão geral útil das características econômicas das indústrias criativas é encontrada em Caves (2000), por exemplo. Um tópico inevitável é a estrutura da indústria e o poder de mercado. Direitos autorais não são a única fonte de poder de mercado nas indústrias criativas, nem os detentores de direitos são necessariamente os únicos agentes econômicos que desfrutam do poder de mercado. As funções dos intermediários incumbentes nas indústrias criativas – desde editoras que adquirem direitos de criadores até atacadistas e varejistas digitais – geralmente também desfrutam de algum poder de mercado, no qual os processos de produção que conduzem estão sujeitos a economias de escala e escopo ou efeitos de rede. Handke (2015) argumenta que os criadores podem não se beneficiar de uma maior aplicação de direitos autorais se os varejistas digitais dominantes tiverem forte posição de barganha. De qualquer forma, disposições legais complexas, como direitos autorais, muitas vezes podem favorecer grandes empresas estabelecidas, que têm acesso a conhecimentos jurídicos especializados ou podem até influenciar a política de direitos autorais por meio de lobby. Está bem documentado que o trabalho criativo é muitas vezes intrinsecamente motivado (Lakhani; Von Hippel, 2003; Benhamou,

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2003; Towse, 2006). Então pode ser enganoso considerar apenas a forma como os direitos autorais afetam as recompensas pecuniárias para os criadores. Nos últimos anos, o aumento do conteúdo gerado pelo usuário levanta novos desafios para a política de direitos autorais. Além disso, a inovação do usuário também ocorre em novas tecnologias para divulgar obras criativas, como no compartilhamento de arquivos ou avaliações de usuários. Os direitos autorais podem inibir atividades intrinsecamente motivadas e inovações do usuário que podem gerar valor considerável. A questão não deve ser ignorada nas avaliações de direitos autorais nos dias de hoje. As tic digitais também podem facilitar pesquisas de produtos e amostragem de obras criativas. Alguns trabalhos teóricos e empíricos sugerem que os detentores de direitos podem até se beneficiar de cópias não autorizadas se elas forem substitutas imperfeitas de serviços autorizados de detentores de direitos (Gopal; Bhattacharjee; Sanders, 2006; Peitz; Waelbroeck, 2006, 2006a). Usuários mais bem informados podem ter maior disposição em pagar por obras de alto valor. De maneira mais geral, a digitalização traz mudanças tecnológicas rápidas e amplas em muitos setores criativos. A difusão da tecnologia de cópia digital que mina a proteção dos direitos autorais é apenas um aspecto dessas mudanças. Os pesquisadores não devem considerar apenas os efeitos dos direitos autorais na inovação tecnológica. Eles também não devem confiar muito facilmente em suposições básicas, como definições estáveis de produtos e mercados, custos imutáveis nas indústrias criativas, estruturas industriais constantes e pressão competitiva (Handke, 2006). Por último, mas não menos importante, existem outras formas de promover a oferta de novas obras criativas além do direito autoral. Para evitar repetições, abordamos a literatura sobre tais alternativas na sequência, com ênfase específica em evidências empíricas relevantes.

EVIDÊNCIA EMPÍRICA: OS EFEITOS DA CÓPIA NÃO AUTORIZADA

Desde a rápida difusão da tecnologia de cópias digitais, houve um aumento no trabalho empírico sobre cópias não autorizadas e direitos autorais. Até agora, existe uma série de pesquisas da literatura, por exemplo Handke (2011), Liebowitz (2013) ou Watson, Zizzo e

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Fleming (2015). O ponto de partida de qualquer projeto de pesquisa empírica sobre direitos autorais deve ser uma leitura cuidadosa dessas pesquisas para identificar fontes de dados testadas e comprovadas, métodos de pesquisa e lacunas na literatura. Uma revisão completa dessas questões está além do escopo deste artigo. Um desafio-chave na interpretação da literatura existente é o desenvolvimento de uma boa compreensão sobre quais aspectos de uma análise de bem-estar os vários estudos inspiram. De longe, o maior número de estudos empíricos quantitativos aborda os efeitos da cópia digital não autorizada nas receitas dos detentores de direitos, principalmente nos mercados de música e filmes gravados (Peitz; Waelbroeck, 2004; Oberholzer; Strumpf, 2007; Liebowitz, 2008; Zentner, 2010; Rob; Waldfogel, 2007). Uma grande parte dessa literatura constata que a cópia digital diminuiu as receitas dos detentores de direitos oriundas de vendas para consumidores finais. Entretanto, quão forte esse efeito tem sido ainda permanece controverso. Um complemento importante aos estudos sobre as receitas dos detentores de direitos está nas avaliações dos benefícios do uso não autorizado para os consumidores finais. Os poucos estudos que se debruçaram sobre esta questão concluem que, pelo menos a curto prazo, os benefícios da cópia digital não autorizada para os usuários finais têm sido de maior valor do que quaisquer perdas para os detentores de direitos (Rob; Waldfogel, 2006; Waldfogel, 2010). Isso é consistente com nossa discussão sobre os efeitos de bem-estar de curto prazo da proteção de direitos autorais. A questão mais importante para uma avaliação normativa da cópia digital e de suas implicações para a política de direitos autorais reside nos efeitos mais prolongados da oferta de novas obras criativas. Surpreendentemente, quase nenhum dos poucos estudos sobre essa questão encontrou qualquer associação significativa entre a proteção de direitos autorais e a quantidade ou qualidade da oferta de novas obras de direitos autorais (Handke, 2012; Waldfogel, 2012, 2012a). É impressionante que o número de novas gravações musicais, filmes e livros tenham aumentado rapidamente durante grande parte da última década, apesar da preocupação com mais cópias não autorizadas (Waldfogel, 2012a). No que diz respeito à cópia digital e à política de direitos autorais, esses resultados precisam ser interpretados com cautela. Por um lado, o efeito completo da cópia digital pode ainda não ter ocorrido. Por outro lado, é possível que a produtividade aumente com a digitalização – devido aos menores custos de criação ou de divulgação de obras com o uso das tic di-

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gitais –, mascarando quaisquer efeitos adversos da cópia não autorizada na oferta de novas obras criativas. Mesmo com bons dados e análise de dados sofisticada, é difícil excluir que as coisas poderiam ter sido ainda melhores com menos cópias não autorizadas. Ainda assim, a falta de evidências empíricas de que o direito autoral atinja seu objetivo principal – fomentar a oferta de obras criativas – traz dúvidas sobre a eficiência dos atuais sistemas de direitos autorais. De qualquer forma, pesquisas empíricas recentes sobre os efeitos da cópia não autorizada e dos direitos autorais se concentraram quase exclusivamente em mercados específicos: música gravada e filmes. Os resultados dessas indústrias podem não ser generalizados para todas as indústrias criativas/de direitos autorais. Muitos outros mercados foram pouco estudados.

OS EFEITOS DA APLICAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS

Além das questões apontadas, as consequências da cópia digital não autorizada receberam mais atenção. Mesmo que a cópia não autorizada estivesse associada a grandes efeitos adversos para a sociedade em geral, isso não seria suficiente para justificar contramedidas extensas. A questão é se tais contramedidas – extensões da lei de direitos autorais ou maiores investimentos na aplicação de direitos autorais – podem mitigar quaisquer problemas devido à cópia não autorizada sem custos excessivos e consequências não intencionais. Até agora, está claro que as medidas típicas de aplicação (gestão de direitos digitais, perseguição de violações de direitos autorais em residências particulares ou de serviços de internet que facilitam a disseminação não autorizada de obras protegidas) praticamente não foram eficientes: tiveram efeitos modestos ou de curta duração sobre cópia não autorizada e nas receitas dos detentores de direitos em comparação com os custos a eles associados (Orme, 2014; Handke, 2016).10 A questão é se a aplicação de direitos autorais pode ser melhorada ou se alguma alternativa à aplicação de direitos autorais seria uma opção melhor.

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ALTERNATIVAS À APLICAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS

A proteção efetiva dos direitos autorais, que normalmente exigirá algumas medidas de fiscalização, não é a única maneira de garantir níveis socialmente desejáveis de investimentos em criatividade. Shavell e Van Ypersele (2001) realizaram um trabalho teórico famoso comparando a proteção de direitos autorais com sistemas de recompensa por meios públicos, bem como sua combinação. De outra maneira, a pesquisa econômica abordou duas alternativas aos direitos autorais efetivos para financiar a criatividade: primeiro, soluções de mercado em que os detentores de direitos adotam seus modelos de negócios para garantir receitas suficientes, apesar do potencial de muitas cópias não autorizadas; segundo, os chamados sistemas de compensação, nos quais taxas são cobradas sobre bens e serviços mais excludentes que são frequentemente usados para a disseminação não autorizada de obras protegidas por direitos autorais. Em relação às soluções de mercado, Boldrin e Levine (2008) argumentam que a exploração das vantagens do primeiro a chegar seria suficiente para recompensar a criatividade. Varian (2005) apresenta uma visão geral de quinze “modelos de negócios em um mundo sem direitos autorais”. Entretanto, nenhuma dessas duas publicações contém evidências empíricas sistemáticas para apoiar seus argumentos. Liebowitz (1985) e Johnson (2005) abordam a discriminação de preços como um meio de sustentar as receitas dos detentores de direitos, apesar do potencial de cópia não autorizada. Há ampla evidência empírica de que cópias digitais não autorizadas são substitutas imperfeitas de cópias autorizadas (Rochelandet; Le Guel, 2005; Bezmen; Depken, 2006; Jeong; Lee, 2010; Rob; Waldfogel, 2006). Assim, há alguma margem para os detentores de direitos recuperarem os custos de criação, pelo menos para algumas obras criativas. Isso poderia ajudar os detentores de direitos a desenvolver estratégias sofisticadas de preços (Liebowitz, 1985), ou mesmo a aproveitar a exposição de suas obras criativas para vender complementos mais excludentes, como shows ao vivo (Mortimer; Nosko; Sorensen, 2012). O financiamento inicial de projetos criativos por meio de crowdfunding também pode contribuir para os custos de criação (Schwienbacher; Larralde, 2010; Moritz; Block, 2014), mas até que ponto isso funciona na prática ainda não está claro. Por último, mas não menos importante, serviços online autorizados eficientes, como a loja iTunes, Spotify ou Netflix, parecem ter induzido muitos

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usuários finais a diminuir a quantidade de cópias não autorizadas (Danaher et al., 2010; Poort; Weda, 2015). É importante notar, no entanto, que a ameaça de cópias não autorizadas exclui algumas opções para criadores/detentores de direitos e pode enfraquecer sua posição de barganha com intermediários e usuários. A adaptação dos modelos de negócios pode mitigar os problemas dos detentores de direitos com o uso não autorizado, mas seria muito otimista supor que isso resolveria a questão por completo. Os sistemas de compensação consistem em cobrar uma sobretaxa pelas vendas de bens e serviços relacionados e que podem ser excluídos (por exemplo, copiar hardware) e divulgar as receitas aos detentores de direitos autorais. Para manter alguma aparência de coordenação de mercado, a distribuição de receitas precisa corresponder a alguma medida de uso de obras específicas. As taxas de cópias estão em vigor em todos os estados membros da ue, bem como nos eua e no Canadá (wipo, 2013), e pode diminuir a necessidade de aplicação onerosa de direitos autorais entre uma miríade de residências particulares. Com a rápida difusão da tecnologia de compartilhamento de arquivos ao longo do milênio, acadêmicos do direito, em especial, pediram uma extensão do sistema de taxas para gerar um equilíbrio razoável entre os detentores de direitos e os interesses dos usuários no contexto de cópias online desenfreadas e não autorizadas (Lunney Jr., 2001; Kur, 2002; Netanel, 2003; Fisher, 2004; Eckersley, 2004). Uma sugestão popular é permitir o uso e a divulgação não autorizados de obras online em troca de uma taxa cobrada em conjunto com a assinatura da internet (Handke; Quintais; Bodo, 2013). No estudo empírico mais ambicioso até hoje, baseado em um experimento de escolha entre vários milhares de residentes da Holanda, Handke, Balazs e Vallbé (2016), descobriu-se que, pelo menos para a música gravada, um sistema de compensação bem desenhado poderia deixar, simultaneamente, os detentores de direitos e os usuários em geral muito mais bem assistidos.11

ÁREAS PARA PESQUISAS EMPÍRICAS ADICIONAIS

Para alimentar a política de direitos autorais com a mudança tecnológica contínua, mais pesquisas usando dados atuais e em uma variedade de indústrias criativas são necessárias. O trabalho empírico é desejável principalmente em três áreas. Em primeiro lugar, há os efeitos da proteção de direitos autorais de inovação e criatividade

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(não apenas nas receitas dos detentores de direitos), pois os poucos artigos existentes sobre esse tópico são pouco conclusivos, mas trazem resultados intrigantes. Há muito tempo é difícil obter bons dados quantitativos sobre a oferta de obras criativas. Entretanto, o aprimoramento constante dos bancos de dados digitais pode abrir muitas novas oportunidades de pesquisa. O segundo tópico principal para pesquisas futuras deve se voltar aos aspectos específicos dos sistemas de direitos autorais e às formas como eles podem ser moldados para otimizar a oferta de novos trabalhos criativos valiosos, o que inclui os vários componentes dos sistemas de direitos autorais, como: (1) os tipos de criações elegíveis à proteção e quaisquer obrigações para potenciais detentores de direitos para registrar obras; (2) os tipos de atos abrangidos, reprodução, disponibilização ou modificação; (3) a duração dos direitos (Akerlof et al., 2002; Liebowitz; Margolis, 2005; Png; Wang, 2009); (4) exceções ou limitações aos direitos de pi (Landes; Posner, 2009); (5) os métodos, intensidade e eficiência das medidas de fiscalização e quem as conduz; (6) a escala, escopo e regulamentação da gestão coletiva ou conjunta de direitos autorais (Handke, 2014, 2015b); ou (7) a proteção dos direitos morais relativos à atribuição ou à integridade das obras (Rushton, 1998, Towse, 2006). No trabalho teórico, os economistas geralmente tendem a abordar os direitos autorais de forma abstrata, comparando, por exemplo, um mundo com ou sem proteção de direitos autorais. Os detalhes básicos dos sistemas de direitos autorais foram discutidos na disciplina relacionada de direito e economia, com as principais contribuições de Landes e Posner (1989, 2003). Entretanto, no trabalho empírico, os economistas geralmente procuram os chamados experimentos naturais ou quase experimentos, nos quais ocorreram mudanças específicas e potencialmente importantes de componentes de um sistema de direitos autorais, a fim de identificar efeitos causais de variações na política de direitos autorais. Em terceiro lugar, o debate contencioso e de longa data sobre direitos autorais, principalmente no contexto da digitalização, pode fomentar o interesse por formas alternativas de promover a criatividade. Como mencionado, os economistas abordaram o desenvolvimento de novos modelos de negócios e como os direitos autorais os afetam, ou o mérito relativo dos sistemas de recompensa e sistemas de compensação.

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PESQUISA SOBRE PATENTES E OUTROS TIPOS DE PI

Outros tipos de pi, além dos direitos autorais, afetam as indústrias criativas porque influenciam os mercados de bens relacionados, como hardware de tic e telecomunicações, e o ritmo e a direção da mudança tecnológica. As patentes, bem como os direitos autorais, definem direitos exclusivos temporários. As marcas e os segredos comerciais não têm duração definida e demandam um raciocínio bastante diferente; não abordamos esses dois tipos de pi aqui.12 Entre qualquer tipo de propriedade intelectual, os economistas prestaram mais atenção às patentes. Estas diferem dos direitos autorais – que são de relevância mais imediata nas indústrias criativas – em vários aspectos fundamentais. Os direitos autorais protegem a expressão de ideias em obras criativas específicas e são aplicados sem qualquer teste inicial de qualidade, funcionalidade, originalidade ou registro. Os direitos autorais duram bastante tempo, podendo, em muitos casos, estender sua vigência em mais de setenta anos após a morte do autor. As patentes, por outro lado, protegem invenções técnicas e exigem registro, comumente aplicado mediante taxa e testes de qualidade e originalidade. Em geral, elas duram cerca de vinte anos. As aplicações efetivas de invenções técnicas cobertas por patentes frequentemente exigem algum conhecimento tácito, de modo que o sigilo pode proteger os inovadores e os detentores de pi de forma melhor do que no caso de obras de direitos autorais. Incentivar a divulgação abrangente é, portanto, uma preocupação particular em relação ao sistema de patentes que é menos relevante para direitos autorais. O estudo completo dos efeitos desses vários tipos de pi nas indústrias criativas está além do escopo deste artigo e praticamente não foi abordado na literatura acadêmica. No entanto, a literatura sobre patentes é muito mais avançada do que a literatura sobre direitos autorais e outros tipos de pi, motivo pelo qual ela pode assim ajudar a identificar tópicos e métodos relevantes para pesquisa em pi e indústrias criativas. Para levantamentos na literatura, veja Dixon e Greenhalgh (2002) e Hall e Harhof (2012). A literatura sobre patentes é bastante avançada, principalmente no que diz respeito: (1) à associação entre proteção de pi e desenvolvimento do país, comércio internacional e disseminação de ideias além das fronteiras, (2) ao uso estratégico de pi e (3) ao licenciamento e à administração conjunta de direitos de pi.

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DESENVOLVIMENTO E PI

Os economistas se interessaram muito pela associação entre proteção de patentes e desenvolvimento econômico; veja Hall e Helmers (2010) para uma revisão da literatura razoavelmente atualizada. É intuitivo que países com baixos níveis de desenvolvimento, cujas empresas nacionais realizam relativamente pouca inovação e adquirem relativamente poucos direitos de pi, se beneficiariam menos da proteção de pi do que países altamente desenvolvidos. A literatura empírica sobre patentes apoia essa intuição: constata de forma bastante consistente que países em estágios baixos de desenvolvimento econômico não apresentam maior inovação nacional com maior proteção nacional de pi (Dixon; Greenhalgh, 2002; Hall; Helmers, 2010). Entretanto, a proteção ineficaz de pi também pode ter desvantagens, mesmo para países sem muita inovação nacional e residentes com direitos de pi. Em primeiro lugar, os detentores de direitos dificilmente investirão na divulgação de obras protegidas em territórios com uso desenfreado não autorizado, inibindo a transferência de tecnologia (Maskus, Penubarti, 1995). Em segundo lugar, há evidências empíricas de que o investimento direto estrangeiro e o licenciamento são mais limitados em países com proteção de pi fraca (Lee; Mansfield, 1996; Branstetter, 2006). Hall e Helmers (2010) resumem os resultados da seguinte forma: “a força da proteção de pi parece facilitar a transferência de tecnologia para países de renda média”, embora esse efeito possa muitas vezes ser fraco, pois “as empresas normalmente não classificam os dpis como uma influência na decisão de transferência de tecnologia”. Globalmente, o desenvolvimento econômico dos países e a capacidade de inovação interna parecem desempenhar um papel decisivo no que diz respeito aos efeitos da proteção de patentes (Ginarte; Park, 1997; Kanwar; Evenson, 2003; Allred; Park, 2007). Países de baixa renda e países com poucas capacidades específicas em indústrias relevantes não parecem se beneficiar diretamente da proteção de patentes. Hall e Helmers (2010) chegam à conclusão mais geral de que “a introdução ou fortalecimento de um sistema de patentes […] resultam em um aumento nas patentes e também no uso das patentes como uma ferramenta de uma estratégia de firma” mas “é muito menos claro que essas mudanças resultem em um aumento da atividade inovadora”. Entretanto, no caso de criações não excludentes, como muitas obras de direitos autorais, a inovação interna pode ser sufocada

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se novas ideias desenvolvidas no exterior estiverem disponíveis a baixo custo. Um exemplo famoso de direitos autorais é a situação dos autores norte-americanos nos Estados Unidos do século xix (Vaidhyanathan, 2001). Apenas autores nacionais gozavam de proteção total de direitos autorais, mas autores estrangeiros, não. Assim, os autores nacionais dos eua se depararam com edições com preços muito competitivos principalmente de obras britânicas e podem ter sofrido como consequência disso. Em geral, a discussão sobre níveis eficientes de proteção à pi sujeitos ao grau de desenvolvimento econômico dos países possui nuances e pode diferir em relação aos diferentes tipos de criações e condições específicas de mercado. Esta é certamente uma área promissora para novas pesquisas.

USO ESTRATÉGICO DE PI E BUSCA DE RENDA

Existe alguma preocupação de que as empresas usem a pi estrategicamente para obter vantagens competitivas, registrando muitas patentes não para usar as tecnologias em si ou licenciá-las, mas para inibir a inovação dos concorrentes (Hall; Helmers, 2010). Além disso, onde a regulamentação pública tem fortes efeitos sobre as atividades econômicas, as empresas podem realizar a chamada busca de renda: lobby para garantir que a política pública seja benéfica para seu interesse parcial. As empresas podem, assim, não concentrar todos os seus esforços na produção e inovação eficientes, mas também buscam influenciar a política governamental. Essas práticas podem ser bastante difundidas, pois, sob qualquer pressão competitiva, mesmo as empresas mais bem-intencionadas podem se sentir inclinadas a conduzir a busca de renda para não ficar em desvantagem quando outras o fizerem. Os economistas geralmente consideram que o uso estratégico da pi e a busca de renda são um desperdício para a sociedade em geral (Landes; Posner, 2003). Meios para inibir tais práticas por todas as empresas merecem mais atenção.

LICENCIAMENTO E ADMINISTRAÇÃO CONJUNTA DE PI

Uma grande preocupação com os sistemas de pi reside nos custos dos direitos de negociação, conhecidos como custos de transação. Por um lado, as inovações são, por definição, diferenciadas, por

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exemplo, em relação à função de demanda e aos custos de desenvolvimento. Em uma situação ideal, isso implicaria que cada inovação deveria ser precificada e negociada em termos customizados (Landes; Posner, 1989). Por outro lado, especialmente no caso das obras de direitos autorais, domínio no qual muitos têm uma disposição positiva, mas baixa, para pagar os custos da customização dos termos e condições de cada transação, pode haver muito empecilho para realizar transações mutuamente benéficas e levar a uma grande perda agregada de bem-estar. Assim, o desenvolvimento de mercados razoavelmente eficientes para pi é uma questão importante na perspectiva econômica, e esses mercados podem se beneficiar de alguma padronização das condições e preços das licenças. A administração conjunta dos direitos de pi é um meio para melhorar a situação. Os chamados pools de patentes têm recebido muita atenção (Shapiro, 2001). A ideia é que várias empresas, cada uma com patentes relacionadas a um tipo de bem, concordem em conceder licenças umas às outras sob alguns termos padronizados. Nos mercados de obras de direitos autorais, os coletivos de direitos autorais também definem termos padronizados para alguns tipos de licenças de direitos autorais. Para obras de direitos autorais, pode ser um incômodo para os usuários em potencial que não haja um registro abrangente de obras e proprietários protegidos, de modo que até mesmo identificar os detentores de direitos pode ser complicado. Uma questão importante em pesquisas futuras sobre pi nas indústrias criativas é o tipo e o escopo eficientes dos padrões na negociação de direitos autorais e como eles podem ser estabelecidos (Handke, 2015b).

CONCLUSÕES E NOVAS QUESTÕES EM PI E INDÚSTRIAS CRIATIVAS

A perspectiva econômica sobre pi é bastante diferente da tradicional erudição jurídica. Sob o olhar frio da economia (do bem-estar), os argumentos sobre os direitos naturais dos autores/criadores são amplamente ignorados, embora os economistas concordem que qualquer sistema de direitos autorais eficaz deve ser um meio de melhorar a sorte dos criadores de obras valiosas. Muitas disposições legais, como o teste de três etapas para exceções e limitações aos direitos autorais na Convenção de Berna e no Tratado da ompi sobre direitos autorais, podem parecer um pouco estranhas aos economistas, pois o texto legal não parece definir adequadamente os

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trade-offs aos quais a teoria econômica sugere que os direitos autorais estão associados (Geiger; Gervais; Senftleben, 2013). Considere o segundo teste, que afirma que exceções e limitações não interferem na exploração normal dos direitos. Por um lado, especialmente quando as condições de mercado e os modelos de negócios dos detentores de direitos mudam com a digitalização, o que pode ser considerado normal? Por outro lado, um critério de não interferência é estranho, pois, do ponto de vista econômico, quaisquer consequências negativas do uso não autorizado para os detentores de direitos devem ser ponderadas em relação aos benefícios para os usuários ou para a sociedade em geral. Os economistas geralmente prestam alguma atenção às questões de competitividade e crescimento econômico. Em mercados internacionais altamente integrados, obter uma regulamentação crucial das indústrias criativas, como direitos autorais, pode ter grandes repercussões. A produção de obras criativas e de bens e serviços relacionados à divulgação de obras criativas pode simplesmente ser transferida para outros territórios. As apostas são altas, principalmente porque o processo de digitalização traz mudanças tecnológicas rápidas e amplas, que têm o potencial de alterar a estrutura da indústria e a competitividade de territórios com diferentes regulamentações de direitos autorais. Além das preocupações com a competitividade dos países e o crescimento econômico, a digitalização traz novos desafios para a pi e estudos acadêmicos relacionados. Considere-se, por exemplo, o surgimento do chamado conteúdo gerado pelo usuário, em que usuários finais sem expectativas imediatas de recompensas pecuniárias criam obras e as disponibilizam por meio de plataformas da internet, como o YouTube. É eficiente aplicar direitos autorais quando os incentivos pecuniários desempenham pouco papel no incentivo à criatividade? Deveria haver a opção de aceitar ou recusar direitos autorais? Como lidamos com obras não comerciais que se baseiam em aspectos de obras comerciais de direitos autorais? Essas são questões de longa data que os economistas começaram a abordar e que a pesquisa empírica, em particular, pode ajudar a esclarecer ainda mais. Outro campo de interesse emergente é a impressão 3d. Gradualmente, essa tecnologia permite a reprodução barata de desenhos valiosos, uma vez que os objetos tenham sido digitalizados e as informações se tornem disponíveis como código digital. Muitos trabalhos criativos – como móveis, roupas ou joias – costumavam ser difíceis de reproduzir. A consequência da impressão 3d pode ser

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que esses objetos complexos se assemelhem mais aos bens públicos. A impressão 3d pode, assim, tornar a pi ainda mais importante para uma nova gama de indústrias criativas. Essa tecnologia levanta questões para designers que até agora têm sido de maior preocupação para fornecedores de criações e que podem ser facilmente capturadas e divulgadas como código digital, como músicas gravadas, filmes, videogames ou textos literários. Existe ainda a possibilidade de apostar em reivindicações de pi muito extensas e preventivas com a ajuda de tic digital. Grandes capacidades de processamento de dados possibilitam a criação e catalogação de grandes quantidades de desenhos, combinações de palavras, melodias e similares. Isso poderia ser feito não para desenvolver novos produtos valiosos, mas para reivindicar direitos autorais e exercer pagamentos de licenças de criadores “adequados”, práticas que provavelmente inibiriam a inovação e a criatividade. Há claramente muitos desafios novos relacionados à política de pi no que concerne à concepção de sistemas de pi razoavelmente eficientes neste contexto mutável. Indiscutivelmente, o raciocínio econômico e a pesquisa empírica quantitativa baseada na teoria econômica (bem-estar) podem ser úteis para estruturar nosso pensamento sobre esses assuntos e fornecer uma melhor base de evidências para a política. Espera-se que este texto incentive acadêmicos, interessados e legisladores a levar em consideração a literatura econômica existente e a promover aplicações mais sofisticadas e atualizadas da economia.

Notas 1 Artigo publicado originalmente em inglês: “Intellectual Property in Creative Industries: the Economic Perspective”, em: Research Handbook on Intellectual Property and Creative Industries, 2018, pp. 570–76. Disponível em: doi 10.4337/ 9781786431172.00013. [N. do org.] 2 As vendas de cópias para usuários finais e o licenciamento andam de mãos dadas, pois

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mesmo os consumidores finais que compram cópias geralmente adquirem uma licença restrita em vez de propriedade total da cópia que adquiriram. Usamos o termo direitos autorais no sentido amplo, anglo-saxão, incluindo os chamados direitos conexos de artistas. 3 Praticamente todos os bens e serviços comercializáveis têm substitutos mais ou

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menos bons. Além disso, ao longo do tempo, um amplo poder de mercado, juntamente com os lucros correspondentes e a demanda insatisfeita, também atrairá concorrentes novos e mais diretos. 4 O padrão de economia de bem-estar de Pareto parece oferecer uma maneira de identificar uma solução ótima para trade-offs sem a necessidade de medir todos os custos e benefícios. Uma solução ótima de Pareto é encontrada quando nenhuma parte interessada pode melhorar sem piorar a situação de outra parte interessada. Em teoria, qualquer solução ótima de Pareto produz o máximo bem-estar social agregado e, portanto, é socialmente ótima no sentido de gerar a maior utilidade agregada. Na prática, no entanto, muitas vezes é impossível determinar políticas que não afetem negativamente qualquer uma das partes interessadas. 5 Se a evidência empírica avançada entrar em conflito com as previsões teóricas, a teoria pode ser revisada, mas o limiar para isso é alto. Normalmente, os economistas procurarão explicar a inconsistência entre teoria e evidência empírica por falhas nos empíricos ou por uma das muitas exceções e circunstâncias especiais que a teoria econômica avançada desenvolveu ao longo dos anos. 6 Observe-se, no entanto, que, como qualquer categorização nas ciências sociais, haverá limites contestáveis. A criatividade tem um componente cumulativo ou cíclico, no qual participam muitas partes interessadas, incluindo consumidores finais sem interesses pecuniários diretos. Isso é particularmente preciso em conteúdo de mídia interativa, como videogames, ou em relação a vários tipos de inovação do usuário e o chamado “prosumo”, que parece se tornar mais importante com a digitalização. 7 Como a teorização microeconômica avançada apontou, pode haver muito investimento em inovação com atritos reais de mercado, por exemplo, porque a proteção à pi favorece investimentos no desenvolvimento de obras protegidas, em vez de obras que estão além do escopo da pi. No entanto, para inovações majoritariamente não excludentes, que estão sujeitas a falhas de mercado devido a externalidades positivas, geralmente é razoável

supor que mais inovação é desejável ao avaliar várias políticas de pi. 8 É claro que a especificação da lei de direitos autorais deixa alguma margem para controle centralizado, começando com a definição de quais tipos de criações humanas são protegidas por direitos autorais. No entanto, dentro de seu domínio, os sistemas de direitos autorais normalmente permitem uma ampla coordenação de mercado. 9 De acordo com o chamado teorema de Coase do Arrow, os mercados alocarão produtos e direitos comercializáveis de forma socialmente ótima para aqueles que têm a maior avaliação, desde que os direitos de propriedade sejam claramente definidos e não haja custos de transação. Custos substanciais para estabelecer direitos de quase-propriedade efetivos para obras criativas são um aspecto essencial do raciocínio econômico em relação à pi. Eles podem ser vistos como um tipo de custo de transação. Assim, não é convincente justificar a pi afirmando que os direitos de propriedade são uma pré-condição para a alocação eficiente de recursos em mercados sem atrito. 10 Sobre gdd, veja-se, por exemplo, Sinha, Machado e Sellman (2010); sobre a aplicação entre os usuários finais particulares, Bhattacharjee et al. (2006) e Poort e Weda (2015); sobre a aplicação nos sites de compartilhamento de arquivos e sites de hospedagem de arquivos, Danaher et al. (2014) e Aguiar, Claussen e Peukert (2015). 11 Tecnicamente falando, os resultados sugerem que, com um sistema de compensação, o excedente agregado de música gravada aumentaria. Entre usuários e fornecedores, haveria alguns vencedores e perdedores. Entretanto, um sistema de compensação passaria no teste de compensação de Kaldor– Hicks, de acordo com o qual os vencedores favoreceriam sua adoção mesmo se tivessem que compensar totalmente os perdedores (o que geralmente não é viável na prática, mas se trata de um experimento de pensamento popular para apoiar avaliações normativas em economia aplicada) (Handke; Balazs; Vallbé, 2016). 12 Para discussões baseadas em uma perspectiva econômica, veja, por exemplo, Landes e Posner (1987; 2003) e Landes (2005).

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MAFALDA DÂMASO é pesquisadora na área de políticas culturais. Trabalha na Erasmus University, em Roterdã, na Holanda, e é doutora em Cultura Visual pela Goldsmiths, na University of London, no Reino Unido. ANDREW MURRAY ocupou cargos de alta liderança no British Council no Reino Unido, na Europa e na África. Possui doutorado pela University of Manchester e atualmente é professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e Cognitivas (DISPOC) da Università di Siena, onde leciona Práticas de Relações Culturais Internacionais no programa de mestrado em Diplomacia Pública e Cultural. Murray continua a conduzir projetos de pesquisa para o British Council e outras redes culturais.


O sistema dualista de gestão da diversidade cultural da União Europeia: o conceito de cultura no programa Europa Criativa (2014–19; 2021–27) e na estratégia para as relações culturais internacionais (2016–)1 MAFALDA DÂMASO E ANDREW MURRAY

Este artigo discute a forma como a União Europeia (ue) define e apoia a cultura. A ue é um conjunto econômico e político formado por 27 Estados-membros. Seu formato atual resulta de vários tratados e mudanças organizacionais, e suas origens baseiam-se na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, estabelecida oficialmente em 1951, formando um mercado comum que unia Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Holanda e Alemanha Ocidental. Hoje, a busca por equilíbrio entre o respeito pela diversidade cultural em uma união de 27 membros e a construção de uma base cultural compartilhada – servindo de suporte a valores comuns e à integração política continuada – é reconhecida no lema oficial da ue: “Unida na diversidade”. Este estudo examina de que forma a ue apoia a cultura dentro da união e em seu trabalho pelo mundo. Internamente, a política cultural europeia tenta fortalecer o setor cultural e criativo de forma a alcançar objetivos como a competitividade nos mercados globais; externamente, a cultura é usada principalmente para apoiar objetivos não econômicos com base em valores como o pluralismo e o desenvolvimento sustentável. Ambas as abordagens implementam o lema da união, mas o fazem de formas muito diferentes.

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A coexistência dessas estratégias na mesma organização torna explícito o fato de que as políticas culturais e, em particular, as indústrias criativas são vistas pelos decisores políticos como algo que atende a objetivos diversos e potencialmente incompatíveis. Isso explica a pertinência da ambiguidade conceitual que muitas vezes caracteriza essa área, conforme o artigo explica. Por conseguinte, a análise detalhada de documentos oficiais da ue sugere que reconciliar esses objetivos estratégicos é possível, apesar de difícil.

INTRODUÇÃO: GESTÃO CULTURAL INTERNACIONAL, CULTURA E UE

Refletindo as experiências cada vez mais transnacionais de produtores culturais e públicos, uma intensificação de pesquisas dedicadas à gestão cultural internacional tem ocorrido nas últimas décadas. Uma parte significativa dessas pesquisas se concentra em sua relação com a política cultural (Paquette; Redaelli, 2015) e no desenvolvimento de habilidades adaptadas a diferentes contextos (por exemplo, democracias de transição, Dewey; Rich, 2003). Os especialistas também se concentram nos aspectos internacionais (Henze, 2018), globais (Mandel; Dewey Lambert, 2020) e interculturais desse trabalho (Durrer et al., 2016). No entanto, como Durrer et al. (2016) observam, ainda há uma necessidade de trabalhos que conectem “reflexão tanto por parte dos teóricos como daqueles que praticam” (Durrer et al., 2016, p. 25). Especificamente, são necessárias mais pesquisas que conectem os debates políticos e os desafios práticos da gestão cultural. Este artigo contribui para superar essa lacuna, demonstrando que a ambiguidade conceitual no nível das políticas da ue leva a desafios fundamentais para os gestores culturais, em especial para o trabalho em países terceiros. A questão da ambiguidade também é relevante para a gestão cultural. Como disciplina relativamente recente que é, por definição, interdisciplinar, seus profissionais são constantemente confrontados com o uso de “terminologia que […] torna o intercâmbio acadêmico e prático um pouco difícil” (Henze, 2018, p. 7). Isso se reflete em discordâncias em relação à nomeação da própria disciplina como artes ou como gestão cultural (Mandel; Dewey Lambert, 2020). Esse conflito, como veremos, se manifesta na linguagem que é usada para se referir à cultura pelos atores da ue. A complexidade conceitual em relação ao termo cultura tem uma longa história na Europa. O recente desenvolvimento de programas

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culturais internos e externos pela ue complexificou ainda mais o trabalho dos gestores culturais internacionais, que devem negociar o que os autores deste artigo denominam como processo dualista da ue de gestão da diversidade. As seções a seguir apresentarão essa ideia, que emerge dos entendimentos concorrentes da cultura que sustentam os programas culturais internos e externos da ue. Revisitaremos os debates de gestão cultural nas seções finais do artigo, que refletem sobre os desafios da gestão da diversidade cultural em um contexto de ambiguidade. Como discutiremos, o termo cultura inclui as artes, mas também pode se expandir além delas. Ademais, a cultura pode ser considerada estática ou fluida, restringida por fronteiras ou transnacional. Portanto, este artigo vê os gestores culturais como atores cujo trabalho navega por diferentes entendimentos do termo cultura e discordâncias mais amplas, das quais as primeiras são sintomáticas. Essa definição difere da do gestor internacional de artes, que administra projetos artísticos em uma área geográfica ampliada ou em “institutos culturais que medeiam entre culturas” (Henze, 2018, p. 11). Ou seja, definimos a gestão cultural como um processo por meio do qual “a diversidade é regulada e distribuída”, refletindo e solidificando relações de poder mais amplas (Levitt, 2015, p. 3). Além disso, a heterogeneidade da cultura estabelece sua gestão como “um imperativo de governança” (Reus-Smit, 2018, p. 5). Isso explica por que o artigo conecta pesquisas de domínios que muitas vezes são mantidos separados: política cultural, gestão de artes, relações internacionais e estudos europeus. Apesar do crescente reconhecimento da importância da cultura nos debates políticos, as questões de definição se proliferam (Calligaro, 2017, p. 78). A multiplicidade de significados atribuídos ao termo cultura pode ser explicada por diversos fatores. Em primeiro lugar, a cultura é objeto de estudo de várias disciplinas. Em segundo, profissionais, formuladores de políticas e estudiosos discordam sobre quais termos e critérios priorizar ao desenvolver, implementar e avaliar estratégias culturais – o que eles fazem de forma independente. Além disso, a identidade dos artistas é definida pela autonomia artística e sua capacidade de operar em um mercado cultural (Bourdieu, 1996). Não se trata apenas de os atores sociais diferirem em seus entendimentos da cultura; forças concorrentes também estão em jogo no campo cultural. Em terceiro lugar, a variação em relação ao termo cultura também reflete desacordos sobre os principais objetivos da ação política (Culture Action Europe,

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2019) e o fato de que o triângulo institucional da ue e o processo de integração gradual levaram à coexistência de elementos de subsidiariedade e de federalismo na política cultural (Gordon, 2010). Com foco específico na ue, os estudiosos argumentam que o caráter polissêmico do termo “adapta-se e serve a uma variedade de propósitos” (Carta; Higgott, 2020, p. 253). Particularmente, as narrativas em torno da cultura colocam em evidência a importância dentro da ue da tensão entre a igualdade formal e a diversidade cultural. Isso se torna claro quando se examina as competências da União Europeia para agir na esfera da cultura. No que diz respeito à ação dentro das suas fronteiras, esses poderes são estabelecidos pelo Tratado de Roma (European Economic Community, em vigor desde 1958) e pelo Tratado de Maastricht (Treaty on European Union de 1992, em vigor desde 1993). Ambos foram alterados pelo Tratado de Lisboa (assinado em 2007; em vigor desde 2009), cuja numeração é utilizada nos parágrafos seguintes. Embora o artigo 167(1) estabeleça que a ue “contribuirá para o florescimento das culturas dos Estados-membros, respeitando sua diversidade nacional e regional e, ao mesmo tempo, pondo em evidência o patrimônio cultural comum”, o artigo 167(2) estabelece que a ue pode desenvolver “ações destinadas a incentivar a cooperação entre os Estados-membros” e, “se necessário”, “apoiar e complementar” sua ação em áreas específicas. Ou seja, este último ponto confere à ue competência para ir potencialmente além da ação cultural dos Estados-membros. No entanto, na sequência da cláusula subsidiária, não é possível uma intervenção direta ou reformas iniciadas pela ue. Em outras palavras, a ação da ue no domínio cultural pode potencialmente contribuir para apoiar o desenvolvimento das culturas dos Estados-membros (entendidas como independentes), alimentar um patrimônio cultural europeu comum e complementar a ação dos Estados-membros. Tais possibilidades sugerem que múltiplas definições de cultura fundamentam os artigos que regulam a ação nesse campo de políticas – uma complexidade que deve ser percorrida pelos gestores culturais. Quanto à ação externa da ue, a política externa e de segurança comum da ue foi estabelecida sob o Tratado de Maastricht e tem sido reforçada gradualmente. O Tratado de Lisboa reformou as estruturas de governança e os procedimentos de decisão, permitindo à ue desempenhar um papel maior na política externa – ou seja, incorporar a cultura dentro dela. O artigo 167(3) estabelece que “a União e os Estados-membros incentivarão a cooperação com os países ter-

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ceiros e as organizações internacionais competentes no domínio da cultura”. No caso da política externa da ue, a regra é que as decisões sejam tomadas por unanimidade. Entretanto, os Estados-membros avançaram no sentido de aumentar a tomada de decisões por maioria qualificada, uma possibilidade indicada nos artigos 31(2) e 31(3). O primeiro também permite que os Estados-membros se oponham a uma decisão tomada por maioria qualificada por “razões vitais e declaradas de política nacional”. No caso da cultura, na ação externa da ue, a palavra-chave, como veremos, é cooperação. Entretanto, isso não simplifica a tarefa enfrentada pelos gestores culturais internacionais que trabalham para a, com a ou financiados pela ue em países terceiros.

AMBIGUIDADE CONCEITUAL E O SISTEMA DUALISTA DE GESTÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL DA UE

O artigo propõe entender a Europa Criativa (tradicionalmente um programa interno, daqui em diante referido como ec) e a Abordagem Estratégica das Relações Culturais Internacionais (um programa externo, daqui em diante referido como rci ou abordagem estratégica) como um continuum pelo qual a ue age junto ou no lugar de seus Estados-membros por meio da cultura em um processo dualista de gestão da diversidade. Ao fazê-lo, o artigo se alinha ao trabalho de Christian Reus-Smit (2018), que vê as instituições internacionais como organizadoras e legitimadoras da diferença cultural. Com o conceito de “sistemas de diversidade”, ele apresenta “normas e práticas em todo o sistema que [...] configuram autoridade [...], organizam a diversidade e criam hierarquias sociais e políticas” (Reus-Smit, 2018, p. 189). Neste artigo, a ec e as rci são entendidas como as duas principais formas pelas quais, por meio da ação cultural, a função pública da ue, seus Estados-membros e a sociedade civil negociam demandas conflitantes de cima para baixo e de baixo para cima: os objetivos de manter a ordem sistêmica em um ambiente complexo e gerenciar a diversidade cultural, respectivamente. Nossa análise também se alinha à abordagem de Durrer e Henze (2020) no que tange a gestão cultural como forma de organização de intercâmbios “entre culturas e entre e dentro das nações” (p. 1), que está conectada a relações de poder mais amplas. Além disso, o artigo responde ao pedido da DeVereaux (2009) no sentido de um

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discurso de prática em gestão cultural, ou seja, “uma exploração profunda dos jogos de linguagem […] e suposições da área” (DeVereaux, 2009, p. 67). Finalmente, embora as pesquisas reconheçam “a ausência de um campo semântico geralmente compartilhado no qual existam narrativas da cultura nas relações externas da ue” (Macdonald; Vlaeminck, 2020, p. 43), tais tensões conceituais e suas implicações ainda não foram examinadas em detalhe, e este artigo contribui para preencher essa lacuna. Considerando o plano (apoiado pela Comissão Europeia) de usar o financiamento da ec para implementar rci no futuro, a seção final deste artigo conecta as ideias de gestão diferenciada da diversidade e ambiguidade conceitual. Este último ponto surge não só como um reflexo da arquitetura institucional da ue, mas também como um processo pelo qual as partes interessadas estabilizam uma ordem cultural muito diversificada e, por último, como um reflexo da complexidade da gestão cultural enquanto domínio de especialização. No âmbito dos estudos de política cultural, Clive Gray (2015) fornece uma análise sobre ambiguidade que é altamente relevante nesse contexto. Ao argumentar que a “natureza contestada da cultura torna o papel da ambiguidade dentro do setor uma (…) preocupação central” (Gray, 2015), ele distingue entre a ambiguidade que emerge de condições institucionais complexas ou como uma escolha deliberada. No primeiro caso, a ambiguidade é uma compensação para os altos custos políticos esperados associados à ação objetiva, “deixando para os níveis meso e micro a responsabilidade de superar tal falta de clareza” (Gray, 2015). Nesse caso, o nível micro inclui gestores culturais. A ambiguidade também pode ser uma escolha deliberada quando há discordância entre as partes interessadas (Gray, 2015). Como veremos, os atores envolvidos na concepção da ec e das rci reconhecem suposições conflitantes sobre o valor da cultura e exploram essa ambiguidade como uma oportunidade de criar programas que apoiam implicitamente a integração europeia. Essa descoberta reflete a pesquisa sobre políticas culturais intrínsecas e instrumentais, o que demonstra que a ambiguidade permite “que uma ampla gama de ações e soluções para problemas percebidos seja rotulada como ‘cultural’ sem criar contradições entre (…) abordagens amplamente diferentes” (Gray, 2009, p. 576). Ou seja, os formuladores de políticas são “agentes ativos que gerenciam a instrumentalização para seus próprios fins” (Hadley; Gray, 2017, p. 95). Por fim, no caso da ue, ambiguidade é um termo cada vez mais utilizado em pesquisas dedicadas às estratégias utilizadas pelos regi-

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mes iliberais (Maj-Tényi et al., 2019). Ou seja, as evidências sugerem que a ambiguidade constitucional da ue (isto é, o descompasso entre suas reivindicações normativas e a realidade, conforme explicado por Jldrzejowska-Schiffauer; Schif-Fauer 2017, p. 17) é explorada por atores eurófilos e eurocéticos. Uma diferença fundamental entre cultura e pesquisas de política externa permanece: ambiguidade construtiva (Berridge; James, 2003, p. 51) é um tópico regular em pesquisas dedicadas aos assuntos externos da ue (Bátora et al., 2018, p. 13). No entanto, a ideia não tem sido utilizada sistematicamente para examinar as políticas culturais da ue. Como veremos, a ambiguidade faz avançar os debates políticos no contexto altamente complexo da ue. Na prática, também cria um conjunto de desafios fundamentais para gestores culturais.

MÉTODO E ESTRUTURA CONCEITUAL

Para identificar os entendimentos da cultura que caracterizam os principais programas culturais implementados dentro e fora das fronteiras da ue, o artigo examina uma variedade de documentos e relatórios criados ou encomendados pelo Parlamento, pela Comissão e pelo Conselho europeus (como comunicações, conclusões, regulamentos e/ou avaliações da Europa Criativa e das rci compilados nas tabelas 1 e 2), bem como literatura acadêmica de estudos de política cultural e relações culturais. Em segundo lugar, baseia-se em entrevistas semiestruturadas com duas partes interessadas de alto nível realizadas, em julho de 2019, em Londres e Bruxelas: a Entrevista 1, da Direção Geral de Educação e Cultura da Comissão (dg-eac), e Entrevista 2, do escritório Creative Europe no Reino Unido, com conhecimento do trabalho do British Council. Isso nos permitiu combinar as perspectivas dos servidores públicos diretamente envolvidos na elaboração e na implementação desses programas em diferentes escalas. As entrevistas se concentraram nos objetivos da ec e das rci, seus regulamentos, sua governança, sua implementação e sua avaliação. As falas dos entrevistados e a literatura da ue foram examinados de acordo com a análise temática – especificamente, utilizando uma abordagem teórica, focada no nível latente e fundamentando-se em uma perspectiva construtivista. Com base em uma pergunta inicial (“como esses programas entendem a cultura?”), identificamos padrões recorrentes para “fornecer uma descrição mais detalhada e diferenciada de um tema específico”

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(Braun; Clarke, 2006, p. 11). Além disso, identificamos “as ideias implícitas, suposições e conceitualizações” que informam tais padrões (Braun; Clarke, 2006, p. 13). Por fim, interpretamos as falas de nossos entrevistados no contexto dos significados que o termo cultura adquiriu nos processos institucionais da ue. A cultura, como afirma Raymond Williams, é uma das mais complicadas palavras na língua inglesa (1977, p. 87). Estruturamos a análise de como a cultura é compreendida em três dimensões: abrangência, rigidez e posição em relação ao Estado-nação. Isso é inspirado em discussões sobre o termo cultura na esfera da política cultural e nos estudos culturais; também resulta da escassez de literatura sobre relações culturais (British Council; Goethe-Institut, 2018, p. 21). No que diz respeito ao seu escopo, as definições variam desde sugerir uma compreensão específica do setor, como uma área de especialização profissional, até uma compreensão antropológica que inclui valores, linguagem e outros elementos (Bell; Oakley, 2014, p. 16). Para utilizar a estrutura agora clássica fornecida por Williams, o entendimento mais restrito do escopo da cultura a vê como um setor de especialização (“as obras e as práticas da atividade intelectual e especialmente artística” [Williams, 1976, p. 90], daqui em diante referido como o entendimento profissional da cultura). Do outro lado do espectro, o entendimento mais amplo refere-se a “um modo particular de vida, seja de um povo, um período, um grupo ou a humanidade em geral” (Williams, 1976, p. 90). A palavra “particular” é fundamental nessa formulação: “falar de ‘culturas’ no plural é contestar a ideia de que existe um padrão ‘correto’ de desenvolvimento humano – como está implícito, digamos, na noção eurocêntrica de ‘civilização’” (Tomlinson, 1991, p. 5). Esse ponto é crucial. As discussões sobre cultura como um modo de vida muitas vezes se referem à definição de Edward Taylor, de 1871, englobando “ideias, valores, instituições e práticas” (Reus-Smit, 2018, p. 9). No entanto, a abordagem de Taylor à diversidade foi baseada em uma visão evolutiva dos traços culturais (Reus-Smit, 2018, p. 19). Embora o movimento de pluralização tenha sido feito por Franz Boas e Ruth Benedict, esses antropólogos mantiveram a suposição de que as culturas são entidades integradas. Tal princípio foi questionado por pesquisas recentes – por exemplo, o estudo de Lila Abu-Lughod sobre as experiências vividas das mulheres beduínas (Abu-Lughod, 1993). Apesar dessa mudança de paradigma, os estudos de ri continuam a reiterar uma compreensão integrada da cultura (Reus-Smit, 2018, p. 47). Inversamente, como veremos,

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a abordagem da ue à cultura em suas fronteiras externas visa “pluralizar o conceito de cultura” (Tomlinson, 1991, p. 5) e reconhece-o como contestado (Reus-Smit, 2018, p. 32) ao mesmo tempo que rejeita uma abordagem eurocêntrica na identificação de caminhos de desenvolvimento em países terceiros. Além disso, pode-se colocar entre essas duas abordagens (profissional e antropológica) uma compreensão civilizacional da cultura, ou seja, “um processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético” (Williams, 1976, p. 90) ao qual o elitismo é frequentemente implícito. Há também questões sobre a rigidez com que se define a cultura. Refletindo sobre a política de representação e o cinema do Caribe, o teórico cultural Stuart Hall (1993) fornece uma dupla definição de identidade cultural: uma compreensão estática que reflete “as experiências históricas comuns e os códigos culturais compartilhados” que fornecem “quadros de referência e significado” (p. 223), e uma compreensão mutável da identidade cultural como “uma questão de ‘tornar-se’ assim como de ‘ser’” (p. 225). A identificação das três principais dimensões conceituais – escopo, rigidez e posição – serve ao propósito de proporcionar clareza analítica; não sugere que esses debates sejam independentes uns dos outros. Ao fazer tal afirmação, nos alinhamos ao sociólogo cultural John Tomlinson, que argumenta “o que precisamos entender não é o que é cultura, mas como as pessoas usam o termo” (Tomlinson, 1991, p. 5). Por fim, o que é particularmente importante ao discutir a política cultural em um nível transnacional, a cultura (como um conjunto de práticas e como um campo político) pode ser desenvolvida dentro das fronteiras nacionais ou entendida como uma preocupação transnacional. De fato, embora a estrutura do Estado-nação tenda a ser adotada em pesquisas sobre o setor cultural e criativo na Europa (Bondebjerg; Redvall, 2015), a ciência questiona cada vez mais uma abordagem metodologicamente nacionalista da política cultural (para um resumo das discussões em torno das políticas inter e transculturais ver Dâmaso, 2018). A combinação dessas três dimensões cria um espectro que vai desde uma compreensão nacional, estática e específica do setor, por um lado, até uma definição antropológica, evolutiva e transnacional, por outro lado. Essa diversidade de definições se reflete nas duas políticas e estratégias da ue que são analisadas a seguir. Portanto, as próximas seções sugerirão que a ambiguidade conceitual é a chave para a gestão da diversidade cultural na União.

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EUROPA CRIATIVA: UMA COMPREENSÃO COMPLEXA DA CULTURA

A Europa Criativa é o programa financeiro da ue dedicado a apoiar os setores criativo, cultural e audiovisual no continente europeu. Foi lançado em janeiro de 2014, substituindo os programas anteriores do Culture and Media (2007-13). Suas inovações incluíram a troca de subsídios operacionais por subsídios de ação e apoio financeiro direto (Bruell, 2013, pp. 17-20). É composto pelos subprogramas Cultura, que “promove os setores criativo e cultural”, e Media, que “apoia o desenvolvimento e a distribuição de obras audiovisuais” (Creative Europe, sem data). A Europa Criativa também inclui uma vertente transversal e apoia várias iniciativas, como as Capitais Europeias da Cultura. Em março de 2019, com exceção dos Estados-membros da ue, sete países participaram plenamente no programa (Islândia, Noruega, Albânia, Bósnia e Herzegovina, Macedônia do Norte, Montenegro, República da Sérvia) e seis parcialmente (Geórgia, Moldávia, Ucrânia, Tunísia, Armênia, Kosovo). Os debates interinstitucionais que levaram à criação e à renovação de ec foram examinados por Anna Kandyla (2015), que conclui que “a tentativa da Comissão de reforçar as pontes entre os setores cultural e criativo [promoveu] a difusão de uma abordagem econômica e orientada para a produção” (Kandyla, 2015, p. 59). A análise de Kandyla junta-se ao estudo de Valtysson (2018) sobre a evolução discursiva dos Programas Culturais da ue, que encontra uma mudança de rumo em políticas que se afastam do pluralismo. Essa tendência é confirmada na Estratégia Europa 2020 (Comissão Europeia, 2010), na qual “os objetivos que se referem a valores intrínsecos, diversidade cultural […], tolerância e solidariedade […] foram empurrados para a periferia” (Valtysson, 2018, p. 34). Dito isso, as atuais pesquisas sobre as particularidades da Europa Criativa não examinam a compreensão da cultura que a fundamenta. É o que propomos nos próximos parágrafos. Eles são informados pela tabela 1, que lista as definições incluídas nos principais documentos associados às ec 2014–20 e 2021–27. No documento que regulamenta o programa (European Union, 2013), as indústrias culturais e criativas estão agrupadas na mesma definição: “todos os setores cujas atividades se baseiam em valores culturais e/ou expressões artísticas e outras expressões criativas” (European Union, 2013). Essa não distinção entre atividades orientadas e não orientadas para o mercado também é evidente nos objeti-

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vos gerais do programa: “(a) salvaguardar, desenvolver e promover a diversidade cultural e linguística europeia e promover o patrimônio cultural europeu; (b) fortalecer a competitividade dos setores culturais e criativos europeus” (European Union, 2013, p. 5). Uma avaliação da primeira iteração do programa (2014–20) mencionou críticas da sociedade civil em relação ao seu “estilo econômico” e à definição da cultura como um bem e serviço (Bruell, 2013, p. 7). Tal crítica foi reiterada em um relatório do Parlamento Europeu (European Parliament, 2017, p. 4). Aplicando nosso esquema conceitual à iteração original da ec, descobrimos que ele é estruturado, em sua maioria, em torno de um entendimento de cultura específico do setor. Quanto aos outros dois eixos (rigidez e escopo geográfico), os objetivos específicos do programa acrescentam mais complexidade a esta análise. Eles estão voltados, especificamente, para: • apoiar a capacidade dos setores culturais e criativos europeus para operar de forma transnacional (…); • promover a circulação transnacional de obras culturais e criativas (…); • reforçar a capacidade financeira das pmes (…). (European Union, 2013, p. 6). Em resumo, o programa visa apoiar a capacidade dos atores de agir de forma transnacional (mas não necessariamente para criar conteúdo transnacional – embora este último seja descrito como o valor agregado da ue, ver tabela 1), promover a mobilidade dos criadores além das fronteiras nacionais e atingir novos públicos (o que pode ocorrer dentro das fronteiras nacionais). Além disso, o regulamento sugere que a ec tem a tarefa de “contribuir para o florescimento das culturas dos Estados-membros” (2013, p. 1, grifo nosso), o que sugere uma compreensão flexível da cultura. Na prática, as partes interessadas envolvidas no processo de atribuição de subsídios afirmam que os projetos sem uma abordagem transnacional e flexível da cultura não são apoiados (Entrevistas 1 e 2). Dentro dessa perspectiva, a ec é um programa colaborativo de cocriação transfronteiriça; implícito nessa abordagem está um conjunto de valores como abertura e amizade (Entrevista 1) e o fortalecimento da sociedade civil (Entrevista 2) que auxiliam os laços entre os Estados-membros. Dito isso, há margem para discordar sobre se tal abordagem da cultura é realmente um

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pré-requisito para o apoio. Em outras palavras, existe uma lacuna entre as metas codificadas da ec e os objetivos ocultos atendidos pelo programa. Não obstante, a necessidade de reforçar a ação cultural transnacional é efetivamente reconhecida pelas partes interessadas da ue. O Parlamento solicitou a utilização do potencial da “vertente transversal a fim de [promover] a cooperação transnacional e intersetorial” (European Parliament, 2017, p. 8), enquanto a proposta da Comissão para uma nova ec (2021–27) substituiu o objetivo de “salvaguardar, desenvolver e promover” a diversidade e o patrimônio europeus (European Union, 2013, p. 5, grifo nosso) com o objetivo de “promover a cooperação europeia” sobre esses temas (European Union, 2018, p. 23, grifo nosso), codificando o que até então permanecia implícito. A transição de uma compreensão um tanto estática da cultura (que considera a diversidade como um pressuposto) para uma compreensão mais fluida e transnacional (usando uma abordagem colaborativa para desenvolver tal diversidade) também é evidente nos objetivos específicos do programa. A futura iteração do programa se concentrará em “reforçar a dimensão econômica, social e externa da cooperação em nível europeu para desenvolver e promover a diversidade cultural europeia (…) reforçando as relações culturais internacionais” (European Union, 2018, p. 23, grifo nosso), assim “incentivando a criação e cooperação cultural mais dinâmica” (Entrevista 2). Ou seja, o objetivo da Comissão é que a ec “possa se tornar uma forma externa de implementar uma abordagem interna”, ampliando a área na qual valores como o respeito à diversidade e à cooperação orientam a ação cultural (Entrevista 2). Nessa direção, os projetos-piloto externos existentes da ec (por exemplo, nos Balcãs Ocidentais) são “experimentos em colaboração” com a ambição de escalar, substituindo uma abordagem bilateral por uma regional (Entrevista 2). Entretanto, como será argumentado a seguir, as diferenças conceituais entre ec e rci questionam sua interoperabilidade enquanto programas de gestão da diversidade cultural.

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Tabela 1: Europa Criativa (2014–19; 2021–27) – Documentos-chave (com títulos encurtados), definições e comentários Definição

Comentários

“Setores culturais e criativos”, todos os setores cujas atividades se baseiam em valores culturais e/ou expressões artísticas e outras expressões criativas, independentemente de essas atividades serem orientadas para o mercado ou não, independentemente do tipo de estrutura que as desenvolve, e independentemente da forma como essa estrutura é financiada. Essas atividades incluem o desenvolvimento, a criação, a produção, a difusão e a preservação de bens e serviços que incorporem expressões culturais, artísticas ou outras expressões criativas, bem como funções conexas, como a educação ou a gestão. Os setores culturais e criativos incluem, entre outros, arquitetura, arquivos, bibliotecas e museus, artesanato artístico, audiovisual [...], patrimônio cultural tangível e intangível, design, festivais, música, literatura, artes cênicas, edição, rádio e artes visuais” (2013, p. 5).

O regulamento começa mencionando a tarefa de “contribuir para o florescimento das culturas dos Estados-membros” (2013, p. 1, grifo nosso). Ao fazê-lo, o documento sugere que uma união transnacional mais estreita pode ser construída apoiando o desenvolvimento de culturas nacionais (isto é, mutuamente exclusivas). Entretanto, a palavra florescimento transmite que estes não são estáticos. Quanto ao escopo da cultura, a definição apresenta uma compreensão profissional desta.

Nenhuma definição fornecida.

Entre outros pontos, o Parlamento Europeu critica o viés econômico da ec (2017, p. 8) e sua capacidade financeira.

Nenhuma definição fornecida.

O Conselho sugere a necessidade de analisar “medidas que abordem [...] as condições do quadro jurídico e financeiro para o desenvolvimento das indústrias culturais e criativas” (2017, p. 5, grifo nosso), confirmando o seu apoio a uma compreensão profissional da cultura.

Conselho Europeu (2017) – Conclusões da reunião

Parlamento Europeu (2017) – Implementação da ec

União Europeia (2013) – Programa ec

Doc.

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Comissão Europeia (2018) – Proposta que cria o programa Europa Criativa (2021–27)

Comissão Europeia (2018) – Avaliação intercalar da ec

Doc.

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Definição

Comentários

Nenhuma definição fornecida.

O documento reconhece preocupações em relação à “priorização de objetivos econômicos em detrimento de considerações artísticas e sociais” (2018, p. 5). No entanto, o seu foco reside em desafios, como o “acesso ao financiamento” (2018, p. 3), confirmando a compreensão profissional da cultura pela Comissão. Afirma também que “esses setores são inerentemente diversificados ao longo das linhas […] nacionais” (2018, p. 1), mas acrescenta que a EC “proporcionou valor agregado à UE […], concentrando-se na cooperação transnacional” (2018, p. 6). Isso revela uma ambiguidade: a Comissão argumenta que a ec cria valor agregado à ue quando inclui a cocriação transnacional; porém, esta última não é uma condição prévia para a participação da ec.

“Setores culturais e criativos”, todos os setores O documento sugere várias alterações na cujas atividades se baseiam em valores definição de cultura que está incluída na culturais ou em expressões artísticas e outras Europa Criativa. A inclusão do termo expressões e práticas criativas individuais ou “práticas” pode ser lida como questionamento coletivas, independentemente de essas atividades das fronteiras claramente estabelecidas de serem orientadas para o mercado ou não. As uma definição profissional da ideia de “setores atividades podem incluir o desenvolvimento, culturais e criativos” (e, portanto, como a criação, a produção, a disseminação e a oximorônica). preservação de práticas, bens e serviços que incorporem expressões culturais, artísticas ou outras expressões criativas, bem como funções conexas, como educação ou gestão. Muitos deles têm potencial para gerar inovação e emprego, em especial com base na propriedade intelectual. Os setores incluem arquitetura, acervos, bibliotecas e museus, artesanato artístico, audiovisual (incluindo cinema, televisão, videogames e multimídia), patrimônio cultural tangível e intangível, música, literatura, artes cênicas, livros e publicações, rádio e artes visuais, festivais e design, incluindo design de moda” (2018, p. 36; grifos originais).

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Definição

Comentários

Comissão Europeia (2018) – Avaliação de impacto que acompanha a proposta do programa da ec 2021–27

“Setores culturais e criativos são aqueles que produzem e distribuem bens ou serviços que, no momento em que são desenvolvidos, são considerados como tendo um atributo, uso ou propósito específico que incorpora ou transmite expressões culturais, independentemente do valor comercial que possam ter e, em particular, incluindo as indústrias que usam a cultura como insumo e têm uma dimensão cultural, embora seus resultados sejam principalmente funcionais. Como definido pela com (2012) 537, os setores culturais e criativos abrangem, em especial, arquitetura, acervos e bibliotecas, artesanato artístico, audiovisual (incluindo o cinema, televisão, jogos de vídeo e multimídia), patrimônio cultural, design (incluindo design de moda), festivais, a música, artes cênicas e visuais, edição e rádio” (2018, p. 3).

Chama a atenção a rejeição pela Comissão das alterações propostas pelo Parlamento (em particular, a inclusão da ideia de práticas). Além disso, no âmbito do programa Cultura, Direitos e Valores, o documento propõe um conjunto de indicadores para acompanhar os objetivos da ec. Eles incluem: “número e escala de parcerias transnacionais criadas com o apoio do programa; número de artistas e atores culturais e/ou criativos (geograficamente) com mobilidade para além das fronteiras nacionais por conta do apoio do Programa, por país de origem; número de pessoas que acessam obras culturais e criativas europeias geradas” (2018, pp. 41– 42). Estes devem ser acompanhados por parâmetros e metas específicas. No entanto, estes últimos não estão definidos.

Nenhuma definição fornecida

O relatório vê positivamente várias mudanças na vertente Cultura da ec, a saber, a introdução de “ações horizontais, setoriais e específicas” (2019, p. 72). Além disso, o relator sugere várias alterações que indicam um desacordo não resolvido entre o Parlamento e a Comissão. Por exemplo, a alteração 1 acrescenta a palavra artes à frase “a cultura, as artes, o patrimônio cultural e a diversidade cultural são de grande valor para a sociedade europeia” (2018, p. 4, grifo nosso).

Parlamento Europeu, Comissão cult (2019) – Relatório sobre a proposta

Doc.

Fonte: elaboração própria.

CULTURA NAS RELAÇÕES EXTERNAS DA UE: A ABORDAGEM DAS RELAÇÕES CULTURAIS

A Ação Externa da ue proclama orgulhosamente em seu site que “a cultura está no cerne das relações internacionais da ue” (eeas, sem data), embora haja poucas evidências disso em suas operações, suas políticas e seus programas. A sua Estratégia Global (eeas, 2016) contém apenas uma menção periférica à cultura. Existem várias razões para tal, como a falta de clareza quanto às responsabilidades e funções respectivas das delegações da ue e dos institutos culturais nacionais dos Estados-membros da ue, bem como a falta de coordenação eficaz entre as próprias instituições da ue, principalmente entre o eeas, a dg intpa (o Departamento de Parcerias Internacionais,

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antigo devco) e a dg de Educação e Cultura da Comissão. Há uma coordenação leve por meio de uma reunião mensal de coordenação interserviços com as dgs intpa, near, eac e o eeas. Entretanto, a coordenação real só pode ser feita no nível do Colégio de Comissários, e até agora a cultura nunca foi discutida pelo Grupo de Comissários que lidam com assuntos externos (Entrevista 2). Ao contrário de sua contraparte interna, a noção de cultura usada nas rci se apoia fortemente na definição antropológica encontrada na Convenção da unesco de 2005 (tabela 2). Tal abordagem é notada nos documentos produzidos pelas instituições da ue a partir de 2007. Embora a definição profissional de cultura e a justificação econômica para apoiar esse setor no exterior também estejam presentes, a promoção da diversidade cultural emerge como um meio de influenciar as culturas e políticas de países terceiros por meio de programas culturais que abrangem a sociedade civil (de baixo para cima) e não as elites políticas (de cima para baixo). Ao fazê-lo, a ue pretende se adaptar de forma mais flexível a diferentes tipos de reivindicações culturais, como posições civilizacionais, étnico-nacionais e religiosas (Reus-Smit, 2018, p. 230). Assim, rejeita tanto uma abordagem culturalista da diversidade, que vê a ordem internacional baseada em valores ocidentais e, portanto, percebe a diversidade cultural como um problema (Reus-Smit, 2018, p. 226), como uma visão internacionalista, a argumentar que as instituições neutralizam a cultura, retirando-a do domínio público ou delegando-a ao âmbito doméstico, parafraseando o Reus-Smit (2018, p. 229). Em vez disso, a ue reconhece que a diversidade cultural é uma condição fundamental das relações internacionais. Todavia, a dimensão cultural da ação externa e de segurança da ue é caracterizada por uma tensão estrutural: as rci associam uma compreensão da diplomacia cultural como sendo, ao mesmo tempo, de interesse nacional e de aproveitamento de uma ordem internacional pacífica (Ang et al., 2015). Todos os Estados-membros praticam a diplomacia cultural: a cultura é utilizada por suas redes diplomáticas e por seus institutos nacionais para apresentar suas próprias culturas (muitas vezes entendidas como estáticas e desenvolvidas dentro das fronteiras nacionais) e para perseguir objetivos de política externa de curto prazo (por exemplo, para melhorar o comércio e o investimento). Contudo, a Alemanha também usa o termo “relações culturais”, assim como o antigo membro britânico da ue. O Goethe-Institut opera à distância de seu governo, seus principais objetivos não são orientados pela política externa, e seu propósito

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é promover a confiança e o entendimento entre o povo da Alemanha e os povos de países terceiros. Quanto à sua rigidez e espacialidade, a abordagem das relações culturais “passou da representação cultural nacional para a cooperação internacional” (British Council; Goethe-Institut, 2018, p. 16); portanto, a cultura é entendida como flexível e como algo compartilhado em nível transnacional. Quanto a seu alcance, a abordagem alemã vê que a cultura tem um papel “na formação de vínculos com os atores da sociedade civil e na promoção dos valores centrais da República Federal Alemã” (British Council; Goethe-Institut, 2018, p. 16), refletindo a definição antropológica. A adoção pela ue da abordagem das relações culturais anglo-alemãs como estratégia para a cultura e as relações externas da ue (Council of the eu, 2019) resulta em parte do princípio da subsidiariedade: a Comunicação Conjunta (European Commission, 2016) reconhece que a diplomacia cultural é da competência dos Estados-membros. Um fator importante na atratividade dessa abordagem é que sua definição antropológica também pode ser usada para promover os valores fundamentais da ue em países terceiros. A Comunicação Conjunta inicia-se com a declaração a seguir: A diversidade cultural é parte integrante dos valores da União Europeia. A ue está firmemente empenhada em promover uma ordem mundial baseada na paz, na segurança jurídica, na liberdade de expressão, na compreensão mútua e no respeito dos direitos fundamentais. (European Commission, 2016, p. 2)

E termina com uma proposta: (I) apoiar a cultura como motor de um desenvolvimento social e econômico sustentável; (ii) promover a cultura e o diálogo intercultural para relações interculturais pacíficas; e (iii) aprimorar a cooperação na esfera do patrimônio cultural. (European Commission, 2016, p. 15)

A Comunicação Conjunta deve muito de seus princípios à Ação Preparatória para a Cultura nas Relações Externas da ue (European Union, 2014), um documento escrito por acadêmicos, profissionais e especialistas independentes provenientes de institutos culturais nacionais e do setor privado. Embora seu relatório final afirme que as relações culturais devam entender a cultura como “as obras e práticas da (…) atividade artística” (citado por Williams, 1988, p. 90),

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também reconhece sua definição antropológica (European Union, 2014, p. 17). Essa dupla compreensão do termo cultura é evidente nas expectativas dos países terceiros pesquisados no relatório, que faz menção ao potencial dos “programas educacionais, culturais e científicos” no âmbito das relações culturais (European Union, 2014, p. 80). Em 2019, um Plano de Ação foi elaborado pelo Comitê de Assuntos Culturais do Conselho e aprovado pelo Conselho de Assuntos Exteriores. Reiterou os princípios da abordagem das relações culturais anglo-alemãs: alinhamento com a política externa, mas com uma perspectiva de longo prazo; uma ampla definição de cultura, incluindo “ciência, educação, turismo e patrimônio cultural”; uma “abordagem descentralizada, exigindo políticas e projetos adaptados ao contexto local, necessidades e aspirações” (Council of the eu, 2019, p. 5) e impulsionada por um novo espírito de diálogo […] que implica a cooperação das partes interessadas locais e da sociedade civil em todos os níveis (planejamento, projeto, implementação) e em pé de igualdade, visando uma abordagem de baixo para cima e de pessoa para pessoa, empoderamento local, participação e cocriação. (Council of the eu, 2019, p. 5)

Os objetivos dessa abordagem são ambiciosos. Foi reconhecido que as relações culturais internacionais ainda não estavam integradas nos instrumentos de política externa utilizados pela ue; as ações da ue em nível multilateral careciam de coerência; a cooperação intersetorial entre as instituições da ue e os Estados-membros era fraca; e as sinergias e complementaridade entre as atividades empreendidas pela ue e seus Estados-membros em países terceiros eram insuficientes. Além de abordar essas fraquezas estruturais, o objetivo da abordagem foi promover a aprendizagem mútua, a compreensão intercultural e a confiança entre a ue e seus parceiros nas relações externas, conferindo simultaneamente poderes aos setores culturais locais como motores para o desenvolvimento inclusivo e sustentável, o progresso social e cultural e promoção da diversidade cultural, da inovação e da resiliência econômica. (Council of the European Union, 2019, p. 4)

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Aqui vemos quatro usos do termo cultura; o significado antropológico ocupa um lugar de destaque e a definição setorial é utilizada como um meio para um fim, invertendo a classificação que está implícita na ec. Essa abordagem é radicalmente diferente das atividades de diplomacia cultural que não são realizadas pela maioria dos Estados-membros e pelas delegações da ue (eunic, 2018). O uso da cultura no sentido antropológico pela ue é relevante no contexto deste artigo. David Bell e Kate Oakley explicam que, na Europa, “a política cultural tende a se limitar à cultura no sentido de atividades artísticas”, ao passo que a compreensão da cultura como modo de vida tem sido mais influente nos estudos de desenvolvimento aplicados ao Sul global e nos estudos culturais (Bell; Oakley, 2014, p. 17). O fato de que um entendimento antropológico da cultura caracteriza a ação da ue em países terceiros – mas não internamente – revela uma hierarquia no sistema de diversidade da ue (Reus-Smit, 2018, p. 189). Williams escreve que “o uso social e antropológico da cultura que se estende constantemente […] ignorou ou efetivamente diminuiu […] seu desconforto associado” (Williams, 1976, p. 92). Ao contrário de Williams, nossa análise sugere que, no nível da ue, ela só é superada externamente. Ao reconhecer algumas das limitações listadas acima, o Plano de Ação (Council of the eu, 2019) convida os Estados-membros a melhorar a colaboração entre os “Ministérios da Cultura e das Relações Exteriores” (Council of the eu, 2019, p. 5). Em segundo lugar, a estrutura convida a Comissão e a eeas a “reforçar a colaboração com os órgãos relevantes do Conselho na concepção e implementação das estruturas existentes e futuras […]” (Council of the eu, 2019, p. 6) e recomenda que as instituições da ue “assegurem a competência adequada no campo das relações culturais” (Council of the eu, 2019, p. 6). A proposta de que as instituições devem colaborar e assegurar “competência apropriada” é uma sugestão tácita de que a implementação das rci requer uma abordagem diferente daquela utilizada pela maioria dos Estados-membros. Em terceiro, o Plano solicita à Comissão, ao eeas e aos Estados-membros que implementem “projetos comuns e ações conjuntas […] baseados em uma visão estratégica comum desenvolvida em nível local pelos Estados-membros, suas representações diplomáticas e consulares, seus institutos culturais, eunic, delegações da ue e partes interessadas locais” (Council of the eu, 2019, p. 8). Isso sugere uma compreensão das relações culturais que reverbera

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o que está descrito em um relatório para o British Council como a transição da transacionalidade de uma relação de benefício recíproco em direção à mutualidade. Em vez disso, “nas relações culturais […] os objetivos são a descoberta, a mudança de ideias e, eventualmente, a confiança” (Rose; Wadham-Smith, 2004, p. 38). Além disso, “a construção de confiança requer independência do governo” (Rose; Wadham-Smith, 2004, p. 52). Para ser fiel a esses princípios, a estratégia de relações culturais tem de ser concebida de baixo para cima pelos atores sociais que trabalham com especialistas em relações culturais dos Estados-membros e delegações da ue, reverberando o que Ang, Isar e Mar descrevem como “um entendimento da cultura (…) como um processo contínuo e intrinsecamente relacional” (Ang; Isar; Mar, 2015). É notável que esse processo (que não pode ser imposto de cima para baixo por meio de um programa liderado por Bruxelas) foi ativado por instituições da ue como uma forma de incitar os Estados-membros a reverem a forma como estes implantam a cultura para fins diplomáticos em países terceiros.

Tabela 2: Estratégia para as Relações Culturais Internacionais (2016-) – Documentos-chave (com títulos encurtados), definições e comentários

Comissão Europeia (2007) – Comunicação sobre uma Agenda Europeia para a Cultura

Doc.

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Definição

Comentários

“‘Cultura’ é geralmente reconhecida como complexa de definir. Pode referir-se às Belas Artes, incluindo uma variedade de obras de arte, bens culturais e serviço. ‘Cultura’ também tem um significado antropológico. É a base de um mundo simbólico de significados, crenças, valores, tradições que se expressam na linguagem, na arte, na religião e nos mitos. Como tal, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento humano e no tecido complexo das identidades e hábitos de indivíduos e comunidades” (2007, p. 3).

O presente documento estabelece o quadro para o debate sobre a cultura e as relações externas da ue. O reconhecimento, pelos autores, da complexidade do conceito de cultura é admirável, mas, infelizmente, é raramento replicado em anos posteriores.

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União Europeia (2014) – Ação Preparatória sobre a cultura nas Relações Externas da ue

Parlamento Europeu (2011) – Resolução de maio de 2011

Conselho da União Europeia (2008) – Conclusões do Conselho sobre a promoção da diversidade cultural e do diálogo intercultural nas relações externas

Doc.

Definição

Comentários

O documento afirma que “os intercâmbios culturais e a cooperação cultural, inclusive na esfera audiovisual, podem ajudar a estabelecer relações baseadas na parceria, fortalecer o lugar e o papel da sociedade civil, promover processos de democratização e boa governança e promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais” (2008, p. 2). Propõe igualmente “o estabelecimento de estratégias específicas com as regiões e os países fora da União, tendo em vista clarificar os objetivos e as abordagens no domínio das relações culturais; essas estratégias serão, em especial, adaptadas às características e às perspetivas de desenvolvimento sustentável dos seus setores culturais, ao estado dos intercâmbios culturais com a União e às suas situações econômicas e sociais” (2008, p. 4).

Note-se uma das primeiras utilizações das relações culturais nos documentos oficiais da ue. Aqui, a noção de relações culturais está a ser definida não apenas como cooperação entre atores culturais, mas também como cooperação entre culturas e, naturalmente, com o objetivo de promover certos valores.

Nenhuma definição fornecida.

O documento afirma que o Parlamento Europeu “está preocupado com a fragmentação da política e dos projetos culturais externos da ue, que está dificultando a utilização estratégica e eficiente dos recursos culturais e o desenvolvimento de uma estratégia comum visível da ue sobre os aspectos culturais das relações externas da ue” (2011, p. 6). Essa resolução é importante porque é seguida da Ação Preparatória e incita a Comissão a formular uma estratégia da ue em matéria de cultura e de relações externas.

Nenhuma definição única fornecida (ver notas à direita). No entanto, o documento afirma que “devemos abster-nos de todas as noções de cultura como fixas e imutáveis ou de culturas distintas como entidades homogêneas e imutáveis delimitadas (…). Devemos reconhecer as identidades culturais como construções múltiplas e fragmentadas” (2014, p. 108, grifo nosso).

No que diz respeito ao mandato, é evidente que as relações culturais para efeitos do inquérito devem referir-se à cultura principalmente como atividade artística (2014, p. 17). Porém, o Consórcio também reconhece que, no uso contemporâneo comum, esse significado é combinado com uma compreensão antropológica da cultura. A rejeição do documento a uma compreensão estática da cultura também é digna de nota. Os consultores estão claramente frustrados com a definição restrita de cultura e relações culturais que lhes é imposta pela Comissão, uma imposição que eles ignoram em grande parte em seu relatório (ver segunda citação abaixo).

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Definição

Comentários

Conselho da União Europeia (2015) – Conclusões sobre a cultura nas Relações Externas da ue

Nenhuma definição fornecida. No entanto, o documento afirma que “para realizar o potencial da cultura para ser uma parte importante das relações externas, é necessário ir além de projetar a diversidade das culturas europeias e visar a geração de um novo espírito de diálogo” (2015, p. 4). “A cultura é um componente essencial da dimensão humana, social, econômica e ambiental do desenvolvimento e, portanto, um elemento-chave do desenvolvimento sustentável” (2015, p. 5).

Seguindo o exemplo do Relatório de Ação Preparatória, a definição profissional agora está ao lado do entendimento antropológico e inclui especificamente educação, patrimônio cultural e um papel para a cultura no desenvolvimento.

“A cultura não se trata apenas de artes ou literatura. Abrange uma vasta gama de políticas e atividades, do diálogo intercultural ao turismo, da educação e investigação às indústrias criativas, da proteção do patrimônio à promoção de indústrias criativas e novas tecnologias, e do artesanato à cooperação para o desenvolvimento (…). A cultura também é um elemento-chave do desenvolvimento sustentável, na medida em que o setor criativo pode promover a reconciliação, o crescimento e a liberdade de expressão sobre os quais outras liberdades fundamentais podem ser construídas” (2016, p. 4, grifo nosso).

A comunicação desce ainda mais o espectro da definição no sentido de um significado antropológico mais amplo. Um acréscimo notável ao catálogo de significados é ciência.

Nenhuma definição fornecida. No entanto, o documento reconhece “a necessidade de uma abordagem transversal da cultura” (2019, p. 5).

A subjetividade do conceito é muito reveladora da expansão da definição de cultura.

Conselho da União Europeia (2019) – Conclusões e plano de ação

Comissão Europeia (2016) – Comunicação conjunta para uma estratégia da ue em matéria de relações culturais internacionais

Doc.

Fonte: elaboração própria.

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APLICAÇÃO DA ESTRATÉGIA DA UE PARA AS RELAÇÕES CULTURAIS INTERNACIONAIS POR MEIO DA EUROPA CRIATIVA: OS LIMITES DA AMBIGUIDADE

Não foram previstos novos instrumentos financeiros para a implementação da Estratégia da ue para as Relações Culturais Internacionais. Em vez disso, a Comunicação Conjunta propõe “utilizar os planos de cooperação e os instrumentos de financiamento existentes” (European Commission, 2016). Ou seja, a Comissão pretende expandir a Europa Criativa e torná-la o principal instrumento existente para a implementação das rci. Embora as evidências reunidas até agora confirmem que a ambiguidade conceitual resulta da complexidade institucional da ue e é utilizada deliberadamente pelas partes interessadas (Gray, 2019, 2015), passamos agora a abordar sobre como a junção da ec com as rci evidencia os limites de tal ambiguidade para o avanço da ação cultural. Em especial, não se pode esperar que os gestores culturais projetem, executem e avaliem com sucesso projetos com conceitos concorrentes, com impacto e objetivos esperados. Em 2017 e 2018, países terceiros aderiram à ec. Embora esse programa não tenha levado em conta a Comunicação Conjunta, ele proporcionou um primeiro teste inicial para considerar como a ec e as rci poderiam se sobrepor. No entanto, as boas intenções, por si só, não podem garantir o sucesso da implementação das rci via ec. Embora os entrevistados tenham sugerido que “o papel da Europa Criativa é apoiar as relações culturais” (Entrevista 1) e que a ec e as rci têm “objetivos de desenvolvimento e objetivos políticos” complementares (Entrevista 2), eles são estruturados em torno de uma compreensão profundamente diferente de cultura. Além disso, a implementação das rci requer estruturas de governança envolvendo representantes nacionais, gestores culturais e representantes da sociedade civil na concepção, entrega e monitoramento das missões em países terceiros – um cenário que difere significativamente da governança da ec.

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CONCEPÇÕES CONCORRENTES SOBRE DIVERSIDADE CULTURAL, VARIAÇÃO CULTURAL E POLÍTICA E GESTÃO CULTURAL COMO CAMPOS DE CONHECIMENTO

Essas diferenças são sintomáticas de uma tensão mais ampla em relação à gestão da diversidade cultural. Embora tanto a ec como a abordagem estratégica se refiram à Convenção da unesco de 2005 (unesco, 2005), os programas diferem em suas posições no que diz respeito às relações entre cultura e diversidade. Embora a ec presuma que os participantes partilhem dos valores fundamentais da ue, as rci visam efetuar uma mudança de valor em longo prazo a partir da base para o topo. Especificamente, a linguagem da abordagem estratégica, afirmando que a “liberdade de expressão promovida pela cultura fornece um apoio importante aos processos de democratização” (European Commission, 2016, p. 7), estabelece uma ligação entre diversidade e democratização que também é informada na Declaração Universal da unesco sobre Diversidade Cultural (unesco, 2003). As rci apoiam de forma implícita os atores da sociedade civil em países terceiros envolvidos em mudanças socioeconômicas e políticas e possui um entendimento comparativamente mais ativo sobre a gestão da diversidade que a ec. Isso não implica que este último seja passivo, pois abarcou a promoção da igualdade de gênero entre suas prioridades (Entrevista 2). Além disso, a ação cultural interna e externa da ue difere na sua compreensão da variação cultural. Diversidade refere-se a “fenômenos tais como rituais, alimentos, contos populares”, enquanto “a organização da sociedade, incluindo sua estrutura política e direitos humanos” são “significadores de diferença” (Eriksen, 2006 citado por Næss, 2010). A ideia de expandir as esferas de influência liberal pressupõe que os países do núcleo são mais unidos que os periféricos, por exemplo, em suas posições sobre ideais liberais como cidadania e direitos culturais (McMahon, 2012, p. 478). Entretanto, as premissas relativas à cultura e à gestão da diversidade que fundamentam a ec e as rci invertem esse eixo de intensidade (comparativamente passiva no nível interno, no caso da ec; comparativamente ativa no nível externo, no caso das rci). Se a abordagem da ec for expandida para além dos países cujos governos não apoiam tais valores, surgirão tensões. Isso já ocorreu na Turquia, onde o governo se retirou da ec em resposta a um concerto em rememoração ao genocídio armênio (Vivarelli, 2016), e em Israel, em virtude da rejeição da ue em apoiar programas em assentamentos (Perlson, 2017).

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Para apreender como tais entendimentos diferentes da gestão da diversidade podem coexistir dentro do mesmo campo político, é útil considerar a identificação por Paquette e Redaelli de paradigmas comuns na gestão das artes e na pesquisa de políticas culturais (2015, p. 94). Embora a análise deles esteja além do escopo deste artigo, queremos sugerir que o desacordo entre ec e rci em relação à gestão da diversidade também reflete diferenças entre política cultural e gestão cultural como campos de conhecimento. Como vimos, apesar de sua recente mudança para um entendimento mais fluido e transnacional da cultura, a ec está estruturada em torno de um entendimento profissional (ou seja, específico do setor). Ao contrário, uma definição antropológica é essencial nas rci. Pode-se argumentar, então, que a ec está mais próxima de uma compreensão positivista da prática cultural, ou seja, como uma realidade externa que pode ser estudada e explicada (Paquete; Redaelli, 2015, p. 98), acrescentando assim uma precisão crescente a um modelo testável das leis da prática cultural e do consumo. Quanto às rci, seu foco na cultura como caminho para o desenvolvimento reflete o foco pragmático nas estruturas sociais, que não são apenas “construídas por meio de ações sociais entre si”, mas também são “limitações potenciais para a ação social” (Paquete; Redaelli, 2015, p. 106).

CAPACIDADES: UMA PONTE PARCIAL ENTRE EC E RCI

Como veremos agora, o recente foco da ec nas capacidades oferece uma ponte parcial entre os dois programas. No âmbito da ue, negociar a tensão entre a abordagem setorial específica e comparativamente passiva da ec e a perspectiva antropológica e comparativamente ativa das rci será de responsabilidade da dg eac, da eacea e dos departamentos nacionais da ec. Hoje, quando os pedidos de financiamento são apresentados, a eacea verifica-os com base em critérios formais. Os projetos pré-selecionados são então submetidos a um painel de especialistas e o Comitê de Avaliação (composto pela eacea e dg eac) decide. Apesar da ambiguidade conceitual identificada anteriormente, as partes interessadas não acham que a deliberação seja difícil (Entrevista 1). Ao contrário, há uma suposição de que aqueles que se candidatam a tal subsídio compartilham de valores transnacionais (Entrevista 1). Entretanto, se este fosse o caso, a mudança de ênfase à profissionalização, circulação e colaboração na convocação de pro-

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postas da ec em 2015 para o diálogo intercultural em 2019 teria sido redundante – assim como teriam sido as mudanças em seus critérios de avaliação. De fato, em 2015, a relevância foi definida como a avaliação da contribuição de um projeto para “reforçar a profissionalização do setor e a capacidade de operar de forma transnacional, para promover a circulação transnacional de obras culturais e criativas e a mobilidade dos artistas e para melhorar o acesso às obras culturais e criativas” (eacea, 2015, p. 12). Quanto às diretrizes de 2018, elas refletem a Agenda para a Cultura da Comissão (Comissão Europeia, 2018a), que se concentra na “cultura compartilhada, na coesão social, [e] na sociedade e não na economia” (Entrevista 2). A relevância é, portanto, redefinida para avaliar a contribuição mais ampla do projeto com o objetivo adicional de melhorar o diálogo intercultural (eacea, 2019, p. 18). Tal mudança reflete a ideia de apoio à capacidade dos operadores culturais e criativos na proposta para a ec 2021–2027 (European Union, 2018, p. 7). De acordo com nossos entrevistados, o foco da ec no desenvolvimento de capacidades em nível individual visa superar as tensões entre as abordagens orientadas a resultados e orientadas a valores nas relações culturais e entre “a cultura como um fim em si mesma e seus usos instrumentais” (Entrevista 2) – uma mudança que apoia a intenção de usar a ec para implementar as rci ao mesmo tempo que rejeita explicitamente uma compreensão eurocêntrica da cultura.

OS LIMITES DAS CAPACIDADES

A ideia de capacidades é entendida como um “fenômeno dinâmico” (Entrevista 2) que proporciona uma nova compreensão do potencial da ec sem impor um conjunto de metas pré-definidas em uma perspectiva “de baixo para cima”. No entanto, a abordagem de capacidades não identifica caminhos que conectam cultura e desenvolvimento. Além disso, a decisão explícita de se referir à abordagem das capacidades não explica como a tensão entre as prioridades do programa e as da Abordagem Estratégica deve ser resolvida. A proposta da ec 2021–2027 identifica um novo conjunto de prioridades para a vertente Cultura, que inclui a promoção da “resiliência social e inclusão social por meio da cultura e do patrimônio cultural” (European Union, 2018, p. 23). Ela também se referiu a vários objetivos instrumentais, a saber, “aumentar a capacidade dos setores culturais

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e criativos europeus para prosperar e gerar empregos e crescimento” (European Union, 2018, p. 24). A forma como essas prioridades serão classificadas – e como devem ser negociadas pelos gestores culturais – permanece obscura. Questionados sobre a ausência de uma hierarquia estruturando tais objetivos, os stakeholders reconhecem que “há alguma ambiguidade construtiva no texto” (Entrevista 2). Por exemplo, ao contribuir para o desenvolvimento individual e para a coesão social por meio da ação cultural, a ue pretende “empurrar os países terceiros para os valores europeus”. Contudo, isso “leva em conta o interesse da ue. Queremos ser vistos como parceiros de negócios de confiança. Com capacidade, evitamos essa questão” (Entrevista 2). Ao refletir o entendimento do Conselho da Europa sobre a cultura como catalisador do desenvolvimento individual e social, “os líderes institucionais da ue evitam de forma cuidadosa recorrer a retratos culturais ‘essencialistas’” (Carta; Higgott, 2020, p. 252) e, com isso, serem criticados como intervencionistas. Além disso, o foco nas capacidades torna possível o uso do financiamento à capacitação da Direção Geral de Cooperação e Desenvolvimento Internacional por intermédio do Fundo Europeu de Desenvolvimento. A ambiguidade é, portanto, não apenas uma consequência da complexidade institucional da União Europeia, como também uma estratégia deliberada utilizada pelos stakeholders culturais (Gray, 2015) que lhes permite avançar na ação da ue enquanto navegam em desacordo entre os membros da União. Mas não sem problemas.

TENSÕES REMANESCENTES: OBJETIVOS CONCORRENTES, IMPACTO ESPERADO, DESCONEXÃO ENTRE FORMULADORES DE POLÍTICAS E GESTORES CULTURAIS

Primeiramente, acrescentando às diferenças conceituais fundamentais do programa, apesar de uma compreensão emergente da ec como “orientada por processos” (Entrevista 2), a ec permanece em sua maioria focada no projeto e centralizada, enquanto as rci pretendem ser um programa de baixo para cima e flexível. Portanto, a utilização da ec (que tem uma compreensão da cultura específica do setor e, portanto, mais limitada) para implementar a abordagem estratégica (que visa a uma mudança orientada para o valor) anteciparia uma implementação bem-sucedida da ação cultural externa da ue.

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Em segundo lugar, o modelo de capacidade da ec não propõe parâmetros de referência para medir o desenvolvimento. Além disso, as diretrizes conjuntas das rci publicadas, em junho de 2019, pela eunic, eeas e ec não sugerem um modelo específico para monitorar os resultados. Isso é importante porque os poucos indicadores que existem são limitados (Entrevista 2), com foco em impacto e transformações incorporadas no processo. Chegar a um acordo sobre tal modelo exigirá consenso em relação a uma teoria de mudança adaptada ao contexto socioeconômico e político de cada país terceiro. Esse desafio é particularmente sério considerando a contínua falta de clareza quanto ao impacto das práticas culturais sobre o comportamento social – ou o perigo de uma “lógica causal (e circular) duvidosa” que explica tudo “por referência à cultura” (Gray, 2009, p. 577). Além disso, o “reconhecimento da mutualidade como um valor central significa reconhecer o vínculo direto entre a contribuição moral e o impacto geopolítico” (Rose; Wadham-Smith, 2004, p. 54). Um reconhecimento implícito dessa dificuldade pode ser lido na declaração de que a ue “precisa priorizar as regiões do mundo” nas quais a ec é usada para implementar rci (Entrevista 2). Assim, espera-se que os gestores culturais liderem projetos que aproveitem formas incomensuráveis de valor (Phiddian et al., 2017) e metas pouco claras de médio e longo prazo. Em terceiro lugar, embora essas dificuldades sejam reconhecidas pelos responsáveis pela estratégia da ec e rci, as partes interessadas que irão implementar tais programas culturais – ou seja, os gestores culturais – permanecem desconectadas dessas discussões. Para fortalecer os vínculos entre a ec e rci, há necessidade de discussões inclusivas para se chegar a um acordo sobre como superar essas tensões e, posteriormente, de oportunidades de treinamento focado (eunic, 2018) para apoiar os atores em campo ao navegarem pela “linha entre diversidade aceitável e diferença inaceitável” (Næss, 2010). Para voltar ao trabalho de Paquette e Redaelli, a coexistência de diferentes conceitos e objetivos culturais no continuum da gestão da diversidade cultural da ue – ou, em outras palavras, sua ambiguidade – pode ser vista como reflexo da cultura epistêmica da gestão cultural e da política cultural, ou seja, o fato de suas práticas de produção de conhecimento serem com frequência desenvolvidas separadamente, resultando em “objetos e conceitos nômades” (Paquette; Redaelli, 2015 p. 111). Por conseguinte, é nossa opinião que a governança complexa da ue e as decisões estratégicas de seus formuladores de políticas não explicam completamente a ambigui-

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dade conceitual e de objetivos que identificamos. Ao contrário, este último também chama a atenção para a ausência de uma abordagem não integrada para o desenvolvimento e a prática da gestão, política e relações culturais, resultando em uma abordagem de silo para o desenvolvimento dessas disciplinas que se sobrepõem.

CONCLUSÕES: O DESAFIO DE GERENCIAR A DIVERSIDADE CULTURAL

Como demonstramos, a Europa Criativa e a Estratégia para Relações Culturais Internacionais entendem a cultura de maneiras profundamente diferentes. O primeiro tende a compreender a cultura como um setor de competência, enquanto o segundo está alinhado a uma compreensão antropológica, transnacional e flexível de cultura. Essa ambivalência conceitual – uma consequência da complexidade institucional da ue e de uma estratégia deliberada – confirma pesquisas anteriores apontando para o espaço de ação que é aberto pela definição ampla de cultura da ue a atores com diferentes prioridades estratégicas (Carta, 2019). Contudo, tais “oportunidades polissêmicas” (Entrevista 2) não são ilimitadas. Nossa análise demonstra que uma tentativa de implementar rci com o apoio da ec – conforme está planejado atualmente – explicitaria suas premissas e metas concorrentes. O resultado é um sistema dualista de gestão da diversidade. Internamente, o subsídio tende a apoiar uma compreensão setorial específica da cultura; além disso, a ue não questiona a autoridade dos Estados-membros para promover algumas práticas culturais acima de outras, independentemente dos valores que as fundamentam – apesar da virada em direção a uma democracia iliberal por parte da Hungria e da Polônia. Externamente, uma visão antropológica da cultura visa influenciar os sistemas de diversidade de países terceiros para promover a mudança social. A cultura é compreendida nesses programas e nessas estratégias de diferentes maneiras. Ao mesmo tempo, a diversidade cultural surge tanto como um resultado flexível como uma premissa inquestionável. Isso cria uma tensão fundamental se os fundos da ec, que estão focados em resultados, forem utilizados para apoiar a execução das rci, que são orientadas pelo valor. Tal constatação está alinhada com pesquisas que afirmam que uma política cultural coordenada requer, antes de tudo, clareza de objetivos dos governos (Gray, 2009, p. 581). O formato multinível da ue torna impossível tal coordenação. Entretanto, na ausência de um apoio político claro à cultura, e considerando a combinação de um

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entendimento antropológico com uma abordagem orientada para resultados, existe um perigo real de hiperinstrumentalismo, ou seja, de negar “a validade da cultura como um setor político independente” (Hadley; Gray, 2017, p. 8), usando-a como uma ferramenta para atingir objetivos pré-definidos. Dito isso, tais questões poderiam ser parcialmente abordadas com mudanças na estrutura de governança da ec. Mudar a preferência da ec por projetos de média a grande escala para micropropostas a serem selecionadas pelos atores locais e garantir seu codesign e cogestão mudaria o foco dos resultados para processos. A proposta de sobreposição dos dois programas evidencia as tensões entre eles. Mais pesquisas são necessárias para testar até que ponto tais diferenças são evidentes nos entendimentos de cultura que são mantidos pelos gestores de projetos culturais financiados pela ec e rci. Em todo caso, essa descoberta oferece uma oportunidade para os formuladores de políticas articularem explicitamente a contribuição da ec para a gestão interna da diversidade da ue: construir uma Europa compartilhada de baixo para cima. Por fim, os resultados demonstram o valor do desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares que conecta não apenas política cultural e gestão cultural, como também, nesse caso, as relações culturais e os estudos da ue.

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Nota 1 Artigo publicado originalmente em inglês: Dâmaso, M.; Murray, A. “The EU’s Dualistic Regime of Cultural Diversity Management”, em: Journal of Cultural Management and Cultural Policy, v. 1, 2021, pp. 153–84. Disponível em:

DOI 10.14361/zkmm-2021-0108. Os autores agradecem aos entrevistados por seu tempo e aos revisores por seus cuidadosos comentários. [N. do org.]

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SIR PETER BAZALGETTE é membro não executivo do conselho do Departamento de Educação do Reino Unido, pró-chanceler do Royal College of Art, presidente do Business Advisory Council – Care Leaver Covenant e ex-presidente da ITV, no Reino Unido.


Indústrias criativas e desenvolvimento: história e perspectivas contemporâneas

Entrevista com Sir Peter Bazalgette, um dos responsáveis ativos pela política para indústrias criativas no Reino Unido, tanto no âmbito público quanto no setor privado de mídia. Peter aborda uma vista panorâmica da policy para as indústrias criativas e para as artes no Reino Unido, desde sua criação até os desafios do presente.


Leandro Valiati Gostaria de trazê-lo de volta para duas décadas atrás [início dos anos 2000] e pedir para você compartilhar algumas reflexões sobre os desafios relacionados ao surgimento das primeiras políticas para indústrias criativas no Reino Unido. Peter Bazalgette No Reino Unido, você pode datar isso dos anos 1970 e 1980, quando Chris Smith definiu pela primeira vez as indústrias criativas como um setor industrial – acho que o Reino Unido foi a primeira região a fazer isso. A maioria dos países, agora, tem políticas para indústrias criativas, mas, desde a década de 1970, todos os países tinham políticas para indústrias criativas, mesmo que não as chamassem assim. No Reino Unido, por exemplo, você tinha a taxa de licença para a bbc, que, mesmo na década de 1980, representava bilhões entrando em conteúdo para democracia, notícias, cultura e economia criativa. Você tinha um sistema de transmissão de serviço público, que licenciou itv e Channel4. Então, se você quiser trazer à tona a indústria das telas, você tinha o British Film Institute e, antes disso, o uk Film Council, que colocou algum dinheiro público em filmes. Você tinha toda a infraestrutura do ensino superior. Se a Grã-Bretanha não tivesse tido uma rede de escolas de arte na década de 1960, nunca teríamos visto artistas visuais e designers; nunca teríamos tido John Lennon, Ray Davies ou The Kinks. Alguns adolescentes criativos encontraram um lugar para se expressar, as escolas permitiram que fossem criativos. E tivemos um sistema que permitia publicidade, então a televisão comercial e o rádio tinham que ser permitidos. A televisão comercial na Inglaterra foi permitida em 1955, e o rádio comercial por volta de 1971. Publicidade e marketing são uma parte muito importante do setor criativo. Você tinha todas essas coisas acontecendo antes de chegar a uma posição no final dos anos 1990, quando as pessoas pensavam “por que não definir um setor de criatividade, bens criativos e propriedade intelectual criativa?”. E foi isso que eles fizeram. A definição foi a britânica, e outros países definiram de forma diferente. A próxima coisa importante se você quiser desenvolver uma boa política é atualizá-la em primeiro lugar, e foi só no início dos anos 1990, talvez em 2003–04, que atualizamos o valor de todo o setor. Sabemos, por exemplo, que, em 2019, as indústrias criativas valiam cerca de £1,50 bilhão

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Entrevista de Sir Peter Bazalgette a Leandro Valiati


por ano da economia britânica, o que representa 6% do valor adicionado bruto. Com a covid-19, eles contraíram mais rapidamente do que o resto da economia. Uma vez que você tem dados, é possível começar a desenvolver políticas criativas do setor. Ainda hoje, as indústrias criativas, setor relativamente novo, com uma coleção de subsetores unificados por terem um esforço criativo na geração de seus bens e serviços, não são compreendidas por algumas partes do governo. É supostamente uma prioridade do governo, na verdade, era uma prioridade do governo há quatro anos. Há um departamento agora, de negócios, chamado beis, que no verão passado tinha o plano Build Back Better Plan for Growth, no qual um dos sete setores prioritários eram para ser as indústrias criativas. Estamos atualmente escrevendo uma visão setorial, que agora compartilhei com o Conselho das Indústrias Criativas e com alguns ministros, e escrevemos até junho de 2022. Mas quando escrevi a Revisão independente das indústrias criativas, disse ao Tesouro: “Precisamos investir meio bilhão”; e eles responderam: “Você pode ter £2 milhões”. O governo não se agregou. No final, graças aos esforços do Ministro da Cultura do Departamento de Cultura, Mídia e Esportes (dcms) e graças ao investimento geral no Industrial Strategy Challenge Fund desenvolvido pela uk Research and Innovation, conseguimos obter uma contribuição de £50 milhões dos curadores criativos. Esse programa continuará por mais dezenove meses, e não faço ideia se será renovado. É um excelente exemplo de como usei o efeito multiplicador do governo, e houve alguns outros investimentos e resultados. Se você perguntar sobre o setor criativo e a política industrial, você pode dizer “nós nas-

“Ainda hoje, as indústrias criativas, setor relativamente novo, com uma coleção de subsetores unificados por terem um esforço criativo na geração de seus bens e serviços, não são compreendidas por algumas partes do governo.” – PB Indústrias criativas e desenvolvimento: história e perspectivas contemporâneas

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cemos, mas não percebemos isso” há cem anos. Você poderia dizer “chegamos a uma infância na década de 1970, mas só temos uma lição agora porque existe a proposta de colocá-la no centro da estratégia industrial do governo”. Então, uma das coisas que nossa visão setorial vai realizar será definir a maneira como faremos isso. A Grã-Bretanha se forma como país em torno de setores em declínio, como a manufatura; mas, no que diz respeito às indústrias criativas, precisamos obter dados melhores e desenvolver mais políticas para apoiar tais setores. Agora, há muitos obstáculos. As indústrias criativas têm muitos freelancers e pode ser composta por pequenas empresas, e é necessário que os governos nacionais se conectem com essa camada de trabalhadores. Afinal, por que só um modelo de negócio se encaixaria? Desenvolver algo como as indústrias criativas depende de alianças locais, estratégias e empoderamento. E a Grã-Bretanha é muito centralizada, muito mais que outras regiões europeias; por isso, precisamos reverter a situação. Para dar um exemplo dos clusters criativos, o ahrc conectou a pesquisas universitárias de excelência a mais de seiscentas pequenas e microempresas, todas elas em pequenos clusters locais; uma na moda, uma em jogos, uma em indústrias de tela, e assim por diante. Esse é o caminho a se seguir, mas temos muitos obstáculos. Nem sei se podemos estender os aglomerados; provavelmente, não. Portanto, precisamos de dados e de boas políticas para setores recém-definidos. Meu foco atual é a visão sobre o setor, algo que estamos tentando estabelecer com colegas nos diferentes subsetores; você poderia dar a essa visão o seguinte título: “Um plano para o crescimento inclusivo”. Trata-se de crescimento inclusivo, porque deve ser geograficamente difundido e trazer benefícios para as nações e regiões da Grã-Bretanha. Também deve ser inclusivo no sentido de incentivar pessoas de todas as origens, porque muitas das indústrias criativas trabalham como freelancers, o que faz com que os contatos que você tem e as pessoas que você conhece sejam fatores muito importantes. Se você nasce em uma família de classe média, já conhecendo pessoas nas indústrias criativas, é mais provável que você seja capaz de entrar nesse meio, então precisamos trabalhar em programas de carreira que mostrem quais são

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os caminhos nas indústrias criativas e em programas que permitam que pessoas de origens menos privilegiadas obtenham oportunidade. E precisamos envolver políticas sérias de cluster econômico. LV Na minha percepção, há algo muito interessante na transformação contínua do sistema capitalista. É importante ter evidências claras dessas novas tendências emergentes em termos de dados e narrativas. Considerando a mudança tecnológica e os diferentes canais de consumo, você acha que temos informações suficientes disponíveis para desenhar regulamentações políticas relevantes para o setor? PB O contexto é que vivemos em um tempo, provavelmente quinze, vinte anos após a Quarta Revolução Industrial, cuja dinâmica é revolucionária. Embora não o entendamos completamente, o que descobrimos é que estamos online por 30% do nosso horário de trabalho, o que significa que a internet faz parte da nossa sociedade. O que historicamente fizemos para proteger os direitos dos indivíduos e nos dar uma sociedade mais coesa é que regulamos as coisas. Agora, devemos tentar regular a internet, e é um enorme desafio para as democracias liberais encontrar uma maneira de regulá-la para o bem comum, para lidar com os vários problemas sociais que emergem dela: propaganda falsa, fake news, violação da privacidade de dados. Há um grande desafio aqui, e vale como uma espécie de verdade profunda para o setor criativo. Enquanto a maioria dos outros setores são sobre a economia, as indústrias criativas são sobre a sociedade e a economia. Então, a razão pela qual você teria políticas sérias e cuidadosas é, antes de tudo, porque você se importa com a sociedade, porque você deseja investir no valor da sociedade, mas também porque você quer crescimento, empregos, e assim por diante. Esta era tem enormes desafios, e nós não descobrimos como encará-los. LV A cultura e as indústrias criativas geralmente são uma ocupação para esferas ricas e intelectualizadas da sociedade, que às vezes geram ilhas. Como você acha que podemos criar algumas pontes entre essas diferentes ilhas da sociedade em relação ao consumo cultural e à produção? E especialmente em indústrias de alta qualificação e alta receita?

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“Agora, devemos tentar regular a internet, e é um enorme desafio para as democracias liberais encontrar uma maneira de regulá-la para o bem comum, para lidar com os vários problemas sociais que emergem dela: propaganda falsa, fake news, violação da privacidade de dados.” – PB

PB Vamos primeiro supor que a cultura popular está disponível para todos e é quase definida pelas pessoas que a usam. Se você pensa em filmes, música, tv, você está falando de coisas que as pessoas usam e às quais têm acesso. Atualmente, tecnologia é muito empoderadora. De modo geral, se a cultura de um país é saudável, ela refletirá as comunidades, visões, tradições e criatividade de todos os lados. Honestamente, pessoas de classe média talvez possam se dar ao luxo de serem freelancers por vários anos e, portanto, são mais propensas a entrar nas indústrias criativas que outras. Uma das coisas mais importantes é que grandes organizações, como emissoras e empresas de música, têm que permitir entradas de muitas bases diferentes. Agora você encontrará a bbc, a itv e as empresas de música trabalhando muito duro para tentar estender a representação e os pontos de entrada, mas é desafiador. Quando eu era presidente do Arts Counsil uk, estava ciente de que quase metade da população nunca entraria em um museu ou um teatro em toda a sua vida, porque eles achavam que não era para eles; e, se eles fossem, não apreciariam, não saberiam como se comportar e não seriam bem-vindos. É por isso que eu amo festivais ao ar livre; eles estão na rua, e a rua pertence a todos, ninguém precisa se preocupar como está vestido. Assim, festivais ao ar livre são fantásticos em permitir também muitas fontes diferentes de cultura. Trata-se do consumo da cultura. Chegamos à produção da cultura, e aqui está o maior problema. Há uma tradição que remonta a quinhentos mil anos de artistas sempre famintos em um sótão, mas temos que trabalhar nisso. LV Como podemos criar mudanças estruturais enquanto ampliamos as políticas culturais?

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PB Se eu fosse tomar como exemplo o itv, que eu conheço porque era o seu presidente, nossa chefe executiva se preocupa muito com isso, e ela sabe que as estações de televisão populares têm que refletir todas as culturas e as pessoas que trabalham no setor cultural. Então, o que ela tem feito é colocar alguns funcionários no comitê executivo do conselho de administração principal, cuja responsabilidade é diversidade e inclusão, porque, muitas vezes, as pessoas recebem esses empregos nas organizações de mídias. Ainda assim, eles não estão no poder porque eles são muito principiantes. Eles não podem fazer uma mudança, a mudança precisa vir de cima. E é possível ver que os padrões de emprego e de representação na tela estão mudando. Então, a transformação é praticável, mas é necessário ter estratégias. LV Você acha que um programa político para indústrias criativas deve ser baseado em um modelo vertical (por exemplo, ser liderado por um Ministério da Cultura) ou em uma perspectiva horizontal (por exemplo, pulverizada entre diferentes áreas do governo)? PB Se não está acontecendo muito, há uma vantagem em dizer “vamos intervir nesse subsetorial” e tratá-lo como um piloto para ver quão eficaz é a intervenção. Ainda assim, a questão é que cada país tem muitas intervenções no setor criativo. Nós simplesmente não rotulamos como tal. Então, a primeira coisa é fazer as pessoas perceberem que você tem uma política voltada para as indústrias criativas. Quando me tornei presidente do Arts Counsil uk no Reino Unido, disse ao governo, a ministros e funcionários públicos: “Por que colocamos dinheiro público nas artes?”. As pessoas fazem coisas, mas esquecem por que as fazem. Eis a razão: uma é intrínseca, e é identidade, empatia e assim por diante, são as vantagens sociais, da educação das artes e da educação; a outra são as vantagens econômicas. Precisamos articular esses elementos,

“De modo geral, se a cultura de um país é saudável, ela refletirá as comunidades, visões, tradições e criatividade de todos os lados.” – PB Indústrias criativas e desenvolvimento: história e perspectivas contemporâneas

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“Precisamos articular esses elementos, e precisamos articulá-los para cada geração. Eu acho que você pode ter uma hierarquia e selecionar um setor primeiro, mas você não deve esquecer o quadro geral.” – PB

e precisamos articulá-los para cada geração. Eu acho que você pode ter uma hierarquia e selecionar um setor primeiro, mas você não deve esquecer o quadro geral. LV Há um debate significativo sobre políticas de reparação ou preparação para um novo ciclo cultural. Você acha que temos políticas adequadas após a pandemia para preparar as indústrias criativas para outro ciclo ou estamos apenas reparando os danos? PB No Reino Unido, as indústrias criativas, antes da covid-19, eram cerca de três vezes a taxa da economia, e elas serão novamente. Assim, em 2020, parece que elas encolheram mais rápido que o resto da economia. Crescem mais rápido, mas também encolhem mais rápido, e espera-se que cresçam mais rápido novamente. Elas já têm um potencial para um crescimento mais veloz, mas a questão é: você pode turbinar e beneficiar e alcançar todos e refletir sobre a vida de todos? LV Um dos desafios contemporâneos nas políticas para as indústrias criativas é tentar diversificar as métricas de medição de impacto. Temos o impacto econômico tradicional, mas, como sociedade, também valorizamos o impacto simbólico das atividades culturais. Você acha que, no Reino Unido, existem boas ferramentas para entender esse valor multidimensional e o impacto das indústrias culturais e criativas? PB Muitas dessas coisas eram verdadeiras há trinta, quarenta anos, mas não as percebemos. Então definimos um setor chamado “indústrias criativas”, no qual nem todos acreditam. E se as pessoas entendessem os benefícios de alguns dos elementos das indústrias criativas, não teriam esquecido deles. Então, é importante questionar: por qual motivo você quer

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Entrevista de Sir Peter Bazalgette a Leandro Valiati


uma política governamental para as indústrias criativas? A próxima pergunta é: de onde você quer que o talento da próxima geração venha? Então, precisamos entender que a intervenção no mercado é básica. A razão é democrática: uma cidadania bem informada e empoderada que pode participar da democracia liberal e das eleições. Uma cultura saudável é aquela em que todos os tipos de ideias e meios de expressão são considerados e se desenvolvem ao longo do tempo, e as artes e a cultura levam ao desenvolvimento cultural. E o desejo humano fundamental é contar histórias, e a razão para isso é que precisamos contar e ouvir histórias sobre a condição humana. É assim que funcionamos como seres humanos e o é isso que as artes e a cultura fazem.

“No Reino Unido, as indústrias criativas, antes da covid-19, eram cerca de três vezes a taxa da economia, e elas serão novamente.” – PB Indústrias criativas e desenvolvimento: história e perspectivas contemporâneas

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Copyright © 2023, Leandro Valiati. Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, armazenado em sistemas eletrônicos recuperáveis nem transmitido por nenhuma forma ou meio eletrônico, mecânico ou outros, sem a prévia autorização por escrito do editor. 1ª edição 2023

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural­­ Economia da cultura e indústrias criativas: temas emergentes e tendências / vários autores; organizado por Leandro Valiati. São Paulo: Itaú Cultural; Editora wmf Martins Fontes, 2023. 200 pp., 16 x 23 cm; vol. 3. Inclui bibliografia e índice. ISBN: 978-65-88878-60-6 / isbn: 978-85-469-0443-3 1. Economia da cultura. 2. Indústrias criativas. 3. Política cultural. 4. Tendências de indústrias criativas. 5. Propriedade intelectual nas indústrias criativas. I. Instituto Itaú Cultural. II. Fundação Itaú. III. Valiati, Leandro. IV. Título. V. Editora wmf Martins Fontes. CDD 306.3 Bibliotecária Ana Luisa Constantino dos Santos CRB-8/10076


EQUIPE FUNDAÇÃO ITAÚ

Conselho curador Presidente Alfredo Setubal Presidente da fundação Eduardo Saron

NÚCLEO OBSERVATÓRIO

Gerência Jader Rosa Coordenação Luciana Modé Produção Andréia Briene Tradução Atelier das Palavras e dwt Soluções Integradas (terceirizadas) Ilustração Felipe Stefani (p. 188) Organizador e editor Leandro Valiati

EQUIPE WMF MARTINS FONTES

Acompanhamento editorial Juliana Bitelli e Dimitri Arantes Preparação Milena Varallo Revisões Bruna Wagner e Lucas Henrique Cazaroto Projeto gráfico Bloco Gráfico Assistentes de design Nathalia Navarro e Stephanie Y. Shu Produção gráfica Geraldo Alves

O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú para Educação e Cultura. Saiba mais em fundacaoitau.org.br.

Todos os direitos desta edição reservados à Editora wmf Martins Fontes Ltda. Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 133 01325-030 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3293-8150 e-mail: info@wmfmartinsfontes.com.br http://www.wmfmartinsfontes.com.br


Fontes gt Flexa, Signifier Papel Avena 90 g/m2 Impressão Paym


Imagem de capa: Rodrigo Andrade Homenagem ao palhaço, óleo sobre tela sobre mdf, 90 × 135 cm, 2020


O terceiro tomo do manual de Economia da cultura e indústrias criativas oferece uma visão abrangente sobre temas contemporâneos de alta relevância no campo das indústrias criativas. Tecnologia, inovação social, reflexões modernas sobre valor cultural e seu impacto na economia e sociedades contemporâneas guiam o volume, que traz importantes reflexões de autores e praticantes, como George Gachara, Sofia Izquierdo Sanchez, Cecília Dinardi, Mafalda Dâmaso, Eleonora Belfiore, entre outros. Além disso, o volume apresenta uma entrevista inédita com Sir Peter Bazalgette, ex-ministro do Arts Council da Inglaterra e ex-diretor de conglomerados de mídia, como o Endemol e a ITV. LEANDRO VALIATI organizador e editor

Itaú Cultural

isbn 978-65-88878-60-6

wmf Martins Fontes

isbn 978-85-469-0443-3


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