Economia da cultura e indústrias criativas: Políticas públicas, evidências e modelos

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Economia da cultura e indústrias criativas

– –Políticas públicas, evidências e modelos

A política pública de economia da cultura é cheia de nuances, digressões, caminhos percorridos, retornos estratégicos e, sobretudo, diferenças globais que esbarram em desafios similares.

Política pública é feita, entre outras coisas, de um conjunto de decisões articuladas que visam a um objetivo comum, isto é, socialmente pactuado, a partir de estratégias bem definidas. Esses elementos devem ser construídos com base em narrativas e valores claros; daí então devem ser tomadas decisões pautadas em caminhos ditados pelos seus beneficiários dentro de um projeto. O momento brasileiro atual no campo da cultura é ímpar, dado que se verifique um processo histórico de pouca estabilidade no domínio das políticas de economia da cultura.

A estabilidade e a refundação da política de economia da cultura e indústrias criativas no Brasil são a tônica do segundo tomo desta coleção. Pela primeira vez traduzido para o português, você encontrará um conjunto de obras selecionadas de autores paradigmáticos do campo e uma extensiva revisão teórica representativa sobre a massa crítica formadora das políticas públicas de economia da cultura em diversos países, além de reflexões estruturantes sobre a América Latina, com enfoque no Brasil.

Políticas públicas, impacto, novos modelos, políticas culturais globais e indicadores de bem-estar são palavras-chave do presente volume. Este tomo (assim como os outros dois que completam a série) representa uma leitura importante e esclarecedora para estudantes, professores, profissionais de arte e de cultura e formuladores de políticas públicas.

LEANDRO VALIATI organizador e editor

Economia da cultura e indústrias criativas

Tomo 2 – –Políticas públicas, evidências e modelos

13 Capítulo 1

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010

MORAG SHIACH

33 Capítulo 2

Inovações na política cultural e no desenvolvimento na América Latina

GEORGE YÚDICE

61 Capítulo 3

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade e inovação na China MICHAEL KEANE E

83 Capítulo 4

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom

CAROLE ROSENSTEIN

109 Capítulo 5

Quatro modelos de indústrias criativas

JASON POTTS E STUART CUNNINGHAM

9 Introdução
LEANDRO VALIATI
ELAINE JING ZHAO

131 Capítulo 6

Economias criativas na África: compreensão e apoio

ROBERTA COMUNIAN, BRIAN J. HRACS

E LAUREN ENGLAND

159 Capítulo 7

A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável valor da cultura

VALENTINA MONTALTO

171 Capítulo 8

Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?

HASAN BAKHSHI

183 A história recente da política brasileira de economia da cultura revisitada ENTREVISTA DE CLÁUDIA LEITÃO, GUILHERME VARELLA, CLÁUDIO LINS DE VASCONCELOS, MANSUR BASSIT E ALDO VALENTIM A LEANDRO VALIATI

LEANDRO VALIATI é professor e pesquisador na área de Economia da Cultura e Indústrias Culturais no Brasil e no Reino Unido. Por intermédio de sua posição acadêmica, teve a oportunidade de desempenhar papel importante na construção e execução da política para a economia da cultura e indústrias criativas de todas as gestões do Ministério da Cultura entre 2010 e 2018.

Introdução

LEANDRO VALIATI

Este tomo aborda casos clássicos e inovadores de políticas públicas de economia da cultura em um momento bastante desafiador para a atuação do Estado na promoção do desenvolvimento mundial em setores variados.

Especificamente com relação aos setores cultural e criativo, após uma intensa crise e a desarticulação de formatos conhecidos causadas pela pandemia, é hora de reorganizar o sistema para um novo normal que dependa fortemente de indução via políticas públicas. O mundo está enfrentando algo ainda mais vigoroso que o choque de consumo pós-fordista ou o modelo de indústrias criativas do Reino Unido no final dos anos 2000, dado que, além da profusão de novos modelos, experimenta-se o aumento drástico no uso de tecnologias de informação e comunicação para o consumo de práticas culturais. Mais do que isso, o planeta passou a reconfigurar (ainda que por um curto período) elementos centrais do motor do consumo capitalista. Durante os meses de isolamento social, percebemos que a ciência e a cultura são fatores que proporcionam saúde mental e física, bem-estar, liberdade e, portanto, desenvolvimento.

O tomo 2 de Economia da cultura e indústrias criativas, através do conjunto diverso de seus autores, tem por objetivo promover uma visão histórica, processual e voltada para o futuro sobre escolhas e direções da política pública de cultura contemporânea.

Para repensar a construção da política econômica da cultura, é necessário visão ampla e estruturante sobre grandes segmentos teóricos em política cultural. Nessa linha, Jason Potts e Stuart Cunningham (Queensland University of Technology) revelam quatro importantes modelos que podem descrever e orientar as

9 Introdução

políticas de indústrias criativas; Carole Rosenstein (George Mason University) trata de arquétipos da política cultural enfatizando suas facetas positivas e negativas; e George Yúdice (University of Miami) aborda inovações na política cultural e no desenvolvimento na América Latina.

Uma política cultural depende de tempo, espaço e local. Não parece haver reprodução pura e simples de modelos, mas casos de outros países podem nos fazer refletir sobre quais rotas assumiremos para o nosso próprio país. Nesse sentido, Morag Shiach (Queen Mary University of London) trata de impactos da conhecida política para indústrias criativas na Inglaterra em seu texto “Um ‘acordo setorial’ e um precariado criativo: moldando a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010”; abordando o continente africano, Roberta Comunian (King’s College London), Brian J. Hracs (University of Southampton) e Lauren England (King’s College London) escrevem o capítulo “Economias criativas na África: compreensão e apoio”; e Michael Keane (Curtin University) e Elaine Jing Zhao (University of New South Wales) discorrem sobre a China em “A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade e inovação na China”.

Uma política consolidada depende de temas contemporâneos –tais quais saúde mental, cidades criativas e mensurações – que possam indicar a cultura como o centro de políticas públicas globais, como as que Valentina Montalto (Joint Research Centre) e Hasan Bakhshi (Creative Industries Policy and Evidence Centre) apresentam em seus respectivos textos: “A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável valor da cultura” e “Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?”.

Este tomo se dedica sobretudo a construir pontes em políticas de economia da cultura – pontes que ligam distintos países e variados matizes teóricos, tradições e visões, entre outros. Uma das mais importantes e estratégicas pontes nesse processo é a que faz a ligação entre a teoria, o impacto e a tomada de decisão. Por isso, entendemos que as reflexões de gestores em âmbito federal, responsáveis diretamente pela área de indústrias criativas e economia da cultura da história recente do Brasil, constituem a melhor forma de se contar essa história enquanto pensamos na sua reconstrução. Por isso, você, leitor, também encontrará neste livro uma entrevista com Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim.

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Leandro Valiati

Conhecer – e respeitar – o passado e seu momento histórico, entender o presente e suas potencialidades, olhar o mundo e projetar a arquitetura de um novo futuro: é disso que a política pública de economia da cultura no Brasil precisa urgentemente. Tendo isso como pano de fundo, esperamos que esta publicação possa contribuir com alguns insights, ajudando na construção de novos tempos e atores. Boa leitura!

11 Introdução

MORAG SHIACH é professora de História da Cultura na School of English and Drama da Queen Mary University of London, Reino Unido, onde também dirige o Centre for the Creative and Cultural Economy (Network). Publicou amplamente sobre história da cultura, teoria da cultura e economia criativa. Na última década, liderou uma série de grandes projetos de pesquisa em colaboração com parceiros de economia criativa.

MORAG SHIACH

Este artigo analisa o desenvolvimento de políticas para a economia criativa no Reino Unido a partir de 2010. Ao fazê-lo, procura destacar sua diversidade em diferentes partes do território, bem como a natureza contestada dessas políticas, que muitas vezes são vistas de fora como homogêneas. Assim, desafia-se a ideia de que existe um “modelo britânico” que pode ser facilmente exportado e aplicado em diferentes contextos nacionais.

A análise tem início a partir de duas imagens distintas.2A primeira delas é uma representação visual dos benefícios econômicos gerados pelas indústrias criativas, com foco no aumento do valor agregado bruto (vab), no crescimento das exportações criativas e no número crescente de empregos criados pela economia criativa. Tanto o conteúdo quanto o estilo visual dessa representação foram desenvolvidos para facilitar a compreensão e para aumentar seu poder persuasivo sobre governos e legisladores. Esses resumos focados nos benefícios da economia criativa sustentaram o recente desenvolvimento de um “acordo setorial” para o setor como parte da estratégia industrial do Reino Unido. Esse acordo surgiu a partir de dois contextos mais amplos: o estabelecimento da economia criativa como objeto de política e principal impulsionador do crescimento econômico pós-industrial a partir do final dos anos 1990; e o desenvolvimento de uma estratégia industrial para enquadrar o investimento público, em uma época em que a expansão do comér-

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010

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Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando a política de economia criativa no Reino Unido desde 20101

cio global surgiu como prioridade pós-Brexit e a divisão econômica entre Londres e as regiões e nações do Reino Unido também estava se tornando uma questão política premente.

A segunda imagem retrata um prédio em Hackney Wick, uma Zona de Empreendedorismo Criativo [Creative Enterprise Zone ( cez )] na parte leste de Londres. Esse ex-pub está no centro de uma área que recentemente passou por níveis rápidos e significativos de gentrificação (embora atualmente esteja sofrendo os impactos sociais, culturais e econômicos agudos da pandemia de covid-19). O edifício está atualmente coberto de arte de rua, incluindo as chamativas inscrições “Enquanto isso, os malucos do leste de Londres decoram um prédio” e “Do lixo para o luxo”, evocando forte senso de lugar, o poder disruptivo da prática artística e um sentido irônico das “transformações” provocadas pela regeneração/gentrificação. A imagem destaca ainda a natureza precária dos espaços e do trabalho criativo em Londres e a vulnerabilidade de seus bairros mais criativos diante da gentrificação, o que representa um desafio específico para o desenvolvimento de formas justas e equitativas de crescimento baseadas na economia criativa.

Através dessas duas imagens, podemos detectar a tensão entre o ambicioso “acordo setorial” para a economia criativa impulsionado pelo crescimento, publicado em 2019, e os impactos da subjacente natureza precária do trabalho na economia criativa, tensão com a qual o presente artigo tem uma preocupação maior. Ao considerar isso, o acordo se concentrará em quatro áreas de análise distintas, mas relacionadas. Primeiro, examinará os fatores que moldaram o desenvolvimento de uma estratégia industrial em todo o Reino Unido no ano de 2017 e o papel específico da economia criativa dentro disso. Em seguida, considerará as características distintivas que configuraram o desenvolvimento das políticas de economia criativa pelos governos descentralizados da Escócia e do País de Gales, antes de analisar o papel das políticas de um governo local para a economia criativa através do exemplo do instrumento de política de cezs da Greater London Authority (gla). Finalmente, discutirá as consequências da precariedade de grande parte do trabalho dentro da economia criativa para a formulação de políticas efetivas.

14 Morag Shiach

A ECONOMIA CRIATIVA E A ESTRATÉGIA INDUSTRIAL

Um manifesto cultural independente, Create the Future (Partido Trabalhista, 1997), prometeu reorientar [a política cultural] para “desempenhar um papel importante na regeneração econômica do nosso país”.

O Novo Trabalhismo estava deixando evidente desde o início seu foco nos benefícios econômicos da cultura.

Em Culture, Economy and Politics: the Case of New Labour (2015), o grupo de pesquisadores escreveu de forma contundente sobre a importância das relações estabelecidas entre a identificação de um setor designado como “economia criativa” e as ambições de crescimento econômico dentro das políticas do (Novo) Partido Trabalhista, a partir do final dos anos 1990. A associação entre o investimento nas indústrias criativas e o crescimento econômico provou sua resiliência nos anos seguintes, de modo que o desenvolvimento da estratégia industrial, a partir de 2017, baseou-se explicitamente em muitas das evidências e argumentos desenvolvidos no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Como Martin Smith argumentou recentemente, “a embalagem das indústrias criativas […] no final da década de 1990 foi, de qualquer forma, um exercício de marketing político incrivelmente bem-sucedido. Tornou-se também uma exportação significativa do Reino Unido”.4

A estratégia de economia criativa apresentada em Industrial Strategy: Building a Britain Fit for the Future (2017)5 pode ser entendida através da sequência exemplificada pelas publicações aqui citadas: desde um mapeamento altamente influente da economia criativa no Reino Unido, realizado pela Nesta em 2008 (Beyond the Creative Industries),6 passando pelo Manifesto for the Creative Economy, de 2013,7 também produzido pela Nesta, até, finalmente, a própria Industrial Strategy, publicada em 2017 e desenvolvida como resposta às mudanças nas relações geopolíticas, mais especificamente às novas condições e oportunidades para o comércio global no mundo pós-Brexit, o que pode ser visto em um comunicado de imprensa em janeiro de 2017:

A primeira-ministra Theresa May usará sua primeira reunião regional do Gabinete nesta manhã (23 de janeiro) para lançar propostas de uma estratégia industrial moderna a fim de aproveitar

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010

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os pontos fortes da Grã-Bretanha e enfrentar suas fraquezas subjacentes para garantir um futuro como uma nação competitiva e global.8

A capa da publicação de 2017 estampa raios de luz (ou de energia) vermelhos, brancos e azuis, emanados dramaticamente de um mapa do Reino Unido. Os vetores dos raios podem ser entendidos como rotas comerciais globais. O documento procura articular um sentido de identidade nacional, bem como traçar um plano econômico ambicioso. Ele aborda vários setores econômicos tidos como áreas fortes no Reino Unido, incluindo a economia criativa que, como as citações a seguir demonstram, é levada em conta de acordo com seu histórico e com seu potencial em termos de crescimento rápido, inovação, colaborações entre ensino superior e economia criativa, tecnologia imersiva e clusters criativos.

• “As indústrias criativas de nível mundial do Reino Unido estão crescendo duas vezes mais que a economia como um todo” (p. 104);

• “A colaboração entre as universidades e a indústria é essencial para a entrega da Industrial Strategy” (p. 85);

• “O Industrial Strategy Challenge Fund permitiu o investimento em clusters criativos em todo o Reino Unido” (p. 203);

• O governo do Reino Unido já se comprometeu com o “investimento transformador em tecnologias imersivas pioneiras, como realidade virtual e realidade aumentada” (p. 203).

O papel da economia criativa na estratégia industrial encontrou maior expressão com a publicação do Industrial Strategy: Creative Industries Sector Deal 9 em 2018, que foi estabelecido pelo Creative Industries Council, órgão composto por representantes do governo e de empresas criativas, órgãos setoriais e organizações de pesquisa: “Criado para ser uma voz para as indústrias criativas, o conselho se concentra em áreas onde existem barreiras para o crescimento do setor, como acesso a financiamento, habilidades, mercados de exportação, regulamentação, propriedade intelectual (pi) e infraestrutura”.10

O texto se inicia com uma introdução de Greg Clark (então secretário de Estado para Negócios, Energia e Estratégia Industrial), Matt Hancock (então secretário de Estado para Digital, Cultura, Mídia e Esporte) e Nicola Mendelsohn (vice-presidente do Facebook para a Europa, Oriente Médio e África, e copresidente do Creative Industries Council). Eles defendem que:

16 Morag Shiach

As indústrias criativas – incluindo cinema, tv, moda e design, artes, arquitetura, editoras, publicidade, videogames e artesanato – são uma força indiscutível na nossa economia; na verdade, elas estão no coração da vantagem competitiva do país. De Harry Potter a Grand Theft Auto, da Saatchi & Saatchi à Savile Row, as indústrias criativas respondem por 92 bilhões de libras de valor agregado bruto (vab), dois milhões de empregos e estão crescendo duas vezes mais rápido do que a economia como um todo. (2018, p. 2)

O objetivo desse “acordo setorial” é aprimorar ainda mais as áreas fortes identificadas, concentrando-se no que se constatou como as principais questões de finanças, habilidades, mercados de exportação, regulamentação, propriedade intelectual e infraestrutura.

O acordo foi anunciado em março de 2018, conforme a seguinte manchete: “Tornando a Grã-Bretanha o melhor lugar do mundo para as indústrias criativas prosperarem”.11 As principais políticas do acordo incluem o incentivo vinte milhões de libras ao ano a fim de lançar um fundo de desenvolvimento cultural para que parcerias locais (fora de Londres) possam concorrer a investimentos; 58 milhões de libras para “usufruir do poder das tecnologias imersivas”; o desenvolvimento de novos códigos de prática em relação aos direitos autorais; a melhoria do acesso ao financiamento para empresas de alto crescimento; a promoção de um Conselho de Comércio e Investimento para alcançar um aumento de 50% nas exportações de indústrias criativas até 2023; e o lançamento de um programa de carreiras criativas liderado pela indústria. O valor total do investimento proposto é de 150 milhões de libras, algo que, embora claramente bem recebido pelo setor criativo, representa uma fração muito pequena do investimento de 20 bilhões de libras associado à estratégia industrial como um todo.

DELEGAÇÃO DA POLÍTICA CULTURAL: ESCÓCIA

Até agora, este artigo concentrou-se na formulação de políticas no Reino Unido em geral, que tende a ser o que é mais conhecido e influente internacionalmente – aquela “exportação significativa do Reino Unido” à qual Martin Smith se referiu. Mas a política cultural no Reino Unido não é moldada apenas em um nível ou em um lugar; há desafios importantes e interessantes para o idioma

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e as prioridades do “acordo setorial” a serem encontrados em outros contextos.

A Escócia alcançou um nível significativo de autoridade descentralizada nos últimos vinte anos, desde que a Lei da Escócia (1998) criou o Parlamento Escocês e o Executivo Escocês. Um momento-chave em que a Escócia articulou uma política cultural distinta foi a promulgação da Lei da Reforma dos Serviços Públicos, em 2010, que estabeleceu a Creative Scotland, um órgão não departamental do governo escocês que assumiu as funções da Scottish Screen e do Scottish Arts Council. A fusão dessas duas organizações aproximou empresas mais comercialmente focadas no setor artístico em toda a sua diversidade, o que gerou tensões e polêmicas significativas nos anos que se seguiram, à medida que novas estratégias e políticas culturais foram desenvolvidas por esse órgão híbrido.

A Creative Scotland tornou-se o órgão público nacional voltado para as artes, para o cinema e para as indústrias criativas, e também era responsável pelo desenvolvimento e promoção do talento criativo na Escócia.

Os primeiros anos da Creative Scotland foram marcados por controvérsias e contestações significativas. Por exemplo, em 2012, “mais de cem artistas escoceses, incluindo três vencedores do Prêmio Turner, um vencedor do Prêmio Booker e um vencedor do Prêmio Costa [escreveram] uma carta aberta protestando contra o ‘aprofundamento do mal-estar’ na Creative Scotland”.12 Duas das principais preocupações expressas no texto relacionavam-se ao que os signatários da carta viam como uso excessivo de “jargão de negócios” pela Creative Scotland e à ênfase excessiva no valor comercial. A carta dizia ainda que:

Escrevemos para expressar nossa consternação com a crise em curso na Creative Scotland. Uma série de notícias de grande destaque em vários meios de comunicação é apenas um sinal do aprofundamento do mal-estar dentro da organização, cujas consequências confrontam aqueles de nós que trabalham todos os dias na área de artes na Escócia. Rotineiramente, vemos tomadas de decisão mal concebidas, linguagem ambígua e falta de empatia e de respeito pela cultura escocesa. Observamos uma organização com um estilo de gestão confuso e intrusivo casado com um éthos corporativo que parece ter sido desenvolvido para pôr artistas contra artistas e empresas contra empresas na busca de recursos.

18 Morag Shiach

Em resposta a tais críticas, a Creative Scotland procurou rearticular sua estratégia de forma a enfatizar objetivos comuns e apresentar uma compreensão mais diversificada de valor.

Em 2014, a Creative Scotland publicou novo plano previsto para dez anos, chamado Unlocking Potential, Embracing Ambition: a Shared Plan for the Arts, Screen and Creative Industries, 2014-24. 13 O plano articulou uma “visão compartilhada” ambiciosa:

Queremos uma Escócia onde todos valorizem e celebrem ativamente as artes e a criatividade como o coração de nossas vidas e do mundo em que vivemos; que amplie continuamente sua imaginação e as formas de fazer as coisas; e onde as artes, o cinema e as indústrias criativas estejam confiantes, conectadas e prosperando. (2014, p. 13)

A ênfase nos conceitos de “confiança” e “conexão” é aqui apresentada no contexto da afirmação dos supostos valores compartilhados do cinema e das indústrias criativas, respondendo, ao que parece, àquelas críticas anteriores ao uso excessivo do “jargão de negócios” e à visão estreita de valor associada aos primeiros anos da Creative Scotland.

Em 2016, houve a publicação de A Strategy for Creative Scotland, que representou um envolvimento distinto com a natureza e o potencial das indústrias criativas na Escócia. A título de exemplo, ofereceu-se novo mapeamento da economia criativa no país, defendendo a importância de “dividir e reorganizar alguns setores em categorias mais adequadas, adicionando setores fora da definição do Department for Digital, Culture, Media and Sport (dcms) […] para que se tornassem mais relevantes para a Escócia daquela época”.14 As taxonomias nunca são neutras, e as decisões sobre o que é incluído como “indústria criativa” têm consequências significativas para a política. A Strategy de 2016 destacou as atividades criativas e setores da indústria vistos como particularmente importantes para a Escócia, modificando de forma expressiva a conhecida taxonomia do dcms.15

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1. Publicidade e marketing

2. Arquitetura

3. Artesanato

4. Design: produto, desenho gráfico e moda

5. Cinema, tv, vídeo, rádio e fotografia

6. ti, software e serviços de informática

7. Editoras

8. Museus, galerias e livrarias

9. Música, artes cênicas e visuais

16.

Fonte: elaboração própria.

Além da taxonomia revisada das indústrias criativas, o relatório também desenvolveu nova abordagem para a articulação e medição de valor, baseando-se no conceito de triple bottom line [tripé da sustentabilidade]. Argumentou-se que as empresas criativas

têm a capacidade de gerar forte valor para outros setores empresariais – estando direta ou indiretamente ligadas ao turismo, educação, saúde, energia e alimentação – e são muitas vezes constituídas por uma forte ética social […] Esse éthos define um novo tipo de setor com rico sistema de micronegócios que são rápidos e formados por forte compreensão do interesse da comunidade, bem como capacidade comercial, muitos trabalhando para um triplo resultado econômico, social e cultural. (Apêndice dois, 2016, p. 9)

A ideia de triple bottom line é emprestada da estrutura contábil desenvolvida na década de 1990 com o fim de capturar formas de valor social, ambiental e financeira, associada inicialmente ao trabalho de

20 Morag Shiach
1
Tabela
dcms: Governo escocês: Setores
1. Publicidade
2. Arquitetura
3. Artes visuais
4. Artesanato
Música
Fotografia
Filme e vídeo
Jogos de computador
Rádio e tv
Escrita e editoração
Patrimônio
Software/editoração eletrônica
5. Moda e têxteis 6. Design 7. Artes cênicas 8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
Educação cultural

John Elkington.16 Na discussão da política cultural em desenvolvimento na Escócia, ela é usada para destacar os impactos interligados associados a três formas diferentes de valor: cultural, social e econômico. Todos os três tipos de valor foram explicitamente mencionados por legisladores, organizações culturais e financiadores escoceses nos últimos anos. Por exemplo:

Esses valores se identificam com a estratégia econômica do governo da Escócia, o apoio aos “4 Is” da economia (Investimento, Inovação, Crescimento Inclusivo e Internacionalismo), e também com a abordagem triple bottom line da Creative Scotland –entendendo que os negócios criativos têm […] um impacto no valor econômico, social e cultural.17

Os parceiros estabelecerão uma metodologia comum para medir o sucesso do triple bottom line no impacto dos serviços públicos sobre a viabilização do desenvolvimento cultural, social e econômico.18

Aqui, as organizações culturais e criativas enfatizam tanto suas contribuições para a realização da abrangente estratégia econômica da Escócia, quanto sua alegação de gerar formas mais amplas de valor cultural e social.

Em novembro de 2019, o governo escocês emitiu uma declaração política sobre as indústrias criativas.19 Isso ofereceu uma visão do papel que as indústrias criativas poderiam desempenhar no futuro da Escócia, citando explicitamente a importância do triple bottom line, ao mesmo tempo que ligava a economia criativa à inovação e ao crescimento:

Nossa visão é a de que as indústrias criativas devem desempenhar papel central para que a Escócia tenha um futuro criativo. A fim de alcançar tal objetivo, trabalharemos em direção à formação de uma Escócia aberta a negócios para as indústrias criativas, em que modelos de negócios sustentáveis, com visão de futuro, iniciativas e ideias ambiciosas, inovadoras e pioneiras sejam nutridas e desenvolvidas. […]

Nosso objetivo é criar os meios para que as indústrias criativas cresçam de forma sustentável e com resiliência, realizando padrões de crescimento não lineares e o triple bottom line dos valores econômico, social e cultural. As empresas criativas devem ser impulsionadoras do crescimento econômico e incentivadas a serem experimentais, dinâmicas, ousadas e confiantes. (2019, p. 4)

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A linguagem usada pode estar visando ao consenso, porém produz uma nota desconfortável e até mesmo chocante, pois justapõe termos como “aberta a negócios”, “iniciativas inovadoras”, “crescimento”, “dinâmicas” e “ousadas”, ao lado da evocação da importância de “padrões de crescimento não lineares” e das contribuições potenciais da economia criativa para a realização do “triple bottom line dos valores econômico, social e cultural”. Para alguns comentaristas, a Creative Scotland ainda está moldando suas políticas com foco em impactos econômicos mensuráveis:

Esta época viu o surgimento de formas tecnocráticas de governança baseadas em dados quantitativos, indicadores econômicos e preços de mercado. […] Quando o Partido Nacional Escocês (snp) chegou ao poder, eles também foram enfeitiçados, abraçando essa política de todo o coração com a criação da Creative Scotland. […] Nas últimas duas décadas, testemunhamos as transformações neoliberais em curso de nossas práticas culturais em atividades econômicas.20

Apesar da ambição declarada pela Creative Scotland de reunir as indústrias criativas com foco comercial e na diversidade de práticas artísticas e de seu compromisso de olhar os impactos sociais e culturais, bem como econômicos, a alegação aqui é que a política cultural da Escócia está de fato trancada dentro de uma estrutura neoliberal de prestação de contas e de métricas que constituem uma “forma tecnocrática de governança”.

DELEGAÇÃO DA POLÍTICA CULTURAL: PAÍS DE GALES

Tal como a Escócia, o País de Gales viu o aumento relevante dos seus poderes descentralizados nos últimos vinte anos, desde a aprovação da Lei do Governo do País de Gales (1998), que levou à criação de uma Assembleia Nacional. Iniciativas recentes e significativas relacionadas à política cultural incluem a publicação de um relatório realizado para o governo galês em 2014, intitulado Culture and Poverty: Harnessing the Power of the Arts, Culture and Heritage to Promote Social Justice in Wales.21 A análise que fundamentou o relatório foi encomendada pelo ministro da Cultura e Esportes do País de Gales em deliberação com os ministros das Comunidades e Combate à Pobreza, da Habitação e Regeneração e da Educação e Competências,

22 Morag Shiach

e foi liderada pela baronesa Andrews – anteriormente consultora de políticas de Neil Kinnock e também presidente do English Heritage –, que foi nomeada par vitalícia em 2000. A orientação para a análise foi “recomendar maneiras de como os órgãos culturais e patrimoniais poderiam trabalhar de forma próxima para ampliar o acesso, a valorização e a participação na cultura a fim de contribuir para a redução da pobreza” (p. 3). O relatório abrange uma série de questões relacionadas às barreiras ao acesso à cultura e à arte; ao envolvimento da comunidade com a arte e a cultura; à educação e ao treinamento; às habilidades culturais; e à infraestrutura cultural. Ele ainda argumenta o seguinte:

Desenvolver maneiras de tirar o máximo proveito dos bens culturais e patrimoniais como parte de uma economia criativa e competitiva e de uma comunidade resiliente é um problema que afeta outros países. Mas apenas no País de Gales, até onde se sabe, um governo colocou essa questão no cerne do desafio para encontrar um caminho mais amplo para a justiça social para todos. (2014, p. 8)

A estreita ligação entre o bem-estar cultural, econômico e social tornou-se uma vertente distinta na formulação de políticas galesas nos últimos anos e foi construída a partir da conceituação da cultura como algo coletivo e local, e não a partir da compreensão da economia criativa como algo global ou caracterizado pela rápida criação de empregos e crescimento econômico. De fato, o relatório pontua que a verdadeira riqueza econômica de um país é seu povo. Considerar o impacto econômico da cultura e do patrimônio a curto prazo, mas não o benefício econômico e social a longo prazo, do papel que desempenham no enriquecimento da vida das pessoas e no estímulo ao seu desejo pela aprendizagem e educação, é insuficiente e inaceitável. (2014, p. 9)

A ênfase sobre cultura e pobreza na formulação de políticas de longo prazo e também sobre a importância de desenvolver abordagens políticas que aliviem a pobreza e proporcionem bem-estar para as gerações futuras ecoa em relatórios galeses subsequentes e em suas principais legislações, incluindo o relatório do governo galês intitulado Light Springs through the Dark: a Vision for Culture in Wales (2016) e a Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras (2015).

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010

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O relatório começa com a usual declaração de que “as indústrias criativas são um mecanismo vital da nossa economia. Elas contribuem com empregos e riqueza”.22 O prefácio de Ken Skates (secretário de Gabinete da Economia e Infraestrutura) evoca ainda o legado crítico e político de Raymond Williams, citando seu ensaio de 1958 “Culture is Ordinary” (p. 4) para argumentar que os valores da economia criativa precisam ser concebidos de forma mais ampla, e as abordagens políticas devem ser flexíveis o suficiente para oferecer diversos benefícios por meio do envolvimento com a criatividade e com a cultura.

A Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras23 incorpora tal pensamento nas políticas públicas, uma vez que “exige que os órgãos públicos no País de Gales pensem no impacto de longo prazo de suas decisões, trabalhem melhor com as pessoas, comunidades e entre si e previnam problemas persistentes como pobreza, desigualdades na saúde e mudanças climáticas”. A lei identifica sete objetivos principais de bem-estar, incluindo “um País de Gales mais saudável”, “mais igualitário”, “com comunidades coesas” e “de cultura vibrante e língua galesa próspera”. Assim como a ideia do triple bottom line apareceu rapidamente em uma série de documentos da política cultural escocesa, a responsabilidade sobre o bem-estar das gerações futuras passou a ser central para as políticas culturais no País de Gales. Assim, o Corporate Plan 2018-2023, do Arts Council of Wales,24 afirma:

Queremos trabalhar com você para melhorar o bem-estar e a vida de nossa nação através da arte. Ao investir na arte, você pode alcançar todos os sete objetivos da Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras. Juntos, podemos fazer a diferença para as futuras gerações do País de Gales.

O objetivo principal da política cultural é aqui apresentado em relação ao bem-estar futuro, mas é interessante refletir sobre as formas como essa prioridade é enquadrada no documento global.

A título de exemplo, a capa do relatório em questão mostra um espaço criativo que se identifica muito mais com os ambientes de trabalho compartilhados, que se tornaram centrais para as empresas de economia criativa, do que com imagens artísticas baseadas na comunidade: é o espaço pós-industrial que fala de regeneração urbana ao se referir a tradições folclóricas através de uma estrutura de carroça que domina o lado direito da fotografia. Estilística e afetivamente, o documento se situa, de modo precário, entre dois paradigmas da economia criativa.

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GOVERNO LOCAL E POLÍTICA DE ECONOMIA CRIATIVA: O CASO DE LONDRES

Em Londres, que recebe uma proporção maior de investimentos culturais do que outros locais do Reino Unido, verifica-se uma alta concentração de negócios de economia criativa. Entretanto, há também uma diferença gritante no gasto público per capita destinado à cultura em toda a cidade, particularmente se comparados os bairros centrais e periféricos. Aqueles que vivem em bairros do centro da cidade se beneficiam de um investimento cerca de dez vezes maior em atividades culturais em comparação com o que se investe em bairros da periferia. A essa desigualdade gritante podemos acrescentar muitas outras questões que tornam desafiadora a sustentabilidade de espaços e negócios criativos em Londres. Eis o contexto para a recente iniciativa da política de cez da Greater London Authority.

O Creative Enterprise Zones Prospectus (2017),25 que está vinculado à “Good Growth Strategy”, da gla , descreve os objetivos da política de cez da seguinte forma:

• “Proporcionar meios para ajudar os artistas e as empresas criativas a criarem raízes nas áreas que ajudaram a regenerar” (p. 5);

• “Com base em Zonas de Empreendedorismo Criativo, serão oferecidos incentivos para reter e atrair artistas e novos negócios criativos para determinada área, oferecendo espaço de trabalho acessível e permanente, suporte a negócios e habilidades, diminuição das taxas para negócios, banda larga super-rápida e um plano local pró-cultura” (p. 8);

• “As zonas serão clusters de produção criativa e atenderão às necessidades locais” (p. 8);

• “As cezs serão sustentadas por políticas dentro do Plano de Londres, pelo qual ‘obrigações de planejamento podem ser usados para garantir espaço de trabalho acessível com aluguéis mantidos abaixo dos valores de mercado’” (p. 8).

Ao longo de 2018, vários bairros de Londres apresentaram suas propostas, incluindo planos de negócios detalhados, destinados a áreas específicas a serem designadas como cezs; seis localidades conseguiram obter essa atribuição no início de 2019 – a distribuição geográfica está indicada na figura 1, a seguir. Embora seis localidades tenham sido bem-sucedidas, envolveram-se no processo sete administrações locais, além da London Legacy Development Corporation (lldc), que tem a responsabilidade de planejar o local do legado olímpico e áreas adjacentes.

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010

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Figura 1: Bairros com Zonas de Empreendedorismo Criativo em 2019 Fonte: londonmap360.com/london-boroughs-map.

Os principais dados relacionados aos sete bairros são apresentados na tabela abaixo:

Fontes: gla London Borough Profiles e Ministério da Habitação, Comunidades e Governo.

Local: English Indices of Deprivation, 2019 (Disponível em: www.gov.uk/government/statistics/ english-indices-of-deprivation-2019).

Com exceção de um caso, em todos os outros os níveis de emprego das cezs estão abaixo da média nacional, e a proporção de residentes de comunidades negras e de minorias étnicas se situa acima da média nacional. Em um índice de pobreza que abrange 317 administrações inglesas locais, todos os bairros de cez são registrados no terço mais carente. Finalmente, os preços dos imóveis nessas localidades estão bem acima da média do Reino Unido, que é de 310 mil libras, e especialmente altos em Hackney, onde o índice de pobreza é mais acentuado. Tais estatísticas capturam os desafios da ordem da desvantagem e da gentrificação a serem enfrentados pelas cezs por meio de investimentos em criatividade, espaços de trabalho e habilidades.

Como parte do processo de licitação para atribuição da cez, cada uma das localidades deveria definir suas prioridades e propostas de contribuições para aumentar a sustentabilidade econômica e os impactos sociais. As seis cezs bem-sucedidas identificaram os seguintes objetivos e prioridades:

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010

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Tabela 2 Bairro População Taxa de emprego % (nacional = 76,2) Negros, asiáticos e minorias étnicas % (nacional = 14) Preço médio do imóvel Ranking de pobreza (1 = mais pobre) Croydon 386.500 75,4 49,9 £ 300.000 102 Hackney 274.300 69 43,6 £ 485.000 7 Tower Hamlets 304.000 70,4 54 £ 415.000 27 Haringey 278.000 71,3 38,2 £ 432.500 37 Hounslow 274.200 74,2 51,6 £ 355.000 95 Lambeth 328.900 78,5 41,5 £ 450.000 42 Lewisham 303.400 75,9 47,4 £ 352.000 35

• Croydon:26 desenvolver Croydon como cidade da música; entregar um programa de empreendedorismo cultural; subsidiar o acesso a espaços criativos para jovens; oferecer diminuição das taxas de negócios para startups criativas; fornecer suporte empresarial personalizado para empresas criativas.

• Hackney/Tower Hamlets/lldc:27 garantir que os poderes de planejamento ajudem a desenvolver um pipeline de espaço de trabalho acessível; ajudar a população local a desenvolver habilidades criativas; oferecer aprendizagens criativas, estágios e suporte empresarial personalizado como parte do compromisso com o crescimento inclusivo.

• Haringey:28 enfocar moda e fabricação de móveis; honrar o patrimônio de criação e produção de Tottenham, expandindo a disponibilidade de espaços de trabalho criativos e investindo em habilidades e treinamento para que toda a comunidade se beneficie do crescimento criativo previsto.

• Hounslow:29 aproveitar o centro local de tv e cinema, ofertando novos espaços de estúdio acessíveis; envolver empresas multinacionais locais e fortalecer redes; fornecer treinamento de habilidades especializadas e apoio a autônomos e pequenas e médias empresas para garantir que os residentes tenham uma rota clara de acesso a oportunidades no setor criativo.

• Lambeth:30 nomear um diretor de educação cultural para promover a colaboração entre escolas e indústrias criativas; lançar um programa de startups para negócios criativos e digitais; estabelecer uma feira de arte internacional para mostrar a criatividade na cez de Brixton; adotar uma política de espaço de trabalho financeiramente acessível.

• Lewisham:31 apoiar negócios criativos para se conectarem e colaborarem entre si; aumentar o acesso a espaços de trabalho financeiramente acessíveis para que os profissionais da área possam permanecer na comunidade; vincular empresas criativas às habilidades, conhecimentos e instalações das instituições locais de educação e cultura; oferecer caminhos de carreira para o setor criativo.

Esses planos ambiciosos só começaram a ser realizados com a pandemia de covid-19, e exigiram um rápido ajuste estratégico. Os impactos da pandemia no setor criativo foram vastos e potencialmente catastróficos. No entanto, a criação das estruturas necessárias para gerenciar as seis cezs e cumprir seus objetivos permitiu, ao menos, intervenções rápidas para apoiar modelos de negócios reformulados e defender espaços criativos nas localidades. Os impactos de médio a longo prazo desse trabalho, é claro, ainda devem ser observados.

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A vulnerabilidade da economia criativa em relação aos choques gerados pela pandemia de covid-19 e os desafios específicos para o desenvolvimento de intervenções governamentais que pudessem responder ao grande número de microempresas e autônomos dessa economia (há, por exemplo, mais de 5 mil trabalhadores criativos autônomos baseados nas cezs de Hackney Wick e Fish Island) expuseram ainda mais a precariedade de muitos trabalhos dentro da economia criativa. Conforme relatado pela Creative Industries Federation, em 6 de abril de 2020:

• “42% das organizações criativas estimam que sua renda diminuiu 100% desde o início da pandemia”;

• “63% das organizações criativas preveem uma diminuição no volume de negócios anual em mais de 50% até o final de 2020”;

• “Uma em cada sete organizações criativas acredita que pode durar menos de quatro semanas com as reservas existentes”.32

Para alguns analistas, a precariedade é um alicerce necessário para o tão celebrado sucesso econômico do setor criativo. Assim, um relatório de 2017 da Nesta,33 The State of Small Business: Putting uk Entrepreneurs on the Map, argumenta:

Ligada ao nascimento e à morte das empresas, há uma questão de sobrevivência. Para a empresa individual, a sobrevivência é inegavelmente boa. No entanto, de uma perspectiva da economia como um todo, altas taxas de sobrevivência de negócios não necessariamente contribuem para uma economia forte. […] A morte dos negócios nem sempre é ruim.

Nossa análise conclui que a sobrevivência dos negócios está negativamente relacionada à produtividade. […] As áreas onde a sobrevivência é menor e há um elevado número de nascimentos de empresas tendem a ser mais produtivas, pois a destruição criativa permite a realocação de capital para empresas de maior produtividade.

A adoção explícita dos benefícios da “destruição criativa”, ou mesmo da disrupção, é vista de maneira bastante diferente alguns anos depois, contra um pano de fundo de destruição generalizada e sistêmica de subsetores-chave da economia criativa no Reino Unido. Contudo, vozes discordantes podem ser encontradas ainda antes da atual pandemia, sugerindo que tanto a economia quanto a sociedade correm grave risco de solicitar à economia criativa que alcance objetivos

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mutuamente incompatíveis. Ullrich Kockel alertou em 2019 para os riscos envolvidos ao assumir que o “recurso primário livremente disponível” da criatividade humana estava sempre e em todos os lugares disponível para exploração:

Em conjunto com o turismo e um recurso onipresente chamado “patrimônio”, as indústrias criativas passaram a ser vistas como a salvação de regiões que, de outra forma, eram consideradas casos econômicos perdidos […], sustentadas pelo recurso primário continuamente renovável e disponível gratuitamente: a criatividade humana.34

Kockel aponta as limitações de um modelo de economia criativa que se baseia na ideia de criatividade humana como um bem livre inesgotável. E o mesmo ponto é poderosamente levantado por Oli Mould, em seu estudo recente Against Creativity. 35 Ao defender a importância da criatividade para os indivíduos e para a sociedade, ele polemiza contra a sua captura pela economia e por uma retórica que não enxerga valor além do econômico: “Então a criatividade, ou mais precisamente a potência de criar algo do nada, tornou-se uma característica individual que poderia ser negociada. Ser criativo agora tem valor, é um traço de caráter muito procurado por empregadores, empresas e governos”. O desafio para todas as abordagens políticas da economia criativa é significativo: podemos entender sua capacidade de promover o bem-estar social, cultural e econômico sem ser vítima de um modelo que, em última análise, desvaloriza e explora o poder da criatividade humana?

Notas

1 Está é a primeira versão do artigo enviado a nós exclusivamente para a presente publicação. [N. do org.]

2 A primeira imagem descrita no texto contém gráficos com estimativas do Department for Digital, Culture, Media and Sport (dcms), do Reino Unido, feitas em junho de 2015 e janeiro de 2016. Para acessá-la, ver:

thecreativeindustries.co.uk. A segunda retrata o pub Lord Napier, que estampa obras de arte de Edwin, Mighty Mo, Dscreet, Malarko, Sony, Static, Charice, Stik & Done, integrantes de um projeto com curadoria de Aida Wilde. Para conferir a imagem, ver: www.huckmag.com/ perspectives/reportage-2/the-battle-to-save-east-london-is-this-finally-the-end. [N. do org.]

30 Morag Shiach

3 Hesmondhalgh, D. et al. Culture, Economy and Politics: the Case of New Labour, Londres: Palgrave Macmillan, 2015, p. 59.

4 Smith, M. ‘Creative Industries’ Revisited (palestra na Goldsmiths University of London, 2019).

5 Disponível em: www.gov.uk/government/ publications/industrial-strategy-building-a-britain-fit-for-the-future.

6 Disponível em: www.media.nesta.org.uk/ documents/beyond_the_creative_industries_ report.pdf.

7 Disponível em: www.nesta.org.uk/ report/a-manifesto-for-the-creative-economy.

8 Ver: www.gov.uk/government/news/pmunveils-plans-for-a-modern-industrial-strategy-fit-for-global-britain.

9 Disponível em: www.gov.uk/government/ publications/creative-industries-sector-deal.

10 Ver: www.gov.uk/government/groups/ creative-industries-council#role-of-the-group.

11 Ver: www.gov.uk/government/news/ making-britain-the-best-place-in-the-world-for-the-creative-industries-to-thrive.

12 Ver: www.theguardian.com/culture/ charlottehigginsblog/2012/oct/09/ open-letter-creative-scotland.

13 Disponível em: www.creativescotland.com/ what-we-do/the-10-year-plan.

14 Disponível em: www.creativescotland. com/__data/assets/pdf_file/0017/34910/ Creative-Industries-Appendix-2.pdf, p. 3.

15 Ver: www.gov.uk/government/collections/ creative-industries-economic-estimates; www.gov.scot/policies/creative-industries.

16 Ver Henriques, A.; Richardson, J. (orgs.). The Triple Bottom Line: Does it all Add up?, Londres: Routledge, 2004.

17 Dundee’s Creative Industries Strategy, 2017-21. Disponível em: dundeecreates.creativedundee.com.

18 Screen Scotland. Partners’ Memorandum, 2018. Disponível em: www.screen.scot/binaries/ content/assets/screen-scot/funding–support/ research/screen-scotland-partners-mou-september-2018.pdf, p. 2.

19 Disponível em: www.gov.scot/publications/ policy-statement-creative-industries.

20 McFadyen, M. “The Creative Economy? Towards a Culture of Possibility”. Disponível em: bellacaledonia.org.uk/2019/10/20/the-creative-economy-towards-a-culture-of-possibility.

21 Disponível em: www.gov.wales/sites/default/ files/publications/2019-06/culture-and-povertyharnessing-the-power-of-the-arts-culture-andheritage-to-promote-social-justice-in-wales.pdf.

22 Relatório disponível em: www.gov.wales/ sites/default/files/publications/2019-06/arts-and-culture-vision-statement-light-springs-through-the-dark.pdf, p. 6.

23 Mais informações em: futuregenerations. wales/about-us/future-generations-act.

24 Disponível em: arts.wales/sites/default/ files/2019-02/Corporate_Plan_2018-23.pdf.

25 Disponível em: www.london.gov.uk/sites/ default/files/creative-enterprise-zones_ prospectus-2017.pdf.

26 Disponível em: news.croydon.gov.uk/ croydon-town-centre-to-be-heart-of-new-creative-enterprise-zone.

27 Disponível em: www.london.gov.uk/press-releases/mayoral/mayor-announces-first-creative-enterprise-zones.

28 Disponível em: www.haringey.gov.uk/news/ haringey-creative-boosts-announced-2019.

29 Disponível em: www.hounslow.gov.uk/news/ article/656/hounslow_announced_as_one_ of_mayor_of_london_s_first_ever_creative_ enterprise_zones.

30 Disponível em: love.lambeth.gov.uk/ brixton-named-creative-enterprise-zone-mayor-london.

31 Disponível em: lewisham.gov.uk/articles/ news/creative-enterprise-zone-launched-in-deptford-and-new-cross.

32 Disponível em: www.creativeindustries federation.com/news/press-release-federation-calls-urgent-grant-support-creative-organisations.

33 Nesta e Sage, The State of Small Business: Putting UK Entrepreneurs on the Map, 2017, pp. 9 e 37.

34 Kockel, U, Shoormal Conference: New Coasts and Shorelines – Shifting Sands in the Creative Economy, Shetland, 2019, p. 9. Disponível em: issuu.com/shetlandarts/docs/ shoormal_programme_a4.

35 Mould, O, Against Creativity, Verso, 2018. Introdução disponível em: www.versobooks. com/blogs/4115-a-history-of-creativity.

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GEORGE YÚDICE é professor titular do Programa de Estudos Latino-Americanos e do Departamento de Línguas e Culturas Modernas da University of Miami. Escreveu, entre outros títulos, Política cultural (Gedisa, 2004); A conveniência da cultura: usos da cultura em uma era global (Editora UFMG, 2005); Nuevas tecnologías, música y experiencia (Gedisa, 2007); e Culturas emergentes en el mundo hispano de Estados Unidos (Madri: Fundación Alternativas, 2009). É editor do número especial “Políticas culturais para a diversidade: lacunas inquietantes” da Revista Observatório, do Itaú Cultural, n. 20 (2016). Tem mais de 150 ensaios sobre estudos culturais e literários. Prestou consultoria para várias organizações internacionais e ministérios e secretarias de cultura em diversos países latino-americanos. Está no comitê editorial da Z Cultura (revista do PACC–UFRJ), do International Journal of Cutlural Policy (Warwick, Reino Unido) e da Heterotopías (Córdoba, Argentina).

Inovações na política cultural e no desenvolvimento na América Latina1

INTRODUÇÃO: POLÍTICAS CULTURAIS NO DESPERTAR DA NEOLIBERALIZAÇÃO

De meados da década de 1990 até boa parte da primeira década do novo milênio, muito foi escrito em tom antecipatório e cautelosamente otimista sobre o que as políticas culturais tinham que fazer para alcançar o desenvolvimento integral e sustentável da América Latina. Os textos – documentos de política baseados nas convenções da Unesco e nas recomendações ibero-americanas –criticavam o status quo: ministérios estagnados e secretarias de cultura dedicadas à arte e ao patrimônio com pouca compreensão das indústrias culturais, da comunicação e da relação entre cultura e desenvolvimento. Eles também criticavam as políticas neoliberais implementadas para lidar com a crise econômica que assolou a região desde o início dos anos 1980, transformou a cultura em uma commodity e abriu mercados na região para programas culturais dos Estados Unidos e de outros países, gerando grande riqueza para indústrias estrangeiras baseadas em direitos autorais. A esperança de reforma da estrutura neoliberal pode ser vista, por exemplo, nas recomendações políticas de García Canclini, que deu palestras em congressos mexicanos e argentinos e cujos livros e ensaios foram amplamente lidos em toda a América Latina. Seu livro Consumidores e cidadãos (1995) sintetizou uma série de políticas nessa direção. Ele defendeu as seguintes ideias:

• a regulação do capital estrangeiro e das políticas de fortalecimento das economias latino-americanas;

Inovações na política cultural e no desenvolvimento na América Latina

33

• o estabelecimento de cotas nacionais e regionais de 50% para a produção latino-americana e sua distribuição em cinemas, canais de vídeo, transmissões de rádio e programação de tv;

• o desenvolvimento de políticas para criar um espaço midiático latino-americano;

• a criação de mercados comuns de livros, revistas, filmes, tv e vídeo na região;

• a criação de uma fundação para a produção e distribuição de mídia latino-americana;

• o desenvolvimento da cidadania, dando maior atenção a uma política de reconhecimento em consonância com uma interculturalidade democrática.

É importante mencionar ainda as recomendações políticas feitas pelos cinquenta participantes – todos experientes políticos, administradores culturais e analistas – do Encontro Ibero-América

2002: Diagnóstico e Propostas para o Desenvolvimento Cultural, patrocinado pela Organização dos Estados Ibero-Americanos (oei) no México e Rio de Janeiro. Essas recomendações visavam combater a virada neoliberal na América Latina e abordar questões de diversidade, entendidas não apenas em relação à inclusão de povos indígenas e afrodescendentes, mas também em termos de escala, com ações afirmativas para regiões e países pequenos dentro do proposto espaço cultural ibero-americano (García Canclini, 2002).

Logo após a publicação do livro de García Canclini, o Brasil foi atingido por uma profunda recessão, em 1998, e a Argentina faliu no final de 2001. Um relatório de 2001 do Sistema Econômico Latino-Americano (Sela) estimou que, ao nascer, cada cidadão da região começou a vida com uma dívida de 1.550 dólares (Boye, 2001), com mais de um terço da população vivendo na pobreza (Comisión Económica para América Latina y el Caribe, 2010, p. 4), um número que diminuiu na primeira década do milênio (Birdsall; Lustig; McLeod, 2011), mas ressurgiu quando a crise econômica mundial de 2008 atingiu novamente a região, revertendo os ganhos obtidos na primeira década do milênio (Latin…, 2017; United Nations Development Programme, 2016).

Apesar das interessantes inovações da política cultural no novo milênio, a situação financeira limitou o seu alcance. Por inovação, quero dizer não apenas iniciativas para reforçar e aumentar as receitas nas indústrias culturais e criativas, mas também políticas que possam estender a participação nessas indústrias àqueles setores

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demográficos excluídos da política cultural: os grupos pobres, racializados e marginalizados fora dos grandes centros metropolitanos. Em outras palavras, refiro-me a políticas que reforçam as indústrias culturais e criativas a fim de fortalecer a inclusão democrática. Nenhum Estado que conheço desvalorizou programas já existentes (por exemplo, para teatros nacionais ou orquestras filarmônicas) com o objetivo de financiar iniciativas baseadas em direitos culturais, como os Pontos de Cultura, que foram instituídos nos últimos anos em vários países da América Latina (e que eu analiso a seguir). Esses programas, que complementam as políticas artísticas ou patrimoniais já existentes, continuam a ser vistos como compensatórios pelos atores culturais convencionais. Embora minha perspectiva de instituir políticas culturais que levem a sério o desenvolvimento cultural não seja necessariamente baseada no crescimento econômico, é preciso reconhecer que, se não houver mais financiamento, novas iniciativas não poderão florescer. Uma das estratégias para obter maior apoio é convencer outros setores do Estado (economia, comércio, ciência e tecnologia, turismo etc.) a estabelecerem parcerias com a cultura nos planos de desenvolvimento nacional e urbano. Exploro essa estratégia na seção final deste estudo.

INDÚSTRIAS CULTURAIS E CRIATIVAS

O desenvolvimento econômico das indústrias culturais e criativas é importante não apenas por razões econômicas, mas sobretudo para manter as narrativas locais em circulação. Isso significa sustentabilidade, no sentido de que um aumento na produção dessas indústrias não deve simplesmente reproduzir narrativas produzidas em outros lugares. A sustentabilidade cultural das indústrias culturais e criativas latino-americanas envolve narrativas e estilos que alimentam o imaginário popular, que, por sua vez, serve de insumo para discussões entre cidadãos (Getino, 1987a). Em outras palavras, as indústrias audiovisuais nacionais contribuem para o autoconhecimento das pessoas. O raciocínio tornou-se ainda mais importante à medida que os Estados Unidos pressionaram para incluir a cultura –e em particular produtos e serviços cinematográficos, televisivos e audiovisuais – nas negociações finais, em 1993, da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), movida pela França e pelos países da União Europeia. Conforme a subsequente rodada de negociações comerciais mundiais se aproximava, os opositores

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ao comércio na cultura propuseram a Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Unesco, aprovada em 2005 e ratificada por 144 Estados em 2017. O foco deslocou-se do protecionismo nacional para a sustentabilidade de uma diversidade de expressões ameaçadas pela predominância de grandes conglomerados audiovisuais. Embora a própria convenção não pudesse fornecer uma contenção efetiva à Organização Mundial do Comércio (omc) ou impor obrigações suficientemente fortes aos signatários para cumprir seus princípios (Neil, 2006), ela forneceu um impulso para muitos países (e cidades) possibilitarem o acesso de grupos historicamente excluídos a financiamento e exposição. Esta seção começa com foco no setor audiovisual das indústrias culturais e criativas, uma vez que ele detém grande parcela do comércio (e, portanto, de receitas) e fornece um modelo para a cooperação regional que obteve algum sucesso. Nesse último aspecto, a Ibermedia, criada em 1996 para promover a coprodução de filmes de ficção e documentários entre cineastas dos países de língua espanhola e lusófona, é muito importante. Juntamente com os fundos nacionais voltados à realização de filmes, ela é responsável por aumentar substancialmente a produção cinematográfica na América Latina. Em dezenove anos de operação, apoiou 787 projetos de coprodução, 2 mil empresas e 10 mil profissionais (Ibermedia, 2017). Octavio Getino, cineasta argentino e promotor de políticas culturais na América Latina, foi fundamental na criação de uma precursora da Ibermedia, a Conferência das Autoridades Audiovisuais e Cinematográficas Ibero-Americanas (1989), e, posteriormente, fundador do Mercosul Cultural, o braço de política cultural do bloco comercial sub-regional formado por Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. Getino também foi a força por trás da criação do Observatório do Mercosul e do Observatório das Indústrias Culturais da Cidade de Buenos Aires, que posteriormente se transformou em Observatório das Indústrias Criativas.

Durante seu exílio, imposto pela ditadura militar na Argentina, Getino trabalhou na formulação de políticas para cinema, vídeo e ambientalismo, produzindo o primeiro livro publicado na América Latina sobre a relação entre meio ambiente, turismo e desenvolvimento (Getino, 1987b). Em seu retorno a Buenos Aires em 1988, defendeu o desenvolvimento de um espaço audiovisual latino-americano (Getino, 1987a, 1989, 1990). As ideias e o ativismo de Getino evoluíram organicamente, de modo que suas primeiras concepções sobre cinema, dependência e emancipação no contexto de invasões

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comerciais e territoriais se transformaram em recomendações de políticas para fortalecer o cinema latino-americano. Já em 1987, compilou grande variedade de informações e análises em seu livro Cine latinoamericano: economia y nuevas tecnologías audiovisuales. Ele já coletava dados desde a década de 1970 em boletins mimeografados sobre as indústrias culturais no Peru. Em 1985, foi membro fundador da New Latin American Cinema Foundation e realizou estudos regionais sobre cinema, sendo o livro de 1987 um produto desse trabalho. Continuou a defender suas ideias como coordenador regional do Observatório do Cinema e do Audiovisual da América Latina.

No cinema, bem como na tv e no rádio comercial, políticas efetivas não podem ser projetadas sem se conhecer as condições de produção e comercialização do trabalho local, sem se entender e antecipar o impacto das novas tecnologias ou como novos públicos são formados. Em uma entrevista um ano antes de sua morte, Getino fez um retrospecto desses projetos e declarou: “Sem informações confiáveis, é arriscado pensar em políticas de desenvolvimento, em qualquer campo. [No meu caso] foi uma questão de descobrir dados e análises desse setor para contribuir para a melhoria das políticas” (Getino, 2011). Ele era um construtor de instituições e, para tanto, promoveu pesquisas, coletas de dados e análises. Logo após seu retorno do exílio para a Argentina, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema (1989–90). Foi pioneiro nos primeiros estudos da economia das indústrias culturais na Argentina. O próprio Getino viu sua longa carreira como parte de um “processo que culminou, felizmente, com a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual” (Getino, 2011).

Tal objetivo também foi alcançado pelo ativismo de trabalhadores culturais de base (Segura; Prato, 2018). Se a ênfase nas décadas de 1960 e 1970 foi na insurgência decolonial, nos anos pós-ditadura (1983 em diante) ela se deu no desenvolvimento de fortes indústrias culturais e iniciativas comunitárias, as quais poderiam suportar o ataque de conglomerados americanos, europeus e latino-americanos que não tinham o interesse dos cidadãos como prioridade.

A criação da Divisão das Indústrias Criativas da Cidade de Buenos Aires no Ministério do Desenvolvimento Econômico, posteriormente abrigada no Ministério da Modernização, Inovação e Tecnologia, é uma consequência direta do tipo de defesa que Getino e outros realizaram ao longo dos anos. Ela fornece inúmeros serviços (jurídicos, de pesquisa etc.), assistência e incentivos, e ajuda ainda a preparar empresas para mercados estratégicos, gerando emprego

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no setor. A capital argentina apresenta muitas formas de apoio às indústrias criativas. O Centro Metropolitano de Design (cmd), em particular, é um ponto de atração não apenas para empresas locais e startups, mas também um lugar onde pessoas interessadas em uma série de setores podem obter treinamento. É uma organização de serviços 360º que promove e coordena a interação entre designers, gerentes de design, executivos, empresários e diretores de políticas públicas e acadêmicas, acompanha empreendedores locais no desenvolvimento de empresas; é ainda um elo influente entre os distritos de indústrias criativas de Buenos Aires e uma rede nacional e internacional de centros de design. Como tal, gera informações que são cruciais para o desenvolvimento das indústrias criativas. Além disso, o cmd trabalha com outros escritórios dos governos municipais e federais, como a Secretaria de Economia Criativa, fortalecendo o Distrito de Design, promovendo investimentos na área e responsabilidade social e ambiental, impulsionando o emprego entre os moradores do bairro e defendendo uma maior compreensão e uso do design. O cmd contribuiu para a nomeação de Buenos Aires como a primeira Cidade do Design da Unesco, o que a incluiu em uma rede de 116 cidades criativas com foco em artesanato, arte folclórica, design, cinema, gastronomia, literatura, música e artes midiáticas (Becerra, 2013).

O governo argentino encabeçou duas outras iniciativas que promovem as indústrias culturais e criativas: o Mercado das Indústrias Criativas da Argentina (Mica) e o Mercado das Indústrias Culturais do Sul (Micsur), realizado pela primeira vez em Mar del Plata, na Argentina, em 2014, depois em Bogotá, na Colômbia, em 2016, e em São Paulo, em 2018. O Mica, criado em 2011, reúne seis setores: editorial, música, audiovisual, design, artes cênicas e video games. Como todas as feiras, procura oferecer oportunidades de networking que aumentem as vendas dos participantes. Além disso, fornece capacitação em produção transmídia, reconhecendo as profundas mudanças nas formas de produção e consumo. Também em reconhecimento à interdependência da cultura com a economia, emprego, educação e outras áreas, o Mica é organizado com a participação dos Ministérios da Indústria, do Trabalho, do Desenvolvimento Social, da Economia e das Relações Exteriores. Ao mesmo tempo que a Argentina ampliava suas indústrias culturais e criativas, criadores de políticas como Rodolfo Hamawi, diretor nacional de Indústrias Culturais quando o Micsur foi criado, em 2014, procuraram fortalecer o mercado regional sul-americano, já que seus países-membros eram

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importadores líquidos, contribuindo para déficits comerciários. A feira foi criada para reverter essa situação. O primeiro Micsur foi um evento sem precedentes, devido ao seu tamanho e abrangência continental – na primeira reunião, em 2014, todos os dez países da América do Sul participaram, e em futuras reuniões toda a América Latina será incluída. Em 2014, foram 3.100 participantes credenciados, 9.700 reuniões de negócios, 1.200 produtores, palestrantes e funcionários e oitenta mesas-redondas, conferências e workshops sobre o presente e o futuro das indústrias culturais (Resumen Micsur, 2014).

Com intenções semelhantes às de Getino, Hamawi observou as profundas assimetrias no comércio global de cultura, particularmente as vantagens obtidas pelos grandes conglomerados transnacionais voltados ao mercado editorial, cinema, tv e outras áreas graças a seus enormes orçamentos e acesso ao capital financeiro. Ele enfatizou o papel do Estado no desenvolvimento de “políticas eficazes que compensem e ofereçam novas possibilidades a pequenas empresas locais”, porque elas “se envolvem com perspectivas culturais ligadas à identidade e autoafirmação de nossos povos” (Hamawi, 2014).

A POSIÇÃO AMBÍGUA DAS INDÚSTRIAS CULTURAIS E CRIATIVAS NA AMÉRICA LATINA

Embora o sentimento de desvantagem possa estar no pano de fundo das políticas públicas para as indústrias culturais e criativas, há atualmente outro discurso entusiasta que as considera o grande caminho a ser seguido pela economia criativa. O relatório de 2008 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) a respeito da economia criativa as vê como solução parcial para muitos dos problemas dos países em desenvolvimento. O argumento é que as pessoas nos países em desenvolvimento são muito criativas e suas iniciativas já estão gerando emprego e renda significativos. A cultura, alega-se, pode promover a inclusão social e fortalecer o valor agregado em setores como design e turismo. Embora, sem dúvida, isso seja verdade, a cultura sozinha obviamente não pode resolver os problemas da pobreza e da exclusão. O relatório da Unctad faz referência mínima a essa lacuna. Inclui, por exemplo, um resumo do estudo de Paulo Miguez sobre o Carnaval da Bahia que mostra lucros enormes produzidos pelo evento (United Nations Conference on Trade and Development, 2008, p. 39). Mas o estudo completo de Miguez também aponta para a enorme desigualdade e exclusão social na distri-

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buição dos recursos gerados pela festa anual. Miguez defende uma política regulatória que distribua equitativamente as oportunidades econômicas que vêm da comercialização, ao mesmo tempo que mantenha o significado simbólico do festejo popular (Miguez, 1996). Sua pesquisa sobre o Carnaval da Bahia vai muito além, assim como a de outros pesquisadores, afirmando que qualquer planejamento de crescimento sustentável para a cidade de Salvador necessariamente envolve a reavaliação do papel do Estado e da prefeitura a fim de torná-lo sustentável econômica e culturalmente para a maioria da população. Isso significa, entre outras medidas, tirar o Carnaval das mãos de um pequeno grupo de empresários que colheram todos os benefícios com “espaços públicos privatizados e expressão popular sufocada das comunidades tradicionais ou da cultura afrodescendente” (Gonçalo Júnior, 2007).

Outros relatórios, como o La economía naranja: una oportunidad infinita (Buitrago Restrepo; Duque Márquez, 2013), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid), apresentam números astronômicos produzidos pela economia criativa, justapondo, com ousadia, histórias de sucesso dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da Ásia às da América Latina, sem reconhecer, quando se orgulham da renda e do emprego gerados por ela, que a economia criativa tem uma taxa de informalidade mais alta do que outros setores. De que adianta saber que a economia criativa – ou laranja – gerou 29,5 milhões de empregos no mundo e 1,9 milhão de empregos na América Latina e no Caribe se não nos dizem que a população mundial é de 7,6 bilhões e a população da América Latina e do Caribe é de 646 milhões? Em termos percentuais, os números da América Latina e do Caribe equivalem a 0,6%, pouco mais da metade da média mundial. Além disso, se levarmos em conta a informação de que a América Latina tem a maior taxa de emprego informal – 43% segundo o fmi (Casabón, 2017) e 47% segundo a Organização Internacional do Trabalho (Guy Ryder, 2014) –, e que o setor cultural, segundo o economista Ernesto Piedras (2008), tem uma taxa ainda maior, parece óbvio que uma alta porcentagem desses 1,9 milhão de empregos não é de boa qualidade.

A informalidade é ainda pior entre os jovens. Em Jóvenes, culturas urbanas y redes digitales, 2 Néstor García Canclini e Maritza Urteaga

Castro Pozo concluem que hoje em dia as práticas trabalhistas de artistas ou promotores e gestores culturais que trabalham em editoras, gravadoras ou galerias de arte são

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determinados pela precariedade dos empregos efêmeros que adquirem, pelas demandas trabalhistas do trabalho autônomo e disponibilidade permanente, pela necessidade de complementar com empregos não culturais o que eles ganham como artistas, editores ou músicos independentes. A versatilidade – variando entre lidar com negócios diversos, formas de colaboração e até mesmo idiomas múltiplos e trabalho em outros países – é facilitada por redes digitais. Mas esse é também um requisito “normalizado”, devido à flexibilização dos mercados de trabalho e à incerteza quanto ao futuro dos empregos. Ter vários perfis profissionais e aprender a trabalhar com especialistas de outras áreas são necessidades de seu ambiente sociocultural. (García Canclini; Castro Pozo, 2012, p. 9)

A gestão cultural também precisa enfrentar esse desafio. E, claro, gestores culturais não podem fazer isso sozinhos; eles têm que contar com a colaboração, pelo menos, do Ministério do Trabalho, ou mais ainda, como vemos no caso do Mica e do Micsur, da educação, economia, comércio etc.

Como dito, a Colômbia foi anfitriã do segundo Micsur, em outubro de 2016, organizado pela Câmara de Comércio da cidade e pelo Ministério da Cultura. Foram realizadas 3.800 reuniões de negócios com trezentos produtores e compradores, proporcionando oportunidades para as indústrias culturais e criativas (Con más…, 2016).

A Câmara de Comércio também apoia o Cluster das Indústrias Criativas e de Conteúdo de Bogotá e, junto com o patrocínio da prefeitura, a Invest In Bogotá, que ajuda empresas do setor criativo a obterem investimento estrangeiro e gerou 1,9 bilhão de dólares em 2016, sendo 15% em indústrias criativas: tv, editoração, publicidade, design, arquitetura, cinema, música e artes cênicas (Informe…, 2016). Medellín, a segunda maior cidade da Colômbia, é muito conhecida, como Bogotá, por ter reduzido o crime e a violência e optado pela criatividade e inovação. Em 2013, o Urban Land Institute a selecionou como a cidade mais inovadora entre duzentas rivais, incluindo Nova York e Tel Aviv (Colombia’s…, 2013). Mais tarde, naquele mesmo ano, uma parceria público-privada criou o Distrito de Innovación Medellín, orientado para a tecnologia, mas também localizado em uma área de crime e pobreza. A iniciativa procurou ampliar a inovação para os cidadãos (Fernández Rojas, 2013). Embora não esteja primariamente comprometida com a inclusão social, ela busca integrar o desenvolvimento tecnológico à sustentabilidade ambiental e humana (Distrito…, 2015).

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COMO A ECONOMIA DA CULTURA/CRIATIVA SE RELACIONA COM O DESENVOLVIMENTO CULTURAL?

Como a maioria das outras cidades que promovem suas indústrias criativas, os clusters dessas indústrias em Bogotá e de Medellín são em grande parte patrocinados pela iniciativa privada em parceria com escritórios municipais de desenvolvimento econômico, o Ministério do Comércio, e, às vezes, com a colaboração das secretarias de educação e do Ministério da Cultura. É difícil determinar a promoção e o apoio para esse setor com a governança cultural das cidades a partir dos próprios documentos de políticas, embora se possa ver os nomes de certos escritórios, empresas e indivíduos reaparecendo na governança dos grupos e contribuindo para a cultura com políticas de desenvolvimento. Bogotá e Medellín têm planos quadrienais e quinquenais, respectivamente, de desenvolvimento cultural, planos de dez anos e outros projetos de políticas, como as Políticas Culturais de Bogotá para 2004–16. Uma das principais estratégias desses planos culturais é o de articular-se com outros documentos de políticas nacionais, regionais e locais, como o Plano Cultural Decenal para o departamento de Antioquia, do qual Medellín é a capital. O ponto aqui é que uma colaboração transversal das indústrias culturais e criativas com outros setores é necessária para garantir maior visibilidade entre potenciais colaboradores estratégicos, capacitação, locais mais numerosos de operação e inclusão de setores demográficos marginalizados.

O foco das indústrias culturais e criativas mudou significativamente desde quando o British Council ajudou no mapeamento de tais indústrias em Bogotá e Soacha, em 2002. As categorias e os critérios eram praticamente os mesmos dos mapeamentos realizados no Reino Unido a partir de 1998. O objetivo declarado nesse documento é a geração e exploração de propriedade intelectual (Mapeo…, 2002, p. 1). Atualmente, o plano de dez anos da Secretaria Distrital de Cultura e Esporte está harmonizado com o Plano de Desenvolvimento de Bogotá: Bogotá Humana (2012–21), que tem os direitos culturais sobre seu centro (Bogotá, 2011). A partir do reconhecimento da diversidade cultural, o plano busca o empoderamento de todos os cidadãos em uma cultura democrática, expressa no livre exercício de práticas artísticas, culturais e patrimoniais. Tais princípios, por sua vez, estão ligados a políticas de crescimento econômico, inclusão social e sustentabilidade ambiental. A conexão entre a política cultural em relação às indústrias culturais e criativas em Bogotá e a Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais ficou

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evidente quando a Secretaria Municipal e a Câmara de Comércio receberam um prêmio do Comitê Intergovernamental da convenção para fortalecer o empreendedorismo nessas indústrias (Cámara…, 2017).

O Plano Cultural Decenal de Medellín também aborda brevemente as indústrias criativas dentro de sua estrutura de desenvolvimento cultural (Medellín, 2011). Como o plano de Bogotá, ele se baseia nas recomendações políticas de organizações como Unesco, Agenda 21 da Cultura (um conjunto de recomendações de políticas da organização United Cities and Local Governments), Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas (odm), e outras. “Cultura e Desenvolvimento” é uma das oito áreas programáticas do odm especificamente voltada para ajudar a atingir as metas 1 (a erradicação da pobreza extrema e da fome) e 3 (a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres) (undp, 2007). De fato, em 2006, o governo da Espanha contribuiu com 710 milhões de dólares para conquistar tais objetivos, em conjunto com o Fundo para o Alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (mdg-f) (com uma subsequente contribuição de 121 milhões de dólares em 2008) (Culture, 2013). A expansão da Agenda 2030 das oito metas do odm para dezessete também inclui a cultura como contribuinte para: inclusão universal na educação de qualidade através do reconhecimento da diversidade e do diálogo intercultural (meta 4); crescimento econômico sustentado por meio do apoio do turismo sustentável a produtos culturais locais (metas 8 e 12); tornar as cidades seguras usando a salvaguarda do patrimônio cultural mundial (meta 11). A Agenda 21, por sua vez, inclui a cultura como o quarto pilar do desenvolvimento sustentável – juntamente com o crescimento econômico, a igualdade social e o equilíbrio ambiental, – definindo-o como crescimento econômico com inclusão social, equilíbrio ambiental, “desenvolvimento do próprio setor cultural (ou seja, patrimônio, criatividade, indústrias culturais, artesanato, turismo cultural)” (Culture, 2010, p. 4) e colaboração transversal da cultura com outros setores.

Dadas as particularidades da história da Colômbia, faz sentido que sua política cultural enfatize metas de desenvolvimento como a paz, a inclusão social, a diversidade e o diálogo entre culturas. O conflito de décadas entre o governo, grupos guerrilheiros (que negociaram acordos de paz recentemente) e narcotraficantes, bem como as profundas divisões sociais (o país tem o segundo maior coeficiente de Gini na América Latina), impulsionou a política de vários setores nos últimos 25 anos, incluindo a cultura. De fato, as instituições culturais de Bogotá e Medellín promovem uma cultura cidadã e a recuperação

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do espaço público, levando a mudanças significativas nessas cidades, como é amplamente conhecido (um tema abordado por Arturo Rodríguez Morató e Matías Zarlenga). Não por acaso, o secretariado cultural de Medellín é denominado Secretaría de Cultura Ciudadana. Isso está de acordo com o quadro estabelecido pela Constituição de 1991, que reconheceu os povos indígenas e os afrodescendentes como parte integrante da nação e beneficiários de ações afirmativas. Como em outros países que recentemente elaboraram novas constituições (Bolívia, Equador e Venezuela), há uma forte ênfase nos direitos culturais, diversidade, inclusão e capacitação. Essas questões desempenham um importante papel na elaboração de políticas culturais, como vimos. Em geral e com poucas exceções, porém, as políticas culturais urbanas ainda não conseguiram ajudar as indústrias culturais e criativas a estabelecerem sua sustentabilidade, o que inclui incentivos econômicos, e, mais importante ainda, a criação de mercados, canais de distribuição e circulação, formação de públicos e consumidores e assistência do comércio internacional. O Plano Cultural Decenal de Medellín tem uma seção curta (pp. 120–24) em cuja conclusão há o reconhecimento de que as indústrias criativas precisam do apoio de iniciativas público-privadas, que podem ajudar a reduzir o risco envolvido no investimento em cultura (Medellín, 2011, p. 124).

Um breve experimento no Brasil estabeleceu um elo entre a inclusão social e o apoio a pequenas iniciativas das indústrias culturais e criativas na música, artesanato, design e outras áreas. Marcus Franchi, assessor técnico da Secretaria de Inclusão Social do Ministério da Ciência e Tecnologia de 2004 a 2008, instituiu ligações entre iniciativas culturais, em especial pequenos grupos musicais, para melhorar seu posicionamento através de marketing, engenharia de imagem ou branding. Quando a Secretaria de Economia Criativa foi criada, em 2012, seu diretor contratou Franchi para estabelecer vínculos entre os Pontos de Cultura. Primeiro descreverei esse programa e, em seguida, retornarei ao tópico dos vínculos.

A política cultural do Brasil, especialmente durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está em uma categoria singular. O Brasil teve a sorte de ter Gilberto Gil como Ministro da Cultura e de nomear políticos progressistas e capazes, muitos oriundos da cultura popular, de organizações de trabalhadores, iniciativas de centros urbanos, povos indígenas, comunidades afrodescendentes, culturas regionais, cultura digital e assim por diante. Por duas décadas, esses movimentos culturais haviam transformado o Brasil, e a transformação teve um impacto na maneira como o país desenvolveu sua economia criativa.

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Mesmo sua indústria de alta-costura voltou-se para políticas de inclusão social, em consonância com o novo espírito promovido pelo governo federal e por vários governos municipais (Deheinzelin, 2007).

Em vez de replicar iniciativas insustentáveis de outras áreas no setor criativo, os defensores desse setor partem do princípio de que o desenvolvimento de uma economia criativa sui generis depende da inclusão e do empoderamento de sua população, particularmente de grupos populares e minorias marginalizadas que inovaram em suas localidades. Como afirmou uma das mais fortes defensoras de uma economia criativa sui generis brasileira, Ana Carla Fonseca Reis (2007, p. 293),

não vale muito a pena estimular o crescimento de setores que geram receitas astronômicas a partir dos direitos de propriedade intelectual se a criação dessa riqueza não for acompanhada por uma melhor distribuição de renda, impulsionada por uma inclusão socioeconômica que aproveite benefícios simbólicos fundamentais, como os de acesso democrático, valorizando a diversidade e o fortalecimento da identidade nacional.

Embora o Brasil seja visto – e representado em seus filmes mainstream –como um país atormentado pela desigualdade, corrupção, narcotraficantes e violência (todos problemas verdadeiros), menos atenção tem sido dada à inovação e ao empreendedorismo de sua população, tanto da classe média quanto das classes populares. Um caso interessante é o do Grupo Cultural AfroReggae. Um dj, José Júnior, indignado com o massacre sem sentido de 21 moradores da favela de Vigário Geral, um bairro pobre na zona norte do Rio de Janeiro, decidiu criar uma banda de percussão no estilo do Olodum – uma associação ativista afrobaiana de Carnaval –, como forma de envolver os jovens no universo musical para afastá-los do tráfico de drogas. O AfroReggae obteve sucesso, produziu vários cds e filmes e logo se multiplicou em numerosas bandas e outras atividades culturais, empregando no bairro os recursos ganhos e arrecadando fundos para uma série de serviços sociais de que careciam. Até financiaram a construção do primeiro centro cultural da cidade instalado em uma favela: o Centro Cultural Waly Salomão. Eles não fizeram isso sozinhos. Ao longo dos anos, criaram sua própria rede de vínculos horizontais e verticais entre produtores, músicos renomados, ativistas comunitários, políticos, jornalistas, profissionais de tv e mídia, ongs etc., permitindo-lhes investir em seu grande empreendimento social e de entretenimento. A organização propagou-se por outras favelas e até mesmo por outros países.

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Menciono essa iniciativa porque é justamente para empoderar pessoas em situação semelhante – e que não tiveram as conexões e a sorte que José Júnior e o AfroReggae tiveram – que Gilberto Gil, Ministro da Cultura do Brasil de 2003 a 2008, criou os Pontos de Cultura, como parte do programa Cultura Viva. A ideia era dar um impulso à miríade de iniciativas “culturais vivas” (atualmente são mais de 4.500, segundo o site Cultura Viva), já evidenciadas na grande diversidade de comunidades que compõem o país. Gil comparou a promoção da Cultura Viva nas comunidades à liberação experimentada no do-in: a energia retida por distúrbios físicos e emocionais é liberada. A ação do Estado aplicada aos pontos de pressão da cultura é como a massagem chinesa. Gil nos diz que essa ação serve para “clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar, para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país” (Pontos, 2004).

O conceito de cultura adotado nesse programa é amplo e tem mais a ver com criatividade local do que com uma definição única, até mesmo plural, da palavra. A criatividade pode ser aplicada à cooperação política, iniciativas inovadoras de economia solidária, redes de comunicação e novas tecnologias, bem como a conhecimentos e práticas tradicionais e expressão artística.

O estímulo – ou massagem – envolve financiamento, recursos tecnológicos, acompanhamento profissional, quando solicitado, e infraestrutura digital para que os pontos possam ser postos em contato uns com os outros. Segundo o diretor e fundador do programa, Célio Turino, era inevitável implementar o programa a partir dos escritórios centralizados do governo (ou seja, do Ministério da Cultura), mas logo ele foi descentralizado e, dessa forma, ganhou autonomia. A seleção e a renovação dos Pontos de Cultura no nível local levam ao fortalecimento do compromisso com a comunidade (Turino, 2010, p. 36). O diretor vê os Pontos de Cultura como nós que estão ligados, em contraste com as divisões que caracterizam a sociedade em termos de classe e raça. Os inúmeros Pontos de Cultura expõem essa diversidade, não apenas do ponto de vista simbólico (o que já seria importante), mas também como um processo que pode gerar uma nova economia (Turino, 2010, p. 57). Eles tornam visível o patrimônio vivo das comunidades, e é por isso que a grande plataforma que os hospeda recebeu o nome de Cultura Viva, enfatizando a ideia de que não apenas os profissionais produzem cultura, como também as pessoas no seu dia a dia.

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Autonomia, liderança e empoderamento são os pilares da gestão compartilhada e transformadora nos Pontos de Cultura. […] Líderes são criados, identidades são redesenhadas e narrativas tradicionais são interrompidas. (Turino, 2010, pp. 58 e 63)

O programa não busca uma nação única, mas antes nações diferentes que se imaginam heterogêneas e interativas, porque, uma vez reconhecido o valor do Ponto de Cultura de uma comunidade, o próximo passo é conectá-lo a outros Pontos de Cultura e criar uma rede. “Através do Ponto de Cultura, essas comunidades apresentam uma nova maneira de se ver e de ser vistas” (Turino, 2010, p. 121). Quando em rede, os Pontos de Cultura encontraram iniciativas complementares e análogas que aprimoraram seu trabalho. Foi o reconhecimento desse efeito que levou o consultor Marcus Franchi a fazer um experimento de economia criativa, liderando um projeto de estabelecimento de vínculos e criação de clusters. Ele aplicou o modelo de arranjos produtivos locais (apls), definido da seguinte forma:

Os apls são conjuntos de agentes econômicos, sociais e políticos, localizados no mesmo território, articulados por meio da interação, cooperação e aprendizado. Esses clusters fazem parte do planejamento regional. São fenômenos ligados às economias de aglomeração, territorialmente focados no treinamento e no estímulo à produção e às cadeias de valor. Entre seus objetivos estão a identificação de gargalos (relacionados a demandas e necessidades) em tecnologia, treinamento, capacitação e especialização do trabalho, com foco local em fatores regionais, setoriais, econômicos e sociais. (Franchi, 2011, p. 92)

Essa forma de cluster foi desenvolvida pela primeira vez na região italiana de Emilia-Romagna, onde as associações de pequenas e médias empresas que trabalham em têxteis, cerâmica e engenharia alcançaram alta competitividade internacional. No Brasil, o termo “arranjos produtivos locais” foi usado no final da década de 1990 para um espaço social, econômico e historicamente construído através de um cluster de empresas (ou produtores) similares e/ou fortemente inter-relacionadas, ou interdependentes, que interagem numa escala espacial local definida e limitada através de fluxos de bens e serviços. Para isso, desenvolvem suas atividades de forma articulada por uma lógica socioeconômica comum que

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aproveita as economias externas, o binômio cooperação-competição, a identidade sociocultural do local, a confiança mútua entre os agentes do cluster, as organizações ativas de apoio para a prestação de serviços, os fatores locais favoráveis (recursos naturais, recursos humanos, cultura, sistemas cognitivos, logística, infraestrutura etc.), o capital social e a capacidade de governança da comunidade. (Costa, 2010, pp. 126–27)

Franchi foi o consultor do apl para a cadeia de produção de hip-hop em Ceilândia, uma cidade-satélite de Brasília, onde o maior número de artistas da cultura hip-hop per capita pode ser encontrado no Brasil. A ideia era mapear os atores e iniciativas, proporcionar treinamento em gestão, ajudar a estabelecer vínculos horizontais e verticais e criar um contexto fértil para potencializar a produção de eventos de hip-hop, aumentando as receitas para que o cenário local fosse mais sustentável (Entrevista, 2011; Relatório, 2009). Esse apl de economia criativa foi formulado no âmbito do Plano Nacional de Cultura (2010–20), que priorizou os direitos dos cidadãos à sua diversidade de expressão simbólica e ao potencial da cultura para o desenvolvimento econômico (Brasil, 2013). Em relação ao último ponto, o plano buscou trazer desenvolvimento profissional para comunidades carentes e estimular investimentos e empreendedorismo em atividades econômicas de base cultural, possibilitando a inserção de produtos, práticas e bens artísticos e culturais nas dinâmicas econômicas contemporâneas, com vistas à geração de trabalho, renda e oportunidades de inclusão social. Alternativas econômicas como a economia solidária também foram promovidas. Para tanto, o Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio de sua Secretaria de Inclusão Social, e o Ministério da Cultura, por meio de sua Secretaria de Cidadania Cultural, reuniram dois de seus programas – Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Social e Cultura Viva –com foco em apls e economias solidárias (Nascimento, 2010).

Algumas das iniciativas em Ceilândia apoiadas por Franchi foram os Pontos de Cultura. O trabalho chegou ao conhecimento da Secretaria de Economia Criativa, que o nomeou para aplicar tal tecnologia a 27 projetos culturais locais. Cada um receberia consultorias para elaborar planos de desenvolvimento e constituir vínculos. Franchi também liderou discussões entre os mais de 3 mil apls na época, com o objetivo de estabelecer uma estrutura cultural adequada para esses grupos. Ele também estabeleceu uma colaboração de três vias entre as secretarias, iniciativas culturais e universidades para ma -

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pear as possíveis relações entre os atores vinculados e estender os apls a iniciativas digitais e comunicações alternativas baseadas na comunidade, estações de rádio comunitárias e bancos comunitários (Franchi, 2014, depoimento ao autor).3

O programa Pontos de Cultura do Brasil, juntamente com inovações nas políticas culturais municipais em Medellín, foi uma inspiração crucial para a criação do Cultura Viva Comunitária (cvc), uma rede de iniciativas culturais comunitárias em toda a América Latina. O cvc tem origem em dezembro de 2009, em Mar del Plata, onde várias redes de cultura e líderes de organizações e movimentos culturais de seis países se reuniram no i Congresso Internacional de Cultura para a Transformação Social, organizado pelo Instituto Cultural da Província de Buenos Aires com a colaboração do Conselho Federal de Investimentos. Não foi por acaso que os atores se uniram: muitos se conheceram no contexto da virada de esquerda da América Latina no início do novo milênio, que priorizava o protagonismo das classes populares e de grupos marginalizados, como afrodescendentes e indígenas. Por exemplo, o Fórum Cultural Mundial, cuja primeira reunião ocorreu em São Paulo, em 2004, sob os auspícios do então novo Ministro da Cultura, Gilberto Gil, foi inspirado pelo Fórum Social Mundial – que começou no Brasil, em 2001 –, mas teve suas raízes nos movimentos progressistas que buscavam alternativas à hegemonia global sob políticas neoliberais e cujos efeitos eram particularmente prejudiciais para os setores mais desfavorecidos da população. Os participantes desse fórum procuraram capacitar os desfavorecidos através da arte e da prática cultural, não como espectadores, mas antes como participantes ativos. Entre os mais conhecidos estão Jorge Melguizo, então secretário de Desenvolvimento Social de Medellín e ex-secretário de Cultura da cidade, responsável por uma campanha multissetorial público-privada para fornecer aos moradores serviços culturais em conjunto com obras de desenvolvimento urbano e transporte público, e Célio Turino, fundador do programa Pontos de Cultura, na qualidade de diretor (2004–10) da Secretaria de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura.

Muitas das organizações desse encontro tiveram uma longa trajetória no trabalho com as comunidades locais, como o Teatro do Oprimido, que remonta à década de 1960 no Brasil, e os grupos constituintes da Rede Latino-Americana de Arte para a Transformação Social e a Rede de Teatro Comunitário. Entre os assuntos discutidos estava o programa Pontos de Cultura, que reconheceu e ajudou a financiar e conectar mais de 2.500 iniciativas artísticas e culturais já

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existentes no Brasil no momento da reunião. Como discutido antes, esse programa buscou empoderar os atores locais das classes média e baixa, muitos dos quais foram marginalizados em relação às culturas da elite. O programa Pontos de Cultura ampliou seu alcance e sua concepção de cultura de acordo com o que os brasileiros realmente fazem, para além das normas estabelecidas pelas instituições artísticas convencionais: das artes visuais e literárias às formas culturais afro, indígenas e das favelas, muitas delas cada vez mais entremeadas por práticas artesanais e/ou tecnologias digitais. O programa foi e continua aberto às várias maneiras como indivíduos e coletividades manifestam sua criatividade. Além disso, procurou interconectar os vários participantes, não para misturá-los em um composto nacional, mas antes para valorizar a vasta diversidade dos povos do Brasil, permitindo-lhes conhecer uns aos outros.

O supracitado encontro de 2009 foi o trampolim para a criação de uma plataforma para toda a América Latina, através da qual milhares de organizações se conectam e buscam alcançar algo parecido com o programa Pontos de Cultura brasileiro em nível continental. Embora o cvc não seja um programa governamental – é uma rede de organizações da sociedade civil –, representantes de centenas de organizações da maioria dos países da América Latina e do Caribe se reuniram em Medellín em outubro de 2010 (onde Melguizo e outros ativistas e líderes trabalharam com comunidades para transformar radicalmente a cidade) para formar a Plataforma Puente. Seu objetivo era (e continua sendo) atuar como uma estrutura organizacional que faz lobby com governos nacionais e municipais para legislar políticas de arte, cultura, educação, transformação social e desenvolvimento sustentável e, especialmente, requerer a designação de 0,1% dos orçamentos nacionais para apoiar os processos de culturas comunitárias vivas (Convocatoria, 2013). Esses objetivos são consistentes com os de um movimento transnacional de alterglobalização:

• Fortalecer e multiplicar organizações culturais populares na América Latina;

• Ganhar o reconhecimento institucional e legal com base em sua legitimidade como protagonistas na construção da identidade das pessoas;

• Obter apoio econômico e institucional do Estado;

• Promover a política de Pontos de Cultura na América Latina;

• Construir redes de organizações culturais populares na América Latina para a soberania sobre os recursos naturais, distribuição justa da riqueza e democracia (Convocatoria, 2013).

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Outro objetivo importante para a organização continental é obter a força necessária para influenciar organismos internacionais e multilaterais, como a Secretaria-Geral Ibero-Americana (Segib), na implementação de políticas de apoio em todos os níveis – especialmente municipais e locais – da sociedade. De fato, na xxiii Cúpula de Chefes de Estado e de Governo no Panamá, em 2013, o cvc foi incorporado ao programa Ibercultura Viva e Comunitária, da Segib, para fortalecer as políticas culturais baseadas na comunidade nos países ibero-americanos (Ibercultura, 2017).

De acordo com os documentos do cvc, existem mais de 17 mil experiências culturais comunitárias na Argentina, impossibilitando a revisão de uma amostra representativa dessas iniciativas. Basta dizer que essas organizações e redes conseguiram a instituição de uma política de Pontos de Cultura por parte do governo a partir de 2011, com 450 pontos apoiados na seleção de 2013, e que agora são mais de setecentos (Brasil, 2017). Foram instituídas ou estão em processo de institucionalização políticas de Pontos de Cultura em várias cidades e países além de Brasil e Argentina – Antofagasta (Chile), Uruguai, Paraguai, Peru, Costa Rica, El Salvador, Guatemala e Espanha – com discussões e representantes de outras localidades nas reuniões anuais do cvc. Vale a pena mencionar que Fresia Camacho, uma ativista de longa data na cultura comunitária – participante de numerosas organizações e redes na Costa Rica, como a Guanared –, foi nomeada representante do cvc no Ministério da Cultura e Juventude pela administração anterior e diretora de Cultura em maio de 2014 pela atual administração, com a tarefa de descentralizar ainda mais os recursos e oportunidades. Ela já havia organizado o vi Congresso Ibero-Americano de Cultura em abril de 2014, no qual os Pontos de Cultura tiveram um papel importante. Assim, Camacho convidou Célio Turino, fundador do programa no Brasil, para ser consultor na nova Lei e Política de Cultura da Costa Rica. Os Pontos de Cultura da Costa Rica pretendem oferecer um programa de estímulos e criar sinergias para o fortalecimento de organizações, redes, iniciativas coletivas e espaços socioculturais ligados à promoção da diversidade cultural, à economia solidária e à salvaguarda dos patrimônios culturais e naturais (Inscripciones, 2017). O último item é muito importante na Costa Rica desde que, há mais de quarenta anos, os ambientalistas conseguiram influenciar outros setores da sociedade para efetuar uma transformação significativa da matriz produtiva do país, com uma energia limpa e uma forte proteção ambiental em equilíbrio com uma indústria de turismo ecológico vibrante.

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Gostaria de concluir esta seção com uma reflexão sobre as políticas culturais da Costa Rica, em parte porque sua atual ministra da Cultura, Sylvie Durán Salvatierra, antes ativista do cvc, considera o ambientalismo um modelo para a possibilidade de uma economia criativa sustentável no país. Suas ideias, que contribuíram para o contínuo desenvolvimento da Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (Durán Salvatierra, 2008), foram resumidas por ela na figura 1:

Figura 1: Um modelo de sustentabilidade para o mapeamento dos campos de trabalho em cultura e o desenho da política cultural

FlOREsTA PRImÁRIA dA GOVERNANÇA dA cRIATIVIdAdE E dOs dIREITOs cUlTURAIs

ÁReas de tRabalho paRa a salvaguaRda e o desenvolvimento do patRimÔnio

1. Floresta primária.

2. Identidade e criatividade como fontes primárias de informação (autorreferida).

sETOREs PROFIssIONAIs dO mERcAdO E dA INdÚsTRIA

ÁReas de tRabalho paRa pRofissionalizaÇÃo

1. Indústrias, mercado.

2. Identidade e criatividade como “corrigidas” ou “embaladas” pela academia, especialistas, funcionários administrativos e, cada vez mais, o mercado.

3. Herança. Patrimônio edificado ou patrimônio em que o domínio público tem sido normal ou assumido como regra de gestão.

4. Pesquisa, sensibilidade social, participação, acesso.

5. Capital cultural como capital social em geral.

6. Ênfase na construção da cidadania.

3. Patrimônio “em construção”; patrimônio governado pelo mercado; patrimônio na ausência do Estado/controle público/ regulação.

4. Ajuste às preferências do consumidor, especialização, profissionalização.

5. Capital cultural como bens e serviços de valor agregado para o mercado.

6. Ênfase na construção de mercados.

os dois lados sÃo Ênfases, e nÃo foRÇas absolutas uma visÃo integRada depende dos entRelaÇamentos e dos ciclos de FEEDBACk entRe ambos os polos pRopostos

Fonte: Durán Salvatierra (2008).

52 George Yúdice

Com base na sustentabilidade ambiental endêmica da política pública costa-riquenha desde os anos 1980 – responsável pela duplicação da cobertura florestal entre 1983 e 2010 e pelo desenvolvimento do “crescimento verde” (Costa Rica, 2012; Watts, 2010) –, Durán Salvatierra fez algo similar para as indústrias culturais e criativas: promoveu, por exemplo, “políticas para apoiar as micro, pequenas e médias empresas com o intuito de melhorar suas capacidades de produção e gestão local, bem como de assegurar ligações com agentes de grande escala e tendências globais” (Watts, 2010, pp. 14–5) e clusters a fim de alcançar a sustentabilidade. A questão não é concentrar-se exclusivamente em indústrias criativas de alta tecnologia nem em comunidades pobres, mas sim fomentar ambos e, quando possível, estabelecer vínculos entre elas.

Como outros ministérios, o Ministério da Cultura e Juventude da Costa Rica tem muito do seu orçamento destinado a infraestrutura, pessoal e programas historicamente emblemáticos, como o Teatro Nacional, museus etc. O recém-instituído programa Pontos de Cultura, que busca fortalecer a participação de pequenas organizações culturais locais, tem um orçamento relativamente modesto. Dada a tendência de aperto do cinto na atual crise fiscal, é improvável que o orçamento do setor cultural seja aumentado; daí a necessidade de encontrar outros recursos. Além disso, tendo em mente que mesmo as menores iniciativas envolvem investimentos e gastos – ainda que apenas para instrumentos musicais ou figurinos para espetáculos de dança –, o ministério está buscando formas de parcerias com outros setores governamentais (economia, comércio, ciência e tecnologia, turismo) para impulsionar as indústrias culturais e criativas. Como em outros casos, o setor cultural precisa demonstrar a outros setores sua importância tanto para atender aos direitos culturais dos cidadãos quanto para gerar riqueza, mesmo que, como já vimos, o emprego cultural tenha um alto nível de informalidade e careça de direitos trabalhistas. No entanto, somente quando o trabalho cultural é transformado em uma prioridade do governo, políticas podem ser concebidas para melhorá-lo.

Através de colaboração e lobby com outros setores, a economia criativa alcançou o oitavo lugar entre quatorze setores no ranking do Plano Nacional de Desenvolvimento. A ideia, semelhante aos apls desenvolvidos por Franchi no Brasil, é estabelecer clusters que percorram setores públicos, privados e acadêmicos para alavancar oportunidades. Iniciativas estão em andamento para trabalhar com produção audiovisual, literária, artesanato, gastronomia e outras áreas.

Inovações na política cultural e no desenvolvimento na América Latina

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Um exemplo é o cluster que envolve o povo indígena Boruca, na região do Pacífico Sul da Costa Rica. As organizações corresponsáveis são os comitês de governantes borucas, o Comitê de Artesãos Borucas, o Ministério da Cultura e Juventude, o Centro de Cinema, o Ministério da Economia, Indústria e Comércio, o Ministério do Meio Ambiente e Energia, o Centro de Apoio ao Desenvolvimento de Denominações de Origem (CadenAgro), a Universidade da Costa Rica e a Fundação Nuestra América, entre outras. O objetivo é fortalecer a produção e comercialização de máscaras, tecidos e cerâmicas borucas, que têm sido um dos pilares da economia desse povo. O desenvolvimento de uma denominação de origem visa evitar a pirataria ou o uso indevido de desenhos borucas. Além disso, os artesãos indígenas interagem com designers e programadores em igualdade de condições. Clusters como esse também asseguram que quaisquer iniciativas de turismo sejam conduzidas com sensibilidade e aprovação da comunidade boruca (figura 2).

Processos Responsáveis

1. Declaração Patrimônio Cultural Imaterial (pci)

2. Máscara

Denominação de origem (do) e selo artesanal

• Comitê Boruca

• Comitê Yimba Cáje (Curré)

• Centro de cinema (registro)

• Comitê de Artesões de Boruca

• Ministério da Cultura e Juventude

• cadenagRo

• meic: selo artesanal e captação

• ucR: tese sobre máscara

Comunidade e cultura boruca

Cagbrú Rojc (Jogo dos Diablitos)

3. Têxtil

Estúdio Murice e nove empreendimentos

têxteis (três associações)

4. Cêramica

Revitalizar

• Comitê de Artesões de Boruca

• Ministério da Cultura e Juventude

• minae (acosa)

• Fundação Nostra América

• Comitê de Artesões de Boruca

• ucR

Fonte: Ministério da Cultura e Juventude da Costa Rica (2017).

54 George Yúdice
Figura 2: Comunidade boruca: processos articulados em relação ao território e ao patrimônio
Têxtil Cerâmica
Máscara

CONCLUSÃO

Concluo com a iniciativa da Costa Rica para exemplificar dois pontos: primeiro, que uma economia criativa pode ser concebida como uma iniciativa sustentável, no modelo de sustentabilidade ambiental para o crescimento verde, e, segundo, que é possível a um país pequeno, de cerca de cinco milhões de habitantes, pensar grande e inovar na área da política cultural. Todas as iniciativas dos vários países mencionados neste ensaio alimentaram as reflexões costa-riquenhas sobre a evolução de suas políticas. Vários dos atores aqui mencionados interagiram e se conectaram ao longo dos anos, de modo que há conhecimento e experiência acumulados que tornam possível não apenas projetar boas políticas, mas também, e mais importante, planejar estratégias de gestão que incluam uma participação popular que possa torná-las viáveis. Na verdade, a maioria dos atores do setor está ciente das recomendações de políticas, uma vez que a maioria circula nas inúmeras reuniões da Segib e de outras organizações em toda a América Latina e na Espanha. Há uma série de redes nacionais de gestão cultural, além da Rede Latino-Americana de Gestão Cultural, que as reúne. A prova está realmente em evidência: como essas recomendações de políticas podem ser implementadas por meio de boas práticas de gerenciamento?

Além disso, deve haver vontade política. Os governos devem nomear os gestores mais experientes e qualificados, o que nem sempre é o caso. O Brasil é um exemplo: o governo Temer praticamente devastou o ministério e as secretarias, revertendo muito do bom trabalho realizado de 2004 a 2016. Felizmente, os atores continuam operando em uma série de fundações e iniciativas de base, mantendo o nível de trabalho das políticas até que as instituições funcionem adequadamente e os processos democráticos prevaleçam. Apesar da atual crise econômica e política em vários países da América Latina, tenho muita fé nas pessoas que trabalham no setor cultural, bem como nos atores da sociedade civil que participam da mobilização para a mudança. Existe uma grande diferença, em todo o mundo, desde que me deparei com esse setor pela primeira vez, nos anos 1990.

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Notas

1 Artigo publicado originalmente em inglês: Yúdice, G. “Innovations in Cultural Policy and Development in Latin America”, em: International Journal of Cultural Policy, [s. l.], v. 24, n. 5, 2018, pp. 647–63. Disponível em: doi: 10.1080/10286632.2018.1514034. Edição brasileira disponível em: Políticas Culturais em Revista, v. 12, n. 1, 2019, pp. 121–56. doi: 10.9771/par.v12i1.30408. Tradução feita pelo professor Leonardo Costa. Gostaria de agradecer às seguintes pessoas pelas informações que forneceram para este ensaio:

Sylvie Durán Salvatierra, Ricardo Arias Lira, Alejandra Hernández e Carlos Villaseñor. Este trabalho foi apoiado por fundos de pesquisa fornecidos pela Faculdade de Artes e Ciências da University of Miami.

2 Ver também García Canclini, N.; Castro Pozo, M. U. (orgs.), Cultura y desarrollo: una visión distinta desde los jóvenes. Madri: Fundación Carolina, 2011.

3 Mensagem recebida por e-mail em 10 de agosto de 2014.

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Inovações na política cultural e no desenvolvimento na América Latina

MICHAEL KEANE é professor de Mídia Chinesa e Estudos

Culturais na Curtin University, em Bentley, Austrália, e líder de programa do Digital China Lab. Seus temas de pesquisa contemplam as indústrias de mídia digital na China, política cultural e de mídia da Ásia Oriental e indústrias criativas e estratégias de exportação cultural na China e na Ásia Oriental.

ELAINE JING ZHAO é professora sênior na School of the Arts and Media e codiretora do Media Futures Hub, da University of New South Wales, em Sydney, Austrália. Seus temas de pesquisa se concentram na produção cultural, transformações das indústrias de mídia e desafios de governança na economia da mídia digital, cada vez mais mediada por plataformas, algoritmos e dados. É autora de diversas obras, dentre elas: Digital China’s Informal Circuits: Platforms, Labour and Governance (Routledge, 2019) e China’s Digital Presence in the Asia-Pacific (Anthem, 2020).

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade e inovação na China1

Mudanças dramáticas ocorreram na sociedade chinesa nas últimas três décadas. Muitas delas são atribuíveis às reformas econômicas do governo presididas inicialmente por Deng Xiaoping, sucessor de Mao Tsé-Tung, e depois por Jiang Zemin, Hu Jintao e Xi Jinping. Neste artigo, nos concentramos nas mudanças que levaram a uma compreensão revisada da cultura.

De acordo com a definição do Partido Comunista Chinês (pcc), fundamentada pelo materialismo histórico, a cultura,

em um sentido mais amplo, refere-se à soma de toda a riqueza material e espiritual criada pelos seres humanos no curso do desenvolvimento histórico da sociedade; em um sentido estrito, cultura refere-se à ideologia e instituições e organizações relacionadas. (Cihai: Sea of Words, enciclopédia chinesa, 1989, p. 1.731).

No entanto, nas últimas três décadas, o governo chinês renunciou de forma voluntária ao controle de muitos aspectos da produção cultural em troca dos potenciais benefícios de coesão e aumento da produtividade promovidos pela liberalização social. Inevitavelmente, o mercado, em vez de propaganda do governo, tornou-se o árbitro dos gostos culturais dos cidadãos chineses (Gerth, 2010). É importante ter em mente, porém, que a ampliação das práticas de consumo não constitui necessariamente pluralismo cultural. Até que ponto a cultura é comercializável permanece, de fato, uma questão controversa.

Na visão dos conservadores, a cultura não pode ser deixada às forças do mercado; contudo, os mesmos conservadores afirmam que a cultura chinesa deve ser globalmente competitiva.

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade e inovação na China

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A análise da esfera cultural precisa abordar as maneiras como a política cultural – na forma de leis, estatutos, documentos e regulamentos – organiza as relações entre a produção e a disseminação das expressões culturais. Comecemos com alguns entendimentos sobre a política cultural na China antes de discutir a natureza do sistema cultural e sua reforma.

Dadas as restrições de espaço, nossa discussão é um esboço dos principais eventos e mudanças no equilíbrio da produção cultural –da cultura pública à cultura comercial e, mais recentemente, ao conteúdo amador gerado pelos usuários. Aqui, identificamos três períodos de reforma: 1978 a 1992, 1993 a 2002 e 2003 a 2013. Com foco no último período, examinamos a transição muitas vezes problemática da instituição cultural pública (shiye) para as indústrias comerciais (chanye). Desde 2003, a “reforma do sistema cultural” deu origem a outros lemas e temas políticos: poder brando [soft power], inovação e criatividade. Nesse período, ocorreu a “geminação” de cultura e criatividade, resultando no termo “indústrias culturais e criativas” (wenhua chuangyi chanye). Na seção final, voltamo-nos à fase mais recente – a convergência entre inovação tecnológica e criatividade cultural – e mostramos como a China está tentando acelerar sua cultura e expandir seus recursos de poder brando.

POLÍTICA CULTURAL NA CHINA

Há duas maneiras amplas de entender os objetivos da política cultural. Em primeiro lugar, ela diz respeito à regulação do “mercado de ideias e práticas criativas” (Craik, 2007). Baseado nessa perspectiva, o papel do governo é regular a produção e o consumo, muitas vezes com o objetivo de desenvolver a cultura nacional, promover o macroambiente para negócios criativos e, em alguns casos, ajudar a gerar potencial exportador. Na maioria das democracias liberais, o papel do governo se dá a distância, capacitando e criando políticas estratégicas. Em segundo lugar, a política cultural refere-se a políticas que gerenciam recursos e instituições culturais, como bens públicos de cultura e companhias de teatro. Os governos muitas vezes desempenham um papel ativo, e às vezes intervencionista, no apoio às instituições culturais (ver Craik, 2007).

Na China, a implementação da política cultural está enraizada em estratégias para promover o desenvolvimento simultâneo de interesses públicos e privados. Em termos práticos, trata-se de uma tensão

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Michael Keane e Elaine Jing Zhao

entre as instituições culturais públicas (shiye) e as empresas comerciais (chanye ou qiye). O processo de política cultural está, portanto, sujeito a tensões entre interesses concorrentes. Muitos procuram manter uma abordagem que poderíamos chamar de “C maiúsculo”, isto é, a civilização chinesa é única, e a cultura é, em grande parte, invariável; alternativamente, existem aqueles preparados para permitir que o espaço da cultura chinesa evolua em resposta à concorrência. Os adeptos desta última abordagem frequentemente promovem os ideais de criatividade, a autonomia dos produtores e os imperativos das indústrias comerciais (com fins lucrativos) (Keane, 2013). Uma grande dificuldade, portanto, é verificar como as deliberações ocorrem nas esferas de influência sobrepostas; uma dificuldade relacionada é determinar quais dos muitos documentos e pronunciamentos emitidos pelos ministérios e departamentos do governo são significativos.

De modo geral, os documentos emitidos pelos principais órgãos governamentais que antecedem os grandes períodos de planejamento – os Planos Quinquenais de Desenvolvimento Econômico e Social –servem como modelo. Aqueles com mais autoridade são, portanto, emitidos pelo Comitê Central do pcc. O texto é cuidadosamente construído, pois os documentos centrais (zhongyang) têm considerável poder “orientador”, ainda maior do que os discursos dos líderes (Lawrence e Martin, 2012). Documentos políticos abraçam a retórica do socialismo e reconhecem a influência duradoura de funcionários idosos do partido. Como consequência, muitas delas são deliberadamente vagas e abertas à interpretação ou, ainda, são difíceis de aplicar.

Enquanto a política cultural é rigorosamente debatida e formulada de acordo com os princípios marxistas, o engajamento dos produtores culturais está aberto a negociação. Os detalhes da política e a adesão real aos estatutos e regulamentos dependem do clima político prevalecente, que tende a alternar-se entre períodos de relaxamento (fang) e maior restrição (shou). Como vários estudos demonstraram, o cumprimento dessas políticas depende da vontade dos órgãos culturais regionais de pô-las em prática (Keane, 2001; Chin, 2011).

As políticas são elaboradas em think tanks [laboratórios de ideias] formais, como a Academia Chinesa de Ciências Sociais, e testadas em grupos de trabalho internos do pcc, que são às vezes chamados de “pequenos grupos-líderes”. Frequentemente, esses grupos formais têm conexões com “líderes acadêmicos” e “acadêmicos-líderes”. Lí-

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade e inovação na China

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deres acadêmicos (xuezhexing lingdao) incluem líderes ou funcionários do setor com sólida formação acadêmica – como Li Wuwei –,2 que podem ser membros da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (ccpcc),3 um think tank de política nacional e inclusiva, ou empreendedores e consultores. Já os acadêmicos-líderes (qianyan xuezhe) realizam pesquisas de ponta.

Apesar das significativas mudanças sociais das últimas três décadas, a linguagem da política cultural permanece ancorada em temas de construção e modernização da nação. O vínculo da política cultural com a política de desenvolvimento econômico, mais evidente na última década, constitui uma modalidade de governança relativamente nova. A mudança de entendimento da cultura estritamente como trabalho de propaganda para a cultura como “setor basilar” (zhizhu chanye) no recente 12o Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social exigiu uma reconsideração dos marcos políticos, trazendo a produção e a distribuição mais próximo ao domínio da gestão industrial com requisitos de atendimento para os atores aderirem aos regimes jurídicos internacionais.

O SISTEMA CULTURAL

Compreender a governança por uma perspectiva sistêmica é endêmico ao pensamento chinês; um modelo de sistemas não apenas evoca uma ideia holística de progresso, mas também permite que o governo desempenhe um “papel orientador” na gestão da reforma. A reforma do sistema cultural (wenhua tizhi gaige) incorpora argumentos sobre o peso relativo dado às formas de cultura pública e comercial, bem como sobre a modernização do sistema de inovação tecnológica chinês (ver a seguir). É importante, assim, observar a reforma do sistema cultural em comparação a outros sistemas em reforma: educação, saúde, economia, tecnologia, manufatura e, mais importante, o sistema político.

A mais influente teoria de sistema na China é o marxismo. Adaptado para atender às necessidades chinesas, o marxismo defendia uma transformação sistêmica que para ser realizada demandava uma revolução popular. No entanto, no final da década de 1970, a variação sinicizada do marxismo-leninismo adotada por Mao Tsé-Tung precisava urgentemente de revisão. Novas teorias tornaram-se populares. Os debates intelectuais em meados da década de 1980 retomaram os escritos dos futuristas John Naisbitt e Alvin Toffler, que

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discutiam grandes mudanças sociais, econômicas e culturais provocadas pela tecnologia (ver Brugger e Kelly, 1990). Naisbitt passou a oferecer conselhos aos legisladores chineses (Naisbitt; Naisbitt, 2010), enquanto as ideias de Toffler sobre a sociedade pós-industrial o levaram a ser aclamado pelo People’s Daily um dos “estrangeiros mais influentes que moldará a China”.4 À época, as ideias de Daniel Bell também exerciam influência (Bell, 1989). A “sociedade pós-industrial” de Bell, concebida a partir de fases de desenvolvimento, oferecia uma alternativa ao marxismo-leninismo oficial. A teoria da transição de uma economia produtora de bens para uma economia de serviços tinha um eco do utopismo comunista: a população chinesa seria libertada de seu atraso e os intelectuais assumiriam um papel de liderança nas classes profissional e técnica.5

No campo cultural, os sistemas refletem as tensões do progresso histórico. Segundo os autores de A história da cultura chinesa [Zhongguo wenhua shi]:

Os subsistemas da cultura material são a base da visão sistêmica da cultura […]. Somente por meio de uma organização racional podemos salvaguardar o desenvolvimento coordenado das culturas material e espiritual. A cultura espiritual (e seus subsistemas) desempenha o papel de guia; protege e determina a cultura material, a construção da cultura institucional e sua orientação. (Hu; Zhang, 1991, pp. 2–3)

Uma pergunta que surge é: como a cultura chinesa está respondendo às mudanças realizadas nos sistemas econômico, social e político? Além disso, como a política cultural na China é impactada pelos sistemas internacionais, uma vez que o país agora é membro das comunidades de comércio exterior e busca comercializar sua cultura internacionalmente? Será que a cultura chinesa é capaz de se adaptar? Da mesma forma, como o sistema cultural poderá ser reformado?

TRÊS PERÍODOS DE REFORMA

De uma perspectiva global, a atividade cultural pode ser subdividida de modo geral em três setores: cultura subsidiada publicamente, que inclui ópera, museus, companhias de teatro e galerias (embora muitas vezes incluam elementos comerciais e patrocínio empresarial); produção comercial, para a qual existe um público e/ou consumidores dis-

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postos a pagar; e atividade cultural amadora, que abarca desde dança folclórica comunitária até criatividade baseada na web. Na China, o setor público assumiu a prioridade, e até a década de 1980, todos os artistas e trabalhadores de mídia eram empregados pelo Estado e atuavam como canais de propaganda do pcc. Hoje, a infraestrutura de transmissão televisiva continua sendo propriedade do Estado ou pelo menos é gerenciada por empresas estatais, enquanto a mídia jornalística está firmemente sob controle do governo.

É no terceiro setor, na esfera da atividade cultural amadora, que vemos a maior mudança. Antes de 1978, seu domínio estava sujeito a uma regulamentação rigorosa (Wang, 1995). Atualmente, a atividade cultural amadora se funde com o mercado: os reality shows apresentam “aspirantes” a celebridades, enquanto a internet acelera um frenesi de blogueiros, spoofers e hackers.

Segundo Han Yongjin (2005), a reforma do sistema cultural começou em 1978 e passou por três etapas: (i) de 1978 a 1992: período de reconstrução cultural seguido da Revolução Cultural e com ênfase na reforma das artes cênicas; (ii) de 1993 a 2002: momento de grandes reformas em todos os setores, com ênfase na industrialização (gongyehua) e na criação de conglomerados (jituanhua); (iii) a partir de 2003: o foco mudou para o aprofundamento da transformação da instituição cultural pública (shiye) para a indústria e a empresa (chanye e qiye), bem como para o desenvolvimento de novos modelos de financiamento e apoio.

Dois anos após o fim da Revolução Cultural, em 1978, a primeira etapa da reforma do sistema cultural começou em uma década marcada pela intervenção governamental excessiva, e às vezes caótica, nas práticas culturais. A terceira plenária do xi Comitê Central do pcc iniciou reformas nos trens, movendo a nação da luta de classes para a reconstrução econômica. Em 1979, no iv Congresso Nacional dos Trabalhadores das Artes, Deng Xiaoping anunciou o fim da interferência política nas atividades culturais (Deng, 1983), uma referência à era anterior, em que tais atividades eram manipuladas por Mao e seus ministros culturais, incluindo sua esposa, Jiang Qing. Essa “promessa” para as comunidades artísticas, no entanto, não implicou recuo por parte do Estado. O modelo menos intervencionista de jurisdição cultural se refletiu na chamada “libertação do pensamento” (sixiang jiefang) e na aprovação do princípio da “diversidade” (duoyanghua), que, por sua vez, foi encapsulado dentro da “política das cem flores” (ver Kraus, 2004; Keane, 2007). A campanha – “deixando cem flores desabrocharem e cem escolas de

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pensamento lutarem” – foi iniciada por Mao no final da década de 1950 e supostamente desenvolvida para promover o florescimento da arte e da ciência. Enquanto Mao incentivou ideologias diferentes e concorrentes a expressarem suas opiniões, sendo então capaz de eliminar elementos problemáticos, o uso do lema das cem flores por Deng implicou uma liberalização genuína da arte e da política cultural (Kraus, 2004).

A produção cultural se expandiu e se diversificou. A chamada febre cultural (wenhua re) de meados da década de 1980 viu uma proliferação de novos gêneros literários, estilos musicais populares e teledramas. No final da década, uma antologia de escritos do popular autor Wang Shuo, de Pequim, supostamente vendeu mais do que as obras reunidas de Mao (Barme, 1992). O primeiro endosso oficial do termo “mercado cultural”6 foi visto em fevereiro de 1988. Após a “viagem ao sul” de Deng Xiaoping em 1992, passando por Shenzhen e pelas novas zonas econômicas do país, os trabalhadores culturais chineses foram instruídos a ir ao mercado; muitas instituições editoriais perderam apoio financeiro e foram forçadas a buscar novos modelos de negócios, por vezes terceirizando a produção para estúdios não licenciados (gongzuoshi) (Schell,1995; Keane, 2007).

Esses acontecimentos marcaram o início da segunda fase da reforma. No mesmo ano, o termo “indústria cultural” foi introduzido, embora sua formulação para virar política de Estado tivesse que esperar mais nove anos (ver Pang, 2012). Durante esse período, a cultura comercial cresceu. No final da década de 1990, quando o governo proclamou que as instituições de mídia deveriam seguir o caminho da comercialização, tornando-se conglomerados (jituan) –que eram, na verdade, uma tentativa de construir campeões de mídia local (ver Keane, 2013) –, o mercado midiático se consolidou. Foi quando a segunda etapa atingiu seu auge e o lema “segurança cultural” (wenhua anquan) foi desenvolvido, antes da entrada da China na Organização Mundial do Comércio (omc). A determinação da China de se abrir ao investimento estrangeiro significou a redução das restrições ao comércio cultural. A necessidade de liberalizar os mercados em setores estratégicos, incluindo publicidade e cinema, levou a debates cuidadosos sobre a soberania do Estado. Um tratado inicial sobre segurança cultural e globalização, datado de fevereiro de 2000, teve autoria de Hu Huilin (Hu, 2000). Em 12 de agosto de 2003, Hu Jintao levantou o tema “Garantindo a segurança cultural nacional”7 ao politburo do Comitê Central do pcc durante a sétima reunião de estudos coletivos. Na quarta e na

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sexta sessão das plenárias do xvi Comitê Central, a segurança cultural foi incluída em um pacote de “medidas de segurança”, a saber, segurança política, econômica, cultural e da informação. Não foi surpresa o fato de os acadêmicos conservadores se unirem em torno da proposição de que a cultura tradicional chinesa declinaria ou morreria se a decadente cultura externa pudesse ser acessada tão facilmente. Como solução propôs-se que a China deveria fortalecer seu “poder brando” (ver Chu, 2013; Keane, 2013, 2010, 2010a, 2010b; Sun, 2010; Barr, 2011; Kurlantzick, 2007). A ideia tornou-se obrigatória em declarações políticas e relatórios de notícias. Resumidamente, o poder brando descreve a capacidade de uma nação de exercer influência além do “poder duro” – como a influência militar e econômica. De acordo com Joseph Nye (1990), a “atratividade” de uma nação repousa em três recursos: cultura, valores políticos e políticas externas. Na maioria dos casos, o poder brando é sinônimo da “atratividade cultural” de uma nação, mas, no caso da China, tal atratividade ainda não se manifestou além de suas fronteiras nacionais. Mesmo antes de Nye, o poder brando já era mencionado no país. Segundo Li Mingjiang (2008, p. 292), o primeiro artigo chinês sobre o conceito foi escrito em 1993 por Wang Huning, hoje membro do Secretariado do Comitê Central do pcc. Mingjiang observa que 485 artigos com o termo “poder brando” em seus títulos foram publicados entre 1994 e 2007. Quando a liderança do pcc passou de Jiang Zemin para Hu Jintao, o ambiente político estava aberto a uma reavaliação da influência interna e externa da China. Estatísticas coletadas por pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências Sociais mostram um aumento no consumo de produtos culturais e de lazer no exterior. Em seu discurso de abertura no xvii Congresso Nacional do pcc, em 2007, o presidente Hu Jintao enfatizou que o país deveria estimular a criatividade cultural como parte do poder brando da nação:

Devemos manter a orientação da cultura socialista avançada, desencadear uma nova onda no desenvolvimento cultural socialista, estimular a criatividade cultural de toda a nação e melhorar a cultura como parte do poder brando do nosso país, a fim de melhor garantir os direitos e interesses culturais básicos do povo, enriquecer a vida cultural na sociedade chinesa e inspirar a população a ter uma perspectiva espiritual mais elevada e progressiva.

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A transformação do mercado cultural, isto é, sua evolução em direção às indústrias culturais e criativas (wenhua chuangyi chanye), representa uma mudança do estado de propaganda presidido pelos líderes revolucionários da China. A articulação da “criatividade cultural” como tema discursivo acomoda nitidamente facções conservadoras e progressistas. O mercado, agora apresentado como “indústria” (chanye), é visto pelos reformistas como um mecanismo de progresso e uma força positiva para a mudança.

NOVOS CAMINHOS

A terceira etapa da reforma, desenvolvida a partir de 2003, incorpora uma transformação mais ampla, trazendo novas mídias para um alinhamento aprofundado com relação à política cultural. No âmbito da reforma do sistema cultural nas etapas (i) e (ii), temos a categorização tripartite de instituições, mercados e consumidores da política cultural organizada. A China Central Television (cctv) é geralmente descrita como uma instituição cultural pública (shiye), embora atraia altos níveis de receita publicitária. Entidades comerciais como a Huayi Brothers, empresa líder na produção de filmes, ou galerias de arte comerciais como a 798, em Pequim, são evidências das transformações do mercado (chanye) – consumidores (xiaofeizhe) são categorizados como “plateias” (guanzhong), “usuários” (yonghu) ou “bases” (caogen).

O impacto dos usuários e das bases está alterando a natureza da atividade cultural na China de forma significativa. A relação entre instituições, mercado e consumidores está, portanto, mudando à medida que milhões de usuários de internet geram conteúdo de baixo orçamento, criam paródias online (egao) (Meng, 2011), contribuem com legendagem (Hu, 2006) e disseminam relatos fictícios (Zhao, 2011).

Essa mudança é inerente às transformações vividas pelas economias formais e informais. Como mencionado antes, o sistema político chinês é externamente formal e muito bem estruturado, mas internamente conectado a numerosos think tanks e comunidades epistêmicas. Da mesma forma, a atividade cultural é representada em formações complexas. Grande parte da produção cultural é formal, ou seja, é oficialmente ratificada, censurada e distribuída de acordo com jurisdições geográficas. Outra parte dessa produção, porém, é informal, abalando as tentativas do Estado de restringir sua

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área de atuação – por exemplo, formas de paródia baseadas na web e conteúdos gerados pelos usuários. Embora seja impossível estimar o valor da economia informal, há poucas dúvidas de que as comunidades online estão contribuindo para a identidade cultural da China. Esses novos desafios também se apresentaram como oportunidades, ecoando a palavra chinesa para crise, weiji, um composto de wei (perigo iminente) e ji (oportunidade). Enquanto os desafios são mais evidentes com relação às bases, as oportunidades de reforma surgiram como resultado da necessidade de fortalecer as indústrias (chanye). Para alguns reformistas de políticas, esse fortalecimento é uma forma de disciplinar a “economia cultural informal”.8

O sistema cultural mais uma vez chamou a atenção nacional em julho de 2003, após uma conferência nacional de trabalho em Pequim. O documento Pareceres sobre o trabalho inicial na reforma do sistema cultural, 9 elaborado pelo governo central, propôs uma nova série de medidas para separar as instituições públicas (shiye) das indústrias (chanye). No entanto, enquanto os debates sobre a separação de funções seguiram, até a elaboração do 12o Plano Quinquenal, em 2009, a reforma do sistema não ficou diretamente ligada ao poder brando, que, como mencionado anteriormente, surgiu como um lema nacional no período do Hu Jintao. Em 2009, o Conselho de Estado divulgou seu Plano de Ajuste e Revitalização da Indústria Cultural. 10 Embora tenham sido formuladas várias políticas setoriais específicas, incluindo iniciativas municipais, distritais e provinciais, ele representou o primeiro plano nacional dirigido à indústria cultural. O documento foi posteriormente incorporado ao Esboço do Plano Quinquenal de Reforma e Desenvolvimento Cultural de 2011-15 (shi er wu wenhua gaige fazhan guihua gangyao), por meio do qual o Ministério da Cultura anunciou que o setor cultural se transformaria em um “setor basilar” até 2015, ou seja, representaria 5% do pib. Com essa meta ambiciosa em mente, o Ministério da Cultura promulgou outro plano com o objetivo de duplicar o valor agregado anual das indústrias culturais do país, sinalizando uma taxa de crescimento médio anual superior a 20%.

Metas ambiciosas são fundamentais para o planejamento socialista. Como Keane (2011 e 2013) argumentou, a percepção de que a China está tendo um desempenho inferior na “concorrência de poder brando” (Chua, 2012) em comparação com a Coreia do Sul e o Japão provoca uma bolha de desconforto nos corredores do poder de Pequim. Embora a nação tenha se tornado uma superpotência econômica nas últimas décadas, suas indústrias culturais e de mídia não seguiram a mesma tendência de crescimento. Contudo, há uma crença

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de que a aplicação de práticas industriais e de tecnologia pode acelerar o desenvolvimento da produtividade cultural e fomentar a inovação. A ideia de que economia e cultura são codependentes é agora uma ideia-chave entre os think tanks do pcc e outras comunidades epistêmicas.

Em 2012, Zhu Zhixin, vice-diretor da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, observou:

Incentivar o desenvolvimento da indústria cultural é essencial para reestruturar e estimular o crescimento econômico […]. É difícil imaginar um renascimento nos mercados internacionais no curto prazo e, nesse contexto, a economia nacional da China corre o risco de se enfraquecer. A indústria cultural não é apenas vigorosa e eficiente, mas também promoverá amplamente o consumo e impulsionará muitos setores relacionados. (Citado em Wei, 2012)

Declarações como essa demonstram uma mudança de foco de um modelo de crescimento liderado pelas exportações para uma maior dependência do consumo interno. Li Wuwei toca em um ponto ainda mais sutil do argumento:

[os] problemas fundamentais (ou as contradições causadas pelo desequilíbrio das estruturas econômicas internas e externas) que levaram à desaceleração econômica ainda estão por ser resolvidos […]; precisamos transformar e atualizar a economia. As indústrias criativas estimularão a transformação da economia chinesa da abordagem orientada à exportação para a abordagem orientada à inovação. (Li, 2011, p. 36)

Apesar do fato de Li usar o termo “indústrias criativas” em vez de “indústrias culturais”, descrição preferida do Ministério da Cultura, é evidente que os legisladores estão atentos ao papel que essas indústrias emergentes desempenham na condução do crescimento de indústrias relacionadas, como as de turismo, financeira e de logística. O termo “indústrias criativas” ganhou apoio de outros reformadores-líderes, ansiosos para ver a China se afastar de sua dependência da indústria de base e da produção de baixo custo. Em 2009, o primeiro-ministro Wen Jiabao fez um importante discurso resumindo o programa de trabalho do governo. Ele abordou a tarefa de “apoiar ativamente as empresas na aceleração da atualização tecnológica e no desenvolvimento de empresas baseadas na inovação”. E acrescentou:

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Iremos acelerar o desenvolvimento de setores de serviços modernos. Promoveremos o desenvolvimento de bancos, seguros, logística moderna, consultoria, software e indústrias criativas e desenvolveremos novos tipos de serviços. Iremos atualizar as indústrias de serviços tradicionais. (Wen, 2009)

O esboço do Plano Quinquenal de Reforma e Desenvolvimento Cultural de 2011-15 enfatiza a necessidade urgente de “emancipar e desenvolver a produtividade cultural para fornecer uma ampla gama de produtos e serviços às pessoas”. Tal emancipação é um meio para resolver a lacuna existente entre oferta e demanda no mercado interno. A forte produtividade cultural é importante para aumentar a competitividade internacional, um fator que traz as ambições de poder brando da China para um foco mais definido. De acordo com o documento11 aprovado no xvii Comitê Central do pcc, em 2011 (Wang e Cai), a capacidade da China de inovar é fundamental para “aumentar o poder brando e a competitividade abrangente da cultura de uma nação”. A solução, segundo esse documento, passa pela “convergência entre cultura e tecnologia”.

O significado de “convergência” na linguagem política chinesa está aberto à interpretação. O discurso contemporâneo de convergência tem como foco levar a China para um novo modelo de desenvolvimento. O modelo preferido é a combinação entre a inovação tecnológica e a criatividade cultural (keji chuangxin yu wenhua chuangyi ronghe). Os legisladores reconhecem o papel da inovação científica e tecnológica na condução do crescimento das indústrias culturais e criativas e na expansão dos processos de aperfeiçoamento da sociedade. Acredita-se que a convergência seja o futuro modelo de desenvolvimento para as indústrias culturais do país, bem como um meio de transformar o desenvolvimento econômico.

Nesse modelo, a tecnologia da informação se aproximou da cultura e da arte. No 12o Plano Quinquenal, uma indústria de tecnologia da informação de “nova geração” foi identificada como um dos sete setores emergentes de importância estratégica nacional. Mais especificamente, isso inclui redes de informação de última geração, componentes eletrônicos básicos, software de ponta e novos serviços de informação. A perspectiva é de que essas tecnologias digitais desempenhem papéis diferentes em distintas regiões para beneficiar as indústrias culturais. Em grandes cidades costeiras do leste da China, como Pequim e Xangai, tecnologias emergentes como internet móvel, computação em nuvem e big data estão im -

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pulsionando a “atualização” das indústrias culturais; isso implica que projetos culturais com baixo desempenho devem se tornar mais criativos e inovadores. Nas regiões menos desenvolvidas do centro-oeste, os legisladores veem a informatização e a digitalização como uma forma de transformar recursos culturais tradicionais em oportunidades de desenvolvimento, por exemplo na indústria do turismo ou na preservação do patrimônio cultural. Mais distante das cidades da costa leste, a ênfase é menos na criatividade e inovação e mais na proteção.

Em consonância com o discurso da atualização, o Estado aprovou “bases de demonstração nacionais” para combinar cultura com ciência e tecnologia. Elas geralmente integram os parques nacionais de alta tecnologia existentes. A atual lista nacional de bases de demonstração conta com dezesseis projetos. Por exemplo, a Base de Demonstração de Zhongguancun, em Pequim, que inclui o distrito de alta tecnologia de Haidian, o distrito de recreação cibernética de Shijingshan mais a oeste, o Yonghe Park, no distrito de Dongcheng, e o Desheng Science Park, no distrito de Xicheng. Da mesma forma, a Base de Demonstração de Zhangjiang, em Xangai, identificou indústrias da informação e abraçou oportunidades em jogos online e publicação digital. Os setores de conteúdo e serviços digitais são, desse modo, importantes ramos de atividade na exploração da convergência entre criatividade cultural e inovação tecnológica. Embora estruturas visíveis como bases e parques possam ser facilmente construídas na China, os processos criativos e de inovação “menos visíveis” são fundamentais para fomentar o setor.

A campanha de convergência está introduzindo novas abordagens para a produção, distribuição e consumo de conteúdo criativo. Isso representa desafios para o governo em resposta a esse desenvolvimento, especialmente quando o conteúdo é dissociado das plataformas de distribuição. Embora a tríplice convergência de redes –telecomunicações, radiodifusão e internet – esteja na agenda do governo chinês desde o 10o Plano Quinquenal proposto na passagem para o século xxi, houve pouco progresso no nível nacional, principalmente por causa de interesses conflitantes entre a Administração Estatal de Rádio, Cinema e Televisão (saRft) e o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação (miit), com exceção de alguns projetos-piloto em várias cidades (Wu e Leung, 2012). Certamente, existe a necessidade de se estabelecer uma agência reguladora de comunicações convergentes para melhor implementar a política de triple play

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Como parte da reforma institucional do Conselho de Estado, a Administração Geral de Imprensa e Publicações (gapp) e a saRft se fundiram para aprofundar a reforma das instituições culturais e otimizar seus recursos. A recém-formada Administração Estatal de Imprensa, Publicações, Rádio, Cinema e Televisão supervisionará as organizações, o conteúdo e a qualidade de seus produtos e gerenciará os direitos autorais. Além disso, para acelerar o desenvolvimento e fazer das indústrias culturais um pilar da economia nacional, o Estado pretende

estabelecer um sistema de inovação tecnológica no campo da cultura em que as empresas desempenharão um papel de liderança, o mercado oferecerá orientação, e os esforços das empresas, universidades e institutos de pesquisa serão integrados.

Mais uma vez notamos uma forte dose de retórica que reflete a agenda de desenvolvimento industrial do Estado e sua ênfase em tecnologia da informação como um meio de alcançar o Ocidente avançado e seus próprios vizinhos da Ásia Oriental (Coreia do Sul e Japão). Desde 1998, os parques científicos e tecnológicos sediados em torno das universidades testemunharam um rápido desenvolvimento. Os parques anteriores estavam focados em ciência e tecnologia: alguns eram especializados em campos tecnológicos específicos dominados por uma única universidade; outros, mais abrangentes, administrados pelo governo local com a participação de várias universidades. Além disso, desde 2006, os parques científicos e tecnológicos passaram por uma virada de “humanas”, com muitos deles, recém-estabelecidos, ligados a universidades com forte capacidade de pesquisa nas disciplinas dessa área (Peng, 2009). De fato, a inovação está acontecendo cada vez mais fora da pesquisa e do desenvolvimento no âmbito corporativo. Inovação sustentável significa que os produtos e serviços precisam ser melhorados por meio de conversas contínuas com vários atores. Entre esses atores estão os consumidores, que assumem cada vez mais importância na produção criativa e na inovação. Por exemplo, o crescimento vibrante do conteúdo gerado pelos usuários no domínio digital teve um impacto social, cultural, econômico e político significativo na China. Embora a criatividade de base exista em grande parte no setor informal, que não é contabilizado nas estatísticas do governo, tem havido uma tendência pela qual os atores da indústria no setor formal começam a trabalhar em conjunto com talentos de base (Zhao;

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Keane, 2013). Alguns tornaram-se incubadoras de talentos, com o objetivo de desenvolver e explorar a criatividade de base para o seu crescimento, ajudando assim as empresas a captarem e responderem melhor às necessidades do mercado.

Apesar da atenção dada à convergência entre inovação tecnológica e criatividade cultural, não há consenso no país sobre o que realmente é um sistema de inovação cultural. Até o momento, a ênfase tem sido na oferta e não na demanda – uma abordagem do tipo “construa e eles virão”. Não faltam bases de produção para a mídia e a cultura; a China se destacou na terceirização de design internacional e animação (ver Keane, 2013). O problema é que a reputação da marca dos setores culturais do país não é das melhores. Em 2011, o ex-presidente chinês Hu Jintao lamentou: “A força geral da cultura chinesa e sua influência internacional não são compatíveis com o status internacional da China. A cultura internacional do Ocidente é forte, enquanto nós somos fracos” (Hu, 2012).

Além de promover a produtividade cultural (isto é, dobrar a produção para atender à demanda do consumidor interno), espera-se que a convergência entre as indústrias culturais, manufatureiras e de serviços estimule a competitividade internacional e, dessa forma, impulsione a reforma do sistema cultural. Há uma reviravolta irônica nisso – um potencial reverso. Quando a China abriu sua economia na década de 1980, a “porta aberta” gerou inadvertidamente a imitação generalizada de produtos de marca do exterior. Com originais autênticos com preços altos ou indisponíveis, o boom da exploração da “shanzhai culture” (cultura da cópia) ofereceu produtos alternativos baratos aos consumidores (Keane e Zhao, 2012; Wallis e Qiu, 2012). De fato, à medida que a indústria de tecnologia da informação cresceu nos anos 2000, a cópia de produtos digitais, como telefones celulares, causou a aceleração dessa cultura.

À medida que a China sobe na cadeia de valor de “Made in China” para “Created in China” [criado na China], o significado de “shanzhai” transforma-se de pura pirataria em criatividade de valor agregado e microinovação. Isso é evidente nos setores de produção e serviços. No setor de fabricação de telefones celulares, por exemplo, os produtores locais começaram com a clonagem, mas logo apresentaram novos recursos, como celulares dual chip, para atender às necessidades do consumidor no mercado interno. Isso também se aplica ao conteúdo digital. O Weibo, lançado em 2009 como um serviço semelhante ao Twitter, rapidamente adicionou recursos como anexos de fotos e vídeos, postagens multimídia e contas verificadas,

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evoluindo depois para um quase híbrido de Facebook e Twitter. Enquanto os aplicativos da moda no Vale do Silício geralmente encontram um enxame de versões copiadas pela China, a inovação incremental ocorre quando as empresas locais adaptam a ideia importada às necessidades ou gostos locais.

Além disso, em resposta à popularidade do conteúdo gerado pelos usuários e reconhecendo que as gerações mais jovens da China são nativos digitais que desejam se envolver com atores do setor comercial, a cctv lançou a China Network Television (cntv) em dezembro de 2009. A cntv é uma versão administrada e financiada pelo Estado de sites de vídeos privados já existentes, como Youku e Tudou (os quais passaram por uma fusão em 2012).

Com acesso às enormes bibliotecas de conteúdo da cctv sem o desembolso de altas taxas de direitos autorais, a cntv tem óbvias vantagens de mercado. Percebendo uma oportunidade de explorar comunidades criativas, ela introduziu a plataforma Xiyou (xiyou. cntv.cn), por meio da qual os usuários podem fazer upload e compartilhar vídeos, e evidentemente emulou as estratégias de muitos participantes do setor para capturar lucros potenciais na economia informal. Alternativamente, esse é um caso em que o governo reconhece que as comunidades de base atingiram uma massa crítica, embora seja uma massa que está em desacordo com a representação das “massas” (qunzhong) à espera de serem educadas do pcc, tema dominante da política cultural das décadas de 1940 a 1980. As novas massas estão se movendo de forma online para buscar informações e entretenimento: são móveis, imprevisíveis e onipresentes.

Além de se envolver com as massas digitais imprevisíveis e competir com atores de mídia privados, a cntv visa mostrar ao mundo o desenvolvimento, o progresso, a história e a cultura da China. Essa é talvez a intenção política mais importante por trás da plataforma. De acordo com seu site, a cntv é uma “plataforma de serviço público globalizada, multilinguística e multiterminal”; ela visa “converter-se em uma emissora confiável baseada na internet na China” (cntv, 2010). Tais aspirações voltadas para o exterior estão intimamente ligadas ao poder brando. O problema que o país enfrenta em suas tentativas de desenvolver esse poder, no entanto, é uma percepção global e generalizada de que o regime comunista restringe a liberdade de expressão e os direitos humanos. Nesse sentido, é evidente que a cntv evita os campos minados políticos, aparentando ser um meio focado no entretenimento.

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OBSERVAÇÕES FINAIS

Demos início à nossa discussão com uma definição de cultura datada do final da década de 1980, nascida no cerne do materialismo histórico e da conveniência política. Essa definição serviu bem aos legisladores chineses. Entretanto, sua eficácia está diminuindo à medida que o poder da cultura se desloca para as bases. A desestabilização da estrutura de cima para baixo está minando o modelo de cultura de estágios de crescimento historicamente estabelecido, o que tem implicações para a reforma dos sistemas social, tecnológico, manufatureiro e educacional, bem como para o sistema cultural.

Argumentamos que a reforma do sistema cultural ocorreu aos trancos e barrancos, acompanhada por períodos de abertura e ajustes, por mudanças na liderança e pela entrada de novos lemas na linguagem política. No final da primeira década deste milênio, tornou-se evidente para os principais legisladores que o sistema cultural da China precisava de um novo sopro de vida. Os reformadores concentraram a atenção na separação de instituições públicas e empresas privadas. O conceito de inovação entrou na linguagem da política cultural, enquanto a criatividade se fundiu com a cultura, embora desempenhando um papel de apoio à esta na linguagem política.

A reforma do sistema cultural agora tem que lidar com um tipo diferente de questão de desenvolvimento. A China está inovando no setor cultural, mas, como já argumentamos (Keane; Zhao, 2012), está se esforçando para fazê-lo por meio de uma convergência entre produção, indústrias de serviços e tecnologia. A convergência é tratada em documentos e relatórios governamentais como a próxima fase do crescimento econômico da China. No mundo real, há tentativas de construir bases que respondam às aspirações governamentais, embora ainda estejam em uma fase inicial de desenvolvimento. Enquanto isso, a criatividade surgiu como uma aspiração para tornar a China mais competitiva na economia global e fomentar o poder brando. No âmbito do mercado, a criatividade é muitas vezes limitada por gargalos institucionais e regulamentações. No que se refere às bases, há mais fluxo. O modo shanzhai de inovação, em particular, impulsiona a demanda por produtos mais baratos e libera a pressão para que a nova geração de “criativos culturais” da China lute pela novidade. Com efeito, à medida que milhares de empresários e hackers desvendam o código, o modelo “Made in China” torna-se “Remade in China” [refeito na China].

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Talvez mais significativamente em relação a desafiar o modelo de cima para baixo, a convergência de tecnologia e cultura deu origem a uma onda de participação que aproxima a esfera amadora do convencional. Li Wuwei (2011, p. 34) conclui: “Através dessa prática, os criadores de base desafiam o convencional com o marginal, o profissional com o amador”. Na China de hoje, a reforma do sistema cultural não está mais confinada aos corredores do poder em Pequim.

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Notas

1 Este artigo foi originalmente publicado em Cultural Policies in East Asia, Londres: Palgrave Macmillan, 2014, pp. 155–73. [N. do org.]

2 Li Wuwei é um dos principais conselheiros políticos da China e o mais importante pensador do país na área de desenvolvimento social e econômico. Foi vice-presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (ccpcc) entre 2008 e 2012. É autor de vários livros, incluindo How Creativity is Changing China.

3 A ccpcc é composta por um quadro variado, incluindo membros dos partidos “democráticos” da China, como o Kuomintang Revolucionário, líderes empresariais, generais do Exército de Libertação Popular e outros.

4 Sobre essa declaração do período, ver: www.prnewswire.com/news-releases-test/ alvin-toffler-named-among-chinas-mostinfluential-foreigners-56959942.html.

5 Essas ideias se tornaram influentes em uma época (meados da década de 1980) em que os

intelectuais foram convocados para liderar a transição da China para a modernização, em contraste com as décadas anteriores, quando o valor do trabalho intelectual foi rebaixado e o trabalho manual foi elevado.

6 Wenhua tizhi gaige shidian gongzuo de yijian

7 Quebao guojia wenhua anquan.

8 Em 2008, a Administração Estatal de Rádio, Cinema e Televisão (saRft) promoveu uma campanha de repressão em larga escala em sites de compartilhamento peer-to-peer no setor digital (ver Zhao e Keane, 2013). A intenção era conter a atividade de distribuição informal.

9 Wenhua tizhi gaige shidian gongzuo de yijian.

10 Wenhua chanye zhenxing guihua.

11 Decisão do Comitê Central do pcc sobre as principais questões relacionadas ao aprofundamento da reforma do sistema cultural e à promoção do grande desenvolvimento da cultura socialista.

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade e inovação na China

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A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade e inovação na China

CAROLE ROSENSTEIN é professora associada de Gestão Artística e de Estudos Folclóricos na George Mason University. Estuda política, democracia e equidade culturais e o aspecto social da arte e da cultura. Liderou pesquisas comissionadas para o National Endowment for the Arts, o Institute for Museum and Library Services, a American Academy of Arts and Sciences e o Urban Institute, todos nos Estados Unidos. É doutora em Antropologia Cultural e emprega em seu trabalho abordagens qualitativas e interpretação, bem como dados quantitativos e análises. De 2000 a 2007, trabalhou no portfólio de políticas culturais do Urban Institute, onde foi pesquisadora associada do Center on Nonprofits and Philanthropy. Em 2007, foi bolsista Rockefeller em Política Cultural no Smithsonian Center for Folklife and Cultural Heritage, em Washington, DC. Sua publicação mais recente é o livro Understanding Cultural Policy (Routledge, 2018).

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom1

Os arquétipos de política cultural têm sido fundamentais para o estudo comparativo da área e continuam influenciando tanto as caracterizações cotidianas como as acadêmicas dos sistemas nacionais. Também chamados de modelos (Kawashima, 1995), manuais ou principais exemplos (Zimmer e Toepler, 1999), abordagens (Gattinger e Saint-Pierre, 2008) ou orientações (Aróstegui e Rius-Ulldemolins, 2018), quase todas as abordagens da política cultural comparada incluem alguma discussão dos arquétipos franceses, ingleses e americanos. A literatura da política cultural comparada tem argumentado que tais arquétipos são ferramentas inadequadas para qualquer tipo de análise matizada mais abrangente (ver Belfiore, 2004; Bonet e Emmanuel, 2011; Pontes de Araújo e Villarroya, 2018). Ainda assim, a sua proeminente influência persiste, bem como a noção de que eles são, de uma forma ou de outra, centrais para o projeto comparativo.

Este artigo defende o argumento de que os arquétipos não constituem boas ferramentas para analisar o funcionamento burocrático e instrumental dos sistemas nacionais de política cultural. O trabalho começa com uma cuidadosa análise das maneiras como os arquétipos foram usados em três estruturas fundamentais para o estudo comparativo: Cummings e Katz (1987), Chartrand e McCaughey (1989) e Mulcahy (2003).2 Essa linha de pesquisa foi motivada por minhas tentativas de mapear a burocracia cultural e os instrumentos políticos em uso na política cultural dos Estados Unidos, reunidas no livro Understanding Cultural Policy, de 2018. O projeto trouxe à tona a pobreza metodológica dos arquétipos proeminentes. Mais especificamente, descobri que o arquétipo americano não me ajudou; na verdade, obscureceu ou ludibriou minha visão e tornou mais difícil a análise de como a política cultural

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom

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é formulada e administrada nos Estados Unidos. Isso, na verdade, não deveria me surpreender, já que os arquétipos foram desenvolvidos para permitir comparações entre nações, e não para auxiliar na criação de profundos retratos descritivos da política cultural em qualquer país específico. No entanto, minha hipótese recém-formulada do arquétipo como uma ferramenta analítica me levou a examinar as distinções tidas como certas entre as políticas culturais francesa, inglesa e americana. Com base nessa avaliação, argumentarei aqui que nem as estruturas analíticas nem as teorias construídas a partir de arquétipos se sustentam. Em contrapartida, sugiro também que os arquétipos são valiosos para o estudo comparativo de políticas culturais. A segunda parte deste artigo comprova que tais ferramentas refletem o que as pessoas acreditam ser verdade sobre a cultura – ou seja, suas ideologias culturais. As ideologias culturais dão forma a ideias em torno da importância da cultura e de como ela deve ser administrada. Seus aspectos mais relevantes para a política cultural nacional geralmente são formados em situações em que pessoas de diferentes culturas se confrontam em função de mudanças políticas radicais, projetos coloniais ou globalização. Eles são bastante claros na política linguística e na política educacional, e são reconhecidamente importantes também para a política artística e cultural. Argumento então que os arquétipos de política cultural mais conhecidos refletem ideologias culturais do nacionalismo francês, da Commonwealth inglesa e do conceito americano de mercado de ideias. Tais ideologias destacam certos mecanismos administrativos, aumentando a ênfase do seu papel em sistemas que, na verdade, são híbridos no que toca a sua administração. Isso tudo torna os arquétipos ferramentas fracas para analisar os mecanismos da política cultural. Entretanto, como eles nos informam sobre as ideologias culturais de maneira direta e poderosa, e podem, com o aprofundamento do estudo, nos informar sobre a natureza do relacionamento entre ideologia e política cultural, é essencial que continuem a fazer parte do estudo comparativo. Ao longo do artigo, discutirei as noções de ideologia: ideologias de mercado, ideologias políticas, ideologias culturais. Utilizo o termo “ideologia” segundo a acepção de antropólogos linguísticos e semióticos (como eu): por exemplo, em uma formulação final, a ideologia linguística é “qualquer conjunto de crenças sobre linguagem articulada pelos usuários como racionalização ou justificativa da estrutura e do uso da linguagem percebida” (Silverstein, 1979, p. 193). Ideologias são, portanto, conjuntos de crenças expressas usadas para explicar alguns fenômenos, como eles funcionam no mundo e por que funcionam conforme o modo como são percebidos.3

84 Carole Rosenstein

ARQUÉTIPOS DE POLÍTICA CULTURAL E TEORIAS DA POLÍTICA CULTURAL NACIONAL (O LADO RUIM)

Para os cientistas sociais, existem duas abordagens amplas para identificar grandes diferenças entre as políticas culturais nacionais para efeito de comparação. A primeira delas é construir uma espécie de história natural das políticas culturais nacionais, isto é, reunir descrições de várias dessas políticas, determinar se elas, de fato, se encaixam em tipos diferentes e, em seguida, tentar explicar por que podemos encontrar diferenças. Em sua inovadora compilação de ensaios, intitulada The Patron State: Government and the Arts in Europe, North America and Japan (1987), Milton Cummings e Richard Katz participam dessa empreitada. A segunda abordagem propõe uma teoria para explicar por que as políticas culturais nacionais podem ser diferentes e, em seguida, analisar uma série delas para ver se realmente diferem conforme previsto. Minha interpretação de Chartrand e McCaughey (1989) e de Mulcahy (2003) mostra que eles estão empenhados nessa tarefa. Cummings e Katz esboçam uma estrutura para comparar como as nações abordam a política cultural com base no principal objetivo do país, instrumento-chave para definir a política, o grau de centralização vertical e a forma de administração (figura 1). Os autores sugerem que as políticas culturais nacionais podem ser comparadas descrevendo-as em relação aos seus objetivos principalmente nacionalistas, econômicos, sociais ou políticos; ao uso de patrocínios, subsídios, doações ou gastos fiscais; à prevalência de centralização, descentralização ou delegação4 e ao uso de ministério, agências fragmentadas, quango [agência quase não governamental] ou instituições culturais do setor público para administrá-las.

Objetivo

Nacionalista

Instrumento

Patrocínio/ patronagem

Econômico Subsídio/doação

Grau de centralização

Centralização

Descentralizado

Ministério

Agências fragmentadas

Social Grantmaking Quango

Político Gastos fiscais

Fonte: adaptado de Cummings e Katz, 1987.

Delegado Instituições culturais públicas

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom

85
Figura 1: Estrutura para uma política cultural comparativa
vertical Administração

Qualquer política cultural individual é passível de ser caracterizada pela combinação de todas as referidas classificações: pode-se encontrar, em um determinado local, um sistema descentralizado de orientação social, baseado no clientelismo e administrado por instituições culturais do setor público; em outro, pode haver um sistema nacionalista centralizado, baseado em subsídios e administrado por um ministério etc. O estabelecimento de arquétipos de política cultural não fazia parte do projeto de Cummings e Katz, e a elaboração de objetivos principais, instrumentos políticos e graus de centralização vertical é abstrata, valendo-se de exemplos nacionais puramente para fins de ilustração, sem fazer sugestões ostensivas sobre a possibilidade de qualquer uma dessas dimensões se ligar a outras. Com o propósito de reunir retratos descritivos das políticas culturais nacionais no volume The Patron State, os autores forneceram dados para se construir uma teoria que especulasse sobre os motivos dessas dimensões serem regularmente encontradas juntas em um sistema de política cultural nacional.

No entanto, a argumentação de Cummings e Katz sobre o que eles chamam de “principais formas organizacionais” de administração – ministério, agências fragmentadas, quango (com controle parcial do governo) e instituições culturais públicas – vincula essas formas a tradições de apoio à arte de maneira a aproximá-las do desenvolvimento de arquétipos. Eles sugerem que uma distinção básica pode ser feita entre duas tradições de apoio à arte e à cultura: uma está enraizada no absolutismo tipificado pela França e Áustria, nações católicas que haviam sido governadas por monarcas absolutos, onde a cultura e a arte eram abraçadas na corte e seu cultivo fazia parte da glorificação do monarca e do seu Estado (pense em Luís xiv em Versalhes); outra tradição está enraizada no mercantilismo tipificado pela Inglaterra e Holanda. Essa tradição surgiu de nações plutocráticas que haviam sido governadas por um monarca com poderes limitados, onde o patronato era assumido principalmente por comerciantes ricos, e o desdém pela arte, arraigado no ascetismo protestante, predominava. O absolutismo levou à tendência ao apoio estatal à arte; o mercantilismo, a uma tendência ao apoio privado. Embora tais características e tendências possam ser aplicadas a outras conjun turas, a França e a Inglaterra são os dois casos arquetípicos usados em The Patron State, bem como na maioria das políticas culturais comparativas. Em grande parte, isso ocorre porque as “principais formas organizacionais” de administração identificadas nesses países ressoam

86 Carole Rosenstein

muito fortemente as tendências históricas: seguindo sua tendência de apoio estatal à arte, a França desenvolveu o que Cummings e Katz chamam de “modelo do Ministério da Cultura francês”, enquanto a Inglaterra desenvolveu a “fundação quase pública” de controle governamental parcial, alicerçada em sua tradição de apoio privado à arte.

A protoarquetipagem baseada em tradições históricas de apoio à arte fundamenta uma tipologia de “forma organizacional” que não resiste à análise. Empregando essa tipologia, por exemplo, Cummings e Katz definem a política dos Estados Unidos vinculando-a ao National Endowment for the Arts (nea), reconhecido por eles como uma “fundação quase pública”, no modelo do Arts Council inglês. Contudo, a administração da política cultural americana é profunda e fundamentalmente híbrida. Isso é verdade mesmo para a faixa mais estreita de política e administração que se concentra na arte. Embora a administração cultural americana não inclua um ministério, ela incorpora cada um dos outros tipos de forma organizacional em funções administrativas essenciais. A administração cultural nos Estados Unidos geralmente está associada ao nea , mas isso tem mais a ver com a maneira de perceber a arte como representante de toda a cultura e com as narrativas da Guerra Fria de formulação de políticas culturais do que com a sua real organização burocrática de administração. Outro exemplo: muitos ministérios supervisionam o tipo de instituição cultural do setor público que Cummings e Katz classificam como “empresarial” (em que o governo atua no papel de empresário). Muitas dessas instituições se envolvem em doações, o que as tornaria algo mais parecido com um quango. Essa tipologia simplesmente não encontra respaldo nos tipos e nas configurações da estrutura administrativa que encontramos no mundo, e que queremos descrever e entender cuidadosamente.5

Existem vários problemas aqui; o maior deles é o fato de Cummings e Katz inclinarem-se para o apoio à arte como dimensão explicativa fundamental subjacente à política cultural (nesse sentido, eles não são os únicos). Um bom argumento é o de que a política cultural britânica pode ser mais bem compreendida quando observada a história da sua orientação para a regulamentação da cultura, em vez de sua orientação para o apoio à arte. A forma como a arte é vista, isto é, como parte da cultura, deve ser considerada no desenvolvimento de uma tipologia comparativa efetiva. Esse tratamento delineia a distinção básica entre uma tradição francófona, que acredita na forte in-

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom

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tervenção do Estado sobre a cultura, e uma tradição anglófona, que se sente menos confortável com a intervenção estatal. No entanto, a proposição subjacente de que tais tradições explicarão a estrutura administrativa primária não parece funcionar de fato. Em outra estrutura de influência, Chartrand e McCaughey (1989) comparam o que chamam de quatro “papéis arquetípicos” que um Estado pode assumir em seu apoio à arte e à cultura: facilitador, patrono, arquiteto e engenheiro. Os quatro tipos são extraídos de uma estrutura que compara possíveis atitudes em relação ao apoio à “criatividade” versus o apoio à “produção de tipos de arte específicos, como o realismo socialista”, e são elaborados a partir de retratos abstratos da política nacional de arte nos Estados Unidos, Inglaterra, França e uRss (figura 2). O Estado facilitador promove a

diversidade de atividade nas artes amadoras sem fins lucrativos e nas belas-artes. Ele apoia o processo de criatividade, em vez de tipos ou estilos de arte específicos. Além disso, nenhum padrão de arte específico é apoiado por esse Estado, que se baseia nas preferências e gostos de doadores corporativos, fundações e pessoas físicas.

O Estado patrono apoia o “processo de criatividade”, mas seu objetivo político é “promover padrões de excelência artística profissional”.

O Estado arquiteto “apoia as artes como parte de seus objetivos de bem-estar social e também tende a apoiar a arte que atende à comunidade, em vez de padrões profissionais de excelência artística”.6

No Estado engenheiro, “as decisões de financiamento são tomadas por comissários políticos e destinam-se a promover a educação política, não a excelência artística”. Além disso, o apoio é dado apenas à “arte que atende aos padrões políticos de excelência; não suporta o processo de criatividade”.

88 Carole Rosenstein
++ +
EUA Inglaterra França URss Figura 2: Apoio à “criatividade” como o objetivo principal da política nacional de arte Fonte: adaptado de Chartrand e McCaughey, 1989.

Partindo de fundamentos para a comparação dos graus de “apoio à criatividade”, os arquétipos de Chartrand e McCaughey destacam mecanismos administrativos distintos, usados nos quatro países citados: nos Estados Unidos, eles estão associados aos gastos tributários; na Inglaterra, ao Arts Council, com controle governamental parcial; na França, a um Ministério da Cultura centralizado; e na uRss, à propriedade nacional da empresa cultural. Os mecanismos administrativos repousam no centro dos arquétipos, fornecendo a chave para identificar as diferenças entre eles.

No entanto, a tipologia descrita não consegue distinguir as duas dimensões da administração: os instrumentos políticos e a organização burocrática. A despesa fiscal e a nacionalização são instrumentos políticos; os conselhos e ministérios das artes constituem tipos da organização burocrática. Os fundamentos conceituais dessa estrutura tornam-se mais aparentes quando as instituições são substituídas pelos instrumentos políticos tipicamente associados a elas – subsídios e provisão pública,7 como pode ser visto a seguir (figura 3):

Figura 3: Os arquétipos de política cultural por forma de administração e instrumento político característicos

Fonte: elaboração própria.

Uma vez que os instrumentos políticos associados a esses quatro arquétipos são identificados, fica claro que eles caem em uma escala que mede o grau de “interferência” do governo no mercado de arte: os gastos tributários são o instrumento menos utilizado; a nacionalização, o mais. A comparação reflete as orientações fundamentais para o mercado e as ideologias de mercado que impulsionam as intervenções – neoliberal, liberal, planejado e controlado (figura 4).

A tipologia não é útil para ajudar a explicar a administração cultural

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom

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EUA Inglaterra França URss Administração [nulo] Conselho de Artes Ministério [nulo] Instrumento Gastos fiscais Subsídio/ doação Provisão pública Nacionalização

porque os instrumentos políticos não se ligam, de fato, às estruturas burocráticas da maneira como os arquétipos sugerem. É preciso reiterar: quando visto da perspectiva administrativa, os sistemas de política cultural aparentam ser profunda e fundamentalmente híbridos. Em primeiro lugar, os instrumentos políticos de gastos tributários, subsídio, provisão pública e nacionalização podem ser e são, de fato, adotados independentemente da estrutura burocrática existente. Os governos que administram a política cultural por meio de um ministério empregam despesas tributárias; os que oferecem as doações com controle parcial do governo também nacionalizam as empresas culturais. Além disso, os instrumentos políticos não são mutuamente exclusivos. Uma vez desvinculados desses arquétipos, fica claro que eles não necessariamente conflitam uns com os outros. Argumentar que os aspectos burocráticos e instrumentais da administração de alguma forma se encaixam ou se vinculam requer mais e mais estudos comparativos de políticas culturais, especialmente envolvendo muitos outros exemplos nacionais, bem como um estudo cuidadoso do desenvolvimento ou da mudança de políticas culturais (ver Bonet e Emmanuel, 2011).

90 Carole Rosenstein
EUA Inglaterra França URss “Facilitador” “Patrono” “Arquiteto” “Engenheiro” ++ Criatividade + Criatividade Criatividade Criatividade Gastos fiscais Subsídio/doação Provisão pública Nacionalização Neoliberal Liberal Planejado Controlado
Figura 4: Os arquétipos de política cultural de Chartrand e McCaughey Fonte: adaptado de Chartrand e McCaughey, 1989.

Ao apresentar seus arquétipos, Chartrand e McCaughey agrupam características das quatro nações mencionadas e unem desejo de apoiar a expressão artística ou a criatividade (ou não) com vontade de intervir no mercado (ou não). O uso de arquétipos faz supor que todos os tipos de diferença podem ser explicados em relação à abordagem de uma nação no mercado – não só o compromisso do governo com a criatividade, mas também seu interesse fundamental pela cultura enquanto interesse público, sua vontade de investir na cultura e seu respeito pelos padrões estéticos. A estrutura de Chartrand e McCaughey se funde, reforçando a tendência de tornar a questão da “liberdade artística” um tema privilegiado de todo estudo comparativo de políticas culturais. Encarar tais diferenças como aquelas que devem fundamentar a política cultural comparada pode ter feito sentido no contexto da Guerra Fria, mas hoje não. Atualmente, o estudo comparativo de políticas culturais deve tratar das maneiras como as políticas abrangem toda uma variedade de formas culturais, não apenas a arte, e também deve ser capaz de comparar amplos sistemas de política cultural, não apenas modelos de financiamento artístico. Alguns legisladores e políticos tendem a privilegiar a ideologia de mercado, usando-a como uma espécie de epistemologia para toda política. Não devemos tomar isso como verdadeiro ou, ao menos, verdadeiro em todas as ocasiões. Essa configuração pode ser apenas o produto de um período histórico específico (anos 1980, por exemplo) ou de alguma outra força. Definir se o uso de um determinado instrumento político de fato reflete outros tipos de intenções e em que grau isso ocorre – principalmente uma orientação voltada para o mercado – são questões que exigem estudo mais aprofundado.

Parece, então, que duas coisas são verdadeiras sobre o conjunto de influência de arquétipos de política cultural: eles refletem diferenças que as pessoas acreditam ser reais e consequentes e, ao mesmo tempo, referem-se a sistemas que compartilham muitas das mesmas características administrativas. Isso sugeriria que a melhor forma de explicar as diferenças entre esses sistemas não é olhar para a administração cultural.

No entanto, destrinchar os arquétipos de Chartrand e McCaughey é um exercício valioso por várias razões. Em primeiro lugar, o exercício acusa que o uso de determinado instrumento político pode ser impulsionado por uma ideologia de mercado tanto quanto o é, se não muito mais, por qualquer eficácia ou eficiência direta que ele pode ter ou qualquer resultado específico que uma política

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pretende alcançar. Os arquétipos de Chartrand e McCaughey também são valiosos pelo modo como revelam que, quando os legisladores adotam um desses mecanismos administrativos, o uso pode refletir ou implicar certa atitude em relação à intervenção. Embora a intenção de “apoiar a criatividade” não forneça base adequada para uma teoria da administração cultural, os mecanismos administrativos associados aos arquétipos claramente abrangem uma gama de sistemas de política cultural que variam de relativamente não planejados a altamente planejados (figura 5).

Quando o governo adota ou desenvolve o Ministério da Cultura ou introduz uma forma cultural específica dentro de um ministério, isso sugere que ele deseja intervir em um nível relativamente alto. Já quando adota ou desenvolve a isenção fiscal para abordar algumas questões concernentes à política cultural, isso sugere que ele deseja intervir em um nível relativamente baixo. Como os sistemas de política cultural são híbridos, também pode ser útil traçar diferentes formas de administração associadas a diferentes elementos da cultura dentro de qualquer sistema específico.

Embora o façam apenas de forma implícita e indireta, Chartrand e McCaughey explicam as diferenças entre as políticas culturais nacionais conforme as distintas ideologias de mercado. Por outro lado, Mulcahy (2003, 2017) argumenta que as políticas culturais refletem ideologias políticas. Ele argumenta que os sistemas de política cultural diferem de acordo com as distinções na “cultura política” (chamada, às vezes, de “cultura pública”). A cultura política é a “orientação para a política envolvendo atitudes gerais sobre o sistema e atitudes específicas sobre o papel do eu no sistema” (Mulcahy, 2003, p. 96).8

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EUA Inglaterra França URss Gastos fiscais Conselho de Artes Ministério Nacionalização Planejamento Planejamento + Planejamento ++ Planejamento Figura 5: Os arquétipos de política cultural por mecanismo administrativo característico e grau de planejamento Fonte: adaptado de Chartrand e McCaughey, 1989.

A ideia lembra o insight de Tocqueville, que disse: “Em todos os lugares que, à frente de um novo empreendimento, você vê o governo na França e um grande lorde na Inglaterra, pode ter certeza de que encontrará uma associação nos Estados Unidos” (Tocqueville, 2000 [1805–59], p. 489). Ou Mary Glasgow, a primeira secretária-geral do Arts Council, comentando que “a ausência de controle oficial é como gostamos de fazer as coisas na Grã-Bretanha” (citada em Minihan, 1977, p. 245). As nações têm maneiras diferentes de entender o ato de governar e certas formas de fazer a administração do Estado, e essas características maneiras de fazer serão refletidas em tudo o que regem, incluindo a cultura. Mulcahy usa a ideia de cultura política para comparar “sistemas de patrocínio cultural” que surgem de quatro tipos de “cultura pública” (2003): nacionalismo francês, liberalismo canadense, social-democracia norueguesa e libertarismo americano (figura 6). Cada tipo está associado a uma “forma característica de financiamento cultural”,9 “modo de administração cultural” e “política cultural” – ou “grandes

de política cultural”.

Tipo ideal

“Cultura pública”

Estado da cultura Protecionista

Social-democracia Laissez-faire

Nacionalista Liberal Social-democracia Libertária

Administração Estatista Consociativismo

Política cultural

Localista Pluralista

Hegemonia Soberania Democracia Laissez-faire

Fonte: elaboração própria.

O propósito declarado de Mulcahy é elaborar “tipos ideais” de “patrocínio cultural”. Contudo, não está claro se esses exemplos funcionam como tipos ideais, uma vez que a sua aplicabilidade a qualquer outra nação é questionável. A Grã-Bretanha seria mais bem descrita como parte de uma ideologia política liberal, mas não seria bem entendida como protecionista, e as preocupações

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preocupações França Canadá Noruega EUA Figura 6: Os “tipos ideais” de política cultural de Mulcahy adaptados como arquétipos

com a soberania cultural não poderiam ser consideradas de forma justificável como algo primordial para sua política cultural. A burocracia cultural do Japão é altamente centralizada, mas sua política cultural não se concentra na hegemonia. Grande parte da política cultural brasileira contemporânea tem se caracterizado pelo uso de instrumentos políticos laissez-faire, mas o Brasil está longe de ser libertário. Como não funcionam bem como tipos ideais abstratos, esses retratos podem ser entendidos como arquétipos. (Isso é menos verdadeiro no caso da Noruega, que parece representar um tipo distinto de política cultural nórdica.)

Os arquétipos de Mulcahy são desenhados para exemplificar seu argumento de que, “dependendo de suas culturas políticas, os governos variam na forma como suas políticas culturais são conceituadas e implementadas” e “as políticas culturais representam um microcosmo de visões de mundo sociais e políticas mais amplas” (2017, p. 8). Assim, o que ele fornece são descrições de quatro nações onde as ideologias políticas sobre governo e administração são refletidas na área da cultura, expressas na burocracia e na política cultural. Um defeito grave da estrutura de Mulcahy é o fato de ele não definir claramente o que quer dizer com “cultura pública”, nunca a distinguindo do conceito de “cultura política”. Daí se deduz que o que ele quer dizer com “cultura pública” é a expressão da ideologia política no domínio da política cultural. Evidentemente, examinar a “cultura pública” de uma nação pode ser uma lente importante para considerar a política cultural. Mas o que isso nos diz? Uma ideologia política libertária é expressa na política cultural americana por meio do uso de gastos tributários e apoio à iniciativa privada, no formato corporativo e sem fins lucrativos. Ao mesmo tempo, existem, nos Estados Unidos, uma burocracia cultural complexa e diversificada e gastos públicos substanciais, além dos gastos com impostos, para a arte e a cultura. Concentrar-se nos gastos tributários como algo exemplar do sistema americano não põe o sistema de política cultural em foco; na verdade, torna-o menos fácil de discernir. Uma política cultural comparativa eficaz deve ser capaz de descrever ideologias diferentes em ação no processo de formação e desenvolvimento das próprias políticas e de caracterizar os seus sistemas como são, e não como aparentam ser quando vistos através das lentes da ideologia.

O trabalho do Mulcahy não oferece uma visão crítica, mas as pessoas gostam de um sistema em que a ideologia política e a administração parecem se encaixar bem, considerando-o um exemplo de como um sistema deve ser. Estamos dispostos a ignorar a ma-

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neira como ele realmente funciona para vê-lo como mecanismo bem-sucedido que incorpora elegantemente tais dimensões. Isso nos diz muito sobre o poder e a influência de arquétipos.

Considerem-se os três arquétipos de política cultural nacional mais poderosos: França, Inglaterra e Estados Unidos. As diferenças fundamentais entre eles decorrem de suas diferentes ideologias políticas ascendentes sobre quem melhor detém a autoridade: um governo versus um grande lorde10 versus uma associação, como Tocqueville colocou a questão. As formas relacionadas de organização burocrática e instrumentos políticos nesses arquétipos parecem se encaixar com as ideias sobre autoridade como algo natural e autoexplicativo (figura 7).

Figura 7: Os arquétipos de política cultural por autoridade, forma de administração e instrumento característicos

Fonte: elaboração própria.

Se ideias sobre autoridade pudessem explicar as diferenças administrativas, esperaríamos encontrar formas administrativas distintas em lugares onde há ideias distintas sobre autoridade e vice-versa. Será que esse é o caso? A Noruega tem ideias distintas sobre a descentralização da autoridade, e sua burocracia cultural é diversamente estratificada, ou seja, caracteriza-se por uma grande autonomia intergovernamental segundo a dimensão vertical. Não está claro se isso faz dela uma forma distinta de administração cultural. Talvez sim. A Alemanha tem uma forma distinta de burocracia cultural em nível federal, o Comitê de Cultura e Questões Midiáticas, cujas responsabilidades se limitam a compromissos de política cultural internacional e a promover comunicações nacionais e intercâmbio de informações. Mas as ideias ale -

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França Inglaterra EUA Autoridade Centralizado Controle governamental parcial Delegado Administração Ministério Quango [nulo] Instrumento [nulo] Subsídio/doação Gastos fiscais

mãs sobre autoridade (de modo diverso da organização política) são bastante estatistas. E o National Endowment for the Arts americano evoluiu para atuar de forma semelhante à burocracia federalista alemã, no sentido de que muitas de suas funções se alteraram para mediar comunicações e ações nacionais,11 enquanto a delegação ao setor sem fins lucrativos permanece a principal orientação da autoridade cultural nos Estados Unidos. Sendo assim, embora comparar ideias sobre a autoridade ofereça alguns bons insights sobre dimensões comparativas generativas, isso não parece nos fornecer uma boa explicação – ou teoria – sobre por que os sistemas de política cultural diferem.

IDEOLOGIAS CULTURAIS E ARQUÉTIPOS DE POLÍTICA CULTURAL (O LADO BOM)

A discussão até aqui sugere que os arquétipos de política cultural não são tão bons para nos mostrar como os sistemas nacionais de política cultural realmente são ou por que eles são como são. Os arquétipos foram considerados úteis para apontar uma dimensão analítica fundamental para a comparação (ou seja, o grau de planejamento) e podem continuar a ser úteis para o estudo comparativo de políticas culturais, porque são muito bons para nos informar sobre como as nações pensam suas políticas culturais (se e quando as pensaram) ou, talvez mais precisamente, sobre como desejam que seus sistemas nacionais de política cultural sejam vistos. Não há dúvida de que tais desejos se relacionam com ideias gerais sobre o governo. E eles também têm a ver, inevitavelmente, com as ideias das pessoas a respeito da cultura. As três nações arquetípicas citadas, por exemplo, são caracterizadas por três ideologias culturais muito diferentes, isto é, conjuntos de premissas relativamente pressupostas e sistemáticas (Parmentier, 2016) sobre a cultura e sua relevância e impacto na moral, na sociedade e na política. Cada uma dessas ideologias culturais pode ser o tema de uma longa investigação. Aqui, vou simplesmente esboçá-las e relacioná-las diretamente às ideias sobre o valor público da cultura (já que esta é uma discussão sobre políticas públicas e, portanto, o que é público a respeito da cultura é o mais importante aqui).

A ideologia cultural francesa pode ser caracterizada como nacionalista: o valor público da cultura está enraizado na sua capacidade de promover a identificação com a nação. O melhor contexto para reconhecer o caráter profundamente nacionalista da ideologia cultu-

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ral da França se conserva nas atitudes e ideias sobre a língua francesa. Ela é vista pelos franceses como a mais alta personificação da cultura de seu país (Schiffman, 1996, p. 80). A clareza, a elegância e o refinamento da linguagem são considerados características bem… francesas. Acredita-se que seja a língua mais adequada ao pensamento racional e à comunicação. É considerada um instrumento de civilização; falar francês leva o falante à irmandade universal de esclarecimento, igualdade e liberdade. Desde 1673, a Académie Française estabeleceu e fez cumprir os padrões da língua francesa em nome do Estado, dos cidadãos franceses e de todos os francófonos. O francês tornou-se o idioma oficial para todas as ações governamentais em 1787. Ensinar o francês-padrão e usá-lo como língua de instrução nas escolas fazia parte da agenda revolucionária de longo prazo, e a política linguística colonial dos séculos xix e xx também seguia nessa direção. A ideologia cultural francesa é uma extensão dessa forma central. Para os franceses, existe um padrão cultural, e esse padrão reflete o que é ser francês; além disso, tal padrão pode ser identificado e fixado, e é esse padrão fixo que o Estado deve manter e promover. A cultura está no centro do modo como a França se entende como nação, e o cultivo atento e coordenado da cultura é, portanto, prioridade do governo.

O valor público da cultura na Inglaterra decorre da sua capacidade de promover a comunhão; isso faz parte da ideologia cultural da Commonwealth – uma ideia complicada e indescritível. Em essência, a ideia é a de que, embora as pessoas tenham direitos essenciais e diferenças irreconciliáveis, elas podem encontrar bens mútuos em torno dos quais concordam e se unem. No argumento clássico de Thomas Hobbes sobre a Commonwealth, o que pode uni-los é a paz que conquistam ao se submeter ao governo de um soberano. Na ideologia cultural da Commonwealth, o que pode unir diversas pessoas é o reconhecimento mútuo do padrão de excelência incorporado na cultura inglesa. O uso do inglês como língua franca é visto como uma expressão dessa ideia. Formas culturais apresentadas na abertura dos Jogos Olímpicos de 2012 – críquete, Shakespeare, Blake, James Bond, literatura infantil, os Beatles – são os principais exemplos dessa ideologia: tanto definitivamente britânicas quanto absolutamente globais. Outro exemplo é o Man Booker Prize, concedido à literatura em inglês publicada no Reino Unido. O prêmio foi fundamental para estabelecer a categoria “Commonwealth Literature”, ou seja, literatura escrita em inglês por escritores das ex-colônias. Salman Rushdie escreveu sobre a ideia de uma literatura da Commonwealth ser

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uma quimera, e em termos muito precisos. É claro que a palavra passou a significar uma criatura irreal e monstruosa da imaginação; mas você deve se lembrar que a quimera clássica é um tipo de monstro bastante especial. Tem a cabeça de leão, corpo de bode e cauda de serpente. Ou seja, só poderia existir em sonhos, sendo composto de elementos que não poderiam ser reunidos no mundo real. (1992, p. 63)

É claro que a Commonwealth of Nations [Comunidade das Nações] é um órgão transnacional real, e a cultura é central para sua visão e atividades. Não é por acaso que a ideia de comunidade é uma raiz do Arts Council, tal como um símbolo da política cultural inglesa: a mudança decisiva do Império para a Commonwealth aconteceu exatamente no momento em que o Arts Council foi criado.

A ideologia cultural dos Estados Unidos, por sua vez, pode ser caracterizada como aquela que vê a cultura como um mercado de ideias. É importante entender essa ideologia de maneira distinta do neoliberalismo. Seus princípios estão bem expressos no texto de Thomas Jefferson, Virginia Statute of Religious Freedom, de 1786:

Considerando que Deus Todo-Poderoso criou a mente livre; […] obrigar um homem a fornecer contribuições em dinheiro para a propagação de opiniões em que ele não acredita é pecaminoso e tirânico; [e] permitir que o magistrado civil intrometa seus poderes no campo da opinião e restrinja a profissão ou propagação de princípios sob a suposição de sua má tendência é uma falácia perigosa que imediatamente destrói toda liberdade religiosa, porque ele é, naturalmente, juiz dessa tendência e fará de suas opiniões a regra de julgamento e aprovará ou condenará os sentimentos dos outros apenas quando eles se enquadrarem ou diferirem dos seus próprios […]. A verdade é grande e prevalecerá se for deixada a si mesma, porque ela é a antagonista adequada e suficiente do erro, e nada tem a temer do conflito, a não ser por interposição humana sem suas armas naturais, a livre argumentação e o debate, com os erros deixando de ser perigosos quando se permite livremente contradizê-los.

Aqui, crenças, opiniões e gostos são vistos como questões naturais e fundamentais da consciência individual. Como tal, eles devem circular e prosperar ou morrer livres da interferência do governo. A famosa metáfora do mercado foi introduzida por Oliver Wendell

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Holmes, juiz da Suprema Corte, em uma decisão sobre liberdade de expressão em 1919:

Mas quando os homens perceberem que o tempo perturbou muita fé combatente, eles podem vir a acreditar, ainda mais do que acreditam nos próprios fundamentos de sua conduta, que o bem final desejado é mais satisfatoriamente alcançado pelo livre comércio de ideias – que o melhor teste da verdade é o poder do pensamento de ser aceito na competição do mercado e que a verdade é a base sobre a qual seus desejos podem ser realizados com segurança.12

O mecanismo administrativo que é apresentado como modelo ou símbolo de uma política cultural nacional arquetípica diz algo sobre a ideologia cultural que ali opera. O Ministério da Cultura francês exemplifica a ideologia cultural nacionalista francesa porque expressa a ideia de que cultura, Estado e nação são uma coisa só. O Arts Council exemplifica a ideologia cultural da Commonwealth britânica porque expressa a ideia de que, através da cultura, outros podem compartilhar a mesma “boa sorte” dos britânicos (elites).13 Os gastos tributários exemplificam a ideologia americana do mercado de ideias porque refletem a noção de que os recursos que um conceito ou uma expressão cultural ou artística podem reunir correspondem ao seu valor público (para a lógica complexa e pragmática subjacente a essa ideia, ver Blasi, 2004). As formas administrativas expressam ideais culturais; são apresentadas como explicação das razões por que a cultura é importante e como deve ser governada; além disso, explicam as razões por que determinada abordagem da política cultural é melhor ou mais adequada, de acordo com uma compreensão particular da cultura. Elas podem ter pouco a ver com os tipos de administração cultural que predominam no trabalho que ocorre de fato. Em vez disso, têm mais a ver com os limites ou horizontes estabelecidos para uma política cultural. Às vezes, a ideologia política, a administração cultural e a ideologia cultural de uma nação se alinham muito bem; às vezes, não. Em lugares onde esse alinhamento é forte, encontramos um arquétipo.

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UMA IDEOLOGIA CULTURAL FUSIONISTA E SUA EXPRESSÃO ADMINISTRATIVA

Embora os arquétipos de política cultural não possam nos dizer muito sobre a forma real da administração cultural, algo particularmente útil para reconhecer que as relações arquetípicas entre a forma de administração e a ideologia cultural existem é a proposição de que outras ideologias culturais tendem a ressaltar outras formas administrativas – formas interessantes de se analisar com mais profundidade, tanto para quem estuda política cultural quanto para quem está engajado na sua formulação.

A título de exemplo, no Brasil, os principais equipamentos e programas culturais públicos são fornecidos pelo Sesc (Serviço Social do Comércio), uma entidade híbrida do terceiro setor que cobra uma taxa sobre a folha de pagamento de empresas de varejo e serviços e é financiada pelo governo para contribuir com a qualidade de vida dos trabalhadores do setor. O Sesc foi criado em 1946 e oferece ginásios locais, bibliotecas, teatros, galerias e programação cultural e esportiva em cidades de todo o Brasil. (Caso essa descrição esteja sugerindo um tipo de imagem errada: meus alunos americanos, que foram informados de que estaríamos visitando uma “instalação cultural da agência de serviço social”, ficaram literalmente boquiabertos com o grande e belo centro cultural de um Sesc que visitamos em São Paulo.)

O Sesc atua em todos os estados do país (atendendo a cerca de 2,2 mil municípios em todas as regiões); cada estado é livre para traçar suas próprias estratégias de atuação no âmbito da instituição com base nas demandas regionais. No total, são 509 centros de atividades e 129 unidades móveis, que incluem hospedagem, sede cultural e educacional e centro médico. Conta com 232 salas de cinema, 249 auditórios, 71 teatros, 197 galerias, 265 bibliotecas e 56 bibliotecas móveis, ostentando a maior rede privada de teatros e bibliotecas do país. O Sesc também pode se adaptar aos espaços públicos e atuar em outras instituições por meio de parcerias. Esse sistema, aliado ao grande número de unidades, é a base da perspectiva de longo alcance do Sesc. Considerando os diversos segmentos que atende (diferentes faixas etárias e estratos sociais), sua cobertura geográfica e a vasta gama de atividades oferecidas, pode-se certamente dizer que o público do Sesc é tão amplo quanto seu espectro social. Dados de 2013 mostram

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que a instituição ultrapassou os 5,9 milhões de inscrições e credenciamentos por ano, somando o notável número de 742,1 milhões de pessoas atendidas. (Ribas, 2015)

Esse arranjo administrativo é uma miscelânea de instrumentos políticos baseados em impostos, que se concentram em patrocínios corporativos, e em posteriores expansões da administração cultural do setor público e iniciativas políticas implementadas sob o governo Lula (2003–10).

Os mecanismos administrativos aqui tendem a ser integrados verticalmente e segmentados pelo setor industrial. Eles parecem combinar tanto com as pretensões de planejamento dos governos autoritários de direita quanto com as dos governos socialistas. A política cultural composta é quase assombrosa na maneira como reflete a ideologia cultural fusionista ou mista brasileira, em que a cultura híbrida é unificada dentro da instituição social central do patriarcado (ideias fundamentadas no trabalho muito contestado, mas igualmente influente de Gilberto Freyre sobre a identidade nacional brasileira). Trata-se de um caso que se identifica fortemente com outros exemplos nacionais de sistemas altamente centralizados e intencionalmente híbridos (a China vem logo à mente). Ele está pronto para os arquétipos.

CONCLUSÃO

O que é um arquétipo? Sem abusar do tecnicismo, uma boa maneira de pensar sobre o conceito é a seguinte: enquanto um tipo é uma regra geral que estabelece exemplos individuais que de alguma forma pertencem a um determinado domínio ou conjunto, um arquétipo é um exemplo dessa generalização. Onde tipos são abstratos, arquétipos são concretos. Eles são um exemplo ideal de um tipo. Como tal, um arquétipo implica como um tipo deveria ser. Este “deveria” é importante. Arquétipos representam uma afirmação: eles afirmam representar o que define um tipo, o que é essencial para ele, quais de seus domínios ou conjuntos de regras são os mais importantes. Eles podem ser ferramentas metodológicas úteis, principalmente em comparações entre tipos. Como os fenômenos são extremamente complexos e os tipos abstratos abrangem toda uma gama de diversos exemplos concretos, pode ser útil ter um exemplo concreto de um tipo para comparar com exemplos de outros tipos.

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É importante que os pesquisadores de políticas culturais conheçam a opinião das pessoas sobre como uma política cultural deveria ser. Arquétipos podem nos falar sobre isso, pois definem políticas culturais, embalam mecanismos de administração cultural com algumas características de determinada nação e explicam por quais motivos nós encontramos ali tais mecanismos administrativos específicos. Eles naturalizam as associações e as fazem parecer necessárias. As ideologias culturais são essenciais para essa lógica. Legisladores, administradores culturais, construtores de nações, artistas e ativistas culturais estão todos engajados nesse trabalho. No entanto, vai ser muito difícil para nós, como analistas e estudiosos, ver e entender o que eles estão fazendo se estivermos fazendo o mesmo. Como arquétipos contêm em si interpretações e afirmações, eles não são, como vimos, boas ferramentas para análise. Em geral, podem impedir uma eficaz pesquisa de política cultural comparativa por atrapalhar o desenvolvimento de comparações baseadas em variáveis claramente definidas.

Em sua forma mais pura, a pesquisa transnacional é quase experimental em projetos com ênfase na explicação. Nessa visão, a expansão da pesquisa para incluir vários países é uma estratégia consciente que visa ajudar a explorar a relação entre as variáveis. Variáveis entre os países podem ser testadas quanto ao seu poder explicativo. Mas a escolha dos países segue em vez de preceder a escolha da variável, porque os países são um dispositivo para estudar o comportamento das variáveis, e não o contrário. Em um projeto de pesquisa quase experimental cujo objetivo é a explicação, a escolha dos casos a serem considerados deve ser informada pelas variáveis cujos efeitos deverão ser testados. (grifos nossos, Schuster, 1987, p. 7)

Usar arquétipos como ferramenta para analisar a administração cultural leva ao mal-entendido sobre até que ponto os mecanismos administrativos – incluindo instrumentos políticos e formas de organização burocrática – vinculam-se a determinadas tendências políticas ou tradições de apoio à cultura; além disso, leva também a uma análise insuficiente aos motivos de essa ligação acontecer, quando de fato acontece. Uma vez que o propósito do estudo comparativo é analisar e explicar tais associações, isso se torna uma séria desvantagem. Além disso, os arquétipos de política cultural sempre se referem a nações, e isso constitui um problema. Identificar um sistema

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de política cultural nacional e mostrar que suas dimensões política, administrativa e cultural se identificam fortemente umas com as outras é um projeto de construção da nação e peculiar à ideia de associar uma cultura a um Estado para formar uma nação. As dimensões-chave da formulação de políticas culturais e administração cultural são internacionais, locais e autóctones. Essas dimensões são facilmente ignoradas ou mal compreendidas em um quadro comparativo que não dá valor à supremacia da nação, e que se restringe a arquétipos de política cultural no Ocidente/Hemisfério Norte. Em vez de servir como ferramenta analítica, os arquétipos devem ser objeto de análise, para nos ajudar a entender os quadros conceituais que moldam as políticas culturais na vida real. Esta discussão sugere vários caminhos para mais pesquisas nesse sentido. O grau de planejamento foi aqui identificado como uma variável válida para o estudo comparativo de políticas culturais. Como podemos explicar a variação nos graus de planejamento encontrados nas políticas culturais nacionais? Essa variação pode ser explicada pela ideologia de mercado, ideologia política, ideologia cultural ou por algum outro fator ou combinação de fatores? A construção da teoria exigirá o estudo de um conjunto mais amplo de nações do que foi considerado anteriormente, um conjunto que é constituído explicitamente para abranger a gama relevante de graus de planejamento (e não algum conjunto pressuposto de nações relevantes). Outro caminho é examinar se o que surgiu na literatura como um tipo de política cultural nórdica aparentemente distinta (ver Mangset et al., 2008) pode ser explicado pela existência de uma ideologia cultural nórdica igualmente distinta. Se não for, o que explica isso? Se a resposta for afirmativa, que instrumento de política cultural distingue esse tipo? Por fim, os pesquisadores de política cultural comparativa devem começar a identificar toda a diversidade de instrumentos e sistemas distintos de política cultural que refletem ideologias culturais distintas, para além daquelas da França, Inglaterra e Estados Unidos.

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Notas

1 Este artigo foi publicado no International Journal of Cultural Policy em 2019. Disponível em: doi: 10.1080/10286632.2019.1691175.

[N. do org.]

2 Mulcahy desenvolve sua estrutura em uma série de artigos. Escolhi o que considero o mais sintético e elaborado.

3 Embora essa definição de ideologia não esteja relacionada com a ideia marxista de “falsa consciência”, ela reconhece uma diferença entre o participante (emic) e as compreensões analíticas (etic). Além disso, vê as ideologias e seus objetos como fenômenos totalmente sociais, deixando espaço para a influência de poder, posição e ausência sistêmica ou conhecimento parcial na formação da ideologia. Muitos antropólogos linguísticos exploraram esse espaço (para uma discussão clássica, ver Irvine, 1989).

4 Um retrato mais completo substituiria a descentralização pelo federalismo e pela subsidiariedade como tipos reconhecidos e especificaria que esse espectro tem a ver com a centralização vertical (ou integração contra estratificação, ver Rosenstein, 2018).

5 Uma forma de enquadrar de modo satisfatório a dimensão administrativa é pensar em tipos de centralização ao longo do plano horizontal (ou concentração contra fragmentação, ver Rosenstein, 2018). Uma burocracia cultural pode estar concentrada em um ministério, organizar algumas agências culturais em um conjunto enquanto deixa outras fragmentadas, ser totalmente fragmentada, altamente descentralizada através da incorporação de um quango com controle governamental parcial, ou ainda totalmente descentralizada, delegando certas funções à sociedade civil.

6 Chartrand e McCaughey não oferecem um exemplo arquetípico de um Estado arquiteto. O único exemplo que usam para ilustrar essa configuração é a França, e o arquétipo é comumente entendido como representativo do país. No entanto, ali, “padrões de excelência artística” são totalmente incorporados na formulação e na administração da política cultural institucional. Em sua breve discussão sobre a França, Chartrand e McCaughey

parecem sugerir que processos altamente institucionalizados para avaliar e arregimentar a excelência artística representam uma espécie de “padrão comunitário” que mina o “apoio à criatividade”.

7 Para uma explicação completa sobre as diferenças entre esses instrumentos, ver Rosenstein (2018). Em resumo, a provisão pública da cultura é encontrada quando a infraestrutura cultural ou os programas culturais fazem parte do setor público e são usados para atender às necessidades culturais. Às vezes, isso é chamado de “provisão direta”. A fundação da provisão pública é a posse do material ou da infraestrutura cultural pelo setor público. Na provisão pública, o setor público também governa os recursos culturais.

A administração de terceiros pode até estar em evidência, mas o governo continua sendo o principal formulador de políticas, mantendo sua autoridade de governança. O governo também pode suprir as necessidades culturais pagando dinheiro público sob a forma de subsídio a empresas sem fins lucrativos e empresas culturais comerciais, ou ainda destinando recursos para outra parte do governo (como nos subsídios intergovernamentais, concedidos a agências culturais, com parcerias federais e estaduais nos eua). O subsídio é diferente da provisão pública porque o provedor é independente do governo em sua propriedade ou termos de incorporação, governança e administração, e mantém sua própria autoridade sobre a provisão da cultura.

8 A ideia de cultura política vem de Almond, G.; Verba, S. The Civic Culture: Political Attitudes and Democracy in Five Nations, 1963.

9 Deixo de lado a tipologia de formas de financiamento cultural de Mulcahy porque a sua discussão é mínima e alguns de seus tipos parecem erroneamente aplicados. Por exemplo, Mulcahy associa a França a subsídios (2003, p. 97), embora a política cultural francesa se caracterize pelo instrumento político de provisão pública direta.

10 Isso, claro, é profundamente contestado. No entanto, é distintivo e característico. Para

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uma justificação da interpretação da autoridade cultural com controle governamental relacionado a grandes lordes, ver Williams (1979).

11 Embora o nea mantenha algumas funções de doação, sua comissão não se envolve com elas.

12 Em uma convincente análise da metáfora de Holmes, Blasi argumenta que “as características dos mercados proeminentes são aquelas que também figuram com destaque em governança eficaz, investigação científica e seleção natural: abertura a novas capacidades, sede por informação melhor, capacidade de resposta a

condições de mudança, incentivo à inovação e iniciativa, punição da rigidez, da lentidão, da falta de consciência e da falha em auditar. Quaisquer que sejam seus limites e deficiências, os mercados livres são uma força poderosa contra a inércia. Assim como a liberdade de expressão” (2004, p. 45).

13 É assim que Moggridge, parafraseando Alan Peacock, descreve o argumento de John Maynard Keynes para o apoio estatal à arte (2005, p. 546).

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Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom

JASON POTTS é economista especializado em evolução econômica, mudança institucional e tecnológica, inovação e natureza do crescimento econômico de longo prazo. Integrou o ARC Centre of Excellence for Creative Industries and Innovation (CCI), da Queensland University of Technology, em Brisbane, na Austrália.

STUART CUNNINGHAM foi chefe do CCI. É especialista em estudos culturais e de mídia e política de indústrias criativas da Queensland University of Technology.

Quatro modelos de indústrias criativas1

INTRODUÇÃO

“Indústrias criativas” é uma nova definição analítica dos componentes industriais da economia em que a criatividade é um insumo, e o conteúdo ou propriedade intelectual é o resultado.2 A definição foi introduzida no modelo do Department for Digital, Culture, Media and Sport (dcms) de 1998 e adotada em diversos documentos de mapeamento por outros países, que também buscam estimar o tamanho e o crescimento desse setor e formular novas políticas.3 Assim, as indústrias criativas passaram a ser representadas como um conjunto significativo e em rápido crescimento,4 ou seja, um setor importante para a atenção de políticas.

O suposto propósito desses documentos de mapeamento foi estimar o “significado” das indústrias criativas para a economia moderna a fim de reorientar o apoio à política econômica de acordo com esse significado. 5 Ao fazê-lo, no entanto, esses estudos destacam um ponto importante: o valor econômico das indústrias criativas (ics) pode se estender para além da produção manifesta de bens culturais ou do emprego de pessoas criativas, tendo um papel mais geral ao impulsionar e facilitar o processo de mudança em toda a economia, como evidenciado por seus parâmetros dinâmicos e pelo grau de incorporação na economia mais ampla. De fato, pode até acontecer que o “significado dinâmico” das indústrias criativas seja maior do que seu “significado estático”. Em caso afirmativo, isso tem implicações imediatas sobre a política para o tipo de intervenção apropriada para as ic s. Este artigo procura

Quatro modelos de indústrias criativas

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responder à seguinte pergunta: qual a relação dinâmica entre as indústrias criativas e o resto da economia?

Melhor do que procurar saber o tamanho absoluto ou a significância econômica estática de um setor, seria então indagar sobre seu desempenho relativo quanto à dinâmica econômica.6 Os quatro modelos presentes neste artigo são as respostas possíveis a essa pergunta: (1) negativo, (2) neutro, (3) positivo e (4) emergente. Cada uma dessas possibilidades se transforma em um modelo de política diferente: em (1) é necessário um subsídio de bem-estar; em (2), uma política-padrão da indústria; em (3), uma política de investimento e crescimento; e em (4), uma política de inovação. Estruturas de políticas muito diferentes partem, pois, de cada um dos quatro modelos dinâmicos básicos de modo a relacionar as ics com o resto da economia. Este artigo delineia tais modelos e reúne uma amostra de evidências existentes para iniciar o seu processo de classificação.

Começamos traçando as quatro relações primárias entre as indústrias criativas e o resto da economia. Explicamos a relação de cada modelo com diferentes fundamentos teóricos, o que se espera observar se cada modelo for verdadeiro e a estrutura de política apropriada em cada caso. Usando vários documentos de mapeamento, formulamos a consideração inicial de um conjunto de amostras de dados conectadas aos quatro modelos. Entretanto, este artigo não tenta fazer uma análise abrangente. Para tanto, seriam necessários uma abordagem muito mais rigorosa de modelagem, dados e análise estatística. O que pretendemos apresentar aqui é apenas uma teoria das categorias de modelos envolvidos e uma ilustração de como diferentes tipos de dados podem ser aplicados a eles. Isso nos parece o primeiro passo necessário (antes da abordagem mais rigorosa) em direção ao desenvolvimento da economia das indústrias criativas.

Contudo, ao fazê-lo, encontramos imediatamente pelo menos evidências superficiais que apoiam os modelos 3 e 4. Embora sinalizada a necessidade de mais trabalho teórico e empírico, isso também aponta o valor potencial de uma abordagem baseada na inovação para as indústrias criativas e para a política cultural. Assim, propomos esses quatro modelos como ponto de partida para uma discussão mais aprofundada da interseção entre a análise econômica da arte e da cultura, por um lado, e a análise moderna do crescimento econômico (e da política de crescimento), por outro.

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Jason Potts e Stuart Cunningham

QUATRO MODELOS DE INDÚSTRIAS CRIATIVAS

Vamos definir o valor econômico de toda a economia como y e o valor econômico das indústrias criativas como iC, levando à seguinte equação mestra:7

iC = A.y

Isso diz apenas que as indústrias criativas compreendem uma determinada fração (A) de toda a atividade econômica. Em um modelo estático, a estimativa é tratada como a “significância” do setor. Na Austrália, A é estimado em 0,045.8 A estimativa de A tem sido uma saída central dos documentos de mapeamento das indústrias criativas, começando com o dcms (1998) e, desde então, replicado pela Austrália, Nova Zelândia e União Europeia, entre outros.9 Todas as estimativas revelam que as indústrias criativas são de fato “economicamente significativas” (no sentido estático). Além disso, elas são consideradas comparáveis a outros setores de alto perfil em sua contribuição para renda, emprego e comércio (a agricultura, por exemplo, normalmente tem um A com valor de 0,03). Por implicação, argumenta-se que as ics merecem a atenção de políticas (e apoio) proporcional a essa significância.

O problema com essa linha de raciocínio, no entanto, é que ela não tem base na teoria econômica. Dar atenção a uma política do setor industrial na proporção da parcela da renda (ou empregos, ou divisas) que ela gera é uma questão de conveniência política, não de lógica econômica.10 Isso é sempre verdade em qualquer argumento baseado em equilíbrio (estático). De fato, é somente quando se considera o fracasso de uma indústria que o significado político e econômico se alinha de maneira estática (devido às distorções proporcionais e ramificadas em outros setores). Mas é possível supor que a interação das indústrias criativas com a economia agregada seja positiva, e não negativa. Assim sendo, o significado político-econômico básico pode não ser mais válido. Em vez disso, o significado econômico precisa ser reconstruído. É isso que o enfoque dos quatro modelos procura fazer, alterando-o para uma abordagem dinâmica da significância. Nela, a análise econômica da relação entre um setor da indústria e o resto da economia é construída em relação ao inter-relacionamento dinâmico, que podemos especificar examinando os momentos de ordem superior de nossa equação mestra: especificamente, como uma mudança na atividade da ic (δic) afeta a atividade econômica agregada (δy).

Quatro modelos de indústrias criativas

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Nosso axioma inicial é que a mudança em iC afeta y de alguma forma (δic ↔ δy). Os quatro modelos propostos são o conjunto de possíveis inter-relações dinâmicas em que uma mudança na atividade da ic tem um efeito negativo (modelo 1), neutro (modelo 2) ou positivo (modelos 3 e 4) sobre a economia. Isso é evidentemente simplista, mas sugerimos que a leitura oferece um ponto de partida útil para orientar tanto a análise empírica quanto a discussão política, pelo fato de ser claro e explícito em conformidade a essa relação hipotética e seu suporte probatório.

Por conveniência analítica, também assumimos que diC/dy = 0, o que significa que o crescimento econômico não afeta as ics de forma diferente do que ocorre com outras indústrias, ou, tecnicamente, que a elasticidade de renda é unitária.11 Suspeitamos fortemente que não seja este o caso, mas sim que o crescimento da renda afeta desproporcionalmente a demanda pela produção das ics, embora não convenha considerar isso aqui.12 A política é analisada para determinar se a mudança nas indústrias criativas altera o bem-estar utilitário agregado (ou utilidade, u). Novamente, supomos que du/diC ∈ r, de tal modo que uma mudança na ic pode aumentar, diminuir ou deixar a utilidade inalterada. Essa formulação de modelagem, ainda que abstrata, nos permite discriminar abstratamente entre diferenças básicas, em suposições teóricas, e respostas políticas.

Modelo 1: o modelo de bem-estar

Neste modelo, supõe-se que as indústrias criativas tenham um impacto líquido negativo sobre a economia, de modo que consumam mais recursos do que produzam. Ele destina-se especificamente àqueles que veem pouco benefício analítico na discriminação entre indústrias criativas e culturais (por exemplo, Pratt, 2005). Uma afirmação dinamicamente equivalente é que a taxa de crescimento da produtividade total dos fatores (tfpIC) é menor nas ics do que em outros setores (tfpY), como suposto por Baumol e Bowen (1966). Neste modelo, as ics são essencialmente um setor de “bens de mérito” que produz mercadorias culturais que melhoram o bem-estar (du/diC > 0), mas que só são viáveis economicamente com a transferência de recursos do resto da economia (dy/diC < 0). Além disso, os transbordamentos positivos de conhecimento associados à produção que aumentaria a tfpY são excluídos.

Hipótese 1: dy < 0, du > 0 diC diC

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No modelo 1, as ics são um dreno líquido na economia, embora valha a pena ter esse dreno, porque seu efeito geral é positivo para o bem-estar. Isso se deve à produção de mercadorias de alto valor cultural (du /diC > 0), mas baixo valor de mercado (dy/diC < 0), pois a produção é inerentemente não lucrativa, uma vez que as curvas de demanda estão sempre abaixo das curvas de custo. A justificação econômica para tal restituição deve, em última análise, basear-se em um argumento de falha de mercado, com políticas adequadamente calibradas para estimativas desse valor não mercantil. No entanto, saber se a falha de mercado é uma justificação adequada para a intervenção não é uma questão que precisa nos preocupar aqui; é suficiente reconhecer que, se dy/diC < 0, a intervenção política só pode ser justificada se também for verdade que du/diC > 0. Se o modelo 1 for verdadeiro, as determinações de políticas devem centrar-se na realocação de renda e recursos ou na manutenção de preços para proteger um ativo inerentemente valioso (ou seja, a produção cultural), que está natural e continuamente sob ameaça em uma economia de mercado.13

É amplamente aceito por estudiosos da economia da cultura (por exemplo, Throsby e Withers, 1979, e Throsby, 1994), e apoiado por uma série de estudos de avaliação fora do mercado (ver, por exemplo, Towse, 1997, 2003), que du/diC é, em geral, positivo. Trata-se de um resultado não surpreendente e edificante, que está de acordo com a intuição. Além disso, não é inconsistente em relação às concepções econômicas do homem econômico racional (Frey, 2001; Dopfer, 2004). Sendo assim, vamos considerar o sinal positivo como evidência e nos concentrarmos, em vez disso, no que significa dizer que dy/diC é negativo. Especificamente, significa que o crescimento das ics vem à custa do crescimento econômico agregado, já que “o mercado” não deseja o crescimento, mas deve ser obrigado a apoiá-lo por meio de transferências. A evidência para o modelo 1 pode, portanto, acumular-se de várias maneiras, incluindo: altos níveis e taxas de lucro negativas entre as empresas das ics; baixa produtividade total dos fatores (tfpIC < tfpY); renda persistentemente menor para fatores de produção das ics em comparação com outras indústrias; e indicações variadas de que a viabilidade econômica das organizações de atividades dentro das indústrias criativas depende determinantemente das transferências de recursos do resto da economia para manter os preços, a demanda ou a oferta.

Se o modelo 1 for verdadeiro, espera-se observar não apenas um setor economicamente estagnado ou de baixo crescimento, mas também um setor com níveis de desempenho mais baixos (por exemplo, retorno sobre o investimento, receitas etc ). Tal detalhamento permite

Quatro modelos de indústrias criativas

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múltiplas oportunidades para avaliação empírica. Esta é, na nossa opinião, uma indagação empírica interessante a ser feita novamente, pois a verdade implícita do modelo 1 é quase axiomática na área da economia da cultura, em que poucos contestam a suposição implícita de renda abaixo da média ou de crescimento da produtividade.14

Modelo 2: o modelo normal

O modelo 2 difere do modelo 1 ao permitir que as ics não sejam retardatárias econômicas nem fornecedoras de bens especiais de maior significado moral, mas antes efetivamente “apenas mais uma indústria”: na verdade, a indústria do entretenimento ou lazer. Neste modelo, que é a configuração-padrão na maioria das análises econômicas, uma mudança no tamanho ou valor das ics tem efeito proporcional (embora estruturalmente neutro) em toda a economia. Além disso, ele pressupõe que o impacto no crescimento também é neutro, de modo que as ics em conjunto não contribuiriam para a mudança tecnológica, inovação ou crescimento da produtividade nem mais nem menos do que a média de outros setores.15

Este modelo não argumenta que as ics não têm efeito sobre a renda, produtividade ou bem-estar, pois isso é trivialmente falso; argumenta que seu efeito está no mesmo nível de todos os outros setores – de tal forma que tfpIC = tfpY. De fato, é isso que a análise econômica usual prevê com base na substituição competitiva de recursos em uma economia baseada no mercado para obter retornos equivalentes na margem. Em outras palavras, a teoria econômica usual prevê o modelo 2, no qual as ics são normalmente competitivas e, portanto, não especiais.

Em caso afirmativo, isso implica que o benefício marginal de bem-estar do redirecionamento de recursos baseado em políticas para esse setor é zero no agregado. Ou seja, não há ganhos de bem-estar econômico para tratamento especial de políticas. Isso pressupõe implicitamente que os bens culturais/criativos são “bens normais”, no sentido de que, à medida que variam de preço relativo, os consumidores racionais os substituiriam por bens de outros setores para igualar sua utilidade marginal. Nesse caso, uma expansão do setor de ic não teria nenhum benefício de bem-estar agregado distinto da expansão de qualquer outro setor.

Hipótese 2: dy = 0, du = 0 diC diC

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O modelo não exclui a possibilidade de que a economia das indústrias criativas seja “especial” em relação aos níveis extremos de incerteza de demanda, modelos de receita de lei de poder, tendências ao monopólio, mercados de trabalho e direitos de propriedade complexos, problemas endêmicos de retenção, assimetrias de informação, mercados de fatores altamente estratégicos e assim por diante (por exemplo, Caves, 2000, e De Vany, 2004). Em vez disso, enfatiza que esses problemas de coordenação são eventualmente resolvidos sob condições competitivas, assim como as circunstâncias especiais de outros setores os levam a descobrir arranjos institucionais e estruturas específicas de coordenação.

O modelo 2 considera tais problemas como pertencentes ao domínio da gestão, além de oportunidades para empreendedores, mas, em última análise, insiste que eles não são diferentes dos problemas “especiais” de todos os outros setores, como os de energia ou turismo, que também têm características “interessantes” associadas à escala, coordenação, incerteza e redes, entre outros. O “modelo normal” conclui, assim, que as ics têm estatísticas da indústria comparáveis a outros setores.16 Dessa forma, elas devem exigir adequadamente o mesmo tratamento de políticas que outras indústrias. As ics, nessa visão, são apenas mais um membro da comunidade industrial e deveriam legitimamente exigir “assistência” idêntica à que é dada a outros. O reconhecimento da existência normal é suficiente, e a “significação” é imaterial. Em caso afirmativo, as ics não requerem tratamento especial de políticas, apenas a aplicação consistente dos mecanismos de políticas estendidos a outros setores. É como se o princípio da “nação mais favorecida”, da Organização Mundial do Comércio (omc), fosse aplicado à “indústria mais favorecida”, de modo que quaisquer privilégios concedidos a uma indústria devam automaticamente estender-se a todas. Nessa visão, o foco das políticas de ic não deve ser a realocação de recursos, mas sim o apelo por um tratamento consistente da política industrial (especialmente no que diz respeito ao movimento internacional de trabalho e propriedade intelectual).

A evidência do modelo normal viria da equivalência dos indicadores econômicos da ic com os de toda a economia na forma de competição e empreendimento normais. Para as partes industrialmente mais maduras da ic, como cinema, tv e mercado editorial, isso é certamente verdade, mas não o é para todos os meios de comunicação, como negócios baseados na internet e bens comuns que lidam especificamente com novas ideias. Tal diferença parece importante e, de fato, é a base do terceiro modelo, em que as ics facilitam o crescimento econômico.

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Modelo 3: o modelo de crescimento

O modelo 3 propõe explicitamente uma relação econômica positiva entre o crescimento das ics e da economia agregada, de tal forma que dy/diC > 0. Neste modelo, as ics são um motor de crescimento da mesma forma que a agricultura no início da década de 1920, a manufatura mais elaborada nas décadas de 1950–60 e a tecnologia da informação e comunicação (tic) nas décadas de 1980–90. Existem muitas explicações possíveis, embora todas constituam alguma variação da noção de que as ics introduzem novas ideias na economia que, na sequência, se infiltram em outros setores (por exemplo, novos designs), ou que as ics facilitem a adoção e a retenção de novas ideias ou tecnologias em outros setores (por exemplo, na tic).

A principal diferença do modelo 3, se comparado aos modelos 1 e 2, é a de que ele envolve ativamente as ics no crescimento da economia. Isso pode ocorrer de duas maneiras principais: do lado da oferta e do lado da demanda. A interpretação do lado da oferta enfatiza a exportação de novas ideias da ic para y. A interpretação do lado da demanda enfatiza como o crescimento em y causa um aumento proporcional na demanda por serviços da ic. Na prática, é extremamente difícil separar as duas forças sem recorrer a avançadas técnicas microeconométricas, que não são tentadas aqui devido às limitações de dados. O modelo 3 pode, portanto, ser verdadeiro, mas com diferentes implicações políticas, a depender de a ocorrência predominante da causalidade ser de ic para y – o modelo do motor de crescimento do lado da oferta – ou de y para ic – o modelo de indução do lado da demanda.

Hipótese 3: dy > 0, du > 0

diC diC

Em ambos os casos, a política deve tratar adequadamente as ics como um “setor especial”, não porque ele seja economicamente significativo em si, mas antes por potencializar o crescimento de outros setores. Isso pode plausivelmente levar à intervenção, porém, ao contrário do modelo 1, seu objetivo aparente é investir no crescimento econômico ou no desenvolvimento da capacidade para atender ao crescimento da demanda. Se o modelo 3 for verdadeiro, há um claro argumento econômico para redirecionar recursos, não apenas para o benefício das ics, como também para o bem de todos. As ics, nessa visão, são claras vencedoras a ser apoiadas.

A evidência para este modelo viria da associação das ics com o crescimento. Isso agregaria não apenas em empregos e commodities

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(como no modelo 2), como também em novos tipos de trabalho e novos tipos de mercadorias e serviços. O modelo 3 propõe as ics como motores de crescimento não por serem multiplicadoras de gastos operacionais, e sim por seu papel na adoção, retenção e absorção de novas ideias e tecnologias.

As ics seriam, pois, assumidas para criar novas indústrias e nichos de mercado e estabilizar e desenvolver indústrias existentes.

E, especificamente sem esse investimento contínuo, o crescimento econômico agregado sofreria. Isso é o oposto do modelo 1, em que o crescimento econômico sofre quando há tal investimento. O modelo 3, por sua vez, argumenta que as ics são boas para a economia porque introduzem e processam as novas ideias que impulsionam o crescimento econômico. Essa é a sua importância política, sobretudo como uma indústria de investimento, assim como o carvão e o aço no final dos anos 1900 e a tic no final do século xx. As ics são um motor de crescimento – e quanto mais, melhor.

Modelo 4: o modelo da economia criativa Os três primeiros modelos podem parecer exaurir as possibilidades analíticas. Entretanto, um quarto modelo também é possível como dimensão emergente. Em vez de pensar nas ics como subconjunto econômico que “impulsiona” o crescimento de toda a economia, tal como o faz o modelo 3, elas podem não ser caracterizadas como uma indústria, mas sim como um elemento do sistema de inovação de toda a economia.17

O modelo 4, portanto, rejeita a equação mestra estática inicial para uma dinâmica iC = A.y e δy t /δiC t. Em vez disso, ele altera o conceito das ics para um sistema de ordem superior que atua sobre o sistema econômico. O valor econômico das indústrias criativas, nessa visão, não se dá em relação à sua contribuição relativa ao valor econômico (modelos 1-3), mas devido à sua contribuição para a coordenação de novas ideias ou tecnologias e, portanto, do processo de mudança. Neste modelo, as ics não são especificadas meramente como indústria, e sim mais bem modeladas como um sistema complexo em evolução que deriva seu “valor econômico” da facilitação da evolução econômica. As indústrias criativas podem, assim, ser compreendidas como um tipo de empreendedorismo industrial que opera no lado do consumidor da economia. E, nesse caso, estamos lidando com um modelo evolutivo das indústrias criativas.

O modelo 4 é semelhante ao modelo 1, na medida em que arrisca um elemento de apelo especial. Especificamente, este é o mesmo

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modelo proposto para o efeito da ciência, educação e tecnologia na abordagem dos sistemas nacionais de inovação. 18 As indústrias criativas, segundo essa visão, originam e coordenam mudanças na base de conhecimento da economia. Consequentemente, elas possuem significado político crucial, não marginal.

Conforme o modelo, as ics têm significado e valor essencialmente dinâmicos em vez de estáticos. Cultura e ação criativa não são uma indústria propriamente dita, mas antes um mecanismo entre setores. Assim como a educação tecnológica e a ciência, as ics são vistas como componente inovador essencial da economia pós-industrial moderna e, com razão, fonte primária de vantagem comparativa e competitiva. A mudança nas ics produz, dessa forma, mudanças estruturais e não apenas operacionais na economia. Surgirão assim novas oportunidades e possibilidades cujo efeito de bem-estar não pode ser conhecido de antemão. A é a situação típica da evolução econômica como a geração, adoção e retenção da novidade genérica (Dopfer e Potts, 2008). De acordo com o modelo 4, as ics não impulsionam o crescimento econômico diretamente, como ocorre com um boom no setor de recursos primários ou no mercado imobiliário; de maneira distinta, elas facilitam as condições de mudança na ordem econômica. As ics, então, criam oportunidades. Se o modelo 4 for verdadeiro, as ics fazem parte do sistema de inovação, conduzindo e coordenando o processo de crescimento do conhecimento que sustenta a evolução econômica.19

Hipótese 4: dy indefinido, du aberto

A cultura é, de fato, um bem público, mas por razões dinâmicas, e não estáticas. Diferentemente dos museus ou das artes clássicas, que buscam o valor cultural por meio da manutenção do conhecimento passado, a ic encontra esse valor no desenvolvimento e adoção de novos conhecimentos. A evidência para o modelo 4 advém, pois, da regeneração contínua das indústrias existentes e do surgimento de novas indústrias em consequência da atividade da ic. Além do mais, isso deve ser um facilitador sistêmico da mudança estrutural e da adaptação em andamento em toda a economia.

O modelo 4, portanto, requer a observação da mudança estrutural em andamento e a consolidação em toda a economia, com atribuição catalisadora disso às operações da ic. Isso é difícil de testar, como se vê; por isso, a distinção dinâmica entre processos de crescimento (modelo 3) e processos evolutivos (modelo 4) é importante,

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diC diC

pois traz uma implicação mais radical: a possibilidade de mudança de políticas que tenham compromisso econômico com o bem-estar para outras voltadas à inovação.

Resumindo, esses modelos representam quatro modos possíveis de interação dinâmica entre as indústrias criativas e a economia (ic = a.y).

• No modelo 1, y impulsiona as ics por meio de transferência de recursos;

• No modelo 2, as ics são apenas mais uma indústria;

• No modelo 3, as ics impulsionam y por meio de transferência de conhecimento;

• No modelo 4, as ics promovem a evolução de y, que, por sua vez, faz as ics evoluírem.

Tem havido excessivas negatividade e positividade sobre as ics, assim como apelos à evidência (como revelado pelo dcms em 1998). O resultado é um pouco como o debate sobre mudanças climáticas, ou seja, a verdadeira questão se resume à veracidade dos respectivos modelos e à relação com os dados. A importância das indústrias criativas é a mesma que a das outras indústrias e requer rigor semelhante nas proposições básicas. Os dados sobre os quais as evidências podem ser construídas, no entanto, estão apenas começando a ser reunidos.

EVIDÊNCIA

Qual é a evidência atual?20 Nossa amostra preliminar de dados sobre crescimento diferencial no valor agregado da ic favorece predominantemente a conclusão prima facie de que os modelos 3 e 4 se ajustam melhor que os modelos 1 e 2. Entretanto, a variação substancial nas medidas de desempenho dentro das ics nos adverte que o que é estatisticamente verdadeiro para o agregado não é necessariamente verdadeiro para os subsetores. Por exemplo: patrimônio e artes cênicas parecem enquadrar-se no modelo 1; área editorial, ao modelo 2; conteúdo digital, ao modelo 3; e design e software, ao modelo 4. Salientamos que esse é um primeiro passo com uma nova metodologia; não se trata de uma conclusão. Contudo, também enfatizamos que esses achados tendem principalmente a apontar na mesma direção, ou seja, em direção a dinâmicas de crescimento (modelos 3 e 4), em vez de dinâmicas de bem-estar (modelo 1) ou dinâmicas equivalentes (modelo 2). A evidência atual aponta principalmente para o modelo de crescimento da ic

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EVIDÊNCIA COMPARATIVA DE CRESCIMENTO

Há uma série de dados agregados recentes sobre o impacto econômico das ics dos quais podemos inferir taxas de crescimento relativas. Recentemente, os dados das ics ficaram mais acessíveis. A pesquisa a seguir pode parecer incompleta, mas é superior às que eram realizadas há uma década, além de atualizada regularmente. Uma pesquisa atual de dados estará, por definição, desatualizada no momento de sua publicação, principalmente nesse setor.

A descoberta básica para Austrália, Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Europeia é a de que, entre 1996 e 2006, as ics, sob várias definições, cresceram a uma taxa mais rápida do que a economia agregada. Essa é a principal evidência da transformação estrutural impulsionada pelas ics, corroborando o modelo 3. Entre 2000 e 2005, as ics australianas cresceram duas vezes mais que a economia agregada.21 A Comissão Europeia constatou que o crescimento do setor cultural e criativo se manteve na Europa em 12%.22 Na Nova Zelândia, verificou-se que o valor agregado da ic vem crescendo recentemente a 8% ao ano.23 No Reino Unido, onde existem dados mais abrangentes, as ics registraram um crescimento de 5% em comparação ao crescimento real agregado do pib de 3%. As taxas de crescimento da ic são superiores a 1 em todos os lugares.

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País Austrália 2000–05 Nova Zelândia 1996–2001 Europa 1999–2003 Reino Unido 1997–2005 Valor agregado da Ic (% do PIb) 6 3,1 2,6 7,3 Crescimento do valor agregado da Ic 10,4 8 5,4 5 Crescimento do PIb 4 3,7 2,9 3 Taxa de crescimento da Ic 2,6 2,2 1,9 1,7 Crescimento do emprego na Ic 3,8 1996–2001 5 n/d 2 Crescimento do emprego nacional 1,9 1996–2001 3 n/d 1 Razão de crescimento do emprego na Ic 2 1996–2001 1,6 2
Tabela 1

As estimativas da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (ompi) para as indústrias baseadas em direitos autorais (copyright based – cb) também mostram crescimento do valor agregado e do emprego a taxas significativamente mais altas do que o do pib.24

Tabela 2

E embora existam poucas estatísticas abrangentes que datem de mais de uma década, os dados de Singapura – usando a classificação do dcms para a taxa de crescimento anual composta de ics – também indicam que esse efeito pode não ser uma flutuação recente, e sim parte de uma tendência sustentada nas economias pós-industriais.25

Podemos inferir dessa amostra que as ics estão agora, e estiveram na última década, crescendo cerca de duas vezes a taxa da economia

Quatro modelos de indústrias criativas

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Singapura 1986–90 1990–95 1995–2000 Razão Ic/PIb ics 4,6 3,4 2,6 1,6 pib 2,8 2,4 1,5 País Canadá 1997–2002 EUA 1999–2002 Singapura 1995–2000 Valor agregado da cb (% do PIb) 5,4 11,9 5,7 Crescimento do valor agregado médio da cb 6,5 2,4 8,9 Crescimento do PIb 3,3 1 7,6 Taxa de crescimento da cb 1,9 2,4 1,2 Crescimento do emprego na cb 5,3 2 5,2 Média de crescimento do emprego nacional 1,4 1,4 3,5 Razão de crescimento do emprego na cb 3,8 1,4 1,5
Tabela 3

agregada.26 Na ausência de evidências de proporções crescentes de transferência de recursos para as indústrias criativas, isso parece rejeitar os modelos 1 e 2 e favorecer o modelo 3.

EMPRESAS

No nível micro, podemos comparar os dados sobre o crescimento das empresas da ic com o crescimento agregado de todas as empresas. Além disso, podemos comparar a lucratividade das empresas da ic com a lucratividade agregada. De acordo com a teoria econômica, essas estatísticas devem estar relacionadas, pois a lucratividade acima da média estimularia o deslocamento de recursos para a ic, aumentando seu número de empresas. Na Austrália, a proporção entre as empresas da ic e todas as empresas do país cresceu de 5,9% para 6,6% entre 2000 e 2005. O número total de empresas da ic cresceu a uma taxa anual composta (cagR) de 11,3% durante o mesmo período. Para todas as indústrias australianas, a taxa de crescimento foi de 8,3%.27 O setor de ic tem uma taxa de criação de empresas mais alta do que a economia como um todo, consistente com a taxa de crescimento observada do valor agregado no setor de ic.

Os dados de lucro não são amplamente divulgados pelas ics. Além disso, podem ser ambíguos, mostrando-se pequenos tanto em uma indústria em declínio, devido às margens baixas, quanto em uma indústria em crescimento, devido ao reinvestimento. As estimativas europeias de lucratividade média (retorno sobre investimentos de capital) das indústrias culturais e criativas para 1999–2003 foi de 9%, o que é semelhante às estimativas australianas. Isso é bom para o setor de serviços, que na Europa varia entre 5 e 10%.28 Esse é um resultado que não surpreende, indicando as ics como comparativamente competitivas, como a hipótese do modelo 2. A lucratividade semelhante sustenta o modelo 2; o crescimento da empresa, os modelos 3 e 4. E reconhecendo a variação considerável dentro das ics, os dados das empresas rejeitam apenas o modelo 1 de forma consistente.

RECEITA

A receita das ics oferece uma boa oportunidade para discriminar os modelos negativos, neutros e positivos das ics. Dados recentes do censo australiano apresentam a média de receita para seis setores em

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Jason Potts e Stuart Cunningham

2001.29 A média para todos os setores foi de 36.276 dólares, e para as ics, de 47.658 dólares, ou sejas, 31% maior, embora com variação significativa dentro desse valor.30

Existem várias explicações para a maior renda da ic. Em primeiro lugar, ela tem, em comparação com a economia agregada, maior capital humano.31 Em segundo lugar, pode ser que as estatísticas da média e da mediana não reflitam com precisão a distribuição de renda, que, em vez disso, é fortemente distorcida por meio de uma situação em que “o vencedor leva tudo”. De fato, há evidências substanciais de uma lei de potência, em vez de uma distribuição de receita gaussiana, em que as ics são desproporcionalmente representadas entre os super-ricos (De Vany, 2004; Potts, 2006).32 Uma terceira possibilidade é a de que as receitas sejam maiores nas ics devido às transferências de recursos de outros setores.33 Isso é dominado pelo financiamento do patrimônio e pela transmissão televisiva pública, sendo amplamente comparável com o que ocorre na União Europeia e nos Estados Unidos. No entanto, na medida em que tudo isso constitui investimento em tecnologias sociais, a transferência líquida pode até ser feita das ics para o resto da economia, o que seria uma evidência contra o modelo 1 e a favor do modelo 4.

Certamente existem muitas outras maneiras de indicar os dados que poderiam testar nossas teorias das quatro versões de indústrias

Quatro modelos de indústrias criativas

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Desenvolvimento de software e conteúdo interativo $64.288 Filme, tv, rádio $48.808 Propaganda e marketing $48.278 Escrita, editoração e mídia impressa $38.392 Arquitetura, design e artes visuais $37.658 Música e artes cênicas $32.553 Média da economia $36.276
Tabela 4 Renda média australiana por setor em 2001

criativas. É um desafio aguardado. Ainda que por meio de mecanismos diferentes, parece-nos que as ics são tão significativas quanto a ciência para o crescimento dos sistemas econômicos. Neste artigo, nos esforçamos para destacar as implicações políticas práticas dessa diferença.

IMPLICAÇÕES

Há boas razões para esperarmos esse tipo de crescimento nas ics:

(1) A afluência crescente, que desloca as despesas agregadas para as ics, pois sua elasticidade de renda é maior que 1;

(2) O aumento relacionado do capital humano, que permite uma maior especialização;

(3) O crescimento da tic, que é a base tecnológica das ics;

(4) A globalização, permitindo acesso aos mercados globais tanto na demanda quanto na mobilidade de fatores.

O crescimento relativo das ics não é uma anomalia; é justamente o que prevê a teoria econômica do sistema aberto com base nos efeitos da mudança tecnológica (ou seja, crescimento endógeno) e de uma transformação no conjunto envolvendo consumo consistente e aumento da renda.34 As evidências pesquisadas ratificam amplamente a noção de que o crescimento da ic está impulsionando a evolução econômica.

Qual a implicação disso nas políticas públicas? Uma perspectiva é ver as ics como uma analogia no século xxi da destruição criativa da “bola de demolição”, que foi a engenharia do século xix.35 As transformações na economia e na cultura nos séculos xix e xx ocorreram por meio da engenharia física, química, civil e elétrica, juntamente com a engenharia econômica. O mesmo argumento agora se aplica à “engenharia” das indústrias criativas de sistemas abertos, no lugar de sistemas fechados. Se essa tradução metafórica se mantiver, as implicações políticas irão diretamente do modelo 4, com função substancial e significativa, para o apoio público baseado na política de inovação. Entretanto, uma perspectiva igualmente consistente pode ser observada no modelo 3, em que as ics são mecanismos de crescimento para o ajuste “genérico” e a adaptação da base de conhecimento da economia. Nesse caso, a política tem um papel nitidamente menos substancial: minimizar a interferência distorcida.

Os modelos 3 e 4 abrigam assim um compromisso substancialmente diferente com a intervenção pública (no caso do modelo 4) ou

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Jason Potts e Stuart Cunningham

o laissez-faire (no caso do 3), e é por isso que vale a pena prosseguir com mais trabalhos para distinguir empiricamente esses modelos, ou para explorar se eles podem ser aspectos distintos de um modelo unificado. Em particular, é evidente que o comportamento do investimento nas ics é crucial para entendê-lo como análogo ao que se dá na indústria de serviços de p&d. Descobrimos, por exemplo, que o crescimento é a principal maneira de empregar os bons resultados das ics (em comparação com rendas ou lucros mais altos, que seriam esperados em uma situação estática). De fato, como o Demos (2007) demonstrou, as ics “crescem permanecendo pequenas”, de modo que seu desenvolvimento ocorre como crescimento empresarial derivado.36

Esse esboço de implicações políticas aponta a necessidade de uma nova teoria. Os modelos 2 e 3 adequadamente sugerem o tratamento consistente das ics, mas os modelos 1 e 4 propõem uma intervenção pública substancial, embora de maneiras diferentes. No entanto, apesar de nossos dados amostrais favorecerem os modelos 3 e 4 em detrimento dos modelos 1 e 2, eles não distinguem claramente o modelo 3 do 4. As ics são, portanto, um motor plausível de crescimento econômico.37

Conforme essa visão, as ics têm valor econômico dinâmico, e não apenas estático – elas colaboram para o processo de desenvolvimento econômico para além de sua contribuição à cultura e à sociedade. Essa distinção é importante, pois a política cultural, que é tradicionalmente baseada no modelo 1, pode exigir alguma reformulação crítica para se adaptar ao que parece ser um mundo baseado no modelo 4.

Notas

1 Este artigo foi publicado no International Journal of Cultural Policy, em 2008. [N. do org.]

2 dcms (1998), Cunningham (2001), Hesmondhalgh e Pratt (2005) e Galloway e Dunlop (2007).

3 Para mais discussões, ver dcms (2001), Howkins (2001), Florida (2002), Garnham (2005), Hartley (2005) e Cunningham (2006).

4 “Indústria criativa” é uma definição mais ampla do que “indústria cultural”,

Quatro modelos de indústrias criativas

estendendo-se aos campos ostensivamente comerciais da arquitetura, publicidade, videogames, pesquisa e desenvolvimento (p&d) e software. A linha adotada por Florida (2002), diferentemente do que ocorre com a classificação baseada na indústria, inclui todo o trabalho de resolução de problemas, abrangendo a mão de obra de colarinho-branco e sem colarinho. Ver, por exemplo, dcms (1998, 2001), nzieR (2002) e Higgs et al. (2007b).

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5 Ver Howkins (2001), Garnham (2005), Cunningham (2006) e Hesmondhalgh e Pratt (2006).

6 Estritamente falando, não estamos preocupados com o crescimento absoluto, mas antes com a dinâmica da distância da média (ver Metcalfe, 1998).

7 Qualquer medida operacional consistente será suficiente, seja de saída, como produto interno bruto ou setorial (ou seja, valor agregado), receita ou exportações, ou de entrada, como emprego, capital (incluindo capital humano) e criação de empresas (empreendedorismo).

8 Podemos tratar razoavelmente como paramétricos para uma determinada dotação de recursos, tecnologias, preferências e preços relativos. Obviamente, equações semelhantes poderiam ser escritas para todos os outros setores, sujeitas a uma soma unitária de escalares.

9 Ver Higgs e Cunningham (2007), Higgs et al. (2007a), nzieR (2002) e Comissão Europeia (2006).

10 A ideia de que a importância econômica ipso facto implica significância política proporcional é uma falácia amplamente difundida, que foi reproduzida por gerações da chamada “avaliação de impacto econômico”. Os economistas há muito alertam contra essa interpretação (por exemplo, Seaman, 1987, 2003).

11 Talvez surpreendentemente, não existem estimativas empíricas para a elasticidade de renda de todas as indústrias culturais ou criativas, embora com base em estimativas para elementos das ics (por exemplo, demanda por ópera e teatro) elas sejam amplamente consideradas maiores do que 1 (ver Heilbrun e Gray, 2000, pp. 104–06). Estima-se que seja assim também para gastos públicos em cultura (Getzner, 2002).

12 Observe-se que isso parece sugerir o que os economistas chamam de “função de produção” da forma y t = f(ict)α, com os modelos sendo distintos pelo fato de α ser menor, igual ou maior que 1. No entanto, não procuramos estimar uma função de produção (e, portanto, α) devido a insuficientes dados de séries temporais consistentes para a ic e às dificuldades de interpretar uma regressão entre países. As funções de produção para as indústrias culturais foram desenvolvidas e estimadas, por exemplo,

por Gapinski (1980, 1984) e Throsby (2006), mas nos referimos aqui à noção de uma indústria inteira como insumo em uma equação de crescimento, o que é menos convencional.

13 Ver Galloway e Dunlop (2007).

14 Sobre receita nas indústrias criativas (não culturais), ver Higgs et al. (2007a). Para uma discussão de por que as medidas de produtividade são enganosas nas indústrias culturais/criativas, ver Cowan (1996).

15 Nesses setores a mudança tecnológica é amplamente definida para incluir não apenas a geração de novas ideias, mas também sua adoção e retenção. Ver também Chai, Earl e Potts (2007).

16 Ver Scott (2002, 2006).

17 Outra variação sobre o abandono do conceito de indústria é definir as ics como o espaço de atividade econômica em que mercados e organizações são predominantemente moldados por redes sociais (ver Ormerod et al., 2007).

18 Por exemplo, Lundvall (1992), Nelson (1993, 2002), Freeman (1995), Edquist (1997) e Dodgson et al. (2005).

19 Ver Loasby (1999) e Freeman (2002).

20 Refere-se a dados disponíveis à época da publicação do artigo (2008). [N. do org.]

21 Havia 437 mil pessoas empregadas nos segmentos de indústrias criativas em 2001, representando 5,4% da mão de obra australiana. Quase 21 bilhões de dólares foram gerados em salários e vencimentos de pessoas empregadas nos segmentos criativos no mesmo ano, representando 7% do total dos empregos australianos (Cirac, 2006). Entre 1996 e 2001, o número de pessoas da força de trabalho da ic australiana cresceu de aproximadamente 150 mil para 180 mil, uma cagR de 3,8% (Higgs et al., 2007a).

22 Dados do relatório The Economy of Culture in Europe (2006). A taxa média de crescimento para a ue é de 5,4%. Para um total de trinta países europeus, a média é de 8,1%.

23 As estimativas da parcela de valor agregado das indústrias de direitos autorais de 1981 a 1986 foram de 3%, indicando que, durante a década de 1980, essas indústrias não estavam crescendo mais rápido do que a média econômica agregada, mas sim no mesmo ritmo.

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Essa é uma evidência preliminar de que as ics, de fato, “decolaram” durante a década de 1990. Durante esse período, o emprego na ic cresceu 5% ao ano. Isso resultou no aumento da participação no pib de 2,6% em 1996 para 3,2% em 2001, e do emprego, de 3% para 3,6%.

24 Outra evidência de apoio do crescimento relativo do emprego das indústrias criativas localizadas nos eua pode ser encontrada em Florida (2002, 2005) e Levy e Murnane (2004). Note-se que as indústrias baseadas em direitos autorais não são idênticas às indústrias criativas, pois também incluem distribuição.

25 “Contribuição econômica das indústrias criativas de Singapura”, do Ministério do Comércio e Indústria, a partir do relatório Pesquisa econômica de Singapura no primeiro trimestre de 2003.

26 Estima-se que as ics, como fração do valor econômico agregado, sejam proporcionalmente menores em nações em desenvolvimento como China, Índia, Rússia e Brasil. Suas taxas de crescimento do setor de serviços fornecem evidências sugestivas de que as taxas de crescimento relativo das ics podem ser semelhantes às das sociedades pós-industriais.

Ainda há muito trabalho a ser feito aqui.

27 Dados disponíveis em: www.gov.uk/ government/organisations/department-for-digital-culture-media-sport.

28 A margem de lucro de todas as empresas da ic australiana foi recentemente estimada em 10,1%. Houve variação considerável entre os setores, de 4,8% nas artes cênicas a 24% nas emissoras de tv. Dados da abs, relatados na tabela 3.2 do Relatório das indústrias criativas de Brisbane (2003). A média da ic australiana está na metade da faixa de todas as indústrias do país.

29 Levantamento conduzido pelo Cirac, com dados do Australian Tax Office. Essa é uma figura média tríplice formada por criativo especializado, equipe de apoio e criativo incorporado.

30 Os dados do censo australiano de 2001 apresentam conclusão semelhante, com a receita média semanal nas indústrias criativas reportada em 765 dólares, o que é 15% maior do que a média de todas as indústrias, no valor de 663 dólares (Relatório das indústrias criativas de Brisbane, 2003).

31 Dados europeus relatam que o setor cultural tem maior capital humano (46% com diplomas universitários) do que a economia agregada (25%). Resultados semelhantes são relatados para as indústrias criativas do Reino Unido e da Austrália. Qualificações e receitas agregadas setoriais apresentam correlação positiva (por exemplo, o desenvolvimento de software relata maior capital humano medido pela qualificação formal do que música).

32 Por exemplo, embora componham cerca de 6% da economia australiana, as ics correspondem a 11% das quinhentas maiores fortunas da Austrália e a 38% das pessoas com quarenta anos ou menos. Esse padrão se repete no Reino Unido, eua e Nova Zelândia.

33 O financiamento público cultural é, em média, de 0,5 a 1% do pib para a ue, embora haja muita variação (a França e a Áustria, por exemplo, gastam perto de 4%). O financiamento público dos eua é muito baixo (menos de 0,1%), mas, como explica Cowan (2006), o valor da transferência total é comparável ao da Europa, uma vez que fundos fiduciários, organizações sem fins lucrativos e transferências corporativas são contabilizados.

Na Austrália, o financiamento governamental das indústrias culturais foi de 4 bilhões de dólares em 2001, o que representa cerca de 0,5% do pib (Tabela 3.4 do relatório do bci, 2003).

34 Ver Potts e Mandeville (2007), Cowan (1998, 2002), Florida (2002, 2005) e Howkins (2001).

35 John Harley, personal communication (2006).

36 85% das empresas de ic empregam menos de cinco pessoas, uma porcentagem que cresceu à medida que a indústria se desenvolveu, implicando empreendedorismo em vez de escala como o método dominante de crescimento.

37 Nelson e Sampat (2001), Caves (2000) e Dopfer e Potts (2008).

Quatro modelos de indústrias criativas

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Quatro modelos de indústrias criativas

ROBERTA COMUNIAN é professora de Economia Criativa do Departamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas do King’s College London. Tem interesse na relação entre investimentos públicos e privados em arte, projetos de regeneração artística e cultural, trabalho cultural e criativo e carreiras e economias sociocriativas. Foi bolsista do programa Marie Curie no Centro de Estudos de Desenvolvimento Urbano e Regional da University of Newcastle, investigando a relação entre indústrias criativas, política cultural e instituições artísticas apoiadas pelo setor público. Também trabalhou em pesquisas sobre transferência de conhecimento e indústrias criativas por meio do Prêmio AHRC Impact Fellowship, da University of Leeds. Pesquisou o papel do ensino superior na economia criativa e, recentemente, explorou as oportunidades de carreira e os padrões dos pós-graduados em áreas criativas no Reino Unido em vários artigos. Está atualmente envolvida no projeto de pesquisa Disce: Developing Inclusive and Sustainable Creative Economies, financiado pelo H2020 (www.disce.eu).

BRIAN J. HRACS é professor associado da Escola de Geografia e Ciências Ambientais da University of Southampton. Seu interesse incide sobre o modo como as tecnologias digitais e a concorrência global estão remodelando o mercado de produtos culturais e a vida profissional, bem como sobre a dinâmica espacial de empreendedores e intermediários na economia criativa. Publicou artigos sobre a indústria da música contemporânea, o sistema de moda canadense, trabalho estético, criação de valor, intermediários culturais, curadoria, as mobilidades do “talento” e o desenvolvimento econômico impulsionado pela cultura. Além do seu trabalho em andamento sobre economias criativas na África, atualmente ele pesquisa os processos e as dinâmicas espaciais da curadoria e a natureza translocal das cenas culturais.

LAUREN ENGLAND é professora assistente em Economia Criativa do Departamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas do King’s College London. Tem interesse em empresas criativas e educação com foco em artesanato e desenvolvimento sustentável nos contextos do Norte e do Sul Globais. Para seu PhD no King’s College London em parceria com o Crafts Council do Reino Unido, investigou o desenvolvimento profissional no ensino superior e estratégias empreendedoras de início de carreira. Publicou pesquisas sobre a evolução das habilidades artesanais, empreendedorismo artesanal, ensino superior e empresas sociais e sobre o impacto da covid-19 nos trabalhadores criativos. Além do trabalho contínuo sobre economias criativas e moda na África, atualmente pesquisa o impacto da covid-19 em economias criativas urbanas, incluindo trabalhadores, organizações e políticas.

Economias criativas na África: compreensão e apoio1

INTRODUÇÃO

Este artigo faz uma reflexão crítica sobre as discussões e ideias que surgiram em uma rede internacional de pesquisa com duração de dois anos, financiada pelo Arts & Humanities Research Council (ahRc), do Reino Unido. O financiamento visava incentivar propostas de redes que explorassem a contribuição que a pesquisa em artes e humanidades pode dar aos debates que se ocupam do desenvolvimento internacional e/ou da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da onu. O projeto também buscava apoiar o desenvolvimento de colaborações internacionais capazes de cruzar fronteiras com países que recebem Assistência Oficial ao Desenvolvimento (oda) e/ou com organizações que desempenham papel importante no apoio ao desenvolvimento internacional.

A rede de pesquisa foi criada para oferecer uma plataforma de discussão entre acadêmicos, profissionais, artistas, intermediários criativos e organizações políticas que tratam do papel, importância e desenvolvimento das economias criativas no continente africano.

Dada a abrangência do projeto, reconhecemos que nosso trabalho não pode se estender o suficiente para cobrir todo o continente, tampouco procura se propor a vê-lo e entendê-lo como entidade única.

No entanto, lançando mão de fortes conexões acadêmicas, pretendíamos nos envolver com uma amostra significativa de países (Quênia, Nigéria e África do Sul) para explorar as práticas, oportunidades e desafios que eles enfrentam.

Este texto propõe-se a traçar alguns dos principais pontos de aprendizado e reflexão com que nos deparamos em nossa jornada

131 Economias criativas na África: compreensão e apoio

e compartilhá-los com a comunidade internacional de acadêmicos, legisladores e profissionais. A rede e a pesquisa associada a ela, realizadas em colaboração com muitos parceiros e colegas africanos, ajudaram-nos a compreender as economias criativas nos países africanos emergentes e a explorar estratégias para incentivar e permitir a sustentabilidade e o desenvolvimento cultural, social e econômico específico ao contexto. Ao fazê-lo, o projeto tentou facilitar as trocas de informação – especificamente em todo o continente africano –, destacando a importância do conhecimento específico do contexto e incentivando as conexões entre as redes locais de produção cultural.

Entre as atividades realizadas pela rede, compilamos uma revisão da literatura especializada, pesquisas que visam entender melhor o contexto das economias criativas emergentes no continente africano. Com isso, identificamos cinco dimensões-chave que precisavam ser exploradas: (1) o papel do ensino superior nas economias criativas africanas; (2) o papel da política para economias criativas; (3) trabalho criativo, coworking e habilidades; (4) comunidades criativas, clusters e agendas de desenvolvimento; e (5) o papel dos intermediários criativos: redes e apoio. Este artigo se ocupa mais detidamente do quinto tema, apresentando detalhes sobre o papel que os intermediários criativos desempenham no desenvolvimento das economias criativas africanas.

LITERATURA E METODOLOGIA

As economias criativas no continente africano são muitas vezes consideradas uma panaceia para o desenvolvimento, com potencial para contribuir com o crescimento econômico (Schultz e Van Gelder, 2008) e colocar tais países no mapa internacional. Elas oferecem a oportunidade de usar a riqueza e diversidade de culturas em todo o continente para gerar benefícios a grande parte da população. Essa panaceia inclui não apenas o crescimento econômico, mas também a oportunidade dos africanos de redefinir a si e a sua imagem futura e impacto cultural. Embora esse cenário idílico tenha grande potencial de mudança e atraia a atenção dos legisladores para o setor, ele apresenta alguns perigos. Visser (2014) questiona até que ponto se pode considerar as indústrias culturais e criativas (iccs) como uma intervenção que “cura tudo”. Ele afirma que, ao desenvolver estratégias para usar as iccs com o objetivo de estimular o crescimento, por vezes as ideias são tomadas dos países desenvolvidos, sem adap-

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tação aos contextos locais, resultando no fracasso da maioria das iniciativas. Além disso, argumenta que novas iccs podem levar à marginalização como resultado da renovação urbana e subsequente gentrificação que muitas vezes as acompanham. Assim como em outros projetos de pesquisa, nossa jornada começou com uma longa revisão da literatura especializada. O processo destacou as dificuldades de estudar o contexto africano e um conjunto de países que são diferentes de qualquer lugar sobre os quais havíamos pesquisado antes. Embora seja fácil para os pesquisadores fazerem suposições e levarem suas estruturas em longas jornadas pelo mundo, depois de mais de dez anos estudando indústrias e economias criativas em todo o Norte Global, estávamos cientes da propensão a exportar ideias e sugestões de políticas sem o devido respeito à diversidade das realidades locais. Como resultado, logo no início do nosso planejamento e pesquisa, começamos a tratar não apenas sobre iccs ou sobre uma “economia criativa” monolítica (pnud e Unctad, 2010), mas também sobre economias criativas. Queríamos reconhecer que, embora esses conceitos diferentes e conectados circulem pelo mundo e sejam usados em muitos países africanos, é importante considerar que eles podem ter significados diferentes a depender do contexto, e que essas interpretações distintas – vindas tanto dos legisladores locais quanto dos próprios profissionais – são importantes para identificá-los e entendê-los. Para tanto, tomamos como ponto de partida a definição fornecida por órgãos de política nacionais e internacionais. onu e Unctad (2008, p. 4) reconhecem que a economia criativa está na

interface entre criatividade, cultura, economia e tecnologia, expressa na capacidade de criar e circular capital intelectual, com potencial para gerar renda, empregos e receitas de exportação ao mesmo tempo que promove a inclusão social, a diversidade cultural e o desenvolvimento humano.

Além disso, a estrutura da Unesco para estatísticas culturais (pnud e Unesco, 2013) considera a economia criativa um sistema de atividades conectado a domínios culturais e iccs, mas que se expande para outros setores da sociedade (por exemplo, educação e preservação), e se relaciona tanto com a cultura intangível quanto com a tangível. Portanto, nossa pesquisa se baseia na visão apresentada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud) e pela Unesco (2013, p. 12) de que a “economia criativa não é uma única

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grande estrada, mas uma infinidade de diferentes trajetórias locais encontradas em cidades e regiões de países em desenvolvimento”.

Para esse projeto, nosso intuito é investigar não apenas a economia criativa como um setor comercial, como também as economias criativas como um termo abrangente que inclui uma série de atividades criativas e culturais e adota amplo espectro de modelos de negócios, em que as atividades podem envolver empreendimentos comerciais, públicos e comunitários. Levamos tal argumento adiante sugerindo que é crucial reconhecer que não existe uma única economia criativa, mas antes uma multiplicidade de economias criativas, que podem apresentar agendas sobrepostas e divergentes. Isso explica a gama de modelos de negócios e objetivos que muitas vezes se estendem à esfera social (Comunian et al., 2020). De várias maneiras, a economia criativa como discurso global tem apontado para uma direção diferente, longe dos valores que estão no seu centro. Recentemente, outros pesquisadores (Wilson et al., 2020) abordaram preocupações em torno das ideias predominantes de “sucesso econômico” e “crescimento” que cercam os discursos políticos e acadêmicos sobre a economia criativa. Eles consideraram a importância de ligar a pesquisa a outros três discursos que têm dimensões sociais muito claras: desenvolvimento humano, desenvolvimento cultural e assistência.

Desejávamos reconhecer que as economias criativas geram valor – às vezes econômico e, mais frequentemente, cultural, social, educacional ou psicológico, na forma de realização pessoal. Elas dificilmente podem ser delimitadas por taxonomias tradicionais, pois existem em diferentes escalas e envolvem grande variedade de atores – de líderes em grandes instituições públicas ou corporações a conselhos regionais de artes, redes comunitárias locais e artistas individuais. Como resultado, nossa pesquisa visa reconhecer a pluralidade dos esforços e objetivos de cada ator em sua contribuição para economias criativas locais ou nacionais.

Ao adotar essa linha, rejeitamos a imposição de definições nacionais ou supranacionais, que possibilitam e estimulam a globalização –do Norte ao Sul Globais – e a homogeneização dos conceitos de indústria e economia criativas. Em vez disso, usamos a perspectiva da “glocalização”, pesquisando a adaptação local e a reinterpretação do contexto da política internacional, enquanto coletamos dados que enriquecem nossa compreensão e destacam o valor de adotar e adaptar perspectivas de economias criativas ao tratarmos dos países africanos.

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FOCO EM INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS

Tendo estudado as iccs fora do contexto da África, nos mantivemos conscientes de que, ao examinar economias criativas, é necessária uma compreensão complexa dos seus fatores e atores em várias escalas (Comunian, 2019). Na microescala, já havíamos analisado extensivamente a dinâmica do trabalho (Hauge e Hracs, 2010; Comunian, 2009), as práticas empreendedoras e de aprendizagem (England, 2020, 2022) e os mercados (Hracs et al., 2013) para profissionais criativos e seus projetos e produtos. Também tínhamos consciência do papel das localidades (Brydges e Hracs, 2019), cidades e regiões, bem como das estruturas políticas (Chapain e Comunian, 2010) que podem apoiar ou dificultar o desenvolvimento de economias criativas. No entanto, dadas as limitações de tempo (dois anos) e de recursos do projeto de pesquisa, reconhecemos que a abordagem mais produtiva se daria por meio de um enfoque sobre o nível médio e o papel das redes e intermediários (Hracs, 2015; Comunian, 2011) nas economias criativas. Embora seja uma investigação parcial de todo o sistema, ela forneceu insights sobre as atividades de profissionais criativos e culturais (nível micro) e as estruturas políticas de alto nível em que esses intermediários operam (nível macro).

Isso proporciona uma perspectiva integrada para encarar as economias criativas, abrangendo motivações, valores e experiências de diferentes instituições, empresas e indivíduos que trabalham para apoiá-las e desenvolvê-las. Dentro das iccs, incluindo arte, música e moda, os intermediários culturais são amplamente reconhecidos como atores-chave (Jakob e Van Heur, 2015; Comunian et al., 2022). Esses indivíduos compartilham características comuns, como altos níveis de capital cultural e de posições dentro de subculturas, cenas, indústrias e organizações, o que contribui para a sua legitimidade e autoridade, e as valida (Maguire e Matthews, 2014). De fato, além de atores humanos individuais, os intermediários podem consistir em organizações, eventos, espaços e recursos sociotécnicos, como sistemas de recomendação musical (Jansson e Hracs, 2018). As motivações variadas dos intermediários se estenderam para incluir educação ou preservação e abraçar mais papéis de apoio e capacitação, em vez de trabalhar puramente na interface entre profissionais criativos e mercados/públicos. Assim, diferentemente das definições anteriores, os intermediários culturais não se posicionam necessariamente entre produtores e consumidores em relação à reformulação ou curadoria do conteúdo ou à definição do valor cultural de artefa-

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criativas na África: compreensão e apoio

tos culturais específicos. Em vez disso, como discutido por Comunian et al. (2022), eles tendem a situar-se “ao lado” dos produtores –atuando como coprodutores e facilitando o acesso a uma série de recursos e serviços de apoio –, ou “atrás” deles, fornecendo financiamento, aconselhamento ou outras formas de formação inicial.

A JORNADA DA PESQUISA

Nós nos propusemos a investigar economias criativas no continente africano, mas desde o início estávamos conscientes das dificuldades de fazer pesquisa sobre a “África”. De muitas maneiras, ela é uma construção geopolítica. Por vezes, durante o nosso trabalho de campo, a África se apresentou com uma forte identidade comum e estrutura colaborativa, ligadas às esperanças de desenvolvimento internacional. Em outros momentos, a identidade coletiva tornou-se algo sem sentido e inútil – uma construção que simplesmente agrupa diferentes locais, nacionalidades e culturas, os quais muitas vezes não se conectam nem conversam entre si. Sabendo que nosso projeto, limitado em escopo e duração, não poderia ser representativo de toda a África, decidimos nos ater a três países – Quênia, Nigéria e África do Sul – onde nossas redes acadêmicas internacionais nos permitiriam maximizar o valor e o potencial da pesquisa. Além disso, são países com amplas comunidades de língua inglesa, o que facilitou nosso trabalho de campo, embora isso tenha reduzido a representatividade de nossos dados e trabalho. Não pudemos sequer cobrir significativamente a vasta geografia – e a variedade de culturas e idiomas – desses três países, e a maior parte de nosso trabalho de campo permaneceu limitado a três grandes cidades: Nairóbi, Lagos e Cidade do Cabo. Ainda assim, o nível limitado de engajamento produziu dados vultosos, nos convencendo do valor da nossa abordagem e enfatizando que ainda há muito trabalho a ser feito.

Neste capítulo, compartilhamos os resultados do trabalho de campo nessas três cidades africanas e refletimos sobre o que aprendemos com parceiros locais e participantes da pesquisa, além de estabelecer comparações entre algumas das diferentes abordagens e estruturas das três cidades, cujas respectivas histórias e trajetórias de desenvolvimento são muito distintas. Em vez de propor conclusões, estávamos mais interessados em deixar o leitor refletir sobre como descobertas e estudos de caso podem apresentar

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exemplos potenciais de melhores práticas e oportunidades para o desenvolvimento de políticas e conhecimentos acadêmicos do setor. Esperamos que tais descobertas possam ser benéficas para nossos parceiros de pesquisa e para as pessoas que participaram das oficinas e atividades nas três cidades. Cabe pontuar ainda que aprendemos muito como pessoas e desejamos que alguns dos estudos de caso incluídos no texto forneçam inspiração para pesquisadores e profissionais em todo o mundo.

METODOLOGIA

Trabalhando em colaboração com parceiros locais, tratamos as três cidades africanas selecionadas – Nairóbi, Lagos e Cidade do Cabo –e suas economias criativas locais como estudos de caso individuais. Durante uma semana, realizamos trabalho de campo e, nesse período, fizemos a coleta de dados, com foco em pesquisa compartilhada, sobre o papel dos intermediários criativos. Em cada local, investigamos alguns temas que julgávamos emergentes e únicos para o seu contexto, o que nos proporcionou ricas oportunidades de aprendizagem e reflexão. Os focos específicos foram o setor de design de moda em Nairóbi, o ensino superior em Lagos e as mobilidades criativas na Cidade do Cabo.

Os dados coletados no trabalho de campo (25 grupos de discussão; 44 entrevistas; 145 respostas de pesquisas online) foram usados para informar as descobertas e os estudos de caso incluídos neste artigo. Em cada cidade, realizamos cinco grupos de discussão com intermediários criativos que nos permitiram coletar dados valiosos e detalhados sobre crenças, práticas e experiências. A dinâmica de grupo nos ajudou a entender o papel e as perspectivas das diferentes partes interessadas. Os grupos de discussões voltaram-se para tópicos como o papel da política, o impacto da mobilidade e das redes internacionais e a importância da tecnologia e das redes. Além disso, coletamos respostas por meio de pesquisas online sobre seus perfis e atividades, e realizamos detalhadas entrevistas com treze intermediários. Do mesmo modo, nos dedicamos à observação dos participantes, visitando vários estúdios, oficinas, galerias, localidades, eventos e atividades culturais.

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ECONOMIAS CRIATIVAS NA ÁFRICA: O PAPEL DOS INTERMEDIÁRIOS NO APOIO AO DESENVOLVIMENTO

O que são intermediários criativos?

Em nosso projeto, definimos intermediários criativos como indivíduos ou organizações que facilitam o crescimento e o desenvolvimento de profissionais criativos, projetos e iccs. Eles desempenham um papel vital no apoio ao setor, fornecendo acesso a informações, habilidades, recursos e redes que permitem aos indivíduos envolvidos com iccs cumprir sua missão e objetivos criativos ou de negócios, sejam eles encenar uma peça, fornecer educação artística para crianças ou levar um novo produto para o mercado. Reconhecemos que os intermediários criativos existem em todas as formas e tamanhos, desde indivíduos aficionados e com experiência no setor criativo e cultural que fornecem treinamento e mentoria, passando por ongs de médio porte que apoiam a arte na comunidade, até grandes organizações com financiamento público (como conselhos regionais e nacionais de arte), cuja missão é financiar, treinar e apoiar artistas e iccs. Eles variam de empresas autônomas locais de propriedade individual a grandes organizações internacionais, e podem adotar modelos empresariais/organizacionais, refletindo a gama de organizações ativas na economia criativa: organizações com fins lucrativos, do setor público, beneficentes ou sem fins lucrativos, cooperativas e empresas de interesse comunitário ou redes informais.

Tem havido uma atenção política crescente sobre o papel que as economias criativas podem desempenhar no desenvolvimento local (pnud e Unesco, 2013). Contudo, menos atenção tem sido dada ao papel dos intermediários na facilitação de caminhos para o desenvolvimento criativo. Neste texto, argumentamos que sua função é importante, por vários motivos, no contexto da África. Em primeiro lugar, os países africanos às vezes carecem de estruturas e instituições formais de políticas culturais, e, quando elas existem, por vezes têm capacidade e financiamento limitados para implementar mudanças duradouras e contribuir para o desenvolvimento criativo (Steedman, 2022). Em segundo lugar, muitas das instituições formais estão fortemente ancoradas em setores tradicionais da economia (extração, agricultura, manufatura) e menos preocupadas com setores emergentes. Isso deixa uma lacuna importante para os intermediários intervirem nos padrões de desenvolvimento e os molda-

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rem (Njuguna et al., 2022). Apesar da falta de investimento e apoio formal para economias criativas, o impacto econômico do setor é surpreendente e tem sido considerado fundamental para o desenvolvimento econômico por organizações internacionais. Isso tem sido associado à rápida expansão das tecnologias digitais (principalmente móveis), com muitos jovens saltando das plataformas analógicas e tradicionais de consumo cultural diretamente para as digitais. A centralidade da tecnologia e suas importantes conexões com os principais dados demográficos de muitas nações africanas mostram que há um nicho para os intermediários crescerem e se conectarem por meio de novas tecnologias. Finalmente, e mais importante, muitos autores que estudam economias criativas na África destacam o papel da informalidade e das redes na estrutura industrial (Drummond e Snowball, 2022; Burton et al., 2022). Essas questões sugerem que os intermediários podem articular relações e apoiar as iccs, desempenhando um papel vital no desenvolvimento do setor.

O que os intermediários criativos fazem? Em nosso projeto, descobrimos que os intermediários criativos atuam em diversos setores, prestando vários serviços ou se especializando em apenas um. Eles podem fornecer acesso a informações e redes (infraestrutura leve), bem como recursos físicos ou estruturais (infraestrutura física). Assim, a partir de dados coletados por meio de nossa pesquisa online (85 entrevistados) com intermediários criativos em Nairóbi, Lagos e Cidade do Cabo (figura 1), identificamos as áreas em que eles atuam apoiando o desenvolvimento de iccs. Nossas descobertas sugerem que, na maioria dos casos, os intermediários ofereceram suporte em mais de uma área:

• 53% dos entrevistados disponibilizaram espaço e equipamento, incluindo escritórios, áreas de coworking e incubadoras de empresas, bem como estúdios e locais de ensaio ou apresentações, além de acesso a equipamento especializado e infraestrutura de ti;

• 40% forneceram financiamento, incluindo distribuição de recursos públicos ou de fundos, empréstimos reembolsáveis e não reembolsáveis, corretagem de finanças/investimentos e financiamento colaborativo;

• 71% forneceram oportunidades de networking e parcerias, incluindo organização de eventos, festivais e feiras de negócios e promoção e intermediação de parcerias e colaborações;

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75% Treinamento e habilidades

53% Espaço e equipamento

• 75% forneceram treinamento e desenvolvimento de habilidades, incluindo treinamento criativo ou especializado em negócios, oportunidades de desenvolvimento profissional e mentoria;

• 72% forneceram consultoria e orientação de negócios, incluindo orientação sobre startups, finanças, crescimento, exportação e internacionalização, protocolo de internet e acesso ao mercado.

72% Consultoria e orientação de negócios

40% Finanças

71% Networking e parcerias

Fonte: desenhado por Elsardt Kigen.

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Figura 1: Intermediários criativos e suas áreas de trabalho

ECONOMIAS CRIATIVAS NA ÁFRICA: APRESENTAÇÃO DO TRABALHO DOS INTERMEDIÁRIOS

Durante o projeto, tivemos a oportunidade de conhecer e entrevistar uma série de intermediários e gostaríamos de apresentar alguns estudos de caso que se destacam pela contribuição significativa para o desenvolvimento das economias criativas na África. Nós os reunimos aqui em quatro títulos que classificam seu trabalho em diferentes áreas:

• Intermediários criativos e o papel do ensino superior;

• Intermediários criativos e o desenvolvimento da mão de obra criativa em ação;

• Intermediários criativos, coworking, financiamento e redes;

• Intermediários criativos, comunidades e agendas de desenvolvimento.

INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS E O PAPEL DO ENSINO SUPERIOR

Nosso projeto envolveu parcerias com estabelecimentos de ensino superior na Nigéria, África do Sul e Quênia – as universidades de Lagos, Rhodes e Nairóbi, respectivamente. Todos apresentaram uma série de colaborações e envolvimentos com as economias criativas locais e nacionais. Durante as nossas visitas e encontros com acadêmicos nos três países, tivemos a oportunidade de analisar o papel que as universidades desempenham nas economias criativas na África. Exploramos essa ideia com mais detalhes em nosso livro Higher Education and Policy for Creative Economies in Africa: Developing Creative Economies (Comunian et al., 2021). Em Lagos, criamos um grupo de discussão com quinze acadêmicos do Departamento de Artes Criativas e do corpo docente de Artes. O grupo destacou as melhores práticas de engajamento entre acadêmicos e as iccs locais, e a importância de uma agenda forte para proporcionar empregabilidade em países onde os jovens frequentemente vivenciam altos níveis de desemprego. Apresentamos um exemplo ilustrativo disso com o estudo de caso da Lagoon Gallery, da University of Lagos. A ideia da Lagoon Gallery foi uma ramificação do projeto Creative Arts in Town, estabelecido no ano de 2007. O foco do Departamento de Artes Criativas fundamentou-se desde o início no sentido de produzir graduados em Artes Cênicas e Visuais que não apenas tives -

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sem uma boa compreensão de suas próprias tradições artísticas, mas também fossem voltados para um sentido internacional do mundo. O projeto foi liderado pela professora de História da Arte e chefe do departamento, Peju Layiwola, e recebeu grande apoio do corpo docente e de toda a universidade. Todos reconheceram o importante esforço do departamento em apoiar e apresentar os talentos desenvolvidos em seus cursos.

Da mesma forma, membros do corpo docente da University of Nairobi destacaram a importância de unir formação teórica com habilidades práticas e empreendedoras. Eles enfatizaram como isso permitiu que os alunos entrassem no mercado de trabalho – no caso, da moda – preparados para realizar mais do que simplesmente a atividade de design. Discussões com membros do corpo docente da Rhodes University destacaram o papel do ensino superior, com suas práticas de pesquisa e desenvolvimento, na coleta de dados e no desenvolvimento de recomendações que contribuem com a política, ajudam a moldar a economia criativa e fornecem informações públicas acessíveis. Um grande exemplo disso é o Observatório Cultural da África do Sul (Saco), da qual a Rhodes University é parceira, um líder mundial em colaboração entre pesquisa acadêmica e política cultural nacional. Como explicou a estrategista-chefe de pesquisa do observatório, Jeanette Snowball, se você quer ter uma política eficaz, precisa ter alguma coisa no que se basear… Se você não tem informações sobre alguma coisa (indústrias culturais), ela não existe e você não sabe como apoiá-la. Mas espero que, se você tiver uma política baseada em evidências, ela lhe dê uma ideia melhor de onde gastar seus limitados recursos.

Em todas as nossas discussões, enfatizou-se a importância de desenvolver a compreensão da necessidade de fomentar e aprimorar a criatividade visando alcançar qualidade e excelência internacionalmente reconhecidas. Embora tenhamos identificado vários programas e plataformas nos países e localidades específicas que estão trabalhando para isso, nossas discussões apontaram para a falta de estruturas formais e incentivos transparentes que apoiem as colaborações. Também notamos o sub-reconhecimento das iccs como parceiras econômicas, culturais e de desenvolvimento essenciais para o ensino superior. Nos três locais da pesquisa, constatamos que as habilidades e a educação estavam em demanda (Obia et al., 2021) e tinham a capacidade de dar voz à economia criativa local e

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internacional, contribuindo para o desenvolvimento econômico e a disseminação da cultura nacional. Houve, porém, algumas limitações identificadas em relação à falta de reconhecimento de disciplinas criativas dentro das prioridades de investimento universitário e como escolhas de carreira sólidas e, às vezes, à falta de acesso e oportunidades para todos. Além de questões mais amplas sobre acesso e igualdade no ensino superior, muitos jovens optam por estudar no exterior como caminho para a economia criativa ou optam por se dedicar a outras disciplinas e ingressar em carreiras criativas em seu tempo livre por meio de oportunidades autodidatas ou networking. Embora isso seja valioso para o indivíduo e possa introduzir ideias inovadoras e diversas no ambiente criativo local, muitas vezes exacerba um sistema de desigualdade por meio do qual não são os mais talentosos ou merecedores que se sobressaem, mas apenas aqueles que podem pagar por oportunidades e vantagens específicas. Isso tem o potencial de criar e reforçar padrões de desigualdade nas carreiras criativas (Booyens, 2012). Ao desenvolver infraestrutura de ensino superior e oferta de cursos para a economia criativa, as nações africanas poderão oferecer oportunidades para uma gama mais diversificada de jovens; isso, por sua vez, aumentará a diversidade e a criatividade da economia criativa.

INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS E O DESENVOLVIMENTO DA MÃO DE OBRA CRIATIVA EM AÇÃO

Nosso projeto envolveu discussões em grupo com profissionais e intermediários criativos que trabalham em diversos setores das iccs e entrevistas adicionais com atores específicos do setor no ensino superior, artesanato e moda. Isso proporcionou várias perspectivas através das quais pudemos explorar as experiências da mão de obra e de indivíduos criativos e das organizações que apoiam o seu desenvolvimento. Embora houvesse questões específicas do setor e do local relacionadas à política, infraestrutura e dinâmica do mercado, nossas conversas com essas pessoas indicaram uma série de desafios comuns enfrentados no desenvolvimento de suas carreiras. As semelhanças incluíam acesso limitado a financiamento formal e consistente, falta de redes para sustentar a troca de ideias, conhecimento e recursos, apoio social limitado para buscar uma carreira criativa e falta de apoio político (Burton et al., 2022; Comunian e Kimera, 2021). Houve um sentimento geral de que as iccs não fo-

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ram priorizadas e reconhecidas adequadamente por seu potencial de desenvolvimento econômico, social e cultural. No sentido contrário, despontaram as organizações que apoiaram os profissionais criativos de cada cenário e as diversas e engenhosas maneiras de construir suas carreiras. Apesar da importância do ensino superior, discutida anteriormente, é preciso reconhecer que o desenvolvimento de uma força de trabalho criativa não é apenas de sua responsabilidade.

Durante o nosso trabalho de campo, identificamos – e nos envolvemos com – uma série de intermediários que estavam apoiando o desenvolvimento da força de trabalho criativa da África, dois dos quais abordaremos mais detalhadamente a seguir, em estudos de caso. Estes variaram de indivíduos aficionados e com experiência em iccs, que forneciam treinamento e mentoria, até grandes organizações de financiamento público (nacional e internacional) com competência para distribuir recursos e fornecer feedback para os artistas.

Por meio dos grupos de discussão e entrevistas adicionais, descobrimos que esses intermediários desempenharam um papel vital no apoio ao desenvolvimento da força de trabalho criativa ao fornecer acesso a informações, habilidades, recursos e redes que permitiram aos envolvidos alcançarem seus objetivos criativos ou de negócios. A maioria desses intermediários dava suporte ao desenvolvimento da força de trabalho de várias formas (Comunian et al., 2022).

Muitos daqueles com quem conversamos viram a colaboração internacional, a construção de parcerias e a criação de redes com outros intermediários como aspectos essenciais para seu trabalho, a fim de continuar buscando o reconhecimento da importância das economias criativas no desenvolvimento potencial de seus países. Além da rede acadêmica formada por meio da pesquisa, os grupos de discussão com intermediários em cada localidade possibilitaram a articulação entre os atores locais.

Os intermediários consideraram a fragilidade das estruturas políticas e a falta de investimento como enormes barreiras aos desenvolvimentos futuros no setor. Todavia, essa não é apenas uma questão política; uma desconfiança geral acerca das possibilidades que as economias criativas podem oferecer em relação à educação e ao emprego foi muitas vezes vista como a principal barreira. A necessidade de intermediários criativos para batalhar pela importância do setor foi igualmente reconhecida.

Apesar de algumas questões serem locais ou específicas do setor, descobrimos que muitos dos desafios foram compartilhados pelos entrevistados das diferentes cidades. Tais desafios tinham a

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ver não apenas com a falta de engajamento político e de reconhecimento da importância do setor, como também com sua incapacidade de compartilhar objetivos comuns e se unir em torno de uma agenda compartilhada. A especificidade e o contexto local, porém, são importantes e podem originar ou agravar os desafios.

Durante a nossa visita a Lagos, descobrimos um interessante espaço de desenvolvimento e coworking chamado Angels and Muse. O projeto é uma iniciativa do renomado artista e escritor Victor Ehikhamenor. Fundado em janeiro de 2018 e concebido como flexível e multifuncional, o lugar é voltado para o desenvolvimento de artistas e da futura força de trabalho criativa. Suas múltiplas funções permitem que ele seja gerido como um negócio capaz de se tornar tanto um espaço de coworking como de exposições, podendo ser alugado para workshops, treinamentos e eventos. As atividades visam desenvolver processos criativos e de pensamento. Como destaca Ehikhamenor,

é um espaço onde pessoas com ideias semelhantes nas indústrias criativas locais e internacionais podem se reunir para compartilhar ideias e por meio do qual eu posso promover uma retribuição à comunidade em que atuo como artista. É também um local a que jovens artistas sem oportunidade de mostrar seu trabalho podem recorrer.

Outro estudo de caso interessante foi o do Spier Arts Academy, um programa vibrante de estágio de mosaico e cerâmica no centro da Cidade do Cabo (a turma final se formou em 2020), cujo objetivo era contribuir para a economia criativa da África do Sul, bem como para iniciativas mais amplas ligadas à transformação e elevação social. O projeto deu impulso a carreiras bem-sucedidas e sustentáveis relacionadas à arte por meio de financiamento, treinamento, networking e experiência de trabalho. Ao longo de três anos, cada aprendiz recebeu, em tempo integral, treinamento de qualidade que os capacitou com as habilidades e conhecimentos artísticos e comerciais necessários para administrar com sucesso seus próprios negócios após a graduação.

Ambos os estudos de caso revelam as principais preocupações dos intermediários criativos de apoiar as agendas de habilidades desenvolvidas e facilitar as oportunidades de trabalho para criativos locais.

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INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS, COWORKING, FINANCIAMENTO E REDES

O acesso ao espaço, ao financiamento e às redes é fundamental para o trabalho dos profissionais criativos e dos intermediários que os apoiam. Nas três cidades, observamos as diversas atividades realizadas em seus espaços de coworking e polos criativos, os quais analisamos com mais detalhes em nosso livro Developing Creative Economies in Africa: Spaces and Working Practices (Hracs et al., 2022). Neles, os criativos podem produzir trabalhos, realizar reuniões com clientes e encontrar-se com colegas em um ambiente profissional. Os espaços atendem a diversas comunidades e localidades em áreas do centro da cidade e seus arredores. Por meio de nossas interações com a rede, aprendemos sobre clusters criativos rurais. Os espaços de coworking respondem a uma demanda crescente por locais de trabalho flexíveis e profissionais, ambientes informais de aprendizagem e atividades que proporcionem o desenvolvimento empreendedor. Dessa forma, podemos vê-los como uma resposta a uma lacuna na provisão de políticas, fornecendo a infraestrutura social para a construção de redes e colaborações entre pessoas, ideias e lugares (Merkel, 2015). Muitas vezes, tais espaços vão além do fornecimento de infraestrutura que suporta as atividades profissionais de networking, treinamento e crescimento profissional comumente associadas a eles (Gandini, 2015); seu trabalho igualmente enfatiza o desenvolvimento do patrimônio e da comunidade e apoia o estabelecimento de uma massa crítica de atores locais, o que pode, além disso, facilitar o turismo e o ativismo. São, assim, espaços multifuncionais e multiagenda fundamentais para o desenvolvimento da economia criativa. Isso é ilustrado através do estudo de caso do Tribe xx Lab, em Lagos, um espaço de coworking orientado para mulheres (England et al., 2022).

A cofundadora Emalohi L. Iruobe Esq disse em nossa reunião que “mais de 70% da população feminina na Nigéria se envolve em alguma forma de empreendedorismo, seja por meio de pequenos negócios, bicos e agitação criativa, seja como empreendedoras em tempo integral”. No entanto, as oportunidades para as mulheres estabelecerem negócios são escassas, em parte devido ao patriarcado e ao nepotismo vigentes na sociedade nigeriana, o que torna muito difícil para as empresárias na Nigéria despontarem e se desenvolverem. As mulheres ainda são discriminadas pelos bancos ao tentar obter bons empréstimos, pelos proprietários de imóveis para conseguir aluguel e pelo governo nigeriano, que não aprovou a Lei de Igualdade de Gênero, apresentada em março de 2016, que tornaria ilegal a discriminação contra as mulheres.

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A literatura internacional mais ampla destaca como o financiamento das iccs está evoluindo atualmente, uma vez que as instituições financeiras tradicionais não oferecem soluções personalizadas suficientes (Monclus, 2015). Por meio da nossa pesquisa, observamos os desafios de acesso a financiamento formal acessível, consistente e adequado (doações, empréstimos, investimentos etc.). Entretanto, identificamos exemplos de novos intermediários que estão contribuindo para o desenvolvimento da inovação e oferecendo financiamento para iccs na África. Isso mostra como abordagens inovadoras e melhores práticas podem se desenvolver em períodos relativamente curtos, tanto por meio de colaborações internacionais quanto pelo trabalho de intermediários locais (Comunian et al., 2022). Em Nairóbi, isso incluiu o Fundo Heva (Njuguna et al., 2022), que cresceu como uma cisão do trabalho do Nest Collective, uma organização artística multidisciplinar com sede na cidade. O Nest deu início a uma reflexão sobre os meios de subsistência artísticos e o que precisaria ser feito para garantir que os artistas pudessem viver de sua arte de forma sustentável. Em 2013, apoiado pela Hivos East Africa, contratou um estudo de viabilidade sobre a economia criativa na África Oriental. Conforme Njuguna et al. (2022) analisam, naquela época as pesquisas não abordavam questões envolvendo financiamento com soluções viáveis e sustentáveis para bancar empreendedores criativos por meio de ferramentas de investimento como empréstimos e ações: “O Nest havia proposto um fundo de garantia da dívida para o setor criativo, e um estudo determinaria se isso era de fato a melhor solução para as dificuldades que os empreendedores criativos enfrentam ao buscar financiamento” (p. 47). Em Lagos, trabalhamos com a Hatch Africa, uma consultoria sediada no Reino Unido focada no crescimento empresarial e sustentabilidade na África. Seu trabalho concentra-se na diversidade de atividades e modelos de negócios criativos em todo o continente e na importância de educar os profissionais criativos sobre as realidades financeiras do empreendedorismo e o ambiente de financiamento, bem como de desenvolver modelos de investimento e de negócios adequados às suas necessidades (Mokuolu et al., 2021). Os intermediários criativos também apoiaram o estabelecimento e a manutenção de redes de diferentes tipos e com finalidades variadas, tanto formais como informais, em contextos locais, nacionais e internacionais. Para os trabalhadores criativos, a participação em redes contribuiu tanto para suas atividades profissionais quanto para seu processo criativo, atuando como chave de aprendizado e de ideias geradoras de opor-

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tunidades dentro de uma comunidade criativa em constante crescimento. Instituições de ensino superior, espaços de coworking, polos criativos e organizações comunitárias atuaram como facilitadores da rede, e, embora houvesse afinidades em seus interesses e objetivos, nem sempre havia interação entre eles. Além da rede de pesquisa formada por meio desse projeto, os grupos de discussão propiciaram espaços valiosos em que os profissionais e os intermediários criativos puderam se engajar uns com os outros, se conectar em diferentes redes e continuar as conversas após os eventos. Da mesma forma, identificamos as principais oportunidades para o desenvolvimento de redes regionais e continentais e compartilhamento de conhecimento. Por meio delas, as melhores práticas em um determinado país africano poderiam fornecer uma estrutura mais adequada para o desenvolvimento da economia criativa em outros países do continente, em vez de se basear em exemplos do Norte Global ou aqueles conduzidos por agências não africanas.

INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS, COMUNIDADES E AGENDAS DE DESENVOLVIMENTO

Nossa pesquisa expôs a necessidade de convergência de agendas de desenvolvimento cultural, social e econômico no trabalho de profissionais e intermediários criativos em espaços de coworking, polos criativos e clusters da África. Isso contribui para o crescimento econômico nacional e local, ao se trabalhar com agências e iniciativas de desenvolvimento continental e internacional de grande escala, a fim de aumentar as habilidades e expandir os mercados interno e de exportação. Os espaços e organizações com os quais nos envolvemos por meio da pesquisa e da rede não apenas permitiram o processo de aprendizagem social que dá suporte à criatividade, à eficiência, à geração de ideias e às conexões sociais que podem impulsionar o desempenho econômico, como também facilitaram mudanças sociais capazes de provocar um impacto ainda mais amplo (Akanle e Omotayo, 2020). Os espaços e clusters criativos da África e o trabalho dos intermediários podem, portanto, ser vistos como uma operação na interseção do desenvolvimento cultural, econômico e social. Isso inclui o apoio a grupos específicos da sociedade que, de outra forma, possivelmente seriam excluídos das oportunidades de desenvolvimento de negócios, como as mulheres (Steedman, 2022; England et al., 2022) e comunidades rurais marginalizadas (Abisuga-Oyekunle et al., 2021; Drummond

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e Snowball, 2022). Em Nairóbi, identificamos esforços para recuperar as indústrias têxteis domésticas, com o desenvolvimento de novas cadeias de fornecimento de materiais sustentáveis, que oferecem oportunidades de emprego para mulheres e agricultores rurais, conforme ilustrado pelo caso da Tosheka Textiles. A Tosheka passou a usar recentemente a seda eri como uma nova fibra para a produção de fios, tecidos e tapetes feitos à mão. A nova fibra é uma alternativa ao algodão de sequeiro, que não tem sido muito benéfico para as comunidades envolvidas. As atividades da Tosheka fornecem apoio à comunidade a partir de várias perspectivas; elas não substituem o trabalho agrícola comunitário, mas são integradas ao trabalho sazonal local, e as atividades de fiação e tecelagem são planejadas em torno de suas atividades agrícolas. Portanto, a renda torna-se adicional e permite a diversificação. A empresa oferece oportunidades de treinamento, além de contar com o conhecimento e a criatividade da comunidade local.

Grupos de discussão com intermediários na Cidade do Cabo enfatizaram a importância de trabalhar e aprender com as comunidades, particularmente grupos rurais e marginalizados, a fim de revisar a narrativa (principalmente em relação ao turismo e percepções de pobreza) e impulsionar a mudança, dando-lhes as ferramentas para se empoderarem. A necessidade de responder às necessidades da comunidade, e não às das organizações, era imperiosa. O estudo de caso do centro cultural Guga S’Thebe, em Langa, um distrito da Cidade do Cabo, exemplificou como a inserção social e o empreendedorismo foram, sim, apoiados por um conjunto de indivíduos e intermediários, mas impulsionados e sustentados por uma comunidade de base e uma massa crítica de trabalhadores criativos locais (Booyens et al., 2022). Atualmente, o espaço acomoda uma grande variedade de empreendimentos criativos, como arte em mosaico, cerâmica, pintura, têxteis (costura), bordado de contas e tecelagem, arte performática (dança, percussão, teatro) e artesanato em arame. Esse espaço de coworking atende um grupo diversificado de artesãos, artistas e designers que compartilham oficinas ou estúdios para a produção de bens criativos. Além de ser um local de produção cultural, o centro oferece uma plataforma de venda, intercâmbio cultural, coworking e aprendizado. Várias organizações comunitárias e sem fins lucrativos, como a Associação de Artesãos Guga S’Thebe, a Associação de Artes Langa, a Fundação Langa Heritage, a Ombonwethu e a Our Workshop estão envolvidas. Elas constituem um coletivo de profissionais criativos e empreendedores sociais que atuam como intermediários para artistas e artesãos.

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É importante salientar que as iniciativas de desenvolvimento da economia criativa são específicas ao local e não se limitam às áreas urbanas. As áreas rurais e as periferias das grandes cidades podem carecer de infraestrutura e capital humano para desenvolver uma série diversificada de iccs, além de ter dinâmicas específicas que devem ser levadas em consideração (Drummond e Snowball, 2022). Embora apresentem alguns desafios, existem oportunidades para desenvolver a vantagem competitiva e impulsionar o desenvolvimento por meio do turismo, aproveitando os clusters criativos locais existentes e suas habilidades e conhecimentos especializados.

Em nossas investigações sobre o papel da educação, redes e políticas para apoiar o desenvolvimento de economias criativas sustentáveis na África, nos defrontamos com o trabalho das mulheres africanas nesse setor. Áreas das iccs com baixas barreiras de entrada (como artes visuais e artesanato) já são reconhecidas por seu potencial de geração de emprego e renda para pessoas anteriormente desfavorecidas e marginalizadas, muitas das quais são mulheres (Abisuga-Oyekunle et al., 2021). Nossa pesquisa identificou áreas com barreiras potencialmente mais altas (em relação à educação, equipamentos e requisitos de capital) nas quais as mulheres estão prosperando e impulsionando o desenvolvimento, apesar dessas barreiras empreendedoras – mesmo que, conforme se observa internacionalmente, certas áreas ainda sejam dominadas por homens (mídia e digital) e mulheres (moda e artesanato). No entanto, identificamos uma série de plataformas formais e informais – incluindo o Tribe xx Lab, em Lagos – que possibilitam às mulheres prosperar, impulsionar o desenvolvimento e se engajar em áreas com alta tecnologia tradicionalmente dominadas por homens. Ao desenvolver economias criativas e expandir o envolvimento internacional com produtos criativos e culturais africanos, é importante incentivar as mulheres empreendedoras e as plataformas que as apoiam, e garantir que o crescimento e a internacionalização não dificultem sua ascensão.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Este artigo reuniu uma série de perspectivas e reflexões sobre o desenvolvimento das economias criativas na África. Concluiremos com alguns temas mais amplos que vieram à tona, antes de apresentar recomendações de políticas.

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Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England

O papel central do ensino superior Nossa pesquisa destacou a importância do desenvolvimento de habilidades e oportunidades de educação em relação às economias criativas na África. A educação permite que estudantes e profissionais aprendam uns com os outros e contribuam para o conhecimento e a experiência mais amplas do setor. O ensino superior, com as suas práticas de pesquisa e desenvolvimento, pode provocar uma mudança na perspectiva da economia criativa da África, baseada no patrimônio e na riqueza das tradições, para uma economia que apoie a necessidade de fomentar e aperfeiçoar a criatividade para alcançar qualidade e excelência reconhecidas internacionalmente. O ensino superior desempenha papel específico e único como intermediário valioso, coordenando e facilitando o desenvolvimento de economias criativas e trabalhando com ampla gama de partes interessadas e agendas (figura 2). As instituições de ensino superior e sua força de trabalho podem sugerir políticas, engajar-se com as necessidades da indústria, conectar-se com jovens que desejam ingressar nas iccs e disseminar a cultura. Portanto, posicionamos o ensino superior operando na interseção das iniciativas políticas (do desenvolvimento econômico ao envolvimento da comunidade), com o potencial de fazer contribuições significativas por meio de conexões aprimoradas nas economias criativas locais, nacionais e internacionais.

Fonte: desenhado por Elsardt Kigen.

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Figura 2: Ensino superior na interseção entre economias criativas, desenvolvimento local, juventude e políticas
Ensino
Economias criativas Juventude 1 3 2 4 Desenvolvimento local Políticas
superior

Redes e espaços para o trabalho criativo

Além do ensino superior, nossas atividades destacaram a variedade de práticas e experiências de trabalho dos profissionais criativos, o que reflete a diversidade das iccs e dos contextos nacionais e locais específicos em que atuam. De muitas maneiras, tais espaços podem ser vistos como operando fora – ou mesmo dentro – de estruturas políticas formais, atendendo à crescente demanda por espaços flexíveis de aprendizagem e produção criativa, redes e desenvolvimento empresarial (Hracs et al., 2022).

O que constatamos nos locais de nossa pesquisa foi a importante multifuncionalidade de provedores de ensino superior, espaços de coworking e polos criativos em relação a como eles contribuem com agendas múltiplas e sobrepostas, como produção cultural, desenvolvimento econômico, coesão comunitária, igualdade, sustentabilidade, turismo, preservação do patrimônio e educação. A oferta de espaços está significativamente ligada ao florescimento das economias sociocriativas (Comunian et al., 2020), interligando agendas econômicas, sociais e culturais.

Intermediários: conectando agendas de desenvolvimento

Embora o potencial para o crescimento econômico seja a razão proeminente para o desenvolvimento da economia criativa (em todo o continente e internacionalmente), ao estudar economias criativas na África notamos a fusão entre as agendas de desenvolvimento econômico, social e cultural. Isso inclui o papel do ensino superior na interseção de comunidades, políticas e indústria, a multifuncionalidade de espaços e hubs de coworking criativos e as diversas práticas e motivações de intermediários criativos, desde a preservação do patrimônio cultural e o empoderamento de grupos marginalizados até o desenvolvimento de mercados internacionais que impulsionam o crescimento econômico e melhoram as percepções internacionais dos produtos criativos da África. A sobreposição de agendas de desenvolvimento nas economias criativas é importante para a elaboração de iniciativas e espaços que deem apoio à expressão cultural e ao desenvolvimento econômico e que empoderem toda a sociedade, ao invés de beneficiar poucos.

Neste artigo, argumentamos que os intermediários desempenham um papel central ao conectarem essas agendas e atuarem como facilitadores, muitas vezes fazendo ligações entre setores ou partes divergentes da sociedade e tornando visíveis seus objetivos comuns

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Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England

e seu potencial de colaboração (figura 3). Além disso, o trabalho dos intermediários ajuda a identificar as carências do setor e de quem atua nele e a necessidade de mais reconhecimento e visibilidade das economias criativas e de seus valores.

Políticas para economias criativas prósperas Nossa pesquisa observou a ausência de priorização das iccs por parte das políticas nacionais de muitos países africanos. No entanto, há um claro potencial para que essas políticas abracem as economias criativas e desenvolvam infraestrutura de apoio em parceria com intermediários, organizações comunitárias e todo o setor privado. Ao implementar políticas que apoiarão efetivamente o desenvolvimento de economias criativas na África, é importante reunir empreendedores criativos, intermediários e legisladores. Os profissionais criativos têm um papel fundamental a desempenhar na orientação ao governo sobre o apoio de que precisam e na demonstração das melhores práticas do setor. Ao analisar as políticas para economias criativas na África, é importante adotar uma abordagem histórica e sistemática, examinando as iniciativas políticas – de cima para baixo e de baixo para cima – que podem capacitar os profissionais criativos e as organizações de apoio.

O desenvolvimento de políticas e programas para apoiar a produção criativa tendo em vista seus benefícios sociais e culturais mais amplos

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Figura 3: A centralidade dos intermediários criativos
emivlovnesed n to econÔmico Intermediários criativos d esenvolvimentocultuRa l desenvolvi m laicosotne 1 2 3
Fonte: desenhado por Elsardt Kigen.

é essencial para incentivar comunidades e sistemas criativos ao lado de potenciais agendas de desenvolvimento econômico. As pessoas que participaram de nossos workshops e grupos de discussão estavam muito interessadas em colaborar entre si e com parceiros internacionais. Elas mencionaram especificamente como era importante falar conosco para que tivéssemos mais informações sobre os contextos locais. Também relataram que era muito relevante para eles serem reconhecidos como atores significativos dentro dessa arena global. Portanto, como representantes das universidades do Reino Unido, sentimos que as organizações internacionais podem desempenhar um papel influente no reconhecimento do valor geral da cultura e das economias criativas, e devem admitir o preponderante papel dos intermediários e de seu trabalho no apoio aos ambientes criativos locais (De Bernard et al., 2021).

Destacamos a seguir cinco pilares (figura 4) para o desenvolvimento futuro que as políticas precisam considerar a fim de permitir que as economias criativas prosperem:

1. Reconhecer o valor que as economias criativas trazem para as comunidades, a sociedade e a economia. O valor só pode ser percebido se todos os indivíduos da sociedade forem capacitados para contribuir com ele e se beneficiar dele;

2. Reconhecer o papel dos intermediários criativos em unir legisladores, comunidades e empreendedores para elaborar estratégias e políticas de economias criativas baseadas na experiência. Desenvolver modelos de parceria e colaborações de várias partes interessadas – organizações públicas, privadas e comunitárias – em apoiar iniciativas e infraestrutura sustentáveis;

3. Investir em colaborações e parcerias com o ensino superior para apoiar um pipeline de talentos e agregar valor às economias criativas por meio de pesquisa, desenvolvimento e capital humano, maximizando o impacto das economias criativas locais e aumentando seu reconhecimento internacional;

4. Fortalecer colaborações continentais e internacionais por meio de pesquisa e construção de redes para apoiar o compartilhamento de conhecimento e o desenvolvimento de economias criativas em toda a África;

5. Criar infraestrutura acessível e inclusiva para apoiar economias criativas em contextos urbanos e rurais, garantindo que oportunidades educacionais e empreendimentos criativos estejam abertos a todos e representem a diversidade de cada nação ou região.

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Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England

Figura 4: Políticas para economias criativas prósperas

Reconhecer o valor que as economias criativas trazem para as comunidades, a sociedade e a economia.

Criar infraestrutura acessível e inclusiva para apoiar economias criativas.

Reconhecer o papel dos intermediários criativos em unir legisladores, comunidades e empreendedores.

Fortalecer colaborações continentais e internacionais por meio de pesquisa e construção de redes.

Fonte: desenhado por Elsardt Kigen.

Investir em colaborações e parcerias com o ensino superior.

Nota

1 Somos muito gratos pelo apoio financeiro oferecido pelo Arts and Humanities Research Council (ahRc, bolsa número ah/ P005950/1), do Reino Unido, por meio do Global Challenges Research Fund (gcRf). Também gostaríamos de agradecer a todos os participantes que contribuíram com os workshops na Cidade do Cabo, Lagos e Nairóbi em 2019. Nosso agradecimento especial aos colegas: Ogake Mosomi e à professora Lilac Adhiambo Osanjo, da University of Nairobi;

Wakiuru Njuguna, do Fundo Heva; professor Duro Oni e toda sua equipe do Departamento de Artes Criativas da University of Lagos; Polly Alakija, presidente do State Council for Arts and Culture de Lagos; Ojoma Ochai, do British Council da Nigéria; professora Jen Snowball, da Rhodes University; Unathi Lutshaba e equipe, do South African Cultural Observatory (Saco); e dra. Irma Booyens e suas colegas do Human Sciences Research Council.

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VALENTINA MONTALTO tem mais de doze anos de experiência profissional, combinando trabalhos no setor privado – como gerente de projetos – e no setor público – como pesquisadora e analista de políticas –, com foco no potencial da cultura para o bem-estar social e econômico. Seus interesses de pesquisa se concentram em: a) conceituar o papel da cultura em uma economia que é cada vez mais movida por conhecimento; b) desenvolver métricas para captar o valor social e econômico da cultura; e c) sugerir políticas – tanto em nível local quanto na União Europeia – que possam ajudar a extrair o máximo da cultura para empoderar cidadãos e promover desenvolvimento econômico. Trabalha atualmente no Joint Research Centre, da Comissão Europeia, onde lidera o projeto Cultural and Creative Cities Monitor.

A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável valor da cultura1

VALENTINA MONTALTO

INTRODUÇÃO

Toda cidade é cultural por definição. A cultura determina as relações das pessoas com o tempo, o espaço e outras pessoas, ainda mais em locais com alta densidade populacional e caracterizados por inúmeras e frequentes relações, como as cidades. Entretanto, os centros urbanos conhecidos como cidades de arte, cidades culturais ou cidades criativas são comumente o resultado de uma vontade específica de agentes (públicos, privados ou sem fins lucrativos) que convergem em torno da ideia de que a cultura pode ser um importante recurso para um território e, assim sendo, pode e deve ser valorizada visando ao interesse coletivo. Essa ideia pode se apresentar em configurações espaciais e políticas bastante distintas. Até mesmo o conceito popular de cidade criativa – que moveu inúmeras análises, pesquisas e estudos de caso ao longo dos últimos quarenta anos – reflete grande variedade de abordagens teóricas – um conceito que, apesar de poroso, é profundamente questionado pela mudança acelerada imposta pela pandemia de covid-19.

Inicialmente, este artigo propõe uma visão geral sobre as duas abordagens teóricas mais difundidas do conceito de cidade criativa. Em seguida, introduz uma ferramenta de avaliação comparativa – o Cultural and Creative Cities Monitor [Monitor de Cidades Criativas e Culturais] – que visa identificar empiricamente e medir a performance das cidades criativas europeias. Em um terceiro momento, conceitualiza os potenciais efeitos provocados pela pandemia em cidades criativas, os quais provavelmente serão coletados pela terceira edição do Monitor, a ser lançada em 2022. Por fim, discute duas ques-

A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável valor da cultura

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tões socioeconômicas conhecidas – a fragilidade dos trabalhadores culturais e o turismo de massa –, que a pandemia trouxe à tona, e que a próxima geração de cidades criativas deve enfrentar para equilibrar a necessidade de serem tanto atrativas quanto sustentáveis.

O QUE É UMA CIDADE CRIATIVA: FUNDAMENTOS TEÓRICOS

Ao longo dos anos 1980 e na primeira metade dos anos 1990, vários pesquisadores e iniciativas de políticas começaram a apontar questões relativas à constituição da criatividade e da inovação em aglomerações espaciais. Explícita ou implicitamente, tal esforço resultou em uma estrutura teórica emergente, focada no pós-fordismo e sua manifestação na produção flexível (Amin e Thrift, 1996), dando origem, enfim, ao conceito de “cidade criativa”.

Allen J. Scott e Richard Florida podem ser considerados alguns dos principais fundadores das reflexões que sustentam a relação entre cultura, criatividade e aglomerações urbanas. Scott (1997) examina o histórico de cidades que, através do tempo, se tornaram clusters especializados em produção cultural graças à combinação entre um contexto inicial específico (capital cultural), conexões e trocas (capital social) e um cenário institucional capaz de traduzir criatividade individual e coletiva em recurso para o território. A abordagem de Florida (2002, 2005), por sua vez, torna realmente possível popularizar o assunto, já que traz à tona as dinâmicas de especialização baseadas em cultura de grandes áreas metropolitanas, como Nova York, São Francisco, Paris ou Berlim. Ao mesmo tempo, impele uma série de outras cidades menores, como Antuérpia, na Bélgica (Martinez, 2007), Wollongong, na Austrália (Waitt e Gibson, 2009), e Óbidos, em Portugal (Tomaz, Selada e Da Cunha, 2011), a criar condições para nutrir dinâmicas similares. Basicamente, Florida presume uma relação direta entre a classe criativa e o crescimento econômico de uma cidade; daí a necessidade de atrair a classe de trabalhadores por meio de um ambiente rico em facilidades (inclusive culturais), diverso e tolerante, com excelente infraestrutura tecnológica e alta concentração de talentos (os chamados “3 Ts”).

Os autores propõem duas abordagens conceituais bastante diferentes para o papel da cultura e da criatividade nas cidades: no primeiro caso, uma abordagem orientada pela produção cultural (a cidade cresce ao produzir cultura), e, no segundo, pelo consumo cul-

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tural (a cidade cresce graças a talentos atraídos também por oportunidades de consumo cultural). Enquanto no primeiro caso possibilita-se à cultura e à criatividade o crescimento orgânico dentro da cidade, no segundo a cultura assume papel instrumental para atrair talentos externos, o que, em última análise, produz risco de rejeitar jovens e promissores profissionais criativos de baixa renda, como discutido amplamente na literatura especializada (Comunian, 2011; D’Ovidio, 2016; Sacco, 2014).

Como a produção cultural requer condições regionais específicas (concentração de talentos, fluxo de conhecimento e ideias através de redes formais e informais, mercado local e/ou capacidade de alcançar os nichos adequados no mercado global, entre outros), capitais e grandes cidades são geralmente os locais onde se concentram os principais centros de produção cultural, com raras exceções (o cluster de cerâmicas da cidade de Caltagirone, na Itália, é um exemplo).

No caso de pequenos centros urbanos, o turismo pode por vezes compensar a dificuldade de se implantar uma economia com alto valor agregado, tornando-os locais próprios para a difusão e o consumo de uma cultura produzida em outro lugar, capaz ao mesmo tempo de contribuir para (re)ativar a cadeia de suprimentos culturais locais (Barrado-Timón, Palacios, e Hidalgo-Giralt, 2020). É isso que a rede de Cidades Criativas da Unesco, como Barcelos (Portugal, c. 120 mil habitantes) e Angoulême (França, c. 42 mil habitantes), está tentando fazer por meio do artesanato e da literatura, respectivamente, de modo a escolher a produção cultural como a força motriz para as estratégias de promoção do turismo. Curiosamente, enquanto Barcelos ostenta tradição histórica no setor de cerâmica, Angoulême só passou a desenvolver sua cadeia de suprimentos no setor de hqs há pouco tempo, depois do grande sucesso do Festival International de la Bande Dessinée (fidb) (Chesnel, 2010; Lesage, 2013), que se tornou um dos mais importantes da Europa.

CIDADES CRIATIVAS EUROPEIAS: UMA FERRAMENTA EMPÍRICA DE AVALIAÇÃO COMPARATIVA

De acordo com os dados do Monitor de Cidades Criativas e Culturais, desenvolvido pelo Joint Research Centre, da Comissão Europeia, pelo menos 190 cidades de trinta países europeus (27 da União Europeia, e também Noruega, Suíça e Reino Unido) decidiram investir em cultura como elemento de especialização e diferenciação regional.

A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável valor da cultura

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Essas cidades estão incluídas na ferramenta de medida comparativa devido ao compromisso de iniciar rotas de desenvolvimento baseadas em cultura. O Monitor mensura tais compromissos empiricamente, utilizando três iniciativas comparáveis em escala internacional. Assim, o índice leva em conta os seguintes dados:

• 98 cidades que foram ou serão Capitais Europeias da Cultura (ou foram pré-selecionadas para se tornar uma);

• 33 cidades criativas da Unesco; e

• 59 cidades que sediam pelo menos dois festivais culturais internacionais.

A performance dessas cidades é medida por meio de 29 indicadores diferentes, todos eles relacionados ao sistema criativo e cultural de cada localidade. Tais indicadores derivam de um conjunto inicia de dados com cerca de duzentos indicadores baseados em critérios estatísticos e conceituais (Montalto, Tacao Moura, Alberti, Saisana e Panella, 2019; Montalto, Tacao Moura, Langedijk e Saisana, 2019). O Monitor reúne então 29 métricas com o fim de calcular os subíndices de Vitalidade

Cultural, Economia Criativa e Ambiente Favorável, assim como o Índice de Cidades Criativas e Culturais (c3), como um indicador sintético da vitalidade cultural e criativa das cidades europeias.

162 Valentina Montalto
Pesos dos subíndices Subíndices Pesos das dimensões  Dimensões Indicadores 40%  1. Vitalidade cultural 50% D1.1 Espaços e instalações culturais Pontos turísticos e de referência Museus e galerias de arte Assentos de cinema Concertos e shows Teatros 50% D1.2 Participação cultural e atratividade Pernoites de turistas
em museus
em cinemas
com equipamentos culturais Tabela 1: Monitor de Cidades Criativas e Culturais: estrutura conceitual, indicadores e pesos
Visitantes
Presença
Satisfação

Pesos dos subíndices Subíndices Pesos das dimensões  Dimensões Indicadores

40% D2.1 Empregos baseados em criatividade e conhecimento

Empregos em arte, cultura e entretenimento

Empregos em mídia e comunicação

Empregos em outros setores criativos

40%  2. Economia criativa

20%  D2.2 Propriedade intelectual e inovação

Pedidos de patente de tic Community design applications

Empregos em novas empresas de arte, cultura e entretenimento

40% D2.3 Novos empregos em setores criativos

Empregos em novas empresas de mídia e comunicação

Empregos em novas empresas de outros setores criativos

Graduados em Artes e Humanidades

20%  3. Ambiente favorável

40% D3.1 Capital humano e educação

Graduados em tic

Média de aparições em classificações universitárias

Graduados estrangeiros

População nascida no exterior

40% D3.2 Abertura, tolerância e confiança

Tolerância de estrangeiros

Integração de estrangeiros

Confiança em pessoas

Acessibilidade a voos de passageiros

15% D3.3 Conexões locais e internacionais

Acessibilidade rodoviária

Acessibilidade ferroviária

5% D3.4 Qualidade de governança Qualidade de governança

Fonte: Cultural and Creative Cities Monitor – edição 2019.

Mesmo sem os dados da terceira edição do Monitor, cuja publicação está agendada para 2022 – que vão nos permitir medir empiricamente o impacto da pandemia em cidades criativas –, podemos antecipar que a recente crise sanitária enfraqueceu o dinamismo cultural que caracteriza tais cidades em pelo menos três frentes.

CIDADES CRIATIVAS SOB A LENTE DA PANDEMIA DE COVID-19: CONCEITUANDO IMPACTOS

Em primeiro lugar, a pandemia certamente afetou o setor cultural enquanto setor econômico e isso se deve a pelo menos dois motivos: o primeiro é a necessidade de um público presencial, especialmente em alguns setores, como o de entretenimento ao vivo (daí a incompatibilidade entre muitos trabalhos culturais e o teletrabalho); o segundo deriva da fragilidade estrutural de um setor em que um terço dos empregados nos 27 países da União Europeia são autônomos (uma proporção de 32% contra 14% dos empregos em geral). O percentual é ainda maior entre artistas e escritores (na ordem de 44%) (Fonte: Eurostat, 2020). Trabalhadores fora do padrão, como os autônomos, têm maior risco de perder renda e estão mais propensos a não ter fontes alternativas de renda ou planos de saúde.

Em segundo lugar, a recente crise econômico-sanitária afeta a cultura enquanto bem de consumo/lazer e, por extensão, todos os setores que dependem dela, a começar pelo turismo. Nas cidades analisadas pelo Monitor de Cidades Criativas e Culturais, de 2% a 12% dos empregos correm alto risco; o percentual flutua entre 17% e 60% se também levarmos em conta os empregos no setor de turismo.

Em terceiro lugar, a crise sanitária afeta a cultura enquanto bem relacional e instrumento de cuidado individual e coletivo, já que espaços físicos de cultura foram esvaziados de súbito e se tornaram inacessíveis como nunca havia ocorrido. O fechamento de espaços e a drástica redução do acesso afetaram tanto cidades grandes quanto médias e pequenas. Em termos de bem-estar individual e coletivo, a pandemia pode afetar particularmente cidades menores, onde as pessoas parecem ser mais apegadas às instalações culturais locais. De acordo com resultados de uma pesquisa europeia sobre qualidade de vida, é nas cidades de tamanho médio onde, na verdade, se registra a maior parte de habitantes satisfeitos com a infraestrutura cultural local (Bolsi et al., 2020). Em média, 90% da população na amostragem de 83 cidades se diz satisfeita. Isso se dá principalmente graças à alta porcentagem de habitantes satisfeitos que se encontra em cidades médias, como Aalborg (Dinamarca, 95%), Cardiff (Reino Unido, 95%), Oulu (Finlândia, 94%), Groningen (Holanda, 94%), Malmo (Suécia, 94%), Estrasburgo (França, 93%), Gdansk (Polônia, 93%), Antuérpia (Bélgica, 92%) e Bolonha (Itália, 89%).

164 Valentina Montalto

Figura 1: Taxa de empregos nas áreas de cultura e turismo em algumas cidades da União Europeia que fazem parte do “top 50” do Índice de Cidades Criativas e Culturais

Fonte: Elaborado pelo Joint Research Center ( jRc), da Comissão Europeia, com base em dados de Eurostat (Urban Audit; dados mais recentes combinados para o período de 2011–16. NaceE Rev. 2, R a U, e Nace Rev. 2, G a I).

Veneza Bologna Milão Lisboa Barcelona Avignon Atenas Frankfurt Bremen Cork Galway Tartu Mainz Amsterdã Nuremberg Leipzig Kraków Turku Dublin Munique Toulouse Stuttgart Groningen Leuven 0 0,1 0,2 0,3 0,4 0,5

%

<65

65 - 72

72 - 78

78 - 80

>= 80

População das cidades

<250 000

250 000 – 500 000

500 000 – 1 000 000

1 000 000 – 5 000 000

>= 5 000 000

Fonte: Comissão Europeia (Report on the Quality of Life in European Cities, 2020).

166 Valentina Montalto
Figura 2: Taxa de habitantes satisfeitos com a infraestrutura cultural de sua cidade (salas de concerto, teatros, museus e bibliotecas)

Na primeira fase da pandemia, muitas cidades não apenas agiram de maneira veloz como também tal ação foi articulada em resposta aos múltiplos impactos ocasionados pela situação emergencial. De um lado, governos locais (e, dependendo do caso, regionais e nacionais) introduziram medidas de apoio financeiro e empregatício; de outro, iniciaram ou apoiaram campanhas de divulgação para o período de verão, voltadas para o público local, e não internacional. Além disso, favoreceram ou mesmo apoiaram financeiramente o desenvolvimento de formatos alternativos de produção e distribuição, com o objetivo de modelar espaços, como as plataformas digitais, ou de encontrar categorias de público particularmente exposto aos efeitos socioeconômicos da pandemia (para mais informações, ver Montalto et al., 2020; uclg Culture Committee, 2020; Unesco, 2020).

A validação dessas medidas se encontra sobretudo no reconhecimento institucional, o que agrega às dimensões econômica, empregatícia e social da cultura. Ainda assim, a crise evidencia gargalos socioeconômicos do setor, que são bem conhecidos e foram exacerbados pelo peculiar momento histórico que vivenciamos. Em resumo, tais gargalos envolvem uma questão central: como tornar cidades criativas atraentes e sustentáveis?

Sustentabilidade tem relação, em primeiro lugar, com as condições de trabalho precárias e frágeis em que a maioria dos trabalhadores culturais se encontram (Comunian e England, 2020). Ratificar a dignidade do trabalho dos profissionais significa reconhecer e preservar o capital humano e profissional que alimenta a imagem e a economia cognitivo-cultural de nossas cidades. Mas quem exatamente são esses trabalhadores? Os dados existentes não são suficientes para medir trabalhadores culturais e criativos, especialmente no nível das cidades. Como a maioria é freelancer, eles geralmente escapam das estatísticas oficiais. A pandemia oferece às cidades a oportunidade de refletir sobre novas maneiras de coletar dados aprofundados relativos a esses trabalhadores, o que pode, em última instância, ajudar a torná-los visíveis diante das políticas tanto culturais quanto sociais, em todos os níveis relevantes de governo. O conhecimento aprimorado representará, assim, a base para a criação de um sistema de bem-estar que leve em conta as condições estruturais do mercado de trabalho cultural (trabalho baseado em projeto, alta mobilidade etc.). A adoção de um European Status of

A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável valor da cultura

167
RUMO A NOVAS MANEIRAS DE CONSTRUIR UMA CIDADE CRIATIVA?

the Artist, proposto pelo Parlamento Europeu e agora aguardando a ação da Comissão Europeia, segue exatamente na direção de tornar o trabalho cultural sustentável.

Em segundo lugar, a sustentabilidade tem relação com um campo de reflexão igualmente conhecido, o turismo. Apesar de a pandemia ter afetado severamente a economia turística, trata-se de um período que permitiu que cidades redescobrissem o valor de um tipo diferente de turismo, mais lento e próximo. Ela não terá sido em vão se propiciar oportunidade para repensar o turismo urbano. Algumas cidades já trabalham para isso, principalmente Barcelona, que pretende transformar La Rambla em eixo cultural. A ideia, ambiciosa e visionária, pode ser pioneira do novo modelo de desenvolvimento urbano baseado em cultura – modelo este que vai além da mera monoeconomia turística. A questão principal é como setores e profissionais culturais podem se tornar parceiros da indústria do turismo, com o objetivo de adicionar ideias sustentáveis ao desenvolvimento de um turismo cultural atrativo.

Esses dois tópicos podem auxiliar a moldar as políticas e a agenda de pesquisa das cidades criativas para além de respostas emergenciais de curto prazo à pandemia.

Nota

1 Este artigo foi elaborado para o Seminário Internacional de Economia e Política da Cultura e Indústrias Criativas para o Desenvolvimento Sustentável, realizado em outubro de 2021 pelo Itaú Cultural e pela

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufRgs). Em maio de 2022, foi publicado no livro que leva o mesmo nome e está disponível nos sites do Itaú Cultural e da ufRgs Tradução de Tatiana Diniz. [N. do org.]

168 Valentina Montalto

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A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável valor da cultura

169

HASAN BAKHSHI é diretor do Creative Industries Policy and Evidence Centre, um consórcio de pesquisa de dez universidades financiado pelo Arts and Humanities Research Council (AHRC) e liderado pela Nesta cuja função é melhorar a base de evidências das políticas de apoio às indústrias criativas do Reino Unido. Antes de trabalhar na Nesta, foi diretor executivo do Lehman Brothers, economista-chefe interino do Ministério de Relações Exteriores e da Comunidade das Nações e economista do Banco da Inglaterra. Tem um grande número de publicações em periódicos acadêmicos e políticos sobre assuntos que variam do progresso tecnológico e crescimento econômico à economia do setor criativo e cultural. É membro do Creative Industries Council do governo britânico e do conselho consultivo do Department for Digital, Culture, Media and Sport (DCMS). Em 2017, foi eleito membro do Royal Economic Society Council. Atualmente, integra o conselho de duas organizações de arte: Art UK e Darbar Arts.

Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?1

HASAN BAKHSHI

Cada vez mais, em todo o mundo, as indústrias culturais e criativas (iccs) precisam fazer uso de dados quantitativos e de estatísticas para o desenvolvimento de seu trabalho (Mateos-Garcia, 2014; Lilley e Moore, 2013). Promover mais “tomada de decisão orientada por dados” é visto como um meio de as organizações alcançarem eficiência operacional (Navarrete, 2013) e de se aproximarem do público (Finnis, Chan e Clements, 2011) e como uma maneira de facilitar o desenvolvimento de conteúdos criativos e inovações em modelos de negócios (Behrens et al., 2020). As organizações beneficiárias de financiamento público enfrentam pressões adicionais para uma maior utilização dos dados, em especial para demonstrar que os benefícios do apoio ao contribuinte compensam os custos. O fato de que os benefícios culturais do investimento público são difíceis de quantificar levou alguns economistas a redobrados esforços para mensurar seus benefícios econômicos e sociais, que são mais fáceis de medir (Bakhshi, 2013).

Neste breve artigo, proponho seis princípios aos quais os indicadores devem aderir para que a cultura e a criatividade sejam incluídas na agenda político-econômica.2 Ilustro esses princípios com três estudos de caso de dados das iccs britânicas.

SEIS PRINCÍPIOS PARA INDICADORES CULTURAIS

Os seis princípios apresentados no diagrama a seguir (figura 1) são inspirados em uma estrutura desenvolvida por um consórcio de pesquisadores liderados pela Nesta no contexto de um projeto sobre indicadores de pesquisa e inovação financiado pelo programa Hori-

Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?

171

zonte 2020, da União Europeia (Blind, 2018). Não devem ser vistos como um conjunto exclusivo, mas sim como princípios necessários, embora não suficientes, para que a cultura e a criatividade assumam seu devido lugar na agenda político-econômica. Em particular, eles não abordam integralmente questões de ética de dados, como responsabilidade e justiça – considerações vitais para a cultura, assim como para outros setores, mas que receberam muita atenção nos últimos anos (ver, por exemplo, o Government Digital Service – 2020 –, do Reino Unido).

Esses princípios não devem ser vistos como aplicáveis exclusivamente às iccs. No entanto, a cultura de advocacy do setor, muitas vezes associada a reivindicações que não podem se apoiar em dados confiáveis, evidencia como eles são importantes para as iccs. Sem dúvida, a adesão aos seis princípios não é conflitante, mas essencial para uma advocacy eficaz nas indústrias culturais e criativas. Os indicadores devem sobretudo expor os muitos problemas das iccs, bem como os benefícios que elas conferem à economia e à sociedade. A legitimidade aos olhos dos formuladores de políticas é garantida com a ajuda de dados rigorosos e transparentes, e não por dados unilaterais.

Dinâmico

Transparente

Relevante

Dados culturais

Inclusivo

Confiante

Oportuno

172 Hasan Bakhshi
Fonte: elaboração própria. Figura 1: Seis princípios para indicadores culturais

Indicadores relevantes contêm informações úteis, com nível apropriado de resolução (geográfica, setorial, ocupacional etc.) para os formuladores de políticas. O que é considerado “útil” depende da compreensão do que o formulador está tentando alcançar, a natureza das suas decisões, as restrições que elas enfrentam e quais instrumentos políticos eles têm disponíveis para atingir seu objetivo. Em determinado contexto cultural, o formulador de políticas pode, por exemplo, precisar de estimativas setoriais de emprego para informar esquemas de criação de vagas direcionadas. Contudo, quando é necessário um argumento competitivo ao tentar obter financiamento de seu ministério da economia ou finanças, o formulador pode enfrentar restrições advindas da comparação com outras forças de trabalho.

Indicadores inclusivos apresentam o quadro mais completo do conjunto de oportunidades e restrições relevantes para o formulador de políticas. Além de tornar mais provável que os resultados pretendidos sejam alcançados, as políticas inclusivas se ancoram em um apoio mais amplo dos beneficiários. Essas razões estão além das justificativas normativas óbvias para querer que os indicadores sejam inclusivos. Em um contexto cultural, no qual o escopo da política é altamente questionado e os interesses e as desigualdades são grandes, a inclusão de indicadores (e transparência onde há privilégios) pode ser crucial.

O momento oportuno para as decisões políticas é normalmente ditado pela lógica política e por fatores conjunturais que independem dos processos de geração de dados. O período de tempo ao qual um indicador se refere deve, portanto, ser relevante para a decisão política em questão. Em um contexto cultural, por exemplo, a classificação industrial-padrão (sic), estabelecida internacionalmente, e a classificação ocupacional-padrão (soc), usada nas estatísticas oficiais, são revisadas com intervalos de aproximadamente décadas, dando origem a estatísticas sobre iccs imprecisas para mudanças rápidas, incluindo emergentes e subsetores – precisamente aqueles que mais merecem atenção política. Um exemplo é o setor de videogames, que, embora longe de ser uma indústria nova, ainda carece de uma identidade separada na sic (Nações Unidas, 2008).

Formuladores de políticas precisam de indicadores que possam ser usados sem que se tenham grandes preocupações com sua qualidade, interpretabilidade, representatividade e oportunidade: em suma, eles devem ser confiáveis. Na prática, a construção de confiança pode exigir que os formuladores de políticas se envolvam com os in-

Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?

173

dicadores repetidamente e ao longo do tempo. A chancela estatística das agências de coleta de dados, assim como o endosso dos institutos nacionais de estatística, é uma consideração igualmente importante. Em geral, confiança requer transparência: os formuladores de políticas contam com a capacidade de especialistas independentes, que tenham a possibilidade de confrontar as agências de coleta de dados. Além de seu papel na construção de confiança com os formuladores de políticas e outros usuários de dados, a transparência leva a obtenção de dados inclusivos e de maior qualidade, pois as limitações metodológicas e as lacunas nas informações são expostas, podendo ser sugeridas melhorias. Em áreas contestadas como a cultura, a transparência sobre o que não está sendo medido é tão importante quanto o que é, de fato, medido. Uma revolução de dados abertos está ocorrendo em disciplinas como economia e psicologia, das quais periódicos acadêmicos agora exigem regularmente que os autores publiquem os conjuntos de dados necessários para replicar seus resultados. Sem dúvida, porém, os dados usados na grande maioria dos novos trabalhos empíricos na área de iccs permanecem fechados para analistas terceirizados. Em um contexto cultural, a falta de transparência (sobre a metodologia) ajuda a explicar por que as classificações nacionais de iccs permanecem inalteradas por muito tempo após sua introdução, não obstante a natureza de rápida mudança dessas indústrias. Apesar dos esforços de instituições multilaterais como a Unesco, o trabalho de medição das iccs é internacionalmente fragmentado e raramente se baseia em contribuições anteriores. Isso inibe o desenvolvimento de uma base de evidências madura.

Para se adequar à sua finalidade, as metodologias e as fontes de dados também precisam ser robustas em relação às mudanças nos processos de geração de dados, caso contrário perdem relevância para os formuladores de políticas. Em outras palavras, elas devem ser dinâmicas. Isso exige que as agências de coleta de dados em áreas de políticas sujeitas a rápida mudança se envolvam com novas fontes de dados à medida que estejam disponíveis, bem como experimentem técnicas analíticas de ponta, como aprendizado de máquina, análise de rede e visualização interativa de dados. Em um contexto cultural, em que o foco da política é amplo e a medição é inerentemente desafiadora, o estabelecimento de um conjunto de indicadores com entendimentos transparentes de seus diferentes pontos fortes e fracos deve ser o objetivo.

Os três exemplos a seguir são do Reino Unido e foram escolhidos para ilustrar esses diferentes princípios.

174 Hasan Bakhshi

Caso 1 – Um mapeamento dinâmico da economia criativa

Para que possam indicar as prioridades da política industrial e comparar desempenhos econômicos nacionais e regionais ao longo do tempo, os governos precisam de estimativas das contribuições das iccs para exportações, valor agregado e emprego. Mas quais subsetores devem ser tratados como iccs para esses fins? No Reino Unido, o dcms adotou, em 2014, o Mapeamento Dinâmico,3 um método para classificar subsetores individuais como “criativos” nas estatísticas econômicas setoriais (Bakhshi, Freeman e Higgs, 2013).

A abordagem é composta por três etapas distintas: a primeira consiste em utilizar critérios específicos para classificar determinadas profissões como criativas; a segunda, em caracterizar como indústrias criativas aquelas que empregam uma proporção excepcionalmente alta de pessoas em ocupações criativas; e a terceira, em definir a economia criativa como a soma dos trabalhadores das indústrias criativas e daqueles empregados em ocupações criativas em outras indústrias (ver tabela 1).4

Além de ser transparente sobre a base na qual alguns subsetores e ocupações são incluídos nas estatísticas de economia criativa do Reino Unido, a abordagem tem como um de seus pontos fortes o uso de classificações industriais-padrão confiáveis e da Pesquisa da Força de Trabalho oficial (um levantamento de dados inclusivo que abrange todo o Reino Unido e todos os segmentos da força de trabalho, incluindo – o que é importante para as iccs – os trabalhadores independentes).

Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?

175
EM
Ocupação
Outras
EMPREGOS EM INDÚSTRIAS CRIATIVAS
OUTRAS INDÚSTRIAS Ocupação criativa
criativa Outras ocupações
ocupações
Tabela 1: Economia criativa Fonte: elaboração própria; os empregos relacionados à economia criativa estão destacados em verde escuro escuro.

Caso 2 – Valor econômico da cultura e do patrimônio Governos utilizam técnicas de análise de custo-benefício para avaliar oportunidades de investimento público. Se os benefícios esperados descontados de um investimento excederem os custos, isso sugere que há motivos econômicos para fazer tal investimento. E se, porém, esses benefícios não forem mediados pelos mercados e, portanto, não se refletirem nos preços? No caso do Reino Unido, consideremos os museus nacionais, que normalmente têm entrada gratuita: uma análise de custo-benefício de uma possível expansão de um museu que dependesse apenas dos benefícios de mercado subestimaria severamente os benefícios de uso para o público frequentador. A avaliação do investimento seria ainda mais distorcida se a expansão desse museu também trouxesse benefícios para quem não o visita, como o valor (de não uso) para as gerações futuras ou mesmo o valor da sua simples existência para o público.

Por todas essas razões, nos últimos anos, o dcms, em colaboração com o Arts and Humanities Research Council e com financiadores como o Arts Council England e a Historic England, vem desenvolvendo uma base de evidências sobre estimativas de uso e não valor do patrimônio cultural e patrimonial (dcms, 2021). Os estudos publicados abrangem coleções nacionais (Bakhshi, Fujiwara, Lawton e Mourato e Dolan, 2015), cidades e catedrais históricas (Lawton et al., 2018), ruas históricas e edifícios cívicos (Lawton, Fujiwara, Szydlowska, Lagarde, Radosevic, Arber e van Emmerik, 2021), museus locais (Fujiwara et al., 2018) e galerias e teatros locais (Lawton, Fujiwara, Arber, Radosevic, Lagarde, Donovan, Davies e Bakhshi, 2021). As pesquisas sobre o público geral nas quais esses estudos se baseiam são projetadas para ser representativas da população relevante. Há perguntas sobre status geográfico, socioeconômico e demográfico, o que permite explorar as diferenças entre os grupos. No entanto, a implementação desses estudos é repleta de desafios técnicos, e por isso tem sido importante submeter sua aplicação à revisão acadêmica por pares (Lawton et al. , 2019; Lawton, Fujiwara, Mourato, Bakhshi, Lagarde e Davies, 2021).

Os cenários de valoração apresentados ao público também podem ser adaptados à medida que as propostas de valor das organizações culturais e patrimoniais evoluem. Fujiwara et al. (2017), por exemplo, usam técnicas de avaliação contingente para estimar o valor público do arquivo online do British Film Institute, que o público acessa gratuitamente na internet.

176 Hasan Bakhshi

Além de sua óbvia relevância para os financiadores, o resultado das pesquisas revela orientações focadas no setor sobre como as organizações devem e não devem usar as estimativas no desenvolvimento de modelos de negócios para investimento (Lawton, Fujiwara, Bakhshi, Mourato, Arber e Davies, 2021).

Caso 3 – Radar criativo

Um dos interesses permanentes dos formuladores de políticas para as iccs em todo o mundo é confirmar se eles contribuem para o desenvolvimento econômico local (Chapain et al., 2009) e, em caso afirmativo, se o crescimento em um lugar se dá à custa do crescimento em outros lugares ou de forma complementar a ele. No Reino Unido, a economia criativa (Bakhshi, Davies, Freeman e Higgs, 2015) e as indústrias criativas (Mateos-Garcia e Bakhshi, 2016) estão, sem dúvida, entre os setores mais desiguais em relação à distribuição geográfica.

Uma característica presente nos estudos mencionados é que eles analisam as indústrias criativas em níveis relativamente baixos de resolução geográfica, como nas Travel to Work Areas – áreas contíguas onde pelo menos 75% dos residentes trabalham e 75% dos trabalhadores residem –, que são atualmente 243 no Reino Unido. Para mapear as indústrias criativas em uma resolução mais refinada, Siepel et al. (2020) usam dados extraídos dos sites de mais de 200 mil empresas e organizações criativas do Reino Unido, incluindo seu código postal. Eles então empregam um algoritmo de agrupamento espacial para identificar microclusters. Depois disso, usam os dados varridos como um quadro de amostragem para uma pesquisa longitudinal de empresas, o que lhes permite coletar informações oportunas sobre, entre outras coisas, o histórico de crescimento, ambições e dificuldades das empresas localizadas nos microclusters em comparação com aqueles encontrados em outras áreas, incluindo grandes aglomerados urbanos. Eles identificam empresas criativas dentro do contingente empresarial com base em palavras-chave derivadas da maneira como as empresas se descrevem em seus sites. Essa abordagem certamente fornece um conjunto mais rico de negócios criativos do que aquelas baseadas nos códigos sic das empresas, conhecidas por sofrerem com altas taxas de classificação incorretas (Bakhshi, 2016). Os dados varridos são coletados pela empresa Glass.ai, que já forneceu dados desse tipo para pesquisas anteriores voltadas à classificação setorial (Mateos-Garcia, Stathou-

Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?

177

lopoulos e Thomas, 2018; Mateos-Garcia, Klinger e Stathoulopoulos, 2018), inclusive para o instituto de estatística do Reino Unido, o Office for National Statistics – ons (Lee, 2020).

Embora o conjunto de dados seja muito grande, ele tem limitações. Uma delas é o fato de ele não ser 100% inclusivo, uma vez que, por exemplo, nem todas as empresas criativas têm um site. É difícil afirmar quão grande é esse problema. Por um lado, as estimativas do ons sugerem que apenas 18,6% das empresas com dez a 49 funcionários não contam com um site. Porém, por outro, sabe-se que as iccs contêm em seu interior um número desproporcionalmente grande de microempresas (com menos de dez funcionários), das quais até 58,9% não têm sites (ons, 2021).

178 Hasan Bakhshi

Notas

1 Este artigo foi elaborado para o Seminário Internacional de Economia e Política da Cultura e Indústrias Criativas para o Desenvolvimento Sustentável, realizado em outubro de 2021 pelo Itaú Cultural e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufRgs). Em maio de 2022, foi publicado no livro que leva o mesmo nome e está disponível nos sites do Itaú Cultural e da ufRgs. [N. do org.]

2 Por cultura e criatividade, refiro-me às atividades das indústrias culturais e criativas, que a Unesco define como os “setores de atividade organizada que têm como objetivo principal a produção ou reprodução,

promoção, distribuição ou comercialização de bens, serviços e atividades de conteúdo derivado de origens culturais, artísticas ou patrimoniais”. Disponível em: en.unesco.org/ creativity/sites/creativity/files/digital-library/What%20Do%20We%20Mean%20 by%20CCI.pdf.

3 Este método foi utilizado para a construção e definição dos setores criativos presentes no Painel de Dados do Observatório. Disponível em: www.itaucultural.org.br/observatorio/ paineldedados. [N. da ed.]

4 Bakhshi (2020) apresenta as três etapas mais detalhadamente.

Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?

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Hasan Bakhshi

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Que indicadores são necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?

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à esquerda Mansur Bassit, Cláudia Leitão e Guilherme Varella; à direita Cláudio Lins de Vasconcelos e Aldo Valentim

A história recente da política brasileira de economia da cultura revisitada –

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati

A política pública é um processo dinâmico e de construção permanente. Muitas vezes, decisões, estratégias e ideias não são devidamente registradas. Com o intuito de oferecer importantes insights para futuras gerações de formuladores de políticas públicas brasileiros, foram convidados a responder às perguntas a seguir gestores culturais formalmente responsáveis pela área de economia da cultura, indústrias criativas e economia criativa do governo federal brasileiro entre 2012 e 2022.

A ideia deste encontro foi falar sobre futuro, perspectivas e desafios e como reconstruir a política brasileira de economia da cultura e indústrias criativas a partir de um contexto de restrição orçamentária, polarização, descontinuidade institucional e pandemia. Não se tentou realizar um balanço de gestões, mas sim registrar reflexões individuais dos entrevistados, todos formuladores de políticas públicas, sobre como preparar essas políticas para um novo ciclo.

Os entrevistados foram: Cláudia Leitão (cl), secretária de Economia Criativa do governo Dilma Rousseff (2011–12); Guilherme Varella (gv), secretário de Políticas Culturais – a Secretaria de Políticas Culturais absorveu a Secretaria de Economia Criativa – do governo Dilma Rousseff (2014–16); Cláudio Lins de Vasconcelos (clv), secretário de Economia da Cultura do governo Michel Temer (2016); Mansur Bassit (mb), secretário de Economia da Cultura do governo Michel Temer (2016–18); e Aldo Valentim (av), secretário de Economia Criativa do governo Jair Bolsonaro (2019–22).

A história recente da política brasileira de economia da cultura revisitada

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1. POLÍTICAS CULTURAIS PARA A ECONOMIA DA CULTURA

Leandro Valiati Quais as principais potencialidades e limites das políticas de economia da cultura dentro da arquitetura de política cultural do país?

Cláudia Leitão As potencialidades para a economia da cultura são imensas dentro de um ministério, que, em princípio, quando da sua existência,1 nunca se dedicou de uma forma mais aprofundada e efetiva a essa temática. De certa forma, talvez tenhamos tido dois ministros que tiveram a preocupação com a questão do desenvolvimento e da economia da cultura, Celso Furtado [1986–88] e Gilberto Gil [2003–08], mas não houve, na estrutura do próprio Sistema Nacional de Cultura, nas atuações do próprio ministério, políticas claras, contínuas e efetivas para trazer a cultura à mesa do desenvolvimento do país, especialmente a de um novo desenvolvimento, mais amplo e sustentável. Considero, portanto, que as potencialidades são grandes, mas as políticas de cultura do Ministério da Cultura são absolutamente esparsas, sazonais e ainda insatisfatórias.

Guilherme Varella A primeira questão a ser entendida é que uma política nacional de economia da cultura precisa ter escala. Não dá para pensar numa economia da cultura que não considere a dimensão territorial e a complexidade regional brasileiras e as peculiaridades de serviços e de estrutura estatal de atendimento em cada região; é preciso considerar esses fatores. Nesse sentido, a ausência de uma coordenação federativa de uma economia da cultura faz muita falta. Não existir o Ministério da Cultura,com suas atribuições de fazer a coordenação das outras instâncias federativas, estados e municípios, e a coordenação programática de um plano que dê conta de orientar as competências de cada instância na economia da cultura, os processos regulatórios e importantes que precisam ser feitos, as questões relacionadas aos atendimentos mais regionalizados, que têm diferentes cenários econômicos – ou seja, esse olhar panorâmico e de alguma maneira de coordenação –, faz com que exista uma desestruturação institucional do campo da economia da cultura ou, de alguma maneira, uma falta de musculatura estatal para conseguir ativar a liga-

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Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati 1 O Ministério da Cultura foi oficialmente extinto pela medida provisória nº 870, em 1º janeiro de 2019, no governo de Jair Bolsonaro (2018–22).

ção com a iniciativa privada e com os processos de consumo e fruição da sociedade. Considerando isso, as potencialidades se resumem a tentar uma articulação entre os estados que já têm algum tipo de política sobre o setor e de alguma maneira criar consórcios estaduais e estruturas que possam trabalhar a regulação econômica da cultura e as políticas de economia da cultura, além de servir como agentes de conexão com os municípios, para conseguir pensar políticas mais regionalizadas.

Cláudio Lins de Vasconcelos Os limitadores se devem, em grande parte, a problemas sistêmicos, como o papel evidentemente secundário reservado às demandas da área no contexto geral da administração pública federal. Um exemplo: a precariedade de dados oficiais sobre o setor é um problema, pois dificulta o desenho de políticas públicas. A criação de uma conta-satélite no ibge, como há em muitos países, resolveria parte do problema e permitiria comparações internacionais, mas a ideia nunca saiu do papel. Ocorre que isso é apenas um sintoma; a causa é a relutância dos agentes públicos em reconhecer a centralidade da produção de conteúdo na economia contemporânea, fortemente calcada em ativos intangíveis. É essa visão – ou a falta de uma – que impede que outras áreas do governo, como a Fazenda, a Indústria e Comércio Exterior ou o Itamaraty, se apropriem do tema como pauta estratégica de suas pastas.

Mansur Bassit O Brasil é um país de pessoas criativas na essência, apesar de muitos não se darem conta. Qualquer empreendedor brasileiro precisa de criatividade para enfrentar uma ciranda burocrática, instável e sem garantias de sustentabilidade. Ainda não conseguimos pensar num projeto de país, muito menos num projeto que viabilize uma integração entre educação, cultura e economia com uma visão ampla. Ainda pensamos em “caixinhas”, e não na transversalidade do tema. A cultura é tida como supérflua na visão da maioria dos cidadãos. Poucos compreendem sua dimensão na geração de empregos, na movimentação de uma cadeia econômica e na capacitação de habilidades que a educação pode proporcionar. É urgente que se quebrem paradigmas a fim de pensar num projeto amplo que envolva a transversalidade entre cultura, educação, economia e até saúde – saúde não como o contrário de doença, mas como bem-estar social, mental e de equilíbrio do corpo e da mente.

A história recente da política brasileira de economia da cultura revisitada

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Aldo Valentim A própria diversidade cultural e criativa do Brasil é uma matéria-prima em potencial e deve ser vista como insumo central para a formulação de políticas públicas de economia criativa, setor que já representou cerca de 2,6% do pib brasileiro. Mas os desafios são enormes. É preciso, sobretudo, diminuir as desigualdades de acesso, observadas pelos números de municípios sem nenhum equipamento cultural. Temos 19% da população com mais de dez anos sem acesso à internet em casa; 41% da oferta cultural está concentrada nas regiões metropolitanas. Esses indicadores, além de mostrarem a exclusão, apontam para um potencial de crescimento e para o quanto os empreendedores criativos ainda podem expandir seus mercados com a oferta de bens e serviços que preencham essas lacunas. No caso do poder público, os indicadores também mostram as potencialidades para a construção de políticas públicas de economia criativa, seja por meio de ações que incluam essa população no consumo cultural (presencial e virtual), seja por meio de programas que colaborem com a criação de espaços voltados para a economia criativa nas cidades. Temos, ainda, diversos desafios estruturantes, dentre eles extinguir as atuais estruturas institucionais e criar outras sob novos parâmetros e com marcos legais adequados ao conceito de economia criativa, porque as atuais estão ultrapassadas para enfrentar os desafios impostos pelo século xxi, sobretudo para o momento pós-pandêmico.

LV Na sua visão, a área de economia criativa/indústrias criativas pode ser mais eficiente se for liderada por um Ministério/Secretaria da Cultura ou por outras áreas de um governo?

CL Quando estive no ministério, sempre advoguei que a cultura poderia ter um lugar muito estratégico para ganhar força, prestígio e valor simbólico dentro da Esplanada dos Ministérios se essa temática se transformasse numa política

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Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
“[…] a precariedade de dados oficiais sobre o setor é um problema, pois dificulta o desenho de políticas públicas.” – CLV

pública liderada pelo Ministério de Cultura. Afinal de contas, a cultura qualifica o desenvolvimento, daí o seu importante papel nessa liderança, para que nós não corramos o risco ou a ameaça de tirar o valor simbólico, isto é, de destruir os bens e serviços culturais e criativos dos seus valores simbólicos, culturais e identitários. No entanto, o que se percebe em termos globais é que essas temáticas também acabam trabalhando, de forma transversal e transdisciplinar, com outras pastas. Há grande sinergia entre indústrias criativas e as temáticas do turismo, do lazer, do entretenimento, da ciência e tecnologia e da cultura. O caso brasileiro é bem complicado, porque nem sequer temos mais o Ministério da Cultura, mas eu imagino que, numa nova estrutura do Estado brasileiro, será preciso trabalhar políticas transversais que façam essa costura entre diversas pastas, na perspectiva de um plano maior, que nós chegamos inclusive a propor para a presidenta Dilma Roussef à época da criação da Secretaria [de Economia Criativa], o chamado Plano Brasil Criativo, envolvendo quinze ministérios com políticas sinergéticas voltadas ao desenvolvimento local e nacional, nessa perspectiva da transversalidade de políticas. Precisamos, por isso, de indicadores capazes de quantificar e qualificar esse desenvolvimento sustentável de uma forma multidimensional.

GV O principal seria, de fato, restituir o Ministério da Cultura como uma instância coordenadora dos processos econômicos da cultura num nível jurídico e institucional, mas isso está fora dos planos de agora. Esperamos que esses planos possam voltar o mais breve possível. Sem eles, a gente tem que pensar em outras coisas. Acho que as principais limitações estão relacionadas ao desenvolvimento desigual de cadeias econômicas de segmentos e de linguagens culturais, enquanto algumas já têm uma tradição mercadológica e co-

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“Ainda não conseguimos pensar num projeto de país, muito menos num projeto que viabilize uma integração entre educação, cultura e economia com uma visão ampla.”
– MB

mercial por estarem intimamente ligadas a processos privados de marketing, publicidade ou de financiamento (privado ou de instituições ligadas ao campo privado). Isso vale muito para as linguagens artísticas, e essas linguagens têm algo mais desenvolvido, uma vasta gama de expressões culturais, principalmente aquelas mais relacionadas a produções comunitárias, tradicionais, populares ou de linguagens mais experimentais ou desinstitucionalizadas, que passam a ter um pouco mais de dificuldade de se organizar enquanto cadeia. Um passo importante seria pensar em iniciativas regulatórias e de políticas de financiamento de organização de segmentos que são potenciais indústrias.

CLV Institucionalização é importante, em especial para uma área historicamente negligenciada, com orçamento baixo e descontinuidade de políticas, entre outros problemas. O tema em si não deve ficar restrito a um só órgão, pois o desenvolvimento de um setor econômico de cultura forte, diverso e comprometido com os interesses econômicos e geopolíticos do país me parece um objetivo compartilhado. O fundamental é que haja uma estratégia integrada de produção e distribuição desses bens. A existência de uma estrutura estável, de nível ministerial, dedicada à liderança das pautas, à articulação intragovernamental e à interlocução com o setor produtivo, é altamente recomendável.

MB Se a economia criativa e as indústrias criativas estiverem sendo pensadas transversalmente pelos gestores da cultura, educação e economia, pouco importa a nominação do órgão público. O essencial é haver um projeto para o tema, pensado estrategicamente, com execução menos burocratizada, mais democrática, orçamento estabelecido e garantido por lei e equipes capacitadas.

AV Dentro da Secretaria/Ministério da Cultura é um equívoco. Teríamos resultados mais assertivos se houvesse uma secretaria específica para formulação, coordenação e articulação dessas políticas numa das áreas fortes de qualquer estrutura governamental: economia, planejamento ou governo.

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati

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2. MODELO DE FINANCIAMENTO

LV Como você avalia a efetividade do atual modelo brasileiro de financiamento à cultura? Qual seria, na sua visão, a forma mais efetiva de harmonizar o sistema de mecenato (política indireta) com o de fundos de cultura (política direta) no Brasil? Você acredita que o modelo brasileiro de financiamento cultural (mecenato predominante – Lei Rouanet) está adequado ao sistema legal-institucional do país (estrutura institucional de políticas lideradas pelo Estado)? Quais avanços você enxerga como ideais? E quais seriam possíveis no curto e médio prazo?

CL Considero que o modelo de financiamento de cultura é muito reduzido e pouco eficiente. Na verdade, eu diria que, nessa área de fomento, financiamento, incentivo, investimento, o ministério pouco avançou. Ficamos limitados às leis de incentivo nas perspectivas federal, dos estados e dos municípios, e também a um tipo de financiamento muito baseado na lógica de editais, como se eles fossem políticas. Editais são instrumentos, não políticas públicas. Nós precisamos avançar com uma compreensão muito mais larga do que significa financiamento, fomento, incentivo e investimento em cultura no Brasil. Se pensarmos – e essa questão é bastante ampla –nas etapas de criação, produção, distribuição, comercialização e consumo de bens e serviços culturais, veremos que precisamos de financiamento para todas elas, coisa que não acontece. É preciso pensar novas formas de financiamento que envolvam também os setores privados, as organizações privadas e as parcerias público-privadas. Precisamos de um financiamento que vá além das leis de incentivo e que permita financiamentos colaborativos. Precisamos de linhas de crédito – especialmente de pequenos e microcréditos – orientadas aos setores criativos

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“A própria diversidade cultural e criativa do Brasil é uma matéria-prima em potencial e deve ser vista como insumo central para a formulação de políticas públicas de economia criativa, setor que já representou cerca de 2,6% do PIB brasileiro.” – AV

2 fuRtado, C. Cultura e Desenvolvimento em época de crise, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

e culturais. Precisamos de “investidores-anjo”. Precisamos resolver a questão dos fundos garantidores, que não permitem a um criador, a um empreendedor cultural brasileiro, ter acesso a créditos, porque há sempre garantias que são impossíveis de ser realizadas. Há aí, portanto, vários óbices que não nos permitem avançar, o que faz com que a cultura seja vista de uma forma frágil e sazonal, sempre relacionada aos ciclos dos editais, recursos que muitas vezes não chegam ou chegam atrasados. Quando falamos de editais, falamos também do dirigismo que acaba acontecendo, e o criador começa a pensar a sua criação a partir de editais, o que é uma inversão total da lógica necessária ao direito à criatividade,2 como assim o denominou Celso Furtado. Parece-me que nós precisamos de um Sistema Nacional de Cultura por meio do qual os fundos realmente tenham recursos dignos, suficientes para que o próprio ministério e as pastas estaduais e municipais possam formular políticas e enfrentar as necessidades de aplicabilidade dessas políticas no território. O Fundo Nacional da Cultura no Brasil foi sistematicamente apequenado, reduzido, e o país, em termos de política federal, sempre teve muito mais recursos para a Lei Rouanet [ou Lei de Incentivo à Cultura] do que para fundos de cultura, o que é um descalabro, um erro estrutural do sistema de fomento à cultura. O mecenato deve ser um instrumento, mas ele não pode ser o único. Isso cria uma série de distorções às quais precisamos estar atentos. Precisamos, na verdade, insisto, prestigiar os fundos de cultura e criar um verdadeiro sistema – como o que temos na área da educação, que são fundos que estão interligados a uma arquitetura jurídico-política do Fundo Nacional da Cultura; que seja um fundo capaz de alimentar com recursos os fundos estaduais e municipais para um verdadeiro federalismo cultural. Se esse processo não acontece, não há qualquer sentido na criação de fundos estaduais e municipais, daí as dificuldades da vontade política de prefeitos e governadores. Eles precisam ser alimentados e retroalimentados com uma política nacional de cultura, criando-se, portanto, uma arquitetura eficaz, eficiente e efetiva para o financiamento de cultura no Brasil.

GV Eu acho que o problema da efetividade do modelo brasileiro de financiamento à cultura é mais de afetividade. Nós ficamos muito apegados à ideia de que uma lei de incentivo

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Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati

fiscal pode significar a espinha dorsal de uma estrutura de financiamento à cultura no Brasil, e isso é uma inverdade. A lei de incentivo fiscal, que, na verdade, dá conta de apenas uma parcela das manifestações culturais – aquelas que têm mais visibilidade, apelo midiático, concentração de público e, por tudo isso, mais interesse das iniciativas empresariais –, surgiu como uma lei temporária que, depois de dinamizar e aquecer o mercado da cultura, pudesse deixar de existir para que o mercado, os mecenas e as empresas, com suas próprias pernas, pelas próprias finanças, dessem conta de financiar os projetos culturais que fossem do seu interesse. Ou seja, o Estado, que é um intermediador nessa relação, deixaria de ficar como intermediador para funcionar efetivamente como um financiador, um regulador de políticas de financiamento à cultura. Hoje a gente tem um debate enviesado. Há aqueles que acham que o financiamento da parte mais voltada às linguagens comerciais, que é o que a Lei Rouanet faz, significa o financiamento da cultura no Brasil. Isso não funciona, porque as manifestações das culturas populares e tradicionais, as mais experimentais, as mais difíceis, as que mais independem de público, aquelas de pesquisa, de linguagens inovadoras, não vão ter esse acesso, e essas iniciativas são a grande maioria. A grande questão é que elas não têm o mesmo espaço de mídia nem a mesma projeção econômico-financeira. A avaliação que eu tenho do modelo é a de que houve, por questões políticas e institucionais de orçamento, uma diminuição da expressão política da pasta da Cultura, uma falta de regulação efetiva da forma de arrecadação, uma falta de regulamentação efetiva do Fundo Nacional da Cultura e uma ausência de um sistema distributivo fundo a fundo através do sistema nacional. Por todas essas razões, o Fundo Nacional da Cultura acabou tendo um espaço subvalorizado, escanteado dentro de um quadro de financiamento. Assim, não pelos seus méritos, mas pela au -

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“Precisamos de um financiamento que vá além das leis de incentivo e que permita financiamentos colaborativos.”
CL

sência deles, a Lei Rouanet acabou ocupando, mais do que um vácuo orçamentário, um vácuo especialmente simbólico. Se não há um fundo, não há outra política. A Lei Rouanet acaba cobrindo isso e ocupando um espaço simbólico de ser o lugar que fala pelo financiamento à cultura. Paralelamente, existem os editais, que são poucos, porque o orçamento direto e finalístico da cultura é pouco, e existem os mecanismos que vêm da regulação – a Condecine, por exemplo, do Fundo Setorial do Audiovisual, que faz com que esse fundo seja um colosso orçamentário perto do orçamento do Ministério da Cultura. Só que ele é aplicado a apenas uma das áreas: a área que tem a indústria desenvolvida. Esse modelo traz parcos financiamentos ao audiovisual, exorbitante pelo processo regulatório, e uma Lei de Incentivo à Cultura que tenta ocupar o todo, embora ela só ocupe uma parte. Essa conta não fecha.

Na minha visão, a forma mais efetiva de harmonizar os sistemas de incentivo fiscal e de fundo de cultura no Brasil é pensar o que não deve ser feito, ou seja, justamente o que está propondo hoje o governo federal, na gestão Bolsonaro. Primeiro, a inexistência do Ministério da Cultura, o fato de ser uma secretaria, com uma estrutura subvalorizada dentro da estrutura institucional do governo, sem o status necessário, sem prestígio, sem orçamento, sem estatura política, tudo isso faz com que a discussão já parta de uma prerrogativa equivocada de que a cultura tem um papel e uma importância menores, e isso também significa um orçamento, um descontingenciamento, um repasse e uma liberação menores. A segunda coisa que não deve ser feita é a criminalização do setor artístico pelas ferramentas institucionais de financiamento, cuja principal é a Lei de Incentivo à Cultura. O problema dessa lei não são os artistas, são os gestores ou produtores culturais; o problema da Lei de Incentivo à Cultura é um desenho normativo e institucional que replica as distorções de uma economia capitalista no setor cultural.

CLV Os números do crescimento do setor cultural nas últimas décadas são, em si, uma evidência do impacto positivo das políticas de fomento e incentivo. Em meados da década de 1990, a produção de longas-metragens brasileiros não chegava a dez obras por ano. Duas décadas depois,

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Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati

chegou-se ao patamar de duzentas obras por ano. Isso é resultado de uma política de financiamento público consistente. Ampliando a análise para outras linguagens, notaremos que, antes da Lei Rouanet, praticamente não havia um setor econômico da cultura, com produção estável, força de trabalho formada e redes de relacionamento estabelecidas com outros agentes econômicos. Esses mecanismos não são imunes a críticas, claro. No caso da Lei Rouanet, boa parte delas se deve ao fato de que, dos três modelos de financiamento previstos, apenas o mecenato é plenamente utilizado.

Patrocínios estão irremediavelmente atrelados a objetivos mercadológicos. Isso não seria um problema se o mecenato fosse apenas um dos mecanismos, e não o único, em termos práticos. Espera-se, contudo, que o mecenato preencha o vácuo deixado pela inoperância do Fundo Nacional da Cultura e pela não implementação do Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). Não é o ideal.

Os mecanismos de financiamento à cultura vêm há muito sendo tratados, por reguladores, Judiciário e tribunais de contas, como políticas de natureza compensatória criadas para “ajudar a quem precisa”. Alguns mecanismos são para isto mesmo: viabilizar manifestações artístico-literárias que não ocorreriam de outra forma por absoluta ausência de capital privado. É o caso do Fundo Nacional da Cultura, assim como de algumas linhas do Fundo Setorial do Audiovisual. Outros mecanismos, no entanto, como o mecenato, constituem principalmente uma política de desenvolvimento setorial, com função macroeconômica comparável, embora não idêntica, à de incentivos destinados a outras indústrias. O importante num mecanismo de fomento setorial é o aumento da produção e dos postos de trabalho. O controle deveria ser finalístico, dentro de parâmetros gerais de qualidade e orçamento. Controlar a aplicação de incentivos setoriais rubrica a rubrica gera custos administrativos desnecessários para o Estado e riscos regulatórios intoleráveis para grande parte dos pequenos e médios produtores.

MB Já avançamos muito nos modelos de financiamento, mas ainda há muito a ser feito. Somos um país gigantesco, com municípios e estados em diferentes níveis de desenvolvimento e com maturidades administrativas muito diversas.

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Formas de financiamento, assim como políticas públicas, não deveriam ser padronizadas num país tão diverso e desigual. Financiar a cultura pensando nos mais de 5 mil municípios de uma única maneira não é viável. O desafio está em criarmos modelos de financiamento menos burocratizados, mais adaptados às diferentes realidades e demandas de cada região, e, principalmente, levando em conta a cultura local e suas manifestações regionais, que, em grande parte, diferem do eixo econômico da região sudeste.

A princípio, acredito ser necessário garantir o funcionamento do que se tem hoje. Somos um país que arrecada muito, mas gasta de maneira errada – isso quando consegue que essa arrecadação atenda a seu fim inicial. Orçamento, repasse e execução deveriam andar juntos. Leis que garantissem a divisão do fomento atendendo com mais recursos a quem menos chance tem de se fomentar sozinho são um exemplo. Após tudo que ainda estamos passando no país e na cultura, acredito que necessitamos de uma campanha de conscientização da importância da cultura para o ser humano, mostrando que ela é, mais que lazer, um importante instrumento de inclusão econômica. É preciso ter um projeto que valorize a economia da cultura e as indústrias criativas. Muita coisa já se faz, principalmente em nível estadual. Incluir no currículo escolar disciplinas que ensinem o potencial da economia da cultura desde o ensino fundamental seria, a médio e longo prazo, uma forma importante de se construir uma nova mentalidade e uma nova visão da cultura e do mundo.

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Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
“Ampliando a análise para outras linguagens, notaremos que, antes da Lei Rouanet, praticamente não havia um setor econômico da cultura, com produção estável, força de trabalho formada e redes de relacionamento estabelecidas com outros agentes econômicos.” – CLV

AV Não é efetiva, pois não temos evidentes as definições que devem vir antes. Qual é o papel do Estado no financiamento à cultura? Quais setores são prioritários? Como devem ser apoiados? Quais tipos de projetos e atividades devem ser financiados? Continuaremos com esse modelo de repasse de recursos a fundo perdido somente aos empresários culturais, produtores e artistas (lado da oferta) ou vamos avançar para modelos voltados ao público (lado da demanda), tais como vale-cultura, vouchers, meia-entrada baseada em renda, políticas para acesso à internet e oferta cultural disponibilizada pelas plataformas e streaming para parcelas da população de baixa renda? Outro ponto é a divisão de responsabilidades entre União, estados e municípios: definir o que é competência exclusiva de cada ente para, a partir daí, entendermos a real demanda de recursos públicos e desenhar um sistema de financiamento coerente. O terceiro ponto é parar com o pensamento de que basta criar leis, sendo que o adequado e simples é executar plenamente as leis existentes. Por exemplo, a Lei 8.313/91 [Lei Rouanet] contém vários mecanismos: o Fundo Nacional da Cultura (editais para projetos, convênios com estados e prefeituras, bolsas e passagens aéreas), empréstimos reembolsáveis, incentivo fiscal e o Ficart – um fundo de investimentos reembolsáveis para os grandes projetos. No entanto, essa lei nunca foi implementada totalmente, concentrando toda a pressão no incentivo fiscal. Há uma ausência de monitoramento e avaliação dos resultados e impactos que possam nortear os ajustes e o debate público. Considero importante a sociedade participar, pois é o contribuinte quem paga a conta. Não acho que o debate deve se concentrar apenas entre setor artístico, políticos e gestores públicos; o cidadão-contribuinte deve ser instado a opinar.

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3. ECONOMIA DA CULTURA E PANDEMIA

LV Você entende que as medidas tomadas pelo Brasil para proteger o setor cultural da grave crise econômica durante a pandemia foram efetivas?

CL Considero que não houve nenhuma responsabilização, liderança ou atuação realmente significativas do governo federal no sentido de proteger o campo da cultura da situação dificílima, eu diria quase trágica, em que se encontraram os profissionais, artistas, protagonistas da cultura e empreendedores culturais, que, na verdade, atravessaram a pandemia desamparados, sem quaisquer priorizações. E nós sabemos que todas as grandes organizações internacionais – a própria Unesco, o Grupo de Roma do G20 e a Organização dos Estados Ibero-Americanos (oei) – fizeram uma série de observações e alertas para a necessidade de que os países encarassem a economia da cultura de uma forma prioritária dentro das suas políticas para o atravessamento da pandemia. Setores que em princípio vivem da aglomeração, da atuação no território, foram prejudicados. Sabemos que essa transferência para o mundo digital foi muito complexa, especialmente frágil para os criadores, que não tiveram, portanto, remuneração. Eles próprios tiveram de propor uma série de produtos e serviços realizados ao longo da pandemia, como lives, encontros digitais etc. Houve uma omissão absurda, e a economia da cultura, assim como outros setores que trabalham nessa perspectiva do simbólico – e eu falo aqui no sentido da economia criativa, que é mais amplo do que o da economia da cultura –, foi muito prejudicada pela ausência de políticas públicas, também

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Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
“O desafio está em criarmos modelos de financiamento menos burocratizados, mais adaptados às diferentes realidades e demandas de cada região, e, principalmente, levando em conta a cultura local e suas manifestações regionais, que, em grande parte, diferem do eixo econômico da região sudeste.” – MB

reflexo da destruição de todo esse constructo do Ministério da Cultura ao longo de sua existência – dos anos 1980, no governo Collor, já sob ameaça de extinção, até quando foi de fato extinto pelo governo Temer. Essa sazonalidade do ministério tem sido muito prejudicial para as políticas de cultura de forma geral, mas, em relação à economia da cultura, essas políticas nunca tomaram uma dimensão estratégica no âmbito federal, pela própria fragilidade da pasta. É preciso, quem sabe numa reestruturação do Ministério da Cultura, refazê-lo de uma outra forma, repensando sua estrutura, sua missão, sua finalidade. Eu sempre lembro de uma divisão que existia antes do golpe que destituiu a presidenta Dilma do poder, e que no início eu não entendia, entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. A ideia de dois ministérios para a agricultura significava, de uma forma muito interessante, que há uma indústria da agricultura, mas há também uma importância imensa e uma necessidade de políticas para os pequenos agricultores, para o desenvolvimento de pequenas propriedades. Nós somos um país onde essa agricultura dos pequenos é muito importante. Parece-me que é a mesma lógica para a cultura. Nós precisaremos ter uma visão muito clara do que é indústria cultural e do que é economia dos pequenos fazedores de cultura. Essa divisão me parece estratégica para o pós-pandemia e quem sabe para um novo Ministério da Cultura.

GV Entendendo que a crise no setor cultural brasileiro não foi causada pela pandemia, mas agravada por ela, a primeira constatação é de que as medidas – basicamente a Lei Aldir Blanc e algumas medidas mais locais de auxílio – foram tomadas pelo Congresso Nacional, e não pelo governo federal. O governo, inclusive, foi contra e só teve que aceitá-las por causa da aprovação unânime e referendada socialmente, com muito apoio popular. Não foi uma agenda de apoio econômico ao setor que veio do Executivo, comprovando mais uma vez que a acefalia da cultura não foi despropositada; pelo contrário, há uma estratégia de desmonte em curso. Acredito que elas foram efetivas para um contexto de auxílio imediato e para uma superemergência de socorro ao setor cultural, mas os seus efeitos se estancam no tempo, então, no médio prazo, elas deixam de funcionar. Aí vieram outras leis, a Lei Aldir Blanc 2 e a Lei Paulo Gustavo – que o governo foi novamente contra;

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teve até veto relacionado a alguns projetos –, para tentar dar algum tipo de continuidade.

Com relação à efetividade, é preciso considerar algumas coisas. A primeira é que nem todos os integrantes do setor cultural conseguiram acessar a lei. Muitos deles, que têm algum tipo de atividade de difícil comprovação, não conseguiram confirmá-las, ou nem sequer conseguiram organizar minimamente as formalidades para acessar os recursos. A segunda é que muitas prefeituras, em especial as pequenas, também não tinham condição estrutural de dar conta da execução. Acho que isso influenciou bastante – já está até havendo um desdobramento de questões de prestação de conta e tudo mais. Sendo assim, é difícil falar em efetividade de uma forma absoluta. Acho que ela teve uma efetividade relativa relacionada à questão paliativa do socorro imediato, mas se estancou no tempo. O Congresso entrou nessa pauta, mas medidas estruturantes de economia da cultura para a pandemia não foram realizadas. Não dá para falar em efetividade se nem sequer as medidas foram realizadas por parte do Executivo. Injeção de recursos imediatos é fundamental, mas outras medidas relacionadas à competência tributária, à organização de outros arranjos mais locais e territoriais, à coordenação de esforços para socorrer determinados setores além da cultura, como turismo e desenvolvimento, poderiam ter sido feitas. Nada disso foi feito. Então não dá para falar em efetividade nesse sentido.

CLV Foram poucas as medidas oficiais de contenção da crise no setor. Na verdade, no auge da pandemia, os principais mecanismos de apoio à economia da cultura estavam paralisados ou com suas atividades drasticamente reduzidas. A Ancine tomou algumas medidas, como a liberação de linhas de crédito e a autorização para a primeira exibição em outras janelas que não as salas de exibição, as quais estavam interditadas. Os editais de produção, no entanto, principal sustentáculo da produção independente, foram suspensos por mais de dois anos. As omissões foram ainda mais graves no âmbito da Secretaria Especial da Cultura. A Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (cnic), que exerce papel central na aprovação de projetos, foi praticamente dissolvida no período e ainda não retomou suas atividades. Com isso, muitos projetos ficaram pendentes de análise e aprovação.

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MB No momento tão polarizado que vivemos, qualquer auxílio para o setor cultural é essencial. Certamente poderia ter sido feito muito mais se não tivéssemos uma política evidente de desmonte do setor. A Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc só estão aí porque o setor lutou muito para se fazer ouvir. Mesmo assim, ainda estamos com problemas sérios mesmo após a retomada. Como disse antes, temos grandes desigualdades que precisam ser vistas e atendidas. Com a pandemia, as pessoas e seus hábitos de consumo, inclusive cultural, mudaram, e a transformação digital acelerou-se de tal forma que uma nova organização das políticas públicas precisa ser pensada.

AV O governo federal, através da Secretaria Especial da Cultura, disponibilizou, no período da pandemia, o maior volume de recursos para o setor cultural da história, por meio da Lei Aldir Blanc. Foram transferidos 3 bilhões de reais aos 26 estados, ao Distrito Federal e a 4.744 municípios – 85% do total dos municípios brasileiros –, possibilitando aproximadamente o lançamento de mais de 8 mil editais, o apoio a mais de 25 mil espaços culturais e o atendimento a 700 mil artistas, por meio do auxílio à renda, segundo as projeções iniciais da secretaria. Além da Lei Aldir Blanc, o governo federal criou linhas de crédito por meio do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), destinado a eventos, shows e entretenimento, e do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe). Somente o setor cultural obteve 37.535.337.173,04 de reais em 2020 e 23.861.818.170,25 de reais em 2021, totalizando o valor de 61.397.155.343,29 de reais. Considero que as medidas foram efetivas e a resposta foi adequada diante do que a conjuntura e os acordos políticos da época permitiram.

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“Com a pandemia, as pessoas e seus hábitos de consumo, inclusive cultural, mudaram, e a transformação digital acelerou-se de tal forma que uma nova organização das políticas públicas precisa ser pensada.” – MB

Houve um esforço do Congresso na aprovação das leis e um empenho das equipes envolvidas, nos diversos ministérios, para que as ações de mitigação dos impactos da pandemia no setor cultural fossem implementadas, principalmente pelas equipes da Secretaria Nacional da Economia Criativa e Diversidade Cultural, área do governo federal que coordenou toda a articulação interministerial e federativa para que os recursos chegassem aos trabalhadores dos setores criativos. Eu, como secretário nacional à época, me empenhei, junto com toda a equipe, para que os recursos da Lei Aldir Blanc, Pronampe, Perse e outros fossem plenamente implementados e repassados.

LV Qual seria a melhor forma de preparar e atualizar as políticas de economia da cultura e indústrias criativas do Brasil para as transformações estruturais que a pandemia provocou na produção, distribuição e consumo de cultura?

CL Eu acho que a primeira questão é termos uma taxonomia, uma compreensão do que significa economia da cultura, de por que não se usa a expressão “economia criativa”, de por que se confundem essas duas expressões e de por que se fala em indústrias criativas no sentido da tradução direta do inglês, um ruído que sempre se coloca no que é produzido de forma industrial: a indústria cultural, a indústria do turismo, a indústria do lazer, a indústria da música… Nós precisamos falar sobre os setores criativos que movimentam diversas economias. Os africanos falam em economias criativas. Eu gosto muito dessa expressão, porque nos mostra que cada setor possui uma economia diferente, havendo, portanto, necessidade de uma visão equitativa da construção, estruturação, formulação, implementação e monitoramento dessas políticas para os setores criativos. Há bastante tempo esses setores estão aí, definidos pelas organizações internacionais, pela Unctad, pela Unesco. Nós sabemos que a cultura e a arte, junto com as mídias, com toda a área de audiovisual e com as criações profissionais, compõem esse grande sistema da economia criativa. Acho que cabe ao Brasil avançar com um modelo que seja brasileiro, que seja latino-americano, que seja caribenho e africano, para alcançar novos significados de uma economia criativa que contribua para uma epistemolo-

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gia do “Sul”, como afirma o professor Boaventura de Sousa Santos.3 Não devemos copiar modelos exógenos. Considero que essa visão da endogenia não significa isolamento, mas seu desenvolvimento significa encontrarmos soluções próprias para os nossos problemas. Celso Furtado, nosso grande ministro da Cultura, pensador, economista, presidente da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), um homem do desenvolvimento na América Latina, dizia-nos que o sentido de desenvolvimento é muito mais um ato de imaginação, de invenção, do que de transformação. A criatividade, declarava ele, é uma invenção que parte da cultura. Então nós precisamos, depois da pandemia, ou a partir dela, repensar qual é o lugar que o Brasil quer ocupar nessa compreensão do que é uma economia criativa, definir glossários e taxonomias e entender os processos de criação, produção, distribuição e consumo. Todas as etapas estão conectadas, e nós precisamos de tradutores entre mundos analógicos e digitais para pensarmos essa economia. Somos um continente de culturas tradicionais populares, somos um país que é um celeiro de uma grande biodiversidade cultural, como diria o ministro Gilberto Gil. Tudo isso é complexo. Modelos exógenos não nos ajudam a avançar. Considero que nós temos que assumir, ser audazes no sentido de produzir conteúdo para o Hemisfério Sul.

GV Primeiro, tem que haver uma repactuação com o setor cultural. Nunca vamos preparar e reestruturar a economia da cultura, que é uma agenda que depende da atuação do Estado, se ele se mantiver como está, sendo um Estado anticultural, que não só nega a cultura como também combate o setor cultural, que usa a institucionalidade do setor como plataforma ideológica. A repactuação é a primeira coisa. Por isso que uma mudança, uma agenda, qualquer que seja ela – de reestruturação da economia da cultura, reestruturação da política de patrimônio ou reestruturação da política de diversidade cultural –, na verdade, recuperações do setor cultural, passa necessariamente pela mudança de agenda política. Não dá para negar isso, não dá para alienar essa questão, descontextualizá-la. Não se consegue entrar nessa agenda se não se destravar justamente a porta que a impede, que é a mesma que impede todas as outras,

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3 santos, b. de s.; meneses, m. p. (Orgs.). Epistemologias do Sul, São Paulo: Editora Cortez, 2010.

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a porta de obstrução do setor cultural pelo Estado. Esta é a primeira questão: repactuar. A segunda questão é escutar dos próprios segmentos – e não trazer soluções alheias a eles, elaboradas dentro de gabinetes ou fora dos movimentos – para entender na prática, no cotidiano, no dia a dia da sua produção onde estão os principais gargalos afetados. É claro que um mapeamento de longe, que pode ser feito por meio de levantamentos de censo e de indicadores, é interessante e importante, mas a questão é que, no pós-pandemia, muita coisa se reestruturou na prática, no fazer cultural, para dar conta da sobrevivência dos artistas. Os artistas e agentes culturais passaram a realizar suas atividades compondo-as com outras, a realizá-las com menor custo, fazendo um outro tipo de arranjo, participando de um outro tipo de cadeia econômica. Entender no dia a dia, no cotidiano, o que os trabalhadores da cultura têm feito e como estão se virando é a segunda questão. A terceira é adentrar efetivamente a agenda da economia digital da cultura. É claro que essa agenda segrega de alguma maneira muitas das produções que não alcançam o acesso às tecnologias, bens e serviços digitais – a gente sabe que há nela um recorte socioeconômico –, mas cada vez mais esta vai ser uma agenda imperativa de como os arranjos de distribuição e de consumo dos bens e serviços culturais vão se dar. As questões relacionadas à plataformização da cultura, ao sistema algorítmico de recomendação e mediação dos conteúdos, ao big data , machine learning e todos os outros expedientes que estão relacionados à inteligência artificial, compõem um arcabouço de reorganização econômica da cultura por meio do ambiente digital. E o Estado brasileiro –até porque é uma questão difícil cuja regulação não é local, mas global, o que impede uma efetividade – nunca conseguiu, de fato, adentrar essa questão por várias razões; porque ela é incipiente no Brasil, mas também porque nunca houve vontade política de enfrentar determinados interesses que estão postos nessa indústria cultural oligopolizada baseada na informação digital.

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Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati

de invenção, do que de transformação.

A criatividade, declarava ele, é uma invenção que parte da cultura. Então nós precisamos, depois da pandemia, ou a partir dela, repensar qual é o lugar que o Brasil quer ocupar nessa compreensão do que é uma economia criativa

CLV Mesmo antes da pandemia, as transformações tecnológicas já vinham revolucionando as formas de distribuição e fruição de bens culturais. O mundo do streaming não é o mundo da tv por assinatura. No entanto, os objetivos gerais das políticas públicas – garantia de espaço para a cultura brasileira, incentivo à produção independente, diversidade de linguagens, plena liberdade artística etc. – seguem válidos e plenamente exigíveis. Isso porque tais políticas realizam, no nível infraconstitucional, preceitos constitucionais. O apoio oficial à produção cultural brasileira é um ditame que se impõe a todo e qualquer governo, e não uma opção programática. Os princípios permanecem, apesar das mudanças conjunturais.

MB Estamos num momento importante para quebrar os padrões antigos e lutar por um novo país, mais justo, moderno e igual para todos. Nunca antes a cultura se tornou tão necessária e importante para acelerarmos essa transformação. No próximo governo, a cultura e a indústria criativa têm que estar no foco das discussões para uma nova estruturação depois de tudo o que o setor viveu.

A recriação do Ministério da Cultura ou a estruturação de uma Secretaria da Cultura com orçamento definido e com uma liderança com visão moderna e conhecedora dos problemas do país e de suas necessidades é essencial para que possamos reconstruir e fortalecer a expressão cultural e econômica da criação. O engajamento das equipes no órgão público responsável, seja qual for a estrutura, é fundamental para o

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“Celso Furtado […] dizia-nos que o sentido de desenvolvimento é muito mais um ato de imaginação,
[…]” – CL

4 Painel online realizado pelo setor de pesquisa e conhecimento da Globo entre 14 e 17 de maio de 2021. Disponível em: gente.globo. com/o-consumo-de-musica-no-brasil/.

5 Pesquisa realizada pela área de mídia da Nielsen Brasil em parceria com a Toluna, em 30 de junho de 2020.

sucesso da gestão. Não importa se são técnicos de carreira ou cargos de confiança; o importante é que todos acreditem no projeto da liderança para o sucesso da gestão. O país precisa de um projeto em que a cultura, a educação e a saúde sejam o núcleo central da política de governo.

AV Creio que as políticas públicas de economia criativa não devem ser pensadas apenas para o setor artístico (e aí beneficiando somente o segmento das belas-artes). Os desafios do século xxi , o pós-pandemia e as mudanças geracionais exigem que os gestores, formuladores e executores de políticas públicas estejam atentos às demais áreas da economia criativa, sobretudo àquelas ligadas à inovação e à tecnologia, que evidentemente sempre poderão ter suas interfaces com as manifestações artísticas e culturais mais tradicionais, mas devem ser vistas como um campo de atuação que merece ter sua exclusividade. Nessa construção, devemos estar atentos ao processo de digitalização do consumo. Uma pesquisa da área de inteligência de mercado da Globo comprovou que 78% dos brasileiros consomem música por meio dos seus smartphones (pelo YouTube, Spotify e outros), seguido pela tv/Smart (34%). Os gêneros mais consumidos são sertanejo, pop e música gospel.4 Outra pesquisa – Nielsen Brasil em parceria com a Toluna –aponta que 42,8% dos brasileiros entrevistados consomem streaming diariamente e 43,9%, uma vez por semana. Apenas 2,5% não assistem a nada nas plataformas.5 Os jovens são maioria no consumo pelas plataformas. Evidentemente, essa tendência foi acentuada pela pandemia, devido ao fechamento dos cinemas e demais espaços culturais (físicos), mas os dados mostram que é uma tendência que veio para ficar e tende a se intensificar. O consumo de conteúdos curtos via redes sociais (Instagram e TikTok) e as novas tecnologias para difusão da arte (nfts) são tendências que

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“Mesmo antes da pandemia, as transformações tecnológicas já vinham revolucionando as formas de distribuição e fruição de bens culturais.” – CLV

devem ser atentamente observadas, pois tendem a impactar o processo de criação, produção, distribuição, financiamento e rentabilização dos bens e serviços criativos. Outro ponto que merece atenção é que 42,3% da população têm até trinta anos, correspondendo à geração z e à geração millenium, com novos imaginários, comportamento, padrões de consumo e grande poder influenciador.

“Os desafios do século XXI, o pós-pandemia e as mudanças geracionais exigem que os gestores, formuladores e executores de políticas públicas estejam atentos às demais áreas da economia criativa, sobretudo àquelas ligadas à inovação e à tecnologia, que evidentemente sempre poderão ter suas interfaces com as manifestações artísticas e culturais mais tradicionais, mas devem ser vistas como um campo de atuação que merece ter sua exclusividade.” – AV

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1ª edição 2023

EQUIPE ITAÚ CULTURAL

Presidente Alfredo Setubal

Diretor Eduardo Saron

NÚCLEO OBSERVATÓRIO

Gerente Jader Rosa

Coordenação Luciana Modé

Produção Andréia Briene

Tradução Atelier das Palavras e dWT Soluções Integradas (terceirizadas)

Ilustração Felipe Stefani (p. 182)

Organizador e editor Leandro Valiati

EQUIPE WMF MARTINS FONTES

Acompanhamento editorial Juliana Bitelli e Dimitri Arantes

Preparação Rogério Trentini

Revisões Bruna Wagner e Rafael Falasco

Projeto gráfico Bloco Gráfico

Assistente de design Stephanie Y. Shu

Composição Jussara Fino

Produção gráfica Geraldo Alves

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural

Economia da cultura e indústrias criativas: políticas públicas, evidências e modelos/ vários autores; organizado por Leandro Valiati. São Paulo: Itaú Cultural; Editora wmf Martins Fontes, 2023. 208 pp., 16 x 23 cm; vol. 2. Inclui bibliografia e índice. isbn: 978-65-88878-58-3 / isbn: 978-85-469-0422-8

1. Economia da Cultura. 2. Indústrias Criativas.

3. Política Cultural. 4. Modelos de Indústrias Criativas.

5. Políticas Públicas. i. Instituto Itaú Cultural.

ii. Valiati, Leandro. iii. Título.

cdd 306.3

Bibliotecária Ana Luisa Constantino dos Santos cRb-8/10076

Fontes GT Flexa, Signifier Papel Pólen Soft 80 g/m2

Impressão Paym

O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú para Educação e Cultura. Saiba mais em fundacaoitau.org.br.

Todos os direitos desta edição reservados à Editora WmF Martins Fontes Ltda.

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Imagem de capa: Rodrigo Andrade

Sem título, óleo sobre tela sobre mdf, 120 × 180 cm, 2020

O segundo tomo de Economia da cultura e indústrias criativas destaca os grandes referenciais teóricos das políticas culturais de vários lugares do mundo – da América Latina e dos Estados Unidos à China, da África à Europa e Reino Unido –, trazendo as reflexões de Morag Shiach; George Yúdice; Michael Keane e Elaine Jing Zhao; Carole Rosenstein; Jason Potts e Stuart Cunningham; Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England; Valentina Montalto; e Hasan Bakhshi. Além disso, este volume apresenta uma entrevista com os ex-secretários de Economia Criativa, de Políticas Culturais ou de Economia da Cultura

brasileiros: Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim. LEANDRO VALIATI

organizador e editor isbn 978-65-88878-58-3 Itaú Cultural isbn 978-85-469-0422-8 wmf Martins Fontes

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