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CENA BALLROOM GOIANA

As práticas da cultura ballroom alcançaram, em especial, o Brasil, chegando em Brasília em 2011, com a criação da House of Hands Up, primeira house brasileira, como afirma Alexandra (2023). Daí em diante, a cultura propagou-se país afora, originando a cena goianiense, em 2017, quando, segundo Silva (2021), três artistas goianos viajaram pelo país a fim de estudar e pesquisar a cultura ballroom. Juntos, fundaram a Kiki House14 of A’trois, pioneira na cidade, tendo Flavys A’trois e Gleyde A’trois como mothers e Lucas Syuga A’trois como father. Posteriormente, surgiram outras Casas, como a House of Witch e a Casa Dionisi. Além dessas, existem, atualmente, a Casa Maldosa, a House of Juicy Couture, a Casa de Euforia e a Casa Laroyê.

2023). Ainda assim, as houses resistiram e, especialmente no pós-pandemia, voltaram a promover eventos pela cidade. Vale ressaltar a importância da criação e manutenção dessa comunidade como rede de apoio, considerando que, atualmente, o Brasil é o país que mais mata pessoas transsexuais e travestis no mundo, de acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais). Portanto, no contexto goianiense, destaca-se projetos como o Cultura de Baile Goiânia, idealizado pela Casa Laroyê em 2021, e o COB.TV (Centro Oeste Ballroom TV/Central Online Ballroom), que colocam a comunidade LGBTQIA+ negra e periférica em evidência, registrando e divulgando a cena como forma de prestigiar sua história e promover mudanças sociais.

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Em publicação feita no Instagram, os idealizadores dos projetos afirmam:

As ballrooms goianienses tiveram seu clímax em 2019, mas foram amenizadas em 2020, devido à pandemia de COVID-19 (ALEXANDRA, 14 “Atualmente o termo House ou Haus é utilizado para nomear as maiores houses na cena mainstream, que possuem expansão e integrantes internacionais. Já o termo kiki house é utilizado para nomear casas que se manifestam dentro de uma determinada realidade local, regional, ou nacional. Ambas se constituem conceitualmente enquanto houses” (SILVA, 2021)

A Cultura de Baile em Goiânia é um projeto político de vida construído e fundamentado pela Casa de La- royê no ano de 2021, quando pessoas trans e travestis racializadas fora da branquitude (negras e originárias) voltaram a frequentar as ruas da cidade no período pós-pandemia. [...] a Cultura de Baile é a forma Goiana de construir e adentrar à comunidade Ballroom, a partir das nossas corporalidades, demandas territoriais, afetivas, profissionais e tudo mais que pudermos alcançar para que o bem viver de pessoas trans e travestis negras e originárias, periféricas e positHIVas de nosso território possa ser possível (CULTURA

DE BAILE GOI NIA, 2022).

A COB.TV é um projeto híbrido criado na Comunidade Ballroom para o mundo. Colocando a comunidade LGBTQIA+ preta y periférica em destaque. Uma plataforma de produção e difusão de conteúdo sobre a Cultura Ballroom através da comunicação de impacto. Um acervo central de arquivos para o registro histórico da Ballroom no Centro Oeste do país, mantendo assim, o compromisso com a comunidade de ter sua história contada garantindo o acesso a informação. A proposta de profissionalização de nossas atividades, junto a uma devolutiva social para a comunidade que atuamos. Uma potência para a realização de ações que causem impacto social junto a oportunidade de desenvolvimento de negócios sociais. Um trabalho que conta com a colaboração de cada pessoa que constrói a Comunidade Ballroom de alguma forma [...]. Registrar para eternizar. Criando para impactar (COB.TV, 2020).

Para compreender melhor a cena ballroom goianiense, faz-se necessário apresentar alguns eventos realizados na cidade durante o ano de 2022, divulgados em redes sociais pelas Casas, organizações e seus membros.

Baile da Restituição

O Baile da Restituição foi realizado no dia 16 de setembro de 2022, no Centro Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia. Foi organizado através de uma parceria entre o coletivo Cultura de Baile Goiânia com o festival Vaca Amarela, evento importante de música e diversidade na cidade que realizou sua 21º edição. Suas categorias dividiram-se em: i) Runway (Fechado - corpos trans): categoria fechada para celebração de corpos trans, ou seja, somente pessoas transsexuais ou travestis poderiam participar. Os participantes deviam desfilar por uma passarela, afirmando sua beleza e poder. No evento, homenagearam o Iyalodês, festival de artes trans que mapeia a produção artística local. ii) Hands Performance (Apt“Amarelo”): é um dos elementos do Vogue Femme e configura-se como uma categoria específica nos bailes. O objetivo era criar uma narrativa explorando movimentos feitos com os braços, mãos e dedos, seguindo a batida da música. Era obrigatório o uso de um objeto ou acessório de cor amarela nas mãos. iii) Face (Fechado - Transmasculinidades. “Beleza Ancestral”): categoria fechada para transmasculinos. O objetivo era destacar o rosto dos participantes, exaltando seus traços e beleza ancestrais. Aqui, expressões faciais são valorizadas, o famoso “carão”. iv) Batekoo (Fechado - “Pessoas Grandes e Gordes Racializades”): categoria fechada para pessoas racializadas, grandes e gordas. Foi o momento para colocar o corpo em movimento, especialmente os quadris, como o nome sugere, acompanhando batidas de funk e brega funk. v) Baby Vogue X Beginners (Apt - “Prepara-trans”): categoria que celebrou o projeto do cursinho Prepara Trans, que atuou de 2016 a 2021 na luta pelo acesso à educação de pessoas transsexuais e travestis em Goiânia e região. Seus participantes são membros novos da cena ballroom que poderiam performar o vogue na subdivisão de sua escolha (Old Way, New Way ou Vogue Femme). O traje era livre, mas era obrigatório utilizar algum elemento que remetesse à educação. vi) Vogue Femme (FechadoFemme Queens “Salve suas forças”): categoria fechada para mulheres trans e travestis. A categoria buscou evidenciar a violência que atinge mulheres trans e travestis no Brasil, país que mais as assassina no mundo. Buscaram, também, reforçar como a cultura de baile é construída por e para elas como forma de sobrevivência.

Com o apoio do próprio festival, cada categoria contou com prêmios em dinheiro. O line-up do baile contava com a participação da Princesa Karliiz Laroyê e a mãe Aurora Crystal Abloh como chanter15, a mãe Gustava Souza Laroyê como comentadora, Lukas Laroyê como host16 e Maurício Ture e Odara Manicongo Laroyê como DJs. Os jurados contavam com a mãe Pietra Laroyê, Princesa Andry Laroyê, Imperatriz Alêzinha Mamba Negra, mãe Flavys A’trois e Orí 00717.

Workshop de Chant e de Old Way

O workshop foi realizado no Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (UFG), no dia 15 de setembro de 2022. Ministrando o workshop de Chant, a mother Aurora Cristal Abloh, da cena de Brasília, demonstrou e ensinou sua potência vocal. O workshop de Old Way, por sua vez, foi ministrado pelo Legendary Sintra 007, dançarino que domina esse estilo vogue. Os organizadores pediram a colaboração de R$ 10,00 para os interessados em participar.

15 Narração. Uma das pessoas responsáveis por comandar o evento. Pessoa que faz o chant, ou seja, narra a batalha e interage com o público, acompanhada por uma batida musical.

16 Anfitrião. Uma das pessoas responsáveis por comandar o evento. Narra o baile e interage com o público.

17 Pessoas que participam dos bailes mas não estão associados a uma Casa adotam o “007” após o nome.

Made in Roça Ball

A’trois e da mother Rodrag Witch, pioneiras da cena ballroom em Goiânia. A Legendary Elvira Cachorra 007 foi a host e chanter do evento. A música foi comandada pela DJ Legendary Ursula 007, que agitou o baile. Suas categorias, todas com Grand Prize18 e Cash Prize19, eram: i) Runway (Looks All Jeans): categoria onde os participantes deveriam desfilar e posar na passarela utilizando trajes compostos inteiramente por peças jeans, exibindo o “look”.

O Made in Roça Ball celebrava os cinco anos da cena na cidade, iniciada em 2017, e ocorreu no dia 24 de setembro de 2022, na Federação de Teatro de Goiás (FETEG), localizada no Setor Sul, em Goiânia. O baile contava com bar no local, pedia a contribuição de R$ 10,00 com nome na lista e R$ 15,00 na portaria. Além disso, contava com uma Lista T, na qual pessoas transsexuais ou travestis que enviassem o nome via direct do Instagram, entravam no evento gratuitamente. O painel de júri contou com a participação da mother Pietra Laroyê, mother Flavys ii) Baby Vogue (Look estampado de vaquinha): destinada a competidores novos na cena, que deveriam dançar vogue, mostrando suas técnicas em trajes estampados de vaquinha. iii) Batekoo (Irmãs Caipirinhas (Tag Team)): a categoria exigia inscrição prévia pelo direct do Instagram. A participação era em dupla, que deveria apresentar uma coreografia ao som de funk ou brega funk, com duração de 1 minuto. Os looks também foram avaliados, sendo fundamental a semelhança nos trajes da dupla. iv) Old Way (Looks em tons terrosos): os participantes deveriam performar a dança vogue seguindo o estilo Old Way. Seus trajes deviam exibir paletas em tons terrosos, remetendo ao território, terras e natureza. v) Vogue Femme Ota (A dona da boiada): a categoria foi aberta para todos os interessados em participar, desde que seguissem os movimentos dessa subdivisão do vogue. Os trajes deveriam representar poder e liderança.

18 Grande prêmio, não necessariamente em dinheiro.

19 Prêmio em dinheiro.

Aulão de Redação para o Enem 2022 + Treino de Vogue Femme sino Médio (ENEM), a Casa de Laroyê, junto à Cultura de Baile Goiânia, ofereceram aulas de redação para pessoas da cena ballroom, bem como para pessoas trans e travestis. As aulas aconteceram no dia 15 de outubro de 2022, no Lago das Rosas, sendo lideradas pela mãe Gustava Laroyê. Em seguida, realizou-se Treinos de Vogue Femme, comandados pela Princesa Andreza Laroyê.

Ball do Comboio

Pensando na aproximação do Exame Nacional do En-

O Ball do Comboio fez parte da programação da Mostra Comboio - Mostra de Ações Culturais e Artísticas do Instituto Federal de Goiás, Campus Aparecida de Goiânia. Realizado entre os dias 19 e 22 de Ou- tubro de 2022, no próprio IFGAparecida de Goiânia, a Mostra contou com uma programação rica, diversa e totalmente gratuita, oferecendo oficinas de vogue e outros estilos de dança, apresentações artísticas, batalhas de danças (com premiação em dinheiro), batalhas de MCs (com premiação em dinheiro), oficina de mixagem e um encontro de tambores.

O baile ocorreu no dia 19 de outubro e contou com a participação de Karliiz Lebara como chanter, Flávys A’trois como comentadora e Fernanda A’trois como host. As juradas foram: mãe Lanna Maldosa, Princesa Andry Laroyê e Sofia Witch. As categorias, todas com premiações em dinheiro, dividiram-se em três: i) Runway: durante o desfile e caminhada, os participantes reconheciam o curso de Técnico Integrado em Modelagem do Vestuário (EJA) do IFG, “nos lembrando que cedo ou tarde o importante é caminhar rumo aos nossos sonhos e realizá-los” (FLAVYS ATROIS, 2022). O traje era livre. ii) Hands Performance: nessa categoria, os participantes deveriam demonstrar respeito e gratidão pelos profissionais da pedagogia através de movimentos realizados com as mãos e braços. iii) Vogue Femme Ota: aqui, os participantes deveriam mostrar o poder da arte e da educação, utilizando seus corpos e movimentos característicos do Vogue Femme.

Mini Ball de Natal

O Mini Ball de Natal foi promovido pela Cultura de Baile Goiânia, no dia 25 de Dezembro de 2022, na casa da mother Stormy Matamba, com o objetivo de celebrar o natal juntos, oferecendo um espaço para aqueles que não possuíam companhia. Durante a semana do evento, promoveram treinos de Runway, Old Way, Vogue Femme e Chant. O evento era gratuito para pessoas trans e travestis, mas pedia colaboração de R$ 10,00 para os demais, valor que seria destinado a ações sociais e culturais da cena ballroom. As categorias do evento foram Baby Old Way, Baby Vogue Femme, Face (fechado para pessoas trans e travestis), Runway com objeto natalino, Vogue Ota, Realness Performance, Batekoo, Cata o Beat, Beginners e Baby Comentador X Baby Comentador

Particularidades das balls de Goiânia

Como mencionado anteriormente, o funcionamento das ballrooms apresenta certas variedades de acordo com a localidade e mantém alguns aspectos semelhantes aos realizados nos Estados Unidos. É o caso da cena goianiense. Observando o funcionamento dos bailes apresentados, percebe-se que alguns nomes e termos são mantidos no original, em inglês, promovendo uma experiência parecida com a norte-americana. Em relação à música e dança, houve a introdução de passos e músicas do gênero funk e brega funk durante as performances, realçando a cultura brasileira nessas práticas, especialmente na categoria Batekoo, evidenciando a inserção dessa cultura no contexto regional. Percebe-se essa mesma característica no Made in Roça Ball, com o tema completamente enraizado na cultura regional goiana, caracterizada pelo peão, sertanejo, uso de botas, chapéus e jeans, conceito proposto pelos organizadores do baile. Ademais, nota-se a valorização do voguing, que destaca-se em todos os eventos. Em relação aos workshops, percebe-se que, para além de sua função de aprendizado, esse espaço de socialização é a oportunidade de interação de novos membros com aqueles já estabelecidos dentro da comunidade ballroom. Além disso, é uma forma de divulgação da cultura, visto que podem ensinar uma parte de suas peculiaridades e características, além de chamar a atenção de outras pessoas que podem se interessar e adentrar na cena. Cabe mencionar a importância das aulas de redação promovidas pela e para a comunidade ballroom. Considerando a vulnerabilidade social desses sujeitos, o acesso à educação de qualidade é dificultado. A oferta de aulas acessíveis e a possibilidade de adentrar em universidades é fundamental para iniciar mudanças sociais na vida dessas pessoas.

Lugar

Setor Central como referência para a comunidade LGBTQIA+

Em Goiânia, o Setor Central apresenta-se como parte principal do projeto e da formação da cidade, pensado para comportar usos, em sua maioria, institucionais, comerciais e de serviços, concentrou, por muito tempo, a vida urbana da cidade. Todavia, como apontado por Rosa (2021), como parte mais dinâmica da cidade, o centro sofre constantes transformações em suas formas de apropriação. De algumas dé- cadas para cá, observa-se mudanças de usos e, por vezes, um esvaziamento dessa região, sobretudo como área residencial e comércios que antes a caracterizavam como centralidade principal. Além disso, usos consolidados, incluindo os institucionais, se deslocaram para localidades consideradas mais valorizadas. O autor afirma, ainda, que surgiram novos usos e ocupações, especialmente no período noturno, contribuindo para evitar o completo abandono do centro.

Atualmente, a região possui uma disparidade visível em relação a seu funcionamen- to diurno e noturno. Em horário comercial, percebe-se a predominância de atividades comerciais e de prestação de serviços, com intensa movimentação de automóveis e pessoas. Já no período noturno, o centro passou a ser visto como um lugar ocupado pelos “marginalizados”, entre eles, membros da comunidade LGBTQIA+. É possível, então, identificar certos territórios queer na região, compreendendo espaços que possuem relações de gênero, poder e domínio, que foram estabelecidas por processos político-sociais ocorridos ao longo do tempo (ROSA, 2021).

Os ditos sujeitos “marginais” - que vivem à margem dos padrões sociais e da moral religiosa - circulam e habitam o centro, encontrando uma região no meio urbano para suas existências e manifestações. A ocupação desses espaços por esses corpos “marginais” caracteriza-se como uma forma de resistência, “uma vez que sua presença constitui um exercício de poder contrário à produção heterocêntrica, hegemônica e normativa do espaço urbano” (MISKOLCI, 2016, p.24 apud ROSA, 2021).

Onde no Centro?

Entendendo o Setor Central como lugar de intensa movimentação LGBTQIA+, faz-se necessário apontar alguns espaços que ocupam ou que já foram ponto de encontro da comunidade. Vale ressaltar que, devido à forte repressão moral presente na cidade, alguns desses locais seguiam e/ou seguem aspectos de clandestinidade.

Segundo Vaz e Mello (2021), na década de 1980, bares gays se estabeleceram na rua 8 com a rua 2 e na rua 4 com a rua 24. Posteriormente, em 1996, realizou-se, pela primeira vez, a Parada do Orgu- lho LGBT em Goiânia, tendo a Praça Cívica como ponto principal. Além disso, a região que compreende as ruas 2, 6, 7 e 8 era identificada como ponto de encontro de garotos de programa durante a noite. Ademais, o lazer noturno é marcado por membros da comunidade, que frequentam a Rua do Lazer, os bares Zé Latinhas e Liberté, na rua 8, e o Babylon Liberty Pub, na rua 7. Enquanto isso, no período diurno, funcionam saunas, clubes, cinemas adultos - com destaque para o Cine Astor - e hotéis rotativos destinados a esse grupo. Rosa (2021) também identificou outros territórios queer, apontados no mapa a seguir.

Observa-se, ainda, nessa região, a promoção de eventos destinados à comunidade. O mais recente ocorreu em janeiro de 2023, onde representantes do movimento LGBTQIA+, junto a empresas, entidades governamentais e ONG’s, promoveram uma semana de atividades em celebração ao dia da visibilidade trans, comemorado no dia 29 de janeiro, passando pelo Colégio Lyceu, na rua 21, pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas, na rua 99 e em setores do entorno, como o Setor Sul e o Setor Marista.

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