5 minute read

CULTURA BALLROOM

Apesar da imprecisão acerca do período de origem da cultura ballroom, bem como seus idealizadores e primeiros bailes, para Lawrence (2011), perseguir tal informação pode nos levar à segunda metade do século XIX, quando, em Nova Iorque, aconteciam bailes de máscaras frequentados por queers5. Um dos primeiros bailes registrados aconteceu em 1869, organizado por Hamilton Lodge em sua residência no Harlem, o Palácio Rockland, considerado o “lugar mais queer” para se estar na época (HARLEM WORLD MAGAZINE, 2021). Posteriormente, no início do século XX, esses bailes passaram a acontecer com maior frequência, visto sua popularização, sendo realizados até mesmo em lugares considerados nobres, como o Madison Square Garden (LAWRENCE, 2011).

Advertisement

Nessas festividades, era comum a prática do travestismo, na qual homens vestiam roupas consideradas femininas, além de usarem peruca e aplicarem maquiagem, enquan- to as mulheres vestiam roupas consideradas masculinas (LAWRENCE, 2011). Denominados, futuramente, como Drag Queens ou Drag Kings, esses sujeitos encontravam um lugar seguro em meio à uma sociedade heterossexista, que os desprezava. Promovia-se, ali, danças, desfiles e concursos de fantasias.

Como desdobramento do iniciado no século XIX, a cultura ballroom começava a se firmar principalmente no Harlem, bairro com grande concentração de bailes, cujo número de frequentadores aumentava cada vez mais. Cabe destacar que, na década de 1920, o Estado de Nova Iorque começou a intensificar suas reações às relações homossexuais, criminalizando-as e, consequentemente, atacando os bailes. Na tentativa de contê-los, os policiais aumentaram significativamente a regulamentação e os aprisionamentos. Ainda assim, o grupo permanecia crescendo e se fortalecendo, reunindo milhares de pessoas nesses eventos (LAWRENCE, 2011).

5 Queer: todo indivíduo que não se identifica com a heterocisnormatividade, ou seja, com a imposição da heterossexualidade ou cisgeneridade.

Já na década de 1960, surgiram questionamentos sobre questões raciais evidenciadas nos bailes, o que levou a cultura ballroom a se estabelecer da forma conhecida atualmente. Embora houvessem participantes negros e brancos, as competições favoreciam as queens brancas, que levavam a grande maioria das premiações. Dessa forma, a cena começou a se fragmentar e as queens negras introduziram seus próprios bailes.

Uma das poucas queens negras a vencer um baile organizado por brancos foi Crystal LaBeija, retratada no documentário The Queen (1968), dirigido por Frank Simon. LaBeija combatia o viés racista predominante nos bailes e, unindo-se a outra drag queen, Lottie, promoveram um evento exclusivo para queens negras, o “Crystal & Lottie LaBeija presents the first annual House of LaBeija Ball”6 (LAWRENCE, 2011). Essa união, seguida do baile, foi determinante na formação das Houses, ou Casas - um tipo de estrutura familiar criada na comunidade que abriga jovens expulsos de casa por suas famílias biológicas -, bem como para a consolidação da cultura ballroom, como hoje é conhecida.

6 Crystal e Lottie LaBeija apresentam o primeiro baile anual da Casa LaBeija.

Casas ou Houses

As chamadas Houses, ou Casas, refletem a estrutura de laços afetivos estabelecida entre os membros dessa cultura. O termo, portanto, não se refere a edificações concretas, mas à maneira que esses sujeitos se relacionam socialmente. São formadas por grupos de jovens LGBTQIA+ que oferecem moradia, apoio afetivo, proteção e suporte financeiro para outros membros da comunidade. Além disso, participam dos bailes, buscando reconhecimento com as premiações. É importante destacar que muitos dos jovens que recorrem às Casas foram rejeitados por suas famílias biológicas. Na vivência LGBT, cenários de intolerância familiar são lamentavelmente comuns, acarretando em violências, humilhações e completo desprezo. Dado o histórico da comunidade, marcado pela forte estigmatização e preconceito, sobretudo nas décadas de 1960 a 1980, muitos jovens encontravam-se desamparados, sem apoio algum de suas famílias, levando-os à procura de abrigo como questão de sobrevivência e acolhimento.

Com o apoio e suporte oferecidos nas Casas, criou-se relações familiares, mesmo sem possuírem nenhum grau de parentesco. O funcionamento das houses segue uma hierarquia: a coordenação e as regras são estabelecidas por uma mother (mãe) e/ou father (pai), representados, geralmente, por membros mais velhos da comunidade, capazes de oferecer suporte e aconselhar os mais novos, suas children (crianças ou filhos), que herdam o sobrenome correspondente à Casa, representando-a nos bailes e estendendo seu legado.

O “Crystal & Lottie LaBeija presents the first annual House of LaBeija Ball”, promovido em 1972, marcou a formação da primeira House. A partir disso, começaram a surgir outras Casas que se espalharam por Nova Iorque, especialmente no Harlem e Brooklyn, protagonizadas por pessoas negras, latinas e transsexuais (LAWRENCE, 2011). Muitas das Houses que surgiram entre as décadas de 1970 e 1980 mantiveram seu legado até os dias atuais, como a House of Xtravaganza, a House of LaBeija e a House of Ninja, mencionadas em Paris is Burning (1990).

Para além dos bailes e competições, esses grupos ofereciam um lugar de apoio, tanto financeiro quanto afetivo, incluindo pessoas habituadas com exclusões, abandono social, político e familiar, bem como uma série de violências. Reunindo-se entre seus semelhantes, encontraram, pela primeira vez, o sentimento de pertencimento. Percebe-se, então, que os bailes não eram apenas um lugar de entretenimento, mas também um espaço seguro para indivíduos marginalizados. Um lugar onde tinham liberdade para celebrar e serem quem verdadeiramente são.

Bailes ou Balls

Os bailes, ou balls, um dos pilares da cultura ballroom, tiveram seu apogeu na década de 1980. Promovidos pelas Casas e usualmente realizados em locais clandestinos, caracterizam-se como eventos protagonizados por pessoas negras, latinas, periféricas, transsexuais e travestis da comunidade, onde realizavam uma série de performances e desfiles, além de concorrerem em categorias específicas. As categorias se estabeleceram ao longo dos anos, desempenhando um papel importante a partir do baile promovido por Paris Dupree em 1981, o Paris is Burning, como apontado por Kevin Ultra Omni, fundador da House of Omni. Surgiram, então, diversas outras categorias: “[...] Then in the early 1980s, we separated the categories out, so there was a category called butch realness and another called models effect and another called face. Then we created all these other categories, like executive, town and country, ethnic, and they continued to develop through the eighties”7 (LAWRENCE, 2011).

A preparação para um baile exigia grande esforço dos competidores e ainda mais dos organizadores. Participar e/ou promover um baile trazia reconhecimento e grandeza para as Casas, especialmente para a dos ganhadores. Os participantes apareciam em trajes elaborados, adaptando-os de acordo com a categoria na qual competiam, que eram diversas: Moda Parisiense, Estilo Execu- tivo, Traje de Alta Costura, Supermodelo, Realness8 etc. Além de demonstrarem seus talentos artísticos e criatividade, buscavam impressionar o público e os jurados, que os avaliavam e decidiam quem seria o vencedor. Aqueles que levavam o Grand Prize9, representavam toda a Casa a qual pertencia. Além de estabelecerem categorias e certos rituais, desenvolveu-se também nos bailes dialetos específicos que denominavam comportamentos ou características pertencentes à cultura. Um exemplo disso é a prática denominada de throwing shade (jogar shade), muito comum entre os competidores dos bailes, que consiste na ação de sutilmente insultar seu rival usando movimentos corporais. Essa prática influenciou o surgimento da notável dança conhecida, atualmente, como Voguing, ou Vogue.

7 “Então no começo dos anos 1980, nós separamos as categorias, então tinha a categoria chamada butch realness e outra chamada models effect e outra chamada face. Então criamos todas essas outras categorias, como executivo, cidade e campo, étnico, e elas continuaram se desenvolvendo durante os anos oitenta” (LAWRENCE, 2011, tradução própria).

8 Categoria que “vende” uma realidade proposta.

9 Grande Prêmio.

This article is from: