Cinema do IMS Paulista, janeiro de 2024

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cinema jan.2024


A esposa solitária (Charulata), de Satyajit Ray (Índia | 1964, 120’, 35 mm para DCP, cópia restaurada)


destaques de janeiro de 2024 Passados 40 anos do lançamento de Cabra marcado para morrer, filme paradigmático no cinema brasileiro, é possível revê-lo no cinema do IMS em cópia 35 mm. Em um filme interrompido pelo golpe militar e retomado 20 anos depois, Eduardo Coutinho investiga as consequências do assassinato de um líder camponês nas vidas de sua esposa, Elizabeth Teixeira, e filhos. Em 2014, nos dois últimos filmes finalizados em vida, o cineasta revisita os personagens do Cabra. Todas essas obras estão no programa Coutinho 90. A Sessão Mutual Films celebra diálogos entre cinema e literatura: dois grandes cineastas que filmaram obras de dois vencedores pioneiros do Nobel de Literatura. Em Uma página de loucura (1926), o renomado diretor japonês Teinosuke Kinugasa apresenta uma história original do escritor Yasunari Kawabata. A esposa solitária (1964), do indiano Satyajit Ray, é baseado em um romance publicado em 1901 pelo artista e pensador bengalês Rabindranath Tagore. Os filmes serão exibidos em cópias digitais restauradas, e a segunda exibição do filme de Kinugasa terá acompanhamento musical ao vivo de Gabriel Levy. Complementam a programação um retrato da ativista LGBT francesa Anne-Gaëlle; a primeira parte do díptico de João Canijo em torno de uma família absolutamente desajustada; a complicada relação entre Elvis e Priscilla Presley pelas lentes de Sofia Coppola; e o filme de estreia de Celine Song, sobre a imigrante sul-coreana nos EUA que se vê dividida entre um amor de infância na Coreia e o marido americano. [imagem da capa] Uma página de loucura, de Teinosuke Kinugasa (Japão | 1926, 79’, 35 mm para digital, cópia restaurada) 1

Sobreviventes da Galileia, de Eduardo Coutinho (Brasil | 2014, 27’, arquivo digital)

Anne-Gaëlle, de Agathe Simenel (França | 2014, 42’, DCP)

Mal viver, de João Canijo (Portugal | 2023, 127’, DCP)


filmes em exibição Filmes em cartaz

Sessão Mutual Films

Coutinho 90

Mal viver João Canijo | DCP

A esposa solitária (Charulata) Satyajit Ray | DCP

Cabra marcado para morrer Eduardo Coutinho | 35 mm

Priscilla Sofia Coppola | DCP

Uma página de loucura (Kurutta Ichipeiji) Teinosuke Kinugasa | Arquivo digital

Faixa comentada: Cabra marcado para morrer Eduardo Coutinho | DCP

Propriedade Daniel Bandeira | DCP Puan María Alché e Benjamín Naishtat | DCP

Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir

Vidas passadas (Past Lives) Celine Song | DCP

Anne-Gaëlle Agathe Simenel | DCP

A partir de agora, é possível assistir a alguns dos filmes em cartaz no Cinema do IMS com recursos

de acessibilidade em Libras, legendas descritivas e audiodescrição. Para retirar o equipamento com recursos, consulte a bilheteria do IMS Paulista. Em caso de dúvidas, entrar em contato pelo telefone (11) 2842-9120 ou pelo e-mail imspaulista@ims.com.br. 2

A família de Elizabeth Teixeira Eduardo Coutinho | Arquivo digital Sobreviventes da Galileia Eduardo Coutinho | Arquivo digital


Propriedade, de Daniel Bandeira

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Neste dia não haverá sessões de cinema

Puan (109') Propriedade (101') Priscilla (116')

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17 Propriedade (101') Priscilla (116') Cabra marcado para morrer (119')

Priscilla (116') Mal viver (127') Anne-Gaëlle (42')

Sessão Mutual Films Uma página de loucura (79') sessão com acompanhamento musical ao vivo de Gabriel Levy

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Neste dia não haverá sessões de cinema

Puan (109') Propriedade (101') Priscilla (116')

Puan (109') Propriedade (101') Priscilla (116')

Propriedade (101') Priscilla (116') Mal viver (127')

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Propriedade (101') Vidas passadas (105')

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Sessão Mutual Films A esposa solitária (120')

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Mal viver (127') Sessão Mutual Films Uma página de loucura (79') A esposa solitária (120') sessões apresentadas por Aaron Cutler e Mariana Shellard

Cabra marcado para morrer (119') A família de Elizabeth Teixeira + Sobreviventes da Galileia (93') Faixa comentada: Cabra marcado para morrer (119')


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Mal viver (127') Propriedade (101') Mal viver (127') Priscilla (116')'

Vidas passadas (105') Mal viver (127') Faixa comentada: Cabra marcado para morrer (119') Vidas passadas (105')

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Mal viver (127') Cabra marcado para morrer (119') Vidas passadas (105') Priscilla (116')

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Propriedade (101') Priscilla (116') Anne-Gaëlle (42') Mal viver (127')

A família de Elizabeth Teixeira + Sobreviventes da Galileia (93') Vidas passadas (105')

Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas em ims.com.br. 5


Cinema do IMS em Poços de Caldas Kleber Mendonça Filho Curador e coordenador do Cinema do IMS

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O Instituto Moreira Salles inicia o ano de 2024 abrindo uma sala de cinema em Poços de Caldas. O cinema é um equipamento de cultura e de coletividade diversa, um espaço onde ideias são compartilhadas e diálogos estabelecidos. A sala foi construída na sede do IMS Poços e realizada com altos padrões técnicos de projeção e som em cinema digital DCP (digital cinema package). Com 85 lugares, é um espaço aconchegante e arrojado, e terá como missão ser democrático. Quando o IMS inaugurou em 2017 o cinema do novo prédio do espaço cultural na av. Paulista, em São Paulo, já existiam ali desafios na missão de programar o audiovisual contemporâneo e seu legado histórico, numa área da cidade já bem fértil de telas de cinema. Mais de seis anos depois, o mundo pós-pandemia do covid-19 vê a indústria do audiovisual impactada pelo novo modelo do streaming e questionada como caminho econômico e social. Com números de bilheteria ainda abaixo do que o parque cinematográfico brasileiro tinha antes da pandemia, a ideia de uma nova sala de cinema hoje traz desafios. Temos a certeza, de toda forma, que a experiência de cinema que podemos oferecer

será uma soma natural ao atual cenário. O novo cinema do IMS em Poços junta-se às duas outras salas do IMS em São Paulo e no Rio de Janeiro. No momento da escrita deste texto, a nossa sala carioca encontra-se em reconstrução, para reabertura em 2028 no espaço cultural da Gávea totalmente restaurado. As três salas irão operar juntas num mesmo padrão, o de defender filmes contemporâneos que não encontram espaço de exibição no mercado, assim como observar com olhar crítico o legado do cinema do passado realizado no Brasil e no mundo, sejam no curta, no média ou no longa-metragem. O grande desafio das boas salas de cinema, mostras e festivais é um sentido de escolha, um ponto de vista que seja empolgante e honesto como oferta de programação, num cenário lá fora que vem sendo automatizado pela indústria e que define padrões e tendências de como o olhar se comporta. Esse trabalho passa pela presença dos que trabalham com o audiovisual em diálogos abertos com o público. Realizadoras e realizadores de Poços de Caldas, do entorno, do Brasil e de fora devem fazer parte do diálogo constante


com o público nesta nova sala, ao redor da produção que é fruto natural da sociedade. Se sua missão for bem-sucedida, este novo cinema do IMS em Poços de Caldas estará dando frutos, em breve, como espaço de encontro que poderá diminuir a distância entre boas ideias. Uma sala de educação que promova o encontro das 7

pessoas em torno da cultura e que convide todas e todos para uma experiência presencial contínua. Que, no futuro, alguém se sinta impactado de alguma forma por filmes descobertos nesta nova sala de cinema do IMS Poços de Caldas. Que seja em sessões especiais direcionadas às escolas e às crianças,

por mostras apresentadas com ingressos populares, em filmes atuais lançados com ingressos justos ou sessões especiais com entrada franca. O Cinema como espaço de convívio, que neste momento revela-se ainda mais empolgante como ideia.


De volta ao Cabra Fábio Andrade

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Desde seu premiado lançamento no 1º FestRio, em novembro de 1984, Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, acumula bagagem histórica e cultural com poucos paralelos na história do cinema brasileiro. Em votações promovidas pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) em 2016 e 2017, foi eleito o quarto melhor longa-metragem brasileiro de todos os tempos, e o melhor documentário. Na mais recente enquete da revista inglesa Sight and Sound, Cabra foi o brasileiro mais bem votado. Se, por um lado, a permanência no imaginário traz grande visibilidade ao filme, por outro, ela vem acompanhada de uma fortuna crítica e teórica que, paradoxalmente, pode inibir que o filme se renove. Lançado nos últimos suspiros da ditadura militar, Cabra é o primeiro documentário de longa-metragem de nosso mais importante documentarista – cineasta farol para o cinema brasileiro nas décadas seguintes. No entanto, à época de seu lançamento, ele marcava o retorno de um cineasta de ficção pouco celebrado, há 15 anos afastado da direção para cinema, e com carreira então invisível na televisão e como roteirista. Coutinho, o grande realizador e teórico do documentário, ainda não existia. Sua famosa técnica de conversações levaria anos para ser desenvolvida, e a austeridade formal de Santo forte (1999)

passa longe do hibridismo eclético de seu primeiro longa de não ficção. Como frequentemente apontado na historiografia do cinema brasileiro, Cabra marca a transição entre dois momentos: o engajamento político de estética radical dos anos 1960 no CPC da UNE e no Cinema Novo (com todas as suas divergências) e a autorreflexividade que marcaria o cinema de autor das décadas seguintes. Essa justaposição não raro é usada para projetar uma narrativa de regeneração do militante arrependido, que revisita o passado para purgar seus erros. Uma revisão de Cabra em 2024 demanda uma reavaliação desse legado, e da leitura neoliberal que coroou Coutinho como o “cineasta dos indivíduos”. Em entrevista ao jornal O Globo em 21 de maio de 1984, meses antes da estreia do filme, o próprio cineasta deu a pista: O CPC [...] teve gravíssimos erros que não serão repetidos, mas pode-se aprender com eles. O que era importante naquele momento [...] era a possibilidade de contato com outras classes sociais. [...] Me permitiu fazer um filme, aprender muito e voltar para terminar. O que houve de 64 para cá [...] é que este contato desapareceu. Então, no fundo, você é muito mais distante do seu país do que antes. Você hoje conhece as classes populares pela sua empregada.


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A obra de Eduardo Coutinho ruma não à negação da política, mas ao seu reencontro nas relações intersociais. Potente em seu momento histórico, essa ideia é ainda mais radical hoje, quando o desejo de alteridade parece ter perdido espaço diante da introjeção da lógica de propriedade na produção cultural, política e intelectual. Em vez disso, Cabra expressa aquilo que Denise Ferreira da Silva chama de “diferença sem separabilidade”, onde “a diferença não é uma manifestação de um estranhamento irresolvível, mas a expressão de um emaranhamento elementar”. O filme se debruça sobre esse emaranhamento, ciente de que a força de estar junto se deve, também, às suas contradições. Nesse sentido, é notável que o lançamento da restauração do filme em DVD, em 2014, tenha motivado o cineasta a fazer o que sempre desaconselhava: “Voltar ao lugar do crime”. Em 2013, Coutinho retorna às locações do Cabra para rever, uma vez mais, seus antigos companheiros de filmagem. Por lá, realiza dois filmes como material extra no DVD, e que terminaram sendo os últimos concluídos pelo diretor: Sobreviventes de Galileia (2013) e A família de Elizabeth Teixeira (2013). Se essa breve sinopse pode sugerir uma compreensível autocelebração, Sobreviventes e A Família prolongam ainda 10

mais as contradições do projeto inicial. Assim como Cabra, os médias mesclam filmagens no presente com imagens do filme original, transformado em arquivo e entrevistas realizadas anos antes por Cláudio Bezerra. No entanto, se o longa de 1984 misturava estratégias de diversas escolas do documentário – inclusive a reportagem para televisão – para implicar o tempo histórico e pessoal nos caminhos percorridos pelo cinema brasileiro, 30 anos depois é necessário considerar também a estética desenvolvida pelo próprio Coutinho desde então: são dois filmes de conversa. O presente se projeta sobre o passado. Sobreviventes da Galileia desdobra a luta das Ligas Camponesas nas políticas públicas dos governos Lula e Dilma Rousseff, tendo em Duda/Dão da Galileia um representante local do Partido dos Trabalhadores. Se o filme de 1984 deslocava o protagonismo de João Pedro Teixeira – em quem se concentrava o roteiro de 1964, recentemente lançado em e-book gratuito pelo IMS – para Elizabeth Teixeira, Sobreviventes mostra a passagem de bastão de Cícero, velho militante da Liga, para seu filho, Wilson, que adapta suas atividades para um Brasil de políticas públicas e movimentos como o MST. A família se torna espinha dorsal em A família de Elizabeth Teixeira, que inclui

conversas com Elizabeth, seis dos seus filhos, três netos e netas e um irmão. Nesse filme, os efeitos duradouros do trauma de 1964 se mostram de maneira ainda mais potente, incluindo o legado do próprio Cabra. Essa ambivalência se torna desconcertante em Marinês – filha de Elizabeth e João Pedro, e uma das grandes personagens filmadas pelo diretor. Em dado momento, Marinês especula as razões pelas quais sua mãe e seus irmãos Isaac e Carlos jamais fizeram movimento mais assertivo pela reintegração familiar após o diretor ter localizado os sobreviventes da família. “É como se você tivesse vendo um filme”, ela diz. “Você vê um bom filme, você chora, você sente, você ri, mas não é a tua vida. É um filme.” A história da família, que se tornou um filme, sobreviveu como um filme, se reencontrou por um filme, é também a história do filme que se tornou a família e transformou-a em história, em algo de certa maneira externo a ela mesma. Mas, ao virar um filme, essa história também pôde ser vista e revista, em busca de passados, presentes e futuros que a transcendem, e só se revelam com o tempo, pois ao tempo o cinema pertence, e só no tempo o cinema existe. Quase 60 anos depois, o Cabra continua vivo.


Sessão Mutual Films A vida de dentro: Uma página de loucura + A esposa solitária Aaron Cutler e Mariana Shellard

Ela se foi quando a madrugada começava... Minha mente procurava me consolar, dizendo: “Tudo é vaidade”. Irritei-me e respondi: “Esta carta sem abrir, com o nome dela, e este leque de palmeira, que ela bordou de seda vermelha com suas próprias mãos – estas coisas não são verdade?” Do poema A fugitiva (The Fugitive, 1925), de Rabindranath Tagore1 No entanto, o céu azul-cobalto me deu uma sensação refrescante. Senti que nasceriam belos cenários na minha imaginação. Do conto “O homem que não ri” (“Warawanu otoko”, 1928), de Yasunari Kawabata2

1. Tradução tirada do livro de Tagore Poesia mística

(Lírica breve), publicado no Brasil pela Paulus Editora em 2003.

2. Tradução tirada do livro de Kawabata Contos da

palma da mão, publicado no Brasil pela Editora

Estação Liberdade em 2008. 11

A partir da segunda metade do século XIX, quando o Japão entrou na Era Meiji (“governo iluminado”) em 1868, o país passou por um rápido processo de modernização, deixando de ser uma sociedade feudal e adentrando no mundo da industrialização. O período que se sucedeu, chamado de era Taishō (“grande retidão”), começou em 1912 e deu continuidade ao desenvolvimento industrial e social japonês, com crescentes incursões militares por toda a Ásia. O Japão agiu contra a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial por meio de seu serviço naval e tomou posse de territórios coloniais alemães no extremo oriente, além de se apossar de minas de metal na China, e assim expandir sua produção de material bélico. Ao término da guerra, o Japão deixou de ser um país devedor para se tornar credor. Mas, apesar da aparência de prosperidade, o país enfrentava problemas com desastres naturais, a fome (devido à superpopulação), a falta de leis trabalhistas, que provocavam protestos organizados por sindicatos locais e demandas populares pelo sufrágio masculino total. A era Taishō foi conduzida pelo imperador Yoshihito, uma figura cronicamente doente, sem carisma e recluso, sobre o qual se especulava possuir distúrbios mentais.


Diferentemente do Japão, a Índia, na segunda metade do século XIX, em particular a região de Bengala e sua capital Calcutá, vivia o auge da ocupação britânica. Essa ocupação, que começou em 1858 e durou até 1947, também resultou em uma modernização tanto tecnológica quanto social, com a industrialização, a construção de ferrovias e a implementação do telégrafo e do sistema educacional britânico. A imposição de uma educação ocidental e a proibição dos casamentos de crianças e da tradição da sati (imolação da viúva na fogueira funerária do marido) por um lado provocaram revoltas, mas, por outro, foram vistos por uma parcela da elite indiana como um avanço para o país. Esse momento da colonização coincidiu com o auge de um movimento nas artes e ciências bengaleses chamado de “renascimento bengalês”, cujas figuras proeminentes propuseram reformas sociais no interesse de afirmar uma identidade regional e nacional. Um dos últimos mestres do movimento foi o escritor, filósofo e teólogo Rabindranath Tagore (1861-1941), que em 1901 fundou uma escola coeducacional ao ar livre em sua aldeia, Santiniketan, voltada para o ensinamento da harmonia entre o ser humano e a Natureza em sua totalidade, em contraponto ao entendimento hierarquizado e 12

segmentado oferecido pelo sistema europeu. A meta da instituição para seus alunos, Tagore escreveu, era “não ter simples escola para seu ensinamento, mas um mundo cujo espírito dirigente seja o amor pessoal”.3 No mesmo ano, Tagore publicou sua famosa novela O ninho partido (Nastanirh, 1901), sobre um casamento que desintegra. Vinte anos depois, a escola de Tagore se tornou uma universidade chamada Visva-Bharati (“comunhão da Índia com o mundo”), cujo lema era “Onde o mundo faz morada num único ninho”. Em 1921, também nasceu Satyajit Ray (1921-1992), futuro aluno da universidade de Tagore e o cineasta que transformaria O ninho partido em filme. Ainda em 1921, o escritor japonês Yasunari Kawabata (1899-1972) publicou seu primeiro conto, durante seus estudos na Universidade Imperial de Tóquio. Kawabata entrou na universidade com a intenção de estudar literatura na língua inglesa, e tinha uma admiração particular pelo trabalho de Tagore, que muitas vezes traduzia suas próprias obras do bengali para o inglês – algo que o ajudou 3. Citado no ensaio de Tagore “Minha escola em Bengala”, de 1933. A tradução foi tirada do livro de Tagore Meditações, publicado no Brasil pela Editora Ideias & Letras em 2021.

a se tornar o primeiro não europeu a vencer o Prêmio Nobel de Literatura, em 1913. O adolescente Kawabata tinha visto Tagore em 1916, durante uma viagem que o indiano fez ao Japão, e ficou impactado pela visão de quem ele chamou de um “antigo mago oriental”.4 Mas, conforme avançava em seus estudos, Kawabata buscou entender quais poderiam ser as características principais de uma escrita essencialmente japonesa, e mudou seu foco para a literatura nacional. Kawabata escreveu breves contos experimentais ao longo dos anos 1920 e ganhou fama no início do 1926 com a publicação da sua novela A dançarina de Izu (Izu no odoriko, 1926), uma história de amor em um ambiente rural entre um estudante universitário e uma dançarina viajante, que, como em muitas obras do autor, utilizou frases simples para evocar uma sensação melancolicamente agridoce do passado recente. Ao invés de uma simplória narração de eventos, Kawabata trabalhou em seus escritos com linguagem e imagens ambíguas para caracterizar personagens modernos com estados psicológicos em transformação, espelhando 4. Citado em inglês no texto da The New Yorker

“Modern Magus”, sobre Tagore, escrito por Adam Kirsch em 2011: bit.ly/adamkirschims.


o Japão volátil de sua época. Ele compartilhou interesses estéticos com outros autores japoneses de sua geração, que chamavam seu movimento literário de Shinkankakuha, ou “neossensorialismo”. O grupo contou com colegas como Yokomitsu Riichi, que declarou em um manifesto: “O fenômeno da percepção para o Shinkankakuha é, para dizer brevemente, a sensação intuitiva direta que descasca os aspectos externos naturalizados e salta para dentro da coisa em si”.5 Esses autores se interessavam não apenas pela literatura, mas também pelo então novo fenômeno de cinema no Japão, que já na década de 1910 passava por sua própria revolução estética em prol de uma arte desconectada da literatura e pintura, algo que os críticos da época chamavam de “Movimento de puro cinema” (Jun’eigageki undō). Um importante expoente do cinema japonês veio a ser um colaborador do grupo Shinkankakuha, o cineasta Teinosuke Kinugasa (1896-1982), que começou sua carreira cinematográfica no estúdio Nikkatsu como um onnagata – um ator masculino, 5. Citado em inglês no artigo “New Perceptions:

Kinugasa Teinosuke’s Films and Japanese Modernism”, de William O. Gardner: bit.ly/ kinugasaims.

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tradicional do teatro kabuki, que era treinado para a interpretação de papéis femininos – e migrou para a direção de cinema após a indústria cinematográfica começar a contratar atrizes. Kinugasa dirigiu mais de 30 filmes no início dos anos 1920, entre melodramas e filmes de época, para a companhia Makino Produções. Seu primeiro filme como produtor independente, além de cineasta, nasceu a partir do que ele caracterizou como “o forte desejo de fazer apenas uma vez o tipo de filme que eu queria criar, livre do controle de qualquer pessoa”.6 Os escritores do Shinkankakuha pareciam parceiros ideais para a primeira produção da Liga Kinugasa de Cinema, e eles então começaram sua colaboração em 1926. Kawabata ficou responsável pela elaboração do roteiro, uma história contemporânea que partiu de uma experiência de Kinugasa. Ao sair de um trem para visitar os escritores, o cineasta se deparou com a comitiva de um “certo homem nobre”, sobre o qual as pessoas ao entorno cochichavam a respeito 6. Citado na autobiografia de Kinugasa, Minha juven-

tude no cinema (Waga eiga no seishun, 1977) e novamente em inglês no abrangente livro A Page of Madness: Cinema and Modernity in 1920s Japan, de Aaron Gerow.

de sua doença mental. Esse homem, ele descobriu, era o imperador Yoshihito, que morreria de pneumonia no final do ano, colocando fim à era Taishō e dando lugar à era Shōwa (liderada por seu filho, Hirohito).7 Assim nasceu Uma página de loucura (Kurutta Ichipeiji, 1926), cuja história foi ambientada em um manicômio e cuja pesquisa foi alimentada por uma visita que Kinugasa fez ao hospital Matsuzawa, um centro psiquiátrico público em Tóquio, fundado em 1879. Ali o diretor teve uma epifania sobre a possível existência de um drama por trás da vida de um doente mental, e, sob a influência de um Japão belicoso, violento e preconceituoso, optou por retratar a história de uma mulher que enlouquece devido à brutalidade do marido, um ex-soldado naval, e da filha do casal, que teme expor ao noivo a situação de sua mãe. O passado da família é revelado pelos olhos e pelas memórias da mulher internada (interpretada por Yoshie Nakagawa) e do marido (Masao Inoue, um grande astro do cinema silencioso japonês que abriu mão de seu cachê para viabilizar a produção), que passa a trabalhar como zelador do manicômio para ficar perto de sua esposa. 7. Citado no livro de Gerow.


Embora tenha havido disputas em relação a quem foi responsável por quais detalhes do filme, e, na época, Kawabata tenha dito que, devido a uma enfermidade, havia conseguido entregar apenas um argumento incompleto antes do início das filmagens, a versão do roteiro publicado pelo autor em 1926 corresponde muito ao filme final. O roteiro de Kawabata dá ênfase ao aspecto surrealista da história, ao mostrar diferentes situações corriqueiras do local. No início, por exemplo, passamos pelas portas do manicômio e somos recebidos por uma bailarina ensandecida (a dançarina Eiko Minami), frenética em seus movimentos e dançando até os pés sangrarem. Somos levados a crer que ela se apresenta em um teatro, mas, em seguida, revelam-se as grades de seu dormitório. Após esse primeiro contato, encontramos o casal que se tornará protagonista do filme, cada um preso em seu próprio espaço mental. A representação das alucinações dos personagens ao longo de Uma página de loucura é associada por historiadores à influência de filmes experimentais europeus, como os franceses A roda (La Roue, 1923), de Abel Gance, e A sorridente madame Beudet (La Souriante madame Beudet, 1923), de Germaine Dulac, em sua evocação de estados mentais por meio de 14

superimposições. Há, também, traços de obras do Expressionismo alemão, como A última gargalhada (Der letzte Mann, 1924), de F. W. Murnau – um filme que Kinugasa declarou adorar e que, como Uma página de loucura, não possui intertítulos para explicar a ação, deixando o espectador livre para construir sua própria narrativa com as imagens. A sequência final do filme provavelmente veio de Kawabata, na qual os pacientes e membros da equipe do manicômio colocam máscaras brancas evocativas do teatro nô como se tivessem consciência de serem personagens em um drama. Kawabata comentou na época para a revista Geki to engei [Drama e entretenimento] que sua intenção com essa sequência era utilizar a ficção para “salvar” o zelador, sua esposa e os outros personagens do filme, e “encerrar o sofrimento deles com um sorriso gentil”.8 Uma página de loucura foi lançado nas salas japonesas de cinema em setembro de 1926, inclusive em espaços geralmente reservados para filmes estrangeiros. Além de ser visto como uma obra importante, por trazer à luz a condição de pessoas com problemas mentais, o filme foi celebrado por 8. Citado no livro de Gerow.

críticos como uma revolução estética e uma abertura para as possibilidades artísticas do cinema nacional. Mas ele não teve, na época, o impacto merecido, pois se perdeu alguns meses após seu lançamento, algo infelizmente comum na rápida indústria cinematográfica japonesa da época. Kawabata nunca mais escreveu para o cinema, embora tenha incorporado suas qualidades imagéticas em diversos contos e romances ao longo dos anos (inclusive alguns diretamente inspirados nas filmagens de Uma página de loucura). Kinugasa conseguiu fazer mais uma produção independente, Encruzilhada (Jûjiro, 1928), uma brilhante tragédia experimental sobre a relação entre dois irmãos em Tóquio (então Edo) em um passado distante, que se tornou o primeiro filme japonês a ser exibido na Europa. Depois, ele voltou a trabalhar no sistema de estúdio por mais de 35 anos, sempre em busca de inovação – como em O portão do inferno (Jigokumon, 1953), um drama de samurai inspirado em pinturas de rolo tradicionais japonesas com tons cuidadosamente saturados, que foi um dos primeiros filmes nacionais coloridos. Com O portão do inferno, Kinugasa se tornou o primeiro cineasta japonês a vencer o prêmio principal no Festival de Cannes. Ao mesmo tempo que isso acontecia, Satyajit


Uma página de loucura, de Teinosuke Kinugasa

Ray estava finalizando seu longa-metragem de estreia, A canção da estrada (Pather Panchali, 1955), um drama neorrealista ambientado na Bengala rural da década de 1910, que acabou sendo a primeira parte de uma trilogia renomada. Embora a história das lutas diárias de uma família bengalesa na Trilogia de Apu tenha se baseado em dois romances autobiográficos do autor Bibhutibhushan Bandyopadhyay, o ritmo e tom e as imagens humanísticas foram também inspirados pela sensibilidade de Rabindranath Tagore. Ray estudou artes orientais na Visva-Bharati entre 1940 e 1942, um período 15

que envolveu a morte de Tagore, em 1941. Anos depois, ele disse que “Santiniketan me ensinou duas coisas – olhar para pinturas e olhar para a natureza”.9 Assim como Tagore foi um artista multifacetado, que, além de escritor, atuou como compositor e pintor, Ray foi um artista integral, dedicado principalmente ao cinema, para o qual escreveu roteiros, dirigiu, compôs a trilha sonora e desenhou pôsteres de seus filmes. Chegou a ser considerado o único discípulo direto 9. Citado em inglês no texto de Ray “The Education of a Filmmaker”, de 1983: bit.ly/satyajitims.

de Tagore no discurso crítico e na imaginação popular de sua região. O avô de Ray foi amigo de Tagore, e ambas as famílias pertenciam ao movimento progressista hinduísta Brahmo Samaj. Ao adaptar histórias de Tagore para o cinema, Ray demostrou interesse no desejo reformista do autor, em especial em expandir a participação das mulheres na sociedade. A deusa (Devi, 1960) baseia-se em um conto de Prabhat Kumar Mukhopadhyay, que, por sua vez, se inspirou em uma história contada por Tagore sobre uma família hindu ortodoxa na Bengala dos anos 1860, que é destruída após a jovem esposa do segundo filho ser


A esposa solitária, de Satyajit Ray

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percebida pelo patriarca como a reencarnação da deusa Kali. Três mulheres (Teen Kanya, 1961), comissionado junto a um documentário de Ray sobre Tagore pelo governo de Bengala Ocidental para homenagear o centenário do autor, adapta três contos para tratar de questões como alfabetização feminina, o direito da mulher de herdar os bens do marido e as desigualdades do casamento arranjado. Até A grande cidade (Mahanagar, 1963), adaptado de contos do escritor contemporâneo Narendranath Mitra e ambientado na Calcutá da década de 1950, explora temas tagoreanos na jornada de uma jovem mulher que desafia preconceitos ao deixar o espaço doméstico para procurar emprego pelo bem de sua família. A grande cidade foi a primeira colaboração entre Ray e a atriz bengali Madhabi Mukherjee, que trouxe um olhar firme e marcante para o trabalho. Logo após a conclusão das filmagens, ele ligou para Mukherjee pedindo a ela que relesse O ninho partido em preparação para sua próxima empreitada. Eles então fizeram uma adaptação de não apenas um dos primeiros romances modernos na língua bengali, mas também uma obra com relevância particular na vida do próprio Tagore. A protagonista feminina da história, Charulata, foi vista por 17

muitos como uma representação velada de Kadambari Devi, a esposa do dramaturgo e músico Jyotirindranath Tagore, que estimulou os talentos de seu irmão mais novo Rabindranath. A jovem mulher e o poeta compartilharam uma relação afetuosa e criativamente estimulante, porém platônica (algo comum em famílias bengalesas da época). Em 1884, quatro meses após o casamento de Rabindranath, Kadambari cometeu suicídio por motivos que nunca foram revelados. Ele a rememorou pelo restante de sua vida – como a modelo professada das mulheres bengalis que retratou em suas pinturas e seus desenhos e como a força não nomeada que guiou muitos dos seus poemas, suas histórias e suas composições musicais. Para o filme A esposa solitária (Charulata, 1964), Ray manteve a trama básica da novela, um triângulo amoroso no final do século XIX entre a jovem Charu (Mukherjee), seu marido distante e mais velho Bhupati (interpretado por Shailen Mukherjee) e o primo do marido, o poeta Amal (Soumitra Chatterjee, que possuía uma semelhança física com o jovem Tagore). Porém, o diretor deu à personagem do título um protagonismo que é menos presente na obra literária. Na novela, somos inicialmente apresentados a Bhupati e aos aspectos psicológicos de um

bhadralok – personalidade masculina burguesa bengalesa – de uma época em que a colonização britânica ainda era vista como um possível benefício para os indianos. O idealismo liberal ingênuo, somado a um racionalismo extremo, não permite que Bhupati, obcecado com a publicação de seu jornal autofinanciado de notícias políticas na língua inglesa chamado A Sentinela, enxergue os problemas de sua própria família, principalmente da esposa, que vive restrita aos aposentos do casarão. Tagore faz uma crítica ao novo homem indiano, que conduz o país à modernidade sem se atentar às necessidades particulares de sua cultura. O drama principal do livro reside no patriarca, que admira o progresso europeu, porém não consegue adaptá-lo às necessidades de seu próprio povo. Ao adaptar a história de Tagore em uma Índia recém-independente, Ray faz com que a situação de Charulata – uma nabina (“nova mulher”) submetida às tradições culturais e domésticas indianas – expresse a condição ainda conflitante do país. A abertura do filme apresenta, sem palavras e com uma câmera que acompanha nos detalhes os movimentos da personagem, o impulso de Charu para procurar a vida externa à casa. De sua “fortaleza”, ela observa energeticamente o movimento da rua através de um par


de óculos de ópera, ou procura um romance em sua biblioteca, fazendo do ambiente doméstico um local de eterna espera, e não de trabalho. Quando ela e seu marido se cruzam pela primeira vez em um corredor da casa, ele mantém seus olhos fixados em um livro sobre política, sem enxergar sua esposa, que o observa. Depois, quando Bhupati pergunta onde Charu conseguiu tempo para bordar um lenço para ele, ela responde de forma ácida que tudo que ela tem é tempo. O tempo muda com a chegada de Amal, que, no filme, entra na casa literalmente acompanhado por uma tempestade. Bhupati propõe a seu primo, recém-chegado de seus estudos universitários, fazer algo prático, como ensinar Charu a expressar sua criatividade. Os dois se aproximam emocionalmente e formam uma sociedade literária secreta, cujo sigilo Amal eventualmente viola ao se tornar um autor público. Essa decisão, por sua vez, motiva Charu a publicar um ensaio rememorando sua aldeia nativa e a projetar sua vida interior para o mundo. A autonomia de Charu no filme, algo menos presente no livro (onde a decisão de publicar os textos dela, por exemplo, é tomada por Amal), aproxima Bhupati da esposa. Já a relação entre Charulata e Amal atinge seu ápice em uma cena que não existe em 18

O ninho partido. Eles saem da casa pela primeira vez para conversar no jardim, e Charu se senta em um balanço e entoa uma música sobre um cuco que cantou nas árvores, mas foi embora por um motivo que o coração não sabe. A música, “Phule Phule Dhole Dhole” [O abraço das flores], foi composta por Tagore em 1882, e o gesto de colocá-la no filme destaca o aspecto biográfico dessa história. Assim como Tagore deu nova vida a Kadambari Devi, Ray mostra Charu florescendo, em diálogo com os sentimentos do autor. A esposa solitária estreou nas salas indianas em abril de 1964, um mês antes da morte por causas naturais do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru, líder inaugural da Índia independente e pai da futura primeira-ministra Indira Gandhi. O filme foi um sucesso de bilheteria e crítica, apesar de haver debates sobre as mudanças em relação ao livro, que até levou Ray a defender suas escolhas em uma carta a um jornal bengali. No ano seguinte, ganhou dois prêmios no Festival Internacional de Cinema de Berlim, e posteriormente virou a adaptação cinematográfica mais celebrada da obra de Tagore, além do filme preferido de Ray dentre seus trabalhos. Em 1968, um escritor japonês influenciado por Tagore se tornou apenas o segundo

autor asiático a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Na época de sua premiação, fazia mais de 40 anos desde a última vez que Yasunari Kawabata havia assistido ao único filme em que trabalhou. Ele morreu quatro anos depois, sem poder rever Uma página de loucura. Se tivesse vivido por mais tempo, teria tido a chance, pois o então aposentado Teinosuke Kinugasa encontrou o negativo e uma cópia do filme guardados em sua casa no início da década de 1970. A obra subsequentemente passou em um Japão capitalista, democrático e pós-imperial, e finalmente circulou no exterior, sendo reconhecido até hoje como uma contribuição crucial ao movimento da vanguarda da década de 1920. A Sessão Mutual Films de janeiro de 2024 é dedicada às memórias dos músicos, compositores e amigos irlandeses Sinéad O’Connor (1966-2023) e Shane MacGowan (1957-2023).


Em cartaz

Mal viver

João Canijo | Portugal | 2023, 127’, DCP (Zeta Filmes) Cinco mulheres da mesma família, de diferentes gerações, administram um antigo hotel familiar, na costa norte de Portugal, tentando salvá-lo da decadência inexorável. Um conflito antigo, talvez irreparável, pesa sobre elas: são mães incapazes de amar suas filhas. Quando a jovem Salomé chega ao hotel, velhas feridas são reabertas. O convívio neste mesmo espaço, por vezes claustrofóbico, causa uma perturbação que traz à tona ódios latentes e rancores acumulados. O filme de João Canijo se passa todo em uma mesma locação, um hotel junto à praia, em Ofir, Esposende, e compõe um díptico com seu outro filme Viver mal, com estreia prevista para fevereiro de 2024. Enquanto Mal viver se concentra na família das proprietárias do lugar, Viver mal se debruça sobre as hóspedes. Este último é uma livre adaptação de três peças do dramaturgo sueco August Strindberg, a quem Canijo se refere como “mestre espiritual” de Ingmar Bergman, outra das suas referências. 19

“Este projeto parte de um conceito fundamental: a ansiedade”, comenta o diretor em entrevista a Daniel Ribas. “Isto é, como a ansiedade pode impedir o amor; e a expressão desse amor pode impedir de viver. É a ansiedade que impede uma das protagonistas de ter uma relação normal com a filha: a ansiedade em relação à responsabilidade de ter de a criar. A ansiedade de ter de a amar, impede-a de amar.” “Há uma frase do Ingmar Bergman que para mim se tornou muito importante (li-a aos 20 anos e só a percebi 20 anos depois): um filme tem de partir de uma ideia que esteja presente em cada cena e em cada plano. Só compreendi isso completamente no Sangue do meu sangue. Essa conceção do cinema não significa que tenha de ser evidente, mas é fundamental que haja uma ideia que conduza os filmes.” Mal viver recebeu o Urso de Prata, Prêmio do Júri, no Festival de Berlim 2023, e Viver mal participou da mostra Encounters, também em Berlim. [Íntegra da entrevista: bit.ly/malviverims] Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

Priscilla

Sofia Coppola | EUA, Itália | 2023, 116’, DCP (O2 Play) Quando a adolescente Priscilla Beaulieu conhece Elvis Presley em uma festa, o homem que já era um superstar do rock torna-se alguém completamente inesperado em momentos particulares: uma paixão emocionante, um aliado na solidão, um melhor amigo vulnerável. Em um longo namoro e um casamento turbulento, Elvis e Priscilla, passam desde uma base militar alemã até a propriedade dos sonhos em Graceland. Sofia Coppola traz o ponto de vista de Priscilla sobre um grande mito norte-americano. “Durante a pandemia, eu estava trabalhando em uma adaptação de Edith Wharton há muito tempo e, por vários motivos, não estava conseguindo fazer nada”, conta Coppola em entrevista à revista Vogue. “Eu estava presa em casa com covid quando um amigo recomendou Elvis & eu [livro de 1985 escrito por Priscilla Presley e Sandra Harmon], e fiquei realmente comovida com a história dela. Ela sempre foi vista como esse símbolo


do glamour e da perfeição americana, e eu não tinha ideia do quanto ela lutou e quais eram os detalhes de sua vida – como o fato de ela ainda estar cursando o ensino médio enquanto morava em Graceland e festejava com Elvis a noite toda. Parecia um mundo no qual eu realmente poderia mergulhar para pintar um retrato de Priscilla e mostrar como deve ter sido chegar à idade adulta em um ambiente tão estranho. Eu li o livro e fiquei pensando: ‘Bem, eu quero fazer isso − eu sei como fazer isso, e a história dela me empolga’.” “Eu não queria mesmo fazer apenas mais um filme biográfico convencional. Eu queria capturar o quão avassalador é esse encontro com o primeiro amor e como pode ser confuso tentar entender um homem que é tão quente e frio. Achei que a história de Priscilla encapsulava algo pelo qual todos nós passamos, mas de uma forma tão glamourosa e intensa. Ela passou grande parte de sua vida tentando agradar a outra pessoa antes de perceber que precisava aprender mais sobre o que queria da vida.” [Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/priscillaims] Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

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Propriedade

Daniel Bandeira | Brasil | 2022, 101’, DCP (Vitrine Filmes)

Para se proteger de uma revolta dos trabalhadores da fazenda de sua família, uma reclusa estilista se enclausura em seu carro blindado. Separados por uma camada impenetrável de vidro, dois universos estão prestes a colidir. Propriedade foi selecionado para a mostra Panorama da Berlinale de 2023. Em entrevista a Camila Gonzatto para o site do Instituto Goethe, o diretor Daniel Bandeira comenta a origem do filme e o lugar que a violência ocupa nele: “O filme surgiu como um mero exercício de estilo. Toda a história se concentrava no drama de Teresa tentando sobreviver a uma ameaça externa sem nome nem rosto. Mas com toda a discussão acerca da polarização política que pautou o Brasil dos anos 2010, senti que não era mais possível manter a estrutura unilateral da história. Ao desenvolver também o drama dos trabalhadores fora do carro, vi a oportunidade de falar sobre o caos

em que vivem as camadas mais populares e sobre a incomunicabilidade que alimenta a luta de classes ao longo da história do Brasil. O isolamento é o motor do nosso colapso enquanto sociedade.” “A violência é o curso natural da incomunicabilidade. Cultivamos com orgulho a imagem de um povo trabalhador e resiliente, mas precarizamos todos os aspectos da vida da classe trabalhadora. Menosprezamos seus desejos e suas revoltas. Então, caos é o que lhes resta. Meu foco não está tanto na ‘revolução armada’, que pressupõe uma organização mais complexa, mas no caos primordial, na rachadura que levará ao estouro da barragem. Esse caos me interessa enquanto cidadão e contador de histórias, pois ele pode se transformar em qualquer coisa, expor pessoas, respingar em qualquer um. Mas ele também é fruto de uma construção histórica muito antiga, colonial, na qual nosso ‘pacto de cordialidade’ sempre atuou para suprimir um contato mais franco entre as classes. Não concordo com a violência, mas não me surpreende quando ela ocasionalmente irrompe.” “A violência rompe o ordinário. É por isso que o cinema a ama – e é por isso que muitos amam o cinema. No entanto, por mais chocante que seja a violência narrativa de Propriedade, ela atua para evidenciar a violência histórica. Essa sim, mais insidiosa, dá motivação aos personagens e pode reverberar na experiência pessoal dos espectadores. Usar a violência como um cavalo de Troia é uma das possibilidades que mais me atrai no cinema de gênero.” A estreia de Propriedade faz parte do projeto Sessão Vitrine Petrobras. [Íntegra da entrevista: bit.ly/propriedadeims] Ingressos: R$ 15 (inteira) e R$ 7,50 (meia).


Puan

María Alché, Benjamín Naishtat | Argentina, Alemanha, Brasil, França, Itália | 2023, 109’, DCP (Vitrine Filmes)

Marcelo dedicou sua vida ao ensino de filosofia na universidade pública e, de repente, seu mentor e chefe, o professor Caselli, morre. Desorientado nesse novo panorama, Marcelo imagina que herdará o posto deixado vago por seu mentor. O que ele não espera é que Rafael Sujarchuk, um filósofo carismático e pedante, formado nas melhores universidades europeias, também queira o posto. Entre seus múltiplos empregos como professor de filosofia em periferias, na universidade e em particular para uma milionária de 80 anos de idade, ele também deve se preparar para concorrer a um cargo contra esse forte adversário, que parece encantar a todos. Esta é a primeira incursão mais direta de Alché (Família submersa, 2018) e Naishtat (Vermelho sol, 2018) na comédia. Em entrevista ao portal LatAm Cinema, a diretora comenta: “Nossos filmes 21

(Benjamín já tinha três, eu só tinha um) vieram de outras linguagens, a ideia de fazer algo juntos incluiu desde o início a ideia de saltar de um trampolim para um lugar que era novo para nós dois. E há a circunstância de que o projeto não teria sido possível sem aquele período de confinamento forçado pela pandemia que nos permitiu escrever e pensar algo assim. Então, organicamente, surgiu a ideia de fazer uma comédia, algo que nos tentava muito. Ou pelo menos flertar com o gênero, porque depois o filme começou a assumir aspectos dramáticos.” “Fazer comédia foi a regra que impusemos a nós mesmos para abordar uma série de assuntos que, de outra maneira, poderiam ser mais densos ou tristes, como a situação da educação pública ou questões existenciais, como a morte de alguém próximo a nós”, complementa Naishat. “Há várias tradições que permeiam o tipo de comédia que queríamos fazer. Os primeiros filmes de [Daniel] Burman foram comédias fantásticas, como O abraço partido e As leis de família, com personagens cheios de vida, muito particulares, muito preciosos. [...] E há também a comédia argentina mais tradicional, como Esperando la carroza [de Alejandro Doria], com suas situações tradicionais e que também, de alguma forma, passou pela escrita, embora talvez não seja tão perceptível. E há outras comédias de outros cinemas, e talvez até mais modernas, como as da alemã Maren Ade, que revisou o roteiro e nos ajudou, ou de Alexander Payne, que tem algumas comédias muito humanas, tristes e cômicas ao mesmo tempo.” [Íntegra da entrevista, em espanhol: bit.ly/puanims] Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

Vidas passadas

Past Lives Celine Song | EUA | 2023, 106’, DCP (California Filmes)

Nora e Hae Sung, dois amigos de infância profundamente conectados, se separam depois que a família de Nora decide sair da Coreia do Sul. Vinte anos depois, eles se reencontram em Nova York para uma semana fatídica, enquanto confrontam noções de destino, amor e as escolhas que fazem uma vida. “Há um bar no East Village em que fui parar porque estava morando por lá. Eu estava sentada lá com meu namorado de infância que veio da Coreia, agora é um amigo, que só fala coreano, e meu marido americano, que só fala inglês”, conta a diretora em entrevista ao portal The Hollywood Reporter. “E eu estava sentada ali tentando traduzir esses dois caras tentando se comunicar, e senti que algo realmente especial estava acontecendo.


Sessão Mutual Films

Eu estava me tornando uma espécie de ponte ou um portal entre esses dois homens e também, de certa forma, esses dois mundos de idioma e cultura. Alguma coisa naquele momento realmente despertou algo em mim e me fez sentir que talvez isso pudesse ser um filme. Então, tudo começou com uma coisa bem real que aconteceu comigo.” Sobre o trabalho com o elenco, comenta ainda: “Não vou usar de malabarismos, efeitos visuais ou algo assim para melhorar o que está acontecendo no rosto dos atores. O que isso significa é que o filme inteiro tem que estar nos rostos dos atores. Portanto, fiz algumas coisas. Mantive os dois atores masculinos separados durante a preparação do filme até filmarmos a cena em que os dois se veem pela primeira vez. Isso exigiu um pouco de logística, mas os dois homens estavam separados. Além disso, pedi a Greta, que interpreta Nora, que nos ensaios com cada um deles dissesse ao outro que estava ensaiando com ele. Assim, os dois estavam formando ideias sobre quem era o outro homem e criaram expectativas sobre isso. E então, é claro, quando eles se encontram pela primeira vez, nós estávamos filmando. Porque queríamos estar filmando quando eles se encontrassem pela primeira vez − tanto os atores quanto os personagens. E, quando isso aconteceu, essa cena está no filme.” [Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/pastlivesims] Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).

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A vida de dentro: Uma página de loucura + A esposa solitária A primeira Sessão Mutual Films de 2024 celebra diálogos entre quatro grandes artistas e duas formas de arte, o cinema e a literatura. No filme Uma página de loucura (1926), do renomado diretor japonês Teinosuke Kinugasa (1896-1982), observamos um atormentado ex-marinheiro trabalhando como zelador em um manicômio para poder ficar mais próximo de sua delirante esposa. Uma das obras mais polêmicas do cinema mudo japonês contou com uma história original escrita por Yasunari Kawabata (1899-1972) – primeiro vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de seu país (1968) – e expressa o impacto duradouro da Primeira Guerra Mundial e o fim eminente do próspero período Taishō, ao mesmo tempo que propõe uma nova linguagem estética. O filme A esposa solitária (1964), dirigido pelo mestre indiano Satyajit Ray (1921-1992), foi baseado em um romance publicado em 1901 pelo revolucionário artista e pensador bengalês Rabindranath Tagore (1861-1941), primeiro vencedor asiático do Prêmio Nobel de Literatura (1913). A história descreve o isolamento profundo de Charulata, a jovem esposa de um atarefado fundador de um jornal progressista no final do século XIX em Bengala, que se apaixona pelo primo de seu marido, um jovem poeta despojado. Ao fazer sua transposição do romance O ninho partido para o cinema, Ray destaca elementos da vida pessoal de Tagore ao mesmo tempo que analisa a mentalidade social da ex-colônia britânica, a qual ele e o grande escritor pertenciam. Ambos os filmes da sessão apresentam a

imaginação e a memória como forças que vão para além do espaço e tempo. A exibição da nova versão restaurada de Uma página de loucura no IMS Paulista no dia 30 contará com acompanhamento ao vivo do músico e compositor Gabriel Levy. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia). Os ingressos para as duas sessões de A esposa solitária e para a exibição do dia 18/01 de Uma página de loucura estão disponíveis pelo site ingresso.com e na bilheteria do IMS Paulista. Para a exibição de 30/01 de Uma página de loucura com acompanhamento musical de Gabriel Levy, devem ser adquiridos pelo endereço: sympla. com.br/imoreirasalles a partir do meio-dia de 16 de janeiro, ou no dia do evento na bilheteria do IMS Paulista, também a partir do meio-dia.


Uma página de loucura

Kurutta Ichipeiji Teinosuke Kinugasa | Japão | 1926, 79’, 35 mm para digital, cópia restaurada (Arquivo Nacional de Cinema do Japão) Uma tempestade, a roda de um automóvel em movimento, uma dançarina rodopiando, os portões de um prédio. Essas imagens se intercalam freneticamente e com velocidade crescente, culminando em um dormitório onde um homem melancólico observa a chuva pela janela alta. Esse homem (interpretado pelo astro do cinema japonês silencioso Masao Inoue) é o zelador do manicômio onde está internada sua esposa (Nakagawa Yoshie), que foi levada violentamente à loucura por ele em um passado distante, quando era um marinheiro do exército. Enquanto trabalha entre a população de homens e mulheres alucinados, o zelador, consumido pelo remorso, procura auxiliar sua esposa e a filha adulta (Iijima Ayako), que a visita eventualmente e que se prepara para se casar. O homem reconhece que sua agres23

são no passado repercutirá na vida futura da sua família, pois, nessa sociedade, a doença mental é considerada hereditária e motivo de vergonha. Sua busca por redenção evolui para uma condição de perpétua insanidade, representada por imagens surrealistas dele, dos habitantes do manicômio e dos arredores do local, que entram cada vez mais na linha ambígua entre um estado de delírio e o mundo real. Uma página de loucura foi o 35º longa-metragem dirigido pelo prolífico cineasta Teinosuke Kinugasa, e seu primeiro como produtor independente. Ele convidou como colaboradores um grupo de jovens escritores chamado Shinkankakuha [Grupo neossensorialista], cujos membros revolucionaram a literatura japonesa ao propor um estilo de prosa mais focado em comunicar as sensações e impressões imediatas da percepção humana do que na narrativa linear. O desenvolvimento da história original do filme ficou nas mãos do integrante do grupo Yasunari Kawabata, um romancista e escritor de contos que ganharia o Prêmio Nobel de Literatura mais de quatro décadas depois. A obra resultante empregou uma grande variedade de truques e técnicas cinematográficas experimentais, como superimposições de imagens e dissoluções entre planos, ao longo de uma narrativa contada sem nenhum intertítulo para explicar a ação. Uma página de loucura gerou uma comoção entre os críticos de cinema japoneses da época, que se dividiram entre o enaltecimento, ao considerá-lo o primeiro filme nacional com o padrão internacional das obras-primas do Expressionismo alemão e do Surrealismo francês, e o demérito, ao tratá-lo como incompreensível. Mas, mesmo

tendo sido um sucesso de bilheteria e bem recebido entre profissionais da área de saúde, o filme logo se perdeu, como foi o caso da vasta maioria de filmes japoneses da época silenciosa. Kinugasa finalmente encontrou o negativo de Uma página de loucura em sua casa em 1971 e, em toda probabilidade, reeditou-o para dar ainda mais ênfase ao seu aspecto experimental. Desde então, o filme tem circulado em diversas cópias de qualidade variável. A nova versão de Uma página de loucura que passará no IMS, confeccionada em 2021 pelo Arquivo Nacional de Cinema do Japão, restaura diversos aspectos do filme, entre eles o tamanho original das imagens (que foi diminuído com o acréscimo de uma banda sonora à película na década de 1970) e o tingimento azul do lançamento original, algo não exibido desde a década de 1920. A primeira exibição do filme será apresentada sem acompanhamento musical, e a segunda terá a participação ao vivo do acordeonista e compositor brasileiro Gabriel Levy. A Sessão Mutual Films tem curadoria e produção de Aaron Cutler e Mariana Shellard.


A esposa solitária

Charulata Satyajit Ray | Índia | 1964, 120’, 35 mm para DCP, cópia restaurada em 2k (RDB Entertainments) Charulata (interpretada por Madhabi Mukherjee) é a jovem esposa do atarefado Bhupati (Shailen Mukherjee), proprietário de um jornal progressista e autofinanciado chamado A Sentinela, na região indiana de Bengala em 1879. Tendo se casado ainda criança, Charu desabrocha numa mulher entre os aposentos de sua grande casa, alienada da vida pública e imersa em seus livros. Para fazer companhia a Charu, Bhupati chama para trabalhar em seu jornal o cunhado Umapada (Shyamal Ghoshal), acompanhado de sua também jovem esposa, Mandakini (Gitali Roy). Apesar de serem contemporâneas, Charu e Manda possuem diferenças irreconciliáveis, uma vez que a anfitriã se percebe como uma nabina (mulher moderna), diferente da sua hóspede prachina (mulher tradicional). O mundo de Charu, confinado quase totalmente à sua casa, é então 24

sacudido por completo com a chegada de Amal (Soumitra Chatterjee), primo de Bhupati, com quem cresceu durante a infância. Amal é um poeta que recentemente concluiu seus estudos universitários, e, com o encorajamento de seu primo, estimula Charu a escrever e dar corpo aos seus sentimentos, um gesto que ela leva para consequências inesperadas. A esposa solitária (1964) se baseia na obra O ninho partido (1901), do primeiro vencedor asiático do Prêmio Nobel de Literatura, Rabindranath Tagore. É uma das primeiras obras literárias do autor bengalês no formato ocidental de novela, que traz consigo elementos autobiográficos. Especulou-se que a referência principal para a personagem de Charu foi Kadambari Devi, a jovem esposa de Jyotirindranath Tagore (irmão mais velho de Rabindranath), com quem o autor conviveu por anos e que morreu alguns meses após ele se casar. O cineasta Satyajit Ray, admirador profundo da obra de Tagore, explora esse aspecto da vida real do escritor, e traz para cenas do filme suas poesias e músicas, além de momentos inspirados pela figura da mulher que Tagore também representou em desenhos e pinturas. Ray trabalhou em seu 12º longa-metragem pela primeira vez como operador de câmera (ao lado do cinegrafista Subrata Mitra), além de escrever o roteiro, compor a trilha sonora, colaborar na direção de arte e desenhar o cartaz. Com um olhar clássico e naturalista, a câmera acompanha em detalhes os personagens que se deslocam pelos cômodos e pelo jardim da espaçosa casa bengalesa e expressa com ludicidade e jovialidade as situações vividas. Em várias ocasiões, os diálogos e as descrições de Tagore são substituídos

por momentos silenciosos, que evocam os pensamentos dos personagens de formas inquietantes. Ainda que trágica, a história – tanto do livro como do filme – retrata a vida intelectual fértil e autorrenovadora da elite indiana. A cópia de A esposa solitária que será exibida no IMS Paulista é de uma restauração de 2013, realizada em 2K a partir do negativo original do filme pelo Pixion Studios e Cameon Media Lab, em Bombaim. O trabalho foi conduzido pela RDB Entertainments, sob a supervisão de Varsha Bansal, neta de R.D. Bansal, um produtor e exibidor de cinema em Calcutá que produziu seis filmes de Ray (todos agora restaurados). Apesar do fracasso comercial de sua primeira colaboração, A grande cidade (1963), eles realizaram A esposa solitária logo em seguida e atingiram um grande sucesso de crítica e público. O filme também foi aclamado internacionalmente com o Urso de Prata no Festival Internacional de Cinema de Berlim, entre outros prêmios. No escopo de sua obra cinematográfica, Ray considerou A esposa solitária seu filme preferido e mais perfeitamente realizado.


Coutinho 90

Em 1984, Eduardo Coutinho marcou a história do cinema de não ficção com o lançamento de Cabra marcado para morrer. Por onde passou, tensionou os limites da representação e do assim chamado “documentário”: dirigindo episódios históricos do Globo Repórter, na produção em vídeo junto ao CECIP e na formulação de um “cinema do encontro” bastante único a partir de Santo forte. Em 11 de maio deste ano, Coutinho completaria 90 anos. Como homenagem, o Cinema do IMS exibiu uma seleção de obras do cineasta ao longo do ano. Passados 40 anos do lançamento do Cabra, o filme de Coutinho poderá ser revisto no cinema em cópia 35 mm, junto às duas sequências realizadas pelo diretor em 2013 e a exibição, pela primeira vez no cinema, da versão do filme comentada por Eduardo Coutinho, Carlos Alberto Mattos e Eduardo Escorel. Em 2022, o Instituto Moreira Salles lançou um ebook de acesso gratuito com o roteiro original de Cabra marcado para morrer, digitalizado a partir de uma fotocópia do datiloscrito de 1964, com anotações do cineasta. A obra foi organizada por Carlos Alberto Mattos, também autor de um ensaio crítico que acompanha a publicação. O livro pode ser acessado em: bit.ly/imscabra. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

Cabra marcado para morrer

A família de Elizabeth Teixeira

“As filmagens começaram em fevereiro de 1964. Coutinho pretendia contar a história de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, na Paraíba, assassinado em 1962. Não queria atores profissionais: que os personagens fossem interpretados pelos próprios camponeses. Dezessete anos depois, Coutinho volta à região, consegue encontrar Elizabeth e, através do filho mais velho, Abraão, investiga o destino dos outros dez filhos e de todos os envolvidos no projeto. Ele exibe os originais filmados há tanto tempo, os camponeses se alegram com seus rostos, mais jovens, vivem a emoção do reconhecimento e o jogo de identificações. Vinte anos depois, Coutinho conclui seu filme, um épico contado com clareza, paciência e perseverança, por alguém que confia no trabalho e nos dias. Uma experiência original na cinematografia brasileira.”

Cinquenta anos depois da ficção interrompida pelo golpe militar, em março de 1964, um reencontro com Elizabeth Teixeira e seus filhos. Filme produzido especialmente como complemento da edição de Cabra marcado para morrer da coleção DVD | IMS. Na ocasião do lançamento do DVD, José Carlos Avellar escreveu para o Blog do IMS: "Eu sou morta desde a idade de oito anos. Cortada da imagem em que existe, a frase não transmite seu real sentido. Dor extrema. Na essência mesmo da pessoa. Modo de ser. Viver morta desde os oito anos. No filme, a fala transmite uma dor diferente, não menos intensa talvez, mas de outra natureza. Depois do filme, a radicalidade da afirmação retorna, independente, como condição trágica. Nada define melhor A família de Elizabeth Teixeira: uma das personagens que nos conta a história está morta desde a idade de oito anos.

Eduardo Coutinho | Brasil | 1962-1984, 119’, cópia 35 mm (Cinemateca Brasileira)

[Roberto Mello, Jornal do Brasil, jan.1985] 25

Eduardo Coutinho | Brasil | 2014, 65’, arquivo digital (Acervo IMS)


De um certo modo, o filme se serve de um mecanismo semelhante ao usado na formulação dessa frase. Avança noutra direção, no contracampo do comentário de Marta, mas guiado por uma semelhante máquina de viajar no tempo, de existir no presente sem sair do passado: como a personagem, cuja vida está marcada pelo fato de ter morrido aos oito anos, o filme está marcado pelo fato de Cabra marcado para morrer ter voltado à vida há 30 anos, depois de um perverso estado de coma induzido pelo regime militar entre 1964 e 1984.” A família de Elizabeth Teixeira será exibido junto ao filme Sobreviventes da Galileia, de Eduardo Coutinho. [Íntegra do texto em: bit.ly/cabraims]

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apertado e silencioso na despedida resume o sentimento comum a todos os que participaram de seus filmes como personagens ou como espectadores diante das lições de vida reveladas pelo seu cinema. É a última cena do último filme de Eduardo Coutinho.” Sobreviventes da Galileia será exibido junto ao filme A família de Elizabeth Teixeira, de Eduardo Coutinho.

Sobreviventes da Galileia

Eduardo Coutinho | Brasil | 2014, 27’, arquivo digital (Acervo IMS) Em janeiro de 2013, Eduardo Coutinho vai a Pernambuco para reencontrar dois dos personagens de Cabra marcado para morrer (1964-1984): Cícero e João José (o Dão da Galileia). Na ocasião da morte do diretor, o crítico José Carlos Avellar escreveu para o Blog do IMS: “Terminada a conversa, os amigos se despedem com um abraço. A amizade nasceu do cinema. João José, em 1964, então um menino, guardou o livro esquecido quando o Exército invadiu a Galileia e interrompeu as filmagens de Cabra marcado para morrer. Guardou porque a história do livro era como a da gente do filme. O abraço do filme é como o de todos nós. Coutinho filmou João José em janeiro de 1981 e voltou a visitá-lo, em janeiro de 2013, para um novo filme, Sobreviventes da Galileia. O abraço

[“Despedida”, texto de José Carlos Avellar, disponível em: bit.ly/cabraims2]


Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir

Faixa comentada: Cabra marcado para morrer Brasil | 2014, 119’, DCP

Por ocasião do lançamento da versão restaurada de Cabra marcado para morrer como parte da coleção DVD | IMS, foi produzida uma versão do filme comentada por Eduardo Coutinho, Eduardo Escorel, montador do filme, e Carlos Alberto Mattos, biógrafo e pesquisador da obra de Coutinho. Esta versão é recomendada para quem já assistiu ao filme.

Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir Impulsionados pela emergência de equipamentos portáteis para captação de som e imagens no final da década de 1960, coletivos feministas franceses adotaram a produção de filmes e materiais audiovisuais como ferramenta de mobilização, difusão e aprofundamento de pautas. Fundado em 1982 pelas cineastas e militantes Delphine Seyrig, Carole Roussopoulos e Ioana Wieder, o Centro Audiovisual Simone de Beauvoir (CaSdB) é um arquivo audiovisual que reúne e preserva parte expressiva da produção realizada nesse contexto de ebulição social. Nessa, que é a maior retrospectiva desse acervo já realizada no Brasil, são apresentadas, mês a mês, obras que buscaram registrar e intervir na realidade não apenas da França, mas de outros países, com uma seleção de filmes históricos e contemporâneos preservados no Centro. São imagens que apresentam conferências feministas, manifestos, greves e movimentos de trabalhadoras, reivindicações por diversidade sexual, e retratos de personalidades, como Simone de Beauvoir, Angela Davis e Flo Kennedy, além de abordar temas densos e ainda urgentes, como guerra, democracia, estereótipos televisivos, aborto, abuso e prostituição. Com curadoria de Barbara Alves Rangel, ex-programadora do Cinema do IMS e atual diretora-geral do Centro, a mostra teve início em julho e segue até fevereiro de 2024, exibindo programas mensais. Em texto publicado no Blog do Cinema do IMS, a curadora faz um panorama inicial da trajetória do Centro e de suas fundadoras: [bit.ly/br-casdb]. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

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Anne-Gaëlle

Agathe Simenel | França | 2014, 42’, DCP (CaSdB) Anne-Gaëlle fala sobre si mesma. Ela compartilha conosco suas fotos, suas memórias, sua relação com seu corpo e com sua identidade. Mãe de dois filhos, é graduada em ciência política e economia, trabalhou como executiva audiovisual e professora na Universidade de Toulouse. Ativista pelos direitos LGBT, pouco a pouco revela alguns aspectos mais íntimos de sua história e de suas representações interiores.


Instituto Moreira Salles Cinema Curador Kleber Mendonça Filho Programadora Marcia Vaz

Programador adjunto Thiago Gallego

Produtora de programação Quesia do Carmo

Assistente de programação Lucas Gonçalves de Souza

Projeção Ana Clara da Costa e Adriano Brito Serviço de legendagem eletrônica Pilha Tradução Revista de Cinema IMS

Produção de textos e edição Thiago Gallego e Marcia Vaz Diagramação Marcela Souza e Taiane Brito

Os filmes de janeiro

O programa do mês tem o apoio da Cinemateca Brasileira, da Cinemateca do MAM, do Arquivo Nacional de Cinema do Japão, do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, da Mutual Films, do RDB Entertainments, da produtora Mapa Filmes, das distribuidoras California Filmes, O2 Play, Vitrine Filmes, Zeta Filmes e do projeto Sessão Vitrine Petrobras. Agradecemos a Barbara Rangel, Nicole Fernández Ferrer, Peggy Préau, Fábio Andrade, Elisa Ximenes, Guilherme Albani, Hernani Heffner, Drika de Oliveira, José Quental, Juliano Gentile, Lilla Stipp, Camila Jordão, Grissel Piguillem, Gabriel Levy, Aaron Gerow, Arun A.K., Alo Jõekalda, Chaitali Chatterjee, Leonardo Bomfim Pedrosa, Pedro Tinen, Raju Roychowdhury, Rikako Kosugiyama, Ruchir Joshi, Tetsuya Maruyama, Varsha Bansal e à pequena Ava. Apoio

Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir Realização: Instituto Moreira Salles; Curadoria: Barbara Alves Rangel; Cartaz: Marcela Antunes de Souza e Taiane Brito Apoio

Revisão Flávio Cintra do Amaral

Sessão Mutual Films Realização: Instituto Moreira Salles; Curadoria, textos e produção: Mutual Films - Aaron Cutler e Mariana Shellard Apoio:

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Venda de ingressos Ingressos à venda pelo site ingresso.com e na bilheteria do centro cultural, a partir das 12h, para sessões do mesmo dia. No ingresso.com, a venda é mensal, e os ingressos são liberados no primeiro dia do mês. Ingressos e senhas sujeitos à lotação da sala. Capacidade da sala: 145 lugares. Meia-entrada Com apresentação de documentos comprobatórios para professores da rede pública, estudantes, crianças de 3 a 12 anos, pessoas com deficiência, portadores de Identidade Jovem, maiores de 60 anos e titulares do cartão Itaú (crédito ou débito). Devolução de ingressos Em casos de cancelamento de sessões por problemas técnicos e por falta de energia elétrica, os ingressos serão devolvidos. A devolução de entradas adquiridas pelo ingresso.com será feita pelo site. Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas no site ims.com.br e no Instagram @imoreirasalles. Não é permitido o acesso com mochilas ou bolsas grandes, guarda-chuvas, bebidas ou alimentos. Use nosso guarda-volumes gratuito. Confira as classificações indicativas no site do IMS.


Vidas passadas (Past Lives�, de Celine Song (EUA | 2023, 106’, DCP)


Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho (Brasil | 1962-1984, 119’, cópia 35 mm)

Terça a quinta, domingos e feriados sessões de cinema até as 20h; sextas e sábados, até as 22h.

Visitação, Biblioteca, Balaio IMS Café e Livraria da Travessa Terça a domingo, inclusive feriados das 10h às 20h.

Fechado às segundas.

Última admissão: 30 minutos antes do encerramento. A entrada no IMS Paulista é gratuita.

Avenida Paulista 2424 CEP 01310-300 Bela Vista – São Paulo tel: (11) 2842-9120 imspaulista@ims.com.br

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