cinema
dez.2023
O anjo nasceu, de Julio Bressane (Brasil | 1969, 90’, 35 mm)
destaques de dezembro de 2023 No começo do século passado, o cinema pernambucano passou por um processo de intensa atividade, da qual um conjunto significativo de filmes foi preservado. A mostra Anos 1920, Recife em tempo de cinema, com curadoria de Luciana Corrêa de Araújo, apresenta uma parte dessa produção em diálogo com obras contemporâneas do Brasil, México e Colômbia e curtas-metragens pernambucanos mais recentes. Com cópias em 35 mm, 16 mm e digitais, a mostra inclui duas exibições de Retribuição (1925), de Gentil Roiz, em cópia 4K inédita, com trilha sonora ao vivo pelo guitarrista Lúcio Maia. Dois bandidos que buscam a salvação de um anjo; o filho do coronel que se junta ao chefe do cangaço; o homem de origem simples que, da noite para o dia, se torna a pessoa mais rica do mundo. Produzidos entre 1968 e 1971, O anjo nasceu, de Julio Bressane, será exibido em cópia 35 mm seguido por um debate com Ismail Xavier e os críticos da revista Cinética. Já os dois primeiros longas-metragens de Eduardo Coutinho, ambos filmes de ficção, compõem a programação que homenageia os 90 anos do cineasta. Em um movimento de conexão com o legado dos movimentos LGBT+ e da luta contra a epidemia de HIV/aids, o cineasta experimental Stéphane Gérard conversa com instituições e iniciativas no campo do videoativismo, da preservação e difusão audiovisual e da criação de espaços comunitários em Não é preciso repetir a história. O filme faz parte da coleção contemporânea do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir. [imagem da capa] Aitaré da Praia, de Gentil Roiz (Brasil | 1925, 60’, 35 mm) 1
Retribuição, de Gentil Roiz (Brasil | 1925, 39’, DCP)
Não é preciso repetir a história (Rien n’oblige à répéter l’histoire), de Stéphane Gérard (França | 2014, 84’, Arquivo digital)
O homem que comprou o mundo, de Eduardo Coutinho (Brasil | 1968, 100’, Arquivo digital SD)
filmes em exibição Filmes em cartaz
Sessão Cinética
Cafi | Lírio Ferreira e Natara Ney | DCP
O anjo nasceu Julio Bressane | 35 mm
Durval Discos Anna Muylaert | Brasil | DCP Incompatível com a vida Eliza Capai | DCP Puan (Puan) María Alché e Benjamín Naishtat | DCP Propriedade | Daniel Bandeira | DCP
Coutinho 90 O homem que comprou o mundo Eduardo Coutinho | Arquivo digital SD Faustão Eduardo Coutinho | 35 mm
A partir de agora, é possível assistir a alguns dos filmes em cartaz no Cinema do IMS com recursos de acessibilidade em Libras, legendas descritivas e audiodescrição. Para retirar o equipamento com recursos, consulte a bilheteria do IMS Paulista. Em caso de dúvidas, entrar em contato pelo telefone (11) 2842-9120 ou pelo e-mail imspaulista@ims.com.br. 2
Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir Não é preciso repetir a história (Rien n'oblige à répéter l’histoire) Gérard Stéphane | Arquivo digital
Anos 1920, Recife em tempo de cinema A filha do advogado Jota Soares | 35 mm
Veneza americana Pernambuco-Film | 35 mm
Aitaré da Praia | Gentil Roiz | 35 mm
O trem fantasma (El tren fantasma) Gabriel García Moreno | DCP
As grandezas de Pernambuco Edson Chagas | 35 mm Jurando vingar | Ary Severo | 35 mm No cenário da vida Luiz Maranhão e Jota Soares | 35 mm O progresso da ciência médica em Pernambuco | Octavio de Freitas | 35 mm Recife no Centenário da Confederação do Equador | Pernambuco-Film | 35 mm Retribuição | Gentil Roiz | DCP Revezes… | Chagas Ribeiro | DCP 3
Sob o céu de Antioquia (Bajo el cielo antioqueño) Arturo Acevedo Vallarino | Arquivo digital Tesouro perdido Humberto Mauro | 16 mm Almeri & Ari: Ciclo do Recife e da vida Fernando Spencer | Arquivo digital Banguê | Kátia Mesel | DCP Fabulário tropical Geneton Moraes Neto | Arquivo digital
Praça Walt Disney Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira Arquivo digital O homem da mata Antônio Carrilho | 16 mm Sem Coração Nara Normande e Tião | DCP
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Durval Discos (96') Sessão Cinética: O anjo nasceu (71') seguida de debate com Ismail Xavier, Julia Noá e Juliano Gomes
Retribuição + Almeri & Ari: Ciclo do Recife e da vida (49') sessão com trilha ao vivo por Lúcio Maia
Propriedade (101') O trem fantasma (70') Recife no Centenário da Confederação do Equador + As grandezas de Pernambuco + O progresso da ciência médica em Pernambuco + Fabulário tropical (85') Durval Discos (96') Puan (109') Propriedade (101')
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Incompatível com a vida (92') Cafi (76') Durval Discos (96')
Retribuição + Almeri & Ari: Ciclo do Recife e da vida (49') sessão com trilha ao vivo por Lúcio Maia
Puan (109') Propriedade (101') Revezes... + Banguê (66')
Propriedade (101') O homem que comprou o mundo (100') Faustão (103')
Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas em ims.com.br 4
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Puan (109') Abertura da mostra Anos 1920, Recife em tempo de cinema: No cenário da vida + A filha do advogado (98'), seguida de debate com Luciana Corrêa de Araújo, Paulo Cunha e Sheila Schvarzman
Propriedade (101') Tesouro perdido (79') Jurando vingar + O homem da mata (70')
Durval Discos (96') Propriedade (101') Não é preciso repetir a história (84')
Durval Discos (96') Incompatível com a vida (92') Propriedade (101')
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Durval Discos (96') Incompatível com a vida (92') Cafi (76') Incompatível com a vida (92') Durval Discos (96') Durval Discos (96') Puan (109') Recife no Centenário da Confederação do Equador + As grandezas de Pernambuco + O progresso da ciência médica em Pernambuco + Fabulário tropical (85') Aitaré da Praia + Sem Coração [curta] (86') Puan (109') Cafi (76') Puan (109') Veneza americana + Praça Walt Disney (91') Sob o céu de Antioquia (98') Propriedade (101') Propriedade (101') Durval Discos (96') Puan (109') Propriedade (101') Puan (109')
Durval Discos (96') Incompatível com a vida (92') Propriedade (101') O anjo nasceu (90') Puan (109')
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Durval Discos (96') Incompatível com a vida (92') Cafi (76') Incompatível com a vida (92') Durval Discos (96') Incompatível com a vida (92') Tesouro perdido (79') Veneza americana + Praça Walt Disney (91') O homem que comprou o mundo (100') Puan (109')
Durval Discos (96') Aitaré da Praia + Sem Coração [curta] (86') Jurando vingar + O homem da mata (70') Faustão (103') Propriedade (101') Propriedade (101') Incompatível com a vida (92') Puan (109') Propriedade (101') Puan (109')
Propriedade (101') Incompatível com a vida (92') Propriedade (101') Durval Discos (96') Puan (109')
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Durval Discos (96') Incompatível com a vida (92')
Incompatível com a vida (92') Revezes... + Banguê (66') O trem fantasma (70') Puan (109')
Incompatível com a vida (92') Sob o céu de Antioquia (98') No cenário da vida + A filha do advogado (98') Não é preciso repetir a história (84') Neste dia o IMS Paulista estará fechado
Neste dia o IMS Paulista estará fechado
Anos 1920, Recife em tempo de cinema Luciana Corrêa de Araújo
É tentador tornar esta mostra uma celebração dos 100 anos do chamado Ciclo do Recife, como a produção pernambucana da segunda metade dos anos 1920 passou a ser denominada pela historiografia do cinema brasileiro, que circunscreve em termos de “ciclos regionais” outros focos de produção que ocorreram fora do eixo das capitais do Rio de Janeiro e São Paulo ao longo dos anos 1910 e 1920, a exemplo de Cataguases e Campinas. A obra de maior fôlego escrita por Jota Soares, ativo na produção pernambucana dos anos 1920 e principal memorialista do período, uma série de 59 colunas publicadas no Diário de Pernambuco entre 1962 e 1964, aponta já no título o ano de 1923 como marco inicial: “Relembrando o cinema pernambucano – 1923-1931 (Dos arquivos de Jota Soares)”. Como o autor esclarece, a série volta-se para a “fase do pioneirismo relacionado aos filmes de enredo”.1 Por isso a data inicial de 1923, quando, segundo ele, começaram as filmagens de Retribuição (Gentil Roiz, 1925), estreia da 1. Cunha Filho, Paulo C. (ed.). Relembrando o cinema pernambucano – Dos arquivos de Jota Soares.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco/ Massangana, 2006, p. 69. 6
produtora Aurora-Film, considerado também o primeiro filme de ficção pernambucano. A data final, 1931, seria o ano de lançamento de No cenário da vida (Luís Maranhão e Jota Soares), que na verdade ocorreu em 1930, como registram os jornais e outros documentos da época. A extensa e valiosa série publicada por Jota Soares concentra-se, portanto, na produção de filmes de ficção e, em particular, nas atividades do grupo inicialmente ligado à Aurora-Film, do qual ele participou a partir de 1924, quando chegou ao Recife. As datas, contudo, determinadas mais pelas memórias pessoais do que por documentos da época, flutuam conforme as fontes, inclusive entre textos do próprio Jota Soares, com o início das filmagens de Retribuição variando entre 1922, 1923 e 1924.2 Melhor do que se basear em oscilantes pontos de partida é celebrar esse momento do cinema no Recife a partir de perspectivas mais estimulantes. O que a mostra Anos 1920, Recife em tempo de cinema3 propõe é colocar a produção pernambucana dos anos 1920 em diálogo com o cinema realizado em outros locais e com curtas-metragens pernambucanos das décadas seguintes. No primeiro caso, títulos produzidos nos anos 1920 na cidade mineira de Cataguases (Tesouro perdido,
Humberto Mauro, 1927), na mexicana Orizaba (O trem fantasma [El tren fantasma], Gabriel García Moreno, 1927) e no estado colombiano de Antioquia (Sob o céu de Antioquia [Bajo el cielo antioqueño], Arturo Acevedo Vallarino, 1925) mostram flagrante proximidade com o que se fazia no Recife. 2. Na plaqueta História da cinematografia pernambucana (Fase compreendida entre os anos de
1923 e 1931), de 1944, Jota Soares e o coautor Pedro Salgado Filho localizam em 1924 o início da filmagem de Retribuição, adotando o ano de 1923
como data inicial por marcar a chegada ao Recife
de Ugo Falangola e J. Cambieri, da Pernambuco-
-Film. Já a série de Jota nos anos 1960 informa que a produtora estava instalada no Recife desde
1920. No documento “Relação completa e real dos
filmes produzidos na fase do pioneirismo, entre os anos 1922/1931”, de 1970, Jota aponta 1922
como o ano da criação tanto da Pernambuco-Film
quanto da Aurora, com Retribuição sendo reali-
zado entre 1923 e 1924. O diretor Gentil Roiz, em questionário preparado por Jota Soares em
1963, responde que as filmagens de Retribuição começaram “em setembro de 1922 (vago)” e se estenderam durante 20 meses.
3. Título inspirado no livro Brasil em tempo de cinema (1967), de Jean-Claude Bernardet.
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Nas produções regionais latino-americanas, que aconteciam fora das capitais de seus países, aspectos locais se entrelaçavam com modelos estrangeiros (como o filme de aventura hollywoodiano) e gêneros de longa tradição cultural, como o melodrama, configurando um “regional” constituído por elementos locais, mas também por fortes conexões transnacionais. Se, por um lado, aproximar esses filmes latino-americanos estimula a discussão sobre “produções regionais” no cinema silencioso, por outro lado, propor relações entre filmes realizados no Recife dos anos 1920 e curtas-metragens de momentos posteriores é uma maneira de relativizar a noção de “ciclo”, ao procurar identificar temas e procedimentos que percorrem a cinematografia pernambucana em diálogos, homenagens e embates. Nos filmes silenciosos pernambucanos se observa tanto o empenho em celebrar o progresso e a modernização do estado quanto o apego aos valores mais tradicionais, quando não o franco preconceito diante das diferenças de classe, raça e gênero. Os curtas sonoros selecionados para compor as sessões oferecem outras leituras em relação a aspectos centrais da vida pernambucana abordados na produção silenciosa: as relações de trabalho e de classe fora
da capital (Banguê, Kátia Mesel, 1978); o passado e o presente da história pernambucana sob a óptica glorificante dos discursos oficiais (Fabulário tropical, Geneton Moraes Neto, 1979); a vida e o imaginário em meio às plantações de cana-de-açúcar, nos quais o cinema de extração popular não está ausente (O homem da mata, Antônio Carrilho,4 2004); as transformações urbanas e as maneiras de traduzi-las para o cinema (Praça Walt Disney, Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, 2011); e o contraponto entre campo e cidade, revelando tensões de raça e classe (Sem Coração, Nara Normande e Tião, 2014). Completando a seleção de curtas, está o afetuoso documentário Almeri & Ari: Ciclo do Recife e da vida (1979), com direção do crítico e cineasta Fernando Spencer, de quem partiram incontáveis iniciativas para divulgar e homenagear o cinema realizado no Recife nos anos 1920.
4. Creditado no filme como Antônio Souza Leão.
A filha do advogado, de Jota Soares
A p ro d u ç ã o c i n e m a to g rá f i ca e m Pernambuco atravessou um período de grande atividade na segunda metade dos anos 1920, quando foram produzidos mais de 40 títulos, todos exibidos comercialmente em salas de cinema, formando um conjunto 8
diverso que inclui tanto curtas quanto longas-metragens, filmes de enredo (ficção) e naturais (não ficção). É uma produção significativa não só devido aos filmes realizados, mas também, e felizmente, pelo número de títulos que foram preservados,
entre cópias completas, incompletas e fragmentos. Esta mostra oferece a rara oportunidade de assistir a uma grande parte desse conjunto de filmes preservados.
O título mais antigo da seleção é um fragmento do filme Recife no Centenário da Confederação do Equador, lançado em outubro de 1924. É uma realização da produtora Pernambuco-Film, do italiano Ugo Falangola com o sócio J. Cambieri, que lançaria pouco depois outro natural, Pernambuco e sua Exposição de 1924 (1925). Uma montagem combinando partes dos dois filmes resultou em Veneza americana. Propaganda das realizações do governo Sergio Loreto (1922-1926), em especial das obras de modernização do porto do Recife, nem por isso Veneza americana deixa de demonstrar apuro técnico e inventividade formal, como na cena em que a câmera reproduz as sensações do cinegrafista ao andar nos brinquedos do parque de diversões. Enquanto a Pernambuco-Film envolvia-se com a produção de naturais, um grupo se dedicava às filmagens de Retribuição, feitas durante finais de semana, com recursos mínimos e uma câmera de segunda mão. O grupo formava a Aurora-Film, produtora criada pelo diretor Gentil Roiz e o cinegrafista Edson Chagas, que reunia, entre outros, a atriz Almery Steves, o diretor e ator Ary Severo e, a partir de 1924, Jota Soares, sergipano recém-chegado ao Recife, que trabalhou como ator, diretor e em variadas 9
funções. Retribuição estreou em março de 1925 no Cinema Royal, sendo exibido depois em outras salas da cidade. A trama adaptava para ambientes e tipos locais os confrontos entre mocinhos e bandidos, os raptos e as perseguições dos seriados e filmes de aventura hollywoodianos, dos quais os jovens da Aurora eram grandes fãs. O sucesso de público alcançado por Retribuição estimulou a realização de outros filmes e a criação de novas produtoras. Até o final da década de 1920, pelo menos 12 produtoras lançaram curtas ou longas-metragens. Entre 1925 e 1926, o Recife se torna um dos principais focos de produção cinematográfica no país, não só pelo número de produtoras em atividade, mas, sobretudo, porque boa parte delas viabiliza tanto a realização quanto a exibição comercial de seus filmes, o que estava longe de ser desprezível em um mercado ocupado hegemonicamente pela produção estrangeira – como acontece até hoje. Ainda em 1925, a Aurora-Film lança Jurando vingar (Ary Severo, 1925), filme de aventura ambientado no interior, entre as plantações de cana-de-açúcar, e Aitaré da Praia (Gentil Roiz, 1925), quando os realizadores se voltam para uma abordagem mais regional, filmando em uma aldeia de pescadores do litoral pernambucano, mas com a parte final ambientada no Recife.
A cidade do Recife ganha protagonismo em vários filmes, sendo documentada em filmes naturais, como Veneza americana, As grandezas de Pernambuco (lançado em 1926 pela Olinda-Film, que, apesar do nome, tinha sede no Recife) e Carnaval de 1926 em Recife (Aurora-Film, 1926). Também os filmes de enredo incorporam imagens da cidade, como acontece em Filho sem mãe (produção da Planeta-Film com direção de Tancredo Seabra, em 1925), Aitaré da Praia, No cenário da vida e, especialmente, em A filha do advogado (1926), último filme de enredo da Aurora-Film, no qual o diretor Jota Soares faz a trama se desenrolar em meio a uma movimentada paisagem urbana e humana do Recife. Entre os filmes de enredo, predominam o melodrama e a aventura, mas há espaço para outros gêneros igualmente populares, como a comédia, em Herói do século XX (Ary Severo, 1926), e o filme religioso, de que é exemplo História de uma alma (dirigido em 1926 por Eustórgio Wanderley para a Vera Cruz-Film), sobre a vida de Santa Terezinha do Menino Jesus. Em Revezes... (Chagas Ribeiro, 1927), produção da Olinda-Film ambientada no agreste do estado, há uma combinação inusitada entre aspectos religiosos, e mesmo sobrenaturais, com uma abordagem crítica dos maus-tratos do
despótico proprietário da fazenda sobre os trabalhadores. A reação de colonos diante da violência de um fazendeiro, mostrada sob a óptica de um filme de aventura, caracteriza outro filme realizado no interior, Sangue de irmão (1927), que Jota Soares dirige para uma produtora criada na cidade de Goiana, na Zona da Mata pernambucana. As condições de produção oscilam ao longo dos anos. O financiamento do governo do estado é evidente nos naturais produzidos entre 1924 e 1926. As produtoras que realizam filmes de enredo procuram também se capitalizar por meio de sócios, que não só investem dinheiro como também trazem algum prestígio para o incipiente cinema local. Na Planeta-Film, o proprietário Paulino Gomes, então braço direito do prefeito do Recife, promove uma exibição especial de Filho sem mãe para o governador. Tendo iniciado a produção de Retribuição em esquema amador, Gentil Roiz e Edson Chagas formalizam a produtora em 1923, tendo como sócio o comerciante Joaquim Tavares, que entra com a maior parte do capital. Em 1926, já sem Roiz, mas ainda com Tavares, a Aurora é conduzida pelo bem-sucedido comerciante João Pedrosa da Fonseca, que injeta dinheiro na produção, o que possibilita à produtora realizar A filha 10
do advogado de forma mais elaborada e com grande investimento em publicidade. No mesmo ano, a Vera Cruz-Film lança História de uma alma, reunindo no elenco nomes de famílias da sociedade e com o aval do arcebispo de Olinda e Recife, que aparece em cena. É o momento em que o cinema local mais se aproxima do mundo burguês, em termos de financiamento e de temáticas, e ganha maior reconhecimento. Nos anos seguintes, porém, volta-se para esquemas mais precários de produção, quando se conta, sobretudo, com recursos próprios. Com o fim da Aurora, Edson Chagas cria a Liberdade-Film, produz a ficção Dança, amor e ventura (Ary Severo, 1927) e se mantém em constante atividade, realizando diversos filmes naturais, entre eles O progresso da ciência médica em Pernambuco (1929), dirigido pelo médico Octavio de Freitas, e Festa em comemoração à passagem do 15º aniversário da Liga Pernambucana dos Desportos Terrestres, em 16.6.930 (1930). A Liberdade-Film e a Spia-Film, criada em 1929 por Ary Severo, serão responsáveis pelos dois últimos filmes de enredo silenciosos produzidos no estado, que estreiam poucos meses depois das primeiras exibições de filmes sonoros no circuito recifense, em março de 1930. Nas sessões
de No cenário da vida, da Liberdade-Film, lançado em setembro, Jota Soares confere alguma sonorização ao filme, tocando discos durante as projeções. Já Destino das rosas (Ary Severo, 1930), da Spia-Film, mal consegue ser exibido em poucas sessões no mês de novembro, período de grande instabilidade no país devido à Revolução de 1930, com as salas de espetáculos ainda tentando retornar às atividades normais. A nova (e cara) tecnologia do cinema sonoro dificulta a continuidade de produção. Antes disso, entretanto, a produção em bases profissionais de filmes de enredo já se mostrava pouco viável. A dificuldade em distribuir os filmes para além do circuito local não permitia às produtoras condições financeiras para manter os profissionais em atividade, vivendo de cinema e produzindo de forma contínua. Com o cinema sonoro, mesmo a produção de filmes de não ficção só seria retomada em bases mais estáveis a partir da segunda metade dos anos 1930 com a Meridional Films, que viria a produzir o primeiro longa sonoro pernambucano, Coelho sai (Newton Paiva, 1942).
Preservar Recife Carlos Roberto de Souza e Luciana Corrêa de Araújo
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O destino mais frequente dos filmes silenciosos brasileiros foi o desaparecimento. Não faltaram motivos para isso, a começar pelos incontáveis incêndios em produtoras, laboratórios e cinemas. Cópias eram perdidas nas mãos de pessoas encarregadas de exibi-las em outras cidades, e que sumiam sem dar mais notícias. Sobretudo, havia o descaso e a falta de interesse em preservar um material pouco ou nada valorizado já em sua época e que, com a consolidação do cinema sonoro, tornou-se ainda mais anacrônico, sem valor comercial nem público interessado. À falta de arquivos especializados, os rolos de filmes ficaram entregues ao acaso. Guardadas por realizadores, financiadores ou pessoas envolvidas na produção, movidos por razões sentimentais ou por valorizar o registro histórico, raramente recebendo cuidados adequados de preservação – aliás, que cuidados eram esses? –, inúmeras latas ficaram esquecidas em salas, armários ou em um canto qualquer, e algumas delas, muito poucas, foram encontradas a tempo e em condições de escapar da perda total. A pesquisa sistemática empreendida pelo Censo Cinematográfico Brasileiro – em permanente atualização – indica que, dos quase 4 mil filmes produzidos no Brasil até 1930, apenas 7% foram preservados, alguns
na íntegra e muitos em fragmentos. Levando em conta essa estatística, a produção pernambucana entre 1924 e 1930 possui proporcionalmente um expressivo número de títulos preservados. Segundo um cálculo aproximativo e considerando o atual estágio tanto das pesquisas quanto dos trabalhos de preservação, poderíamos estimar que cerca de 30% dessa produção sobreviveu de alguma maneira, entre filmes, digamos, completos, fragmentos ou apenas sequências de fotogramas. Na sucessão de iniciativas que contribuíram para a conservação desses preciosos 30%, talvez a primeira e mais decisiva tenha acontecido em torno da criação, em 1943, do Museu-Cinema.1 Havia no Recife o Cine Siri, formado por Pedro Salgado Filho, que promovia em sua casa exibições privadas de filmes antigos brasileiros e estrangeiros. Jota Soares, quando entra para a diretoria, sugere a mudança de nome para Museu-Cinema. Com novas instalações, mas ainda na casa de 1. A história do Museu-Cinema é relatada por Jota Soares no documento “Dados sobre minha vida, destinados aos arquivos da Cinemateca Brasileira, de São Paulo, por solicitação do dr. Paulo Emilio Salles Gomes”, com data de 15 de dezembro de 1964.
Salgado, começam as projeções dos filmes silenciosos pernambucanos, cercadas de solenidades e convidados ilustres. Segundo Jota, ainda antes mesmo do Cine Siri, o grupo formado por ele, Salgado, Luiz Felipe Vieira e Geraldo Melo ficara sabendo que alguns filmes da Aurora haviam sido comprados pelo escritório de uma distribuidora a 5 mil réis o quilo, vendidos não se sabe por quem. Jota adquirira uma cópia de A filha do advogado, enquanto os amigos compram Retribuição, Jurando vingar e Aitaré da Praia. Com a divulgação de suas atividades, o Museu-Cinema recebe outros títulos, como Revezes... e Pernambuco e sua Exposição de 1924 (que Jota chama de Recife de 1924). Com exceção de A filha do advogado, que continua com Jota, os demais títulos ficam sob os cuidados de Pedro Salgado Filho. Com sua morte, em 1947, os materiais são entregues ao Departamento de Documentação e Cultura da prefeitura do Recife. É na prefeitura que Caio Scheiby, conservador adjunto da Cinemateca Brasileira, encontra esses filmes em 1960, quando visita o Recife para fazer uma conferência. Interessado no trabalho de prospecção e preservação de filmes, Scheiby dá início às negociações para o envio dos filmes da produção silenciosa pernambucana a São 12
Paulo. Em 1962, os filmes são restaurados e contratipados pela Cinemateca, cujos serviços de laboratório estavam então sob responsabilidade de Josef Reindl. O relatório anual do arquivo indica a duplicação de Jurando vingar, Retribuição, Revezes..., Recife 1924, Carnaval, Dança, amor e ventura e Aitaré da Praia. Com exceção do título Carnaval (provavelmente Carnaval de 1926 em Recife), a lista coincide com aquela discriminada por Jota Soares. Concluída a duplicação, o material original em nitrato começa a ser devolvido à prefeitura do Recife a partir de 1964. Em outubro de 1967, Jota Soares entra com pedido de guarda das cópias, que, segundo ele, estavam abandonadas nas prateleiras da Secretaria de Educação e Cultura (antigo Depar tamento de Documentação e Cultura). As cópias que recebe no ano seguinte compõem, junto com A filha do advogado e outros documentários em seu poder, o acervo cinematográfico do arquivo do realizador, comprado em 1984 pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), do Recife. Segundo a pesquisadora Regina Behar, o acervo incluía cópias dos naturais Veneza americana e As grandezas de Pernambuco e dos filmes de enredo Retribuição, Jurando vingar, Aitaré da Praia e também Revezes... (restaurado
pela Cinemateca Brasileira e exibido no Recife em 1990).2 Em 1980, a Embrafilme adquire de Jota os direitos para exibição não comercial de A filha do advogado. O acordo viabiliza a restauração e duplicação da cópia original em nitrato (nos laboratórios da Cinemateca Brasileira), permitindo o acesso ao filme, relançado em 1981. Ainda na década de 1980, surge um “novo” filme silencioso pernambucano: O progresso da ciência médica em Pernambuco – dirigido pelo médico Octavio de Freitas e filmado por Edson Chagas –, do qual não se tinha notícia até que, em 1986, o pesquisador Luiz Maranhão Filho descobre uma cópia em nitrato pertencente à antiga Faculdade de Medicina do Recife. Enviado à Cinemateca Brasileira, o material foi duplicado e incorporado à Filmografia Brasileira. Desde a aquisição do Arquivo Jota Soares, a Fundação Joaquim Nabuco mantinha os nitratos dos filmes pernambucanos guardados em sala climatizada, separados do restante dos filmes em acetato. Não havia condições, entretanto, de realizar 2. Behar, Regina Maria Rodrigues. “Caçadores de
imagem”: cinema e memória em Pernambuco (tese de doutorado), ECA/USP, 2002.
Revezes… , de Chagas Ribeiro
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trabalhos de catalogação e difusão dos filmes sem comprometer sua integridade física. Contatos estabelecidos entre a Fundaj e a Cinemateca Brasileira a partir de 2002, inicialmente dentro do projeto Censo Cinematográfico e depois por meio do SiBIA (Sistema Brasileiro de Informações Audiovisuais), resultaram na transferência dos nitratos para a Cinemateca, para serem duplicados dentro do projeto Resgate do Cinema Silencioso Brasileiro, financiado pela Caixa Econômica Federal. Transportados em caminhões climatizados, os nitratos chegaram à Cinemateca em duas remessas, entre dezembro de 2006 e janeiro de 2007. O exame inicial e a descrição das imagens dos rolos, tarefas realizadas em mesa enroladeira, serviram para identificar e conhecer melhor os materiais, e fazer o cotejo de informações com as anotações nos rótulos dos estojos e nas listagens da Fundaj. Como era de se esperar, o exame direto trouxe surpresas e decepção. Esta ficou por conta dos fragmentos de História de uma alma, apenas alguns palmos de fotogramas passíveis somente de duplicação fotográfica, o que serve para atiçar ainda mais a curiosidade em relação a essa superprodução de tema religioso. De Jurando vingar, 14
uma das primeiras produções de enredo da Aurora-Film, conhecia-se apenas a metade final. A cópia em nitrato da Fundaj está completa e apresenta belas viragens, que as técnicas modernas de restauração permitem duplicar. A maior surpresa do conjunto foi a descoberta de algumas sequências de No cenário da vida, considerado totalmente perdido. Pela listagem, a lata conteria um rolo de Recife no Centenário da Confederação do Equador, mas a informação não tinha suporte. Algumas imagens, especialmente as cenas de dança no cabaré, indicaram que se tratava de No cenário da vida, suspeita confirmada ao se fazer a comparação com as fotos do filme publicadas por Jota Soares em crônicas da série “Relembrando o cinema pernambucano”. Alguns trechos, porém, estavam em avançado estado de deterioração, a exemplo da última sequência, em que mal se pode acompanhar, em meio a imagens decompostas ou desaparecidas, o passeio dos namorados e o romântico beijo final. Os nitratos dos naturais da Pernambuco-Film confirmaram outra suposição: a de que Veneza americana não era um filme inédito realizado pela produtora, mas, na verdade, uma compilação de cenas de seus dois
longas anteriores: Recife no Centenário da Confederação do Equador e Pernambuco e sua Exposição de 1924. Do primeiro, apenas um rolo se individualiza no lote da Fundaj, provavelmente um trecho que ficou de fora da compilação. Quanto a Pernambuco e sua Exposição de 1924, o que dele se conhecia era uma cópia bastante escura, nada comparável à nitidez e às belas viragens da cópia em nitrato de Veneza americana. A abordagem técnica do conjunto de rolos exigiu cuidados para que a restauração não implicasse em traição ao que se acredita ser a forma original dos títulos a se duplicar. Além da manipulação original dos produtores, que montavam e remontavam sequências de imagens para oferecê-las a eventuais compradores, o lote da Fundaj apresentava um problema adicional. Com o objetivo de realizar documentários sobre o movimento de produção silenciosa pernambucana, algumas cenas haviam sido retiradas das cópias originais e não repostas em sua posição original. Um trabalho cuidadoso foi feito para comparar emendas e cortes na película, com o objetivo de recolocar as imagens em sua posição original. Em alguns poucos momentos, não havia pistas (imagens adjacentes, resquícios de cola nas emendas) que possibilitassem
sua localização anterior. Na oportunidade – na verdade única, em Veneza americana –, fizemos um estudo da progressão narrativa do documentário e, seguindo sua orientação geográfica, inserimos algumas imagens dentro das coordenadas topográficas do Recife. O exame dos materiais provocou relutâncias e decisões sujeitas a posteriores discussões. Um exemplo: um rótulo trazia a identificação Cais do porto. Num primeiro momento, acreditamos, pelas molduras dos intertítulos, que se tratava apenas de reinserir as imagens em Veneza americana. Ledo engano. A comparação dos materiais indicou que isso não era possível. Algumas imagens eram muito semelhantes entre os dois materiais, mas obviamente não se encadeavam ou substituíam. Por outro lado, embora a cerimônia de inauguração de armazéns do porto do Recife fosse a mesma, os materiais tinham pequenas diferenças narrativas. Decidimos, portanto, até segunda ordem, considerar Cais do porto um título suplementar à filmografia silenciosa pernambucana. Momento de efetiva recusa a qualquer interferência editorial foi relativo a Jurando vingar. Além dos cinco rolos de cópia que aparentemente constituíam a integralidade do filme, havia rolinhos com imagens que 15
obviamente faziam parte de suas cenas. Examinando essas imagens soltas e os rolos do filme, constatou-se que havia sido feita – sabe-se lá quando e por quem – uma intervenção na montagem, com o objetivo, por exemplo, de dar mais agilidade à luta de Júlio (Gentil Roiz) com os vilões que mantinham Bertha (Rilda Fernandes) trancafiada. Reinserir essas imagens na sequência implicaria em uma interferência que, pelo menos nesse momento, não se colocava. Decidiu-se então, ao menos provisoriamente, não reintegrar esses poucos metros de imagens ao que parece ser a última montagem do filme. A preparação física dos materiais antes de sua duplicação foi árdua. Cinara Dias, Taciana Machado e Júlia Caiubi Novaes passaram semanas refazendo emendas e perfurações para permitir que os materiais pudessem passar pela copiadora de janela molhada (que diminui, mas não elimina, o incômodo visual provocado pelos riscos nas cópias). O ressecamento e o encolhimento dos rolos de Jurando vingar obrigaram Carlos Eduardo de Freitas, no momento da copiagem, a recolher manualmente os metros e metros de película original que passavam pela máquina. O cotejo dos originais com os materiais duplicados demandou horas de Luísa Malzoni para o estabelecimento de mapas de copiagem
que possibilitassem a tiragem de cópias próximas do original tingido e virado. De uma coisa estamos certos: o conjunto de filmes silenciosos pernambucanos recebeu extremo cuidado e apresenta, no momento atual [2007] e com a tecnologia possível no Laboratório da Cinemateca Brasileira, o melhor resultado alcançado na restauração de qualquer filme brasileiro anterior a 1930.
Sessão Cinética A agonia O anjo nasceu, Julio Bressane,1969 Hermano Callou
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A Sessão Cinética de dezembro é movida pelo desejo de retorno a este que é possivelmente o filme mais significativo do início de carreira de Julio Bressane, neste ano em que sua obra experimentou um processo radical de autorrevisão. Em 2023, Bressane, em colaboração com Rodrigo Lima, lançou A longa viagem do ônibus amarelo, um ensaio de mais de 7 horas de duração que revisita o arquivo de imagens composto pelo seu conjunto de 58 filmes, realizados no percurso de seis décadas. O anjo nasceu permanece como uma obra central dessa trajetória, um dos filmes inaugurais do Cinema Marginal. A consagração crítica do filme ao longo dos anos não conseguiu, contudo, aquietar seu enigma, que guarda ainda a opacidade reluzente do momento em que foi produzido. O anjo nasceu narra a tentativa de fuga de dois bandidos, Urtiga (Milton Gonçalves) e Santamaria (Hugo Carvana), depois de uma perseguição policial, da qual Santamaria sai ferido. Os bandidos precisam se manter escondidos por alguns dias para esperar a poeira baixar. Eles invadem primeiro uma casa de veraneio, mantendo a proprietária (Norma Bengell) e sua empregada (Maria Gladys) como reféns. Depois, seguem perambulando pelos arredores da cidade,
quase sempre desertos, antes de botar o pé na estrada. O anjo nasceu é, portanto, um filme de fuga que tem a forma de uma espera. A primeira imagem que vemos dos dois protagonistas é a de Santamaria em agonia, caído no chão, com as mãos segurando a perna ferida, sendo acolhido nos braços pelo seu companheiro, Urtiga. A construção da cena nos remete à iconografia da Pietà, de Jesus morto nos braços da mãe, como se o filme encontrasse na dor de Santamaria uma certa faísca do sagrado. A cena é, na verdade, o primeiro de uma série de fragmentos que mostra, no prólogo do filme, os acontecimentos que compõem a história a ser narrada, que são revelados fora de toda cronologia. O filme por vir passa pela nossa frente enquanto escutamos um samba sobre a irreversibilidade do tempo, que canta um amor que não poderá voltar jamais. O gesto de prefiguração do prólogo destitui a presentidade fundadora do drama como forma: a condição de que, a cada momento, a ação dramática pode decidir sobre seu destino, que ela sempre tem o futuro indeterminado em mãos. O prólogo permite que a aventura de Santamaria e Urtiga deixe a sucessividade da história e encontre a sincronicidade do mito. O filme
situa seus personagens, portanto, sob o signo da fatalidade, de um destino sem reversão possível. O drama de Santamaria e Urtiga se desenvolve sob a sina de uma tragédia, que Urtiga parece ignorar e que Santamaria pretende antecipar seus sinais, sempre à espreita da aparição de um anjo que viria anunciar sua morte. O filme se desenvolve, portanto, sob a conjugação de duas ordens do tempo: a fatalidade e a espera. A espera retira do tempo a sua forma e o devolve em estado bruto: os acontecimentos do filme tendem a não se encadear, nem a se desenvolver, preferindo deixar as situações se acumularem indefinidamente, uma depois da outra. A fatalidade inscreve em cada momento a possibilidade de um vislumbre da eternidade (que pode se esconder no mijo de uma criança). A ferida de Santamaria é o que permite o encontro das duas ordens. Ela anuncia a morte futura e marca, com sua degradação, a passagem do tempo, como faz o sangue quando escorre na pedra. O primado da câmera fixa e do plano longo frontal firma a franqueza do filme diante do próprio material. O plano-sequência, escreveu Bressane certa vez, “quebra a casca do gesto”. A frontalidade, contudo, por vezes sugere a imagem de um ícone, como na cena enigmática em que vemos 17
Urtiga sem camisa de costas para câmera, ajoelhado, na frente de Santamaria em pé, nu, de frente para o espectador. A primazia da pose às vezes parece expelir os personagens para fora da ordem do tempo. A valorização das linhas paralelas ao quadro petrifica tudo em uma imobilidade extramundana. O plano longo não apenas faz pesar o tempo da espera, ele sugere sua transcendência. A aventura de Santamaria e Urtiga é uma experiência de profundo isolamento. A câmera prefere sempre os filmar de frente, cercados pelo vazio, como se eles já tivessem desertado do mundo. O confronto inicial de Santamaria com a polícia foi devidamente mantido no fora de campo, e nada sabemos sobre a perseguição policial em 18
curso que, para todos os efeitos, poderia muito bem não existir. As relações travadas com outros personagens no percurso do filme não são, propriamente, encontros, obstáculos que poderiam reverter o destino dos protagonistas; elas são apenas ocasiões para que os dois bandidos exerçam sua violência gratuita, sem titubear, nem temer pela resposta, absorvidos em si mesmos como crianças que brincam sozinhas. Eles assistem na televisão ao homem pousando na Lua. Eles não estão menos distantes da sociedade, nem o deserto ao redor deles é menos vazio. No filme, a solidão dos personagens não é um fato psicológico nem social. O isolamento, ao menos o de Santamaria, é,
propriamente, metafísico. O que ele parece carregar é um sentimento pervasivo de exílio do mundo. “Para mim, o que está certo é que está errado e o que está errado é o que está certo”, confessa, como um credo pessoal. Os seus valores não são deste mundo. Os seus atos de violência talvez tenham sentido apenas em outra esfera. A violência no filme nunca é um ato de proteção contra a morte, luta pela sobrevivência. Ela é sempre um gasto dispendioso, que martiriza apenas os mais vulneráveis, os que não têm como se defender. Uma imagem invertida da graça. A partida de Santamaria está selada. Sua agonia é o preço da espera. O plano final é, certamente, o mais comentado na longa fortuna crítica do filme: o plano fixo da estrada vazia se perdendo no horizonte, que persiste na tela por quase dez minutos. Uma imagem mundana do infinito, talvez do infinito espúrio da agonia sem fim, talvez o infinito apaziguador da morte. O plano que mais presentifica o tempo diante de nós é também aquele que o exaure, sugerindo um transe extático, pura contemplação do vazio. A estrada em ponto de fuga colapsa sob efeito da duração, que nos devolve a imagem reduzida a uma pura imaterialidade: uma superfície, sem profundidade, nem volume, que cintila sob o murmurinho ininterrupto dos grãos.
Em cartaz
Cafi
Natara Ney e Lírio Ferreira | Brasil | 2022, 76’, DCP (ArtHouse) Durante mais de 40 anos, o fotógrafo recifense Carlos Filho, o Cafi, se dedicou a registrar grande parte dos acontecimentos da dança, teatro e da música popular brasileira. Gravações, shows, turnês e ensaios de importantes artistas passaram pelas lentes de Cafi. Tudo registrado de maneira intimista e poética. Cafi também assinou imagens que ilustram mais de 300 capas de discos e encartes, como a icônica capa das duas crianças de Clube da esquina, ou dos tênis de Lô Borges. O documentário de Natara Ney e Lírio Ferreira retoma essa trajetória a partir de extenso material de arquivo, conversas com Cafi, morto em 2019, e com personalidades, como José Celso Martinez Corrêa, Deborah Colker, Lô Borges, Alceu Valença e Jards Macalé. Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia). 19
Durval Discos
Anna Muylaert | Brasil | 2002, 96’, DCP (Vitrine Filmes)
Durval e sua mãe Carmita moram isolados há muitos anos no fundo da Durval Discos, uma loja de discos de vinil especializada em MPB. Eles vivem em um mundo anacrônico e entediante. Certo dia, Durval decide contratar os serviços de uma trabalhadora doméstica para ajudar sua mãe. Apesar de baixo, o salário atrai Célia, que acaba levando um pouco de alegria para a casa. No dia seguinte, porém, Célia desaparece e deixa para trás Kiki, uma menina de 5 anos, e um bilhete dizendo que voltará em dois dias. No entanto, uma notícia do telejornal os colocará ao par da triste realidade sobre Kiki e Célia. O primeiro longa-metragem de Anna Muylaert, que em 2002 recebeu sete prêmios no Festival de Gramado, entre eles os de Melhor Fillme, Direção e Roteiro, retorna aos cinemas pelo projeto Sessão Vitrine Petrobras em uma versão remasterizada em 4K.
Por ocasião da estreia comercial do longa, em março de 2003, Anna Muylaert relata a origem da ideia em uma entrevista ao portal UOL: “Eu queria fazer um filme barato, com poucos personagens, uma locação só e que eu segurasse esse filme pela tensão. Então que fosse um roteiro que realmente nunca desinteressasse o espectador. [...] Em 1995, o vinil praticamente já tinha acabado. E minha irmã chegou me contanto que o Edgar ainda mantinha uma loja só de vinil [a Edgar Discos, que ficava no bairro de Pinheiros] e que ele não acreditava que o CD estava dominando, ele era totalmente fiel. Sendo que no ano seguinte se parou de produzir vinil, e ele então fechou a loja. E essa situação eu achei interessante. Uma loja de discos é um bom lugar para se fazer uma locação de um filme. Porque além de ser interessante e ter toda essa questão musical, que eu gosto, também tem os clientes que entram e saem. Então era uma maneira de ser um ambiente fechado de uma maneira que o mundo externo pudesse entrar e sair, que eu achava divertido. Porque eu queria fazer um filme com uma locação só, mas não queria fazer um filme chato." Em outra entrevista da mesma época, à Folha de S.Paulo, a diretora conta ainda ter pensado a estrutura do filme como um vinil, com um lado A associado à comédia e o lado B ao drama: “No lado A, usamos uma trilha de canções do pop brasileiro dos 1970. No lado B, a trilha é toda composta, de forma funcional, por André Abujamra." [As entrevistas da diretora ao UOL e à Folha podem ser vistas em: bit.ly/ddims1 e bit.ly/ddims2] Ingressos: R$ 15 (inteira) e R$ 7,50 (meia).
Incompatível com a vida Eliza Capai | Brasil | 2023, 94’, DCP (Descoloniza Filmes)
A partir da experiência pessoal de uma gravidez diagnosticada com uma malformação fetal incompatível com a vida, a diretora Eliza Capai conversa com outras mulheres que passaram por situação semelhante no Brasil, criando um coral de vozes que refletem sobre temas como vida, morte, luto e políticas públicas. “Eu trabalho com o tema de gênero desde antes de conhecer a palavra gênero”, declara a diretora ao podcast Pauta Pública. “Trato do feminino há muito tempo, desde o começo da minha carreira, há uns 20 anos. Em geral, isso significa falar da vida alheia, de questões de outras mulheres que partiam muito de um lugar de sofrimento ou de uma violência que eu não consigo aceitar como normais. E falar sobre isso é discutir essas questões e tentar transformá-las de alguma forma. Foi a primeira vez que me vi em uma situação que eu disse: ‘Cara, isso precisa ser 20
falado. Esse tema que eu estou vivendo precisa ser falado.’ E esse momento veio quando eu tinha acabado de me mudar para Portugal, eu estava no quarto mês de gravidez, estava muito feliz de estar grávida. Era minha primeira gravidez, uma gravidez absolutamente desejada, e tive um diagnóstico em um ultrassom morfológico que fui fazer de que o feto, de que meu filho, era incompatível com a vida. E aquilo me levou para um lugar emocional horroroso, muito dolorido. Eu não pensei que pudesse doer tanto a perda de alguém que naquele momento era um cotoquinho, era muito pequenininho, medindo centímetros, mas que já ocupava o resto da minha vida num lugar dos sonhos. [...] Se a gente pensa que 30% das gravidezes terminam em aborto espontâneo, são muitas pessoas que passam por isso. E aí tinha um outro lado, que eu estava em Portugal. [...] Uma junta médica se reuniu e me aconselhou a interrupção da gravidez. Afinal, era um feto que ou eu poderia perder na minha barriga ou ele teria uma vida muito breve e provavelmente inteira de muito sofrimento. Jamais conseguiria ter o que eu considero ser uma vida. [...] Naquele momento, fui atravessada e falei: ‘Se eu não tiver a coragem de me expor enquanto corpo eu não sei mais se vou ter o direito de expor outras mulheres em momentos viscerais como esse’. Então foi um sentimento que eu nunca tinha tido, que era quase uma missão. Eu preciso falar como esse lugar é horroroso emocionalmente. Da perda, de saber que seu filho desejado não vai sobreviver. E falar desse lugar que é o aborto. De uma forma que eu acho que reverte um pouco o debate tão raso e tão pobre que a gente tem nesse país, que é um debate de ‘ai, devia ter pensado antes de fazer’, que não con-
diz com a realidade das mulheres. Então eu e meu atual companheiro, o João Pina, que é fotógrafo e fotojornalista, a gente entrou muito nesse debate de ‘nossa, a gente está acostumado a documentar a dor dos outros como se nada pudesse nos acontecer. Então vamos fazer o que a gente sabe fazer, que é documentar, e depois a gente vê o que faz com isso.’” “Somos muitas que abortamos. Só que a maioria não pode fazer o que eu fiz, que é contar em público isso. E esse sofrimento se torna muito maior. Então eu acho que a gente precisa falar sobre o assunto e se expor. Porque em geral é quando a gente se expõe que o outro se permite se expor também, e a gente consegue falar sobre o tema em si e não sobre o julgamento do tema.” Em 2023, o filme de Eliza Capai foi vencedor da competição brasileira de longas e médias-metragens do festival É Tudo Verdade. [Íntegra da entrevista: bit.ly/imcompativelims] Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
Propriedade
Daniel Bandeira | Brasil | 2022, 101’, DCP (Vitrine Filmes)
Para se proteger de uma revolta dos trabalhadores da fazenda de sua família, uma reclusa estilista se enclausura em seu carro blindado. Separados por uma camada impenetrável de vidro, dois universos estão prestes a colidir. Propriedade foi selecionado para a mostra Panorama da Berlinale de 2023. Em entrevista a Camila Gonzatto para o site do Instituto Goethe, o diretor Daniel Bandeira comenta a origem do filme e o lugar que a violência ocupa nele: “O filme surgiu como um mero exercício de estilo. Toda a história se concentrava no drama de Teresa tentando sobreviver a uma ameaça externa sem nome nem rosto. Mas com toda a discussão acerca da polarização política que pautou o Brasil dos anos 2010, senti que não era mais possível manter a estrutura unilateral da história. Ao desenvolver também o drama dos trabalhadores fora do carro, vi a oportunidade de falar sobre o caos em que vivem as camadas mais populares e sobre a incomunicabilidade que alimenta a luta de classes ao longo da história do Brasil. O isolamento é o motor do nosso colapso enquanto sociedade”. "A violência é o curso natural da incomunicabilidade. Cultivamos com orgulho a imagem de um povo trabalhador e resiliente, mas precarizamos todos os aspectos da vida da classe trabalhadora. Menosprezamos seus desejos e suas revoltas. Então, caos é o que lhes resta. Meu foco não está tanto na ‘revolução armada’, que pressupõe uma organização mais complexa, mas no caos primordial, na racha21
dura que levará ao estouro da barragem. Esse caos me interessa enquanto cidadão e contador de histórias, pois ele pode se transformar em qualquer coisa, expor pessoas, respingar em qualquer um. Mas ele também é fruto de uma construção histórica muito antiga, colonial, na qual nosso ‘pacto de cordialidade’ sempre atuou para suprimir um contato mais franco entre as classes. Não concordo com a violência, mas não me surpreende quando ela ocasionalmente irrompe.” “A violência rompe o ordinário. É por isso que o cinema a ama – e é por isso que muitos amam o cinema. No entanto, por mais chocante que seja a violência narrativa de Propriedade, ela atua para evidenciar a violência histórica. Essa sim, mais insidiosa, dá motivação aos personagens e pode reverberar na experiência pessoal dos espectadores. Usar a violência como um cavalo de Troia é uma das possibilidades que mais me atrai no cinema de gênero.” A estreia de Propriedade faz parte do projeto Sessão Vitrine Petrobras. [Íntegra da entrevista: bit.ly/propriedadeims] Ingressos: R$ 15 (inteira) e R$ 7,50 (meia).
Anos 1920, Recife em tempo de cinema
Puan
María Alché, Benjamín Naishtat | Argentina, Alemanha, Brasil, França, Itália | 2023, 109’, DCP (Vitrine Filmes)
Marcelo dedicou sua vida ao ensino de filosofia na universidade pública e, de repente, seu mentor e chefe, o professor Caselli, morre. Desorientado nesse novo panorama, Marcelo imagina que herdará o posto deixado vago por seu mentor. O que ele não espera é que Rafael Sujarchuk, um filósofo carismático e pedante, formado nas melhores universidades europeias, também queira o posto. Entre seus múltiplos empregos como professor de filosofia em periferias, na universidade e em particular para uma milionária de 80 anos de idade, ele também deve se preparar para concorrer a um cargo contra esse forte adversário que parece encantar a todos. Esta é a primeira incursão mais direta de Alché (Família submersa, 2018) e Naishtat (Vermelho sol, 2018) na comédia. Em entrevista ao portal LatAm Cinema, a diretora comenta: “Nossos filmes (Benjamín 22
já tinha três, eu só tinha um) vieram de outras linguagens, a ideia de fazer algo juntos incluiu desde o início a ideia de saltar de um trampolim para um lugar que era novo para nós dois. E há a circunstância de que o projeto não teria sido possível sem aquele período de confinamento forçado pela pandemia, que nos permitiu escrever e pensar algo assim. Então, organicamente, surgiu a ideia de fazer uma comédia, algo que nos tentava muito. Ou pelo menos flertar com o gênero, porque depois o filme começou a assumir aspectos dramáticos." “Fazer comédia foi a regra que impusemos a nós mesmos para abordar uma série de assuntos que, de outra maneira, poderiam ser mais densos ou tristes, como, a situação da educação pública ou questões existenciais, como a morte de alguém próximo a nós”, complementa Naishtat. “Há várias tradições que permeiam o tipo de comédia que queríamos fazer. Os primeiros filmes de [Daniel] Burman foram comédias fantásticas, como O abraço partido e As leis de família, com personagens cheios de vida, muito particulares, muito preciosos [...]. E há também a comédia argentina mais tradicional, como Esperando la carroza [de Alejandro Doria], com suas situações tradicionais e que também, de alguma forma, passou pela escrita, embora talvez não seja tão perceptível. E há outras comédias de outros cinemas, e talvez até mais modernas, como as da alemã Maren Ade, que revisou o roteiro e nos ajudou, ou de Alexander Payne, que tem algumas comédias muito humanas, tristes e cômicas ao mesmo tempo.” [Íntegra da entrevista, em espanhol: bit.ly/puanims] Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
A mostra de filmes Anos 1920, Recife em tempo de cinema propõe conexões da produção pernambucana dos anos 1920, período de intensa atividade cinematográfica no estado, com o cinema realizado em outros locais e com obras pernambucanas de décadas posteriores. As sessões procuram estabelecer esses diálogos no tempo e no espaço, para ressaltar tanto semelhanças quanto singularidades, tanto continuidades quanto rupturas. Os filmes serão apresentados em cópias 35 mm, 16 mm e digitais em uma rara oportunidade de assistir a uma grande parte do conjunto preservado de filmes pernambucanos dessa época. Entre os destaques da mostra, está a exibição pela primeira vez da cópia digital de Retribuição (Gentil Roiz, 1925), considerado o primeiro filme de ficção pernambucano, que receberá trilha sonora ao vivo pelo guitarrista Lúcio Maia. A curadoria da mostra é de Luciana Corrêa de Araújo. A realização e a produção são do Cinema do IMS, e a curadoria e produção da sessão musicada são de Juliano Gentile, curador de música do IMS. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia). Os ingressos para a sessão musicada devem ser adquiridos pela plataforma Sympla pelo link sympla.com.br/imoreirasalles ou, no dia do evento, na bilheteria do IMS Paulista. Todos os demais estão disponíveis pelo site ingresso.com e na bilheteria do IMS Paulista.
Retribuição (1925) com trilha ao vivo por Lúcio Maia + Almeri & Ari: Ciclo do Recife e da vida (1979) Filme de aventura com busca de tesouro, sequestro e brigas, Retribuição (1925) marca a estreia da Aurora-Film, uma das principais produtoras em atuação nos anos 1920, da qual faziam parte a atriz Almery Steves e o diretor e ator Ary Severo. O casal é tema do documentário Almeri & Ari: Ciclo do Recife e da vida (1979), reunindo fotos, filmes e depoimentos, nos quais os dois contam sua experiência com “esse negócio de cinema”. O filme de Roiz será exibido em uma digitalização inédita produzida especialmente para essa programação e contará com acompanhamento ao vivo de Lúcio Maia.
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Retribuição
Gentil Roiz | Brasil | 1925, 39’, DCP (Cinemateca Brasileira) A história da mocinha que recebe do pai moribundo um mapa do tesouro e, auxiliada pelo galã, enfrenta os bandidos, também dispostos a colocar a mão na fortuna. Dirigido por Gentil Roiz e lançado em 1925, Retribuição é considerado o primeiro filme de enredo pernambucano. Nas duas sessões exibidas no IMS Paulista, o filme ganha trilha ao vivo de Lúcio Maia, guitarrista que despontou com a banda Nação Zumbi e que tem assinado diversas trilhas sonoras, como as dos longas Baile perfumado, Amarelo manga e Linha de passe. O músico se apresenta com seu trio, que conta com Juba Carvalho (percussão) e Pedro Regada (teclados analógicos). Realizada em outubro de 2023 pela Cinemateca Brasileira especialmente para esta mostra, a digitalização de Retribuição foi feita em 4k a partir de uma cópia de imagem em nitrato (suporte fílmico utilizado até a década de 1950), que possui diversos trechos com tingimentos e viragens, técnicas de colorização utilizadas com frequência nos filmes silenciosos. A cópia digital de Retribuição reproduz as cores do material em nitrato e apresenta uma qualidade de imagem muito superior às cópias bastante precárias que circularam nas últimas décadas.
Almeri & Ari: Ciclo do Recife e da vida
Fernando Spencer | Brasil | 1979, 10’, Arquivo digital (Cinemateca Pernambucana) Documentário sobre os pioneiros Ary Severo (diretor, argumentista, ator e roteirista) e Almery Steves, sua esposa, atriz de quatro filmes desse período: Retribuição, Aitaré da Praia, Destino das rosas e Dança, amor e ventura.
Veneza americana (1925) + Praça Walt Disney (2011) Dois filmes que lidam com as transformações no espaço urbano do Recife. O curta de 2011 se concentra no hoje populoso bairro de Boa Viagem. No longa, a nova avenida Beira-Mar construída no bairro, ainda pouco habitado, é exibida como uma entre outras obras do governo estadual. Em ambos, o tratamento não ficcional se expande, incorporando com inventividade diferentes olhares e percepções sobre o real.
Veneza americana
Praça Walt Disney
Documentário sobre o progresso de Pernambuco e as obras de urbanização do Recife, promovidas pelo governo estadual, com destaque para as melhorias no porto do Recife.
Uma praça, um bairro, uma cidade, um país. Uma “quase música” sobre uma cultura de ocupação urbana que reflete a sociedade brasileira e mundial. O documentário envereda por uma visão subjetiva, não disciplinada, da realidade de um bairro e de um mundo.
Pernambuco-Film | Brasil | 1925, 70’, 35 mm (Cinemateca Brasileira)
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Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira | Brasil | 2011, 21’, Arquivo digital (Aroma Filmes)
Jurando vingar (1925) + O homem da mata (2004) As plantações de cana-de-açúcar da Zona da Mata pernambucana constituem o ambiente dominante nestes dois filmes. Enquanto o longa-metragem Jurando vingar se concentra na saga justiceira de um proprietário de terras branco, o curta O homem da mata acompanha um trabalhador negro do canavial, que é também pai de santo e brincante no cavalo-marinho. Um traço de continuidade entre eles é o cinema popular de aventura, percurso no qual se insere também o cineasta Simião Martiniano, que aparece no curta como ator, em uma encenação que remete tanto às suas produções de baixo orçamento quanto ao modelo estrangeiro dos filmes de ação e faroeste, que marca Jurando vingar.
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Jurando vingar
O homem da mata
O plantador de cana Julio Serra se apaixona por Bertha, moça que trabalha em um bar. Ele se envolve em uma briga com Antonio Moraes, conhecido como Aviador, que desrespeitara sua amada. Depois de ser vencido na luta, Aviador mata a irmã de Julio, que jura vingança, e sequestra Bertha, levando-a para um esconderijo, no qual mocinho e bandido voltam a se enfrentar.
José Borba da Silva, ator, canavieiro, cantor, pai de santo e artista da cultura popular, interpreta Jack, o vingador justiceiro, super-herói defensor dos trabalhadores da Zona da Mata de Pernambuco.
Ary Severo | Brasil | 1925, 50’, 35 mm (Cinemateca Brasileira)
Antônio Carrilho [Antônio Souza Leão] | Brasil | 2004, 20’, 16 mm (acervo do diretor)
Aitaré da Praia (1925) + Sem Coração (2014) Tendo a praia como principal locação e palco para os conflitos, os dois filmes investem em uma variação do contraponto entre campo e cidade, muito recorrente no cinema silencioso brasileiro e latino-americano. Além dessa, os filmes compartilham outras tensões, tão presentes naquele momento quanto agora, que envolvem diferenças raciais e entre classes sociais. A ascensão social do mestiço Aitaré, descendente de indígenas, aponta um projeto de modernidade conservador, que reafirma as hierarquias de poder e o domínio da elite local, cujos desdobramentos se fazem sentir no curta do século 21.
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Aitaré da Praia
Sem Coração
Aitaré namora Cora, uma moça da pequena aldeia de pescadores onde os dois vivem. Durante uma pescaria em dia tempestuoso, ele salva o rico coronel Felipe Rosa e sua filha, que ficam retidos na aldeia até a chegada de um barco, que os leva de volta à cidade do Recife. Por causa das intrigas, Cora e Aitaré se desentendem e se separam. Somente tempos depois os dois se reencontram no Recife.
Léo vai passar férias na casa de seu primo em uma vila pesqueira. Lá, conhece uma menina apelidada de Sem Coração, que acaba provocando novos sentimentos no garoto.
Gentil Roiz | Brasil | 1925, 60’, 35 mm (Cinemateca Brasileira)
Nara Normande e Tião | Brasil | 2014, 26’, DCP (acervo da diretora)
No cenário da vida (1930) + A filha do advogado (1926) O fragmento de No cenário da vida (1930), um dos últimos filmes silenciosos produzidos em Pernambuco, confirma a proximidade com A filha do advogado (1926), especialmente no empenho em mostrar uma Recife urbanizada e de hábitos cosmopolitas, sem descuidar, no entanto, da moral conservadora. Jota Soares, que se tornaria principal referência histórica do cinema silencioso pernambucano, trabalhou nos dois filmes: dirigiu A filha do advogado, no qual também é ator, e a cena de cabaré em No cenário da vida, cujas sessões sonorizou pessoalmente, tocando discos de músicas e ruídos.
No cenário da vida [fragmento]
Luís Maranhão e Jota Soares | Brasil | 1930, 6’, 35 mm (Cinemateca Brasileira) Uma moça, filha de um abastado industrial, e o jovem Rodolfo de Carvalho amam-se intensamente. O casal, bem como outras destacadas figuras da sociedade recifense, encontra-se nas noitadas do Clube Pernambucano. Numa dessas noites, trava-se ferrenha briga entre Rodolfo e um rival. Mais tarde, Rodolfo é condenado por um crime que não cometera, e vai cumprir sua pena em Fernando de Noronha. Mas foge do presídio decidido a se vingar.
A filha do advogado
Jota Soares | Brasil | 1926, 92’, 35 mm (Cinemateca Brasileira) O advogado dr. Paulo Aragão, antes de seguir viagem para a Europa, conta seu segredo ao amigo jornalista Lúcio: tem uma filha biológica, Heloisa, que vive com a mãe numa casa de fazenda no interior. Lúcio fica com a incumbência de providenciar a mudança delas para a capital. Ele então entra em contato com Heloisa e a mãe dela, Lucinda. Com a chegada das duas, Heloisa e Lucio começam um discreto namoro. Ao frequentar festas oferecidas por famílias da sociedade, Heloisa passa a ser assediada pelo rico e irresponsável Helvecio, sem que nenhum dos dois saiba que são filhos do mesmo pai, o advogado Paulo Aragão.
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Recife no Centenário da Confederação do Equador (1924) + As grandezas de Pernambuco (1926) + O progresso da ciência médica em Pernambuco (1929) + Fabulário tropical (1979) Os três filmes silenciosos de não ficção se dedicam a enaltecer os progressos de Pernambuco, atendendo aos interesses daqueles que os financiaram, seja o governo do estado e empresários locais, seja a Faculdade de Medicina do Recife. Já o curta Fabulário tropical, filmado originalmente em super-8 por Geneton Moraes Neto, é uma paródia crítica a esses e outros tipos de discursos oficiais e ufanistas, que camuflam as violências perpetradas ao longo da história de Pernambuco.
Recife no Centenário da Confederação do Equador
Pernambuco-Film | Brasil | 1924, 12’, 35 mm (Cinemateca Brasileira) O governador Sergio Loreto e políticos de seu gabinete posam para a câmera. As comemorações do Centenário da Confederação do Equador, desfile da Força Pública (Infantaria, Cavalaria e Corpo de Bombeiros), missa campal celebrada pelo arcebispo D. Miguel Valverde, colocação da pedra fundamental do Palácio da Justiça.
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As grandezas de Pernambuco
Olinda-Film | Brasil | 1926, 33’, 35 mm (Cinemateca Brasileira) Filme que mostra as realizações do governo Sergio Loreto, em Pernambuco. Aspectos da cidade do Recife com um breve histórico da região e um passeio pelas localidades da capital pernambucana. O cais do porto, estabelecimentos comerciais e administrativos, igrejas, escolas e academias, mercados, hospitais, estação ferroviária, prédios públicos, ruas, logradouros e bairros. Panoramas, igrejas, ruas e banhistas na cidade de Olinda.
O progresso da ciência médica em Pernambuco Octavio de Freitas | Brasil | 1929, 34’, 35 mm (Cinemateca Brasileira)
Filme financiado pela Faculdade de Medicina do Recife e dirigido pelo médico Octavio de Freitas, mostrando as instalações do novo prédio, os diversos laboratórios, as turmas de aulas práticas e teóricas, a homenagem aos participantes do 5º Congresso Brasileiro de Higiene. Destaque para o Hospital de Doenças Nervosas e Mentais. Ao analisar o filme, a pesquisadora Ingrid Hannah Salame da Silva afirma: “Não deixa de ser marcante que um dos únicos documentários sobreviventes sobre a saúde médica no Brasil nos anos 1930 trate da personagem negra de modo tão enfático. Percebe-se como o filme corrobora com ideias eugênicas difundidas no início do século XX, que consideravam a mestiçagem e a negritude como fatores pejorativos e fontes de debilidade racial. [...] Nele, os pacientes, em sua maioria negros, é que são os portadores de doenças mentais, não havendo sequer um exemplo de paciente branco representando tais categorias. O branco é o mestre, o professor, eventualmente os funcionários e majoritariamente os alunos, salvo os casos dos mestiços”. [Silva, Ingrid Hannah Salame da. “Considerações sobre O progresso da ciência médica em Pernambuco e o preconceito racial no Brasil”. III Colóquio Internacional Cinema e História. Foz do Iguaçu: Unila, 2018, p. 81. Disponível em: bit.ly/ cienciamedicaims] 29
Fabulário tropical
Geneton Moraes Neto | Brasil | 1979, 6’, Arquivo digital (cópia gentilmente cedida por Paulo Cunha) Mordaz filme turístico pelas ruas do Recife, interessado na barbárie histórica que os monumentos e cartões-postais ocultam.
Revezes... (1927) + Banguê (1978)
Embora tenham pontos temáticos em comum, como a abordagem de conflituosas relações de trabalho e de classe, uma grande aproximação hoje entre os filmes Revezes... (1927) e Banguê (1978) se dá por meio de sua materialidade, já que ambos foram extremamente danificados ao longo do tempo. As cópias digitalizadas carregam essas marcas, que em muitos momentos impedem de ver e ouvir com clareza, mas cujos efeitos e texturas visuais convidam a fruir essas obras como filmes experimentais ou ainda como documentos do acidentado percurso de preservação que caracteriza boa parte do audiovisual brasileiro, e do qual os filmes pernambucanos não são exceção.
Revezes…
Chagas Ribeiro | Brasil | 1927, 48’, DCP (Cinemateca Brasileira) Jacinto, dono de uma próspera fazenda, é um homem mau, soberbo e violento; ausentava-se frequentemente para ir às feiras de gado. Seu filho, também perverso, procura conquistar Célia, filha do vaqueiro Augusto, mas ela gosta de Carlos, filho do vaqueiro Anselmo.
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Banguê
Kátia Mesel | Brasil | 1978, 18’, DCP (Cinelimite) Primeiro super-8 sonoro da cineasta Kátia Mesel, o documentário trata dos prisioneiros da Penitenciária Agrícola de Itamaracá.
Tesouro perdido
Humberto Mauro | Brasil | 1927, 79’, 16 mm (Cinemateca Brasileira) Dirigido por Humberto Mauro na cidade mineira de Cataguases, Tesouro perdido (1927) traz um enredo de aventura em torno de um tesouro cujo mapa é herdado pelo protagonista. Trama e estilos semelhantes conduzem Retribuição, filmado no Recife poucos anos antes. Morando em estados diferentes, os realizadores não se conheciam nem viam os filmes uns dos outros, mas estavam unidos na imensa admiração pelos filmes de gênero hollywoodianos, modelo que havia se tornado hegemônico desde a segunda metade dos anos 1910 e ao qual se vincularam incontáveis produções no Brasil e em outros países.
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Sob o céu de Antioquia
O trem fantasma
Jovem de família abastada, Lina mantém, contra a vontade de seu pai, Don Bernardo, um caso com Álvaro, um jovem boêmio que desperdiça sua fortuna. Os diversos pontos de contato da produção colombiana Sob o céu de Antioquia (1925), também ela filmada fora da capital do país, com os filmes silenciosos pernambucanos indicam uma matriz ideológica em comum. A modernidade representada tanto no campo quanto na cidade, seja com tratamento ficcional ou documental, incorpora elementos da tradição local, mas valoriza sobretudo o domínio da elite burguesa. O enredo aproxima particularmente o filme colombiano de A filha do advogado, já que ambos exploram o melodrama em meio a famílias da boa sociedade, com um jovem rico e irresponsável entre os personagens principais e o julgamento em tribunal de um crime que envolve a honra feminina.
Adolfo, um engenheiro ferroviário, é enviado a uma estação da província para investigar uma série de roubos de trens e se apaixona pela filha do chefe da estação. A investigação revela a existência de uma gangue desconhecida, liderada por um homem chamado Ruby, que encontra maneiras de cometer seus crimes em plena luz do dia. Em O trem fantasma, os filmes de gênero hollywoodianos têm uma incorporação das mais inventivas, que não exclui até mesmo a paródia. Filmado em Orizaba, no estado mexicano de Veracruz, El tren fantasma é exemplo de produção regional que, assim como os filmes do Recife e Tesouro perdido, mescla aspectos locais com procedimentos caros aos filmes de aventura, como nas sequências ambientadas no covil dos bandidos ou na briga entre mocinho e vilão em cima de um trem em movimento.
Bajo el cielo antioqueño Arturo Acevedo Vallarino | Colômbia | 1925, 98’, Arquivo digital (Fundación Patrimonio Fílmico Colombiano)
El tren fantasma Gabriel García Moreno | México | 1927, 70’, DCP (Filmoteca UNAM)
Sessão Cinética
O anjo nasceu
Julio Bressane | Brasil | 1969, 71’, 35 mm (Cinemateca Brasileira) Dois bandidos, Santamaria e Urtiga, saem pela cidade cometendo atos de violência. Santamaria, místico, acredita que assim está se aproximando de um anjo que lhe limpará a alma. Urtiga segue os passos do amigo, acreditando também no anjo da salvação. Afinal, Santamaria, que morreu pouco a pouco com as suas vítimas, identifica-se com a figura do anjo e enlouquece. Em entrevista à revista Limite em abril deste ano, Bressane comenta sua relação com o plano-sequência: “O cinema começou como plano-sequência: eram planos de três minutos que se rodavam inteiros. Depois é que, na feitura dos filmes, com o D. W. Griffith e tal, se começou a decupar, montar… Desde o meu primeiro filme, eu sempre tive uma intuição do plano-sequência. Desde os filmes em que eu estava ainda me formando, fazendo meu primeiro filme, sempre fiquei atraído pelos planos-sequência. Sempre, desde 32
Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir sempre. Mesmo nos filmes industriais, americanos, cheios de planos-sequência de dois, três, quatro minutos sem cortes, o plano-sequência sempre me atraiu. O primeiro filme que eu fiz, de longa-metragem, tinha um longo plano-sequência, fixo, inclusive. Tinham só movimentos panorâmicos, mas era um plano-sequência de três minutos e tanto. Depois, eu fiz O anjo nasceu, que é exatamente a saturação do plano-sequência: é todo filmado em planos longos, que vão em um ritmo que, no final, se estende ao infinito, à saturação”. “O plano-sequência tem uma coisa que sempre vai me interessar. Além do personagem, da história, do entrecho, o que há é o filme. Então, o plano-sequência tem essa abertura, ele se curva sobre si mesmo, é um signo que vê a si próprio. A coisa principal do plano-sequência é o cinema, a evidência do plano-sequência. Em um plano de três, quatro minutos, de seja o que for, é aquela duração estendida que se torna o principal, e nisso aí é que está o cinema. O plano-sequência é uma espécie de plano autorreferencial, se refere a si próprio, e esse ‘si próprio’ é o filme, é irredutível. Então, eu sempre me interessei por isso – não pelo tempo corrido, mas pela duração da concentração, da tensão sobre uma coisa.” Exibido no Festival de Brasília, em 1969, o filme de Bressane foi premiado na categoria Melhor Música. [Íntegra da entrevista em: bit.ly/anjoims] Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
Impulsionados pela emergência de equipamentos portáteis para captação de som e imagens no final da década de 1960, coletivos feministas franceses adotaram a produção de filmes e materiais audiovisuais como ferramenta de mobilização, difusão e aprofundamento de pautas. Fundado em 1982 pelas cineastas e militantes Delphine Seyrig, Carole Roussopoulos e Ioana Wieder, o Centro Audiovisual Simone de Beauvoir (CaSdB) é um arquivo audiovisual que reúne e preserva parte expressiva da produção realizada nesse contexto de ebulição social. Nessa, que é a maior retrospectiva desse acervo já realizada no Brasil, são apresentadas, mês a mês, obras que buscaram registrar e intervir na realidade não apenas da França, mas de outros países, com uma seleção de filmes históricos e contemporâneos preservados no Centro. São imagens que apresentam conferências feministas, manifestos, greves e movimentos de trabalhadoras, reivindicações por diversidade sexual, e retratos de personalidades, como Simone de Beauvoir, Angela Davis e Flo Kennedy, além de abordar temas densos e ainda urgentes, como guerra, democracia, estereótipos televisivos, aborto, abuso e prostituição. Com curadoria de Barbara Alves Rangel, ex-programadora do Cinema do IMS e atual diretora-geral do Centro, a mostra teve início em julho e segue até fevereiro de 2024, exibindo programas mensais. Em texto publicado no Blog do Cinema do IMS, a curadora faz um panorama inicial da trajetória do Centro e de suas fundadoras: [bit.ly/ br-casdb]. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
Não é preciso repetir a história
Rien n’oblige à répéter l’histoire Stéphane Gérard | França | 2014, 84’, Arquivo digital (CaSdB) A revolta de Stonewall, símbolo da liberação homossexual, ocorreu em Nova York, em 1969. O filme se interessa pelas especificidades surgidas a partir desse episódio e tenta compreender como se transmite e perdura o vasto projeto de transformação que está na origem desse movimento. Sete conversas com representantes de instituições e iniciativas que abordam as políticas das minorias sexuais e a luta contra a epidemia da aids se cruzam para propor suas análises, contar suas tentativas e reunir seus ideais. Compartilhando um desejo de justiça e se inscrevendo nos campos dos arquivos, do vídeo, da militância ou da criação de espaços comunitários, esses projetos atravessam épocas: eles conservam lições do passado e lançam sobre o futuro um olhar utópico.
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O trabalho do cineasta experimental Stéphane Gérard se debruça nas lutas políticas e na história das representações de gênero, orientação sexual, HIV/aids e pessoas racializadas. Em entrevista ao portal Neon em 2016, conta sobre sua motivação para buscar os arquivos e iniciativas norte-americanas: “Meu desejo de fazer esse filme veio do fato de que eu estava lutando para encontrar informações na França. Quando entendi que era gay, quando comecei a militar, não conseguia encontrar respostas para minhas perguntas. Eu queria saber de onde eu vinha para poder integrar essa identidade, que era diferente de uma identidade regional ou familiar. Eu estava potencialmente ligado a outra cultura e queria saber qual era sua história. Tive dificuldade para encontrá-la." “De qualquer forma, se não tivermos nossos próprios arquivos, não poderemos escrever a história a partir de nossa perspectiva, e o risco é que outra pessoa o faça a partir de outro ponto de vista. Um exemplo é a luta contra a aids nos EUA: entrevistei os cofundadores do Projeto de História Oral Act Up, para o qual eles foram ao encontro de ex-ativistas. O ponto de partida foi que, um dia, uma das pessoas por trás do projeto estava em seu carro ouvindo rádio e alguém começou a falar sobre a história da aids. A essência da história era que, assim que a doença surgiu, o governo começou a se envolver com o assunto e lançou mão de todos os meios para combatê-la. É claro que qualquer pessoa próxima aos círculos ativistas sabe que isso não é absolutamente verdade. Passaram-se anos até que Reagan pronunciasse a palavra ‘aids’ em público. Foi uma longa luta até que as bichas fossem protegidas da morte. Portanto, é importante deixar um registro dos
motivos pelos quais os ativistas agiram, caso contrário podemos nos perguntar em que fonte se baseia a história que nos é contada na escola. A vida que temos hoje como minorias – gays, pessoas racializadas, mulheres etc. –, o que restará dela se não nos for permitido vivê-la? O que restará dela se ninguém preservar os arquivos de nosso trabalho?” No Brasil, o Dezembro Vermelho, instituído por lei, marca uma grande mobilização nacional na luta contra o vírus HIV, a aids e outras IST (infecções sexualmente transmissíveis), chamando a atenção para a prevenção, a assistência e a proteção dos direitos das pessoas infectadas com o HIV. No mundo, desde 1988, o dia 1 de dezembro marca o Dia Mundial de Luta Contra a Aids. [Íntegra da entrevista, em francês: bit.ly/rienims]
Coutinho 90
Em 1984, Eduardo Coutinho marcou a história do cinema de não ficção com o lançamento de Cabra marcado para morrer. Por onde passou, tensionou os limites da representação e do assim chamado “documentário”: dirigindo episódios históricos do Globo Repórter, na produção em vídeo junto ao CECIP e na formulação de um “cinema do encontro” bastante único a partir de Santo forte. Em 11 de maio deste ano, Coutinho completaria 90 anos. Como homenagem, o Cinema do IMS exibiu uma seleção de obras do cineasta ao longo do ano. Em dezembro, serão exibidos os dois primeiros longas-metragens dirigidos por Coutinho, ambos de ficção, nas cópias atualmente disponíveis para exibição. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
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O homem que comprou o mundo Eduardo Coutinho | Brasil | 1968, 100’, Arquivo digital SD (Mapa Filmes)
Após presenciar um assassinato em uma rua deserta, José Guerra, humilde cidadão do país Reserva 17, recebe da vítima um cheque de 100 mil “strikmas” e se torna o homem mais rico do mundo. Perseguido pela ganância de governos e organizações secretas, José se envolve em uma aventura policial cômica: depois de isolado numa fortaleza por ordem das autoridades, casa-se secretamente, empreende uma fuga espetacular a pé, a cavalo, de patinete, e tem delírios de adquirir o estádio do Maracanã e a Estátua da Liberdade. O primeiro longa-metragem de Eduardo Coutinho conta com um elenco que inclui Marília Pêra, Flávio Migliaccio, Hugo Carvana, Raul Cortez, Milton Gonçalves e Paulo César Pereio. Coutinho assumiu a direção de O homem que comprou o mundo como substituto, após desentendimentos na equipe. Em entrevista a José Carlos Avellar compilada no livro Eduardo Coutinho (2013), organizado por Milton
Ohata, o cineasta comenta: “Para você ver a coisa terrível que era a minha vida, minha, não do cinema. Quem ia fazer era o Luís Carlos Maciel, tinha um roteiro, Zelito era o produtor, participou do roteiro e de não-sei-o-quê, teve uma briga em função de uma atriz que o Maciel queria e o Zelito não, e me chamaram; eu até achei chato: ‘Quero saber se eticamente é ruim, se pode mexer no roteiro ou não…’, e acabei fazendo um filme que não ia fazer; quer dizer, eu mudei muita coisa, mas, enfim, era um filme que não ia fazer…”. O filme será exibido em uma cópia digital de baixa resolução, único material disponível para exibição encontrado até o momento.
Faustão
Eduardo Coutinho | Brasil | 1971, 103’, 35 mm (Cinemateca do MAM) Um bando de cangaceiros liderados por Faustão intervém na briga entre integrantes das famílias Pereira e Araújo. Henrique Pereira, filho do coronel Pereira, é ferido em uma tocaia e mantido refém de Faustão, que exige um resgate. A partir do convívio com o grupo, no entanto, Henrique decide afastar-se da família e viver no cangaço, mas a chegada do assim chamado progresso no sertão colocará essa decisão em xeque. Em uma entrevista a José Marinho de Oliveira, compilada no livro Eduardo Coutinho (2013), organizado por Milton Ohata, o diretor comenta a história por trás dessa produção, que marcou seu afastamento temporário da direção de filmes: “A volta do contato com o Nordeste [após a interrupção forçada do projeto de Cabra marcada para morrer, em 1964] foi em 1969, quando a Saga Filmes, que já tinha produzido o ABC do amor [filme dividido em três episódios, um deles diri35
gido por Coutinho] – e cujos produtores eram os amigos Leon Hirszman e Marcos Farias –, fez um plano para rodar quatro filmes no Nordeste, usando a mesma equipe, usando o mesmo local, para tentar então um sistema que resultasse econômico e permitisse fazer quatro ao preço de dois, três filmes. Era uma utopia, como se viu claramente. Todos tinham a temática do cangaço, porque se achava que era uma coisa com receptividade popular. Na verdade, era um pouco engano. Essa receptividade existia, mas muito mais nos centros rurais do que nos urbanos. [...] Eu então fiz uma pesquisa. Até hoje foi uma coisa muito preciosa para mim, muito mais que os filmes. Porque eu li tudo o que pude encontrar sobre cangaço, coronelismo, coisas desse tipo, tudo sobre a história do Nordeste em geral. [...] Como tinha que ser filme de cangaço e era uma coisa que eu, a princípio, dominava, fiz Faustão. Era baseado na ideia de Henrique IV, do Shakespeare, um conflito entre pai e filho que é, ao mesmo tempo, um conflito de classes. O filho do rei era amigo do marginal, Faustão. E, na hora da decisão, quando tem que assumir a coroa, ele acaba renegando o amigo, uma espécie de pai substituto. E acaba ficando com o poder e seguindo o caminho do pai real. Enfim, ele acaba ficando com a classe dele e abandonando o amigo. Essa temática me interessava porque correspondia a uma colocação dramática, me interessava como pessoa, como psicologia, me interessava porque também o rei é o coronel do Nordeste. O rei do feudalismo e o coronel no Nordeste tinham alguma coisa a ver. [...] O Eliezer Gomes foi colocado no papel principal mesmo e sabendo que um chefe de bando negro era incomum, embora tivesse havido o Zé Baiano.
Mas, na região de Pernambuco até o Ceará, no sertão, era muito difícil. Lá o preconceito racial é muito mais forte e há muito menos negros. Os chefes de bandos eram, em geral, mestiços [sic] ou brancos, como Lampião, que era mestiço e, provavelmente, com sangue negro também, tinha vergonha de dizer que era. Dizia que era branco. Mas para o filme interessava uma situação dessas, porque a presença do Eliezer Gomes aumentava a distância social entre o cangaceiro e o coronel.” “Faustão foi feito sem dinheiro nenhum. Os atores começaram já em greve, porque tinham o salário em atraso. Os atores e a equipe técnica trabalharam com muita má vontade, o que é compreensível. E tanto é verdade que acabou não havendo nem o terceiro. O 'terceiro' da série acabou sendo do Leon Hirszman, São Bernardo, um ano depois… e absolutamente não ligado ao cangaço. Leon resolveu fazer um filme de autor.” “E depois aconteceu que Faustão foi mal de bilheteria. Eu não tinha condição de sobreviver em cinema. A Saga Filmes faliu, e eu acabei não recebendo um tostão pelo filme, nem os 10% da renda do filme, como diretor. Enfim, eu me casei nessa época com uma moça de Fazenda Nova, tive filhos. Optei por abandonar o cinema como profissão. Fui para o jornalismo, que eu já tinha praticado muitos anos antes.”
Instituto Moreira Salles Cinema Curador Kleber Mendonça Filho Programadora Marcia Vaz
Programador adjunto Thiago Gallego
Produtora de programação Quesia do Carmo
Assistente de programação Lucas Gonçalves de Souza
Projeção Ana Clara da Costa e Adriano Brito Serviço de legendagem eletrônica Pilha Tradução Revista de Cinema IMS
Produção de textos e edição Thiago Gallego e Marcia Vaz Diagramação Marcela Souza e Taiane Brito Revisão Flávio Cintra do Amaral e Juliana Travassos
Os filmes de dezembro
O programa do mês tem o apoio da Cinemateca Brasileira, do CTAv, da Cinemateca Pernambucana, da Cinemateca do MAM, da Fundación Patrimonio Fílmico Colombiano, da Filmoteca UNAM, da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, do Cinelimite, da Iniciativa de Digitalização de Filmes Brasileiros, do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, da revista Cinética, das produtoras Mapa Filmes, Aroma Filmes, das distribuidoras ArtHouse, Descoloniza Filmes, Imovision, Vitrine Filmes e do projeto Sessão Vitrine Petrobras. Agradecemos a Barbara Rangel, Nicole Fernández Ferrer, Peggy Préau, Luciana Corrêa de Araújo, Juliano Gentile, Marcela Antunes, Taiane Brito, Lúcio Maia, Juba Carvalho, Pedro Regada, Lilla Stipp, Camila Jordão, Paulo Cunha, Sheila Schvarzman, Antônio Carrilho, Nara Normande, Tião, Ricardo Spencer, Kátia Mesel, Juliano Gomes, Hermano Callou, Julia Noá, Ismail Xavier, Hernani Heffner, Drika de Oliveira, José Quental, Ricardo Cuesta, Alexandra Falla e Francisca Brito. Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir Realização: Instituto Moreira Salles; Curadoria: Barbara Alves Rangel; Cartaz: Marcela Antunes de Souza e Taiane Brito Apoio
Anos 1920, Recife em tempo de cinema Realização: Instituto Moreira Salles; Curadoria: Luciana Corrêa de Araújo; Curadoria musical: Juliano Gentile; Sessão com acompanhamento musical: Lúcio Maia (guitarra e efeitos), Juba Carvalho (percussão), Pedro Regada (teclados), Lilla Stipp (som), Camila Jordão (luz); Vinheta: Nara Normande e Juliana Munhoz; Cartaz: Marcela Antunes de Souza e Taiane Brito Apoio
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Venda de ingressos Ingressos à venda pelo site ingresso.com e na bilheteria do centro cultural, a partir das 12h, para sessões do mesmo dia. No ingresso.com, a venda é mensal, e os ingressos são liberados no primeiro dia do mês. Ingressos e senhas sujeitos à lotação da sala. Capacidade da sala: 145 lugares. Meia-entrada Com apresentação de documentos comprobatórios para professores da rede pública, estudantes, crianças de 3 a 12 anos, pessoas com deficiência, portadores de Identidade Jovem, maiores de 60 anos e titulares do cartão Itaú (crédito ou débito). Devolução de ingressos Em casos de cancelamento de sessões por problemas técnicos e por falta de energia elétrica, os ingressos serão devolvidos. A devolução de entradas adquiridas pelo ingresso.com será feita pelo site. Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas no site ims.com.br e no Instagram @imoreirasalles. Não é permitido o acesso com mochilas ou bolsas grandes, guarda-chuvas, bebidas ou alimentos. Use nosso guarda-volumes gratuito. Confira as classificações indicativas no site do IMS.
Durval Discos, de Anna Muylaert (Brasil | 2002, 96’, DCP)
Propriedade, de Daniel Bandeira (Brasil | 2022, 101’, DCP)
Terça a quinta, domingos e feriados sessões de cinema até as 20h; sextas e sábados, até as 22h.
Visitação, Biblioteca, Balaio IMS Café e Livraria da Travessa Terça a domingo, inclusive feriados das 10h às 20h.
Fechado às segundas.
Última admissão: 30 minutos antes do encerramento. Entrada gratuita.
Avenida Paulista 2424 CEP 01310-300 Bela Vista – São Paulo tel: (11) 2842-9120 imspaulista@ims.com.br
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