Em mais de 70 anos de carreira, millôr fernandes (1923-2012) mostrou possível o equilíbrio entre versatilidade, quantidade e qualidade. Um dos resultados dessa rara equação está nas mais de seis mil imagens de seu acervo pictórico, que acaba de chegar ao Instituto Moreira Salles. Cássio Loredano e Julia Kovensky, responsáveis pela organização deste continente de desenhos e pinturas, fizeram para a serrote uma primeiríssima seleção de obras que dão conta da extraordinária riqueza de seu autor.
Dos homens que tocam a água em traço limpo e delicado à exuberância das cores de uma lição de anatomia amalucada, estão o humor subentendido e o explícito, com e sem palavras, o nonsense, a reflexão e o autorretrato, irônico e sempre presente. Em todos os desenhos, o gênio se manifesta em sua forma mais sofisticada, quando faz parecer simples o complexo. Nada estranho a quem prescreveu: “Livre pensar é só pensar”.
brasil Tomada pela volúpia narcísica de mostrar que o tempo não passou, a apresentadora se perpetuou como a mercadoria das mercadorias na tv
Xuxa, 50 A mídia, a mulher, o amor, o dinheiro e o pai do homem
Quase que nos surge como escândalo, tal qual noticiado pelos jornais e tvs, o fato de uma celebridade de programa de auditório infantil ter feito 50 anos. Eis que de repente Xuxa, quem diria, virou coroa.
A atitude perante o tempo (este operário das ruínas, dizia Augusto dos Anjos) depende da psicologia individual e da condição social. A gente do povo, em geral, vê com júbilo a idade cinquentona: que sorte a da Xuxa ter chegado lá, a maioria vai antes para o tombo.
As camadas populares não exteriorizam a angústia com o tempo que passa, não padecem da aflição diante do tempo que come a vida, segundo Charles Baudelaire, o poeta anticapitalista que, em meados do século 19, inventou em Paris a palavra “modernidade”. O tempo é que devora a vida, e não o contrário, por isso o amor e a droga são encarados muitas vezes como os dispositivos, ainda que ilusórios e alucinados, de matar o tempo.
O tempo sem tempo. Vinicius de Moraes tinha loucura pela mulher de carne e osso em seu afã de querer ficar sempre apaixonado (a paixão como um jeito de distrair-se de si mesmo), porque assim o tempo não sucederia, e com isso
gilberto felisberto vasconcellos
Guto Lacaz
Raio X da Barbie
a morte deixaria de ser a angústia de quem vive. O tempo é, junto com o trabalho, o elemento fundamental da economia política. Eis a pergunta que envolve a questão do tempo: o que é um dia de trabalho? Quem fica rico, sabemos todos, rouba o tempo do trabalho do outro. O trabalhador trabalha grátis a maior parte do tempo.
Tempo é dinheiro, mas dinheiro não é tempo, segundo o reparo inteligente de Luís da Câmara Cascudo, o avô do Brasil menino, a quem dediquei meu livro sobre a Xuxa na década de 1990. Por essa época, eu estava interessado em saber se, no imaginário infantil, o Saci-Pererê não havia sido desbancado pela Xuxa. A televisão iria ou não eliminar o folclore? A Xuxa passa e o Saci fica? A apresentadora de tv é popular, mas nem tudo o que é popular consegue ganhar expressão folclórica, então difícil para a Xuxa seria libertar-se da lei da morte e do esquecimento, como poetou Luís Vaz de Camões.
Para a mulher do povo, ficar velha é um problema sério, menos pelas rugas no rosto que por enfraquecer os braços e as pernas, e assim não ter condições físicas de continuar trabalhando. Mas isso não quer dizer que a mulher da camada popular, submetida à influência da telenovela, não sonhe em implantar botox e fazer cirurgia plástica. Certamente comentará com sua amiga no ponto do ônibus que a Xuxa está comemorando 50 anos e não tem rugas nem nos dedos das mãos. Por outro lado, cinquentona, Xuxa é tomada pela volúpia narcísica de exibir (para as mulheres e os homens de todas as idades e classes) que o tempo não se abateu sobre ela.
As pessoas comuns ficam admiradas com a aparência maquiada: rejuvenescida pela tecnologia, Xuxa parece ter 20 anos. Gatona. Claro, a vida ensina pela experiência, nem todas as pessoas embarcam no milagre da cirurgia plástica: e no dia em que tudo despencar?
Lembro o samba-canção irônico e corrosivo de Tom Zé (feito em 1972) sobre o caráter efêmero da beleza, tomando como exemplo a star do cinema francês Brigitte Bardot, filmada pela Nouvelle Vague de Roger Vadim a Jean-Luc Godard.
Adolescente em algum cafundó da Bahia, Tom Zé deve ter tocado altas bronhas pensando na Brigitte dançando chá-chá-chá. Alguns anos mais tarde verificou, na foto de uma revista, que o ícone de seu onanismo estava envelhecendo. Bagulhando pelo implacável avançar da idade, Brigitte não era mais aquele esplendor de moça bonita e gostosa que deixava todos os machos do mundo loucos por ela.
“A Brigitte Bardot está ficando velha/ envelheceu antes dos nossos sonhos/ [...] Será que algum rapaz de 20 anos vai telefonar/ na hora exata em que ela estiver com vontade de se suicidar?” É difícil aparecer por aí um Tom Zé para lamentar que a Xuxa esteja ficando velha, ou que uma ex-criança outrora possa (hoje rapaz com 20 ou 30 anos) reconhecer a beleza que teria
sido o programa infantil de auditório. Por esse cotejo – Brigitte no cinema, Xuxa na televisão – não quero, contudo, demonizar a rainha dos baixinhos por ter manipulado a infância durante décadas. Ela colocou o dinheiro como desejo infantil, ainda que o objeto de sedução do programa infantil fosse menos a criança do que o bolso do pai e da mãe. Bem considerando, nada há de estarrecedor nisso; afinal, tudo é venal na televisão, tudo é para comprar e ser vendido, a pessoa se torna uma coisa (mercadoria), e a coisa, uma pessoa, ou seja, é um aparelho (diabólico, diria Pier Paolo Pasolini) em que se personifica a coisa e se coisifica a pessoa.
Mercadoria especial (diferente de um automóvel ou de uma geladeira), a televisão mostra e fala com insistência de outras mercadorias; então o corpo da Xuxa no programa de auditório aparece como a mercadoria das mercadorias, tal qual o dinheiro. Todavia, trata-se de um produto da televisão, e não o inverso. Se não fosse ela, teria sido outra videomoça, mas seguramente não uma Xuxa crioulinha, uma Xuxa afrodescendente de cabelo pixaim. Convenhamos que uma Xuxa pretinha seria tão absurdo como uma Xuxa trotskista.
As crianças mestiças e amorenadas ficaram fascinadas com a Xuxa nívea e loirinha, de acordo com o imago exemplar da cultura brasileira. Gilberto Freyre desvendou em Casa-grande & senzala que no mais íntimo recôndito de nossa personalidade medra a pulsão sadomasoquista colonial. A cor do espírito miscigenado não é negra nem ameraba, mas sim loira. A propósito dessa hegemonia cromática, basta observar que inexiste xampu que faça o panegírico do cabelo pixaim, de que resulta o artifício da loiraça em busca do cosmético que não é senão um disfarce para neutralizar o estigma do “cabelo ruim”. Qualquer cabeleireira (ainda que não seja pós-graduada em antropologia) sabe o que é o complexo psicológico do “cabelo ruim”, valendo-se da escova progressiva, da chapinha etc.
A cor branca é interiorizada desde cedo pelos guris como critério de beleza e de sucesso na vida. É essa a cor da elite econômica e cultural, embora possa eventualmente figurar no rol da classe dominante brasileira um tipo amulatado com beiçola. É provável que o ideal loiro infantil de auditório tenha acentuado a patologia cultural de inferioridade, que é um dos traços típicos dos países colonizados. Tal pai, tal filho, é o que dizem; mas, visto na perspectiva da sequência futura, é o inverso o que ocorre: tal filho, tal pai. Por isso o pai do homem é o menino. O regime social pode ser definido pelo tratamento dado à infância, principalmente como as crianças brincam e com quais brinquedos, conforme advertiu Walter Benjamin. Por isso é justificável a curiosidade de saber qual era o brinquedo de Hitler na infância. E Stálin, aos oito anos, brincava de pique e de chicotinho-queimado?
Já foi dito que os gregos eram, na Grécia antiga, meninos normais. Hoje, no mundo da comunicação de massa ou da indústria cultural, como queria
Theodor Adorno, as faixas etárias são vasos comunicantes em função do preço de mercado. Assim, a existência de programa de auditório infantil é uma estratégia mercantil para preparar e antecipar o ingresso da criança no público de telenovela. A televisão é um sistema autoexpansivo que não deixa nenhuma idade fora de seu alcance. A televisão concentra em si todos os outros meios de comunicação.
O programa infantil de auditório é o prelúdio da telenovela como passatempo (tido como gratuito) dos adultos. Quando da vigência do programa da Xuxa, vários psicanalistas e educadores apontaram para a sexualização precoce dos paquitos e das xuxetes. O problema dessa abordagem é a sugestão de que a infância seja uma idade assexuada, o que não corresponde à verdade, pois a criança é um ser sexualizado, como foi revelado pelos autores clássicos da psicanálise.
O que efetivamente ocorre no programa de auditório é a genitalização prematura da criança em detrimento da dessexualização das outras partes de seu corpo, o que tornará mais tarde impossível ou problemático o orgasmo adulto. A genitalização repressiva funciona como garantia do ingresso no consumo, na idade púbere de comprar, ao mesmo tempo que cada vez mais subtrai a letra na formação das crianças e dos adolescentes, o que acaba por acentuar o caráter ágrafo e analfabeto da sociedade brasileira.
O antropólogo Darcy Ribeiro, que trabalhou com o educador Anísio Teixeira e foi o mentor dos Cieps, enfatizou em vários livros que a enfermidade do subdesenvolvimento consiste em não conseguir alfabetizar todas as nossas crianças. O deplorável resultado disso é pular o estágio da letra e, com isso, entrar-se de corpo e alma no código da televisão, no qual a sedução descarta a instrução. Seduzir, e não instruir – esse é o principal mandamento da comunicação de massa. Xuxa, como qualquer comediante ou âncora de tv, pertence à esfera da comunicação, e não da educação. É por isso que os Cieps de Darcy Ribeiro nunca foram televisionados no Rio de Janeiro.
O candidato Darcy Ribeiro não conquistou os votos nem dos pais cujos filhos estavam estudando nos Cieps. Ele viu na constelação urbana da televisão-Igreja-tráfico que a sociedade brasileira escolheu o modelo do craque-modelo-ator como o único caminho da ascensão social da juventude. O craque do esporte. O modelo da moda. O ator da telenovela. Os Cieps foram abandonados e substituídos pelas igrejas universais, a população pobre e oprimida do Rio de Janeiro ficou submetida ao ruído evangélico e ao tiroteio das drogas.
Por outro lado, a política parlamentar converteu-se em reflexo de programa de auditório e de telenovela, cujo exemplo paradigmático é a vitória pop de Fernando Collor de Mello em 1989. Não foi movido por uma afeição linguística ao oximoro (coisas que expressam sentidos contrários, a exemplo de “fingido verdadeiro”) que resolvi, na década de 1990, intitular meu livro de O cabaré
das crianças. O cabaré é o entretenimento sexual com dinheiro, reservado aos adultos, mas é inconcebível (excluída a tara pós-moderna da pedofilia) que seja um lugar para as crianças. Todavia, reflexo da realidade subdesenvolvida (entre nós existe trabalho escravo infantil), o sistema televisivo é impelido a converter a criança em peça de cabaré para projetar o único paradeiro bem-sucedido da mulher brasileira adulta: a prostituição.
Neoliberalismo na economia e na cultura significa o triunfo da televisão no mundo inteiro. Atualmente quase todos os políticos, intelectuais e artistas não têm o menor constrangimento com a indústria ideológica.
A comparação tv e automóvel é adequada no capitalismo videofinanceiro porque, como observou Herbert Marcuse, o homem médio dificilmente se importa com outra pessoa na mesma intensidade demonstrada em relação a seu automóvel. A televisão exerce um poder ideológico maior do que o automóvel.
Em vez de ser um viveiro que preserva a duração da infância, o programa de auditório apressa a idade adulta. Quem sabe nele não existiria embutido um ódio inconsciente à infância? O bolso dos pais é o ponto de partida e de chegada. Crianças e adultos estão em interação mercadejante, a televisão atua como terapia coletiva engendradora de repressão. Terapia repressiva porque existe submissão cultural quando o pobre oprimido liga o aparelho de televisão. Isso tem início com o olho e o ouvido das crianças. Estas, se forem ricas ou remediadas, não trabalham, mas ficam horas vendo televisão. Por isso, alguma coisa mudou no significado do trabalho a partir do século 20. Quando o adulto liga a tv em casa, o trabalho da fábrica e do escritório se prolonga. O repouso (depois do trabalho) do trabalhador não é repouso, porque o telespectador passa a ser o produtor de energia psíquica. O poeta venezuelano Ludovico Silva chamou esse trabalho excedente de “mais-valia ideológica”.
Desde 1945, o ano da bomba atômica e do dólar como moeda internacional, está em discussão (não só em âmbito acadêmico) a possível mutação antropológica operada pela mídia eletrônica. O que é uma criança vendo e ouvindo programas de auditório? Antes de ver e ouvir televisão, é imperioso alimentar-se e vestir-se. Com isso, quero dizer que o trabalhador não vai à fábrica vender sua força de trabalho porque na noite anterior ele viu um capítulo de telenovela.
Os defensores do ócio televisivo (em geral omissos quanto à desigualdade social) afirmam que a crítica cultural feita à televisão deixa de lado a preferência dos telespectadores. Afinal, que direito tenho eu de me opor àquilo que todo mundo gosta? Que pretensão petulante é a minha de me insurgir contra o gosto médio das pessoas, ou seja, do público?
A acústica estridente das vozes das crianças me irrita (o dr. Silva Mello responsabilizou os Beatles pela mudança nevrosíaca do batimento cardíaco),
assim como não tolero o olho policial da telenovela que vejo nas ruas. Nem quero me valer aqui da acusação feita pelo filósofo Jean-Paul Sartre: a opinião pública é idiota.
As crianças adoram programas de auditório, assim como os adultos (inclusive favelados e moradores da periferia) não podem viver sem telenovela, mas é preciso esclarecer que não é o consumo que determina a oferta, e sim o contrário: a mercadoria televisiva precede o consumo, assim como a oferta força a demanda. O detalhe é que os artefatos eletrônicos estão endereçados à consciência, são produtos voláteis apreendidos pelos olhos e ouvidos. Deixo para os leitores a pergunta: que necessidade das crianças o programa de auditório satisfaz? Ou esta outra pergunta difícil de ser respondida sem iracúndia: qual a serventia da telenovela? Existirá nela porventura efeito civilizador? A telenovela mostra o que se tem necessidade de saber?
Jean-Luc Godard, que escreveu a história do cinema, afirmou que este lida com as lembranças e reminiscências, enquanto a televisão produz o esquecimento. Esquecemos o passado para que o presente (e tudo o que há nele de barbárie e estupidez) seja aceito com conformismo e resignação. A vida é bela na telenovela.
gilberto felisberto vasconcellos é doutor em sociologia pela usp e professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. É autor de Eu e a Xuxa (Leia Mais, 1991) e O xará de Apipucos (Editora Casa Amarela, 2000), entre outros.
ensaio pessoal A princípio inútil, o impulso de registrar o que se vive é fundamental para, mais tarde, entrar em contato com o que fomos um dia
Sobre ter um caderno de anotações
joan didion
“‘Aquela mulher, Estelle’”, lê-se na anotação, “‘é ela, em parte, a razão por que George Sharp e eu hoje estamos separados.’ Vestido de crêpe de chine encardido, bar de hotel, estação de Wilmington, 9h45 da manhã. Segunda-feira de agosto.” Uma vez que está no meu caderno de anotações, deve significar alguma coisa para mim. Examino o texto durante um bom tempo. De início, chego apenas a uma noção bastante genérica do que eu fazia, numa manhã de segunda, em agosto, no bar do hotel em frente à estação Pensilvânia, em Wilmington, Delaware (esperava um trem? Tinha acabado de perder um? 1960? 1961? Por que Wilmington?), mas lembro, sim, de ter estado lá. A mulher de vestido de crêpe de chine encardido tinha descido do quarto para tomar uma cerveja, e o atendente do bar já ouvira antes a razão de ela e George Sharp agora estarem separados. “Sim”, ele disse, e continuou a passar o esfregão no chão. “Você me contou.” No outro extremo do balcão há uma moça. Ela conversa, enfaticamente, não com o homem a seu lado, mas com o gato deitado no triângulo de sol projetado pela porta aberta. Está usando um vestido de seda xadrez da Peck & Peck com a bainha descosturada. O que acontece é o seguinte: a moça andava por Eastern Shore e agora está voltando para a cidade, abandonando ali o homem a seu lado, e tudo que a espera, até onde pode à esquerda Caderno de Roberto Piva nas páginas seguintes Cadernos de Ana Cristina Cesar Acervo de Literatura do ims
ver, são as calçadas viscosas do verão e as chamadas interurbanas às três da madrugada que vão mantê-la acordada na cama para, em seguida, cair num sono dopado nas manhãs calorentas que ainda restam do mês de agosto (de 1960? 1961?). Como precisa ir direto do trem para o almoço em Nova York, queria ter com ela um alfinete para prender a bainha de seu vestido de seda xadrez, e queria também poder esquecer a bainha e o almoço, ficar no frescor do bar cheirando a desinfetante e malte e fazer amizade com a mulher do vestido de crêpe de chine. Sofre com um pouco de autocomiseração e gostaria de comparar as Estelles. Era o que estava acontecendo ali. Por que fiz a anotação? Para lembrar, claro, mas lembrar exatamente do quê? Até que ponto aquilo realmente aconteceu? Será que algo do que anotei existiu? Por que mantenho um caderno de anotações, afinal? É fácil enganar-se com esse tipo de coisa. O impulso da anotação é algo especialmente compulsivo, inexplicável para os que dele não compartilham, útil apenas por acaso, apenas secundariamente, que é como toda compulsão tenta justificar a si mesma. Acho que começa, ou não, já no berço. Embora tenha me sentido compelida a anotar desde os cinco anos de idade, duvido que minha filha algum dia fará a mesma coisa, pois tem a bênção de ser uma menina receptiva, que se delicia com a vida na forma exata como a vida se apresenta a ela, sem medo de ir dormir e sem medo de despertar. Pessoas que mantêm cadernos de anotações são de uma espécie totalmente diferente, solitários e resistentes rearranjadores de coisas, descontentes ansiosos, crianças que, ao que parece, já nasceram com algum pressentimento de perda.
Meu primeiro caderno de anotações foi um bloco de capa dura Big Five presenteado por minha mãe com a sensível sugestão de que com isso eu parasse de choramingar e aprendesse a me distrair anotando meus pensamentos. Há alguns anos, ela me devolveu o bloco; a primeira anotação é sobre uma mulher que acredita estar congelando até a morte na noite do Ártico e acaba descobrindo, ao nascer do dia, que tinha ido parar no Saara, onde morreria de calor antes da hora do almoço. Não faço ideia do tipo de caminhos tortuosos que a mente de uma criança de cinco anos percorreu para chegar a uma história tão insistentemente “irônica” e exótica, mas aí se revela certa predileção por extremos que não me abandonou até a vida adulta; talvez, se eu tivesse tendência a interpretações analíticas, concluísse que essa é uma história mais verdadeira do que outras que eu poderia ter contado, como a da festa de aniversário do Donald Johnson ou a do dia em que minha prima Brenda jogou a areia da caixa dos gatos no aquário.
De modo que a razão para eu manter um caderno de anotações nunca foi, nem é hoje em dia, o registro factual preciso do que fiz ou pensei. Esse seria um impulso totalmente diferente, um instinto de realidade que às vezes
invejo, mas não possuo. Nunca, em nenhum momento, fui capaz de manter um diário para valer; minha forma de ver o dia a dia vai da extrema negligência à simples ausência, e, nas poucas vezes em que tentei diligentemente registrar o que aconteceu em um dia, fui tomada por tamanho tédio que o resultado foi, no máximo, misterioso. Do que vale algo como “compras, bater o texto à máquina, jantar com E., deprimida”? Que compras? Qual texto eu estava escrevendo à máquina? Quem é E.? Ela é quem estava deprimida, ou era eu? E quem se importa?
Na verdade, abandonei por completo esse tipo de anotação sem sentido; em vez disso, relato o que alguns chamariam de mentiras. “Isso simplesmente não é verdade”, costumam dizer meus parentes quando discordam do modo como lembro um acontecimento cuja memória compartilham comigo. “A festa não era pra você, a aranha não era uma viúva -negra, não foi assim de jeito nenhum.” É bem provável que estejam certos, pois não apenas sempre tive dificuldades em distinguir entre o que aconteceu e o que poderia ter acontecido, como ainda não estou convencida de que para mim importe a diferença entre uma coisa e outra. O caranguejo cozido que lembro de ter almoçado no dia em que meu pai voltou de Detroit certamente deve ser um floreio acrescentado à composição daquele dia para lhe emprestar verossimilhança; eu tinha dez anos de idade e não me lembraria, hoje, do caranguejo. O que aconteceu naquele dia não combina com caranguejo cozido. E, no entanto, é precisamente esse caranguejo fictício que me faz ver tudo outra vez, o filme doméstico daquela tarde reprisado com tanta frequência, o pai trazendo presentes, a criança chorando, um exercício ao mesmo tempo de culpa e de amor em família. Foi assim para mim. Da mesma forma, talvez nunca tenha nevado naquele agosto em Vermont; talvez jamais tenha havido floquinhos rodopiando no vento noturno, e é possível que ninguém mais tenha sentido o solo ficando enrijecido e o verão já morto, mesmo que ainda fingíssemos nos esbaldar nele, mas foi como senti acontecer, e podia muito bem ter nevado, podia, nevou.
Como senti acontecer: aqui estamos mais perto da verdade sobre um caderno de anotações. Às vezes me iludo sobre o motivo de manter um, imaginando que alguma virtude que trouxesse prosperidade derive de se preservar tudo que se vê. Observe bastante e anote, digo a mim mesma, e aí, certa manhã em que o mundo parecer exaurido de qualquer encanto, certo dia em que eu estiver fazendo apenas mecanicamente o que tiver de fazer, que é escrever – nessa manhã insossa, vou me limitar a abrir meu caderno de anotações e tudo estará ali, um relato esquecido com interesse acumulado, passagem de volta paga para o mundo lá fora: diálogos entreouvidos em hotéis e elevadores e na chapelaria do Pavillon (um homem de meia-idade mostra a outro o tíquete para pegar seu chapéu e diz: “Esse era meu número no futebol”); impressões de Bettina Aptheker e Benjamin Sonnenberg e
Teddy (“Mr. Acapulco”) Stauffer; meticulosas observações sobre fanáticos por tênis e modelos fracassadas e herdeiras gregas da indústria naval, uma das quais me ensinou uma lição importante (algo que eu poderia ter aprendido com F. Scott Fitzgerald, mas talvez todos devêssemos, por conta própria, conhecer os muito ricos) ao me perguntar, quando cheguei para entrevistá -la em sua sala de estar repleta de orquídeas, se ainda estava nevando lá fora no segundo dia de uma nevasca que parou Nova York.
Imagino, em outras palavras, que o caderno de anotações seja sobre outras pessoas. Mas evidentemente não é. Não tenho real interesse no que um estranho disse a outro na chapelaria do Pavillon; na verdade, suspeito que a frase “Esse era meu número no futebol” não tenha nem mesmo sensibilizado minha imaginação, mas apenas alguma memória de algo que eu um dia li, provavelmente “The Eighty-Yard Run”. Tampouco me importa uma mulher de vestido de crêpe de chine encardido num bar de Wilmington. Minha preocupação será sempre, claro, a moça de vestido de seda xadrez que não foi mencionada. Lembrar quem era eu na cena: a questão é sempre essa.
É algo difícil de admitir. Somos criados sob a ética de que os outros, quaisquer outros, todos os outros, são mais interessantes do que nós mesmos; ensinados a ser tímidos, no limite da autoanulação. (“Você é a pessoa menos importante no recinto, não se esqueça disso”, a governanta costumava soprar ao ouvido de Jessica Mitford em qualquer ocasião social; copiei isso no meu caderno de anotações porque apenas recentemente consegui adentrar um recinto sem que essa frase ecoasse no meu ouvido.) Só os muito jovens e os muito velhos podem, no café da manhã, contar o que sonharam, demorar-se falando de si mesmos, fazer interrupções a propósito da lembrança de um piquenique na praia, do vestido de verão favorito, de uma peça de algodão da Liberty e da truta de um riachinho perto de Colorado Springs. Do resto de nós se espera, com razão, que demonstremos interesse nos vestidos favoritos de outras pessoas, nas trutas que experimentaram. E assim fazemos. Mas nossos cadernos de anotações nos denunciam, porque, por mais diligentes que sejamos ao registrar o que vemos à nossa volta, o denominador comum de tudo que percebemos é sempre, e de forma transparente e desavergonhada, o implacável “eu”. Não estamos falando aqui daquele tipo de caderno de anotações claramente destinado ao consumo público, vaidade que estrutura um conjunto de elegantes reflexões; falamos de algo privado, de partes pequenas demais do fluxo mental para ter algum uso, de uma coleção indiscriminada e errática com significado apenas para seu próprio criador.
E às vezes até o criador tem dificuldades com a criatura. Não me parece haver nenhuma razão, por exemplo, para que eu saiba pelo resto da vida
que 720 toneladas de cinzas se acumularam a cada 2,6 quilômetros quadrados de área em Nova York durante o ano de 1964, e no entanto lá está, anotado no caderno e marcado com a palavra “fato ”. Tampouco preciso lembrar que Ambrose Bierce gostava de escrever o nome de Leland Stanford como “£eland $tanford” ou que “mulheres elegantes quase sempre se vestem de preto em Cuba”, uma dica de moda sem muito potencial de aplicação prática. E quanto às seguintes anotações: não parecem ter, no máximo, uma importância secundária?
No museu no porão do Tribunal do Condado de Inyo, em Independence, Califórnia, informação afixada ao paletó de um mandarim: “Este paletó de mandarim foi usado muitas vezes pela sra. Minnie S. Brooks em palestras sobre sua coleção de serviços de chá”.
Ruiva saindo de um carro em frente ao Beverly Wilshire Hotel, estola de pele de chinchila, malas Vuitton etiquetadas:
sra. lou fox hotel sahara vegas
Bem, talvez uma importância não de todo secundária. Aliás, a sra. Minnie S. Brooks e seu paletó de mandarim me fizeram voltar à infância, porque, embora nunca tenha conhecido a sra. Brooks nem visitado o condado de Inyo antes dos meus 30 anos, fui criada num mundo exatamente como aquele, em casas atulhadas de relíquias indianas e de pedaços de pepitas de ouro e âmbar-gris e de suvenires trazidos do Oriente por minha tia Mercy Farnsworth. Uma grande distância desse mundo para o mundo da sra. Lou Fox, onde todos vivemos hoje, e já não está de bom tamanho lembrar isso? Não estaria a sra. Minnie S. Brooks me lembrando do que sou? Não seria o caso de que a sra. Lou Fox me ajuda a lembrar do que não sou?
Às vezes, porém, é mais difícil perceber a razão de tudo. O que exatamente pensei ao anotar que o pai de um conhecido gastava 650 dólares por mês para ter luz no lugar onde vivia, no Hudson, antes do Crash? Que uso pretendia dar à seguinte citação de Jimmy Hoffa: “Posso ter meus defeitos, mas estar errado não é um deles”? E, embora ache interessante saber onde as moças que viajam com a máfia fazem o cabelo quando estão na Costa Oeste, será que algum dia a informação me será útil? Não seria melhor simplesmente passá-la a John O’Hara? O que faz uma receita de chucrute no meu caderno de anotações? Quem é a colecionadora eclética que mantém essas anotações? “Ele nasceu na noite em que o Titanic afundou.” Parece uma
frase bem interessante, e até lembro quem a disse, mas na verdade não se encaixa melhor na vida do que na ficção?
Mas, claro, é exatamente isto: não significa que eu fosse algum dia usar a frase, e sim que deveria me lembrar da mulher que a disse e da tarde em que a ouvi. Estávamos em seu terraço, à beira-mar, terminando de beber o vinho do almoço e tentando aproveitar o que havia de sol, o sol de inverno da Califórnia. A mulher cujo marido havia nascido na noite em que o Titanic afundou queria alugar a casa e voltar com os filhos para Paris. Lembro-me de querer ter dinheiro para morar naquela casa, cujo aluguel era de mil dólares por mês. “Algum dia você vai ter”, ela disse. “Um dia as coisas acontecem.” Ali, sob o sol no terraço, era fácil acreditar nesse algum dia, porém mais tarde tive uma ressacazinha e atropelei uma cobra preta no caminho para o supermercado, e fui inundada por um medo inexplicável quando, na fila para pagar, ouvi a moça do caixa explicar ao homem à minha frente por que era definitiva a decisão de se separar do marido. “Ele não me deixou escolha”, ela repetia e repetia, enquanto dava umas pancadas na caixa registradora. “Ele tem um bebê de sete meses com ela, não me deixou escolha.”
Gostaria de acreditar que meu pavor, ali, era pela condição humana, mas evidentemente era por mim mesma, porque eu queria um bebê e, àquela altura, não tinha um, porque queria ter uma casa cujo aluguel fosse de mil dólares por mês e porque estava de ressaca.
E tudo isso volta. Talvez seja difícil perceber o valor de se recuperar um estado de espírito desse tipo, mas consigo enxergar por quê; acho boa ideia não perder de vista as pessoas que fomos, a despeito de as considerarmos companhias agradáveis ou não. Caso contrário, elas acabam aparecendo sem aviso e nos surpreendendo, chegam esmurrando a porta da cabeça às quatro da madrugada de uma noite ruim e exigindo saber quem as abandonou, quem as traiu, quem vai resolver a situação. Esquecemos rapidinho as coisas que pensávamos jamais poder esquecer. Esquecemos na mesma medida amores e traições, esquecemos aquilo que sussurramos e aquilo que gritamos, esquecemos quem fomos. Já perdi contato com algumas das pessoas que fui; uma delas, uma garota de 17 anos, não representa grande ameaça, embora seja de algum interesse sentir de novo como era estar sentada no barranco de um rio bebendo vodca com suco de laranja e ouvindo, no rádio do carro, Les Paul, Mary Ford e seus ecos cantarem “How High the Moon”. (Vejam que ainda preservo as cenas, mas não me vejo mais entre as pessoas ali presentes, ou tampouco sou capaz de inventar o que conversavam.) Outra daquelas pessoas, uma moça de 23 anos, me incomoda mais. Ela sempre foi meio encrenqueira, e suspeito que vá reaparecer quando eu menos quiser revê-la, saias longas demais, tímida a ponto de ser problemática, sempre a parte ofendida, cheia de recriminações e pequenas mágoas e histórias que não desejo ouvir novamente, ao mesmo tempo me
entristecendo e enfurecendo com sua vulnerabilidade e sua ignorância, uma aparição tanto mais insistente porque há muito tempo banida. É uma boa ideia, portanto, ficar em contato com essas pessoas, e acho que é para isso que se mantém um caderno de anotações. E estamos todos sós, quando se trata de preservar abertos esses caminhos até nós mesmos: seu caderno de anotações nunca poderá me ajudar, nem o meu, a você. “E aí, o que há de novo no mercado do uísque?” O que isso poderia vir a significar para você? Para mim, significa uma loira usando um traje de banho Pucci com uma dupla de homens gordos na piscina do Beverly Hills Hotel. Outro homem se aproxima e todos se estudam por um tempo. “E aí, o que há de novo no mercado do uísque?”, diz um dos gordos à guisa de boas-vindas, e a loira se levanta, arqueia um dos pés e molha a pontinha na piscina, enquanto o tempo todo olha para a cabana onde Baby Pignatari fala ao telefone. E isso é tudo, mas o fato é que, muitos anos mais tarde, vi a loira saindo da Saks Fifth Avenue, em Nova York, com seu jeitão de californiana e um volumoso casaco de pele de marta. Sob o vento rigoroso daquele dia, ela me pareceu velha e irremediavelmente cansada, e nem a pele do casaco combinava com o estilo dos casacos daquele ano, não era o tipo de casaco que ela queria que fosse, e aí é que está. Durante algum tempo depois disso, não gostei mais de me olhar no espelho, e meus olhos faziam a varredura dos jornais em busca apenas das mortes, das vítimas de câncer, das doenças coronarianas precoces, dos suicídios, e parei de pegar a Lexington Avenue Line do metrô porque reparei, pela primeira vez, que todos os estranhos que vinha encontrando há anos – o homem com o cão-guia, o solteirão que lia os classificados todos os dias, a moça gorda que sempre descia comigo na estação Grand Central – pareciam mais velhos do que foram um dia.
Tudo retorna. Até aquela receita de chucrute: até ela traz coisas de volta. Eu estava em Fire Island quando a testei, e chovia, e bebemos um monte de uísque e comemos o chucrute e fomos para a cama às dez, e fiquei escutando o trem e o Atlântico e me senti segura. Voltei a cozinhar o mesmo chucrute ontem à noite e ele não me fez sentir nem um pouco mais segura, mas essa, como se costuma dizer, é outra história.
Joan didion (1934) é romancista e roteirista de cinema, mas celebrizou-se pelo estilo radicalmente pessoal que imprimiu a seu longo trabalho de não ficção. É autora de livros como Democracia, Álbum branco e O ano do pensamento mágico (todos publicados no Brasil pela Nova Fronteira) – este último, uma comovente meditação sobre as perdas do marido e da filha. Considerado um dos ensaios mais importantes de sua obra, “Sobre ter um caderno de anotações” faz parte de Slouching Towards Bethlehem, título fundamental do new journalism, publicado originalmente em 1968 e inédito no Brasil.
Tradução de christian schwartz
al Fabeto serrote
*asterisco, por f ilippomaria pontani
Do grego asterískos, “pequena estrela”; um polivalente sinal crucial em manuscritos ou textos impressos. Aristófanes de Bizâncio e seu discípulo, Aristarco de Samotrácia, os pais da crítica textual na Alexandria ptolemaica (séculos 3-2 a.C.), proveram suas edições de Homero com certo número de sinais escritos nas margens. Do corpus dos escólios homéricos e das evidências reunidas em papiros, aprendemos que os asteriscos marcam versos repetidos na Ilíada e na Odisseia. Diógenes Laércio (por volta do século 2 a.C.) atesta que os asteriscos também eram usados pelos editores do texto de Platão para marcar passagens que expunham doutrinas semelhantes.
Alguns séculos depois, Orígenes introduziu asteriscos no estudo filológico do Velho Testamento para indicar palavras ou pericopae (passagens escolhidas) que não haviam sido traduzidas na versão Septuaginta, mas cuja existência poderia ser inferida por comparação com outras traduções gregas na edição sinóptica chamada Héxapla. Dessa maneira, as passagens entre asteriscos apareceram duas vezes na mesma página, uma na versão de Teodócio e uma na Septuaginta, em que Orígenes os restaurou. O profundo significado do procedimento filológico de Orígenes foi resumido por Jerônimo (epist. 106.7): Origenes signum posuit asterisci, id est, stellam, quae quod prius absconditum videbatur, inluminet, et in medium proferat [“Orígenes põe o sinal do asterisco, isto é, a estrela, que antes se via escondida, se ilumina e desponta no centro”]. Interpretações etimológicas semelhantes sobre o asterisco foram propostas por Epifânio, De mensuris et ponderibus (Sobre pesos e medidas) 299; e por Isidoro, Etymologiae i.21.2.
O uso de asteriscos na Bíblia é muito importante não somente por sua prática
ter chegado até a Idade Média (Wycliffe, em meados do século 14, ainda fala sobre “asterischos” no prólogo de sua versão inglesa de Crônicas 2), mas principalmente porque explica a razão de o asterisco logo haver se tornado o sinal de omissão por excelência. A partir do início do século 16, de Marco Musuro a Justo Lipsio e depois, tornou-se comum para editores de textos impressos o uso de asteriscos para indicar deturpações textuais ou lacunas intransponíveis. Esse uso, bastante popular em edições críticas de textos antigos – bem no início do século 20 –, foi com frequência parodiado por autores que fingiam reproduzir os defeitos de seus manuscritos, como em A Tale of a Tub e The Battle of the Books (ambos de 1704), de Jonathan Swift, e Tristram Shandy (1760), de Laurence Sterne. Um caso especial é o da brincadeira de Cyrano de Bergerac no drama homônimo de Rostand (1897): descendo do balcão de Roxane, Cyrano finge estar caindo do céu, e acrescenta: “Pretendo escrever tudo em um livro;/ As pequenas estrelas douradas, que, envoltas em meu manto,/ Carreguei com segurança, sem
o menor risco,/ Servirão de asteriscos na página impressa!”.
Mesmo hoje em dia, os asteriscos costumam “cobrir” algo. Eles cobrem senhas quando as digitamos no teclado; cobrem nomes em arquivos secretos ou em romances históricos. An Essay in Asterisks, de Jena Osman, é uma coletânea de poemas dedicados ao não dito ou indizível.
Não obstante, talvez por sua inata imprecisão, ao longo dos séculos, o sinal também serviu a outros propósitos. Um asterisco posicionado na margem, por um poeta lírico, para sinalizar o fim de uma ode; especialmente se ela se encontra em uma métrica diferente, uma notação que parece tão antiga quanto Aristófanes de Bizâncio e que permanece até hoje – em livros de poesia e de prosa. O asterisco como sinal que liga notas de rodapé, escólios ou integrações ao corpo principal do texto surgiu em manuscritos medievais gregos e latinos, dos quais os textos impressos dos tempos modernos absorveram o uso. O sinal foi introduzido no início do século 19 em estudos indo-europeus para indicar palavras não confirmadas ou reconstruídas; mais recentemente, foi
utilizado na gramática gerativa para indicar palavras ou frases agramaticais.
Seria impossível listar todas as outras incontáveis aplicações desse sinal (multiplicação em matemática, símbolo de “nascido” em tipografia, tecla multifunção em teclados de telefone etc.). O fato atesta o potencial do asterisco para uma evocação infinita, o que foi agudamente percebido por Emily Dickinson em 1885: “Pois o que são as Estrelas senão Asteriscos/ Para sinalizar uma vida humana?”.1 1. Nuno Vieira de Almeida (org.), Emily Dickinson: poemas e cartas. Trad. de Nuno Júdice. Lisboa: Cotovia, 2000.
filippomaria pontani (1976) é professor do departamento de Ciências Humanas da Università Ca’ Foscari, em Veneza. Este texto faz parte de The Classical Tradition, volume editado por Anthony Grafton, Glenn W. Most e Salvatore Settis. Tradução de thiago lins
Cássio Loredano
carta aberta Na correspondência mantida entre
2008 e 2011, os escritores de O homem lento e Trilogia de Nova York discutem o tabu do incesto
Caro Paul, Caro John
paul auster e j .m. c oetzee
24 de abril de 2009
Caro Paul, obrigado por me mandar o Invisível, que li em duas longas sessões – em dois goles, por assim dizer. Em novembro passado, você me disse que haveria incesto em seu novo livro, mas não percebi – dada a complicação que você introduz, ou seja, a pergunta Onde o ato de incesto ocorre, na cama, na mente ou na escrita? – até que ponto o incesto estaria no cerne do livro. É um assunto interessante, o incesto, sobre o qual até agora, conscientemente, não pensei muito (como alguém ousa negar, pós-Freud, que não pensou nisso conscientemente?). Me parece curioso que, mesmo na fala popular, usemos uma única denominação para sexo entre irmão e irmã e para sexo entre pai e filha ou mãe e filho (de momento, deixemos de lado as várias combinações homossexuais). Com o primeiro, é difícil experimentar o mesmo frisson de repugnância que se sente com os outros dois. Não tenho irmã, mas acho bem fácil imaginar como jogos sexuais podem ser atraentes para um irmão e uma irmã mais ou menos da mesma idade – jogos sexuais que prosseguem até se transformar em mais que jogos sexuais, como em seu livro. Como sexo com o próprio filho ou filha deve ser um passo bem grande, eu pensaria que
deveríamos ter desenvolvido termos diferentes para dois atos morais tão diferentes.
No ano passado, na zona rural do sul da Austrália, soube-se de um casal pai-filha que foi processado por viver há décadas como marido e mulher em circunstâncias bastante isoladas. Não me lembro de todos os detalhes, mas o tribunal ordenou que fossem separados, o pai/marido intimado a não chegar nem perto da filha/esposa, sob pena de prisão. Me pareceu um castigo cruel, uma vez que a queixa não partiu de nenhum dos dois parceiros, mas dos vizinhos.
Fazer sexo com os pais ou com os filhos talvez seja o último tabu sexual a sobreviver em nossa sociedade. (Confidencialmente, prevejo que Invisível não vai ser recebido com um ulular de indignação, confirmando minha sensação de que sexo irmão-irmã tudo bem, ao menos para se falar a respeito ou escrever a respeito). Estamos já muito longe de sociedades divididas em castas nas quais as relações sexuais tinham de ser confinadas. Creio que a chegada da contracepção fácil marcou o fim dos tabus sexuais: o mito de que a mulher daria à luz um monstro perdeu a força.
Acho que não se deu atenção suficiente ao papel que o conhecimento do acasalamento animal desempenhou na criação dos tabus sexuais e raciais – o conhecimento que determinava quais espécies tinham permissão para acasalar com quais outras espécies, ou quantos graus de separação deveria haver dentro de uma mesma linhagem, evoluiu ao longo de centenas de gerações de criação de gado.
De qualquer forma, hoje em dia praticamente tudo parece aceitável. A fúria justiceira que costumava ser capaz de atingir toda uma gama de atos sexuais tabus (inclusive o adultério!) se concentrou em um único ato, o de homens adultos fazerem sexo com crianças, que é, acredito, nossa maneira de estender a cobertura do tabu pai-filho.
Interessante que, quando em cantos mais ignorantes do mundo (mais notadamente cantos ignorantes do mundo muçulmano) casais adúlteros são punidos, nós criticamos a lei que os pune e ignora seus direitos humanos. Em que mundo estamos vivendo, no qual temos o direito de quebrar um tabu? Qual o sentido de haver um tabu (seu byroniano Adam Walker poderia perguntar), se é ok violá-lo?
Tudo de bom, John
25 de abril de 2009
Caro John, fico contente que Invisível tenha chegado a suas mãos e que você o tenha devorado tão depressa.
Não, conscientemente eu também não pensei muito na questão do incesto – pelo menos até escrever o romance. Ao contrário de você, eu tenho uma irmã, mas ela é quase quatro anos mais nova que eu, e a ideia de tomar esse rumo com ela nunca me passou pela cabeça. Por outro lado, quando tinha 18 ou 19 anos, uma noite sonhei que estava fazendo amor com minha mãe. O sonho me intrigou na época e continua me intrigando hoje, uma vez que parece pôr abaixo a clássica equação freudiana: sublimação dos desejos por meio de símbolos cifrados e, muitas vezes, imagens indiretas, cada coisa representando alguma outra coisa. A teoria dele não tem lugar para o que experimentei. Pelo que me lembro, eu não ficava perturbado com o que acontecia no sonho, mas depois que acordei me senti chocado e revoltado.
Chocado porque no fundo acho que aceitava o tabu como inviolável. Não apenas o incesto entre pais e filhos, mas entre irmão e irmã também. Se aquilo que acontece com Walker e Gwyn em meu livro acontece de fato, está aberto a questionamento, mas tive de escrever aquelas passagens a partir de uma posição de convicção absoluta, e confesso que foi difícil para mim – como se eu tivesse cortado a cerca de arame farpado que fica entre a sanidade mental e o escuro da transgressão. E, no entanto, concordo plenamente com você que o livro não será recebido com o ulular da indignação (pelo menos não por essa razão!).
Na rea lidade, acho que já tenho prova disso. Esta semana, faz alguns dias, Siri e eu fizemos uma leitura conjunta na Brown University, em Providence, a convite de Robert Coover (um velho amigo que não víamos fazia algum tempo). Li algumas páginas da segunda parte (que continham o “grande experimento”, mas não o incesto pleno de 1967) e, embora Siri tenha contado que alguns estudantes riam, nervosos, atrás dela, depois que a leitura terminou nem uma única pessoa mencionou esses parágrafos. “Bela leitura”, disseram, ou “muito interessante, estamos ansiosos para ler o livro”, mas nada sobre o conteúdo do que tinham ouvido.
Voltando às suas observações sobre acasalamento animal, me lembrei de um livro que traduzi há muitos anos de um antropólogo francês, Pierre Clastres – Crônica dos índios Guayaki –, estudo excelente, lindamente escrito, sobre uma tribo pequena e primitiva que vive na selva da América do Sul. Há um homossexual no grupo, Krembegi, e este é o relato surpreendente de quem pode ir para cama com ele – e por quê:
São as relações de aliança entre grupos familiares, relações que tomam forma e se realizam na troca matrimonial, na troca ininterrupta de mulheres. As kujai são feitas para circular, para se tornarem esposas de um homem que não seja nem seu pai, nem seu irmão, nem seu filho. É dessa maneira que fazem os picha , aliados. Mas um homem, mesmo se ele existe como mulher, será que “circula”? Com que contrapartida se pagaria o dom de Krembegi, por exemplo? Não é imaginável, pois ele não é uma mulher, já que é pederasta. A lei maior com que se medem todas as sociedades é a proibição do incesto. Krembegi, porque é krypy-meno , acha-se no exterior dessa ordem social. Vê-se então cumprir-se até seu termo final a lógica do sistema social ou, o que dá no mesmo, a lógica de sua inversão: os parceiros de Krembegi são seus próprios irmãos; “Picha kybai (subentendido krypy-meno) meno-iã: um homem krypy-meno não faz amor com seus aliados”. Injunção exatamente contrária àquela que rege as relações entre homens e mulheres. A homossexualidade não pode ser senão “incestuosa”, o irmão sodomiza o irmão e, nessa metáfora do incesto, confirma-se e reforça-se a certeza de que precisamente o incesto não poderia ser cumprido (o verdadeiro: aquele de um homem e de uma mulher) sem pôr à morte o corpo social.
Excepcional, não? Estimular o incesto a fim de desestimular o incesto. Faz a cabeça girar... Mudando de assunto, quero lhe dar os parabéns por seu artigo na New York Review sobre as cartas de Beckett. Abrangente, sensível e justo. Siri ficou especialmente satisfeita com o espaço que você dedicou a Bion. No rastro de seu artigo e na expectativa da palestra que concordei em dar na Irlanda em setembro próximo, mergulhei humildemente no livro e, agora que cheguei ao fim, quero enviar meus primeiros comentários a você. Não é nada chato. Longe disso, e o que mais me comoveu foi ver a lenta e dolorosa evolução dele, de um pentelho sabe-tudo e arrogante para um ser humano sólido. Uma nota a uma das últimas cartas (o livro não está na minha frente agora, então minhas palavras podem não ser exatas) cita uma carta de Maria Jolas ao seu marido na qual ela diz algo como: Beckett está melhor
agora – sugerindo, creio, que nunca ligaram para ele pessoalmente e estão agora começando a mudar de opinião.
E, sim, as notas representam uma realização excepcional. Mas será que precisamos mesmo saber que o nome verdadeiro de Harpo Marx era Arthur?
Meus melhores votos, Paul
Em Here and Now, lançado em 2012, paul auster (1947) e J.m coetzee (1940) reuniram as cartas que trocaram por iniciativa deste último ao longo de quatro anos. A ideia era prolongar e aprofundar as conversas que mantinham em encontros literários pelo mundo. O livro será publicado no Brasil em 2014 pela Companhia das Letras.
Tradução de José rubens siqueira
1. Tradução de Tânia Stolze Lima e Janice Caiafa na edição brasileira: Crônica dos índios Guayaki. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
instituto moreira salles Walther Moreira Salles (1912-2001) fundador diretoria executiva João Moreira Salles presidente Gabriel Jorge Ferreira vice-presidente Mauro Agonilha, Raul Manuel Alves diretores executivos
serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro.
Esta serrote #14 ½ só circula, gratuitamente, na flip 2013. comissão editorial Alice Sant’Anna, Daniel Trench, Eucanaã Ferraz, Flávio Pinheiro, Francisco Bosco, Heloisa Espada, Matinas Suzuki Jr., Paulo Roberto Pires e Samuel Titan Jr. editor Paulo Roberto Pires coordenação editorial Alice Sant’Anna e Flávio Cintra do Amaral assistente de arte Gustavo
Av. Paulista, 1294/14º andar São Paulo sp Brasil 01310-915 tel. 11.3371.4455 fax 11.3371.4497 www.ims.com.br n° 14 ½ Julho 2013 As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os originais enviados sem solicitação da serrote não serão devolvidos.